1994-amricojacomino

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1916: O VIOLÃO BRASILEIRO JÁ É UMA ARTE Paulo CASTAGNA * e Gilson ANTUNES ** CASTAGNA, Paulo e ANTUNES, Gilson. 1916: o violão brasileiro já é uma arte. Cul- tura Vozes, São Paulo, ano 88, n.1, p.37-51, jan./fev. 1994. RESUMO. Um dos aspectos mais interessantes da música brasileira no século XX, é a evolução de um violão despretensioso e marginalizado, para o instrumento mais utilizado na música erudita ou popular, em qualquer classe social, como acompanhador ou solista. Esse fenômeno ocorreu com uma rapidez tão grande, que os movimentos anteriores foram sendo esquecidos, à medida que se alcançava uma nova etapa. Hoje, o maior desafio que se apresenta ao violão brasileiro é a pesquisa e organização do seu repertório, o levantamento dos principais violonistas e a recuperação de sua história. 1916 é o ano da primeira grande conquista do instrumento. O nome em destaque é o de Américo Jacomino. 1. Instrumento vulgar e sem valor No início do século, quando começava a se desenvolver, no Brasil, a música para violão, o instrumento ainda era considerado “próprio somente para modinhas e serenatas ao luar”, 1 ou “vulgar e, por isso, sem valor”. 2 Em maio de 1916, o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, ainda se referia ao violão desta maneira: Debalde os cultivadores desse instrumento procuram fazê-lo as- cender aos círculos onde a arte paira. Tem sido um esforço vão o que se desenvolve nesse sentido. O violão não tem ido além de simples acompa- nhador de modinhas. E quando algum virtuose quer tirar efeitos mais elevados na arte dos sons, jamais consegue o objetivo desejado ou mes- mo resultado apreciável. A arte, no violão, não passa por isso, até agora, do seu aspecto puramente pitoresco”. 3 Poucas semanas depois, o periódico continuava a insistir na “precariedade ar- tística” do violão, assim como da guitarra portuguesa: A guitarra nasceu para o fado e o violão para a modinha. Vio- lão e guitarra são instrumentos populares, através cujas cordas palpitam tristezas, lágrimas e risos de dois povos intimamente ligados pela afini * Pesquisador da música brasileira, mestre em música pela Escola de Comunicações e Artes da Universi- dade de São Paulo e professor do Instituto de Artes da UNESP e da Faculdade Santa Marcelina, São Paulo. ** Violonista e pesquisador da música brasileira para violão, graduado no Instituto de Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista, São Paulo. 1 Os Municipios. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 32, n.10.220, p.2, quinta-feira, 29 nov.1906. 2 Um interessante invento. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 40, n.12.660, p.3, col. Artes e Artistas, sexta-feira, 22 fev.1914. 3 Audição de violão. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 90, n.127, p.6, col. Theatros e Musica, domingo, 7 mai. 1916.

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Violão

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  • 1916: O VIOLO BRASILEIRO J UMA ARTE

    Paulo CASTAGNA* e Gilson ANTUNES**

    CASTAGNA, Paulo e ANTUNES, Gilson. 1916: o violo brasileiro j uma arte. Cul-tura Vozes, So Paulo, ano 88, n.1, p.37-51, jan./fev. 1994.

    RESUMO. Um dos aspectos mais interessantes da msica brasileira no sculo XX, a evoluode um violo despretensioso e marginalizado, para o instrumento mais utilizado na msica erudita oupopular, em qualquer classe social, como acompanhador ou solista. Esse fenmeno ocorreu com umarapidez to grande, que os movimentos anteriores foram sendo esquecidos, medida que se alcanavauma nova etapa. Hoje, o maior desafio que se apresenta ao violo brasileiro a pesquisa e organizaodo seu repertrio, o levantamento dos principais violonistas e a recuperao de sua histria. 1916 oano da primeira grande conquista do instrumento. O nome em destaque o de Amrico Jacomino.

    1. Instrumento vulgar e sem valor

    No incio do sculo, quando comeava a se desenvolver, no Brasil, a msicapara violo, o instrumento ainda era considerado prprio somente para modinhas eserenatas ao luar,1 ou vulgar e, por isso, sem valor.2 Em maio de 1916, o Jornal doComrcio, do Rio de Janeiro, ainda se referia ao violo desta maneira:

    Debalde os cultivadores desse instrumento procuram faz-lo as-cender aos crculos onde a arte paira. Tem sido um esforo vo o que sedesenvolve nesse sentido. O violo no tem ido alm de simples acompa-nhador de modinhas. E quando algum virtuose quer tirar efeitos maiselevados na arte dos sons, jamais consegue o objetivo desejado ou mes-mo resultado aprecivel.

    A arte, no violo, no passa por isso, at agora, do seu aspectopuramente pitoresco.3

    Poucas semanas depois, o peridico continuava a insistir na precariedade ar-tstica do violo, assim como da guitarra portuguesa:

    A guitarra nasceu para o fado e o violo para a modinha. Vio-lo e guitarra so instrumentos populares, atravs cujas cordas palpitamtristezas, lgrimas e risos de dois povos intimamente ligados pela afini

    * Pesquisador da msica brasileira, mestre em msica pela Escola de Comunicaes e Artes da Universi-dade de So Paulo e professor do Instituto de Artes da UNESP e da Faculdade Santa Marcelina, SoPaulo.** Violonista e pesquisador da msica brasileira para violo, graduado no Instituto de Artes da UNESP -Universidade Estadual Paulista, So Paulo.1 Os Municipios. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 32, n.10.220, p.2, quinta-feira, 29 nov.1906.2 Um interessante invento. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 40, n.12.660, p.3, col. Artes e Artistas,sexta-feira, 22 fev.1914.3 Audio de violo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 90, n.127, p.6, col. Theatros e Musica,domingo, 7 mai. 1916.

  • CASTAGNA, Paulo e ANTUNES, Gilson. 1916: o violo brasileiro j uma arte 2

    dade de raa, de corao e de lngua. Acompanhando uma cano sen-timental ou dedilhando um fado corrido, a guitarra e o violo falam nos alma de popular, mas alma de toda a gente. Uma e outro jamaislograro alcanar a perfeio sonhada pelos seus cultores apaixonados.As regies da msica clssica no lhe so propcias, as suas cordas nose do muito bem nos ambientes de arte propriamente dita.4

    Embora atacado por ser instrumento ligado msica popular, o violo j erautilizado entre ns, nas duas primeiras dcadas do sculo XX, tambm como instru-mento solista.5 No Rio de Janeiro, os precursores mais importantes dessa inovao fo-ram Ernani Figueiredo e Alfredo de Sousa Imenez, falecidos, respectivamente, em 1917e 1918. O movimento violonstico, na cidade, cresceu com a atuao de Stiro Bilhar,Brant Horta, Joaquim Francisco dos Santos (Quincas Laranjeiras), Mozart Bicalho,Melchior Cortez e Heitor Villa-Lobos, entre outros.

    A produo desses msicos, que inaugurou a arte brasileira do violo, era fraca-mente aceita fora das classes populares, no incio do sculo e, com raras excees, im-pedida de participar dos meios de difuso musical reservados s elites. exceo deVilla-Lobos, os demais nomes citados foram praticamente esquecidos e a maior parte desua obra irremediavelmente perdida.

    Papel importantssimo na reverso dessa tendncia, desempenharam Catulo daPaixo Cearense (1863-1946) e Joo Teixeira Guimares (1883-1947), o Joo Pernam-buco, sobretudo na difuso de canes regionalistas com acompanhamento de violo,este ltimo com apresentaes bastante concorridas em 1916.6 Catulo chegou a reivin-dicar para si a emancipao do instrumento: [...] Digamos mais que fui eu o introdutordo violo na alta sociedade. Os cantadores de festas e de rdios sabem disto, mas fin-gem ignorar. [...]7

    A aceitao do violo como instrumento de concerto, no pas, no resultou so-mente da atuao desse grupo pioneiro de msicos. Uma nova tcnica de execuo e um 4 Audio de guitarra. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 90, n.147, p.6, col. Theatros e Musica,sbado, 27 mai. 1916.5 J no sculo XIX, existiram solistas de violo no Brasil, ainda que sua tcnica deva ter sido muito sim-ples. A Enciclopdia da msica brasileira (So Paulo, Art Ed., 1977, 2 v.) cita os nomes de FranciscoBorges (p.104), Guilherme Cantalice (p.141), Jos de Sousa Arago, o Cazuzinha (p.182), Brs Lus dePina (p.608), Laurindo Jos da Silva Rabelo (p.639), Jos Joaquim dos Reis (p.648), Juca Vale (p.777) eVicente Gagliano, o Vicente Sabonete (p.792). Cf. tambm VASCONCELOS, Ary. Panorama damsica popular brasileira na Belle poque. Rio de Janeiro, Livraria SantAnna, 1977. 454p., PINTO,Alexandre Gonalves. O Chro: reminiscencias dos chores antigos por Alexandre Gonalves Pinto -Contendo: o perfil de todo os chores dagora, factos e costumes dos antigos pagodes, este livro faz revi-ver grandes artistas musicistas que estavam no esquecimento. Rio de Janeiro, Typ.Glria, 1936. 208p.[ed. facsimilar: Introduo de Ary Vasconcelos. Rio de Janeiro, MEC/FUNARTE, 1978. 220p.(MPBreedies, v.1)] e SANTOS, Maria Luiza de Queirs Amncio dos. Origens e evoluo da msica emPortugal e sua influncia no Brasil. Rio de Janeiro, Comisso Brasileira dos Centenrios de Portugal,1942. 343p.6 Noticias Theatraes. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 42, n.13.657, p.2, col. Palcos e Circos, tera-feira, 16 mai. 1916 [o jornal d outras notcias sobre a troupe de Pernambuco, entre 20 de maio e 13 dejunho]; O Trio Viriato Correa - Storni - Pernambuco. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 90,n.311, p.6, col. Theatros e Musica, 7 nov.1916 e n.337, p.5, dem, domingo, 3 dez. 1916; Concerto Per-nambuco. O Estado de S. Paulo, ano 42, n.13.876, p.7, col. Artes e Artistas, quinta-feira, 21 dez. 1916[outras notcias entre 28 dez. 1916 e 15 jan. 1917].7 Texto de 1945, publicado em: CEARENCE, Catulo da Paixo. Modinhas; seleo organizada, revista,prefaciada e anotada por Guimares Martins, de acordo com uma introduo do autor e apreciaes deCarlos Maul, Rocha Pombo e Lus da Cmara Cascudo. 3, So Paulo, Fermata do Brasil, 1972. p.19(Obras completas de Catulo da Paixo Cearence, v.1)

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    novo repertrio transformaram completamente a receptividade do violo no meio musi-cal brasileiro. O marco o ano de 1916 e os personagens principais so Agustin Barri-os, Josefina Robledo e Amrico Jacomino.

    2. Nos crculos onde a arte paira

    Transcorria, na Europa, a I Guerra Mundial. As apresentaes do paraguaioAgustin Barrios (1885-1944) e da espanhola Josefina Robledo, em vrias cidades bra-sileiras, respectivamente a partir de 1916 e 1917, provocaram um enorme impacto nopblico, nos msicos e na imprensa, derrubando o antigo argumento da incapacidadeartstica do violo.

    Aps o primeiro concerto de Barrios no Rio de Janeiro, em 24 de julho de 1916,o mesmo Jornal do Comrcio que, semanas atrs, publicava fortes censuras ao violo,passa a reconhece-lo, ento, como instrumento digno das salas de concerto, dirigindosua crtica, agora, a uma suposta falta de qualidade da produo violonstica brasileira:

    Sem querer dar ao violo a hierarquia aristocrtica do violino,do violoncelo e de outros instrumentos que, como ele, tiveram no aladeo seu remoto ancestral, em todo caso acreditamos que no se faz aindaao violo a justia que lhe devida - o que, at certo ponto, se explicapela dificuldade da tcnica do instrumento que ningum, quase, tentavencer e dominar, desanimados todos pela igualdade do timbre que lhed uma feio de monotonia.

    No compreendemos, porm, que se cultive o bandolim em pre-juzo do violo, quando a superioridade deste imensa como elementode expresso, como variedade de efeitos, como exemplar de harmoniza-o interessante na formao dos acordes, como recurso de modulaesestranhas pela sua novidade.

    De ordinrio, os cultores do violo limitam-se a fazer dele uminstrumento de acompanhamento de modinhas chorosas, ou o montonorepetidor de desenhos rtmicos de dana, ou o intrprete dos rasgadossonorosos que convidam ao sapateado languoroso e lascivo!

    Quanta injustia!Essa mediocridade, a que condenaram o violo, tem a sua expli-

    cao na ignorncia dos que lhe ponteiam as cordas sem o conheci-mento da riqueza de efeitos que se podem obter do precioso instrumento,que mereceu particular ateno de Berlioz no seu tratado de instrumen-tao.

    Que o violo tenha um repertrio limitadssimo no admira,porque, com exceo do piano e do rgo, isso acontece a todos os ins-trumentos, at mesmo ao violino, cujos foros de nobreza ningum con-testa. E, quando nos referimos pobreza de repertrio, deve ser entendi-do que aludimos raridade das composies de valor e no quantida-de, pois sabido que, para o violino principalmente, muito se tem escritoe pouco se tem mantido no repertrio.

    Como j fizemos sentir, o violo sofre principalmente pelas difi-culdades que ele oferece e que poucos ousam afrontar pelo estudo. S

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    nestes ltimos tempos que por aqui tem aparecido alguns cultorescomo os srs. Ernani de Figueiredo, Brant Horta e alguns raros mais.8

    A falta de contato com o repertrio violonstico, brasileiro e internacional, nofoi caracterstica exclusiva daquela dcada. Manuel Bandeira, em 1924, apesar de elogi-ar a sonoridade do instrumento, desconhece totalmente as composies para violo,daquele perodo ou de pocas anteriores9 e o eruditssimo Domingo Prat, em 1934, ain-da afirmava que Brasil, en guitarra, vive un tanto atrasado.10 Mesmo a produo deAmrico Jacomino, sobre a qual pouca coisa de valor tem sido escrita, no despertou ointeresse de Jos Ramos Tinhoro e Ary Vasconcelos, por exemplo, dois dos mais im-portantes historiadores da msica popular brasileira.

    As apresentaes de Agustin Barrios, contudo, provocararam, por todo o pas,uma repercusso impressionante, que somente poder ser avaliada em um trabalho detese. Aps os concertos do violonista paraguaio no Teatro Municipal de So Paulo, em1917, a imprensa j consegue se referir ao violo de forma mais racional, procurandocompreender melhor as caractersticas do instrumento e sua relao com o gosto musi-cal vigente:

    O violo um instrumento nobre. Pena que a sua sonoridadeno corresponda s exigncias do pblico dos concertos, que ansia sem-pre pelas grandes sonoridades. Em todo o caso, num salo, todos pode-ro apreciar a voz potica do violo, intensamente expressiva, a dourae suavidade de suas inflexes sonoras, principalmente quando esse ins-trumento tem ao seu servio um concertista da envergadura de Artur[sic] de Barrios.

    Ele sabe elevar o violo altura prestigiosa em que se manteveno perodo ureo do sculo XVI, e que chegou a destronar a viola.

    Dos seus magnficos dedos brotam caudais de sons divinos. que o seu mecanismo irrepreensvel, brilhante o seu estilo, profundo osentimento que agita a sua fina alma de artista.11

    Se Agustin Barrios trouxe ao Brasil um virtuosismo violonstico sem preceden-tes e Josefina Robledo a tcnica refinada do concertista e didata espanhol FranciscoTrrega, cabe a Amrico Jacomino a criao do primeiro gnero brasileiro de msicasolstica para violo que obteve aceitao do pblico tradicional. Popular ou erudito?talvez, um pouco de cada.

    3. O aplaudido violonista da Casa dison

    Amrico Jacomino, filho de imigrantes napolitanos, nasceu presumivelmente emSo Paulo,12 em 1887. Sua atividade, at 1915, quase totalmente desconhecida, saben 8 O primeiro violonista do mundo. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 90, n.206, p.5, col. Thea-tros e Musica, tera-feira, 25 jul. 1916.9 BANDEIRA, Manuel. Literatura do violo. Ariel, So Paulo, v.2, n.13, p.463, out. 1924.10 PRAT, Domingo. Diccionario de guitarristas. Buenos Aires, Casa Romero y Fernandes, [1934]. Ver-bete Soares, Osvaldo, p.297.11 Arthur de Barrios. A Cigarra, So Paulo, ano 4, n.65, s/p., 30 abr. 1917.12 A biografia de Amrico Jacomino ainda gera controvrsias. Algumas pessoas que o conheceram, afir-mavam que nasceu em Santos (SP) e sua certido de casamento acusa o nascimento na Itlia. Cf. o texto

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    do-se, apenas, que viveu certo tempo como pintor e jornaleiro, enquanto se iniciava noinstrumento, cremos, de maneira autodidata. Por volta de 1904, j se apresentava comosolista de violo, utilizando a estranha posio que originou a alcunha pela qual maisconhecido: Canhoto.

    No sem razo que, do perodo anterior a 1915, pouco se sabe a respeito deJacomino. O movimento violonstico em So Paulo, at essa data, foi quase inexistentee os registros histricos so hoje rarssimos.13 Isaas Svio afirma que o primeiro reci-tal de importncia nesta capital foi o do violonista cubano Gil Prxedes Orozco, em1903, no Teatro Santana14 e Ronoel Simes informa que Orozco lecionou o instrumentona cidade entre 1903 e 1908, assim como o violonista italiano Eugene Pingitore, entre1912 e 1915.15 Do primeiro, foi aluno Dante Rausse, outro italiano, que atuou na capitalnas dcadas seguintes.

    O Estado de S. Paulo noticia alguns recitais de violo no perodo, como os deGil Orozco, no Salo Carlos Gomes, em 1904,16 no Salo Steinway, em 1906, com oviolonista portugus Alberto Baltar17 e nos sales da Casa Livro Azul18 e do ClubeCampineiro19 daquela cidade, em 1906. O espanhol Manuel Gomes aparece em recitaisde violo, nos sales da Casa Bevilacqua20 e do Centro Espanhol de Campinas, no anode 191121 e o portugus Francisco Pistoresi em duas apresentaes de 1914, no Conser-vatrio Dramtico e Musical de So Paulo,22 executando um extico instrumento denome diamenofone, ao qual adaptava ora um violoncelo, ora um violo.

    Se essas foram, na poca, as principais participaes do violo em So Paulo, possvel afirmar que Amrico Jacomino desenvolveu a arte solstica do seu instrumento,praticamente isolado de qualquer influncia significativa, criando uma maneira prpriade executar valsas, polcas, mazurcas, dobrados e outros gneros que, naquele perodo,utilizavam o violo como mero acompanhador.

    Entre 1912 e 1913, Jacomino gravou 12 discos pela Odeon do Rio de Janeiro, amaioria como violonista do Grupo do Canhoto, conjunto formado por clarineta, trom-bone, cavaquinho e violo. Dessas chapas, todas de uma nica face, j constavam 4peas em solo de violo, provavelmente de sua autoria:23 a valsa Belo Horizonte (n.

    de J. L. Ferrete, na contracapa do disco Amrico Jacomino Canhoto; homenagem ao 50 aniversrio deseu falecimento (1928-1978). So Paulo, Continental, 1978, LP 1-07-702-136.13 Para a pesquisa sobre o violo na primeira dcada deste sculo, no jornal O Estado de S. Paulo, con-tamos com a colaborao do colega Eduardo Fleury Nogueira.14 SVIO, Isaas. Violo: tbua cronolgica (1784-1910). Violo e mestres, So Paulo, v.2, n.9, p.44-51,nov.1968.15 SIMES, Ronoel. O violo em So Paulo. Violo e mestres, So Paulo, v.2, n.7, p.25-29, 1967.16 Terceto hespanhol. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 30, n.9.288, p.2, col. Artes e Artistas, sba-do, 7 mai. 1904.17 Gil Orozco. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 32, n.10.205, p.3, col. Artes e Artistas, quarta-feira,14 nov.1906.18 Os Municipios. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 32, n.10.220, p.2, quinta-feira, 29 nov.1906.19 Os Municipios. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 32, n.10.226, p.2, quarta-feira, 05 dez. 1906.20 Concerto de violo. O Estado de S. Paulo, ano 37, n.11.898, p.6, col. Artes e Artistas, quinta-feira, 13jul. 1911.21 Concerto no Centro Hespanhol. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 37, n.11.930, p.3, col. Notici-as do Interior e Litoral do Estado, segunda-feira, 14 ago. 1911.22 Um interessante invento. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 40, n.12.660, p.3, col. Artes e Artistas,sexta-feira, 22 fev.1914; Concerto. O Estado de S. Paulo, dem, n.12.797, p.5, dem, 4 jul. 1914.23 Os dados sobre gravaes antigas foram extrados da Discografia brasileira em 78 rpm. Rio de Janei-ro, Funarte, 1982. 5 v.

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    120.595), a polca Pisando na mola (n. 120.596), o dobrado Campos Sales (n. 120.597) ea mazurca Devaneio (n. 120.598).

    Por essa poca, Amrico Jacomino tambem se apresentava em cinemas da capi-tal, nos chamados espetculos de variedade, bastante comuns na dcada de 10. Osautores que j se ocuparam do Canhoto,24 citam os cinemas Bresser, Brs-Bijou e oden Teatro. Em dezembro de 1915, O Estado de S. Paulo destacou suas apresentaesno cinema High-Life e, em 1916, nos teatros Minerva e Colombo, alm de concertos emDescalvado e Amparo, interior do Estado de So Paulo. Nesse ano, j era chamado oRei do violo e o aplaudido violonista da Casa dison, tornando-se bastante conhe-cido entre os apreciadores de msica popular.

    Canhoto continuou a gravar. Em datas desconhecidas, entre 1913 e 1918, sai-ram, pela Phoenix, 15 chapas incluindo seu nome, dentre estas, 10 com o Grupo doCanhoto e 5 com Jacomino ao violo, interpretanto, de sua autoria, as valsas Saudadesde minha aurora (n. 70.786) e Belo Horizonte (n. 70.803, provvel regravao), a polcaUiara (n. 70.804), a mazurca Devaneio (n. 70.805) e o chtis Sempre teu (n. 70.806).Pela Odeon, entre 1915 e 1921, foram lanados 30 discos com sua participao. Em 20deles toca no Grupo do Canhoto, enquanto 4 outros sairam com obras suas, na execu-o de grupos diversos. Jacomino acompanhou o popularssimo Baiano (Manuel Pe-dro dos Santos) em 2 discos e apareceu, em 4 ttulos, tocando composies prprias noseu instrumento: as valsas Beijo e lgrimas (n. 121.248) e Acordes do violo (n.121.249), alm dos tangos Madrugando (n. 121.478) e Recordaes de Cotinha (n.121.479).

    4. Cinco de setembro de 1916

    Em fins do primeiro semestre de 1916, iniciou-se a asceno do violonista aospalcos importantes da cidade. Apresentou-se, em datas incertas, nos sales do jornal OEstado de S. Paulo, do Automvel Clube, do Trianon, do Conservatrio Dramtico e darevista A Cigarra.25 Mas foi em setembro desse ano que o Canhoto participou doevento que comparamos, em importncia e repercusso, aos concertos de Agustin Bar-rios e Josefina Robledo no Brasil: seu primeiro recital para um grande pblico, acompa-nhado de conferncias sobre a carreira de Jacomino e sobre o violo, no Salo Nobre doConservatrio Dramtico e Musical de So Paulo, um dos principais palcos da msicaerudita paulistana.

    bem provvel que esse concerto tenha sido organizado e promovido pelo Ca-nhoto e pelo escritor portugus Manuel Leiroz, um admirador do violo e do conheci-do violonista. Em junho de 1916, antes mesmo da chegada de Barrios ao Brasil (a 19 dejulho, no Rio de Janeiro), Leiroz publicava, na revista A Cigarra, um artigo sobre Am-rico Jacomino, onde anunciava a apresentao no Conservatrio, elogiava sua arte e,surpreendentemente, referia-se ao violo de forma bem diversa daquela encontrada nosperidicos da poca:

    O que encanta neste concertista de violo no propriamente ariqueza de tcnica, em verdade colossal, nem o senhorio legtimo do seu

    24 Ao contrrio de relacionar todos os trabalhos conhecidos sobre Amrico jacomino, preferimos citar oartigo que enumera a maior parte dos textos sobre esse autor e sobre o violo no Brasil: CASTAGNA,Paulo & SCHWARZ, Werner. Uma bibliografia do violo brasileiro 1916-1990. Revista Msica, SoPaulo, v.4, n.2, nov.1993, p.190-218.25 Americo Jacomino. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 42, n.13.763, p.4, col. Artes e Artistas,quarta-feira, 30 ago. 1916.

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    instrumento, mais indomvel que uma fera. O que em Amrico Jacominoencanta a sua cincia dos tons, que ele transforma numa doce harmo-nia e transmite ao ouvinte, extasiando-o.26

    Na semana anterior ao concerto do conservatrio, Jacomino apresentou-se emuma audio especial imprensa, na Sala de Recepes do jornal A Capital, no PalaceteGuinle, da Rua Direita. O sucesso foi maior que o esperado:

    Desde os primeiros acordes, conseguiu o sr. Amrico Jacominoprender a ateno do auditrio, entusiasmando-o e comovendo-o seguir.Quando terminado o primeiro nmero, no foi o aplauso convencional einexpressivo com que se costuma lisonjear a vaidade de alguns artistasde exportao estranjeira, que na maioria dos casos no correspondem fama de que vm precedidos, que al se ouvia. No. Era o aplauso sin-cero de uma assistncia admirada e conquistada pelo som do mgicoinstrumento.

    [...]Quanto ao valor de Canhoto, desnecessrias se tornam quais-

    quer referncias. mais do que um artista: um verdadeiro talento mu-sical.27

    O concerto no Conservatrio Dramtico e Musical, no dia 5 de setembro de1916, foi motivo de ansiedade e, mesmo competindo com a ltima apresentao da dan-arina Isadora Duncan, no Teatro Municipal, esteve a regurgitar de ouvintes. O Di-rio Popular foi claro ao apontar Jacomino como um grande inovador na execuo doviolo:

    [...] Para encher o salo bastaria decerto o mrito excepcionaldo artista, que soube evidenciar-se tanto na arte difcil do fazer falar,gemer e sentir um instrumento rebelde s inspiraes musicais. [...]28

    Alm de frizar a diferena entre a arte de Jacomino e a dos violonistas acompa-nhadores, A Gazeta reforou os elogios ao Canhoto, destacando algumas de suas tc-nicas ento mais apreciadas:

    hoje que se realiza, no Conservatrio Dramtico e Musical, oconcerto do simptico e habilssimo violonista, sr. Amrico Jacomino. preciso advertir aos que o no conhecem ainda, que este artista no sepode confundir com muitos outros que se apontam nesta cidade e queno passam de talentosos dilettanti. Trata-se, na verdade, de um per-feito artista, possuidor de uma tcnica admirvel e que sabe arrancar aoseu instrumento uma poro de efeitos surpreendentes. Ningum, antesde ouvi-lo, poder supor de que recursos capaz o violo.

    Dentre os seus segredos de tcnica h um que, consoante a opi-nio dos entendidos, inimitvel: a maneira de fazer vibrar a corda

    26 LEIROZ, Manuel. Americo Jacomino. A Cigarra, So Paulo, ano 3, n.45, [p.18], 30 jun.1916.27 Audio de violo. A Capital, So Paulo, ano 5, n.94, p.3, col. A Capital Artstica, segunda-feira, 04set. 1916.28 Bellas Artes. Diario Popular, So Paulo, ano 32, n.11.070, p.2, tera-feira, 5 set. 1916.

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    por meio da presso lenta dos dedos. O efeito que ele tira, dessa presso,que , dizem, de sua criao exclusiva, tem uma doura encantadora.29

    O concerto de 5 de setembro teve a participao de outro violonista, lvaroGaudncio,30 que acompanhou Jacomino em todas as peas, como de costume, alm docantor Trajano Vaz, que apresentou trs nmeros com acompanhamento de violo. Oprograma do evento foi publicado, de forma mais completa, pelo jornal O Comrcio deSo Paulo.31 Notcias do dia seguinte indicam a autoria das obras32 e o bis da pea Acigarra na ponta, no final da primeira parte. Somente O Estado de S. Paulo menciona aexecuo, por Jacomino, de uma obra com o ttulo Tango da Agarra.33 Utilizamos averso de O Comrcio de So Paulo, com pequenas alteraes, baseadas em artigos deoutros jornais:

    I PARTE

    1 - O poeta Danton Vampr apresentar o K...nhoto ao pblico.Trajano Vaz apresentar os artistas em caricaturas.

    Violo

    2 - AMRICO JACOMINO: Suplicando amor (valsa).Amrico Jacomino, violo

    3 - E. FRONTINI: Serenata rabe.Amrico Jacomino, violo

    4 - AMRICO JACOMINO: A cigarra na ponta (tango), dedicada a esta distinta revista

    Amrico Jacomino, violo5 - [AMRICO JACOMINO]: Magia do olhar (valsa),

    dedicada ao meu amigo Trajano VazAmrico Jacomino, violo

    II PARTE

    6 - CATULO DA PAIXO CEARENCE: A choa do monte [cano] e O marroeiro (recitado)

    Trajano Vaz, canto com violo

    29 Americo Jacomino. A Gazeta, So Paulo, ano 11, n.3.179, p.5, col. Espectaculos, tera-feira, 5 set.1916.30 Gaudncio tambm participou da audio imprensa, em 3 de setembro: Acompanhou-o na audiode sbado, o distinto violonista sr. lvaro Gaudncio. Audio de violo. A Capital, So Paulo, ano 5,n.94, p.3, col. A Capital Artistica, segunda-feira, 4 set. 1916.31 Notas de Arte. O Commercio de So Paulo, So Paulo, ano 24, n.3.767, p.5, quarta-feira, 6 set. 1916.32 Antes de ser executado o atraente programa de msica de violo, quase toda da lavra de AmricoJacomino, o sr. Danton Vampr disse algumas palavras sobre o concertista, enaltecendo-o e apresen-tando-o ao pblico. Cf.: Americo Jacomino. Correio Paulistano, So Paulo, n.19.093, p.3, col. Registode Arte, quarta-feira, 6 set. 1916.33 Americo Jacomino. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 42, n.13.763, p.4, col. Artes e Artistas,quarta-feira, 30 ago. 1916.

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    7 - A. CARLOS GOMES: Protofonia do GuaranyAmrico Jacomino, violo

    8 - [AMRICO JACOMINO]: Cateret (imitao da viola sertaneja)Amrico Jacomino, violo

    9 - AFONSO ARINOS: O capim mais mimoso [cano]Trajano Vaz, canto com violo

    10 - AMRICO JACOMINO: Campos Sales (dobrado),imitando tambores e cornetas

    Amrico jacomino, violo11 - [AMRICO JACOMINO]: Medrosa (valsa),

    dedicada ao exmo. sr. Jos PaulinoAmrico Jacomino, violo

    12 - [AMRICO JACOMINO]: Sonhando (valsa),executada ao violo em diversas posies difceis

    Amrico Jacomino, violo

    Das peas interpretadas por Jacomino, existem gravaes da valsa Suplicandoamor, com o Grupo do Canhoto (Odeon, n. 121.246, lanada entre 1915 e 1921), deuma fantasia de O Guaran, com Amrico Jacomino (Odeon, n. 123.210, lanada entre1925 e 1927) e do dobrado Campos Sales (Odeon, n. 120.597, lanado entre 1912 e1913). A valsa Suplicando amor tambm foi publicada, em vida do autor, por A. diFranco (So Paulo), em uma verso para piano e outra para canto e pequena orquestra. exceo da Serenata rabe, de Frontini, popular na verso original para piano, asdemais so completamente desconhecidas. O prprio Juvenal Fernandes, em seu catlo-go das obras de Jacomino,34 cita apenas Campos Sales, dentre as peas executadas noConservatrio.

    Esse programa do Canhoto , de fato, o primeiro que chegou at ns. Na maiorparte do seu repertrio, transparece uma inegvel herana romntica, caracterstica atde suas ltimas composies. E provvel que tenha sido com esse esprito romnticoque o violonista fez penetrar sua arte nos crculos conservadores de ento.

    5. Das ruas, para os palcos e sales

    O violonista teve, nesse concerto, um aliado sem precedentes. O poeta DantonVampr, aps fazer a apresentao de Jacomino, traando-lhe a biografia e acentuandoo seu merecimento artstico,35 leu a conferncia de manuel Leiroz, sobre o violo, en-quanto as obras da primeira parte eram executadas:

    [...] Manuel Leiroz um erudito e um artista que na intimidadegosta de dedilhar os bordes do violo e da guitarra [portuguesa]. Foi-sepois aos livros, compulsou monografias e esgotou o assunto, na palestracom que hoje concorre para o festival de um modesto mas digno artista,palestra que no pode deixar de ser um mimo literrio e uma revelaode fatos e anedotas curiosssimas sobre o papel e a importncia dos ins

    34 FERNANDES, Juvenal. O cartaz da semana. In: JACOMINO, Amrico Canhoto. Abismo de rosas egrandes obras. So Paulo, Fermata do Brasil, s.d., p.13-14.35 Conservatorio. A Gazeta, So Paulo, ano 11, n.3.180, p.4, col. Espectaculos, quarta-feira, 6 set. 1916.

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    trumentos de corda na vida emotiva e sentimental dos povos latinos daEuropa, especialmente Portugal, Espanha, Itlia e Frana.

    Essa conferncia, que no , como tantas, uma ressonncia depalavras desmioladas de idia, mas um estudo de arte e uma reconstitui-o histrica, ser, s por si, motivo bastante para que a culta elite deS. Paulo no falhe ao Conservatrio. [...]36

    Manuel Leiroz, natural do Porto, viveu cerca de 30 anos em So Paulo e foi re-dator de O Estado de S. Paulo, desde 1895 e da revista A Cigarra, desde o primeironmero, em 1914, falecendo por volta de janeiro de 1919, em conseqncia da epide-mia de gripe que assolou a cidade. Leiroz apresentou, no concerto de Jacomino, o pri-meiro texto escrito no Brasil sobre as origens do violo, antecipando-se at confern-cia de Ernani Figueiredo, de 1917, o mais antigo documento publicado sobre a hist-ria do instrumento no Brasil.37 Infelizmente, o texto completo de Leiroz no foi im-presso e est, hoje, perdido.38 Dessa conferncia, s nos chegaram alguns resumos.Umdeles foi publicado em O Commercio de So Paulo:

    [...] Como natural, o tema da conferncia - o violo, por cujatrajetria histrica se ver como esse indefectvel companheiro das se-renatas soube tambm brilhar em castelos e palcios, pde inspirar osrestauradores da msica pag, serviu a fidalgos romnticos e a trovistasdespretenciosos, impondo-se, afinal, aos centros artsticos onde se man-tm com honroso prestgio.39

    O outro, em O Estado de S. Paulo:

    Nessa conferncia dir-se- o que foi o violo em mos de fidal-gos melodiosos e de bomios to pobres como Job. Por-se- em evidn-cia a seduo que ele exerceu sempre nas imaginaes femininas numanoite, por exemplo, de cu alvinitente, a uma hora constelada, em que aserenata aponta na rua, desperta as virgens no seu leito e recebe do altodas janelas a moeda de ouro de um sorriso.

    Far-se- a reabilitao desse instrumento, despoetizado pormos inbeis, mas reivindicado por tradies romnticas, em que figu-ram los hermosos da velha Espanha, os famosos Escarpins da poticaItlia, os alegres e espirituosos bomios da Frana de Lus XI.

    E provar-se- que o violo, a que o plebeismo do nosso povo deuirreverentemente a classificao de pinho, um instrumento que temtanto de aristocrtico e de fino quanto o violino e o violoncelo, ambos damesma famlia, e que a cano e os cantores populares, antes de subirem

    36 Bellas Ates. Diario Popular, So Paulo, ano 32, n.11.070, p.2, tera-feira, 5 set. 1916.37 [FIGUEIREDO, Ernani de]. A voz de uma autoridade sobre o violo; extracto de uma conferencia queo saudoso maestro Ernani de Figueiredo ia fazer em Campos em 1917. O Violo, Rio de Janeiro, v.1, n.3,p.7-10, fev. 1929.38 D. Marlene Leiroz, neta do escritor, comunicou-nos, pessoalmente, a inexistncia de qualquer manus-crito com o texto da conferncia, entre as obras de Manuel Leiroz preservadas pela famlia.39 Concerto de violo com uma conferencia. O Commercio de So Paulo, So Paulo, ano 24, n.3.766,p.3, col. Notas de Arte, tera-feira, 5 set. 1916.

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    das ruas para os palcos e sales, fizeram o encanto dos ambientes rsti-cos e alcanaram a glria de uma fatigante existncia.40

    Embora ingnua, do ponto de vista histrico, a conferncia de Manuel Leirozsoube colocar o violo, no como o acompanhante de amadores e msicos de rua, mascomo instrumento cujos ancestrais participaram da vida musical das mais altas classeseuropias, deixando, portanto, sem fundamento a averso ao violo como instrumentode pessoas desqualificadas. Amrico Jacomino e Manuel Leiroz conquistaram, assim, aelite paulistana, possibilitando o incio da dissoluo do preconceito que freava, no Bra-sil, o desenvolvimento da msica solstica para o violo.

    O resultado foi imediato. Em 26 de novembro do mesmo ano, Jacomino apre-sentou trs nmeros de violo no Teatro Municipal, templo sagrado da vida artsticade So Paulo41 e, em 5 de dezembro, retorna ao Conservatrio para um concerto aindamaior que o primeiro,42 tomando parte, no mesmo local, de outro evento, no dia 20.43

    Amrico Jacomino, a partir desse momento, iniciou uma vertiginosa carreira deconcertista, com apresentaes por todo o pas e pela Amrica Latina, compondo, gra-vando, ensinando, atuando ao lado dos msicos de maior renome da poca e participan-do dos movimentos mais inovadores da msica popular brasileira, at 1928, ano de suamorte. Uma histria que ainda est por ser escrita.

    6. Seu instrumento tem o segredo de atrair as almas

    Como testemunhos de sua estria em frente de um grande pblico, no Conser-vatrio, resta-nos somente as notcias do concerto e fragmentos da conferncia do es-critor portugus. Uma descrio mais detalhada do texto de Leiroz foi impressa pelojornal O Estado de S. Paulo, no dia da apresentao.44 Desconhecemos o nome do crti-co musical (em 1923 era Amrico R. Netto), mas a leitura do artigo faz supor que o re-sumo publicado seja do prprio Leiroz.

    Pela inegvel importncia que tiveram, na inaugurao de uma nova fase do mo-vimento violonstico paulista e brasileiro, reproduzimos, como documentos histricos,os textos de Manuel Leiroz, que sairam na revista A Cigarra e no jornal O Estado de S.Paulo. A linguagem, excessivamente romntica para os dias atuais, mais a de umapaixonado pelo instrumento, que a de um crtico ou historiador.

    Para o violo brasileiro daqueles tempos, esse romantismo foi fundamental...

    40 Americo Jacomino. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 42, n.13.766, p.2, col. Artes e Artistas, s-bado, 2 set. 1916.41 Festivaes. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 42, n.13.852, p.4, col. A Sociedade, segunda-feira, 27nov.1916.42 Audio de violo. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 42, n.13.860, p.9, col. Artes e Artistas, tera-feira, 5 dez. 1916.43 Concerto Antonio Peixoto. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 42, n.13.875, p.7, col. Artes e Artis-tas, quarta-feira, 20 dez. 1916.44 Americo Jacomino. O Estado de S. Paulo, So Paulo, ano 42, n.13.769, p.5, col. Artes e Artistas, ter-a-feira, 5 set. 1916. A atribuio da autoria do texto a Manuel Leiroz nossa.

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    7. Manuel Leiroz e o violo do Canhoto: duas crnicas de 191645

    1 - AMRICO JACOMINO

    Manuel Leiroz(A Cigarra, 30 jun. 1916)

    O que encanta neste concertista de violo no propriamente a riqueza de tcni-ca, em verdade colossal, nem o senhorio legtimo do seu instrumento, mais indomvelque uma fera. O que em Amrico Jacomino encanta a sua cincia dos tons, que eletransforma numa doce harmonia e transmite ao ouvinte, extasiando-o.

    preciso porm v-lo, para se poder fazer uma idia ntida do artista. V-lo comdisposio de esprito, como ns o vimos. No h a maada da afinao, os mil altos ebaixos, at acertar. As chaves do seu instrumento obedecem-lhe como os soldados deum exrcito ordem de comando. Quando menos se espera, ele fere as cordas em con-junto, fazendo os primeiros delineamentos meldicos e passa logo s frases, por inter-mdio das primas e segundas, vertendo no ouvido do assistente o drama de amor deuma alma. E a partir da que comea o encanto dominador do artista, a sua soberanainteligncia em fazer do tom uma linguagem e desta linguagem a impresso comovidado motivo.

    Na protofonia do Guarany, por exemplo, a paisagem visual vai-se operando emns numa lentido condizente com o ritmo da luz nos primeiros albores. Se fechamos osolhos, maneira que a interpretao avana, a mafa surge-nos perlada dos primeirosvapores da madrugada e sonorizada de todos os brandos rumores que antecedem o dia.Ouvem-se depois os pios de flautim do passaredo que acorda, as vibraes misteriosasda selva despertando do seu sono com as ondas de luz jocunda e ento que rompe aprotofonia num conjunto de primas e segundas traduzindo admiravelmente o hino aosol.

    Na Serenata rabe h a ternura, o mistrio, a ironia. O intuito moral sublinham-no as cordas numa vibrao cromtica, que vai das primeiras aos bordes, em cadnciasde grande efeito, produzindo a nitidez meldica do assunto. Sente-se nessa msica aalma enamorada do Trovador, visiona-se uma cabea de mulher que a noite perturba desonhos constelados, e ouvindo embevecida a voz que se ergue no silncio para dizertoda a histria de um corao incompeendido...

    No samba, ento, em que os dedos do artista tanto se aplicam s cordas como aocostado do instrumento, a gente sente, v o pedao da roa em festa, e umas figuras debano reluzindo de suor, e uns corpos ora cingidos ora libertos, descrevendo a coreo-grafia africana, em volteios que no acabam mais. Mas onde, sobretudo, pudemos aferirdo valor do artista, por nos ser mais familiar a msica, foi no Fado. Muitos dos senhoresno conhecem o fado, nunca o ouviram, talvez, tocar ou cantar... O Fado uma msicagenuinamente portuguesa que os portugueses amam e que anda pelo mundo procurade estados afetivos ou intelectuais que interpretar. Cantado e saracoteado nas salas esales da poca de D. Joo V e indo, por a fora at descer s tabernas dos nossos dias, ofado zombou de todas as inovaes musicais atravs os sculos e tem vindo pela vida 45 Para este artigo, atualizamos a ortografia e corrigimos os erros tipogrficos dos textos de Leiroz.

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    fra com a sua caracterstica prpria, traduzindo amor, sonhos, ciumes, ausncia e sau-dade.

    Rocha Peixoto no seu livro A Terra Portuguesa diz que Portugal tem o fadopara a folia, para o amor, para a amargura e at para a morte e acrescenta que, nummesmo esquema mtrico, de norte a sul, dantes, hoje e sempre, o povo enquadra todasas suas idias e sentimentos, todos os fatos.

    uma msica gemente, alanceada, posta ao servio das almas sensveis. Amri-co Jacomino conseguiu apreender-lhe o carter em pequenas variaes, estudou-lhe amelopia, alargou-lhe o nmero de efeitos. Com o Fado, no seu violo surge transfigu-rado, rico de melodia, acusando em todas as transies uma originalidade individual, aoriginalidade do executante! E para isto conseguir, Amrico Jacomino no precisoudeformar a estrutura, o fundo primitivo da msica. O que fez foi opulent-la com umaalma nova, arranc-la do crculo vicioso da mesmssima toada, vest-la de cambiantes ealternativas, obtendo uma composio que produz nas almas sensaes cromticas asmais variadas.

    Numa audio imprensa, realizada h dias nas salas da Cigarra, o artista que jtnhamos ouvido antes, uma noite na redao dO Estado, revelou-se sob um aspectopassional, dando-nos bocados heterogneos de msica fina, a que o Fado ps remate.

    No ouve um s assistente que no adaptasse a esse delicioso momento psicol-gico, nem que no reconhecesse em Amrico Jacomino um autntico tradutor de todasas sensibilidaes contidas numa obra de arte. Deram-lhe por isso as mais frementes pal-mas e foi bom que assim acontecesse, porque talvez elas sejam um estmulo para colo-car este bizarro artista em frente de um grande pblico.

    O Conservatrio Dramtico um bom recinto, pela capacidade e pela acstica.O violo de Jacomino talvez ajustasse bem, al. Depois de consagrado j, o artista pode-ria ir por esse interior afora e subtrair vida da roa a monotonia destas longas e fati-gantes noites de inverno. O seu instrumento tem o segredo de atrair as almas. Certa-mente, com o seu talento e a sua emoo, Jacomino levaria alma dos sertes um filtrocapaz de entornar nela a luz jocunda que faz da vida uma coisa apetecida.

    (28 de junho de 1916)

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    2 - AMRICO JACOMINO

    [Manuel Leiroz](O Estado de S. Paulo, 5 set. 1916)

    hoje noite que se realiza o concerto de violo organizado por este simpticoartista, com o concurso do sr. Danton Vampr, que ler a conferncia do nosso compa-nheiro Manuel Leiroz, o sr. Trajano Vaz, que cantar lindas canes do Brasil, entre asquais o Marroeiro, e do sr. Silvrio [sic] Gaudncio, que acompanhar ao violo.

    O festival ser iniciado com a conferncia sobre instrumentos. Seguindo o pen-samento de Miguel Zamacois, o conferente por em relevo a funo e prstimo de vri-os instrumentos.

    Depois, reivindicar para o violo o crdito que ele, na antiguidade, sempre go-zou, mostrando que em Portugal, nos sculos hericos das viagens e das batalhas, esseinstrumento acompanhava trovadores e troveiros na sua vida amorosa e de aventuras,conhecera desde os paos dos reis s vielas da mouraria e embarcara com mais de cincomil violas para os areais da frica, onde testemunhou a derrota de Alccer Quibir. Oviolo exerceu a ditadura nas salas mais elegantes, fulgurou nos teatros, perturbou eendoideceu uma legio de mulheres e obrigou muitos escritores estrangeiros a renderhomenagem ao seu domnio encantador.

    O seu papel saliente nos minuetos da cidade e da corte, nos fandangos, nos arre-pia, no oitavado, no arromba e outras danas, jamais poder ser esquecido. D. Joo V,que era um rei folgazo, considerava-o um instrumento precioso para aligeirar o fardoda vida...

    Em Frana, no primeiro imprio, na devassido dissolvente do segundo, sob arestaurao, o violo entrou no gosto do pblico, juntamente com as primeiras troupesvindas da Itlia, tomou parte num concerto de ces, inventado para divertir Lus XI,deliciou epicuristas do bairro latino, os cabarets de Montmartre, deu serenatas s maisaristocrticas mulheres e foi a causa, um dia, de Margarida de Esccia, esposa de LusXI, ao ver a dormir o normando Alain Chartier, beijar-lhe a preciosa boca, de ondetinham sado as palavras de um madrigal feiticeiro.

    O violo acompanhou os cantos de Ninon, nas poesias folgazs de Chaulieu enas coplas ferinas de Joo Batista Rousseau. E nos bailes de mscaras introduzidos emFrana, em 1716, esteve a servio da Princeza de Valois e do Duque de Modena, seunoivo, encantando os cavalheiros de indstria, que sempre os acompanhavam.

    Em Espanha, no sculo XVII, pontifica nas reunies elegantes e nas alfurjas dasmancebas. Desce com escala ruidosa e despreocupao de vida de Madrid at Sevilha;faz-se ouvir na Triana e na Torre del Cro, atrai os eirados de tijolo, cobertos de flores echiquetas de olhos negros e camlias no penteado, as donas de bloco escuro, os espada-chins de manto negro e bravura truculenta. Mistura-se com ciganas de face morena egandes brincos nos lbulos das orelhas e chega a impor-se ao gosto esttico e moral dosmouros enamorados. Toma parte nos concertos, espetculos de estudantes de La PicolaEscuela e dos Hidalgos Hermosos e no corro assombrado em que se exibia, foi muitavez coberto pelo frmito de aplausos e de gritos das nias entusiasmadas.

    Na Itlia o violo inspirou rias, vilotas e vilancelas, fez parte de uma orquestrano palcio de Joana de Arago, deu concepes s melodias de Gesualdo, Prncipe de

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    Venosa, concorreu para a restaurao da msica pag. Introduziu-se nas academias,acordou as guas de Veneza em serenatas de guelfos e escarpins. Serviu o amor numperodo em que a msica fazia a paixo da poca e concorreu com os filarmnicos deVerona, institudos por Alberto Lavezzola.

    Nos Pases Baixos, quando ainda no estado de uma s corda - a tromba mari-nha, e depois em transformaes sucessivas, j com trinta e seis cordas, alcanou rui-doso sucesso em Bruxelas, num concerto de gatos verdadeiros, que os Belgas oferece-ran a Felipe II da Espanha. Finalmente em quase todos os pases da Europa, o violoacompanhou a natureza das tradies e a disposio psicolgica dos respectivos povos.

    Como se v, o programa da festa atraente e porque o preo do ingresso redu-zido, de esperar que hoje noite no haja um lugar no Conservatrio Dramtico.