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    O corpo na escola

    Ano XVIII boletim 04 - Abril de 2008

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    SUMRIO

    O CORPO NA ESCOLA

    PROPOSTA PEDAGGICA ...................................................................................................03

    La Tiriba

    PGM 1: A ESCOLA, A DISCIPLINARIZAO DOS CORPOS E AS PRTICAS PEDAGGICAS

    .......................................................................................................................................... 14

    Walter Kohan

    PGM 2: EDUCAO DE CORPO INTEIRO......................................................................... 19

    Daniela Guimares

    PGM 3: ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLA: AS PERSPECTIVAS......................... 28

    Alexandra Pena, Isabel C. Boga Borges, Leonor Pio Borges

    PGM 4: EDUCAO E VIVNCIA DO ESPAO:

    DILOGOS ENTRE A ARQUITETURA E A PEDAGOGIA.....................................................40

    La Tiriba

    PGM 5 : O CORPO NA ESCOLA: EXPERINCIAS ALTERNATIVAS ............................ 52Adrianne Ogda Guedes

    O CORPO NA ESCOLA 2 .

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    PROPOSTA PEDAGGICAPROPOSTA PEDAGGICA

    O CORPO NA ESCOLA

    La Tiriba1

    Entre os sculos XVII e XIX ganha fora a idia de uma separao entre mente e corpo, uma

    das bases sobre a qual se fundou uma cincia e uma civilizao que hipervalorizaram a

    racionalidade e o trabalho, em detrimento de outros caminhos de conhecer e modos de viver,

    buscando suprimir todas as outras formas de conhecimento relacionadas existncia carnal

    dos seres humanos: os sentimentos, a imaginao, a intuio, o conhecimento sensual, a

    experincia. O objetivo desta srie o de debater e questionar uma lgica de funcionamento

    escolar ainda orientada pelo pressuposto de que Penso, logo existo, mxima do pensamento

    racionalista, que inspira e define, ainda nos dias de hoje, propostas pedaggicas e rotinas

    escolares.

    (...) Em todos os espaos, chama a ateno a formalidade, o vazio de referncias infantis,

    no h objetos, brinquedos, desenhos das crianas... A organizao semelhante a das

    escolas de ensino fundamental: pequenas carteiras enfileiradas, mesa de professora ao lado

    do quadro-negro... Num prdio reformado, de pintura brilhante, limpeza caprichada,

    crianas de trs para quatro anos assistem, enfileiradas em pequenas e coloridas carteiras

    escolares individuais, a uma professora que se esmera em explicar-lhes noo de conjunto.

    O que mais impressiona o formidvel empenho e a delicadeza da professora em sua

    inteno de ensinar conceitos matemticos, ali no quadro-negro... As crianas,

    desconfortveis e desengonadas nas carteiras, apenas repetiam suas palavras: Quantos

    elementos tm aqui? Treeees.......!!! Depois desta atividade, exerccios no papel. Na sala

    ao lado, crianas bem menores, algumas ainda bebs de 1 ano e pouco, cercadas por todos

    os lados das mesmas carteiras coloridas. Do lado de fora, no ptio da escola, um colorido

    parque infantil, que as crianas desfrutavam por um perodo diminuto em relao ao longo

    tempo em que permaneciam na creche. L fora, depois da cerca, os campos, as rvores, os

    animais, o sol, as nuvens o vento... (Observaes feitas em escola infantil da rea rural de

    um municpio do Rio de Janeiro - 21/05/01).

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    A cena inslita, mas to comum nas escolas brasileiras, a expresso de uma concepo de

    educao e de escola que, alm de no fazer conexes entre conhecimento e vida, est voltada

    para processos de transmisso/apropriao de conhecimentos via razo, que necessita,

    portanto, de mentes atentas e corpos paralisados. Pois no necessrio mais do que ateno

    mental para observar, refletir e compreender as regras de uma realidade que entendida como

    racionalmente organizada. Em outras palavras, o modo de funcionamento descolado do

    mundo natural indica que as prticas pedaggicas das instituies escolares esto definidas,

    geralmente, pelas concepes ontolgica, epistemolgica e antropolgica que estruturam o

    paradigma moderno, compondo uma idia de que as leis da realidade poderiam ser

    apreendidas por um ser cuja principal atividade a racional (Plastino, 1994). Em

    conseqncia, fica secundarizado tudo que extrapola esta dimenso: as brincadeiras, as

    sensaes corporais, o devaneio.... Mas isto no s: a reproduo deste modo de

    funcionamento se faz com o controle do corpo.

    Denominada por Foucault (1987) como instituio de seqestro, a escola e outras instituies,

    como os presdios, os hospcios e os quartis, visavam controlar no apenas o tempo dos

    indivduos, mas tambm seus corpos, extraindo deles o mximo de tempo e de foras. De

    maneira discreta, mas permanente, as formas de organizao espacial e os regimes

    disciplinares conjugam controle de movimentos e de horrios, rituais de higiene,

    regularizao da alimentao, etc. Assim, historicamente, a escola assume a tarefa de

    higienizar o corpo, isto form-lo, corrigi-lo, qualific-lo, fazendo dele um ente capaz de

    trabalhar.

    (...) A ordenao por fileira, no sculo XVII. Comea a definir a grande forma de repartio

    dos indivduos na ordem escolar: filas de alunos nas salas, nos corredores, nos ptios; (...)determinando lugares individuais (a organizao de um espao serial) tornou possvel o

    controle de cada um e o trabalho simultneo de todos. Organizou uma nova economia do

    tempo e da aprendizagem. Fez funcionar o espao como uma mquina de ensinar, mas

    tambm de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (Foucault, 1987, p. 126).

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    As filas que se formam para levar as crianas de um espao a outro, os tempos de espera em

    que permanecem encostadas s paredes, a falta de conforto das salas, as regras que so

    impostas nos refeitrios, os tempos previamente definidos para defecar: tudo isto remete

    idia de fabricao de uma retrica corporal, mas tambm de uma retrica do esprito, pois,

    dcil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado

    e aperfeioado (Foucault, 1987, p.118).

    Tendo como referncia a concepo espinosiana de que a vivncia do que bom e do que

    mau constitui dois tipos humanos, que vivem, aprendem e incorporam distintos modos de

    sentir e viver a vida (como potncia ou como impotncia), consideramos que esta

    perspectiva (de controle do corpo) est na contramo de um projeto de educao pautadonuma tica da alegria e do cuidado, na medida em que favorece a constituio de um tipo

    humano que fraco, impotente (Espinosa,1983; Deleuze, 2002).

    Se somos capazes de produzir histria e cultura, como produzir um cotidiano que se paute

    pela vivncia do que bom, que alegra e, que frente vida, nos faz mais potentes? Como

    favorecer encontros que compem? E como evitar os maus encontros, que decompem,

    produzem tristezas? Se estas so sempre expresses da nossa impotncia, como trabalhar no

    sentido de um cotidiano em que, diria Espinosa, as paixes alegres se sobreponham s paixes

    tristes?

    Uma resposta possvel : acreditando nos desejos das crianas, apostando em sua capacidade

    de escolha, possibilitando contato permanente com o mundo natural, brincadeiras, livre

    movimento do corpo. Entretanto, evidente a distncia da realidade escolar em relao a esta

    crena e a este movimento a favor do prazer, da potncia. Onde esto as origens deste modo

    de funcionamento?

    Educao, escola e divrcio entre natureza e cultura, corpo e mente

    Desde a Revoluo Industrial, (que inaugurou a reproduo em srie de bens materiais) e,

    depois, a Revoluo Francesa (que superou o feudalismo e props o mercado como eixo da

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    vida social) a funo social da escola vem sendo a de ensinar s novas geraes a lgica sob a

    qual o sistema capitalista-urbano-industrial-patriarcal se estrutura.

    No contexto de uma ordem capitalstica em que o sentido principal do trabalho social a

    produo e a acumulao de bens, a escola est ainda organizada de acordo com o

    pressuposto de que a razo pode decifrar a lgica interna da natureza. Isto explica que o

    objetivo fundamental do trabalho escolar seja o de desenvolver plenamente em seus alunos a

    capacidade racional para a compreenso e a submisso da natureza aos interesses do mercado,

    desprezando ou secundarizando outros caminhos de abordagem da realidade material e

    imaterial. Assim, alguns conceitos/idias/sentimentos/vises de mundo constitutivos dos

    ideais da modernidade orientam concepes e prticas escolares em nosso tempo.

    Primeiramente, uma crena na razo como salvo-conduto para enfrentar os ritmos da

    natureza, que so tomados como obstculos para um esprito conhecedor, pesquisador,

    desvendador de todos os mistrios da vida, que seria capaz, inclusive, de determinar os rumos

    da histria. H, em conseqncia, supervalorizao do intelecto e desprezo pelo corpo. Esta

    uma decorrncia da lgica dual que, separando seres humanos de natureza, afirma a

    racionalidade como processo superior, em oposio natureza, identificada com o corpo

    humano.

    No corao da lgica paradigmtica est uma idia de superioridade em relao natureza: a

    faculdade da razo no apenas coloca o Homem acima dos animais, como, por sua

    qualidade, superior a qualquer outra espcie. Decorre da que o pensamento seja

    considerado a atividade humana mais importante, que a cultura se apresente como a

    caracterstica peculiar do homem, pela qual se distingue como um ser especial, diferente dos

    animais e das coisas e, portanto, acima deles. Nesta perspectiva, a ordem natural seria inferior

    ordem cultural, tudo O que relativo a este plano se sobrepe. Assim, a cultura

    antropocntrica fragmenta o que uno: separa os humanos da natureza, a razo da emoo,

    definindo uma oposio hierrquica entre as partes, uma das quais sempre considerada

    como superior e sempre progride mediante a subordinao a outra (Mies e Shiva, 1997).

    Assim, a natureza aparece subordinada aos homens, a mulher ao homem, o consumo

    produo, o local ao global, a emoo razo, o corpo mente.

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    Onde nasceu esta dupla fragmentao, marcante na trajetria do pensamento ocidental? Na

    viso de Nietzsche (2000), j no momento de surgimento do pensamento filosfico cientfico,

    na Grcia, algo de essencial se perdeu na relao dos humanos com a natureza e no equilbrio

    entre afetivo e cognitivo.

    Para Nietzsche, a tradio filosfica ocidental inaugura um afastamento em relao

    natureza, que nefasto para os humanos, na medida em que provoca um desequilbrio

    patolgico entre corpo e mente, razo e emoo. Na sua viso, algo de essencial se perdeu

    quando, a partir de Scrates, os gregos comeam a se afastar dos rituais a Dionsio, o deus da

    msica e da embriaguez, e passam a privilegiar Apolo, o deus da racionalidade argumentativa,

    do conhecimento cientfico, da lgica. Dionsio o deus que no habita o Olimpo, mas a

    natureza. Representa a fora vital, a alegria, o excesso, enquanto Apolo, o deus severo,

    representa a ordem, a norma, o equilbrio. Para Nietzsche, a histria da tradio filosfica a

    histria do predomnio do esprito apolneo sobre o esprito dionisaco (Marcondes, 1997,

    p.243), ou seja, a histria do predomnio da razo sobre o desejo. A decadncia e a fraqueza

    da cultura ocidental teriam sua origem neste predomnio da racionalidade sobre a imaginao,

    as emoes, as sensaes, que o filsofo define como foras afirmativas da vida. Em sua

    viso, esta distoro teria sido reforada por elementos trazidos posteriormente pelo

    cristianismo, como a culpa, o pecado, a submisso, o sacrifcio.

    O conceito de corpo (do latim, corpus) vem se transmutando ao longo da histria do

    Ocidente. Durante a poca moderna, a discusso sobre o que se convencionou chamar de

    problema da relao entre alma e corpo manteve algumas das concepes antigas e

    medievais. Mas o desenvolvimento da cincia, em especial da fsica, em moldes mecanicistas,

    trouxe a noo de corpo material, radicalmente separado da alma.

    Descartes (1596-1650) o expoente desta distino entre a substncia ou coisa extensa (res

    extensa) e substncia ou a coisa pensante (res cogitans). Para o pensamento cartesiano, o

    corpo material ope-se ao esprito, alma, ao pensamento, na medida em que estes seriam

    indivisveis, enquanto que o corpo/ a matria seriam divisveis (Japiassu e Marcondes, 1996).

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    Na contramo da concepo cartesiana em que a mente domina o corpo e as paixes, e tem

    o poder de explicar todas as funes corporais de modo puramente mecnico Espinosa

    (1632-1677), ao invs de perguntar o que um corpo, ao invs de buscar uma definio,

    interroga: o que pode um corpo? Ao fazer esta pergunta, fere a lgica descrita por

    Descartes, segundo a qual todas as funes corporais podem ser explicadas, medidas,

    quantificadas. Para Espinosa, estamos fechados nos limites corpreos, mas podemos fugir

    sempre, graas fora que nos impulsiona para alm. Assim, no haveria hierarquia entre

    corpo e alma, h uma fora inconsciente no esprito, assim como h uma potncia insuspeita

    no corpo (Barros e Passos, 2000, p. 3).

    Entretanto, ao assumir a funo de formar as novas geraes para a reproduo do modelo

    urbano-industrial, a instituio escolar ignorou concepes que no fragmentam nem

    subordinam o corpo mente. Ao contrrio, optou por uma viso que, ao hipervalorizar o ego

    e o intelecto, nega a verdade do corpo. De fato, temos sentido as conseqncias de um

    cotidiano regido por uma rotina de esforos mentais e inflexibilidade fsica. As doenas se

    manifestam, so resultado de um modo de funcionamento da sociedade, da fbrica, da

    escola, da instituio familiar, de cada um de ns que alienado em relao a muitas das

    mais elementares necessidades fsicas, como respirar profundamente, alimentar-se

    sadiamente, dormir bem, relaxar.

    O corpo humano mais do que um portador do texto mental

    Numa sociedade marcada por controle e racionalidade, os movimentos de liberdade e

    expressividade das crianas assustam os adultos. Amarrados ao imprio do relgio, ao tempo

    da produo, estamos aprisionados aos prprios esquemas, ou melhor, aos limites que nos

    foram impostos, na vida escolar, na famlia, no trabalho. Tendo aprendido a engolir os

    desejos, so estes mesmos esquemas que necessitamos reproduzir, atravs das normas que

    pretendemos impor s crianas, modelando os gestos e, simultaneamente, aquietando o

    esprito. Pois, corpo e esprito no esto separados, o que ao no corpo , necessariamente,

    ao na alma (Espinosa,1983).

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    H, em todos os lugares, como que a obsesso do controle, que perpassa todos os nossos

    comportamentos adultos com relao criana; precisamos sentir-nos donos da situao,

    ter presentes todas as alternativas que a criana poder escolher, porque s assim nos

    sentiremos seguros. A liberdade da criana a nossa insegurana, enquanto educadores,pais ou simples adultos, e, em nome da criana, buscamos a nossa tranqilidade, impondo-

    lhes at os caminhos da imaginao (Lima, 1989, p.11).

    Mas o desejo conspira... Na viso do filsofo Charles Fourier (1772-1837), porque ele no

    tem outras alternativas, outros caminhos para satisfazer-se! Torna-se, assim, um subversivo

    permanente, que trabalha de maneira infatigvel na desorganizao da sociedade,

    desrespeitando todos os limites colocados pela legislao (Konder, 1998, p.17). Isto acontece

    por uma questo de sobrevivncia fsica e espiritual. O desejo persevera porque, oprimido, se

    manifesta como sintoma, como doena, do corpo e da alma, pois, toda paixo estrangulada

    produz uma contrapaixo to malfica quanto a paixo natural seria benfica (idem, p.19).

    Alm de buscar uma compreenso sobre um estilo de educar que desconsidera as crianas em

    sua integralidade existencial, a srie O corpo na escola quer apresentar e refletir sobre

    prticas educacionais atentas s vontades do corpo; prticas que no aprisionam os

    movimentos, ao contrrio, ajudam as crianas a expressarem a dana de cada um, isto , o

    jeito de ser, que , em outros termos, a expresso de nossa psiqu, de nossa alma. Atravs da

    dana do corpo se mostra o interior de cada um (Robim, 1997, p. 1).

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    Para danar a sua dana e construir uma dana coletiva (o estilo de ser de cada grupo)

    precisamos de espaos-ambientes (Lima, 1989), que favoream esta construo, que

    abram espaos (objetivos e subjetivos) para o corpo e o movimento. A escola precisa

    recuperar a liberdade de movimentos que a vida na cidade grande e seu respectivo

    modelo de funcionamento escolar restringiram, impedindo as mais simples e

    fundamentais manifestaes como correr, pular, saltar, etc.

    (...) Tudo isto traz tambm uma reduo da confiana no prprio corpo e uma certa

    sensao de impotncia que difcil de erradicar, apesar de muitas vezes tentar-se

    compensar a criana dando-lhe maior estimulao de sua fantasia ou de sua inteligncia,

    atravs de tantos meios de que dispomos atualmente, conseguindo assim que o centro

    intelectual supra uma carncia que na verdade no pode cumprir porque corresponde a

    outros nveis de existncia (Palcos, 1998, p.2).

    De acordo com Palcos (1998), a falta de liberdade de movimentos vai formando travas que

    impedem as crianas de fazer um crescimento harmnico. Como todo movimento se inicia ou

    deveria iniciar-se com um movimento reflexo, aqueles se perdem na medida em que estesficam inibidos. As escolas, enquanto espaos de educao integral das crianas, devem

    constituir-se como ambientes que contribuam para evitar o surgimento de travas, ou mesmo

    eliminar as que j tiverem se instalado, contribuindo para construir ou mesmo recuperar a

    liberdade e a confiana no corpo. Esta uma das responsabilidades do educador que assume a

    educao integral das crianas, porque a confiana no prprio corpo est relacionada ao

    sentimento de confiana na vida.

    Temas que sero abordados na srie O corpo na escola, que

    ser apresentada no programa Salto para o Futuro/TV

    Escola/SEED/MEC de 14 a 18 de abril de 2008:

    PGM 1: A escola, a disciplinarizao dos corpos e as prticas pedaggicas

    O CORPO NA ESCOLA

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    Este primeiro programa apresentar e discutir a idia moderna de corpo como mquina e as

    suas influncias nas rotinas escolares, ainda em nossos dias. Abordar as concepes de corpo

    ao longo da histria, entre os gregos e, especialmente, em Descartes e Espinosa. E trar

    tambm os estudos de Foucault sobre o papel da escola na constituio da sociedade moderna,

    alm das idias da tradio filosfica racionalista e do romantismo sobre os cinco sentidos. A

    inteno a de fazer uma articulao deste conjunto de idias com as prticas educacionais

    cotidianas.

    PGM 2: Educao de corpo inteiro

    Este segundo programa ter como foco as contribuies atuais dos campos da pedagogia, da

    psicologia e da Educao Fsica, que, nos ltimos tempos, vm apresentando novas propostas

    comprometidas com uma educao de corpo inteiro. Sero debatidas as concepes de

    conhecimento e de prtica pedaggica informadas por tericos como Piaget, Vygostsky,

    Wallon, Maturana e Varela, Deleuze, e tambm propostas alternativas para uma educao que

    considera a escola como espao de educao integral, isto , como instituio que considere

    ritmos e interesses infantis, que permita s crianas e aos jovens aprenderem a identificar e a

    respeitar as vontades do corpo.

    PGM 3: Aconchegando o corpo na escola: as perspectivas

    Este terceiro programa tem o objetivo de discutir as rotinas que envolvem mais claramente os

    processos corporais (os tempos cotidianos para mexer, comer, dormir, danar, relaxar, correr,

    brincar), especialmente nas escolas de horrio integral. Assim, sero abordadas tanto as

    dinmicas de escolas de Ensino Fundamental, quanto de Educao Infantil, no que se refere s

    necessidades de ampliar os espaos e os tempos de movimentar-se livremente, relaxar,

    meditar, estar atento respirao, melhorar a alimentao, cuidar da postura, ter contato com

    a natureza.

    PGM 4 Educao e vivncia do espao: dilogos entre a arquitetura e a pedagogia

    O CORPO NA ESCOLA

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    Neste quarto programa, o debate ser voltado para as relaes entre a educao e a vivncia

    do espao. Neste sentido, abordar a questo do conforto e/ou do desconforto que oferecem os

    prdios escolares, assim como o afastamento das crianas em relao ao mundo natural. O

    objetivo discutir a sua adequao educao integral das crianas, considerando o conjunto

    de necessidades corporais, espirituais, sociais e cognitivas. O programa abordar a questo da

    importncia da definio de parmetros de qualidade (recentemente elaborados no campo da

    Educao Infantil), assim como as propostas de arquitetos escolares importantes, como

    Mayume de Souza Lima.

    PGM 5 - O corpo na escola: experincias alternativas

    Este quinto programa estar voltado para o relato e o debate de experincias concretas,

    trazendo educadores/instituies que buscam construir propostas pedaggicas e rotinas

    cotidianas comprometidas com a superao do divrcio entre corpo e mente, razo e emoo.

    O debate envolver questes como mudanas nas formas de organizao dos espaos, dos

    tempos, dos materiais pedaggicos e da prpria grade curricular, valorizando as atividades

    que incluem o movimento do corpo em contato com a natureza, os jogos (cooperativos x

    competitivos), a autodisciplina, a cooperao, a valorizao das interaes humanas.

    Bibliografia

    BARROS, Regina e PASSOS, Eduardo. A construo do Plano da Clnica. In:

    Psicologia, teoria e pesquisa, jan./abr. 2000, vol. 16, n.1, p. 71-79.

    DELEUZE, Gilles.Espinosa, filosofia prtica. So Paulo: Escuta, 2002.

    ESPINOSA, Baruch de. tica. So Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleo Os

    Pensadores).

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 1987.

    O CORPO NA ESCOLA

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    JAPIASSU, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionrio Bsico de Filosofia. Rio de

    Janeiro: Zahar, 1996.

    KONDER, Leandro. Charles Fourrier: o social ismo do prazer. R io deJaneiro: Ed. Civilizao Brasileira, 1998.

    LIMA, Mayume de Souza.A cidade e a criana. So Paulo: Nobel, 1989.

    MIES, Maria y SHIVA, Vandana. Ecofeminismo: teoria, crtica y perspectivas.

    Barcelona: Icaria editorial, 1997.

    MARCONDES, Danilo. Iniciao histria da filosofia: dos pr-socrticos

    Winttengestein. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1997.

    NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na poca trgica dos gregos. In: SOUZA, Jos

    (org.). Pr-socrticos vida e obra. So Paulo, Nova Cultural, 2000. (Coleo

    Os Pensadores).

    PALCOS, Maria Adela. Corpo e Psiquismo. Rio de Janeiro: Espao Coringa Rio

    Aberto, 1998, mimeo.

    PLASTINO, Carlos. O primado da Afetividade. A crtica freudiana ao paradigma

    moderno. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 2001.

    ROBIM, Michel. A dana nossa de cada dia nos dai, hoje!. Rio de Janeiro: Espao

    Coringa, 1998, mimeo.

    TIRIBA, La. Crianas, natureza e educao infantil. Tese de doutorado. Rio de

    Janeiro: PUC-Rio, 2005.

    ____. Reinventando relaes entre seres humanos e natureza nos espaos de educao

    infantil. Revista Presena Pedaggica, v.13, n.76, jul./ago., Belo Horizonte,

    Editora Dimenso, 2007.

    O CORPO NA ESCOLA

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    NOTAS:NOTAS:

    Professora ambientalista e jornalista. Coordenadora do Setor de Educao

    Ambiental do NIMA (Ncleo Interdisciplinar de Meio Ambiente/NIMA) da PUC-

    Rio. Professora do Departamento de Educao e do Curso de Especializao

    em Educao Infantil desta mesma Universidade. Assessora da Secretaria

    de Educao de Santo Andr/SP. Consultora desta srie.

    O CORPO NA ESCOLA

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    PROGRAMA 1PROGRAMA 1

    A ESCOLA, A DISCIPLINARIZAO DOS CORPOS E AS PRTICASPEDAGGICAS

    Escola, experincia e verdadeEscola, experincia e verdade

    Walter Kohan1

    A escola tem sido, nos ltimos sculos, uma das instituies privilegiadas para disseminar as

    verdades que uma sociedade produz, por meio de uma srie complexa de prticas de

    disciplinamento, controle e governo. Se pensarmos no corpo, uma das coisas que mais

    aprendemos na escola alunos, professores, orientadores, diretores, funcionrios, enfim,

    todos ns que passamos pela instituio levar os corpos de determinada maneira e

    privilegiar certo tipo de relaes corporais, com o nosso prprio corpo e os outros corpos que

    habitam a instituio. As cadeiras colocadas de acordo com alguma posio predeterminada,

    os corpos alinhados nas fileiras nos ptios, o uso de uniformes e outras normas sobre

    vestimenta, as regras para controlar a entrada e a permanncia nos banheiros so algumas das

    mais evidentes tcnicas de disciplinamento corporal.

    Para pensar a escola, pode ser interessante considerar conceitos como verdade e experincia.

    Os conceitos so criaes dos filsofos para dar conta de alguns problemas que eles mesmos

    criam. Alguns conceitos so to interessantes que adquirem vida prpria, para alm do

    problema para o qual foram criados. Este o caso de conceitos como experincia e verdade.

    Neste texto, tentaremos pensar, com eles, a escola, a disciplinarizao dos corpos e as prticas

    pedaggicas. Para isso, primeiro, vamos apresentar um uso especfico que M. Foucault faz

    dos conceitos de verdade e experincia, contrapondo-os; num segundo momento,

    estenderemos esse uso para pensar a questo que nos ocupa. Finalmente, formularemos alguns

    interrogantes a partir das anlises propostas para o caso especfico da infncia.

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    Foucault prope pensar a experincia e a verdade em relao com a escrita. O que significaria

    escrever um livro a partir dessas duas possibilidades? O autor francs prope que, segundo a

    lgica da verdade, quem escreve um livro o faz porque est instalado numa verdade e o

    sentido principal da escrita a transmisso dessa verdade para os eventuais leitores do livro.

    Assim, quem escreve um livro-verdade o faz para transmitir o que sabe para quem ele

    considera que no sabe. Um livro funciona muito bem como verdade quando, depois de sua

    leitura, sabemos o que antes no sabamos. De modo que, se h livros escritos como verdade,

    porque tambm h leitores de livros verdade, ou seja, aqueles leitores que procuram num

    livro as verdades que eles desejam conhecer. H livros que parecem ser escritos estritamente

    com essa pretenso: por exemplo, aqueles que levam por ttulo: O que verdadeiramente disse

    X ou ento tudo o que voc queria saber sobre Y. Tambm muitas outras formas de escrita

    podem ter essa mesma lgica da verdade. Por exemplo, o jornal. Lemos o jornal como

    verdade quando pensamos que nele vamos nos inteirar do que no sabemos.

    A experincia revela outra relao com a leitura. Um livro que funciona como experincia

    tambm afirma uma srie de verdades que pode ser constatada ou refutada. A experincia no

    indiferente verdade. Mas, diferentemente de um livro que funciona como verdade, um

    livro experincia no afirma verdades com o sentido de transmiti-las, mas para problematizar

    a relao que um autor, ou um leitor, tm com a verdade. De modo que o ato de escrever ou o

    de ler um livro, a partir da lgica da experincia, significam entrar num jogo de verdade que

    tem por propsito desestabilizar a prpria verdade da qual se parte. Afirma Foucault:

    Eu jamais penso exatamente o mesmo pela razo de que meus livros so, para mim,

    experincias. Uma experincia algo do qual a prpria pessoa sai transformada. Se eu

    devesse escrever um livro para comunicar o que j penso, antes de haver comeado aescrever, no teria jamais a coragem de empreend-lo2.

    Para Foucault, ento, a experincia, como propiciadora de transformaes, e no a verdade o

    que d sentido escrita. Um livro funciona como experincia quando, depois de l-lo, j no

    podemos mais saber o que sabamos antes, como o sabamos. Se a verdade consolida os

    lugares j habitados, a experincia uma espcie de viagem que permite sair do lugar que se

    habita. Quando ela intensa e ousada, a transformao sequer conhece o ponto de chegada.

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    Temos ento a experincia e a verdade como possibilidades da escrita e da leitura. Se o

    sentido da segunda a transmisso da verdade, o sentido da primeira a transformao de si

    atravs da transformao da relao com a verdade. O leitor j pode estar aplicando essa

    distino ao prprio exerccio de leitura que est fazendo agora mesmo com este texto.

    Pergunto ao leitor: estas palavras sobre a experincia e a verdade esto sendo lidas como

    experincia ou como verdade?

    Podemos tambm estender esses conceitos a muitos outros campos. Para aproximarmo-nos

    daqueles que participam deste programa, podemos pensar na educao. Comecemos pelo

    corpo. A verdade e a experincia so possibilidades do corpo em pelo menos dois sentidos.

    H, por um lado, corpos que funcionam como verdade, e a servio de uma verdade, para

    reproduzir padres ou valores socialmente impostos de, por exemplo, comportamento e

    beleza. E a verdade tambm uma possibilidade para relacionarmo-nos com os corpos, de

    saber o que no sabemos sobre eles, de como eles funcionam e como devem ser mostrados e

    usados socialmente. Cada sociedade contm uma srie de dispositivos para produzir, legitimar

    e transmitir suas verdades sobre as questes que lhe interessam. O corpo no uma exceo.

    Porm, h tambm a possibilidade de um corpo experincia, ou seja, de uma relao de

    experincia com o corpo. Neste caso, as prticas corporais no visam consolidao e

    transmisso de uma verdade sobre o corpo, mas, ao contrrio, colocar em questo as verdades

    que o corpo carrega consigo.

    De fato, a questo bastante mais ampla e a escola tem funcionado como uma das instituies

    mais poderosas na legitimao e na transmisso das verdades de uma sociedade, no apenas a

    respeito dos corpos. So to fortes os dispositivos escolares consolidados no apenas pela

    rigidez dos sistemas de ensino, mas tambm pelas tradies culturais que se sentem

    extremamente vontade neles , que a pergunta pela prpria possibilidade de uma escola

    experincia no carece de sentido. Em outras palavras, possvel uma escola que funcione

    como experincia e no apenas como verdade? Pode sobreviver enquanto escola uma escola

    que se volta contra as verdades que ela prpria afirma e dissemina?

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    Um leitor poderia estar tambm se perguntando: e caso sobreviva, como seria esta escola no

    que diz respeito s necessidades e aos desejos do corpo? A ordem disciplinar tradicional, com

    as cadeiras em filas, os uniformes e os regimentos atuais, seria substituda por qual ordem?

    Ou seria substituda pela falta de ordem, a desordem? Talvez seja necessrio um

    esclarecimento: no apenas mudando de tcnicas que se muda o modo de exercer o poder.

    Por exemplo, podemos sentar os alunos em crculo, em confortveis travesseiros, com roupas

    coloridas e numa sala bem arrumada para controlar e disciplinar mais sofisticadamente seus

    corpos. Tambm seria interessante pensar que a desordem tambm uma ordem. Em todo o

    caso, eis o que interessa mais a uma escrita experincia do que a uma escrita verdade: que o

    prprio leitor pense a forma que uma escola mais sensvel s necessidades e aos desejos do

    corpo teria.

    Essa pergunta, em parte, diz respeito a todos ns que habitamos a instituio escolar.

    Pensemos num professor de uma escola qualquer. Ele tambm tem a verdade e a experincia

    como possibilidades. Um professor verdade aquele que entra na sala de aula porque pensa

    que ele portador de algumas verdades das quais carecem seus alunos. claro que se existem

    professores verdade porque tambm h alunos verdade, ou seja, aqueles que entram na sala

    de aula para saber a verdade que os professores pretendem lhes transmitir. Ao contrrio, um

    professor experincia aquele que entra na sala de aula, mesmo afirmando uma srie de

    verdades, com o sentido principal de colocar suas verdades em questo, desejando mais

    transformar e ser transformado do que transmitir o que j sabe. E, certamente, s h

    professores experincia porque h alunos experincia. Tambm vale a pena se fazer a

    pergunta sobre a prpria possibilidade de ser um professor que funcione como experincia no

    interior da escola moderna, to prxima da lgica da verdade. Podemos ser professores

    experincia no meio das condies existentes, incluindo as demandas sociais que so

    colocadas na escola?

    A questo diz tambm respeito infncia e a como a acolhemos. Se a escola pressupe uma

    infncia verdade, porque temos feito dela um dos principais objetos de saber e poder. Da

    infncia cada vez sabemos mais e com mais detalhes e sofisticao. Basta sabermos a idade

    de uma criana para logo poder antecipar sua conduta, sua reao, e assim planejar

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    adequadamente uma estratgia de desenvolvimento. Com efeito, temos feito da infncia um

    dos terrenos favoritos da verdade. Diga-me teus anos e te direi como te comportars! O

    lugar outorgado infncia atravessa a esquerda e a direita. Sabemos a verdade de uma

    formao que conservar a sociedade ou ainda a revolucionar. Outorgamos um nico lugar

    infncia, como lgico, num lugar onde domina a verdade. A escola verdade acolhe uma

    infncia verdade, cuja formao alimenta os sonhos dos educadores. Pouco importa se esses

    so tambm os sonhos da infncia.

    Contudo, podemos afirmar outra relao com a infncia e dispor outro lugar para ela. Ela

    pode ser tambm algo mais do que a matria de nossos sonhos e utopias, se abrirmos a

    infncia e nossa relao com ela experincia. Mais uma vez, no est claro se isso

    possvel, e como possvel, na escola moderna. Mas parece evidente que a lgica da verdade

    est dando sintomas notrios de esgotamento, que ela pouco sensvel novidade da

    infncia; ao novo, virtual ou atual, que cada nascimento traz consigo.

    Por fim, a questo parece ir um pouco alm da escola, do corpo, da disciplina, dos

    dispositivos pedaggicos e, ainda, da prpria infncia. A questo se somos capazes de fazer

    no apenas do corpo, da escola e da infncia, mas da prpria vida, uma experincia. A questo

    ento se a verdade, ou se a experincia, que d sentido a uma vida... dentro ou fora da

    escola.

    Notas:

    Professor titular de Filosofia da Educao da Universidade do Estado do Rio

    de Janeiro (UERJ).

    2 M. Foucault. Entretien avec Michel Foucault. Entretien avec D.

    Tromabadori. In: Dits et crits. Paris: Gallimard, 1994/1978, p. 41.

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    PROGRAMA 2

    EDUCAO DE CORPO INTEIRO

    Daniela Guimares1

    De um modo geral, na escola, o corpo compreendido e vivido na perspectiva do controle, da

    adaptao e da represso. O ajuste social aprisiona a expanso, o espao dos impulsos e dos

    prazeres. preciso e precioso o silncio, o uniforme limpo e alinhado, o jeito correto de se

    sentar, o dedo levantado para a pergunta, o gesto calculado para no agitar o ambiente. Ocenrio de uma escola costuma ser reconhecido pela presena de cadeiras e mesas, quadro de

    giz, murais, ou seja, equipamentos materiais que legitimam a valorizao dos processos de

    representao (escrita, desenho, e outras marcas grficas), em detrimento de espaos para a

    acolhida e a movimentao do corpo. A dimenso individualizante do trabalho tambm

    contribui para o isolamento corporal: carteiras para uma s criana, atividades individuais,

    prticas em que o valor colocado mais em cada um do que no grupo.

    Na escola, os processos mentais tm primazia, em detrimento do corpo que, de modo geral,

    ocupa o plano da eficincia, como instrumento do pensamento, funcionando como ponto de

    aplicao de diversas tcnicas segurar corretamente o lpis, subir escadas alternando os

    passos com sincronia, equilibrar-se, sentar de modo ereto, dentre outras. De um modo geral,

    as aes educacionais valorizam mais as crianas como indivduos do que como participantes

    de um grupo social, incentivam mais os processos racionais do que os motores, sensoriais e

    afetivos.

    Esta situao enraza-se nas concepes de desenvolvimento e aprendizagem que sustentam o

    trabalho nas escolas. Diversos autores, especialmente do campo da Psicologia, elaboraram

    vises sobre como as crianas aprendem e se desenvolvem que so incorporadas pelas teorias

    pedaggicas, tendo em vista a organizao das prticas e dos modos de ensino nas instituies

    educacionais. Neste texto, vamos apresentar algumas destas teorias do campo da Psicologia,

    com o objetivo de focalizar o lugar que o corpo assume em suas formulaes.

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    Em suas pesquisas, na rea da Psicologia, Piaget buscava responder seguinte questo: como

    o adulto chega a pensar de modo hipottico e dedutivo, quer dizer, criando hipteses sobre

    acontecimentos futuros ou planejando mentalmente suas aes antes de serem realizadas?

    Como a criana deixa de precisar dos sentidos (olfato, viso, tato, etc.) ou da experincia

    direta com os objetos para conhec-los, podendo fazer isto somente atravs da sua ao

    mental?

    De acordo com Piaget, no incio, quando a criana pequena, at mais ou menos os 6 anos,

    para conhecer um objeto, preciso manipul-lo, senti-lo, t-lo presente. Por exemplo, no

    possvel entender quanto a soma de 2 laranjas mais 3 laranjas, se no for possvel tocar e

    mexer nas laranjas de verdade. Mais tarde, a criana no precisar mais lidar materialmente

    com os objetos para concluir relaes entre eles, mas conseguir mentalmente resolver

    problemas que envolvam essas relaes: a soma, a comparao entre as laranjas, etc. Piaget

    estudou como o homem chega a no precisar dos objetos concretos para extrair deles relaes,

    como faz isso mentalmente, pensando sobre eles.

    Piaget estudou tambm como nasce o conhecimento abstrato, ou seja, independente da ao

    do homem sobre os objetos; como gerado o conhecimento lgico, mental. Este projeto de

    estudo piagetiano denomina-se Epistemologia Gentica. Gentica significa a gnese, isto , a

    origem do conhecimento. Episteme significa cientfico; e logia quer dizer estudo. Piaget

    pesquisou a origem do conhecimento cientfico no homem. Neste processo, investigou o

    desenvolvimento intelectual (o desenvolvimento da inteligncia), dividindo-o em quatro

    grandes perodos: perodo sensrio-motor; perodo pr-operatrio; perodo das operaes

    concretas e perodo das operaes abstratas (ou formais).

    A prpria definio do projeto piagetiano j expe o seu limite na considerao do corpo. O

    conhecimento pela via das sensaes e do movimento algo a ser superado, tendo em vista a

    competncia mental, que se coloca como o ponto de chegada final do desenvolvimento, o

    pensamento abstrato, formal, hipottico e dedutivo. Conhecer construir relaes lgico-

    matemticas no contato com os objetos.

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    A partir das bases piagetianas, muitos projetos educacionais centram seu trabalho na

    construo das estruturas mentais das crianas, planejando atividades em que o foco

    organizar objetos logicamente, classificar, seriar, perceber diferenas e semelhanas entre

    eles. A competncia intelectual e individual da criana marca as prticas.

    Vigotski, tambm no campo da Psicologia, dedicou-se a identificar o nascimento cultural da

    criana, a partir do substrato biolgico (essencialmente corporal) que a constitui. Este autor

    prope uma abordagem dialtica para a relao entre biolgico e cultural, corpo e mente,

    compreendendo que as construes socioculturais transformam o suporte biolgico que,

    paralelamente, abre-se para novas elaboraes simblicas. Para este autor, a vida

    interpsicolgica, a cultura na qual nasce a criana, torna-se sua vida intrapsicolgica,

    formando suas competncias particulares, a partir de processos de negociao e re-criao

    constantes.

    Vigotski (1984) estuda o gesto de apontar como indicador da origem do processo de

    constituio sociocultural das crianas. Sobre isso, ele diz que, inicialmente, esse gesto no

    nada mais do que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa. Mas, quando a me vem

    e ajuda a criana, notando que o seu movimento indica algo, a situao muda; o apontar torna-

    se um gesto para os outros, para a me, neste caso. Ento, pegar um objeto transforma-se em

    apontar, pela compreenso que o adulto mostra ter da ao da criana. Um comportamento de

    base biolgica ganha novo sentido, torna-se comportamento dirigido para outra pessoa,

    comportamento social, pelo contato com o outro.

    Baseado em Vigotski, o trabalho de Pino (2006) dedica-se a buscar os indcios das origens da

    constituio cultural da criana no ponto onde ocorre o encontro das formas simblicas de

    comunicao adulta, com as quais o outro significa as coisas criana, com as formas

    biolgicas de comunicao da criana (formas que ela dispe ao nascer). O autor indaga se

    existiriam, antes do movimento de apontar, outros mecanismos que, sem exigir a

    funcionalidade motora do apontar, poderiam desempenhar um papel equivalente. Ou seja,

    antes da existncia da funcionalidade motora, seria possvel falar j de uma atividade cultural?

    Nesta pista, identifica quando e como formas de reatividade do corpo tornam-se expressivas,

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    portadoras de significao. Destaca o choro, o olhar, o movimento e o sorriso como

    mecanismos que promovem essa relao entre natureza e cultura, localizando, atravs da

    relao do adulto com essas expresses do beb, a construo de padres relacionais com o

    mundo cultural circundante.

    Desde os primeiros instantes da existncia, diferentes mecanismos culturais entram em ao,

    conferindo ao movimento do beb um carter cada vez menos automtico e cada vez mais

    imitativo e deliberativo. Ento, choros, sorrisos, deslocamentos e olhares so interpretados

    pelos adultos, criando formas relacionais com os bebs. A forma natureza (reflexos,

    movimentos fortuitos, balbucios, etc.) adquire um novo modo de existncia quando ganha

    significao nas relaes interpessoais.

    Ou seja, no incio, a funo sensorial e a funo motora constituem o primeiro circuito de

    comunicao da criana com o outro. Podemos ver as crianas trocando objetos, olhares,

    muitas vezes de forma casual e contingente. Ao entrar em funcionamento, esse circuito as

    coloca numa rede de relaes em que suas aes vo ganhando significao, de acordo com a

    tradio cultural do seu grupo. Pouco a pouco, ganham intencionalidade, sentido e direo.

    Neste enfoque, o corpo entendido como espao de construo simblica e cultural a partir

    da relao com o outro. O mundo adulto insere a criana no universo das construes

    simblicas e verbais, quando, por exemplo, nomeia a ao das crianas, tutela suas

    expresses, controla seus movimentos.

    Pino (2006) prope que a cultura supe a natureza, porque ela , em ltima instncia, a

    prpria natureza transformada em cultura, mas uma natureza que, sem deixar de ser

    natureza, torna-se algo novo (p. 268), o que se pode chamar de natureza humanizada.

    Essa ponderao importante porque chama a ateno para o risco da construo de

    dicotomias e desequilbrio na valorizao de um ou outro plano, o natural ou o cultural.

    De um lado, o trabalho de Vigotski chama a ateno para a importncia das relaes sociais

    na constituio cultural das crianas, valorizando o que podem descobrir e como podem

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    crescer em colaborao com adultos e parceiros com experincias distintas. Por outro lado,

    preciso desviar do risco de considerar o plano cultural como um ideal a atingir. importante

    focalizar, por exemplo, as formas no-verbais atravs das quais o mundo vai sendo

    significado e experimentado. De um modo geral, os adultos se colocam como aqueles que j

    sabem o que a criana quer, deseja, para onde vai seu movimento. Se as vem perto de um

    balano, a tendncia coloc-las em cima dele; se percebem objetos perto de uma caixa,

    concluem que vo coloc-los dentro dela.

    O referencial que Vigotski aponta para pensarmos a aprendizagem e a escola demanda que

    possamos focalizar os processos de negociao de sentidos das crianas entre si, e delas com

    os adultos, como diferentes relaes de fora se compem. O que pode a criana no contato

    com o adulto, de fato? Qual sua potncia, e no como se molda ao adulto? Trata-se de uma

    tnue e fundamental diferena que se coloca no cotidiano das escolas. At que ponto o adulto

    tutela a ao das crianas, ou dispe referncias e apresenta possibilidades que podem ser

    agenciadas pela criana, no movimento do seu crescimento?

    No plano do corpo, o desafio perceber como a dimenso natureza se torna cultura sem

    deixar de ser natureza, expresso de emoes e afetos no deliberados. Gestos e movimentos

    que nascem do impondervel, para obter prazer pelo prazer, podem tornar-se gestos para e

    com o outro, sem que se perca o espao para o irrefletido, o inesperado, a surpresa, a alegria.

    De modo semelhante a Vigotski, as investigaes do psiclogo Wallon buscavam como as

    conexes cerebrais modificam-se medida que o ser humano relaciona-se socialmente.

    Conversas do beb com a me, o colo dos adultos, poder ver e escutar outras pessoas, tudo faz

    com que as regies do crebro do beb se ampliem e mudem suas funes. As interaes

    sociais transformam os padres biolgicos. Wallon afirmava que o humano organicamente

    social. Tambm como Vigotski, Wallon prope que somos sujeitos a partir do outro, pela

    mediao do outro, ou seja, a partir da linguagem, que se coloca no meio, entre ns e o

    mundo, para organizar a nossa relao com ele. Mais uma vez, neste caso, o desafio

    perceber a linguagem para alm da dimenso oral, materializao do pensamento. H

    linguagem nos olhares, no toque, na entonao, em outros modos de significar e trocar com o

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    outro, para alm da forma verbal dominante e socialmente mais valorizada qual o lugar

    destas outras formas na escola?

    Wallon props trs centros que se entrelaam diferentemente, ao longo do desenvolvimento

    da criana: a afetividade, a motricidade e a cognio. Num perodo inicial do

    desenvolvimento, no recm-nascido, predomina a afetividade (a inteligncia ou cognio no

    se separa da afetividade). o perodo denominado por ele como impulsivo-emocional (at por

    volta de 2 anos). Nesse momento, o autor reconhece algo como um "dilogo tnico", ou seja,

    uma espcie de conversa entre o beb e o adulto por intermdio no s das palavras, mas do

    tnus corporal, da expresso facial, dos gestos, do contato fsico.

    na relao com o movimento e a fala dos adultos que a criana vai entendendo quem ela e

    quem so os outros. O processo de imitao tem um papel importante neste momento.

    Quando faz algo igual a algum, quando busca imitar a palavra dita pela me, quando imita o

    jeito de a av esconder um boneco embaixo de um pano, a criana ganha novos movimentos e

    vai inserindo em seu repertrio a possibilidade simblica, ou seja, a capacidade de representar

    aes e objetos ausentes do seu campo perceptivo, da sua viso presente.

    Conforme os movimentos se expandem e desenvolvem-se o pegar, o andar e o deslocar-se

    no espao tambm os movimentos simblicos aparecem. Trata-se do que Wallon denomina

    dos primeiros ideomovimentos, caractersticos do perodo sensrio-motor projetivo (entre 2 e

    4 anos).

    Wallon prope que o ato motor o deslocamento do corpo no espao com cada vez mais

    desenvoltura e segurana gera o ato mental. As primeiras idias mentais das crianas

    nascem em seus movimentos. Ao observarmos crianas pequenas (de 3 anos, por exemplo)

    brincando, comum percebermos que dos gestos brotam palavras e significados. Tambm

    quando desenham, s conseguem dizer o que fizeram depois que terminam e no antes. Ou

    seja, as palavras que retratam as idias surgem nas relaes e aes no espao.

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    importante ressaltar que o ato mental inibe o motor, mas no deixa de ser atividade

    corprea. Comea a haver uma economia no movimento quando o pensamento ganha um

    lugar maior, medida que a criana mexe menos msculos para realizar tarefas. No entanto,

    Wallon reconhece nas atividades de pensamento o que ele chama de funo tnica do

    movimento, ou seja, uma motricidade expressiva. Ento, h dois tipos de atividade corprea:

    a cintica, responsvel pelo movimento, deslocamento, mudana de posio e a atividade

    tnica, presente na imobilidade e responsvel pela expressividade.

    Para Wallon, por volta dos 4 anos, surge o perodo personalista, momento de afirmao do eu;

    e a partir dos 7 anos, o perodo categorial, quando o domnio cognitivo oferece as bases para

    que se desenvolvam as aes mentais de explicar, definir, diferir objetivamente o mundo.

    relevante pensarmos que tanto a dimenso afetiva, quanto a cognitiva (mental) e do

    movimento esto em jogo em todos os momentos do desenvolvimento. No h para Wallon

    superposio de uma pela outra, somente predominncia alternada. Valorizar estes trs planos

    no cotidiano da escola um desafio!

    A contribuio de Wallon para pensarmos a escola traz algumas outras provocaes: como

    equacionar a valorizao tanto do movimento cintico quanto do tnico, quer dizer, a

    importncia dos deslocamentos da criana no espao, da expanso, correr, pular, saltar e a

    contrao inerente ao pensamento? Como considerar o que o autor denomina como dilogo

    tnico, que aparece entre o beb e o adulto, como forma de relao mediada pelo contato

    corporal, como algo importante para a vida inteira? Como o professor toca, olha, escuta e,

    pelas vias sensoriais, constitui uma qualidade afetiva na relao com as crianas no cotidiano?

    Autores contemporneos do campo da Biologia e da Psicologia, Maturana e Varela, propem

    que sujeito e meio so efeitos de uma rede processual, constituindo-se reciprocamente. O

    princpio a relao. Assim, no conhecemos um mundo preexistente, que existe

    independente de nossas aes nele. No h separao entre nosso conhecimento do mundo e o

    que fazemos nele. Essa circularidade entre ao e experincia permite a afirmao de que todo

    ato de conhecer faz surgir um mundo. Quando nos debruamos sobre a realidade para

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    conhec-la, tambm produzimos essa realidade. Na relao entre sujeito e ambiente, ambos

    esto em constante mudana. A capacidade de o organismo produzir a si mesmo sem destruir

    sua unidade denominada pelos autores de autopoiesis.

    Assim, a cognio, ou a produo de conhecimento, acontece no domnio das interaes de

    todo o sistema autopoitico (onde a produo de sujeito e a produo de mundo acontecem

    simultaneamente). Portanto, o conhecimento no algo que acontece na mente, mas em todo

    o corpo. Maturana e Varela chamam de enao a cognio corporificada, isto , o fruto da

    ao do sujeito no mundo, possibilitada pelo corpo. A ao guiada por processos sensoriais.

    A partir dessas idias de Maturana e Varela, podemos dizer que a aprendizagem envolve a

    coordenao de corpo e mente e no somente a representao mental do mundo.

    Aprendizagem no repetio mecnica, mas atividade criadora, que envolve o acoplamento

    do organismo com o meio. Na escola, importante focalizar quais as experincias sensoriais,

    afetivas e relacionais das crianas, tendo em vista percebermos quais mundos criam e como

    so constitudas como sujeito. A experincia produz o conhecimento e produz a prpria

    criana, como exploradora, criadora, confiante em si, ou submissa, passiva, expectadora da

    ao do outro.

    A interlocuo com a Filosofia dilata essa compreenso da aprendizagem como criao de um

    mundo, experincia e no representao mental, algo que acontece somente no pensamento.

    Deleuze (1987), analisando a obra de Proust, prope que a aprendizagem acontece sempre por

    intermdio de signos e no pela assimilao de contedos objetivos; acontece quando um

    signo interpela o sujeito, no encontro, no como algo planejado de antemo. Para o autor,

    todo aprendiz egiptlogo de alguma coisa, decifra signos que emanam dos objetos, do

    mundo, das relaes.

    Portanto, para a escola, coloca-se o desafio de organizar espaos, objetos, relaes que

    incitem ao movimento, aos encontros, alegria, surpresa e ao impondervel. Isso no

    significa deixar de lado ou de fora o pensamento e a razo, mas de equacion-los com o corpo

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    e a emoo, na perspectiva de dar sentido e compreender os acontecimentos da vida, o que

    diferente de controlar a vida, antes que ela acontea.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    DELEUZE, Gilles.Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

    MATURANA, Humberto. Emoes e linguagem na educao e na poltica. Belo

    Horizonte: Editora UFMG, 2002.

    PIAGET, Jean. O raciocnio na criana. Rio de Janeiro: Record, 1967.

    PIAGET, Jean. O nascimento da inteligncia na criana. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.

    PINO, Angel.As marcas do humano: as origens da constituio cultural da criana na

    perspectiva de Lev S. Vigotski. So Paulo: Cortez, 2005.

    VYGOTSKY, Lev Seminovich. A formao social da mente. So Paulo: Martins

    Fontes, 1984.

    VYGOTSKY, Lev Seminovich. Pensamento e Linguagem. So Paulo: Martins Fontes,

    1987.

    WALLON, Henri. As origens do carter na criana. So Paulo: Nova Alexandria,

    1995.

    WALLON, Henri.As origens do pensamento na criana. So Paulo: Manole, 1989.

    Nota:

    Professora do Curso de Especializao em Educao Infantil Perspectivas

    de trabalho em creches e pr-escolas na PUC-Rio. Doutora em Educao

    pela PUC - Rio.

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    PROGRAMA 3

    ACONCHEGANDO O CORPO NA ESCOLA: AS PERSPECTIVAS

    Pensando o lugar do corpo na escola

    Alexandra Pena1

    Isabel C. Boga2

    Leonor Pio Borges3

    A famosa mxima penso, logo existo implica numa concepo que permeia todo o

    conhecimento e osvalores ocidentais, e que tem duas caractersticas muito definidas: a de que

    corpo e mente so opostos, e a de que o corpo um mero suporte para as nobres atividades

    mentais. Essa concepo, na escola, se materializa como a crena de que s se aprende com a

    mente.

    Nossos questionamentos esto relacionados, principalmente, s rotinas e atividades escolares

    que envolvem o corpo, de bebs dos berrios at crianas de 10 anos, como comer, brincar,

    tomar banho, correr, se mexer, danar, ir ao banheiro... Por que estabelecemos uma hora

    para cada uma dessas atividades? Ser que todo mundo tem fome junto? Quem diz que hora

    de dormir? Alm disso, por que propomos determinadas atividades e no outras? Temos, na

    escola, uma hora para danar? E para fazer o que se tem vontade?

    No incio, procuramos compreender o modelo de escola vigente, evidenciando, a partir desta

    contextualizao, a relao que a sociedade ocidental estabeleceu com o corpo e com suas

    necessidades e desejos. Em seguida, abordamos a questo do corpo como a primeira morada

    do psiquismo e finalizamos com a esperana de conquistar novas concepes sobre o corpo e

    sobre a criana, que gerem desdobramentos nas prticas pedaggicas e no cotidiano da escola.

    Historicamente, a relao do ser humano com o corpo marcada pelo controle. Hoje, as

    instituies escolares ainda reproduzem estas prticas dicotmicas por duas razes: primeiro,

    porque o discurso higienista produziu, alm de uma preocupao com o corpo, a sade e a

    higiene, um discurso social e poltico, e segundo pela presena ainda marcante de instituies

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    religiosas nos espaos educacionais, sustentadas por um discurso do sagrado e da moral. O

    controle da economia do corpo pela limpeza, pela abstinncia sexual e no-masturbao foi

    um princpio bsico para a formao dos sujeitos capitalistas e cristos, que ns somos.

    Os corpos ficaram cada vez mais regulados e administrados em nome da ordem social. O

    corpo solto torna-se imoral, desviado, desocupado e deve ser transformado, com a ajuda da

    educao moral, em corpo til. Segundo Foucault (1982), poderamos dizer que o sculo XIX

    realizou um grande esforo de disciplinarizao e de normalizao.

    Podemos constatar a expresso destas marcas em algumas prticas escolares como: filas de

    carteiras, o emparedamento por horas a fio das crianas dentro das salas de aula, as filas

    indianas, as msicas para todas as atividades, a hora definida de cada coisa, etc.

    A descoberta das crianas como seres diferentes dos adultos trouxe uma questo: como fazer

    para educ-las, para torn-las virtuosas? Uma das respostas encontradas foi a criao de

    instituies para civilizar as crianas e, em conseqncia, controlar as famlias e a sociedade

    (Barbosa, 2006, p.54).

    A rotina da escola demonstra um automatismo das relaes e uma acomodao a padres de

    comportamento previamente estabelecidos, onde no h lugar para o surgimento do novo.

    Que concepes de criana e de desenvolvimento infantil esto por trs desse modelo de

    educao? Seria a concepo de uma criana autnoma, criativa, capaz de produzir cultura?

    Parece mais a de uma criana em falta, que precisa ser ensinada, moldada.

    No entanto, no podemos nos esquecer que somos, ns mesmos, profissionais de educao

    cuja formao marcada fortemente pelo vis cartesiano que perpassa toda a civilizao

    ocidental e que, inclusive, influencia a forma como construmos e organizamos nosso

    conhecimento. Deste modo, por mais que saibamos que no existe desenvolvimento motor

    separado de desenvolvimento afetivo nem de desenvolvimento cognitivo, ainda difcil ter

    um olhar integrado sobre o processo de desenvolvimento de nossas crianas na prtica

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    cotidiana. O risco de compartimentalizar o processo de desenvolvimento infantil real e

    constante

    Alm dessa compartimentalizao, existe a questo do peso que cada um desses aspectos

    encontra em nossa sociedade. Como j colocado anteriormente, vivemos numa sociedade que

    prioriza o racional, o pensamento, os processos mentais em detrimento de outras experincias

    como as sensoriais, sentimentais, artsticas e o contato com a natureza.

    A importncia dada ordem e ao controle aparece claramente em diversos momentos do

    cotidiano: as crianas no tm liberdade para escolher as atividades que desejam realizar, de

    se servirem sozinhas na hora do almoo, de dormir o tempo que precisam, de se

    movimentarem da maneira que quiserem.

    Todas essas questes nos fazem refletir sobre como a escola pode acabar contribuindo para a

    formao de pessoas sem autonomia, que desconhecem seus prprios corpos, seus

    sentimentos, suas possibilidades e seus limites.

    atravs do corpo que a criana experimenta o mundo, conhece as sensaes de calor, frio,

    aconchego, dor, prazer, medo, etc., mas para isso necessrio que ela possa se movimentar e

    interagir com o ambiente sua volta. De fato, para Maturana (2001) viver sinnimo de

    conhecer. Segundo este autor, um bilogo chileno, o ser humano aprende com o corpo inteiro.

    Seu conceito de acoplamento estrutural supe que o conhecimento se d nas trocas

    estabelecidas a partir das relaes do ser humano com o outro humano, mas tambm com o

    outro ambiente sua volta.

    Neste processo, o ser humano se modifica e modifica o outro simultaneamente, o que

    significa dizer que a cada encontro, a cada momento, estamos modificando e sendo

    modificados, numa espiral infinita que s cessa com a morte. Esse conceito d a dimenso da

    importncia do espao entre o eu e o outro, o espao da relao, que chamado por Maturana

    de espao de convivncia. (Maturana, apudPio Borges de Castro, 2006, p. 16) Este conceito

    implica num ambiente verdadeiramente acolhedor construo do conhecimento, pois parte

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    do princpio de que o conhecimento no est em mim nem no outro, mas sim na relao que

    estabelecemos entre ns. Esse pressuposto inclui a necessidade de reconhecer a alteridade em

    todas as suas dimenses, pois, sem respeito ao outro, s suas diferenas, desejos e

    necessidades, no h aprendizado, no h paz no viver e no conviver.

    Para Maturana (2001), o conhecimento no representativo, no est gravado na mente

    humana, mas corpreo est gravado em nossos corpos, o que inclui outras dimenses que

    no s a mente racional humana: inclui as sensaes corporais e os sentimentos vivenciados.

    No entanto, estamos inseridos em uma cultura que enfatiza o conflito mente-corpo e a escola

    acaba reproduzindo esta dualidade em suas estruturas curriculares e em suas rotinas.

    (...) o jeito de ser do nosso corpo no algo que possumos naturalmente, no apenas

    uma construo pessoal, mas social e poltica: algo aprendido, construdo ao longo de

    toda a vida. Portanto, a histria e a cultura significam nossos corpos (Tiriba, 2001, p. 01).

    H uma grande valorizao do intelecto, j que a sociedade em que vivemos tende a ignorar

    tudo aquilo que nos identifica enquanto animais. Relegando o corpo a um segundo plano,

    ficam tambm esquecidos outros canais de expresso, entre eles as sensaes fsicas, as

    emoes, os afetos, os desejos.

    As prticas escolares, em geral, associam movimento baguna, disperso e, por isso,

    privilegiam o no-movimento, a postura esttica, quieta e atenta como condio para a

    aprendizagem. Valoriza-se apenas o movimento mecnico e sistemtico, que tem como

    objetivo aprimorar a coordenao motora, para garantir a aquisio da leitura e da escrita ou,

    ainda, o movimento ligado prtica esportiva.

    Um corpo escolarizado capaz de ficar sentado por muitas horas e tem, provavelmente, a

    habilidade para expressar gestos ou comportamentos indicativos de interesse e de ateno,

    mesmo que falsos. Um corpo disciplinado pela escola treinado no silncio e num

    determinado modelo de fala; concebe e usa o tempo e o espao de uma forma particular.

    Mos, olhos e ouvidos esto adestrados para tarefas intelectuais, mas possivelmente

    desatentos ou desajeitados para outras tantas (Louro, apud Pena, 2003, p. 35).

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    Os comportamentos e os movimentos previamente determinados compem a rotina de

    atividades infantis, desconsiderando o interesse das crianas. O espao externo das escolas

    costuma ser muito mal aproveitado, restringindo-se apenas ao recreio. O dia-a-dia escolar

    lembra o de uma linha de montagem, onde os encontros acontecem sem criatividade, sem

    troca, sem emoo, sem produo de conhecimento.

    Hoje, quando ainda temos muitas de nossas prticas educativas resultantes desse modelo

    autoritrio e assistencialista, observamos, com freqncia, escolas que mantm na sua rotina

    um excessivo controle sobre as atitudes espontneas das crianas.

    O atendimento aos bebs tambm denuncia prticas estereotipadas de atendimento. Com a

    criao de berrios, um enorme nmero de bebs passou a ser atendido em ambiente escolar.

    O que dizer dos bebs que so impedidos, por exemplo, de explorar os alimentos com as

    mos, com a boca, de se sujarem por inteiro? Provavelmente, eles perdero muito com relao

    conquista de sua autonomia pessoal e parte da confiana em si mesmos.

    Em geral, no temos idia do quanto o corpo, desde muito cedo, est implicado na

    constituio do psiquismo. No incio da vida, nossa comunicao com o mundo se d no nvel

    corporal, atravs dos sentidos: ttil, olfativo, visual, auditivo, gustativo e muscular (Anzieu,

    1989).

    O nascimento biolgico e o nascimento psquico no coincidem no tempo. Neurobilogos,

    psiclogos, alm de psicanalistas, vm estudando esta questo desde os anos 70,

    principalmente na Frana e nos EUA, procurando identificar o percurso que leva ao

    nascimento psquico, considerando especialmente a enorme plasticidade do crebro nos trs

    primeiros anos de vida.

    Em um primeiro momento, o beb vai adquirindo, pouco a pouco, a conscincia de uma

    separao de corpos entre ele e seus cuidadores. Adquirir a conscincia desta separao uma

    travessia extremamente delicada que se d durante o primeiro ano de vida. Sair da unidade-

    dual, para perceber a existncia de um eu e de um no-eu, o caminho inicial para o

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    desenvolvimento do psiquismo. De incio temos, portanto, um ego corporal para construir um

    ego psquico. Segundo Tustin (1990), a maneira como o beb toma conscincia do no-eu

    essencial constituio de sua identidade individual.

    Numa interseo com seus cuidadores, que deve ser contnua, se d a interpenetrao de

    alguns aspectos corporais: os olhos relacionados ao olhar acolhedor do outro; a boca

    relacionada amamentao e ao auto-erotismo oral; a vivncia de colo, experimentada como

    suporte pelo beb, numa juno entre cabea, nuca e costas e, finalmente, todos estes aspectos

    embalados pela capacidade de expressar sons adquirida pelo beb. Num sutil alinhavar de

    sensaes, o beb vai organizando seu corpo e percebendo-se como nico e inteiro.

    Os processos de subjetivao vo depender dessa primeira organizao do corpo sensvel.

    Nesta primeira costura se faz necessria uma parceria com a doura, como acolhedora deste

    funcionamento precoce, em que as emoes ainda so confundidas com as sensaes (Haag,

    1991, p. 53-54). Ser atravs da doura do toque que construiremos a ternura. A ternura ,

    portanto, inicialmente ttil (Fontes, 2002).

    O sentido do toque entre o cuidador e o beb uma maneira de transmisso entre os dois. O

    toque entre cuidador e beb pode resgatar ou impedir um melhor equilbrio nesta dade, que

    a base do contato do beb com o mundo. Com o nascimento de um beb, recebemos em

    nossos braos muito mais que uma tabula rasa, na qual iremos imprimir nossa educao

    parental ou pedaggica. O que na verdade ocorre so trocas bilaterais, que so construdas

    desde o nascimento. Estas interaes podem formar uma troca positiva quando h: sincronia

    (simultaneidade), mutualidade (reciprocidade) e sintonia afetiva. Por outro lado, temos as

    interaes patolgicas e patognicas que so o resultado de sobrecarga, carncia e

    assincronia(Golse, 2003).

    O cuidador uma pea-chave nesta atmosfera que envolve o beb. Se o adulto for sensvel a

    este momento especial da vida do beb, estar cuidando do espao relacional entre ele e o

    beb, construindo um campo de afetao (Maia, 2004) favorvel ao desenvolvimento

    infantil. Desta forma, promove-se o fortalecimento dos laos afetivos, fundando uma

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    intimidade estruturante na escola. Estes subsdios permitem que os educadores possam

    identificar diferentes modalidades relacionais, com o intuito de promover interaes positivas

    que incentivem o desenvolvimento saudvel do beb e da criana, prevenindo assim,

    possveis desequilbrios nestas trocas.

    Nos lactentes, percebemos que os estmulos auditivos constituem o grande motor da

    interao. A voz do adulto provoca sorrisos, atrai o olhar, facilita uma relao face a face,

    alm de permitir uma troca de comunicao verbal. O ambiente lingstico dos bebs est

    composto por formas particulares de linguagem. A prosdia (pronncia das palavras)

    contribui para a estruturao do universo afetivo do beb e tambm ajuda na estruturao de

    seu tratamento da palavra. A criana, ainda bem pequena, j percebe os sons das palavras,

    podendo organiz-los, segment-los e reconhec-los. Os bebs reagem s variaes na

    durao e na entonao da fala dos adultos e, em resposta, se comunicam, se identificam e

    captam a emoo transmitida em cada fala. A maneira de falar com as crianas, assumida,

    instintivamente pelos pais e por grande parte dos que cuidam das crianas, mergulha a

    criana num banho lingstico e afetivo (Soul & Cyrulnik,1999).

    A Educao Infantil, ao lidar com crianas de zero a cinco/seis anos, e a primeira parte do

    Ensino Fundamental, ao lidar com crianas at 10 anos, so etapas que esto mergulhadas no

    mundo da comunicao, no s da comunicao verbal, como tambm da comunicao no-

    verbal. O mundo da expresso corporal e sensorial, embora desprezado, um universo a ser

    explorado, quando o aprendizado direcionado e restritivo no dominar mais as relaes

    escolares.

    Portanto, de crucial importncia que os educadores sejam sensveis s necessidades e

    desejos do corpo. Mas como desenvolver essa escuta com as crianas se no a tivermos

    conosco? Como perceber as sensaes dos outros sem conectarmos as nossas prprias? Como

    estar aberto s emoes infantis sem recuperarmos os nossos sentimentos? Como acompanhar

    o ritmo das crianas sem sentirmos os nossos ritmos biolgicos?

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    Novas prticas, como a arte milenar de massagem para bebs desenvolvida na ndia, chamada

    Shantala, poderiam ser desenvolvidas nas creches e nas escolas.

    A Shantala na escola seria uma ponte entre a experincia corporal com o beb e a

    apropriao de um olhar mais amplo pelas educadoras de berrio. Praticar a Shantala, para

    alm de uma tcnica, traduz uma oportunidade de contato no s com o corpo do beb, mas

    tambm com o prprio corpo das educadoras, repensando a relao que estabelecem com

    cada criana, assim como valorizando as inmeras formas de comunicao produzidas

    pelas crianas. Tocar implica em ser tocado, j que o relaxamento necessrio para a prtica

    da Shantala pode trazer uma nova forma de contato das educadoras/cuidadoras com elas

    prprias, oferecendo novas representaes psquicas, que seriam acolhidas num trabalho de

    formao destas educadoras (Boga Borges, 2007, 57-58).

    Estar atento ao corpo, aos sentimentos e aos desejos das crianas nas relaes e atividades

    cotidianas na escola implica reconhecer, legitimar e dar voz s necessidades infantis, seja da

    ordem do corpo ou do psiquismo, favorecendo o desenvolvimento de seres sensveis a si

    mesmos e aos outros. Nas situaes cotidianas, por exemplo, esse reconhecimento acontece

    quando a criana chega a um adulto mostrando o joelho machucado e este pergunta est

    doendo?. Ou quando uma criana bate em outra e o adulto pergunta: O que aconteceu?

    Voc est com raiva? Por que voc fez isso? Estas perguntas fazem com que a criana possa,

    gradativamente, perceber e nomear as sensaes do seu corpo e seus sentimentos at que seja

    capaz de expressar-se pela fala, verbalizando as situaes ocorridas, as sensaes

    experimentadas, os seus pensamentos e sentimentos. Dessa forma, constituem-se como

    sujeitos sensveis a si mesmos e ao outro, pois, aoexperimentarem um olhar externo atento,

    carinhoso e acolhedor em relao a si, so marcados inevitavelmente pela dimenso da

    alteridade.

    Em outras palavras, estamos falando de um ambiente que possibilite a constituio de sujeitos

    solidrios, conscientes de si e da alteridade, da existncia de um outro que diferente de

    mim. Num mundo regido cada vez mais pela massacrante ditatura do individualismo e do

    imediatismo, do eu quero agora, do no me importa o que voc sente, pensa ou qual a sua

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    situao me importa que eu esteja satisfeito, urgente pensarmos, como profissionais de

    educao, nos seres humanos que estamos formando e que queremos formar.

    Segundo Tiriba (2005), o paradigma que norteia a civilizao ocidental produz desigualdade

    social, desequilbrio ambiental e sofrimento pessoal. De fato, cada vez torna-se mais claro que

    h algo errado num mundo onde existe um abismo entre os muitos sem nada e os poucos que

    concentram a riqueza; onde a natureza sinaliza no suportar mais o modo de produo

    capitalista que a explora sem trgua; e, por fim, um mundo em que os seres humanos esto,

    cada vez mais, consumindo compulsivamente (bens, medicamentos, drogas, comida, sexo,

    etc.) em busca de uma satisfao que no chega, o que os mantm cada dia maisdeprimidos e

    angustiados.

    preciso mudar. preciso resgatar e valorizar a dimenso do cuidado conosco, com o outro e

    com o mundo, comeando no berrio das creches e, se possvel, at incorporarmos o cuidado

    ao nosso modo de viver.

    Pensamos que um caminho considerar uma concepo de formao e qualificao dos

    profissionais de educao que estimule um processo de construo de autonomia, que s

    possvel valorizando a histria, a experincia, a palavra e tambm o corpo desses

    profissionais.

    Ao analisar as prticas escolares, especificamente entre os bebs de berrios e as crianas de

    at 10 anos, procuramos demonstrar o quanto rotinas estereotipadas podem prejudicar uma

    experincia rica em trocas, transformando-a numa atividade mecnica e carente de sentido.

    Todos os envolvidos nesta cena sofrem, tanto adultos, como crianas. A coragem de mudar

    aparece bem traduzida nas palavras de Freire:

    No nos tornamos "delinqentes", anti-sociais, "narcisistas", deprimidos, obcecados pela

    domesticao do corpo e por sensaes corporais estticas apenas porque queremos devorar

    tudo e todos, segundo a lei do consumo. Tornamo-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes,

    abatidos, ansiosos, impiedosos, truculentos, apticos ou "resignados" porque nos fazem ver,

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    sentir e pensar que nada do que somos ou temos desperta o menor "interesse", "admirao",

    "cuidado" ou amor do outro (Freire Costa, 2000).

    Reafirmamos nosso desejo de contribuir para um mundo diferente, uma vida menos banal,

    onde a tica do cuidado possa retomar o seu valor, ao favorecer em cada um o encontro

    com sua maneira singular de ser. Assim, propomos e buscamos maneiras de conviver com

    nossos parceiros de vida, tenham eles a idade que tiverem, estimulando que o debate, os

    desdobramentos e as respostas possam ser construdos pelos que vivem a experincia num

    eterno compartilhar ao longo do trabalho e ao longo da vida.

    Referncias Bibliogrficas

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    Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

    MATURANA, Humberto R., VARELA, Francisco J. A rvore do Conhecimento. So

    Paulo: Editora Palas Atena, 2001.

    PENA, Alexandra C. A livre expresso infantil em Reich e Freinet. Monografia do

    Curso de Especializao em Educao Infantil, PUC-Rio, 2003.

    PIO BORGES DE CASTRO, M. Leonor.Boneco de Lata: Um Olhar sobre o Lugar da

    Afetividade no Desenvolvimento na Educao Infantil. Monografia do Curso de

    Especializao em Educao Infantil, PUC-Rio, 2006.

    SOUL, M., CIRULNIK, B. A Inteligncia Anterior Palavra. So Paulo: ArtMed,

    1999.

    O CORPO NA ESCOLA

    39 .

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    40/65

    STERN, D.O Mundo Interpessoal do Beb. So Paulo: Artes Mdicas, 1992.

    TIRIBA, La. O Corpo Silenciado na Escola, 2001.

    TIRIBA, La. Crianas, Natureza e Educao Infantil. Tese de Doutorado. PUC-Rio,

    2005.

    TUSTIN, F. Barreiras autistas em pacientes neurticos. Porto Alegre: Artes Mdicas,

    1990.

    Revista Vida Simples - 06/2003

    Ns fazemos o mundo.

    Notas:

    Psicloga com Formao em Psicoterapia Reichiana, especialista em Educao Infantil

    pela PUC-Rio e mestranda em Psicologia pela UFRJ.

    2 Psicanalista e membro do grupo de pesquisa "Primrdios da Vida Psquica - Clnica dos

    Primeiros Anos", do Crculo Psicanaltico do Rio de Janeiro - CPRJ. Especialista em

    Educao Infantil pela PUC-Rio.

    3 Psicloga, bailarina, especialista em Educao Infantil e mestranda em Educao pela

    PUC-Rio.

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    40 .

    http://vidasimples.abril.com.br/http://planetasustentavel.abril.co/nm.br/noticia/conteudo_259923.shtmlhttp://vidasimples.abril.com.br/http://planetasustentavel.abril.co/nm.br/noticia/conteudo_259923.shtml
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    PROGRAMA 4

    EDUCAO E VIVNCIA DO ESPAO: DILOGOS ENTRE A

    ARQUITETURA E A PEDAGOGIALa Tiriba1

    Salas de aulas, geralmente inspitas, alunos em carteiras enfileiradas, quadro de giz, um

    professor frente: estranha e inadequada organizao, em especial, nos lindos dias-de-sol-l-

    fora. Fechada entre muros, estranha interao com a realidade social, desarticulada dos

    cenrios onde ocorre a vida de verdade, indiferente, insensvel ou artificial na relao com oque, de fato, para as crianas e jovens, mobiliza e tem significado. E inadequada sade do

    corpo, relao dos humanos com o mundo natural, ao desfrute do sol, do vento. Indiferente

    beleza do universo mais amplo em que estamos situados, s necessidades do corpo e do

    esprito. Espao contido, de crianas e adultos emparedados, mas fervilhante de energias.

    A escola o nico espao social que freqentado diariamente, e durante um nmero

    significativo de horas, por adultos e crianas. Para os pequenos, que freqentam creches, pr-escolas e as sries iniciais, especialmente os que permanecem em horrio integral, a que,

    para alm do convvio familiar, aprendem a viver e a conviver. Nove horas dirias, s vezes,

    mais! Para quem tem entre 0 e 10 anos, o que resta de tempo em cada dia? Se na escola que

    grande parte da vida transcorre, preciso que a as crianas se sintam muito bem, que a sejam

    felizes...

    Referindo-se s reas destinadas s escolas nas cidades contemporneas do Terceiro Mundo, aarquiteta Mayume de Souza Lima escreveu:

    As construes podiam se destinar tanto a crianas, a sacos de feijo ou a carros, pois so

    apenas reas cobertas, com fechamento e piso. (...) os seres humanos perderam no apenas

    a sua capacidade nica de dar sentido s coisas, mas tambm perderam o instinto primrio

    de todos os animais adultos de buscar o ambiente mais favorvel para o desenvolvimento

    dos seres jovens de sua espcie (Lima, 1989, p.11).

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    Atualmente, somos informados sobre esforos investidos por dirigentes de secretarias de

    educao, e mesmo por diretores e/ou professores, no sentido de qualificar os espaos

    escolares. Sabemos de escolas que reorganizam as salas derrubando paredes, introduzindo

    grandes espaos interativos e cantos para brincadeiras; que abrem janelas nos muros,

    possibilitando a viso do lado exterior; que assumem o entorno, os parques, as praas, o

    patrimnio cultural e ambiental da cidade como objeto de investigao pedaggica.

    Entretanto, esta no a realidade da maioria das cidades brasileiras! No municpio do Rio de

    Janeiro, por exemplo, vrias escolas no dispem de reas ao ar livre. O resultado que

    crianas passam manhs e/ou tardes inteiras em espaos fechados, muitas vezes em salas

    inteiramente ocupadas por mesas e cadeiras.

    Mesmo considerando a precariedade de muitos Sistemas de Ensino, a situao salarial dos

    professores e os recursos limitados para a educao, entendemos que hora de levantar a

    bandeira da qualidade de vida nas escolas! No mais possvel compactuar com a

    insalubridade do modo de funcionamento escolar. J hora de serem efetivadas as condies

    concretas de materializao dos direitos previstos no Estatuto da Criana e do Adolescente e

    que dizem respeito integridade da pessoa humana.

    Este desafio exige que superemos uma viso de mundo que concebe os seres humanos

    separados do mundo natural. No podemos esquecer que o divrcio primordial da

    modernidade, entre seres humanos e natureza e os outros que dele se originam entre corpo e

    mente e entre emoo e razo se materializam tambm nos espaos escolares. Como

    assegurar bem-estar se as crianas no so assumidas em sua integralidade existencial, se a

    escola no tem pelo corpo o mesmo apreo que tem pela mente?

    Escola: um direito, uma alegria!

    Do ponto de vista das crianas, no importa que a escola seja um direito, importa que seja

    agradvel, interessante, instigante, que seja um lugar para onde elas desejem sempre retornar.

    O poder pblico tem o dever de assegurar acesso e permanncia. Mas, a freqncia escola

    no pode ser entendida apenas como direito a um espao que oferea proteo fsica e

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    desenvolvimento cognitivo. preciso que as crianas se sintam bem, que sejam cuidadas; e

    cuidar implica oferecer aquilo que satisfaa o conjunto de suas necessidades e desejos.

    Entretanto, as escolas:

    No so pensados para crianas alegres e brincalhonas, (...) mas para massas de crianas

    (...). Roubam das crianas o direito a flores e gramados, gua no ptio, barro, areia, salas

    amplas, abertas, coloridas, saudveis (Hoemke, 2004, p.18).

    Segundo esta autora, quando se trata de construir escolas, aqueles que pensam e projetam os

    espaos das crianas no se dedicam a compreender a lgica da infncia. Muitas vezes, o

    projeto arquitetnico realizado por uma empresa terceirizada, a partir de dados de demanda,

    como nmero de crianas e o que se quer nas salas. Estas informaes so obtidas junto s

    equipes das Secretarias de Educao. Isto , no processo de elaborao do projeto

    arquitetnico, h pouca ou nenhuma participao de educadores, crianas e suas famlias,

    aqueles que faro uso do prdio que est sendo construdo.

    Referindo-se ao processo de definio do local que abrigar a escola, Lima (1989) aponta uma

    situao ainda comum: nem sempre escolhido pela sua salubridade, acesso, topografia, mas

    por decises polticas que se voltam para o no confronto com os loteadores e para a

    diminuio aparente dos custos da construo dos prdios (p. 65).

    H ainda um aspecto, relativo s polticas de ampliao do acesso escola, que podemos

    denominar como ideologia do espao construdo. Consiste em ocupar todos os espaos do

    terreno com edificao de salas. Assim, as crianas ficariam confinadas, porque as reas ao ar

    livre vo sendo ocupados com novas instalaes, o verde vai sumindo, as crianas vo ficando

    emparedadas.

    Esta situao se deve falta de recursos econmicos, mas tambm a uma viso que objetiva

    estender a cobertura do atendimento, sem assegurar qualidade de vida. Neste caso, o

    compromisso do poder pblico est restrito ao cumprimento de um dever que corresponde a

    O CORPO NA ESCOLA

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    um direito legal. Porm, esta referncia no basta, porque a tica do cuidar no se pauta num

    conceito de moralidade centrado em direitos, num princpio moral abstrato, assentado sobre

    condutas universais (Tronto, 1997). Pois, partindo do princpio de que as pessoas so

    singulares, no h uma quantidade ou uma determinada maneira de cuidar que sirva a todas.

    Assim, oferecer instalaes adequadas sade e ao bem-estar das crianas e adultos cumprir

    com um primeiro dever, pois no basta que a freqncia escola seja apenas um direito,

    preciso que, para as crianas, seja tambm uma alegria!

    Na contramo do desejo, aprisionadas, as crianas vo sendo despotencializadas, adormecidas

    em sua curiosidade, em sua exuberncia humana. Como diria Foucault (1987), seus