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A Biopolítica contemporânea como forma de gestão dos
corpos
Suspeitamos que o Holocausto pode ter meramente revelado um reverso da
mesma sociedade moderna cujo verso, mais familiar, tanto admiramos. E que as
duas faces estão presas confortavelmente e de forma perfeita ao mesmo corpo. O
que a gente talvez mais tema é que as duas faces não possam mais existir uma
sem a outra, como verso e reverso de uma moeda.”
(Zygmunt Bauman)
Nos anos oitenta, o Brasil atravessa uma profunda mudança política, ao
sair de um regime ditatorial que durara mais de vinte anos. Da mesma forma
acontece com outros países da América Latina no chamado período de
redemocratização. O cenário político mundial neste período foi extremamente
favorável para esse processo. De acordo com Paulo Arantes “golpes de estado
hoje em dia são politicamente incorretos”1. Os regimes militares nos países
periféricos se tornaram obsoletos. Quando o muro ruiu e o regime comunista
entrou em colapso, não havia mais necessidade da manutenção de um regime
autoritário nos governos do Cone Sul para controlar as insurgências. Só que os
esperados dividendos da almejada paz não vieram. Pelo contrário, foram
reinvestidos em um novo período de guerra.
No contexto político mundial, observa-se o enfraquecimento do Estado –
Nação e uma diminuição do seu poder de negociação, simultaneamente a
ascendência de um novo valor - a segurança. O nosso tempo pode ser
caracterizado pela mudança da política internacional, da posição de defesa para a
de segurança. Não é mais suficiente reagir às ameaças, talvez isso já seja tarde
demais. A ordem política agora é adotar uma postura ativa2. A segurança começa
a aparecer nos discursos oficiais não como um dos direitos fundamentais, mas
como o valor supremo, o qual deve ser buscado a qualquer custo, inclusive do
sacrifício de outros direitos. As modernas nações democráticas receberam poderes
para declarar guerras defensivas, aquelas declaradas para evitar um suposto 1 ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p.153. 2 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 40.
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ataque. A segurança exige um constante condicionamento do ambiente político
por meio de práticas militares e policiais. Ela adquire um caráter biopolítico, a
partir do momento que transforma a vida social.
A suspensão da ordem democrática durante os períodos de guerra sempre
foi vista como uma condição temporária, devido a situação excepcional.
Entretanto, esse estado de guerra, segundo Antonio Negri transformou-se em
nossa “condição global permanente”3, o que permite concluir que essa suspensão
do ordenamento não mais se configura na situação excepcional, mas tornou-se a
regra, conduzindo inclusive essas democracias a se tornarem totalitárias.
Diante dessa conjuntura, Giorgio Agamben apresenta sua tese sobre o
estado de exceção permanente, em resposta a uma mistificação da nova ordem
mundial, na tetralogia sobre o Homo Sacer. Seus textos se iniciam no início dos
anos 60, mas perante os acontecimentos no início do século XXI e diante de uma
convergência entre democracia e sistema totalitário, a problematização da relação
soberana recebeu uma nova perspectiva de discussão. Na tetralogia, o autor utiliza
os paradigmas4 do homo sacer5 e do campo de concentração para desenvolver a
articulação da estrutura entre soberania e vida nua.
O discurso da excepcionalidade então é chamado a baila com maior
frequência, como recurso necessário e como justificativa para a restrição de
liberdades. O mundo pós 11 de setembro assistiu a volta de práticas violentas, as
quais foram chanceladas como custo necessário. O cenário biopolítico do nosso
tempo ganha um novo elemento com a promulgação do “Ato Patriótico” em 2001,
promulgado pelo senado norte-americano, em que o significado biopolítico da
3 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Op. Cit. p. 43. 4 Agamben escreve sobre as diversas formas de interpretação do conceito de paradigma, para esclarecer o caráter de sua investigação não era meramente historiográfico. O autor estabelece sua definição de paradigma como um objeto singular, válido para todos da mesma classe, define a ideia do conjunto do qual faz parte e constitui. O homo sacer, o muçulmano, estado de exceção e o campo de concentração são casos de paradigmas “no son hipótesis a través de lãs cuales se intenta explicar La modernidad, reconduciéndola a algo así como a uma causa o um origen histórico. Por El contrario, como su misma multiplicidad podría dejar entrever, se trata em todos lós casos de paradigmas que tenían por objetivo hacer inteligible uma serie de fenômenos cuyo parentesco se le había escapado o podia escapar a La mirada Del historiador.” AGAMBEN, Giorgio. Qué es um paradigma? p. 42. 5 Figura do direito romano arcaico que representava um indivíduo fora do direito, contra o qual a morte não representava um homicídio. Sua figura representa o contraposto do poder soberano no campo jurídico. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p.16.
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exceção aparece em toda sua potência, como estrutura em que o direito inclui em
si o vivente por meio de sua suspensão. Essa ordem do presidente dos Estados
Unidos autoriza a detenção do indivíduo suspeito por tempo indefinido, são os
detainees – um tipo inclassificável, objeto de dominação de fato. Essa detenção
não tem natureza específica, pois não encontra respaldo no campo legal e, fora de
qualquer tipo de controle6.
O estudo da soberania se mostra um elemento fundamental para
compreensão da democracia contemporânea, apesar da aparente contradição
promovida pela ideia de um sistema consensual. No Brasil, a necessidade dessa
análise se coloca de forma mais urgente, devido ao aumento exponencial da
violência institucional. Agamben faz essa análise: “De modo diverso, mas
análogo, o projeto democrático-capitalista de eliminar as classes pobres, hoje em
dia, através do desenvolvimento, não somente reproduz em seu próprio interior o
povo dos excluídos, mas transforma em vida nua todas as populações do Terceiro
Mundo”7.
Na realidade, a politização da vida nua tornou-se uma marca da
modernidade, caminhando para transformações políticas e filosóficas radicais.
Para o autor, os dilemas do nosso tempo só serão compreendidos sob o ponto de
vista da biopolítica em que foram criados. A partir dos estudos realizados por
Michel Foucault sobre o conceito de biopolítica8 e Hannah Arendt ao tratar dos
estados totalitários do novecentos, Agamben adentra o campo do direito para
evidenciar possíveis relações entre direito e violência9. O objetivo do autor não foi
desenvolver uma tese pessimista e sensacionalista sobre as tendências políticas
contemporâneas, mas na verdade, induzir a uma reflexão sobre os caminhos
seguidos pelos governos atuais no sentido de entender as novas realidades do
poder, na qual o regime de exceção é cada vez mais generalizado. Os conflitos
atuais exigem da política novos direitos e mais restrições das liberdades,
estreitando o vínculo entre a vida natural e o poder soberano.
6 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 14. 7 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 175. 8 Para efeito deste trabalho não serão apresentadas aqui as diferenças teóricas do conceito de biopolítica na obra de Foucault e na obra de Agamben. 9 COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Op. Cit.
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Hannah Arendt estudou os governos totalitários em sua obra “Origens do
Totalitarismo: anti semitismo, imperialismo, totalitarismo”, na qual apontava estes
como a emergência de um novo paradigma de governo, “longe de ser ilegal,
recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua legitimidade
final; que longe de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre humanas
que qualquer governo jamais o foi”10. Ou seja, Arendt conclui que a legitimidade
do governo totalitário decorria justamente das leis positivadas. Esse
funcionamento é importante para entender os governos atuais regidos pela lógica
da segurança. Isto por que, o estado de exceção é uma sombra que paira sobre as
democracias contemporâneas. E a sua sistemática interna não foi desmontada,
como aparenta ter sido. Essa permanência será utilizada por Agamben em sua
obra Homo Sacer para analisar o estado de exceção nos tempos atuais.
Foucault apresenta a formulação definitiva do conceito de biopolítica no
primeiro volume da História da sexualidade, intitulado como A Vontade de
saber11
. Por muito tempo a grande particularidade do poder soberano foi o direito
de vida e de morte. O filósofo francês estuda a transição do Estado-territorial para
o Estado de população, o que significa uma atenção direcionada aos fatores da
vida biológica da população. O poder começa a penetrar no corpo do sujeito e em
suas formas de vida, o Estado assume um duplo vínculo político entre as técnicas
de individualização subjetivas e a totalização objetiva: ele adota um cuidado com
a vida natural dos indivíduos, ao mesmo tempo em que desenvolve as tecnologias
de subjetivação, que consistem em vincular o indivíduo à própria identidade e
10 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: anti-semitismo, imperalismo,
totalitarismo. Companhia das Letras, 1998. p. 513. 11 “Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-políticas do
corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma
bio-política da população.” FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber.
Graal, 1977. Tradução: Maria Theresa da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon de Albuquerque. p. 132.
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consciência por meio de um controle externo12. Neste ponto, Foucault não
assumiu uma teoria unitária do poder e é justamente nessa interseção que se
encontra o trabalho de Agamben13. Ao mostrar essas duas análises – o modelo
jurídico-institucional e as fórmulas biopolíticas - de forma intrinsecamente
relacionadas, na medida em que a vida nua constitui o núcleo originário do poder
soberano14.
A biopolítica é um novo modelo de governamentalidade15 e se apresenta
como uma tecnologia de poder direcionada para a população16. Segundo Foucault
trata-se de “uma tecnologia de poder que não exclui a técnica disciplinar, mas que
a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-
la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa
técnica disciplinar prévia”17. Ela depende de duas vertentes distintas e igualmente
importantes: técnicas de gestão dos corpos individuais, assim como as técnicas de
governo das populações. O fio condutor de sua pesquisa consiste em reconstruir o
vínculo entre o modelo jurídico institucional da soberania e o modelo
normalizador das ciências humanas, analisar a relação entre a vida e o poder,
libertando-a da violência intrínseca ao direito e consequentemente ao estado de
exceção que o compõe como princípio interno.
12 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit.p. 13. 13 Neste ponto ocorre uma distinção entre as concepções de biopoder em Foucault e Agamben. A teoria de Foucault é construída sob uma separação bem definida entre os termos como disciplina e controle, ou entre disciplina e segurança, de forma a evitar uma teoria unitária do poder. Já Agamben trata do tema da soberania como um ponto de interseção nas transformações do poder, sem se preocupar com o poder de forma unitária, ou não. VIEIRA, Rafael Barros. Exceção, violência e direito: notas sobre a crítica ao direito a partir de Giorgio
Agamben. Dissertação de Mestrado. Orientadora: Bethania Assy. PUC, 2012. Nota 274. p. 115. 14 BATISTA, Vera Malaguti. Vida Nua e Soberania. Resenha Bibliográfica. Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 7, nº 12, 2º semestre de 2002. p. 386. 15 “A nova governamentalidade da política de Estado se apoia em dois grandes conjuntos de saberes e de tecnologias políticas, uma tecnologia político-militar e uma ‘polícia.’ No cruzamento dessas duas tecnologias, encontram-se o comércio e a circulação interestatal da moeda: ‘é a partir do enriquecimento pelo comércio que se espera a possibilidade de aumentar a população, a mão de obra, a produção e a exportação, e a possibilidade de se dotar de exércitos fortes e numerosos’”. REVEL, JUDITH. Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. p. 75. 16 Como uma razão de estado, ela foi formada por dois campos: “ uma tecnologia diplomático-militar que consiste em assegurar e desenvolver as forças do Estado por um sistema de alianças e pela organização de um aparelho armado. (...) A outra é constituída pela “polícia”, no sentido que então se dava a esse termo: o conjunto dos meios necessários para fazer crescer, do interior as forças do Estado.” Segurança, Território, População – Curso dado no Collège de France (1977-1978). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes 2008. p. 83. 17 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 289.
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A biopolítica não é uma criação da modernidade, ela tem sido uma
constante na política ocidental. O objetivo de Agamben com esse estudo é
desvendar o sentido da política ocidental para abrir um novo horizonte de
possibilidades. A perspectiva adotada é da imanência da política, na medida em
que volta-se para si própria. Com a ascensão dos estados totalitários ficou mais
clara a problematização do estado de exceção. Qual seja, o problema da vida
totalmente exposta a violência e ao poder soberano. No estado biopolítico, a
soberania não atua mais sobre o poder de vida e de morte na tradicional
formulação fazer morrer e deixar viver, mas constitui o seu inverso – fazer viver e
deixar morrer. Com o binômio regra e exceção, a vida natural torna-se um fator
nos cálculos do poder estatal18. O novo modelo político é formado por
dispositivos direcionados a vontade do sujeito em afinidade com as tecnologias
sociais.
Os processos de subjetivação são direcionados para a formação do sujeito
submetido a um controle externo. Sua consciência é manipulada no sentido de
obediência a novas formas de controle. A sujeição é internalizada a ponto de
formar corpos úteis e dóceis para o sistema, dotados de uma aparente autonomia.
O poder passa a ser exercido sobre a vida. Nessa forma de gestão, a exceção
aparece como vínculo originário, o que significa a violência como uma
potencialidade permanente sobre o corpo individual e social da população.
Para Agamben é impossível pensar a política sem realizar pesquisas
arqueológicas, por entender que muitos conceitos jurídicos agem dentro dos
mecanismos atuais de poder. Ao trabalhar o estado de exceção, ele busca entender
o modo como a máquina político jurídica funciona, o que o levou a concluir o
estado de exceção como “um motor imóvel da máquina jurídica ocidental.”19 Em
entrevista, Agamben define seu método como arqueológico e paradigmático,
aproximando-se de Foucault, mas não necessariamente coincidente. Ele defende
esse processo como a única via possível de compreensão do presente,
transformando dicotomias em bipolaridades, por meio de paradigmas20. Como por
18 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 10. 19
SAFATLE, Vladimir. A política da profanação. Folha de São Paulo. 18 de setembro de 2005. 20 COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Op. Cit. p. 2-3.
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exemplo, o homo sacer, uma figura limítrofe utilizada por Agamben como um
paradigma da biopolítica contemporânea.
Este capítulo propõe uma análise dos paradigmas desenvolvidos por
Agamben para compreensão do atual modelo de governo. O estado de exceção
tem suas origens nos regimes totalitários do novecentos e permanências nas
democracias ocidentais, por meio da relação de violência que interrompe e depõe
o direito. O conceito de campo como um espaço onde a exceção é a regra. E o
homo sacer, figura do direito romano arcaico que pode ser comparado ao
muçulmano, figura dos campos de concentração que já não era mais considerado
como pessoa, podendo ser encontrado em diversas figuras do cenário político
mundial, pois observamos a desumanização de determinados sujeitos como
ferramentas dos jogos de poder.
2.1
O estado de exceção permanente
“Se fosse possível e desejável resumir em uma única fórmula o atual estado do
mundo, eu não pensaria duas vezes: estado de sítio”.21
(Paulo Arantes)
Mas afinal, o que é o estado de exceção? Como incorporar em um mesmo
sistema a previsibilidade legal e a excepcionalidade não contida no sistema? No
seu sentido técnico-jurídico, ao se decretar o estado de exceção, a ordem jurídica
normal fica suspensa, as categorias do lícito e do ilícito tornam-se indiscerníveis,
o que era delituoso sob a ordem jurídica normal passa a ser justificado e permitido
e, vice-versa. “A lei vige em seu estar suspensa”22, os limites entre dentro e fora
não fazem mais sentido, eles se anulam. É imprescindível saber onde começa e
21 Paulo Arantes não distingue estado de sítio de estado de exceção, ou de plenos poderes, ou estado de emergência. Todos são denominações para “o regime jurídico excepcional a que uma comunidade política é temporariamente submetida, por motivo de ameaça à ordem pública, e durante o qual se conferem poderes extraordinários às autoridades governamentais, ao mesmo tempo em que se restringem ou suspendem as liberdades públicas e certas garantias constitucionais.” ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p.153-154. 22 AGAMBEN, Giorgio. Onde começa o novo êxodo. Revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. nº 7, janeiro-abril 1999. p. 175.
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onde acaba a emergência. No entanto, contraditoriamente, a ordem hoje é a
exceção se tornar a regra e esse estado se transformar em permanente.
A questão basilar nesse ponto da investigação se encontra na existência de
mecanismos de suspensão legal dentro do próprio ordenamento jurídico. Como
compreender um sistema jurídico construído sob os fundamentos da
harmonização social por meio da representação da vontade geral? O entendimento
corrente se funda sobre o direito como forma de legitimar a legalidade e o
exercício do poder. Nesse raciocínio, o que não estaria previsto no sistema legal,
estaria automaticamente fora do ordenamento, já que o direito é entendido como
completo. Agamben se debruça sobre essa questão e estuda a estrutura do estado
de exceção por entender esse instituto como uma chave de compreensão de alguns
aspectos do direito.
A complexidade da caracterização do estado de exceção corresponde
também a sua incerteza terminológica. Agamben parte da ideia de que as escolhas
terminológicas não podem ser neutras, então a expressão estado de exceção tem
uma vinculação originária, relacionada com o estado de guerra23. Mas essa ideia é
equivocada, na medida em que ele não é um direito especial (de guerra), mas na
verdade um conceito-limite determinador da suspensão da ordem jurídica.
O estado de exceção remonta ao instituto do estado de sítio, no decreto de
8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte Francesa24. Esse instrumento legal
se originou como dispositivo associado a situação de guerra, que logo foi
desvinculado e passou a ser usado pelas polícias em situações extraordinárias. Ele
estende os poderes da autoridade militar ao âmbito civil e confere o poder de
suspensão da constituição em “situações excepcionais” e “de necessidade”. Em
1811, o decreto napoleônico estende a incidência da decretação para além desses
casos, em qualquer situação de ameaça. Na nova constituição de 1848
estabeleceu-se que uma nova lei definiria as situações, formas e efeitos do estado
de sítio. No ano seguinte, essa lei é alterada, determinando que o estado de sítio
poderia ser declarado pelo parlamento no caso de perigo iminente para a
23 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.Op. Cit. p. 15. 24 O estado de sítio remonta a tradição do Império Romano, entretanto, para efeito deste trabalho, o histórico iniciará a partir do século 18. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 16.
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segurança, externa ou interna. Já em 1877, a lei é novamente alterada para
estabelecer que o estado de sítio poderia ser decretado por uma simples lei em
casos de perigo iminente devido a uma guerra externa ou a uma insurreição
armada. Posteriormente, desemboca a Primeira Guerra Mundial, o que provoca na
maior parte dos países em guerra um estado de exceção permanente. Essa situação
se prorroga até 12 de outubro de 1919, período no qual a atividade do Parlamento
se restringiu a votar leis cujo conteúdo era mera delegação da atividade legislativa
ao executivo, “foi nesse período que a legislação excepcional por meio de decreto
governamental (que nos é hoje perfeitamente familiar) tornou-se uma prática
corrente nas democracias europeias”. Foi nessa época em que o executivo
transformava-se em órgão legislativo, pois a ampliação dos poderes do executivo
prosseguiu após o fim da guerra e, assim, a emergência militar deu espaço para a
emergência econômica. Essa mesma delegação de poderes ocorreu novamente
durante a Segunda Guerra Mundial, quando o presidente da frança pediu plenos
poderes ao Parlamento para fazer face a ameaça da Alemanha. A partir de então,
torna-se uma tendência nas democracias ocidentais a declaração do estado de
exceção permanente, agora sob o paradigma da segurança como técnica de normal
de governo. O histórico do estado de exceção foi reconstruído aqui de forma
muito breve para evidenciar como as transferências de poder dentro das relações
de soberania não ocorrem por meio de rupturas. Ao contrário, ele aponta a lógica
da exceção sob uma dupla face, como uma zona de abertura e captura, ambas
inseridas no sistema legal25.
A clássica definição de Carl Schmitt “é soberano aquele que decide o
estado de exceção”26
foi o ponto de partida do estudo de Agamben. A exceção
tornada regra no estado de exceção é o fio condutor, quando o imperativo da
necessidade e da utilidade incorpora-se a política, podendo-se afastar as leis e o
direito para manutenção do Estado. Esse paradigma é entendido no campo da
teoria do estado. Nessa linha, a contribuição de Schmitt consiste em considerar a
exceção o próprio núcleo da norma, ela suspende a ordem jurídica, e assim, o
soberano é quem decide a necessidade circunstancial justificadora da suspensão.
25 Uma evidência dessa tese é a tendência da política na era Bush em se auto denominar Commander in chief of the army, Bush procurou com isso produzir um ambiente de guerra, onde a emergência se torne permanente e não exista mais distinção entre paz e guerra. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 38. 26 SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 7.
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O soberano detém a decisão. Com a justificativa de manutenção da ordem pública,
o soberano exerce o poder decisório sobre a exceção, suspende a eficácia das
normas apesar delas ainda serem formalmente válidas.
Apresenta-se o paradoxo da soberania27: o soberano suspende o
ordenamento que o define como soberano, ele se coloca fora de um ordenamento
que garante a própria legitimidade da sua autoridade, a sua condição de existência.
Então, o soberano está ao mesmo tempo dentro e fora da soberania, pois ele
permanece fora do ordenamento ao suspendê-lo, ao mesmo tempo em que é dele a
decisão da suspensão28. Esse paradoxo é extremamente importante pois esclarece
como a soberania constitui o conceito-limite do ordenamento jurídico.
“A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão”29.
No momento em que a regra é suspensa, ela abre espaço para a exceção. A
exceção como definidora da estrutura da soberania é compreendida como aquilo
que está fora suspendendo a validade do ordenamento. A lei mantém uma relação
com essa exterioridade. Agamben denomina de “relação de exceção”30 essa
conexão entre a inclusão de alguma coisa por meio da sua exclusão. Essa
afirmação poderia levar a conclusão da exceção ser entendida como uma lacuna
no direito. No entanto, ela é mais do que isso, pois para essa situação bastaria a
inclusão da exceção dentro do campo de previsibilidade da norma. Por isso, a
exceção não pode ser caracterizada como uma mera lacuna no direito, não se
refere a uma carência no texto legal que deve ser preenchida pelo intérprete
jurídico. Refere-se antes a suspensão do direito como condição de sua
existência31. E ainda assim, haveria que se indagar quais situações provocam a
27 A exceção comprova que a soberania não se esgota na ordem jurídica. Da mesma forma que não a transcende pois ela é intrinsecamente relacionada com o direito. 28 A expressão “ao mesmo tempo” é fundamental para a compreensão do paradoxo pois “o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei”. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 23. 29
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 23. 30
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 25. 31 Ao se entender a exceção como uma lacuna, tem que ser compreendida fora do seu sentido próprio. Se ela fosse um espaço no ordenamento, ela seria interna ao direito, o que não é
57
exceção? E mais importante ainda, quem determina essas situações? Ou seja,
quem decide sobre a exceção?
A explicação dogmática se restringe a defini-la como uma forma de
proteção do sistema legal, mediante uma suspensão temporária da ordem legal
vigente. Mas a exceção não é a negação da ordem legal posta, e sim a situação de
anomia gerada a partir da suspensão, para justamente conservar seus fundamentos.
Nesse sentido, a exceção se coloca como uma chave de compreensão fundamental
do próprio direito, sobre o funcionamento da lei com a soberania: a situação
paradoxal da exceção apresenta a inclusão do que foi expulso32, o que significa
um espaço de abertura e captura de relações não contidas dentro do ordenamento.
Isso permite ao soberano decidir sobre situações jurídicas que não estão contidas
na lei. O sistema passa a incluir uma exterioridade e o que está fora suspende a
norma. “O estado de exceção separa, pois, a norma de sua aplicação para tornar
possível a aplicação. Introduz no direito uma zona de anomia para tornar possível
a normatização do real”33. Essa inclusão exclusiva é o campo exato das tensões
entre um mínimo de vigência formal e o máximo de aplicação real, provocando
uma zona cinzenta de indistinção, o que comprova a insuficiência da divisão
topográfica das normas para explicar o funcionamento da soberania e suas
relações adjacentes.
Na relação dicotômica entre norma e exceção a suspensão está incluída.
Essa zona de inclusão exclusiva permite repensar a relação entre a lei e a decisão
soberana, a “centralidade do estado de exceção enquanto paradigma de
funcionamento das estruturas jurídicas que procuram normatizar o campo da
política e da ação social. Que o espectro da “suspensão legal” da lei, que este
reconhecimento da lei que pode conviver com sua própria suspensão seja o
“motor imóvel das democracias contemporâneas”34. Essa nova forma de pensar a
suficiente para explicar o instituto. Nas palavras do autor “A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com a realidade, à possibilidade mesma de sua aplicação. É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor.” AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.Op. Cit. p. 48. 32 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 28. 33 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 58. 34 SAFATLE, Vladimir. A política da profanação. Folha de São Paulo. 18 de setembro de 2005.
58
decisão soberana e a lei será importante para entender a elevada letalidade da
política de segurança pública do Rio de Janeiro, na qual o Estado concede um
poder de decisão a autoridade policial sobre o momento de morte35. O estado de
exceção fornece algumas pistas para identificar dentro de um Estado de Direito o
funcionamento de uma tanatopolítica, em um momento que prevalece a lógica da
segurança e da guerra infinita. Isto por que ao analisar a máquina governamental,
através da perspectiva da política e do direito, pode-se observar como as
hierarquias se invertem e o poder executivo, personificado na instituição policial,
se apresenta no cerne do problema atual. Nesse espaço vazio de direito, a
classificação jurídica tradicional do gênero de ações entre legislação, execução e
transgressão perde o seu sentido, de forma que o agente policial quando comete
um homicídio durante a exceção não cumpre nem transgride a lei, ele está
“inexecutando a lei”36.
A segurança é colocada hoje como paradigma de governo. Mas
contrariamente a concepção corrente, intensamente produzida pelas mídias, os
estados contemporâneos não são garantidores da ordem. São na verdade,
máquinas de produção e gestão da desordem. Eles não estão preocupados em
impor a ordem, pois são justamente essas intervenções estatais que lhes dão
legitimidade e reafirmam o seu poder37. O modelo de estado totalitário moderno é
caracterizado por meio de uma guerra civil legal, a qual permite a eliminação
física de categorias inteiras de cidadãos considerados descartáveis nos cálculos de
poder. Para essa prática, a criação voluntária de um estado de emergência
permanente é primordial nas gestões democráticas38, deixa de ser uma medida
provisória para se tornar uma técnica de governo.
35
AGAMBEN, Giorgio. Sovereign Police. In: Means without end – Notes on politics. Minneapolis: University of Minessota Press, 2000. p. 105. 36
AGAMBEN, Giorgio. A zona morta da lei. Folha de São Paulo. 16 de março de 2003. 37 Agamben cita uma frase de um policial italiano durante uma manifestação em Gênova característica desse tipo de pensamento: “O Estado não quer que imponhamos a ordem, mas que administremos a desordem.” Como política governamental, os Estados Unidos articulam suas intervenções mundiais sob essa perspectiva: “Parece-me evidente que este é o princípio que guia, particularmente, a política exterior norte-americana, mas não apenas ela. Trata-se de criar zonas de desordem permanente (“zones of termoil”, como dizem os estrategistas) que permitem intervenções constantes orientadas na direção que se julgar útil. Ou seja, os Estados Unidos são hoje uma gigantesca máquina de produção e gestão da desordem.” AGAMBEN, Giorgio. Entrevista a Folha de São Paulo. 18 de setembro de 2005. 38 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 13.
59
Para Agamben, a exceção evidencia a essência da autoridade estatal, na
medida em que ela define a estrutura do poder soberano. No estado de exceção
está em questão a validade da norma e consequentemente da autoridade estatal. A
relação de exceção é demonstrada como aquilo que está fora, incluído por meio da
suspensão da validade do próprio sistema jurídico. A regra ao ser suspensa, dá
lugar a exceção e é por meio desse mecanismo que ela confirma a validade de sua
condição. A exceção não pode ser definida nem como fato nem como direito, mas
uma tentativa de compreensão pode colocá-la como um paradoxal limiar de
indiferença39, no qual o que está em jogo não é estabelecer delimitações entre o
que está ou não incluído, mas de definir uma zona limiar ilocalizável de
indiferença, a qual confirma a validade do ordenamento. A tese da exceção como
estrutura política tende a tornar-se a regra nos dias atuais. Quando essa zona
ilocalizável no âmbito legal tomou forma, ela foi concretizada no campo de
concentração - o espaço do estado de exceção absoluto40.
“É preciso refletir sobre o estatuto paradoxal do campo enquanto espaço de exceção: ele é um pedaço de território que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas não é por causa disso, simplesmente um espaço externo. Aquilo que nele é excluído é, segundo o significado etimológico do termo exceção, capturado fora, incluído através da sua própria exclusão. Mas aquilo que, deste modo, é antes de tudo capturado no ordenamento é o próprio estado de exceção. Na medida em que o estado de exceção é, de fato, “desejado”, ele inaugura um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente”41.
A tese filosófica do campo de concentração como paradigma político foi
deslocado do referencial da pólis para esse espaço onde aparece uma nova relação
biopolítica entre os cidadãos e o Estado. Ao tratar do paradigma do campo de
concentração, Agamben busca reforçar como os procedimentos biopolíticos
utilizados no regime nazista podem ser relacionados com o modelo de
governamentalidade em curso, no qual o mecanismo de destruição em massa do
inimigo corresponde ao paradigma do Estado-nação moderno. Nos campos
nazistas, o soberano não se restringe mais a decidir sobre a exceção diante de uma
situação de perigo para a segurança pública, como determinava a constituição de
39 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 25. 40 DE LA DURANTAYE, Leland. Giorgio Agamben: A critical introduction. California: Stanford University Press, 2009. p. 212. 41 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 166. Grifos do autor.
60
Weimar. Ele agora produz a situação de fato, como resultado da decisão sobre a
exceção. Por isso, o campo se torna um espaço virtual híbrido entre a noção de
direito e de fato, onde não é possível identificá-los separadamente. Agamben faz
uma provocação sobre esse assunto, para retirar o véu sobre a pergunta superficial
de como foi possível cometer crimes tão cruéis contra seres humanos e, direciona
a pergunta sobre o real questionamento diante da situação: quais foram os
dispositivos jurídicos e políticos da época que permitiram cometer um genocídio
em tamanha proporção sem que fosse considerado crime? A condição extrema de
vida nua que seus habitantes foram expostos não pode ser considerado um fato
extrapolítico e extrajurídico, catalogado no campo dos atos atrozes. “O campo
como localização deslocante é a matriz oculta da política em que ainda vivemos,
que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas
zones d’attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas
cidades”42. Esse é o questionamento mais útil diante da tragédia e elucida o real
problema inserido no ordenamento jurídico alemão que apresenta permanências
no presente.
O estado de exceção transformado em regra significa a indistinção entre o
corpo biológico do corpo político43. Por isso, o campo de concentração se tornou
um paradigma da política moderna, ele é o primeiro espaço onde o público e o
privado são indistinguíveis. O que foi realmente a experiência dos campos para os
seus sobreviventes? Um acontecimento histórico ou uma experiência privada?
Naquele espaço, o vivente foi excluído da comunidade política e reduzido a mera
vida nua. Negri e Hardt também analisam a política contemporânea sob o
paradigma do campo de concentração, onde o Estado soberano e o campo atuam
sob uma relação de complementaridade44. Com a diferença de que nos dias atuais,
o campo não é mais um espaço fixo e isolado, mas adquire uma forma permeável,
flutuante no espaço e no tempo. Esses espaços, onde funciona um híbrido entre
direito e fato, produziram permanências, aproximando os lagers nazistas dos
atuais campos de refugiados de guerra, da Faixa de Gaza e dos centros de
42 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 171. Grifos do autor. 43 AGAMBEN, Giorgio. Onde começa o novo êxodo. Revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. nº 7, janeiro-abril 1999. p. 75. 44 NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Campo. Revista Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. nº 7, janeiro-abril 1999. p. 70.
61
detenção de imigrantes na Europa. Nesse mesmo sentido se forma um paralelo
com as favelas do Rio de Janeiro45. Estigmatizadas como territórios do crime e da
violência, as favelas são as áreas que sofrem maior incidência das políticas com
derramamento de sangue. Sob a metáfora da guerra, o estado de exceção é
acionado, impondo uma dupla política, territórios vigentes sob o Estado de Direito
e territórios regidos pela lógica da exceção – as favelas.
No entendimento de Agamben, o estado de exceção torna-se uma nova e
estável disposição espacial no campo, em que habita a vida nua em proporção
crescente. O sistema político não funciona mais sob a lógica de ordenar formas de
vida sob determinadas normas jurídicas em um determinado espaço. O paradigma
agora funciona como um ordenamento sem localização (o estado de exceção),
correspondente a uma localização sem ordenamento (o campo como exceção
permanente) – uma localização deslocante que excede o sistema político.
A questão da validade da norma não depende da sua correspondência com
uma situação concreta, justamente por se tratar de uma formulação abstrata,
evidenciando a proximidade do direito com aspectos de potência da linguagem. A
norma mantém assim uma relação virtual, podendo inclusive, por exemplo,
sancionar uma conduta transgressora. Na exceção soberana, a ordem
normativa pode adquirir o mínimo de validade e o máximo de eficácia na decisão,
adquirindo força de lei. Ou seja, pura potência totalmente dissociada do ato. A
expressão força de lei significa capacidade de obrigar e, no campo do direito ela
adquire a conotação de separação entre a aplicabilidade da norma e sua essência
formal46, por meio da qual medidas legais que não são formalmente leis adquirem
sua força.
45 Agamben defende a ideia da presença virtual do campo nos dias atuais “toda vez que é criada uma tal estrutura, independentemente da natureza dos crimes que aí são cometidos e qualquer que seja a sua denominação ou topografia específica”. AGAMBEN, Giorgio. Homo
Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 169. 46 Essa discussão se coloca de forma muito presente no nosso tempo devido a tendência das democracias ocidentais em estender os poderes do executivo no âmbito legislativo, por meio da expedição de decretos com força de lei como consecutivo da crescente delegação por meio de lei de plenos poderes: “Entendemos por leis de plenos poderes aquelas por meio das quais se atribui ao executivo um poder de regulamentação excepcionalmente amplo, em particular o poder de modificar e de anular, por decretos, as leis em vigor”. TINGSTEN, Herbert. Apud AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.Op. Cit. p. 18-19.
62
No estado de exceção, a particularidade dessa expressão é a dissociação de
força de lei da lei47. “O conceito de exceção define um regime da lei no qual a
norma vale, mas não se aplica (porque não tem força), e atos que não possuem o
valor de lei adquirem sua força. Isso significa que, no caso-limite, a força de lei
flutua como um elemento indeterminado que pode ser reivindicado ora pela
autoridade do Estado, ora pela autoridade de uma organização revolucionária”48.
Essa situação é possível pois esse sintagma define um duplo estado da lei no qual
potência e ato estão radicalmente separados, uma ficção jurídica na qual o direito
atribui a própria desintegração de suas normas49. Então, o estado de exceção é um
espaço em que a força de lei realiza uma norma, no sentido de aplicá-la
desaplicando, cuja aplicação foi suspensa.
A concepção do direito como um campo do saber realizado pela prática da
subsunção – efetivação, como uma abstração ideal representante do real, não dá
conta da tendência atual de inserir no texto legal normas abertas, para regular
nossa complexa realidade. No entanto, essa visão do direito não engloba a
indexação da lei exercida pela decisão soberana. A decisão é o momento de
transição do campo ideal, visualizado no texto legal, para a realidade concreta.
Isto por que, a decisão personaliza o direito, no sentido de alguém que aplique o
texto abstrato e, para isso o sujeito decide qual norma se aplica ao caso concreto.
Por isso a grande importância do fundamento místico da autoridade da lei, pois
quem decide a adequação ou não de uma relação no direito não é a norma no
campo ideal, mas a autoridade que a aplica50.
Criticar a vinculação entre razão e norma, razão e normatização da vida
abriu espaços para Agamben questionar os modos de racionalização. A exceção
soberana é o dispositivo mediante o qual o direito se refere a vida de forma a
incluí-la, no mesmo gesto em que suspende o exercício do direito, por isso a teoria
47 Essa expressão foi apresentada por Jacques Derrida em 1990 na conferência intitulada “Força de Lei – O Fundamento Místico da Autoridade” para demonstrar como as leis tem seu fundamento de validade apoiado sobre a autoridade daquele que a decreta, como os decretos formulados pelo executivo com “força de lei” principalmente no estado de exceção. Agamben ainda cita o caso limite no julgamento de Eichmann em que ele alegava em sua defesa “as palavras do Führer têm força de lei.” AGAMBEN, Giorgio. A zona morta da lei. Folha de São Paulo. 16 de março de 2003. 48 AGAMBEN, Giorgio. A zona morta da lei. Folha de São Paulo. 16 de março de 2003. 49 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.Op. Cit. p.61. 50 VIEIRA, Rafael Barros. Exceção, violência e direito: notas sobre a crítica ao direito a
partir de Giorgio Agamben. Op. Cit. p. 142.
63
do estado de exceção é a premissa para relacionar o vivente e o direito. Se as
medidas excepcionais são o resultado de períodos de crise política, é preciso
estudá-las no campo político, apesar de serem medidas jurídicas, o que evidencia
mais um paradoxo: a exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não
pode ser compreendido na forma legal51. De outra forma, sendo a exceção o
dispositivo pelo qual o direito se refere a vida, ela é também condição preliminar
do sistema que vincula e abandona o vivente ao direito. Uma ambiguidade
constitutiva da ordem jurídica – vida e norma, fato e direito – está sempre
presente, fora e dentro de si mesma, como uma dupla natureza do direito. Partindo
dessa situação, a exceção funda o nexo entre violência e direito e, quando ela se
torna concreta, ela mesma rompe esse nexo52.
A humanidade do homem é decidida na politização da vida nua. Isso
significa que o homem se caracteriza como vivo a partir do momento em que se
opõe e consegue se separar de sua vida nua, mantendo com ela uma relação de
exclusão inclusiva. Isso é o elemento caracterizador do homem como um ser
político e demonstra a dicotomia fundamental: vida nua e política, zoé e bíos.
“Quando as fronteiras começam a desvanecer, a vida nua se libera e se transforma
em sujeito e objeto da ordem política, o lugar para a organização do poder do
Estado e para sua emancipação”53.
Ao incluir o vivente no campo do direito, como elemento chave da
realidade contemporânea, Agamben demonstra toda a potência da ação soberana e
da violência, que já pode ser sentida nos procedimentos biométricos utilizados nos
dias atuais, estabelecendo um vínculo entre o sujeito e o poder. Esse procedimento
evidencia uma qualificação do sujeito como objeto, e consequentemente uma
relação de pertencimento a ordem soberana. De forma que é possível um registro
da vida biológica dos corpos54, deixando um espaço cada vez menor para a vida
51 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Op. Cit. p. 12. 52 COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Op. Cit. 53
BATISTA, Vera Malaguti. Vida Nua e Soberania. Op. Cit. p. 386. 54 “A tatuagem biopolítica que os EUA nos impõem neste momento para podermos penetrar em seu território pode muito bem ser o sinal precursor daquilo que, futuramente, nos será exigido aceitar como a inscrição normal da identidade do bom cidadão nos mecanismos e engrenagens do estado.” Agamben cancelou seus cursos em Nova York quando soube da nova política de segurança dos Estados Unidos nos seus aeroportos impondo a todos o registro de suas impressões digitais. Matéria foi publicada no jornal francês “Le Monde” para justificar o cancelamento e publicizar seu repúdio a essas técnicas biopolíticas de controle. AGAMBEN, Giorgio. Não a
tatuagem biopolítica. Folha de São Paulo. 18 de janeiro de 2004.
64
política - o cidadão em sentido estrito, restringindo seu espaço, até o ponto em que
a humanidade torna-se perigosa aos olhos do estado.
Sob outra perspectiva, o estado de exceção pode ser entendido como um
processo de generalização de dispositivos de exceção. Um conjunto de políticas
públicas de exceção é implementado para a violação sistemática de direitos dos
cidadãos por meio de dispositivos biopolíticos. Para Agamben o dispositivo
significa “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar,
orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”55. Isto por que, quando o
biopoder regula a vida social por dentro, ocorre um processo de subjetivação
direcionado para a obediência e sujeição, no qual as tecnologias de produção do
eu forjam a identidade de sujeitos em um processo de assujeitamento.
O sujeito é resultado do contato entre o ser vivente e os dispositivos. Ou
seja, dispositivo é uma máquina de subjetivações (no sentido dos sujeitos serem
sempre sujeitados a um poder) e, enquanto tal, uma máquina de governo.
Entretanto, nos dispositivos contemporâneos, o processo é no sentido de
dessubjetivação. Então, não é mais possível a produção de um sujeito real, mas
sim um sujeito espectral, pois os processos de subjetivação e dessubjetivação são
ambos indiferentes, e não dão lugar a produção de um novo sujeito. Os
dispositivos são empregados como ferramentas de sujeição dos indivíduos às
estratégias de poder. Essas premissas são importantes para relacionar com o
estado de exceção, vida nua e a elevada letalidade da força policial. O nexo entre
violência e direito é feito pela exceção. Por isso, quando é acionada a
matabilidade de categorias de indivíduos para garantir a segurança do conjunto da
população, essa prática é considerada um dispositivo inserido na biopolítica. A
dessubjetivação ocorre a partir do momento em que naturaliza a morte de sujeitos
inimigos da sociedade, o dispositivo opera a inclusão exclusiva do sujeito matável
e insacrificável.
No sentido jurídico estrito, o dispositivo significa “a parte de um juízo que
contém a decisão separadamente da motivação. Isto é, a parte da sentença (ou de
55 AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. p. 40.
65
uma lei) que decide e dispõe”56. Esse entendimento é útil para se pensar a política
de segurança pública do Rio de Janeiro, onde o policial detém o poder de decisão
do soberano e o homicídio praticado por ele representa uma sentença – de morte.
A vida nua se apresenta na sua forma mais pura quando o agente inscreve a vida
humana por meio da sua inclusão-exclusiva e decide sobre o momento de morte
do individuo, como estratégia de controle social nas periferias urbanas. A captura
da vida nua é um mecanismo de dessubjetivação e de constituição de
subjetividades-alvo do extermínio.
A análise da exceção e da decisão soberana foi tratada nesse capítulo do
trabalho por constituírem uma chave de leitura das relações entre poder, força e
violência – elementos internos da decisão. As conexões entre esses elementos
demonstram como opera o estado de exceção no Brasil, partindo da ideia que toda
violência social tende a se legitimar e, essa legitimação precisa do direito para tal
finalidade. Nos tempos atuais em que estruturas estatais encontram-se em crise e a
exceção virou a regra, a problematização dos limites do estado recebem uma nova
perspectiva. O estado de exceção se faz permanente por meio de práticas
institucionais reprodutoras de violências.
O tecnicismo da violência se faz presente na ordem jurídica e social
quando admite a desumanização do outro e violações sistemáticas de direitos
humanos. A prática da tortura, muito utilizada na ditadura militar e repudiada no
período de redemocratização do país, hoje volta a ser aceita pelos setores
conservadores e reacionários da sociedade como meio necessário para se garantir
a segurança57. As evidências do estado de exceção permanente no Brasil
demonstram claramente não somente práticas de suspensão da ordem jurídica
vigente, mas também a aplicação de medidas excepcionais com uma ótica
56 No seu sentido tecnológico significa “o modo em que estão dispostas as partes de uma máquina ou de um mecanismo e, por extensão, o próprio mecanismo”. No seu sentido militar significa “o conjunto de meios dispostos em conformidade com um plano”. AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Op. Cit. p. 34. 57 “Às classes confortáveis do núcleo orgânico correspondiam, como um complemento exato, as classes torturáveis nas zonas periféricas do sistema. Em tempo: na literatura especializada, e chocada, com esse paradoxo brasileiro que vem a ser a explosão exponencial da violência à medida que se consolida a “democratização” da sociedade, observa-se que as classes torturáveis são compostas especificamente de presos comuns, pobres e negros, torturáveis obviamente nas delegacias de polícia e prisões, rotina invisível que o escândalo da ditadura militar recalcou ainda mais, por ser inadmissível torturar brancos de classe média.” ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p. 163.
66
nitidamente seletiva58. Paulo Arantes afirma que a exceção não foi extinta no
sistema democrático, “empurraram-na para a periferia, terra de ninguém mesmo,
na qual vegetou rotineiramente, durante todo o período, preciosa contribuição para
o conforto moral da metrópole”59. O sistema punitivo mata mais no dito Estado
Democrático de Direito do que na época da ditadura: desde 2003, mas de 11 mil
pessoas foram mortas e, apenas no ano de 2007, foram registradas 4.423 pessoas
como desaparecidas60. As violências massivas passam a ser uma referência atual,
e a excepcionalidade deflagra o momento da barbárie.
O monopólio estatal da violência legítima funciona como um pressuposto
para a decretação do estado de exceção e foi essa tese explicitada por Agamben ao
interrogar o valor ontológico da violência em sua relação com o direito. O estado,
como centro de regulação dos conflitos, reclama para si o monopólio do exercício
da violência como única esfera legítima para impor autoridade, retirando seu
fundamento legal do direito61. O Estado é manifestado como o poder de suspender
as garantias legais, sendo um ponto equidistante entre o direito público e o fato
político.
A dimensão política da exceção é localizada no exercício do poder por
meio da violência. A característica da temporariedade precisa ser revista, haja
vista que na periferia a exceção sempre foi permanente, como defende Arantes. A
exceção se torna a regra de forma naturalizar-se. A suspensão da ordem jurídica é
um recurso estratégico para concretizar diferentes formas de dominação.
Ao analisar a relação entre violência e direito é importante destacar a
forma multilateral da violência. Não existe somente a violência aberta, atuam
também fatores ideológico-culturais e coercitivos, conjuntamente. O biopoder
insere a violência nas relações de forças, reinscrevendo-a nas instituições sociais,
na desigualdade econômica e até mesmo nas relações pessoais. Em outras
palavras, a violência se encontra em todas as relações de poder, ela se insere em 58 Contrariamente, para os oprimidos as medidas de exceção são a regra. DORNELLES, João Ricardo. Direitos humanos, violência e bárbarie no Brasil: uma ponte entre o passado e o
presente. In: ASSY, Bethânia; MELLO, Carolina C.; DORNELLES, João Ricardo; GOMEZ, José Maria. Direitos Humanos: Justiça, verdade e memória. Rio de Janeiro, Lumen Juris: p. 437. 59 ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p. 156. 60 DORNELLES, João Ricardo. Direitos humanos, violência e barbárie no Brasil: uma
ponte entre o passado e o presente. Op. Cit. p. 436. 61 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Op. Cit. p. 49.
67
um regime de biopoder, de forma a produzir todos os aspectos da vida social. Isso
significa que a vida cotidiana e seu funcionamento são permeados pela violência
ou simplesmente sua ameaça62. No contexto brasileiro, Roberto Schwarz afirma:
“Numa observação, que reflete o adensamento da malha mundial e contradiz as nossas ilusões de normalidade, o Autor aponta a marca da exceção permanente no dia-a-dia brasileiro. Com o perdão dos compatriotas que nos supõem no Primeiro Mundo, como não ver que o mutirão da casa própria não vai com a ordem da cidade moderna (embora na prática local vá muito bem), que o trabalho informal não vai com o regime da mercadoria, que o patrimonialismo não vai com a concorrência entre os capitais, e assim por diante? Há um inegável passo à frente no reconhecimento e na sistematização do contraste entre o nosso cotidiano e a norma supranacional, pela qual também nos pautamos.”63
A violência é sentida no ordenamento jurídico de diversas formas,
reafirmando o estado de exceção vigente na ordem legal e, este trabalho se
direciona para a violência dentro da instituição policial que decide a exceção,
provocando milhares de mortes e desaparecimentos dentro do sistema
democrático – ordem jurídica que permite medidas de exceção seletivas. A
violência praticada pelas figuras individuais dos policiais deve sua legitimidade
não a alguma característica particular, mas a função que desempenha,
fundamentada esta última na crença da validez da norma.
O monopólio do exercício de coerção do estado é originário de um suposto
consenso, no qual a lei funciona como a concretização linguística legítima do
poder político. Na transição para o estado moderno, as diversas formas de
dominação disciplinar foram dissolvidas de forma a se internalizar no sujeito um
dever de obediência, por meio da lei. Ocorre um deslocamento da legitimidade
estatal para a legalidade, o que transforma a lei no elemento de coesão e
dominação do indivíduo em relação ao Estado. Um novo sistema jurídico emerge,
carregado da legitimação necessária para impor a obediência com a utilização de
mecanismos coercitivos como a polícia, por exemplo. Esses novos aparatos
estatais não são criados para conter as relações de força e suspender os efeitos da
violência. Mas para regular e controlar relações específicas, desenvolvidas no
campo social e econômico. Ora, a violência institucional não é aplicada de forma
aleatória, ela é desenvolvida de forma seletiva, seja na forma repressiva, seja na
62 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Op. Cit. p. 34. 63 SCHWARZ, Roberto. Apud ARANTES, Paulo. Extinção. Op. Cit. p. 19-20.
68
desqualificação simbólica de extratos sociais, na figura das classes perigosas ou
outra adjetivação conveniente aos interesses dominantes. A violência estrutural é
um componente fundante da sociedade brasileira, na qual o conflito
institucionalizado se mostra a única forma conhecida de funcionamento do
Estado, por meio das estratégias de contenção e pacificação64. A construção do
inimigo e a ameaça de desordem são formas de legitimar a violência soberana.
“Talvez não deva surpreender o fato de que, quando a guerra constitui a base da
política, o inimigo se torna a função constitutiva da legitimidade. Assim é que o
inimigo deixa de ser concreto e localizável, tornando-se algo fugidio e
inapreensível.”65
O estado de exceção aparece nesse cenário político, na medida em que a
sua legalização é o ponto de indeterminação. A sua declaração está
intrinsecamente relacionada com a manutenção da ordem pública e a segurança,
evidenciando a relação muito próxima entre violência e direito. Essa relação
contém uma tensão latente, atingindo seu ápice nos momentos de crise política ou
social, e assim, a exceção permanente entra no cenário como medida necessária,
sem excluir necessariamente a violência dos mecanismos de sujeição. Pelo
contrário, o fator violento se faz presente nesses momentos de decisão do
soberano sobre a exceção, influenciando de forma determinante nos dispositivos
de contenção e sujeição.
Não é raro pensar a violência no campo do direito apenas na sua função
ordenadora das relações sociais. Mas é preciso enxergar além, de que forma o
próprio direito se utiliza da violência como um instrumento reiterado de
utilização. No Brasil, onde a necessidade de declarar a exceção é de fato
permanente, a violência se coloca na forma mais intensa, buscando ser associada
ao padrão de normalidade. A violência é constitutiva na normatividade, ao mesmo
tempo em que seu exercício é constituído, sua origem está na forma de
configuração das relações econômicas e sociais, e suas desigualdades. Diante da
violência como elemento fabricante de instituições, o governo do Rio de Janeiro
64 Nesse mesmo sentido se refere a ideia apresentada anteriormente, na qual o Estado não está interessado em instalar a ordem, mas em controlar a desordem. Muitas vezes, esta fora criada por ele próprio. 65 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Op. Cit. p. 57.
69
se torna o símbolo de uma política de Estado onde a segurança se torna técnica
permanente de governo sob a justificativa da autoconservação da ordem jurídica.
É importante ter consciência do papel da violência no direito, não somente
na sua forma aberta, mas como um perverso mecanismo de formação social. A
exceção não é simplesmente uma necessidade justificante do estado de
emergência, mas um elemento estruturante do próprio direito. Ela é uma estrutura
camuflada no ordenamento jurídico, no qual a violência cumpre um papel de
sustentação, de forma que, a zona de anomia correspondente a exceção funda a
relação entre violência e direito66. Por meio desse raciocínio, é possível identificar
como a captura do humano constitui um exemplo de incidência real da violência
no direito.
2.2
O homo sacer e o direito de morte
“Os pobres agora emprestam seus corpos ao espetáculo do horror, barbarizando
e sendo barbarizados.”
(Vera Malaguti)
Um dos conceitos limítrofes trabalhados por Agamben foi o homo sacer,
figura do direito romano arcaico, retomado pelo filósofo italiano como aquele que
é incluído na vida política pela sua matabilidade, aquele que é também o portador
do bando soberano. Esse paradigma é usado para repensar o atual estado do
homem político e o nexo entre violência e direito.
“Homo sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que “se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida”. Disso advém que um homem malvado ou impuro costuma ser chamado sacro”67.
A invocação do homo sacer envolve uma figura enigmática, um indivíduo
matável e insacrificável, um sujeito impensável do sistema jurídico
66 COSTA, Flavia. Entrevista com Giorgio Agamben. Op. Cit. p. 133. 67 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 74. Tradução na página 186.
70
contemporâneo. Se uma pessoa praticasse um delito sancionado com a pena sacer
esse, ela não tinha a menor esperança de conseguir qualquer tipo de redenção pelo
seu ato, era excluído da comunidade política, podendo ser morto por quem assim
desejasse, sem que esse último praticasse qualquer tipo de crime. Era uma pena
especial, a mais grave, constituindo o nível mais elevado de perseguição e
humilhação pública, pois o praticante do delito se tornava uma pessoa maldita,
para os homens e para os deuses. Por isso, nem o direito humano o condenava,
nem o direito religioso o considerava digno de sacrifício. Quando os fatos fossem
de conhecimento público e incontroversos, o reconhecimento do criminoso como
um homo sacer por uma autoridade pública era simplesmente declaratório.
Quando declarada sua condição de homo sacer, estava automaticamente decidida
sua condução a morte. A partir disso, a primeira contradição aparece, uma
vez que, se o homo sacer é um indivíduo que qualquer um pode matar sem ser
condenado, ou sequer ser julgado, então, pela mesma lógica, ele não deveria ser
levado a morte pelos ritos convencionais, pois não se constituía em sacrifício.
Então, seu assassinato restava impune. É um conceito-limite entre o direito dos
homens e o direito divino.
Um sistema como tal evidencia as ambiguidades da sacralidade da vida, o
que talvez demonstre as permanências dessa mentalidade na estrutura política
contemporânea. Nesse sentido, “a moderna concepção do princípio sagrado da
vida não seria o mero reconhecimento que toda vida deve ser preservada: ela
permite paradoxalmente a nova inscrição da vida como meio pelo qual se conduz
a política, sem deixar de retroalimentar a ambivalência do sacro”68. A
ambivalência do sacro sempre pôde ser notada ao longo da história. Para
Agamben, a palavra sacer é um exemplo, seu significado pode ser um estado de
afastamento de qualquer relação humana, assim como também pode significar
sacrare, ou declarar sacer, aquele que comete um delito69.
A estrutura da sacratio - substantivo para sacer - apresenta uma dupla
exceção, na medida em que o homo sacer está fora do âmbito religioso, da mesma
forma que a pessoa que matá-lo não sofrerá nenhum tipo de condenação, não terá
68 NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de
Giorgio Agamben. Tese de doutorado em filosofia. Orientador: Oswaldo Giacoia Júnior. UNICAMP, 2010. p. 131. 69 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 75.
71
cometido um homicídio, ou seja, ele escapa da sacralidade sem passar pela
jurisdição humana. Essa relação de exclusão e captura corresponde a um espaço
no qual a lei aplica-se desaplicando-se. A particularidade da morte do homo sacer
se encontra no fato de sua vida ser absolutamente matável, excluída de qualquer
tipo de julgamento no direito humano. Ele é objeto de uma violência duplamente
excluída, da esfera do direito e da esfera do sacrifício70. A dimensão da vida nua,
que constitui o referente da violência soberana, aponta na direção da sacralidade
da vida emancipada da ideologia sacrificial prescrita pelo rito.
A questão está nesta vida sacra do indivíduo exposto a morte. Essa vida
nua corresponde ao elemento político originário. A esfera-limite do agir humano
encontra-se na relação de exceção, ou seja, quando a decisão soberana suspende a
lei, ela implica na vida nua. Como o espaço político da soberania se constitui no
homo sacer, nele é configurada uma dupla exceção, uma zona de indiferença entre
sacrifício e homicídio. “Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer
homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e inscrificável, é a
vida que foi capturada nesta esfera”71. O soberano e o homo sacer se aproximam,
na medida em que são figuras simétricas em sentidos contrapostos. Quem mata o
homo sacer simplesmente age na excepcionalidade, não comete nem um
homicídio nem um sacrifício. Soberano é aquele em razão do qual todos os
homens são sacrificáveis e, homo sacer é aquele em relação ao qual todos os
homens agem como soberanos. A relação entre essas duas figuras demonstra a
formulação política original, o vínculo soberano na violência soberana, que se
funda sobre a inclusão exclusiva da vida nua, é um poder sem limites.
A política clássica diferenciava a zoé do bíos, a vida natural da vida
política, o homem como vivente e o homem como sujeito político72. Inicialmente
70 De acordo com Agamben, o homo sacer corresponde ao bando soberano “Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele – não é classificável nem como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio.” AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 84. 71 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p.85. 72 “As Agamben observes, for the Greeks the term zoè designated life in the sense of the simple fact of living common to all living beings (animals, men, or gods), and for this reason it tellingly admitted of no plural form. Zoè was then life in its most general sense, a sense every bit as general as being. The second term, bios, referred to the forms our lives take – to the form or
72
o conceito de vida nua foi descrito por Agamben como um substitutivo para a
palavra grega zoé, como a simples vida natural. Entretanto, nos dias atuais, não
existe mais essa distinção. Em sua obra, a vida nua é vista no estado de exceção
permanente e tornada a forma de vida dominante e normal. Mas para fazer uma
análise completa deste conceito, tem que relacioná-lo com a biopolítica, no
sentido da vida ter ingressado nos cálculos de poder por meio de múltiplos modos
de controle. Ela se tornou o fato politicamente decisivo. Este é o ponto de
interseção entre as democracias contemporâneas e os Estados totalitários73.
O processo atual do estado de exceção permanente generaliza a indistinção
entre o espaço da vida nua e o espaço da vida comum. O ponto em questão aqui
seria a conversão da biopolítica em tanatopolítica74, caracterizada principalmente
pela condição cada vez mais permanente de ser exposto à morte. O homem na
atualidade é exposto a violência constantemente, de forma sem precedentes. E o
pior, sem saber sê-lo. A biopolítica evoluiu a tal ponto de se difundir
potencialmente como direito de vida, para o direito de morte sobre o tecido social.
O poder soberano decide em que ponto uma vida cessa de ser politicamente
relevante, ele decide sobre o valor e o desvalor da vida enquanto tal. A linha
delimitadora do ponto de decisão sobre a vida torna-se confusa e essa decisão
torna-se a decisão sobre a morte. A linha se torna cada vez mais difusa pela vida
social criando novas credenciais aptas a exercer o poder de decisão sobre a morte,
onde quer que exista um homem sujeito ao poder de polícia. Da mesma forma
também aparecem novas fotografias de homo sacer, vítimas potenciais da morte
incondicionada75.
“Toda sociedade fixa este limite, toda sociedade – mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus ‘homens sacros’. É possível, aliás, que este limite, do qual depende a politização e a exceptio da vida natural na ordem jurídica estatal não tenha feito mais do que alargar-se na história do Ocidente e passe hoje – no
way of living proper to an individual or a group. In addition to the undifferentiated fact of a thing being alive – zoè – there are specific ways of living – bios. This distinction corresponded to a fundamental division in the Greek’s political landscape. For them, simple, natural life (zoè) was not the affair of the city (polis), but instead of the home (oikos), while bios was the life that concerned the polis.” DE LA DURANTAYE, Leland. Giorgio Agamben: A critical introduction. Op. Cit. p. 205. 73 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 17. 74 O termo tanatopolítica, criado por Agamben, tem como prefixo a derivação de Tânatos, o personagem da mitologia grega que personifica a morte. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O
poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 142. 75 NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de
Giorgio Agamben. Op. Cit. p. 145.
73
novo horizonte biopolítico dos estados de soberania nacional – necessariamente ao interior de toda vida humana e de todo cidadão. A vida nua não está mais confinada a um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo biológico de cada ser vivente.”76
Se é verdade que a ordem contemporânea é aquela de uma vida
insacrificável, executada em proporções inauditas, em zonas cada vez mais
obscuras, sem existir mais uma figura predeterminável do homem sacro, talvez
seja porque, na verdade hoje uma grande parte do segmento social seja
virtualmente homines sacri. Por isso, os conceitos de vida nua e homo sacer
representam chaves interpretativas para compreensão dos paradoxos
contemporâneos. Nessa linha, se encontra o modelo de segurança pública de “lei e
ordem”, com elevado índice de letalidade nas operações policiais realizadas,
decidindo quais vidas merecem viver e quais não.
Quando Agamben opõe a figura do homo sacer à soberania, ele coloca a
dimensão da vida nua como fundacional da violência soberana. Na modernidade,
a sacralidade da vida está totalmente separada da esfera do sacrifício. Juntamente
com o processo pelo qual a exceção vira a regra, a vida nua que originalmente se
situava às margens da vida política, aos poucos começa a coincidir com a vida
política, de maneira que, exclusão e inclusão, bíos e zoé tornam-se indistinguíveis,
de forma que a vida nua se torna sujeito e objeto do poder e, o estado de exceção
se torna a forma subterrânea de todo o sistema político. Ou seja, se no sistema
disciplinador o indivíduo era tratado como um objeto, com o nascimento da
democracia moderna, o homem se coloca como sujeito do processo político. Esses
dois processos convergem na direção da vida nua. A partir disso, desencadeia-se o
reconhecimento dos direitos formais, ao mesmo tempo em que surge o paradoxo
do homo sacer, a vida que não pode ser sacrificada pois não possui valor, mas
pode ser eliminada. Esta é a chamada “cidadania negativa” utilizada por Nilo
Batista para se referir aos indivíduos destituídos de direitos, as vidas matáveis
pela atual política de contenção do estado. “O desafio é compreender por que a
democracia, ao triunfar, se mostra incapaz de preservar zoé, para cuja felicidade se
dirigiam todos os seus esforços. A decadência da democracia moderna e sua
convergência gradual ao totalitarismo deve-se a esta aporia”77. O sistema político
76 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 135. 77 BATISTA, Vera Malaguti. Vida Nua e Soberania. Op. Cit. p. 387.
74
atual mantém o mesmo modelo de marginalização e opressão dos setores
vulneráveis.
Sob outra perspectiva, a figura do homo sacer é aproximada do homem-
lobo78, correspondente a ideia de exclusão do malfeitor para fora da comunidade.
O banido poderia ser morto sem cometer homicídio. É um conceito-limite, meio-
homem, meio-lobo, figura do inconsciente coletivo, habitante da floresta, banido
da comunidade. Utilizando-se da figura do lobo, junto com o homo sacer,
Agamben faz uma releitura sobre o estado de natureza no contrato social de
Hobbes. Como o estado de natureza não existe na época real, ele é na verdade um
princípio interno da cidade. Quando Hobbes funda a soberania por meio da
remissão ao mito do homem como lobo do homem, ele se refere à indistinção
entre o humano e o ferino, ou seja, o banido, o homo sacer. “O estado de natureza
hobbesiano não é uma condição pré-jurídica totalmente indiferente ao direito da
cidade, mas a exceção e o limiar que o constitui e o habita; ele não é tanto uma
guerra de todos contra todos, quanto mais exatamente, uma condição que cada um
é para o outro vida nua e homo sacer”. A lupificação do homem e a humanização
do lobo é possível no estado de exceção. Ele deixa de ser a guerra de todos contra
todos e passa a ser a situação dentro da qual todos são, uns para os outros, vida
nua e homo sacer. Ou seja, a situação de exceção como forma constituidora do
estado de natureza. Segundo Agamben em Hobbes, o fundamento do poder não
está na cessão espontânea de poder ao soberano, mas na verdade, na conservação
pelo soberano de seu direito natural de poder fazer qualquer coisa sobre qualquer
um, é o direito de punir. A violência então não é baseada no pacto, mas na
inclusão exclusiva da vida nua no Estado79.
A cidade moderna é fundada sob a ação contínua do estado de exceção
sobre o estado social, onde a vida do cidadão seria a vida nua do homo sacer, em
uma zona de indistinção entre homem e fera, natureza e cultura. Nesse sistema, o
ban80 seria a ligação entre vida nua e soberano, é a relação entre os dois polos da
exceção soberana, ao contrário da clássica interpretação do contrato social como
ato político caracterizador da passagem do estado de natureza para o Estado. A
78 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 104. 79 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 106. 80 O ban seria o poder de remição de algo a si mesmo, exclusão e inclusão, de estar livre e capturado.
75
mesma relação se encontra hoje nos espaços púbicos contemporâneos. O nómos
soberano determina as relações políticas e as espacializações. É a vida exercendo
seu papel como fator nos cálculos de poder - a biopolítica, segundo Agamben81.
Essa estrutura de bando está inserida nas relações políticas e nos espaços
públicos atuais. “Mais íntimo que toda interioridade e mais externo que toda
estraneidade é, na cidade, o banimento da vida sacra”82. O bando é o nómos
soberano que determina toda territorialização. E se todos são homines sacri, isso
só é possível devido a presença da relação de bando desde a origem do poder
soberano.
O campo de concentração se coloca como um paradigma pela lógica da
matabilidade do humano em proporção inaudita. Nesse espaço se encontra um
caso flagrante de homo sacer, pois não existia ali a ideia de sacrifício, era apenas a
matabilidade do corpo pela simples condição de ser judeu. “A verdade difícil de
ser aceita pelas próprias vítimas, mas que mesmo assim devemos ter a coragem de
não cobrir com véus sacrificiais, é que os hebreus não foram exterminados no
curso de um longo e gigantesco holocausto, mas literalmente, como Hitler havia
anunciado, ‘como piolhos’, ou seja, como vida nua”83. Essas pessoas eram
consideradas como “vidas indignas de serem vividas”84, vidas humanas que
perderam totalmente a qualidade de bem jurídico e não eram mais politicamente
relevantes, a tal ponto que a sua continuidade perdeu qualquer valor, portanto
podem ser impunemente eliminadas. Para essas pessoas, a vida se encontra no
81 BATISTA, Vera Malaguti. Vida Nua e Soberania. Op. Cit. p. 389. 82 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 110. 83 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 113. 84 Essa expressão foi criada por Karl Binding e Alfred Hoche em 1920, quando buscavam explicar a impunibilidade do suicídio frente a possibilidade de eutanásia. Eles afirmavam ser a eutanásia uma expressão da soberania do homem sobre a própria existência. Diante dessa soberania do homem sobre si próprio, deriva a necessidade de autorizar a eliminação da vida indigna de ser vivida. Essa foi a primeira vez que se utilizou a expressão no cenário jurídico europeu, e Agamben considera que mesmo se referindo a eutanásia, ela não pode ser menosprezada pois designa pela primeira vez a vida que não merece ser vivida e a impunidade do aniquilamento dessa vida. A partir disso, pode ser traçado um paralelo entre a soberania do vivente sobre si mesmo com a decisão soberana no estado de exceção. Aqui surge o exercício do poder soberano sobre a vida nua, ainda que sob o aparente discursode um problema humanitário. Na eutanásia pode ocorrer a separação entre a zoé e a bíos para se isolar a vida nua – matável. Mas na biopolítica moderna isso corresponde a decisão soberana sobre a vida matável, o que assinala a transição da biopolítica para a tanatopolítica. “A ‘vida indigna de ser vivida’ não é, com toda evidência, um conceito ético, que concerne às expectativas e legítimos desejos do indivíduo: é sobretudo, um conceito político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida matável e insacrificável do homo sacer, sobre a qual se baseia o poder soberano”. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 137.
76
limiar de indiferença, elas correspondem a vida nua do homo sacer. Não seria
errado afirmar que, a medida em que os habitantes foram alijados de qualquer
estatuto jurídico e reduzidos a vida nua, o campo resta como uma localização
deslocante do mais absoluto espaço biopolítico, no qual o poder se exerce em toda
sua potência, sem qualquer mediação, lugar que confunde o homo sacer ao
próprio cidadão.
“A civilização moderna não foi a condição suficiente do Holocausto; foi, no entanto, com toda a certeza, sua condição necessária. Sem ela, o Holocausto seria impensável. Foi o mundo racional da civilização moderna que tornou viável o Holocausto. O assassinato em massa dos judeus da Europa pelos nazistas não foi apenas realização tecnológica de uma sociedade industrial, mas também sucesso de organização de uma sociedade burocrática. Imaginem simplesmente o que foi necessário para fazer do Holocausto um genocídio único entre os inúmeros morticínios que marcaram o avanço histórico da espécie humana”85.
A “fabricação de cadáveres” que cercou as discussões sobre Auschwitz é
entendida como resultado de um processo em cadeia de eliminação populacional.
A expressão não denomina a morte mas a produção de cadáveres. Eram
indivíduos sem morte, cuja execução foi executada em série “o mundo moderno
conseguiu envilecer aquilo que talvez seja mais difícil envilecer no mundo, pois é
algo que traz em si, como na sua textura, um tipo especial de dignidade”86. O
ponto central é a quantidade de mortos, o que só demonstra o aviltamento do
processo, a perda de dignidade da morte. É essa mesma quantidade que encontra-
se hoje no número de mortos divulgados pela grande mídia como resultado das
políticas de segurança pública, que promovem operações policiais nas favelas,
onde assistimos cotidianamente a normalização da barbárie. A morte se tornou
“trivial, burocrática e cotidiana” como notícia na grande mídia e como rotina para
agentes policiais.
Agamben afirma que o paradigma do campo está virtualmente presente
hoje em qualquer estrutura na qual vida nua e norma entram no limiar de
indistinção, não importando a denominação dada ou a topografia específica87. A
85
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 32. Grifos do autor. 86 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Homo Sacer III. Op. Cit. p. 79. 87 Para comprovar a característica de localidade deslocante do campo, Agamben cita exemplos recentes onde a lei está suspensa, como o “os Estádio de Bari, onde em 1991 a polícia italiana aglomerou provisoriamente os imigrantes clandestinos albaneses antes de reexpedi-los ao seu país,quanto o velódromo de inverno no qual as autoridades de Vichy recolheram os hebreus
77
experiência de Auschwitz não foi um fato isolado na história política ocidental, o
que não significa que exista hoje um local denominado campo de concentração,
fato que seria muito difícil para um sistema que pretenda impor uma dominação
cotidiana. Mas quando Agamben retoma a experiência do campo, sua intenção é
manter viva na memória coletiva o que foi aquela experiência, seus efeitos e sua
função. O campo é qualquer local aparentemente anódino onde o ordenamento
normal é suspenso. Nesse sentido, encontra-se a situação da população moradora
das favelas cariocas. Os moradores das periferias urbanas são historicamente
criminalizados e abandonados pelas políticas do Estado. Nessa forma de
organização, a exceção se coloca como estrutura por meio da qual o direito se
refere a vida com a sua suspensão, na qual a relação de bando corresponde a
articulação da vida com o ordenamento por meio dessa figura limítrofe – o banido
ou o bandido. “A relação de exceção é uma relação de bando. Aquele que foi
banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas
é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida
e direito, externo e interno, se confundem”88.
Os moradores das favelas são vistos em sua generalidade como bandidos,
em razão de uma minoria da população integrante de grupos armados. Essa
estigmatização ocorre duplamente, seja pela atuação policial, que viola direitos
cotidianamente nesses territórios, seja pelas classes sociais mais ricas, que
destinam a eles uma desconfiança generalizada, obrigando “os moradores das
favelas a um esforço prévio de demonstrar ser pessoa de bem”89. O estigma sobre
as favelas tende a naturalizar esses espaços como campos de concentração. Seus
moradores são formalmente portadores de direitos e deveres jurídicos, mas em
contraponto, o Estado se mostra ausente como garantidor de políticas públicas.
Essa situação paradoxal permite traçar um paralelo com o continuum gueto-prisão
da sociedade norte-americana, estudado por Wacquant, como reflexo do
antes de entregá-los aos alemães”. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a
vida nua I. Op. Cit. p. 170. 88 A expressão banido ou bandido, utilizada nos dias de hoje, tem sua origem no bando. Corresponde a figura colocada fora da jurisdição e ao mesmo tempo abandonado por ela. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 35. 89 MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. Criminalidade Violenta: por uma nova
perspectiva de análise. In Dossiê Cidadania e Violência. Revista de Sociologia e Política nº 13: 115-124 Nov.1999. p. 14.
78
fortalecimento do braço penal do estado, concluindo pela mesma relação de
complementaridade entre favela-prisão na realidade brasileira.
A polícia, ao contrário do pensamento hegemônico, não é um poder para
fins meramente administrativos de executar medidas, mas talvez seja o lugar
virtual no qual violência e direito estão mais próximos como forças constitutivas,
a ponto de incorporar a soberania e o poder de decisão. Isto porque, se o soberano
é aquele ponto de indistinção entre violência e direito, decretando a exceção e
suspendendo a validade do direito, a polícia está sempre atuando no mesmo
estado de excepcionalidade. Segundo Agamben “não se compreende a biopolítica
nacional socialista (e, com ela, boa parte da política moderna, mesmo fora do
terceiro Reich), se não se entende que ela implica o desaparecimento da distinção
entre os dois termos: a polícia torna-se então política, e a tutela da vida coincide
com a luta contra o inimigo”90. A racionalidade de “ordem pública” e
“segurança”, na qual é baseada a decisão do policial caso a caso, define uma área
de indistinção entre violência e direito, a qual é simétrica a soberania91.
Para além da questão da soberania, a investidura do poder de decisão na
figura da autoridade policial provoca a necessidade de criminalização do inimigo.
O processo ocorre primeiro excluindo o inimigo da comunidade civil e rotulando-
o de criminoso, em um segundo momento, torna-se possível e lícito eliminar o
inimigo por uma operação policial. Esse tipo de operação normalmente, não é
obrigada a respeitar nenhuma regra jurídica e não faz nenhuma distinção entre a
sociedade civil e os ditos criminosos92, podendo qualquer um ser vítima dessa
“guerra”. Os procedimentos de investigação são estendidos a todos – cidadãos e
suspeitos. É o que Agamben chama de retorno a forma mais arcaica das regras de
beligerância. E assim, a soberania se desloca gradualmente para a sua face mais
sombria - o direito de polícia. A segurança se converte em técnica regular de
governo para autoconservação do sistema legal, que deve ser assegurado a
qualquer custo, nem que seja preciso sacrificar direitos dos cidadãos e sua
liberdade.
90 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua I. Op. Cit. p. 143. 91 AGAMBEN, Giorgio. Sovereign Police. In: Means without end – Notes on politics. Minneapolis: University of Minessota Press, 2000. p. 103. 92 CORTELESSA, Andrea. Um filósofo e a política de segurança – Entrevista com Giorgio
Agamben. Revista Sopro – Panfleto político-cultural, nº 45, p.7, fevereiro de 2011. Tradução Elysa Tomazi.
79
O direito é considerado uma violência autorizada, ainda que essa força
esteja contida em seu interior. A polícia é fundada no momento em que o Estado
não consegue mais garantir seus fins por meio do direito, então precisa de um
órgão executor de suas medidas e mantenedor da ordem pública. Assim, o Estado
cria uma instituição na zona cinzenta entre direito e fato, ela é a força instituinte e
mantenedora do direito. Ao se inserir a biopolítica nesse contexto, ela se
transforma em tanatopolítica e, com o racismo, o biopoder estabelece a
categorização de certos grupos populacionais e assim estabelece hierarquias,
reintroduzindo no sistema do “fazer viver” o princípio da guerra. “As cesuras
biopolíticas são, pois, essencialmente móveis e isolam, de cada vez, no continuum
da vida, uma zona ulterior, que corresponde a um processo de degradação cada
vez mais acentuado” 93. A crítica que se faz é a seletividade da atuação policial,
como acontece nos dias atuais nas intervenções em áreas estigmatizadas das
periferias urbanas. É preciso violar os direitos de alguns para garantir a segurança
de outros.
É importante destacar neste ponto que, quando Agamben resgata a figura
do homo sacer e a utiliza como um paradigma, sua intenção é utilizá-la como
chave de leitura para entender a biopolítica contemporânea. A vida nua não é uma
simples vida natural retirada da natureza, mas uma figura subjugada às relações de
poder prolongadas ao longo da história e localiza essa mesma figura na cena
contemporânea. Na condição de uma construção histórica, trata-se de uma
(re)produção nos dias atuais, a qual deve ser pensada e desarticulada. Os
paradigmas do campo e do homo sacer não são um passado distante, mas a
possibilidade de emergência como estratégia de contenção social.
O Estado é uma emanação direta das relações sociais, ao mesmo tempo em
que se coloca como fiador dessas mesmas relações. A função de dominação dos
conflitos é subterrânea ao discurso da neutralidade da ação estatal e da igualdade
formal. Então, para manter a aparência democrática de submissão às regras
constitucionais e controlador da desordem, ocorre a pendularidade entre o Estado
93 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. Homo Sacer III. Op. Cit. p. 90. O racismo é usado como ideologia para hierarquizar categorias de pessoas e justificar grupos classificados como inferiores. No regime nazista dos campos de concentração vigorava critérios biológicos que pregavam a supremacia da raça ariana. Hoje esse racismo é apontado sobre negros e classes sociais mais pobres, onde ocorre a mesma categorização para naturalizar a morte e, consequentemente a “fabricação de cadáveres”.
80
de Direito e o Estado de Polícia. Se o direito é o campo das lutas ideológico-
políticas, é na esfera do direito penal e processual penal que localizamos de forma
bem clara a ambivalência. Pois é no campo penal que se encontra mais nítida as
estratégias de contenção dos movimentos sociais, no qual se percebe o tratamento
diferenciado para as ditas classes perigosas “o tratamento diferenciado de seres
humanos privados do caráter de pessoas (inimigos da sociedade) é próprio do
Estado absoluto”94. O discurso oficial declara como justificativa para o aumento
da criminalidade a falta de eficiência do poder punitivo e suas instituições
repressoras, fomentando um anseio pelo incremento do poder punitivo, por meio
de políticas de segurança genocidas, recrudescimento das leis penais e
processuais, aumento exponencial da população carcerária.
“O terror é a realização da lei do movimento. O seu principal objetivo é tornar possível à força da natureza ou da história propagar-se livremente por toda a humanidade sem o estorvo de qualquer ação humana espontânea. Como tal, o terror procura “estabilizar” os homens a fim de liberar as forças da natureza ou da história. Esse movimento seleciona os inimigos da humanidade contra os quais se desencadeia o terror, e não pode permitir que qualquer ação livre, de oposição ou de simpatia, interfira com a eliminação do “inimigo objetivo” da História ou da Natureza, da classe ou da raça.”95
O poder punitivo sempre rotulou os indivíduos de determinado grupo,
variando ao longo da história, dispensando-lhes um tratamento diferenciado por
não considerarem-nos pessoas, sendo considerados apenas como sujeitos
perigosos. Esses grupos já foram diversos, como os negros, os judeus, hoje eles
são identificados na figura dos imigrantes, da população pobre moradora das
periferias urbanas. Sobre tais sujeitos incide o poder punitivo em toda sua
potência. Sob a ótica seletista e estigmatizante, determinados grupos são taxados
de inimigos e assim justifica-se a negação de garantias fundamentais da pessoa
humana em face da intervenção penal do Estado, sob o argumento de serem “não
pessoas”.
O inimigo está sujeito a medidas de segurança, sem poder contestar
direitos constitucionais, pois ele foi despersonificado, é o homo sacer moderno.
Ele é um sujeito perigoso que deve ser neutralizado. A ele é destinado o
tratamento do Estado de polícia, pois cabe justamente ao poder de polícia a
manutenção da ordem. No processo de expansão do poder punitivo, o Estado 94 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Op. Cit. p.13. 95 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Op. Cit. p. 518.
81
policial estenderá a lógica da excepcionalidade, já que a lógica da exceção não
conhece limites, escolhendo seus inimigos entre os “indesejáveis” da vez. A
eliminação do inimigo é carregada do sentido de neutralizar um perigo futuro,
representado por uma “não pessoa”. Legitimado pelo direito, a polícia tem
autorização de “atirar para matar”. Exatamente esse processo de desqualificação
da pessoa é empregado nas práticas diárias das polícias do Rio de Janeiro no
extermínio maciço dos jovens pobres moradores de favelas. Esses seres humanos,
vítimas da letalidade policial, não são mais considerados pessoas, sua morte não é
vista como um sacrifício, por isso não existe punição para os executores, são
indivíduos somente matáveis. E assim, mantém-se a mesma política de contenção
social em nome de interesses privados96.
A questão do inimigo como não pessoa e o processo de desqualificação do
outro é percebida claramente nas falas de autoridades públicas ligadas a
segurança, utilizando termos como vermes, animais, insetos para se referir aos
sujeitos que precisam ser eliminados. Após operação da polícia militar na vila
Cruzeiro, no Rio de Janeiro, quando 14 pessoas foram mortas, um comandante da
polícia afirmou: “A PM é o melhor inseticida contra a dengue. Conhece aquele
produto, SBP? Tem o SBPM. Não fica mosquito nenhum de pé. A PM é o melhor
inseticida social”97. A partir do momento que esses indivíduos são desqualificados
eles se tornam matáveis, sem constituir em crime a sua morte, então se manifesta
o direito de deixar morrer a vida indigna de ser vivida. O estado de exceção
realiza a operação jurídica de eliminar justamente o estatuto jurídico do sujeito,
provocando a suspensão dessa vida, já que o indivíduo não é mais composto por
seu elemento biológico e político, é apenas vida nua. Esse espaço anômico é
extremamente favorável para a desconsideração da pessoa, resultando no homo
sacer, então o sujeito não precisa mais praticar um crime, ele próprio é alvo do
poder punitivo, o seu perfil já é considerado crime98. O controle social ainda opera
96 BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de
Janeiro. Op. Cit. p.31. Nesse sentido afirma Vera Malaguti ao estudar os jovens pobres do Rio de Janeiro “O ponto em torno do qual gira o problema da continuidade da repressão aos jovens pobres no Rio reside, então, na estratégia imutável da defesa material e simbólica da desigualdade por parte dos grupos no poder, que encontram o consenso interessado das classes médias. Criminalizar os pobres é um instrumento indispensável porque garante materialmente a sua posição subalterna no mercado de trabalho e a sua crescente exclusão, disciplinando-os, pondo-os em guetos e, quando necessário, destruindo-os”. 97 Fonte: O Globo (Acesso em 16/04/2008). 98 WACQUANT, Loic. Rumo a militarização da marginalização urbana. Op. Cit. p. 49.
82
sob os moldes colonialistas de contenção, caracterizado por altos índices de
violência à margem da legalidade, no qual poder punitivo público e vingança
privada se confundem99.
As altas taxas de letalidade da polícia são justificadas pela situação de
“necessidade”, com base nos valores da segurança e da liberdade. No entanto, a
questão que se coloca é o juízo subjetivo da situação fática que esses valores
demandam. Ou seja, a questão da necessidade é decidida por uma avaliação
político moral. Da mesma forma, a escolha da figura do inimigo é seletiva, então
ela também se situa no campo da política. Relacionado diretamente a essa política
está o tema da gestão da desordem. O objetivo de manter a ordem se tornou
sinônimo de segurança pública, pois é o poder de polícia que intervém na
sociedade para limitar as liberdades individuais de forma a se adequarem a ideia
de ordem pública. Mas o que se percebe é que as políticas implantadas muitas
vezes são produtoras da desordem, e por meio de suas intervenções legitimar a sua
atuação e gerir a desordem produzidas por elas mesmas. Como afirma Agamben,
como não suspeitar que um sistema que funciona na base da urgência não tenha
interesse em mantê-lo?
Na esteira desse pensamento, o direito tem um papel fundamental, pois a
construção da ordem é feita estritamente no campo jurídico, no qual se encontra as
ideias abstratas de “interesse geral” e “dano social”, muito empregada no discurso
oficial da segurança. Esses conceitos muitas vezes são preenchidos de acordo
com interesses privados e os conflitos sociais tratados com uma política de
maquiagem, no qual as autoridades estão preocupadas somente em gerir a
desordem. Aos que se voltam contra esse funcionamento, o Estado direciona seu
braço repressivo com o objetivo da neutralização desses sujeitos por meio de um
sistema punitivo cada vez mais violento100.
“O controle social baseia-se no combate ao inimigo, só que como este é invisível, a repressão se volta contra o extrato social vulnerável, exatamente onde se
99 A situação conflitiva é muito bem refletida por Eduardo Galeano: “Num mundo que prefere a segurança á justiça. Há cada vez mais gente que aplaude o sacrifício da justiça no altar da segurança. Nas ruas das cidades são celebradas as cerimônias. Cada vez que um delinquente cai varado de balas, a sociedade sente um alívio na doença que a atormenta”. GALEANO, Eduardo.
De pernas pro ar - a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre, L&PM, 1999. p. 81. 100 SULOCKI, Victoria-Amalia. Museu de novidades: discursos da ideologia da defesa
social nas decisões judiciais neste início de século XXI. Tese de Doutorado. Orientador: João Ricardo W. Dornelles. PUC, 2010. p. 108.
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materializa a “metáfora da guerra”, adotando como meios de legitimação procedimentos de exclusão, extermínio e desconstrução do sujeito diferente como cidadão titular de direitos - os mesmos garantidos as elites. É a volta do tratamento da questão social como uma “questão de polícia”. No processo de esvaziamento do discurso pró-direitos humanos, estes passam a ser vistos como incompatíveis com uma conjuntura de guerra (a qual a sociedade brasileira acredita viver), juntamente com o processo de desumanização do transgressor através da sua estigmatização, justificando dessa forma a supressão de suas garantias”.101
O etiquetamento de jovens sob o estigma de suspeitos alimenta o discurso
oficial de necessidade do aumento da vigilância sobre as camadas mais pobres.
Esses indivíduos suspeitos passam então a serem denominados como “elementos”
por autoridades policiais, completando assim o quadro de sua desumanização.
Como instituição complementar do sistema de contenção estão as prisões, que
atualmente encontram-se superlotadas e com níveis altíssimos de violência. A
ideologia do eficientismo penal é caracterizada pela lógica ressocializante de seu
sistema prisional. Entretanto, ao importarmos essa ideologia ela adquire
características genocidas de contenção.
E por fim a este tópico do trabalho, assumir a possibilidade de mortalidade
do corpo dos sujeitos sem que se cometa homicídio, por meio da figura do homo
sacer, permite fazer a correspondência entre o estatuto jurídico do homo sacer
(sagrado porém matável) com a ideia contemporânea de cidadania. Tal correlação
é apreciável por meio da equivalência indiciária que fica patente na prática
policial das instituições soberanas. A política de segurança pública de confronto
com os traficantes de drogas no Rio de Janeiro demonstra a dialética entre o
Estado Democrático de Direito e Estado totalitário, pois esta política autoritária
repressiva promove a inclusão excludente de um grupo de pessoas quando estes
são cerceados de assumir suas prerrogativas políticas enquanto cidadãos,
implementando ao invés uma tanatopolítica.
Os aspectos contemporâneos mencionados são uma fonte de comparação
com a teoria de Agamben para demonstrar como o homo sacer do direito romano
está presente no tempo atual na figura do inimigo visado pelas políticas de
segurança pública. O homo sacer contemporâneo possui diferentes fotografias, ele
101 LOPES, Juliana Moreira. O direito penal do inimigo como justificativa para o aumento
nos índices de autos de resistência no Rio de Janeiro. Monografia de conclusão da graduação em Direito. Orientadora: Victoria-Amália de Barros C. G. Sulocki. PUC, 2009. p. 43.
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pode ser o imigrante, o negro, o traficante de drogas, ou qualquer outro
estereótipo que interessar ao poder constituído controlar. O inimigo se encaixa nos
rótulos do sujeito perigoso morador da favela. As estratégias de contenção social
sempre estiveram presentes ao longo da história, variando de acordo com o
interesse dominante. A seletividade da atuação policial se manifesta em áreas
vulneráveis por meio do discurso de que sob determinadas classes sociais a
legalidade das intervenções não precisa estar presente da mesma forma. Associado
com a figura do sujeito perigoso está o paradigma do campo relacionado com as
favelas. Esses espaços são zonas de exceção absoluta, onde predomina a vida nua
diante do poder soberano. Estudando a obra de Agamben, Leland de La Durantaye
afirma “(...) nós devemos focar que para Agamben a situação histórica presente
mostra sinais dessa figura excepcional retornando em uma escala global. Em
resumo, o homo sacer de Agamben é uma figura do passado remoto que trás ao
foco um elemento perturbador no presente político – e aponta para um possível
futuro”102.
102 Tradução livre. “(…) what we should focus on is that for Agamben the present historical situation indeed shows signs of this exceptional figure returning on a global scale. In short. Agamben’s homo sacer is a figure from the remote past who brings into a focus a disturbing element in our political present – and points toward a possible future”. DE LA DURANTAYE, Leland. Giorgio Agamben: A critical introduction. Op. Cit. p. 211.