2. a ontologia dos diálogos socráticos · 52 . tal tendência refutativa dos diálogos da...
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2. A Ontologia dos Dilogos Socrticos
Como vimos no captulo anterior, a formao do grupo de dilogos
socrticos no reflete corretamente os resultados da estilometria. No entanto,
inegvel que os dilogos atribudos primeira fase da carreira literria de Plato
possuem considerveis semelhanas entre si, tanto de um ponto de vista formal
quanto em termos de contedo. De maneira geral, as obras pertencentes ao grupo
de dilogos da juventude podem ser identificadas em funo da recorrncia de um
determinado mtodo investigativo: o elegxoj socrtico, de um tema especfico: a
busca por definies, e de um trmino dramtico aportico, isto : tais dilogos
acabam abruptamente, sem que os interlocutores consigam oferecer uma resposta
satisfatria para aquilo que se propuseram a investigar. fato notrio que estes
elementos no so apresentados exatamente da mesma maneira em todos estes
dilogos e nem todos os dilogos da juventude apresentam estas trs
caractersticas.1 No entanto, bastante claro que estas trs caractersticas so
recorrentes e servem para definir, de maneira geral, o grupo de dilogos
socrticos ou da juventude.2
O dicionrio Lidell & Scott nos oferece dois significados bsicos para
palavra grega elegxoj. Em seu uso mais geral, elegxoj significa uma
investigao, um teste, uma inquirio ou o escrutnio de algum ou alguma
1 Os dilogos Hppias Menor, on e Eutidemo, por exemplo, possuem um final aportico, assim
como apresentam o mtodo socrtico de refutao, porm no so dilogos voltados para
definio de algum termo.
2 Vale notar que a Apologia de Scrates no apresenta nenhuma destas caractersticas de
maneira marcante, apesar de possuir um pequeno elegxoj voltado contra Mileto. Mais
intrigante ainda o fato desta obra sequer ser um dilogo. Tal discrepncia formal levou
autores como Charles Kahn (1996) a atriburem um estatuto distinto para a Apologia, que seria,
segundo Kahn, uma espcie de relato histrico do julgamento de Scrates.
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coisa.3 Em seu uso mais especfico, contudo, elegxoj significa uma refutao,
uma contestao ou uma prova da falsidade de algum ou de alguma coisa
alegada.4 Apesar da palavra no ser usualmente empregada por Scrates para
caracterizar seu mtodo de investigao, esta dubiedade de sentido serve muito
bem para ilustrar o tipo de discurso posto em prtica nos dilogos da juventude.
Nestas obras, Scrates se diz interessado em realizar uma investigao (elegxoj)
acerca do contedo de termos do mbito da tica, como virtude (a)reth/)
prudncia (swfrosu/nh), amizade (fili/a), etc. No entanto, inevitvel ao
leitor o sentimento de que o maior desejo de Scrates operar uma refutao
(elegxoj) das teses e dos indivduos com quem trava suas conversas. Esta
tendncia a refutar e apontar incongruncias no pensamento de seus interlocutores
to forte que podemos dizer que, nos dilogos da juventude, Scrates nunca fala
com algum sem acabar por refutar esta pessoa, fazendo-a passar por ignorante
em um determinado assunto ou, pelo menos, confuso acerca de algum tema.
A recorrncia do procedimento socrtico de refutao permite que
identifiquemos certas caractersticas bsicas deste mtodo argumentativo. De
maneira esquemtica, podemos dizer que o elegxoj socrtico consiste em uma
prtica discursiva na qual um interrogador confronta e refuta as respostas de um
interlocutor interrogado. A refutao consiste em demonstrar como uma
determinada resposta do interlocutor encontra-se em contradio com outras
opinies por ele mantidas. Como, via de regra, estas opinies representam parte
das convices mais arraigadas do interlocutor de Scrates, o elegxoj acaba por
desqualificar a resposta inicial. Trata-se, portanto, de uma modalidade dialtica
que se articula no confronto entre dois interlocutores. Scrates no se dirige aos
homens em geral ou a um grupo de ouvintes, mais ou menos numeroso, pois a
indagao elntica exige, necessariamente, a exclusiva relao dual entre
interrogante e interrogado (Fronterotta, 2001, p.33)
3 Por exemplo, na expresso elegxoj poiei=n tino/j (por algo prva, testar alguma coisa)
Ar.Ra786; cf. Pi.N.8.21; Lys.19.6
4 Este sentido mais especfico do termo est exemplificado na expresso ou)k exein elegxon
(no admitir refutao): Hdt.2.23; cf. Pl.Fedr.276a; Arist.Rh.1410a22, 1396b26. Note que este
sentido de refutao herda a carga semntica pejorativa que esta palavra possui em Homero,
onde elegxoj significa uma censura, uma repreenso ou uma vergonha, uma mcula.
Il.11.314; Il. 5.787; Il. 24.260; Od.21.329;
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Tal tendncia refutativa dos dilogos da juventude se reflete, no plano
dramtico, no final aportico destes dilogos. H, portanto, uma ntima relao
entre as trs caractersticas centrais dos dilogos da juventude. Enquanto o mtodo
de refutao socrtico d forma busca por uma definio, a estrita compreenso
de Scrates acerca do que uma boa definio, resulta no final aportico destes
dilogos, que terminam sem que os interlocutores consigam formular uma
definio adequada para o termo investigado.
Dentre os traos caractersticos dos dilogos da juventude, aquele que se
mostra mais importante para abordarmos o tema da ontologia platnica a prtica
discursiva da busca por definies. Este procedimento investigativo, prprio do
Scrates dos dilogos da juventude, textualmente representado pelo
aparecimento da pergunta o que F? ( F), onde F , normalmente, um
termo tico.5 Os dilogos mais representativos da busca definies so Crmides,
Lques, Hppias Maior, utifron e Mnon, apesar de outros dilogos da juventude
tambm possurem sees voltadas para definio de algum termo, por exemplo:
Protgoras, Lsis. H, portanto, o tema da busca por uma definio na maior parte
dos dilogos da juventude de Plato, ficando de fora apenas Apologia, Crito, on,
Grgias, Eutidemo e Hppias Menor.
Quais razes teriam levado Scrates a se preocupar com a busca pela
definio de certas palavras? Melhor dizendo: quais razes teriam levado Plato a
descrever Scrates nesta busca por definies em tantos dilogos? Quando
pensamos nas razes que nos levam a buscar definies para palavras que usamos
quotidianamente, o mais bvio motivo que nos vem mente o fato de que
5 No Hppias Maior, como veremos, a questo socrtica gira entorno da definio de um termo
esttico: o que o belo?. Este dilogo, por si s, j indicaria uma amplitude maior de
aplicao do mtodo de questionamento socrtico, extrapolando seu escopo para termos de
outras reas. Contudo, a conhecida relao de proximidade entre bom e belo, estabelecida pelos
pensadores gregos, parece indicar que este pode ser um caso de extenso de significado de um
termo visto por Plato como, essencialmente, do mbito da tica. Em outros dilogos, no
entanto, vemos Scrates exemplificando seu mtodo investigativo por meio de casos
claramente fora do mbito tico. No Mnon, por exemplo, Scrates investiga o que figura?
, o que cor? (Mn74b4-77a2) e o que a essncia da abelha? (Mn72a8-b2). No
Lques, Scrates investiga o que velocidade? (Lq192a1-b4). Todos estes casos me
parecem suficientes para afirmarmos que o mtodo socrtico representado pelo aparecimento
da questo o que x? pode, a pincpio, ser aplicado na busca da definio de qualquer termo.
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precisamos nos comunicar com clareza. Podemos dizer que, em geral, desejamos
obter a definio precisa de certas palavras com o intuito de compreender melhor
as situaes em que podemos corretamente empreg-las. Este o motivo que nos
leva a abrir um dicionrio ou leva uma criana a perguntar a seus pais o que
saudade ou liberdade significam. O objetivo deste tipo de busca assegurar
que estamos sendo entendidos pelas pessoas com quem conversamos e que
estamos usando uma determinada palavra do mesmo modo que o grupo de
pessoas com as quais convivemos.
No entanto, este motivo no parece fazer parte dos objetivos de Scrates.
De acordo com a representao da busca socrtica por definies que encontramos
nos dilogos de Plato, Scrates no est interessado em descobrir o uso mais
frenquente de uma determinada palavra. Ele tampouco acredita que a opinio mais
comum acerca do contedo de um conceito ou o uso mais frequente de uma
determinada palavra possa servir como parmetro para obteno de uma definio
satisfatria. Muito pelo contrrio. Em vrios momentos, vemos Scrates
desqualificar a opinio da maioria e, de maneira geral, podemos afirmar que sua
atitude no acreditar nas definies geralmente aceitas ou mesmo nas definies
propostas pelos ditos especialistas no assunto em questo. Sendo assim,
podemos ter como certo que os objetivos de Plato, ao descrever a busca por
definies em tantos dilogos, esto para alm do mero interesse lexical.
Como, textualmente, a busca por definies representada pelo
aparecimento da pergunta o que x?, devemos comear nossa investigao por
meio da anlise da forma lgica desta pergunta. Conforme observado por
Robinson (1941, p 55), a pergunta o que x? possui o maior o grau de
generalidade possvel. As perguntas na forma quem x?, quando x? e onde
est x? apresentam, todas elas, um campo restrito de respostas. No primeiro caso,
desejamos um nome como resposta, no segundo caso, desejamos uma coordenada
temporal e, no terceiro caso, um determinado lugar. A pergunta por que x?
apresenta maior grau de generalidade do que as trs primeiras, na medida em que
deseja saber as causas de x e, portanto, necessita de uma resposta de forma lgica
proposicional. Isto , enquanto as trs primeiras perguntas podem ser respondidas
por apenas uma palavra: um nome, um momento e um lugar, respectivamente, a
pergunta por que x? precisa receber como resposta uma sentena. J a pergunta
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o que x? possui ainda maior grau de generalidade e apresenta um vasto campo
de respostas gramaticalmente corretas. O campo de respostas possveis para
perguntas do tipo o que x? to vasto que fazer esta pergunta sem especificar
aquilo que desejamos saber equivale, praticamente, a dizer: Faa-me alguma
afirmao sobre x, por favor.
Quando realizamos estas questes no nosso dia a dia, o contexto de
enunciao suficiente para indicar ao interlocutor o tipo de resposta que estamos
esperando. Quando perguntamos onde ser o jantar? no esperamos uma
resposta do tipo: o jantar acontecer no hemisfrio sul do planeta terra. Do
mesmo modo, quando queremos saber quando o Brasil foi descoberto, no
esperamos que nos digam a hora e os minutos exatos da chegada do primeiro
europeu no territrio que hoje chamamos Brasil. Assim, quando perguntamos o
que um tringulo?, normalmente, o contexto de enunciao indica ao
interlocutor que tipo de resposta estamos esperando. H vrias respostas
logicamente corretas para esta pergunta: um tringulo um objeto matemtico;
um tringulo uma figura de trs lados; um tringulo a figura geomtrica
plana cuja soma dos ngulos internos igual a 180 graus e, at mesmo, a letra
delta do alfabeto grego um tringulo. Sendo assim, a mera colocao da
pergunta o que x? no deixa claro que tipo de resposta desejamos receber, tal
pergunta pode significar desde o que a palavra x significa? a x pertence a qual
classe de coisas? e, ainda, qual a definio precisa de x?.
Portanto, para investigarmos o contedo da questo o que x? nos
dilogos da juventude, precisamos observar o contexto enunciativo em que
perguntas deste tipo aparecem. Isto inclui no s o que Scrates diz acerca daquilo
que est buscando, mas tambm as respostas oferecidas por seus interlocutores e
toda a dinmica conversacional que estes personagens desenvolvem. claro que
uma investigao exaustiva destes tpicos no pode ser desenvolvida nos limites
desta tese, pois implicaria na anlise detalhada de cada um dos dilogos da
juventude. No entanto, importante ressaltar que uma investigao acerca das
implicaes filosficas dos argumentos desenvolvidos nos dilogos platnicos no
pode ser reduzida a uma anlise das implicaes lgicas das sentenas ali
encontradas. O Scrates dos dilogos e seus interlocutores so personagens de
uma obra literria e, portanto, elementos de uma composio dramtica. Sendo
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assim, o que dito por estes personagens deve ser compreendido em funo do
contexto dramtico em que esto inseridos.
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2.1. A pergunta F e a busca pelo ou de F.
Um dos elementos contextuais mais recorrentes ligados ao procedimento de
busca por definies encontra-se no fato de que Scrates constantemente relaciona
a pergunta F com a busca pelo ou de F. Em sua conversa com
utifron, por exemplo, logo aps dar incio a um exame acerca do que a piedade
( ), Scrates explica que est em busca daquela Forma () em virtude
da qual todas as coisas pias so pias (
Eut.6d11) e, logo em seguida, reformula sua questo pedindo a utifron que lhe
ensine o que esta ideia ela mesma (
Eut.6e3).
No Hppias Maior, o termo volta a aparecer relacionado pergunta
e ao objetivo da busca por definies. Em um dado momento da conversa,
Scrates, aps criticar a resposta oferecida por Hppias para questo o que o
belo?, explica que est procura do belo ele mesmo, aquela forma () em
virtude da qual todas as outras coisas so adornadas e aparecem como belas,
quando adicionada a elas ( ,
, HipMa.289d4).
Finalmente, o dilogo Mnon relaciona, de maneira ainda mais clara, o
socrtico com a busca pelo daquilo que esta pergunta pretende definir:
Ora, assim tambm no que se refere s virtudes. Embora sejam muitas e de diversas maneiras, tm todas uma mesma forma () nica, graas a qual so virtudes e [que ] perfeitamente possvel de ser revelada pessoa que faz a pergunta o que vem a ser virtude?, tendo aquele que responde voltado seu olhar para isto.
, ' , , (Men.72c6-d1)
Como sabemos, os termos e fazem parte do vocabulrio
empregado nos dilogos da fase mdia e so usados por Scrates, em obras como
Fdon, Repblica e Parmnides, para designar, justamente, as Formas inteligveis.
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Portanto, podemos constatar que, de um ponto de vista estritamente lexical, existe
uma ntida continuidade entre a busca por definies realizada nos dilogos da
juventude e a apresentao da Teoria das Ideias presente nos dilogos da
maturidade. No entanto, esta coincidncia, por si s, no pode ser considerada
suficiente para afirmarmos que a busca por definio dos dilogos da juventude
pressupe a afirmao da existncia das Formas inteligveis e compartilha da
mesma ontologia descrita nos dilogos da fase mdia. Isto porque o uso de e
nos dilogos da juventude pode vir a se demonstrar uma mera faon de
parler, totalmente desprovida de consequncias metafsicas e sem implicaes
acerca do status ontolgico dos entes aos quais estes termos esto se referindo. Ou
seja, qualquer um que no admita a existncia das Formas inteligveis nos
dilogos da juventude pode, a princpio, alegar que, nestes dilogos, as palavras
e no esto imbudas do significado especfico que estes termos
adquirem nos dilogos da fase mdia.6
Precisamos, portanto, investigar o uso dos vocbulos e nos
dilogos da juventude e determinar o status ontolgico dos objetos aos quais estes
termos se referem. Caso nossa investigao leve concluso de que a entidade
cuja definio est sendo buscada por Scrates no pode ser entendida como um
item lingustico ou uma caracterstica inerente aos objeto sensveis, mas trata-se
de uma entidade realmente existente, ontologicamente prioritria e independente
destes objetos, estaremos na posio de afirmar que podemos encontrar sinais da
presena das Formas platnicas nos argumentos desenvolvidos nos dilogos da
juventude.
Sendo assim, me parece necessrio, de um ponto de vista metodolgico,
realizarmos uma breve exposio dos usos destas palavras em textos pr-
platnicos, com intuito de descobrirmos se o mero aparecimento destes termos
suficiente para identificarmos, indubitavelmente, uma aluso s Formas. Tal
6 Este a posio de Gianantonni (2005), para quem estes termos nunca adquirem o sentido de
Forma platnica nos dilogos da juventude. Irwin (Irwin,1977, p.292) defende esta mesma tese
com relao ao dilogo Lsis, Dorion (Dorion, 1997, p.208-13) com relao a todos os dilogos
da juventude, mas sobretudo com relao ao utifron; Woodruff (1978) e (Woodruff, 1982,
p.161-168) com relao ao Hppias Maior e M. Canto com relao ao Mnon (Canto, 1991,
p.220-221)
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exposio servir, ainda, para nos fornecer as ferramentas bsicas para uma
anlise das ocorrncias destes mesmos termos em Plato. Afinal, podemos ter
como certo que Plato no escolheu estes vocbulos de maneira acidental, mas
pretendeu se inserir em uma determinada tradio, ao usar estas palavras para
nomear suas Formas.
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2.2. e , uma investigao lexical. 7
A primeira coisa a se notar acerca dos termos e que, em sua
maioria, os comentadores tomam estas duas palavras como sinnimos.8 De fato,
ambas as palavras so derivadas da raiz indo-europia id*, representada em
grego pelo verbo ei)/dw, em Latim pelo verbo video e em ingls por Wit.
Pelos seus derivados, podemos perceber que se trata de uma raiz associada ao ato
da viso e, de maneira mais geral, com a noo de percepo, como o verbo grego
(propriamente, o perfeito indicativo de ei)/dw) parece sugerir.
Coerentemente, o uso da palavra associado forma ou aparncia
externa de um objeto, sobretudo um corpo humano, aquele que encontramos em
textos mais antigos. Na Ilada, por exemplo, a beleza fsica de Pris descrita
pela expresso (III, 39). Do mesmo modo, o termo usado para
descrever a feira de Dolon, cujo dito (X, 316).9 este mesmo
significado que est em jogo quando Herdoto nos explica porque os cavalos
ldios bateram em retirada ao encararem os camelos persas: Pois cavalos temem
camelos, por no poderem suportar nem a aparncia ( ) nem o odor dos
camelos. (I,80.4)
7 O primeiro estudo detalhado acerca dos usos destes termos em textos gregos anteriores a Plato
foi realizado por Taylor, em sua monumental obra Varia Socratica. (1911) Nesta obra, Taylor
analisa um enorme conjunto de textos nos quais podemos encontrar ocorrncias das palavras
e . Os resultados de Taylor foram revistos, no que concerne ao corpus hipocrtico,
por Gillespie (1912). Posteriormente, Baldry (1937) procurou apontar, novamente em textos
prplatnicos, mais um uso para os termos, ainda no identificado nas anlises de Taylor e
Gillespie.
8 Por exemplo, Taylor (Taylor, 1911, p.189), Gillespie (Gillespie, 1912, p.02) e Baldry (Baldry,
1937, p.141). Pradeau, contudo, procura traar uma distino entre os usos de e nos
dilogos platnicos. Segundo ele, enquato significa a forma caracterstica de um
conjunto de coisas, designa a natureza especfica ou essencial da coisa (cf.Pradeau,
2001, p.22) A diferenciao entre o sentido destes dois termos havia sido proposta,
anteriomente, por Brommer (1940).
9 digno de nota que toda a obra de Homero no possui uma s ocorrncia do termo .
(cf.Pradeau, 2009, p.346)
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Nestas passagens, e significam a aparncia externa ou o
aspecto de um ser vivo. Tal uso se desenvolve, posteriormente, at significar a
forma exterior, muitas vezes no sentido geomtrico, de algum objeto. O sentido
mais tcnico deste uso, contudo, pode ser encontrado nos autores da retrica
grega, como Iscrates, onde usado para significar um arranjo de palavras
(cf. Isc.3.44).
Um uso mais especfico, mas ainda muito prximo aos exemplos acima
descritos, encontra-se no corpus hipocrtico, onde pode significar, dentre os
vrios sentidos que esta palavra adquire nestes tratados, a compleio fsica de
um paciente. Desta maneira, a medicina hipocrtica nos adverte a adequarmos a
aplicao do remdio ao do paciente, isto : a seu estado ou forma fsica. No
tratado Sobre a Natureza do Homem, por exemplo, encontramos as seguintes
linhas: considerando a natureza do doente, sua idade, sua compleio (), a
estao do ano e o tipo de doena, aplica-se o tratamento (
, : 9, 27-29).
Portanto, podemos perceber, nas obras mdicas, uma evoluo de sentido
do termo, que passa a significar, no mais a mera silhueta do objeto ou sua forma
geomtrica, mas a soma de suas caractersticas fsicas, sua estrutura interna. Por
meio deste desenvolvimento semntico, a palavra adquire um sentido
paralelo ao da palavra , sendo ambas as palavras usadas como sinnimos
para designar a natureza do corpo em questo. 10
Contudo, a histria da transformao do significado destes termos no
para por a e o uso que podemos considerar mais tcnico destas palavras
encontrado nos textos em que e adquirem um valor classificatrio.
Assim, ainda nos tratados hipocrticos, encontramos sentenas como: vrios
outros tipos () de febres. Em Herdoto, tambm encontramos ocorrncias
deste uso. Ao enumerar os jogos inventados pelos Ldios, por exemplo, Herdoto
diz: Eles inventaram o jogo de dados, o jogo de ossinhos, o jogo de bola e todas
as outras espcies () de jogos (
10 esta estreita relao entre e que faz com que esta ltima palavra nunca tenha seu
significado confundido com aquele de , a palavra mais usual para designar o corpo como
objeto fsico (cf.Gillespie, 1912, p.181).
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:
I,94,14.)
Nestas passagens, significa classe, tipo ou gnero, servindo
para identificar ou diferenciar um determinado grupo de objetos frente aos
demais. Como salienta Taylor, este uso classificatrio facilmente derivvel do
uso menos tcnico, relativo natureza ou estrutura interna de uma coisa. Afinal, a
natureza de um indivduo justamente aquilo que o diferencia dos demais e o
identifica como membro de um determinado grupo (Taylor, 1911, p.222).11
Taylor sugere a existncia de um terceiro grupo de passagens, ainda no
interior do corpus hipocrtico, nas quais e adquiririam um sentido mais
carregado de implicaes metafsicas, servindo para designar os elementos
bsicos constituintes da natureza humana. Esta interpretao foi duramente
criticada por Gillespie, para quem as passagens apresentadas por Taylor no
passam de exemplos do uso classificatrio dos termos.12
Contudo, mesmo que o uso apontado por Taylor no possa ser encontrado
nos tratados mdicos, parece inquestionvel que, ao menos na literatura dos
primeiros cientistas jnicos, e passam a adquirir o significado de
elementos primeiros ou substncias, fazendo referncia aos constituintes
ltimos da realidade, tal como prope Taylor. Este uso est atestado, por exemplo,
em Demcrito, que usava a palavra para designar seus tomos, como
evidencia um comentrio de Plutarco:
Pois o que diz Demcrito? Que substncias () infinitas em nmero, indivisveis e indestrutveis e, ainda, sem ao ou afeco, viajam no vazio dispersas. Quando encontram umas com as outras ou colidem ou se juntam, elas
11 Taylor destaca o carter no tcnico desta classificao nos tratados mdicos, salientando que o
processo de classificao muito mais um ato de diviso do que de definio. Segundo ele, tal
carter definitrio s viria a aparecer na literatura filosfica de Plato e Aristteles. Neste
ponto, Taylor criticado por Gillespie, que, apesar de reconhecer o carter no definitrio dos
termos, insiste na sua tecnicidade (Gillespie,1912:183).
12 Baldry tambm analisa de maneira distinta algumas das passagens apresentadas por Taylor
como evidncia para o uso metafsico nos tratados hipocrticos (cf. Baldry,1936).
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aparecem, em grupo, como gua, fogo, planta ou homem. Todas as coisas so o que ele chama formas indivisveis13 ( ) e nada mais existe.
; , ' , ' , ' , (Adv, Colotem 8 1110f5-1111a4)
Outro fato que parece corroborar as afirmaes de Taylor o ttulo de
PERI IDEWN, dado por Empdocles obra na qual sua famosa doutrina dos
quatro elementos primrios apresentada. Em ambos os casos, a palavra est
sendo usada para designar, exatamente, os constituintes ltimos da realidade,
aqueles elementos primordiais (a)rxai /) responsveis pela grande diversidade de
fenmenos que experienciamos.
Baldry (1936) identifica, ainda, outro sentido para as palavras e .
Segundo ele, estes termos podem ser usados para designar as qualidades ou
propriedades de uma coisa qualquer. Inicialmente, este uso aparece restrito a
qualidades fsicas, sobretudo cores e propriedades visuais, em funo da raiz de
e , que, como vimos, est ligada ao sentido da viso. Herdoto, por
exemplo, quando descreve a terra situada depois de Atlntida, nos diz que o sal
extrado l tem a caracterstica () de ser tanto branco quando violeta (
.: 4.185.3) No corpus
hipocrtico, os termos passam a ser usados para outros tipos de propriedades.
Assim, no tratado Sobre a Medicina Antiga, e so usados, em
conjunto com a palavra du/namij, para designar o quente, o frio, o hmido,
o seco e as diversas qualidades (xumoi/) que os corpos podem adquirir (cf. De
Prisca Medicina 24,1).
No quarto sculo, Iscrates passa a empregar os termos e para
qualidades estticas, como a beleza de Helena. O dado mais interessante, contudo,
a aplicao dos termos na designao de caractersticas morais, extrapolando,
portanto, seu sentido para alm do campo semntico das caractersticas fsicas. No
Discurso a Nicocles, por exemplo, encontramos o seguinte conselho com relao
13 Diels insere entre estas duas palavras, o que significaria que Demcrito chama suas
substncias de tomos ou formas.
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delicadeza e dignidade: preciso usar ambas estas qualidades (
) e, por outro lado, tentar evitar o defeito que acompanha cada uma delas.
( ,
: Niclocles 2.34)
A despeito das controvrsias entre os comentadores e fillogos acerca de
ocorrncias especficas desta vasta gama de sentidos que os termos e
podem adquirir, creio que, com base nos textos citados, podemos afirmar com um
confortvel grau de certeza que Plato herdou de seus antecessores trs usos
bsicos destas palavras. No seu primeiro e mais antigo uso, e
significam a aparncia, a silhueta, ou a forma exterior de algum ou alguma coisa.
Um segundo uso, mais abstrato, aquele no qual estas palavras adquirem um
sentido classificatrio e passam a significar o tipo ou espcie de uma coisa,
correspondendo, vagamente, com o significado de , natureza essencial de um
objeto. A partir destes usos, e passam a ser empregados, na literatura
filosfica dos primeiros cientistas jnicos, para designar os elementos bsicos
constituintes da realidade fsica. Nestes casos, e podem ter seu
significado descrito pelas locues: substncia primeira, mnada ou
elemento primordial, conforme sugere Taylor. Em sua terceira acepo, estas
palavras so usadas para designar uma qualidade ou uma propriedade possuda
por um objeto ou pessoa qualquer. Como a passagem extrada dos discursos de
Iscrates demonstra, este uso no se limita a caractersticas perceptveis pela
viso, mas inclui qualidades morais.
De posse deste material, podemos refazer a questo que motivou esta
seo de nossa investigao: Ser que o surgimento de ocorrncias dos termos
e no grupo dos primeiros dilogos suficiente para identificarmos uma
referncia s Formas inteligveis? Creio que as anlises dos eminentes fillogos
acima citados nos permitem dizer que no. Afinal, por mais que as palavras
possam apresentar um sentido bastante tcnico, seu uso nunca aparece vinculado
ao carter inteligvel que iro adquirir em Plato.
O caso dos atomistas exemplar, por ser aquele em que os termos
adquirem maior conotao metafsica, sem apresentarem, contudo, o sentido de
entidades inteligveis. Os tomos de Demcrito e os elementos de Empdocles,
por mais que sejam constituintes bsicos da realidade e responsveis pela
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multiplicidade de fenmenos so plenamente materiais. No podem, portanto, ser
considerados separados dos objetos sensveis, tal como as Formas platnicas
so. A natureza corpuscular destes entes nunca posta em questo e, mesmo que
sua existncia s possa ser demonstrada por meio do raciocnio, so o tipo de
coisa que percebemos pelos sentidos.
A passagem apontada em Iscrates, na qual usada com referncia a
caractersticas morais, tampouco parece suficiente para identificarmos um uso
carregado das implicaes ontolgicas dos dilogos platnicos. No Discurso a
Nicocles, a palavra usada em um contexto exortativo, sem o menor intuito de
fornecer uma descrio da natureza destas propriedades. Sendo assim, a lio que
podemos extrair da ocorrncia destes termos em Iscrates , apenas, que os
contemporneos de Plato usavam as palavras e para se referirem,
tambm, a propriedades de uma coisa. Contudo, nada nos leva a crer que um
posicionamento acerca da real natureza destas propriedades j estivesse
implicado.
Conforme documentado por Pradeau em Les Formes et les Realits
Intelligibles. L'usage Platonicien du Terme Eidos (2001) e Brommer em e
, tude Smantique et Chronologique des Oeuvres de Platon (1940), os
dilogos apresentam uma vasta gama de empregos deste vocabulrio. Somente
com relao ao termo , podemos encontrar quatrocentos e sete ocorrncias
nos dilogos. Dada tamanha profuso de ocorrncias, no pode ser considerado
uma surpresa, o fato de Plato usar estes vocbulos em todos os diferentes
significados acima mencionados. Entretanto, nossa investigao parte do
pressuposto de que, a partir de um dado momento de sua obra, Plato desenvolve
uma teoria fundada no uso destas palavras para designar um tipo especfico de
entidade. Sendo assim, podemos esperar encontrar, nas passagens em que este
novo sentido apresentado, uma elucidao do contedo especfico deste novo
uso. Alm disso, podemos esperar que, no plano dramtico, os diversos
interlocutores de Scrates no estejam, previamente, de posse deste sentido.
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2.3. Confundindo Universais e Particulares.
Partindo do pressuposto acima mencionado, segundo o qual os
interlocutores de Scrates no estariam de posse do sentido especificamente
platnico dos termos e , os comentadores procuram identificar os
momentos de introduo deste novo uso. Uma leitura bastante comum entre os
intrpretes que adotam uma viso desenvolvimentista da obra de Plato atribui ao
Scrates dos primeiros dilogos a criao do conceito de universalidade e a
introduo desta noo por meio dos termos e .14 Contudo, de suma
importncia para a tese desenvolvimentista que, no grupo de dilogos da
juventude, estes vocbulos no faam referncia a alguma entidade transcendente,
uma vez que estes comentadores no admitem a presena das Formas platnicas
nestes dilogos. Sendo assim, estes intrpretes diferenciam uma contribuio
estritamente socrtica, representada pela introduo da noo de universalidade
dos termos e , da tese propriamente platnica, que consiste na
postulao de entidades inteligveis, transcendentes e imutveis s quais as
palavras e nomeariam.
De fato, mesmo entre os autores que defendem uma interpretao unitria
da obra de Plato, extremamente recorrente a narrativa de que os diversos
interlocutores de Scrates no possuam um clara distino entre o que uma
propriedade universal (a beleza, por exemplo) e o que so as diversas coisas que
possuem ou exemplificam esta propriedade (como Helena, o Partenon ou uma
esttua de Fdias). John Burnet, por exemplo, apresenta este tipo de interpretao
afirmando que: Em muitos dos dilogos de Plato, Scrates levado a criticar a
14 A origem desta tese remonta ao comentrio de Aristteles, segundo o qual: Scrates, por um
lado, se ocupava de questes ticas, e, por outro lado, negligenciava a totalidade da natureza
( ), porm buscava nestas [questes ticas] o universal (), trazendo
ateno, pela primeira vez, s definies (). (
,
Met.A6, 987b1-4)
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confuso entre o universal (, ) e algum particular do qual este universal
predicado. (Burnet, 1924, p.32). 15
No plano dramtico, esta incapacidade de distino entre um termo geral
de aplicao universal e um caso particular de aplicao deste termo seria um dos
motivos para o final aportico dos dilogos da juventude. Deste modo, os
comentadores identificam um padro recorrente de argumentos nos quais os
interlocutores de Scrates, quando questionados acerca do que x, ofereceriam
como resposta um caso concreto de x. Tal resposta evidenciaria a incapacidade
destes interlocutores compreenderem que aquilo que Scrates realmente deseja
uma definio para o universal X e no a indicao ostensiva de um exemplar de
x. Portanto, segundo este tipo de interpretao, os interlocutores de Scrates
estariam entendendo a pergunta o que o belo? como mostre-me um caso
concreto de belo, enquanto Scrates deseja saber o que este
compartilhado por todas as coisa belas e que consiste no que a beleza realmente .
Uma passagem constantemente apresentada como exemplo da alegada
confuso entre particulares e universais a resposta oferecida por utifron para
pergunta o que piedade?. Em um dado momento da sua conversa com o
sacerdote utifron, um grande conhecedor das coisas divinas Scrates pergunta:
Fala, ento, o que dizes ser o pio e o mpio? e recebe a seguinte resposta:
Eu digo que o pio o que estou fazendo agora: acusar publicamente aquele que comete injustia, seja por assassinato, seja pelo roubo de coisas sacras ou que cometa qualquer erro deste tipo, mesmo acontecendo de ser seu pai, sua me ou outro deste tipo, e no acusar o mpio. , , , (Eut.5d8-e2)
Aqueles que vem nesta fala de utifron um exemplo da mencionada
confuso entre universais e particulares costumam se ater primeira orao da
15 Esta interpetao acerca do que seria o mais bsico erro dos interlocutores de Scrates
extremamente comum e podemos encontrar exemplos dela em vrios artigos e comentrios.
Por exemplo: (Geach, 1966), (Allen, 1970), (Robinson, 1941), (Fronterotta, 2007), dentre
muitos outros. A ocorrncia deste tipo de confuso nos dilogos foi questionada,
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sentena, isto : aquela que diz que o pio fazer o que eu estou fazendo agora.
Ora, caso a fala de utifron terminasse nesta orao, certamente poderamos dizer
que sua resposta para pergunta o que o pio? limitar-se-ia a apresentao de um
exemplo de ato considerado piedoso. No entanto, isto no tudo que utifron tem
a dizer, na verdade, esta a menor parte do que ele diz.
A resposta para pergunta de Scrates encontra-se nas palavras que se
seguem e, se olharmos com ateno, veremos que a definio proposta por
utifron bastante geral e est muito alm da mera apresentao de um exemplo
de piedade. Segundo utifron, acusar publicamente qualquer um que tenha
cometido uma injustia (ou um crime, ) em matria religiosa no que
consiste a piedade e no acusar, por sua vez, a impiedade.
Podemos, certamente, discordar da definio proposta por utifron. No
entanto, a interpretao segundo a qual a resposta de utifron limita-se
enunciao de um caso particular de piedade, quando deveria apresentar uma
definio do que o pio, parece insuficiente para explicar aquilo que temos no
texto. utifron apresenta seu caso como exemplo apenas porque, no plano
dramtico, Scrates (e, presumivelmente, o leitor do dilogo tambm) est
chocado pelo fato de algum que se diz um grande conhecedor dos assuntos
relativos piedade estar acusando, publicamente, seu prprio pai! O raciocnio
implcito na resposta de utifron pode ser esquematizado da seguinte maneira: 1)
acusar algum (mesmo seu prprio pai) nestas circunstncias punir algum que
tenha cometido um crime em matria religiosa. 2) Punir algum que tenha
cometido um crime em matria religiosa o pio. Portanto, a resposta oferecida
por utifron, expressa na sentena nmero 2, uma definio de piedade e no
uma ostentao de um caso de piedade. Como Scrates observa (6d6-7), esta
uma definio muito estrita para o que a piedade, mas, certamente, no a
apresentao de um caso individual de piedade.
Igualmente, no Crmides, nenhuma das seis definies apresentadas por
Crmides e Crtias podem ser caracterizadas como uma confuso entre
particulares e universais. Como reconhece Gerasimos Santas (1973), Crmides e
Crtias no comeam por dar o tipo errado de definio. De algum modo, eles
primeiramente com relao ao Crmides, por Gerasimos Santas (1973) e, em seguida, com
relao a todos os dilogos da juventude, por Nehamas (1975).
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parecem saber que tipo de coisa Scrates est buscando. No entanto, como
Santas compartilha da interpretao tradicional, segundo a qual Scrates seria o
responsvel pela introduo da noo de universalidade de termos gerais, ele
considera o padro das respostas oferecidas por Crmides e Crtias bastante
surpreendente, ao menos no caso de Crmides, uma vez que ele acabara de
encontrar com Scrates, pela primeira vez. (Santas, 1973, p.110)
Da mesma maneira, no Lques, a pergunta o que a coragem? recebe a
seguinte resposta: Se um homem deseja repelir os inimigos, permanecendo em
seu posto e sem empreender fuga, ento saiba que este homem corajoso (
,
. 190E5-6). Ora, est claro que Lques no cita um caso particular
de coragem: no fala que Aquiles corajoso, nem que aquilo que Aquiles fez na
guerra de Tria a coragem. Sua definio limitada a demonstraes de coragem
em campo de batalha certamente insuficiente, mas est, novamente, longe de
poder ser definida como a apresentao de um caso particular.
Mnon tampouco comete tal confuso entre universais e particulares, ao
contrrio do que parece ser a viso mais comum entre os comentadores. Ao ser
perguntado acerca do que a virtude: Mas tu mesmo, Mnon, pelos deuses!, que
coisa afirmas ser a virtude? ( , , ,
; Men.71d5), Mnon responde citando vrios tipos de virtude: a virtude da
mulher, do homem, da criana e do escravo. Ora, vrios modos de ser virtuoso so
apresentados, nenhuma pessoa ou caso concreto de virtude. verdade que Mnon
no concorda que exista algo em comum entre estes distintos modos de ser
virtuoso. Pois a virtude , para cada um de ns, com relao a cada trabalho,
conforme cada idade e cada ao. ('
Men.72a1). No entanto,
Mnon jamais pe em questo a diferena entre o que um homem virtuoso e
aquilo que este homem possui que nos permite cham-lo de um homem virtuoso e
classific-lo como um exemplo de aplicao deste termo universal.
Apesar do exemplos acima demonstrarem que a confuso entre universais
e particulares no uma caracterstica recorrente nos dilogos da juventude,
podemos achar uma passagem no Hppias Maior em que este tipo de confuso
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est, de fato, presente.16 Neste dilogo, o sofista Hppias precisa responder
pergunta: o que o belo? ( ; HippMa.287d1). Mesmo j
tendo concordado com Scrates que o belo alguma coisa e que pelo belo
que todas as coisas belas so belas, Hppias parece no entender bem a questo e,
para assegurar que aquilo que tem em mente mesmo o que Scrates pretende
saber, indaga se quem pergunta assim no deseja saber o que belo? (
; HippMa287d5) E Scrates, na tentativa de
esclarecer a Hppias, responde que no, pois deseja saber o que o belo (
). A introduo do artigo serve para Scrates especificar que sua questo
no gira entorno de quais coisas so belas, ou mesmo quais coisas possuem a
qualidade da beleza de uma maneira especial, mas sim acerca daquilo que
comum a todas as coisas ditas belas, a prpria beleza ( ). Apesar da
explicao, Hppias parece ainda no entender a verdadeira natureza do
questionamento e responde que o belo uma bela moa ( )
(HippMa278e2-4).17
A despeito desta surpreendente resposta de Hppias, vimos que os
interlocutores de Scrates no encontram dificuldades em entender que o assunto
da conversa um termo universal e no um caso particular de aplicao deste
termo. De um ponto de vista gramatical, isto equivale a dizer que Scrates no
encontra dificuldades em relacionar sua busca por uma definio com a tentativa
de compreenso do emprego nominal de predicados ou substantivos abstratos.
De fato, de se esperar que os interlocutores de Scrates no estranhem o
uso de substantivos abstratos como a virtude (h( areth/), afinal substantivos
abstratos so amplamente difundidos na prosa grega anterior a Plato e constituem
uma categoria gramatical, cuja natureza pode ser considerada muito mais
16 Considero o Hippias Maior uma obra legtima, em vista da argumentao desenvolvida por
Jean-Franois Pradeau em sua introduo traduo deste dilogo (Pradeau&Fronterotta,
2005, p.14-22). Como adeptos da posio contrria podemos citar Tarrant (1927) e Kahn
(1985).
17 Nehamas (Nehamas,1975, p.297-306) interpreta esta resposta de Hppias em termos universais,
excluindo at mesmo esta passagem do rol das confuses particular/universal nos dilogos
platnicos. Este interpretao foi seguida por Woodruff (Woodruff,1982, p.50) e contestada
por Pradeau e Fronterotta (cf.Pradeau&Fronterotta, 2005, p.124). Segundo estes itmos, a
confuso de Hppias intencional e motivada por questes retricas.
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semntica do que sinttica, presente em toda e qualquer lngua.18 Do mesmo
modo, o artifcio de substantivao de um adjetivo qualquer, por meio da
construo no neutro singular precedida de artigo definido, como em ,
tambm j era comum no tempo de Plato. Certas vezes, encontramos, inclusive,
estas duas construes em um mesmo contexto. Como no utifron, onde tanto a
expresso a piedade (h( o)si/a), quanto a expresso o pio ( ) so usadas,
intercaladamente, para se referir quilo que os personagens buscam definir.
Portanto, termos gerais eram usados constantemente pelos atenienses do
tempo de Plato e, ao que tudo indica, o seu carter de aplicao universal, isto :
o fato de que estas palavras so predicadas simultaneamente a um conjunto de
indivduos, no pode ser considerado uma descoberta de Scrates. Qualquer
pessoa que use, de maneira gramaticalmente correta, palavras como a justia ou
a virtude emprega estes vocbulos de maneira universal e os reconhece como
qualidades ou propriedades identificadas em mais de um indivduo. A mera
capacidade lingustica de usar corretamente expresses como a coragem implica
no reconhecimento de que aquilo que esta palavra expressa, seu significado,
fundamentalmente diferente de um ato ou uma pessoa corajosa.
Certamente, isto no equivale a dizer que os usurios de uma determinada
lngua esto conscientes de todas as implicaes filosficas envolvidas no
emprego da linguagem. De fato, a explicitao destas implicaes constitui, em
boa parte, aquilo que chamamos filosofia. No entanto, a alegao de que os
interlocutores de Scrates no esto cientes do carter de aplicao universal de
um termo geral no possui base alguma no texto dos dilogos, como procurei
demonstrar. Ademais, sustentar tal interpretao significa afirmar que os
interlocutores de Scrates so capazes de usar corretamente termos gerais em
sentenas afirmativas, mas incapazes de compreender seu significado nas
perguntas de Scrates.
Sendo assim, podemos afirmar que os interlocutores dos dilogos no
demonstram dificuldade em entender o carter universal da busca socrtica, assim
como no se opem equivalncia entre a busca por uma definio de um termo
18 Segundo Denniston, na maior parte de escritores de prosa gregos, substantivos abstratos so,
constantemente, usados como sujeitos de verbos: os agentes normais so seres humanos. ()
, algumas vezes, difcil dizer at onde o uso de um sujeito abstrato carrega consigo a ideia de
personificao. (Denniston, 1952, p.28).
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geral (um substantivo abstrato ou um adjetivo substantivado) e a busca pelo
ou deste termo. Isto porque, conforme vimos na seo anterior, o uso de
e para significar uma propriedade ou qualidade de algum objeto atestado,
tambm, em Iscrates. Assim, os diversos personagens descritos por Plato no
demonstram dificuldades de compreenso do uso das palavras e para
designar a piedade ou o belo, da mesma maneira que a audincia de Iscrates
podia entender o uso destas palavras com referncia delicadeza e
dignidade.19
Portanto, a interpretao tradicional, que considera a descoberta do
universal como o grande feito filosfico de Scrates, deve ser considerada
insuficiente para explicar a verdadeira dinmica conversacional dos dilogos de
Plato. Ns no encontramos, nos dilogos, nenhuma marca de surpresa ou
dificuldade de aceitao da existncia de um comum a todas as coisas belas
ou corajosas. To logo esta questo colocada, a discusso avana em direo
investigao do que este e como possvel defini-lo. Seria totalmente fora
de propsito que Scrates permanecesse enfatizando o fato de que existe algo
comum a todas as coisas justas ou que a palavra coragem possui aplicao
universal, estando presente em todos os casos concretos de pessoas e atos
corajosos. O verdadeiro interesse de Scrates encontra-se na investigao do que
isto , qual seu modo de existncia e qual a relao que estes universais possuem
com as coisas particulares.
Contudo, a inexistncia da confuso entre particulares e universais no
suficiente para concluirmos que Scrates e seus interlocutores nos dilogos da
juventude esto comprometidos com uma ontologia platnica. Do mesmo modo
que a capacidade de compreenso do emprego nominal de substantivos abstratos
pressupe o reconhecimento do carter universal de aplicao destes termos, esta
mesma capacidade lingustica no implica, de modo algum, a aceitao de uma
ontologia constituda de entidades abstratas universais s quais estas expresses
nomeariam. Scrates no est se comprometendo com a existncia deste tipo de
entidade simplesmente por perguntar o que a coragem? ou o que o belo?,
tampouco seus interlocutores esto se comprometendo ao responderem estas
19 Vale notar que Iscrates no se refere dignidade ou delicadeza de Pricles ou qualquer outra
pessoa. Em seu conselho a Nicocles, Iscrates usa estas palavras em seu sentido universal, ao
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perguntas. Podemos, muito bem, perguntar o que um saci, sem admitirmos sua
existncia. Podemos, inclusive, saber coisas sobre sacis, por exemplo que eles
usam gorros vermelhos e, ainda assim, no estarmos pressupondo a sua real
existncia. Sendo assim, o fato de Scrates e seus interlocutores usarem, correta e
conscientemente, termos gerais e substantivos abstratos no pode ser considerado
evidncia suficiente para afirmarmos a pressuposio de entidades inteligveis nos
argumentos desenvolvidos por eles. De fato, a mera proficincia lingustica no
pressupe, de nenhum modo, a adoo de uma teoria metafsica acerca da real
natureza dos termos empregados no uso de uma lngua.
Portanto, se desejamos descobrir o carter deste buscado por
Scrates em questes da forma o que x?, precisamos investigar as passagens
dos dilogos em que Scrates explica o contedo da sua busca por definies e
nos oferece informaes sobre o carter deste ou por ele buscado.
estabelec-las como modelos de virtude a serem alcanadas.
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2.4. As exigncias socrticas: co-extensividade.
Em funo da j mencionada generalidade inerente s perguntas da forma
o que x?, Scrates se v constantemente obrigado a explicar o contedo de sua
questo. A maneira socrtica de realizar tal explicao consiste em refutar as
respostas oferecidas pelos interlocutores de modo a incit-los a responder
corretamente. Para realizar tal processo refutativo, Scrates apresenta uma srie
de critrios acerca do tipo de resposta que est esperando receber quando faz
perguntas como: o que virtude? ou o que coragem?. O final aportico dos
dilogos, contudo, nos permite afirmar que os interlocutores de Scrates so
incapazes de fornecer o tipo de resposta desejada e que, portanto, o leitor dos
dilogos da juventude no tem acesso direto a uma resposta correta para o
questionamento socrtico. Sendo assim, a anlise textual dos critrios impostos
por Scrates acerca do que uma boa definio o caminho mais indicado na
busca pelo contedo da questo o que x? e pela natureza e status ontolgico
da entidade que esta pergunta pretende definir e em vista da qual todo o
questionamento socrtico realizado.
A primeira exigncia que uma definio socrtica deve obedecer diz
respeito ao campo de aplicao do termo a ser definido (definiendum) e o campo
de aplicao da definio proposta (definiens). De acordo com Scrates, tanto a
alegada definio, quanto o termo a ser definido devem demarcar, exatamente, o
mesmo conjunto de objetos. Isto equivale a dizer que: se estamos definindo o
termo x (definiendum) por meio da sentena abc (definiens), tudo aquilo que
diramos ser um caso de x deve, necessariamente, ser tambm um caso de abc e
tudo aquilo que diramos ser uma caso de abc deve, necessariamente, ser um caso
de x.
Este princpio de co-extensividade entre definiendum e definiens est
presente na maior parte dos dilogos da juventude. Sua apresentao mais clara,
no entanto, encontra-se na conversa desenrolada, no Lques, entre Scrates e o
personagem que d nome a este dilogo (Laq.190d-192d). O dilogo se inicia com
uma conversa na qual os diversos interlocutores mostram-se interessados em saber
como podemos tornar os jovens virtuosos. A proposta inicialmente apresentada
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diz que, para tornarmos os jovens virtuosos, devemos trein-los na arte do
combate armado (o(plomaxi/a). No intuito de investigar o valor deste programa de
educao moral para os jovens atenienses, Scrates afirma que precisamos,
primeiro, definir o que a virtude. Pois, se ns no sabemos, perfeitamente, o
que isto , como poderemos dar conselhos a quem quer seja sobre a melhor
maneira de adquiri-la? (Laq.190b9-10).
Scrates, ento, pede a Lques que lhe defina o que a coragem, uma vez
que este afirma ser capaz de dizer o que a virtude e uma vez que a coragem no
passa de uma parte da virtude. Como resposta demanda socrtica, Lques
oferece a seguinte definio: Se algum est disposto a repelir os inimigos,
permanecendo em seu posto de combate, e se no foge, ento, esteja certo de que
esta pessoa corajosa. (
, . Laq.190e4-5)
Como j constatamos, esta resposta no pode ser entendida como a mera
indicao ostensiva de um caso particular de indivduo ou ato corajoso. Lques
est dizendo que se uma pessoa corajosa, esta pessoa, certamente, ir
permanecer em seu posto de combate e enfrentar o inimigo. A definio proposta
por Lques estabelece, portanto, uma condio suficiente para coragem. Ela
apresenta um critrio, de tal modo que todo indivduo que satisfaa este critrio
possa ser chamado, verdadeiramente, de corajoso. Scrates reconhece esta
qualidade da resposta de Lques (Laq.191a1-3). No entanto, como ele ir
demonstrar, o estabelecimento de uma condio suficiente para que algum seja
considerado corajoso, por si s, no define o que a coragem .
Scrates inicia sua demonstrao elencando uma srie de exemplos de
coragem durante retiradas e debandadas, mencionando os cavaleiros citas, Enas e
a atuao dos guerreiros espartanos na batalha de Platia.20 Alm disso, apresenta
diversos casos em que algum considerado corajoso em outras reas que no a
guerra e, por fim, diz:
20 interessante o fato de Lques elogiar, momentos antes (181a-b), o comportamento de
Scrates durante a retirada ateniense frente aos Tebanos, em Dlio (424 A.C.). Como trata-se
de um contexto de batalha, a implicao que Scrates teria demonstrado coragem, mesmo
em se tratando de uma retirada. No Banquete, Alcibades comenta como Scrates estava muito
mais controlado do que Lques no momento desta fuga. (Banq.221a7-b1).
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Portanto, Lques, todas estas pessoas so corajosas, mas enquanto alguns apresentam coragem com relao aos prazeres, outros com relao ao sofrimento, outros com relao aos desejos e outros com relao ao medo. () Ento, tente de novo me explicar, comeando pela coragem, aquilo que idntico em todos estes casos. , ' , ' , ' , ' (Laq.191e4-11)
A grande variedade de comportamentos e ocasies de demonstrao de
coragem apresentados por Scrates fazem da proposta inicial de Lques uma
definio muito restrita. Pois, se podemos encontrar exemplos de coragem
(definiendum) no descritos pela definio proposta (definiens), a definio no
pode ser considerada correta. A vasta extenso do conceito de coragem exposto
por Scrates exige uma definio com mais generalidade de aplicao. Fica claro
que uma definio bem sucedida, segundo os moldes socrticos, deve fornecer
uma descrio que, alm de apresentar uma caracterstica suficiente do termo a ser
definido, apresente uma caracterstica necessria deste termo, nas palavras de
Scrates: aquilo que idntico em todos estes casos.
Lques prope, ento, que definamos a coragem como uma certa fora da
alma ( ). No entanto, Scrates logo acrescenta que
preciso, ao menos, dotar esta fora de resoluo da alma com a capacidade de
julgamento (). Pois, de outro modo, correramos o risco de estarmos
identificando a coragem com a v temeridade (Laq.192c-d).
A definio de coragem como uma fora da alma acompanhada da
capacidade de julgamento parece, de fato, apresentar uma caracterstica comum a
todos os casos de coragem, satisfazendo, portanto, o critrio de necessidade
exigido por Scrates. No entanto, Scrates volta a criticar a definio proposta,
agora sob o pretexto de se tratar de uma definio demasiado genrica, que abarca
mais coisas do que deveria. Para isso, Scrates apresenta casos de obstinao e
firmeza () da alma que no diramos serem exemplos de coragem. Um
homem firmemente obstinado a gastar o seu dinheiro, ainda que de maneira
pensada () ou o mdico que se mantm firme no seu julgamento de
proibir o paciente de beber lcool, claramente, no so exemplos de coragem.
Portanto, a primeira definio apresentada por Lques: coragem
permanecer em seu posto de combate mostra-se muito estrita. Sendo assim, trata-
se de uma definio suficiente, porm no necessria. Pois, nem todos os casos de
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coragem consistem em permanecer em seu posto de combate. J a segunda
definio, em termos de resoluo e perseverana, apresenta uma condio
necessria, porm no suficiente, ou seja: necessrio possuir para ser
corajoso, porm nem todos que possuem so corajosos. Apesar das
tentativas de esclarecimento da questo, o dilogo termina sem que Scrates
obtenha uma definio que satisfaa tanto o critrio de suficincia quanto o
critrio de necessidade. 21
No utifron, a exigncia de co-extensividade entre definiens e definiendum
volta a ser apresentada. Durante a anlise da definio que identifica a piedade
com a justia, proposta pelo prprio Scrates, encontramos o principio de co-
extensividade ilustrado atravs da relao entre a extenso dos conceitos de medo
() e respeito ():
No creio que, onde haja medo, h tambm respeito, pois me parece que muitos temem doenas, pobreza e muitas outras coisas deste tipo, porm sem respeitar aquilo que temem (...) o respeito , portanto, uma parte do medo tal como o mpar uma parte do nmero. , () (Eut.12b-c).
Analogamente, a piedade apenas parte da justia (
) e como uma totalidade no pode ser definida por apenas uma de
suas partes, Scrates desqualifica sua prpria proposta de definio. Como
observa Kahn: a relao extensional entre estes dois conceitos [definiens e
definiendum], que em lgica formal representada por relaes de incluso entre
classes aqui expressa em termos de todo e partes (Kahn, 1996, p.173).
No dilogo Mnon, novamente durante uma discusso acerca das relaes
de todo e parte entre as virtude, Scrates pretende explicar que a justia apenas
uma virtude (a)reth/ tij) e no a virtude. Pois a virtude tem vrias outras
partes, como a coragem, a prudncia, a sabedoria, a grandeza da alma e numerosas
21 Alm de necessria e suficiente, isto : co-extensiva a todos os casos de aplicao do termo
que pretende definir e apenas a estes, uma resposta satisfatria para pergunta socrtica deve ser
logicamente consistente, tanto internamente, quanto em relao aos seus desdobramentos, no
podendo ter como consequncia lgica algo tido como falso para quem prope a definio.
Esta exigncia o que desqualifica as tentativas finais de definio tanto no Lques (194c7-
199e10) quanto no Crmides (166e5-169b5).
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outras. (Men.73e-74b). Para explicar sua afirmao, Scrates diz que esta a
mesma relao existente entre o crculo e a figura: o crculo uma figura e no o
que figura, em geral. Com a incapacidade demonstrada por Mnon de entender o
princpio de co-extensividade, Scrates oferece um exemplo de definio
extensionalmente bem sucedida do termo figura:
-Pois bem, h uma coisa a que ds o nome de superfcie e outra a que ds o nome de slido, por exemplo, estas coisas da geometria? -Sim, emprego estes nomes. -Pois ento j podes compreender, a partir disto, o que quero dizer com figura. Pois para toda figura afirmo o seguinte: onde o slido termina, isto figura. Aquilo que, precisamente, resumindo, diria: a figura o limite do slido. { .} '; , , ; { .} . { .} . , , ' .(Men.76a1-7)
Em seu seminal artigo Logos and Forms in Plato (1954), Cross
encontra, nesta fala de Scrates, uma referncia direta ao objetivo final da busca
socrtica. Nesta passagem, Scrates afirma que o modo correto de respondermos
pergunta o que figura? consiste em apresentarmos uma expresso verbal
que defina corretamente o termo figura. Portanto, formular uma sentena (um
lo/goj) capaz de definir corretamente o termo buscado seria equivalente
apresentao do deste termo. A interpretao de Cross ganha suporte no
texto do Teeteto (148d), onde Scrates pede para que lhe seja apresentado um
lo/goj nico equivalente ao carter nico comum a todas as razes matemticas e
diz: Tal como encontrastes um nico carter ( ) abarcando tudo isso,
assim tambm apresente em uma frmula nica ( ) as diversas cincias.
( ,
. Teet.148d5-7)
Ora, se aceitarmos a proposta de Cross, segundo a qual a investigao
socrtica tem como objetivo final a produo de uma expresso verbal (lo/goj)
cujo nico critrio de validade encontra-se no princpio de co-extenso, devemos
reconhecer que tal investigao no implica na afirmao da efetiva existncia da
entidade a ser definida, isto : na efetiva realidade do ou buscada.
Afinal, a exigncia de co-extenso entre definiens e definiendum pode ser
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satisfeita por uma frmula sentencial que defina um signo lingustico desprovido
de existncia efetiva. Isto : no precisamos atribuir ao personagem Scrates a
busca pela definio da coisa Justia e sua investigao teria como objetivo a
definio de uma entidade meramente lingustica: a palavra justia. Nas
palavras de Cross, poderamos dizer que uma Forma (), longe de ser uma
entidade substancial, est muito mais prxima a uma frmula. (CROSS, 1954,
p.447).
Entendidos desta maneira, os dilogos da juventude seriam dedicados
produo de definies nominais e, portanto, no implicariam na postulao de
entidades inteligveis reais, separadas dos objetos sensvies. Afinal, a veracidade
de uma definio nominal est relacionada, exclusivamente, com o significado do
termo definiendum e sua correta explicitao na combinao de palavras expressa
pela proposio definiens. A verdade deste tipo de definio obtida de maneira
puramente analtica e depende somente das relaes de significado entre os termos
que a constituem. Tome, por exemplo, a definio nominal cadelas so ces
fmeas. Esta definio verdadeira precisamente pelo fato das expresses
cadela e co fmea serem sinnimos. Por sua vez, a definio nominal do
termo centauro como criatura metade homem, metade cavalo verdadeira,
enquanto que a definio de centauro como criatura metade quadrpede,
metade bpede falsa. Novamente, a veracidade ou falsidade da definio
depende somente das relaes conceituais existentes entre os termos da definio.
No entanto, no faria o menor sentido exigir uma definio real do termo
centauro, na medida em que este termo, sabidamente, no representa nenhuma
entidade efetivamente real.
Fica claro, portanto, que para atestarmos a validade deste tipo de
definio, no precisamos sair em busca de ces ou centauros reais, apenas
devemos investigar nosso uso das palavras envolvidas no termo definiendum e na
sentena definiens. Afinal, o critrio de verdade e falsidade de uma definio
nominal depende somente do significado expresso pela palavra a ser definida,
estando completamente fora de questo a sua correspondncia a uma realidade
efetiva, para alm do horizonte semntico do discurso. Sendo assim, uma
definio nominal no est comprometida com a existncia real do termo
definiendum. Como o caso da palavra centauro demonstra, podemos ter uma
definio nominal correta e precisa de um termo no dotado de realidade,
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inexistente. Contudo, no podemos formular uma definio real de uma entidade
inexistente, pois uma definio real possui uma implicao direta sobre o plano
ontolgico e implica na efetiva realidade da coisa a qual o termo definiendum se
refere.
Uma tese bastante comum entre os comentadores da tradio analtica
consiste em operar este tipo de anlise e atribuir aos dilogos o interesse,
exclusivamente, em definies nominais, com o objetivo de isentar o
procedimento socrtico (e certas vezes a prpria filosofia platnica) do seu
comprometimento com a realidade de entidades abstratas universais. Esta tese
defendida, por exemplo, por Moravcsik em Plato e Platonismo (1992).
Moravcsik pretende restringir o papel das Formas platnicas ao mbito lgico-
lingustico da anlise de conceitos que, como o prprio Moravcsik reconhece,
mesmo um puro nominalista consideraria apropriado. Trata-se de uma aplicao
do argumento de reduo ontolgica, que pretende restringir ao mximo o nmero
de entidades com as quais uma teoria est comprometida. Neste caso, o argumento
reduz o postulado da existncia das Formas a uma discusso semntica acerca do
contedo de conceitos. Desta maneira, a investigao socrtica dos primeiros
dilogos no seria uma investigao acerca da natureza das coisas, mas
representaria uma anlise dos usos da linguagem. As sentenas dos dilogos que
parecem afirmar a realidade das Formas poderiam, segundo o mtodo de reduo
ontolgica, ser traduzidas em sentenas que no implicam a existncia deste tipo
de entidade. Assim, no teramos porque atribuir aos dilogos da primeira fase
uma teoria comprometida com a existncia das Formas inteligveis se podemos
analisar os argumentos contidos nestes dilogos sem apelar para este tipo de
entidade (cf.Moravcsik, 1992, p.60-61).
Recentemente, Giannantoni (2005) ofereceu uma minuciosa interpretao
para os dilogos socrticos na qual Scrates tambm apresentado como um
pensador interessado, acima de tudo, no sentido e no uso das palavras. Segundo
Giannantoni, o contedo da pergunta deve ser entendido com base na sua
equivalncia com a expresso ; . Desta maneira, a pergunta o que x?
teria seu significado traduzido pelas frmulas: o que dizes ser x? ou o que
entendes por x?. A equivalncia semntica entre estas expresses ilustraria a
orientao essencialmente dialtica, isto : conversacional, do elegxoj socrtico.
Partindo do emprego imediato e espontneo de certas palavras por seus
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interlocutores, o procedimento investigativo socrtico teria como objetivo mostrar
a insuficincia e impreciso deste uso. O carter refutativo deste procedimento
estaria no fato de Scrates revelar esta insuficincia justamente no ponto de vista
de seu interlocutor, que demonstra no saber o contedo preciso de um conceito
por meio do qual se exprime.
Deste modo, todo o processo dialtico dos primeiros dilogos entendido
como uma progressiva anlise semntica das respostas oferecidas pelos
interlocutores. A busca socrtica por uma definio consiste em uma anlise
lgica, de carter ad hominem, acerca do contedo de certos termos lingusticos.
O objetivo final deste procedimento a produo de uma definio (xwri/zein),
entendida como uma delimitao (xwri/j=finis=terminus) precisa do significado
destes termos. E seu resultado, nunca alcanado, a obteno de uma
concordncia (o(mologi/a) acerca do contedo lgico-semntico destas palavras.
Como o prprio Giannantoni reconhece, este tipo de interpretao associa a busca
socrtica por definies com as investigaes sofsticas entorno da natureza da
linguagem e, sobretudo, com as anlises lingusticas de Prdico.
Originrio de Ceos, Prdico foi um contemporneo de Scrates. Segundo
o Hppias Maior (282c), Prdico foi enviado por seus conterrneos como
embaixador Atenas, onde se estabeleceu e fez fortuna por meio de suas lies
oferecidas em troca de grandes quantidades de dinheiro. Prdico frequentemente
citado nos dilogos de Plato. No Mnon, no Lques e no Protgoras, ele
mencionado como um investigador de questes de anlise semntica, sendo
particularmente caracterizado por traar distines precisas entre palavras usadas
normalmente como sinnimos.22 Trata-se, portanto, de um pensador que pretende
fornecer uma definio conclusiva e uma norma unvoca para o uso da linguagem.
Com base no grande nmero de passagens em que Scrates parece exaltar a
22 Plato , de fato, nossa maior fonte de conhecimento acerca de Prdico (cf. Nails, 2002,
p.304). No Eutidemo, Scrates adverte: Como diz Prdico, necessrio aprender sobre a
correo dos nomes ( , Eut.277e4) No
Lques, Prdico descrito como aquele dos sofistas que de maneira mais excelente traa
distines entre palavras. (
Laq.197d5). E, no Protgoras, Scrates comenta que a sabedoria de Prdico acerca destas
coisas algo antigo e divino ( ) que o prprio Scrates
teria adquirido na condio de um de seus alunos (Prot.341a1-3).
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Prdico e, ainda, diz ter sido seu aluno e companheiro: (Men.96d7), (Carm.163d),
(Hip.Ma.282c), (Teet.151b) e (Prot.341a1-3), alguns comentadores propuseram a
existncia de uma substancial continuidade entre o projeto filosfico destes dois
pensadores. Nasce, assim, uma tradio de interpretao de Scrates como
discpulo de Prdico. 23
Em seu livro, Giannantoni tambm realiza uma investigao acerca da
relao entre estas duas figuras (Giannantoni, 2005, p.317-335). No entanto,
apesar de reconhecer uma ntima relao entre o projeto de Prdico e o projeto
socrtico, Giannantoni no aceita a identificao entre a busca por definies
exposta nos primeiros dilogos e o tipo de investigao lingustica que a tradio
atribui a Prdico. Segundo ele, uma anlise mais atenta dos contextos em que
Prdico citado revela o carter irnico com que Scrates evoca o sofista e seus
estudos semnticos. Tal ironia pode ser facilmente notada, por exemplo, na
passagem do Crtilo (384b-c) em que Scrates afirma no ser capaz de resolver a
questo da correo dos nomes por no poder ter assistido s lies de Prdico, ao
custo de cinquenta drcmas. Em uma passagem do Protgoras, Scrates adverte o
prprio Prdico, pouco aps trat-lo como mestre: Mas ora, Prdico, no h
nenhuma importncia em distinguir os significado, o que importa outra coisa
(Prot.358e).
Giannantoni rejeita, ainda, as interpretaes que diferenciam Scrates de
Prdico por este limitar-se ao mbito lingustico, enquanto Scrates realizaria
investigaes conceituais e lgicas, de carter mais universal. Segundo a
interpretao de Giannantoni, a maior diferena entre estes pensadores est no
fato de que Prdico deseja saber o que este nome quer dizer?, enquanto
Scrates deseja saber o que voc quer dizer quando usa este nome?.
Podemos afirmar, portanto, que Giannantoni adota uma interpretao ainda
mais restritiva acerca do objetivo final da busca socrtica. Segundo sua
interpretao, o cerne do questionamento socrtico encontra-se no seu carter
refutativo, no fato desta busca sempre ser apresentada como um exame ad
hominem das posies de algum interlocutor especfico. Desta maneira, a pergunta
F tem seu escopo limitado ao jogo dialtico travado entre os interlocutores
23 Esta interpretao foi sugerida, pela primeira vez entre os comentadores modernos, por
Welcker (1833) e retomada, no sculo XX, por Moreau (Moreau, 1939, p.12-13). Para uma
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de cada dilogo, no podendo ser compreendida como uma busca pela definio
objetiva do contedo semntico dos termos investigados. A pergunta o que o
justo? deve ser entendida como o que t pretendes dizer por 'justo'?, no como
o que verdadeiramente o justo?, tampouco como o que a palavra 'justia'
significa?. Nas palavras do prprio Giannantoni:
... a linguagem que interessa a Scrates no outra que o discurso pronunciado por seus interlocutores: no , portanto, anlise de uma presumida e pressuposta linguagem em si e de suas leis lgicas, nem, tampouco, acerca de seu consequente uso correto, mas anlise do que cada interlocutor pretende significar no seu uso concreto de determinadas formulaes lingusticas. (Giannantoni, 2005, p.314)
consulta das fontes antigas desta linha de interpretao: (cf. Zeller, 1922, p.47-49).
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2.5. As exigncias socrticas: relao causal.
As interpretaes que pretendem manter que a busca socrtica por
definies deve ser entendida como uma tentativa de delimitao precisa das
relaes de extenso entre conceitos ou que pretendem restringir esta investigao
a uma anlise do uso concreto de certos termos lingusticos esbarram na existncia
de passagens em que Scrates parece exigir ainda mais de uma definio, a fim de
consider-la uma resposta satisfatria para seu tipo de questionamento. No
dilogo utifron, por exemplo, o requisito de co-extensividade entre o termo
definiendum e a sentena definiens parece ser alcanado logo na segunda tentativa
de definio. No entanto, Scrates no se mostra satisfeito e desqualifica a
proposta por meio de crticas que revelam a existncia de outros parmetros para
uma boa definio, alm do requisito de co-extensividade.
Como j vimos, no utifron, Scrates deseja saber o que a piedade e
recebe como primeira resposta a definio segundo a qual a piedade acusar
publicamente aquele que comete injustia. Tambm j vimos que Scrates no se
sente satisfeito com esta definio e demanda uma formulao mais geral, que lhe
apresente aquela forma mesma ( ) em virtude da qual todas as coisas
piedosa so piedosas. (Eut.6d10).
Neste momento, utifron prope que definamos a piedade como aquilo
que amado pelos deuses ( ). Todavia, Scrates nos lembra que, no
que pese o testemunho dos poetas, os deuses esto em constante desacordo e,
portanto, cada qual tem como caro para si coisas completamente diferentes. Sendo
assim, se adotssemos tal definio, acabaramos por ter que admitir que as
mesmas coisas so piedosas e impiedosas, ao mesmo tempo (
Eut.8a10). Scrates e utifron concordam, ento, que esta
dificuldade pode ser facilmente superada pelo acrscimo da condio de que
somente piedoso aquilo que amado e aprovado por todos os deuses.
Ora, esta parece ser uma definio plenamente capaz de satisfazer a
exigncia de co-extensividade. De fato, Scrates no se esfora em elencar
contraexemplos que demonstrem a insuficincia ou a falta de necessidade da
definio proposta, tal como faz no Lques e no Crmides e como j havia feito
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no prprio utifron. Ao invs disto, Scrates apresenta um argumento que
pretende demonstrar como esta definio, apesar de devidamente co-extensiva ao
termo definiendum, no pode ser considerada satisfatria. O argumento de
Scrates pode ser esquematizado da seguinte maneira:24
1) Aquilo que amado-pelos-deuses ( ) amado-pelos-
deuses porque os deuses amam a isto. No entanto, no verdade
que os deuses amam aquilo que amado-pelos-deuses por isto ser
amado-pelos-deuses. (Eut.10d9-10; e5-7)
2) Os deuses amam o pio por ser pio. No entanto, no verdade que o
pio pio por ser amado pelos deuses. (Eut.10d1-7; e2-3)
3) Logo: o pio e aquilo que amado-pelos-deuses no so o mesmo.
4) Logo: a definio do pio como aquilo que amado-pelos-deuses
no est correta.
Scrates oferece razes gramaticais e de carter lgico em defesa da
validade de sua primeira premissa. Seu raciocnio parte da analogia com o
seguinte caso:
1a) x uma carga ( ) porque x carregado (
). No entanto, no verdade que x carregado porque x
uma carga.
Fazendo uso de categorias gramaticais da lngua grega para exprimir seu
raciocnio, Scrates afirma que as formas participiais () devem ser
entendidas por meio das formas passivas (), mas que o inverso no pode
ser o caso. Seu argumento pode ser melhor explicado, em portugus, por meio das
formas passiva e ativa do verbo:
1b) x carregado porque S carrega x. No entanto, no verdade que S
carrega x porque x carregado.
24 Minha apresentao deste argumento deriva dos trabalhos de Cohen (1971) e Irwin (2006).
Nenhum deles, contudo, compartilha das concluses por mim apresentadas.
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Na premissa 1) Scrates utiliza o mesmo raciocnio expresso em 1a) e 1b)
com relao ao caso do que amado-pelos-deuses ( ). Seu objetivo
demonstrar a utifron que diversas coisas amadas no possuem nada em comum
alm do fato de algum am-las. Isto : no h nada intrnseco a estas coisas que
as faa participar de um mesmo conjunto de coisas amadas.
utifron no se ope premissa 2) e, sendo assim, Scrates no nos
oferece um argumento para sua validade. No entanto, parece claro que Scrates
espera que aceitemos que as coisas piedosas possuem algo intrnseco a elas que as
torna, todas elas, piedosas. Neste sentido, elas diferem das coisas amadas-pelos-
deuses. E, porque estas duas coisas diferem neste sentido, o pio e aquilo que
amado-pelos-deuses so coisas completamente diferentes (
Eut.11a3), como expresso em 3).
Portanto, para demonstrar que estas duas classes de coisas diferem,
Scrates est afirmando que as coisas piedosas possuem alguma propriedade,
distinta do fato de serem amadas pelos deuses, que as fazem serem amadas,
enquanto que as coisas amadas-pelos-deuses, como tais, no possuem uma
propriedade deste tipo. Scrates refere-se a este fato dizendo que as coisas
piedosas so tais para serem amadas ou do tipo para serem amadas (
), mesmo antes de serem, de fato, amadas (Eut.11a4-6).
Fica claro, assim, que a diferena entre definiens e definiendum, neste
argumento, no depende de nenhuma relao extensional entre estes dois
conceitos. Esta proposta de definio no rejeitada por Scrates sob a alegao
de que o conjunto de coisas piedosas , extensionalmente, diferente do conjunto
das coisas amadas-pelos-deuses. A definio de piedade como aquilo que
amado-pelos-deuses considerada inadequada por Scrates pelo fato de tal
definio no apresentar o que a piedade realmente , no apresentar sua essncia
( ), mas apenas uma de suas afeces ( ),
algo que, acidentalmente, acontece de ser o caso para as coisas piedosas
(Eut.11a5-8).
O argumento de Scrates pretende provar que a definio proposta por
utifron no se mostra explicativa com relao ao que faz as coisas piedosas
serem piedosas. Pois as coisas piedosas so amadas pelos deuses por serem
piedosas, mas o inverso no pode ser considerado verdadeiro. Isto : no podemos
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dizer que as coisas piedosas so piedosas por serem amadas-pelos-deuses (
). Portanto, de acordo com este argumento, uma resposta satisfatria para
pergunta o que x? precisa, alm de delimitar corretamente o conjunto de
coisas que so x, apresentar corretamente a essncia ou a natureza real do objeto a
ser definido, fornecendo uma explicao acerca daquilo que faz estas coisas
serem, de fato, um caso de x.
Este ltimo critrio, que apela para o carter explicativo da definio
proposta, j havia sido requerido por Scrates, sem que utifron compreendesse
seu verdadeiro significado, quando Scrates pediu que lhe fosse especificado
aquela forma mesma ( ) em virtude da qual todas as coisas piedosas
so piedosas ( Eut.6d11). Nesta
sentena, encontramos uma locuo extremamente recorrente na obra platnica,
sobretudo nos dilogos em que a Teoria das Ideias expressamente apresentada.
Trata-se do emprego do dativo instrumental como forma de expressar uma relao
causal.25 O uso deste artifcio gramatical permite que Scrates direcione sua busca
para verdadeira causa das coisas piedosas serem piedosas. Esta causa a ser
apresentada por uma resposta satisfatria para o questionamento socrtico a
Forma (, ) ou essncia () de x.
Outro dilogo cuja data de composio atribuda juventude de Plato, o
Hppias Maior, tambm faz uso abundante do dativo instrumental como forma de
explicitar o poder causal exercido pelas Formas. Neste dilogo, Scrates encontra
o sofista Hppias e supreende-se ao saber que este andava oferecendo lies em
Esparta. Afinal, os espartanos no costumam confiar seus jovens aos
ensinamentos de estrangeiros. Hppias confirma que tem discursado aos jovens
espartanos e pede a Scrates que esteja presente na prxima ocasio, para que
possa escutar e julgar o que ser dito. Scrates at deseja estar presente, mas
reconhece que no sabe julgar se um discurso belo ou no. Pois, recentemente,
ao pronunciar um discurso que criticava coisas feias e elogiava coisas belas fora
questionado por um interlocutor (seu alter ego) sobre o que o belo e, no
podendo responder corretamente, havia passado por ridculo. Hppias morde a isca
e se apressa em oferecer uma resposta para pergunta o que o belo?.
25 No exemplo em questo, traduzimos o caso dativo do promonome relativo () por meio da
locuo em virtude do que.
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A primeira definio oferecida pelo sofista Hppias: o belo uma bela
moa facilmente criticada por Scrates, com base no fato de que no so
apenas as moas que so belas. Podemos enumerar vrias outras coisas que
possuem a qualidade da beleza e, portanto, a resposta de Hppias no apenas
demasiadamente restrita como tambm categoricamente incorreta, na medida em
que apresenta apenas um caso de beleza e no uma definio do que a beleza .
Esta insuficincia da resposta de Hppias ressaltada por Scrates quando este
afirma no estar perguntando o que belo ( ), mas sim o que o
belo ( ). Por meio do acrscimo deste artigo, Scrates introduz,
de forma bastante clara, a distino entre dois tipos de objetos: as diversas coisas
que possuem uma determinada propriedade, por um lado, e, por outro lado, esta
propriedade ou qualidade ela mesma. Esta distino ainda enfatizada pelo
acrscimo do pronome reflexivo ao termo que se pretende definir. Assim, o
verdadeiro objeto da definio socrtica passa a ser nomeado, ao lado das
expresses mais usuais como a beleza e o belo, tambm por meio da
designao semi-tcnica: o belo ele mesmo ou o belo em si ( ). 26
A partir deste momento, o dilogo Hppias Maior apresentara uma srie de
formulaes que pretendem deixar explcita a condio do belo ele mesmo
como nica causa real para o fato de todas as demais coisas belas possurem esta
propriedade. Em 287c, aps concordar que pela (dativo instrumental = por
causa da) justia que os justos so justos ( ),
pela sabedoria que os sbios so sbio e pelo bem que todas as coisas boas so
boas ( ), Hppias
levado a concordar que o belo, objeto da investigao socrtica, aquilo pelo
26 Esta expresso, que ocorre repetidamente no Hppias Maior (286d8, 288a9, 289c3, 289d2,
292c9, 292d3, 293e4), usada por Plato, nos dilogos da fase mdia, como maneira
inequvoca de fazer referncia s Formas, o que representa um claro fator de continuidade
lexical entre os dilogos socrticos e os dilogos em que a Teoria das Ideias explicitamente
apresentada. Assim, a seo final do dilogo Crtilo explica que, para falarmos de um Belo
ele mesmo ou Belo em si ( ), devemos nos referir no s coisas sensveis que
esto fadadas perptua transformao, mas s realidades que permanecem sempre idnticas.
Entre os inmeros exemplos do uso desta expresso nos dilogos da fase mdia para designar
as Formas temos o igual ele mesmo (Fed.74e), o grande ele mesmo (Parm.131c) e o bem
ele mesmo (Rep. VII 534c).
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qual todas as coisas belas so belas. ( ). Alm do dativo
instrumental, o Hppias Maior faz uso da preposio u(po/ seguida de genitivo
(297a5-6, 297b1-2) e da preposio dia/ seguida de acusativo (288a9-11) como
maneiras de explicitar o poder causal exercido pelo belo ele mesmo. Por fim,
o belo ( ) caracterizado, em diversas passagens, diretamente como
uma causa (