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A LITERATURA CATÓLICA CONTEMPORÂNEA NO JAPÃO o contrário do que se poderia pensar, existem escritores católicos no Japão. Não muitos, mas talvez uma vintena. Gessel (1978) os denomina “vozes no deserto”, porque mal conhecidos ou desconhecidos uma vez tor- nados católicos. Contudo, acontece que sua influência seja reconhecida: é, por exemplo, o caso dos ecos recolhidos em Japan Echo acerca da obra de Shusaku Endo, com o título “Uma Luz Literária Católica” (Nakamura et al., 1997). Não incluiremos aqui escritores da Era Meiji (1848-1912) que se tinham aberto para o Ocidente e, por isso, para o cristianismo, mas que dele não mantiveram mais do que um verniz superficial. Tampouco incluiremos escritores que, depois da Segunda Guerra Mundial, se deixaram batizar, mas depois abandonaram a Igreja, de forma que se pôde falar da apostasia como de um “modelo japonês” (Takeda, 1978). Podemos considerar que existem hoje uns vinte escritores que permanecem profundamente católicos em sua atividade literária. Gessel (1978) destaca três de- les, aos quais dedica uma discussão aprofundada: Shiina Rinzo (1911-73), Shimao Toshio (1917-86) e Shusaku Endo (1923-96). Segundo esse crítico, então na Universidade da Califórnia em Berkeley, o que distingue os escritores cristãos dos escritores “laicos” japone- ses é a perspectiva a partir da qual os cristãos se colocam para narrar as vicissitudes humanas. A noção de perspectiva em Gessel é a da perspectiva aérea, adotada pelos pintores do período Heian GERALDO JOSÉ DE PAIVA Psicologia cultural da religião: a evolução da percepção do catolicismo em três romances do escritor católico japonês Este texto é parte de artigo publica- do em Studies in Religion/Sciences Religieuses (Québec, 36 (2), 2007, pp. 241-59), com autorização dos editores. Shusaku Endo GERALDO JOSÉ DE PAIVA é professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP e autor de A Religião dos Cientistas (Loyola).

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Shusaku Endo

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A LITERATURA CATLICA CONTEMPORNEA NO JAPOo contrrio do que se poderia pensar, existem escritores catlicos no Japo. No muitos, mas talvez uma vintena. Gessel (1978) os denomina vozes no deserto, porque mal conhecidos ou desconhecidos uma vez tor-nados catlicos. Contudo, acontece que sua inuncia seja reconhecida: , por exemplo, o caso dos ecos recolhidos em Japan Echo acerca da obra de Shusaku Endo, com o ttulo Uma Luz Literria Catlica (Nakamura et al., 1997). No incluiremos aquiescritoresdaEraMeiji(1848-1912)quese tinhamabertoparaoOcidentee,porisso,parao cristianismo, mas que dele no mantiveram mais do que um verniz supercial. Tampouco incluiremos escritores que, depois da Segunda Guerra Mundial, sedeixarambatizar,masdepoisabandonarama Igreja, de forma que se pde falar da apostasia como de um modelo japons (Takeda, 1978). Podemos considerarqueexistemhojeunsvinteescritores que permanecem profundamente catlicos em sua atividadeliterria.Gessel(1978)destacatrsde-les, aos quais dedica uma discusso aprofundada: Shiina Rinzo (1911-73), Shimao Toshio (1917-86) eShusaku Endo (1923-96).Segundoessecrtico,entonaUniversidade daCalifrniaemBerkeley,oquedistingueos escritorescristosdosescritoreslaicosjapone-sesaperspectivaapartirdaqualoscristosse colocamparanarrarasvicissitudeshumanas.A noo de perspectiva em Gessel a da perspectiva area,adotadapelospintoresdoperodoHeianGERALDO JOS DE PAIVAPsicologia cultural da religio: a evoluo da percepo do catolicismo em trs romances do escritor catlico japonsEste texto parte de artigo publica-do em Studies in Religion/Sciences Religieuses (Qubec, 36 (2), 2007, pp.241-59),comautorizao dos editores.Shusaku EndoGERALDO JOS DE PAIVA professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da USP e autor de A Religio dos Cientistas (Loyola).REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 184tardio(sculosXIIeXIII),queconsiste em deslocar os pra-ventos, as cortinas, os shoji, to comuns nas casas dos nobres, que impedem a viso do que se passa no interior da casa. Oposta perspectiva horizontal dos homensaperspectivadeDeus,apartir daqualacondutahumanaobservada, julgada e pesada.OsautoresqueGesselescolheuapre-sentar diferem em sua concepo precisa de Deus. Shiina concebe Deus como o nico absolutodavida,cujaluztornarelativos todos os empenhos humanos, inclusive os religiosos. Shimao pensa Deus na tradio dos salmos: fonte de fora para o homem desesperado,queaspirasalvao,mas permanece irresistivelmente mau em rela-o aos semelhantes. Endo v Deus antes como uma me que compreende a fraqueza humana e que, por causa disso, est sempre ao lado do homem sofredor. Naturalmente,hdiferenasnotveis entre os trs autores. Por exemplo, elas se manifestam entre o tom claramente catlico dos escritos de Endo e a sutil atmosfera de sensibilidade religiosa de conotao crist dasficesdeShimao.Reencontramos aqui a vexata quaestio da literatura religio-sa (Detweiler, 1995; Endo, 1986). De fato, essa questo interessou a Endo desde seus primeirosescritos(1947)atosltimos (1986). Como outros autores catlicos, cujo exemplo mais citado Graham Greene, Endo sedefendedeescrevertextosreligiosos apologticos, que no seriam mais do que mliteratura.Edeclaraque,depoisdese ter perguntado, com Mauriac, se o escritor catlico poderia induzir seus leitores ao mal pela atrao de descries de carter ctcio, chegou concluso de que um escritor catli-co revela a seus leitores que, abaixo do nvel consciente e do nvel inconsciente, existe um terceiro nvel, o da dinmica sobrenatural, divina ou demonaca. M. Williams (1999, p. 48) denomina esse processo de construo literriadeinversoparadoxal(parado-xical inversion), que poderamos aproximar do quadro paradoxal apresentado por Endo, no qual ele articula as tenses causadas pela tripla identidade de quem cristo, japons e escritor.A OBRA DE ENDO: BIOGRAFIA, BIBLIOGRAFIA, AVALIAESShusakuEndonasceuemTquioem 1912eamorreuem1996.Foibatizado como catlico com a idade de 11 anos, por insistnciadesuame,divorciada,que estava para morrer. Depois de estudos de literatura na Universidade de Keio, passou trs anos na Frana, onde estudou, na Uni-versidade de Lyon, os escritores catlicos franceses Julien Green, Paul Claudel, Fran-ois Mauriac e Georges Bernanos. curioso que ele tenha podido viajar para a Frana logo depois da guerra: na realidade, isso foi possvel graas a sua condio de catlico, e no a sua nacionalidade japonesa, pois, na poca, o Japo no tinha embaixadas no exterior (Nakamura et al., 1997). De volta ao Japo, tornou-se professor de literatura francesa na Universidade de Keio e escritor famoso. Endo recebeu, com efeito, os prin-cipais prmios literrios do Japo. Seu nome foi pensado para o Nobel, se dermos crdito a Morio Kita, que armou: [o] escritor Agaya Hiroyuki contou que algum, do comit do PrmioNobel,seopsobstinadamente lgicadessaapostasia[deRodrigues,em Silncio],equeEndonuncareceberiao Nobel enquanto essa pessoa estivesse viva (Nakamura et al., 1997, p. 77).Endo escreveu muito: romances, como Shiroi Hito (O Homem Branco, 1944), Kiiroi Hito (O Homem Amarelo, 1955), Mar e Ve-neno (Umi to Dokuyaku, 1957), Admirvel Idiota (1959), Silncio (1966), O Samurai (1980),Escndalo(Sukyandaru,1986), Rio Profundo (Fukai Kawa, 1994)1; teatro, comoOgonnoKuni(ATerraDourada, 1966); contos a respeito de personagens do catolicismojaponsprimitivo;pequenos contos de humor; um ensaio a respeito dos problemas do escritor catlico, e at uma Vida de Jesus (Iesu no Shogai, 1973), que recebeu o Prmio Dag Hammarskjld em 1978.Segundooscrticos,mesmoosro-mances mais histricos de Endo, como Silncio e O Samurai, situados no sculo XVIII,soumtestemunholiterriodo 1NoBrasil,estotraduzidos AdmirvelIdiota(Civilizao Brasileira, 1979), Mar e Veneno (Civilizao Brasileira, 1979), Silncio (Civilizao Brasileira, 1979),OSamurai(Nrdica, 1980),Escndalo(Rocco, 1988), Rio Profundo (Mercuryo, 1995).REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 185encontro do japons de hoje, e do prprio Endo, com o catolicismo.A avaliao positiva da qualidade liter-ria dos escritos de Endo bastante unnime. A nica discordncia considera como insu-ciente o desenvolvimento psicolgico dos personagens de Rio Profundo (Nakamura et al., 1997); e a qualidade teolgica desses controvertida entre os cristos do Japo. Entreoscatlicos,F.Mathy(1967),por exemplo, desculpa Endo de ter desequili-brado a teologia do pecado e de ter desva-lorizado o herosmo dos primeiros mrtires japoneses para valorizar, respectivamente, a misericrdia divina e a divergncia entre cristianismo e cultura japonesa; mas tam-bm ele tem suas reservas teolgicas. Entre os protestantes, igualmente, levantaram-se vozesautorizadasparapremdvidaa interpretao teolgica da perda de f dos missionriosapstatasemSilncioeo pretenso antagonismo entre cristianismo e pensamento japons (Johnston, 1969).TRS MOMENTOS NA OBRA DE ENDOEscolhemos trs obras de Endo com o m de nelas analisar, de um ponto de vista psicolgico,oencontroentrereligioe cultura.OstrstrabalhossoAdmirvel Idiota (1959), Silncio (1966) e Rio Profun-do (1993). Esses trabalhos constroem, por assim dizer, um arco na trajetria de vida do escritor. H, evidentemente, em cada um delesumahistrianarrada,quepodeser resumida. Contudo, fazendo a descrio singular dos personagens, de suas palavras, atitudes,atos,eestabelecendoseuperl psicolgico, que ser possvel captar como religio e cultura entram concretamente em conito, como esse conito se desenvolve e como pode, eventualmente, ser superado ou voltar-se para uma reconciliao (Williams, 1999).Todavia,antesdedescreveresses conitos e a maneira como so superados, preciso encarar mais teoricamente a re-laoqueexisteentreculturaereligio. Como escreve A. Vergote (1983), a religio deveria ser estudada psicologicamente nos trs nveis do indivduo, do grupo/institui-o e da cultura. A religio, com efeito, um comportamento da pessoa em relao com um grupo ou uma instituio, que se manifesta segundo um sistema de signos, smbolos e linguagens especcos forneci-dos por uma cultura. Um outro psiclogo da religio, H. Sundn (1966), tinha procurado, nasnarrativasdastradiesreligiosas,a chave da identidade religiosa psicossocial, e tinha mostrado que ela se estabelece pelo reconhecimento e coordenao dos papis divinosehumanosemseusintercmbios recprocos. O conhecimento da cultura, de fato, como lembra C. Geertz (1973, p. 2000), permite dar sentido e apreender psicologica-mente a realidade dos fenmenos, inclusive dosreligiosos,particularmentegraass narrativas que os relacionam e a sua mise-en-scne ritual. Sob certo aspecto, a cultura umatotalidadefechada,auto-suciente e autocontida: o que lhe escapa no pode ser conhecido. Esse aspecto da cultura traz consigo a incomunicabilidade das culturas ereete-senaclebrequestodeSapir-Whorf acerca da inuncia antecedente da linguagem sobre o pensamento.Noentanto,oquemaisseobservaao longo da histria o encontro e a troca entre as culturas por ocasio das migraes, das conquistas de guerra e, particularmente em nossosdias,dosintercmbiosdediversa natureza: cientca, artstica, turstica, etc. H, portanto, um segundo aspecto pelo qual asculturascomunicam-seumascomas outras. Muito recentemente, J. Berry (2004) props um esquema da adaptao cultural queoperasegundoquatromodalidades: assimilao,separao,marginalidadee biculturalidade. Segundo ele, essa ltima modalidade que permite o melhor resultado no plano humano, evitando os inconvenien-tes da sujeio de uma cultura a outra, da recusa de partilha com outra cultura ou do descaminho da pessoa entre dois sistemas culturais.NocasoprecisodoJapo,R.Mullins (1998)analisouosesforoshistricos quesedesenvolveramparaintroduziro REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 186cristianismo na cultura japonesa, o que ele denomina de indigenizao (indigeniza-tion).Mullinsmostracomoastentativas realizadas com o m de acolher o cristia-nismonasensibilidadeculturaljaponesa tiverammaioroumenorxito,alongo prazo,conformemantiveramounoum grau timo de tenso entre o conhecido e o novo, isto , entre a cultura japonesa de base e o cristianismo. Ele mostra que, onde se realizou uma assimilao exagerada do cristianismo cultura, a tentativa no teve xito, como tambm no teve onde nada foi tentado. Os esforos mais bem-sucedidos foram aqueles capazes de manter a admira-o, a interrogao, a surpresa e o desao diante do diferente. Essa constatao vai ao encontro no somente das consideraes de Berry(2004)mastambmdeestudiosos dapsicologiaevolucionria(evolutiona-rypsychology)dereligio(Boyer,1994; 2001; Pyysiinen, 2003), segundo os quais necessrio um elemento contra-intuitivo para despertar o interesse cognitivo, seja no campo religioso seja nos campos da patolo-gia, da co literria e da cincia.Parece-nos que Endo construiu sua ela-borao literria da superao das tenses religiosas e culturais segundo duas fases: uma primeira, de ntida separao, na qual ele se manteve el ao catolicismo ocidental, e uma segunda, de biculturalismo, na qual eleinscreveomoldecatliconombito do molde japons mais englobante. Endo reconhece,aindaassim,numaentrevista, quesempreverdadequeosjaponeses devem absorver o cristianismo sem o apoio de uma tradio ou de uma histria, de um legadooudeumasensibilidadecrists (Mathy, 1967, p. 595).OS TRS ROMANCESAdmirvel IdiotaOttulooriginal,Obakasan,nonos parece bem traduzido em ingls (Wonderful Fool), donde foram feitas vrias tradues emoutraslnguas.BakaouObakaum termo bastante cotidiano, que corresponde a bobo, idiota, tolo. O prexo O pareceenvolverbakacomumvude proteoemesmodecarinho.onome prpriodopersonagem.Osuxosan acrescenta-seaonomedapessoacomo forma de cortesia e corresponde a senhor. Obakasan signicaria, portanto, literalmen-te, Sr. Idiota ou, antes, ousamos prop-lo em referncia etimologia da palavra e ao sentido do romance, Sr. Cretino. O ingls introduziu no ttulo o qualicativo wonder-ful, admirvel, que parece retirar a fora do puro substantivo. Com efeito, saber se o idiota ou no admirvel , precisamente, a questo do autor.A histria de um jovem francs, Gas-to, descendente dos Bonaparte, que chega deimprovisonumafamliajaponesade classemdiadehoje.Seuaspectofsico noatraente:temumrostodecavaloe membrosenormesedesproporcionados. Seu aspecto, digamos, moral no conven-cional: ele se parece com um garoto; corre atrsdoscachorros;caobstinadamente pertodegentepobreoucriminosa;arris-ca sua vida por eles, como se no tivesse importncia.Elenopassadeumidiota aos olhos dos jovens da famlia japonesa. Desde sua chegada, descoberto escondido na sala de mquinas do navio, ele transtorna os valores e as posies de seus hospedei-ros. O transtorno atinge o mximo quando Gasto parte com um vagabundo, de nome Endo,queprocuramataroex-ocialdo exrcito que fez morrer um de seus irmos. Gasto cuida dele, procura convenc-lo a nosevingar,salva-oquandoengolido pelo lodo de um pntano. No m, Gasto desaparecesimplesmentedacompanhia dafamliaqueorecebiaetodospensam nele como no pssaro branco de uma lenda tradicional japonesa, que volta para o cu depois de um tempo passado na terra. Na velha maleta que Gasto tinha deixado na casa, os jovens descobrem, entre os pobres objetos de uso pessoal, um velho caderno onde estava escrito em francs, com uma caligraa abominvel: Levei bomba trs REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 187vezes no exame eliminatrio do Seminrio daMisso.Noposso,portanto,serum padre missionrio. Mesmo assim, preciso que eu v para o Japo.SilncioCertamente o livro mais conhecido de Endo,defundorigorosamentehistrico, tiraottulodoaparentesilnciodeDeus face aos sofrimentos e morte dos catlicos japoneses, no mais das vezes pessoas sim-ples do campo, perseguidos no sculo XVII na regio de Nagasaki, depois do decreto deexpulsodoscristos.Contraofundo desse silncio de Deus, dois missionrios jesutas apostatam da f para poupar a vida de seus cristos. O ato pblico e pro forma da apostasia consiste em pisar o crucixo. O primeiro apstata, chamado por derriso o apstata Pedro, Ferreira, ex-professor de teologia em Lisboa e superior provincial no Japo. O segundo, o apstata Paulo, Rodrigues,antigoalunodeFerreira. A razo pela qual os dois cometem o ato de apostasia(Endonodizqueelestenham apostatado no corao) a mesma: proteger seus cristos. Mas a explicao que Ferrei-ra d, posteriormente, desse ato e que ele procura transmitir a Rodrigues de ordem totalmente diferente: os japoneses so in-capazes de acolher o Deus do cristianismo porque no tm a idia da transcendncia de Deus, so insensveis experincia do pecado e concebem a morte como o simples retorno ao seio da natureza. Dito de outro modo, pela boca de Ferreira e tambm pela boca do principal perseguidor, Inoue, um ex-cristo,olodo,opntanomornoe absorvente da cultura japonesa, essa indi-ferenciao entre o homem, a natureza (e os deuses), que homogeneza no importa que elemento que se queira nele introduzir. Por isso, as ores do cristianismo, apenas desabrochadas, apodrecem na raiz pelo lodo no qual imergem. Seu trabalho missionrio noJapo,porisso,intilemesmoim-possvel. Amensagem deCristo,a saber, oamordeDeuspeloshomens,obrigaos missionrios a renegar a Cristo para salvar oscristosperseguidos.OprprioCristo osencorajaapisarsuaface.EsseCristo compassivocompreendeeperdoaasfra-quezas humanas, cujo prottipo de quedas, levantamentos e recadas Kachijiro, um cristo traidor, arrependido, de novo traidor, denovoarrependido,eassimpordiante. Numsentidomaisprofundo,Deusno se cala: ele grita aos cristos perseguidos e esse grito, de Deus e dos cristos, pede misericrdia.oquelhesconcedemos missionrios apstatas.Rio ProfundoRio Profundo retoma o clima contem-porneo, apresentando de forma magistral asvicissitudesdequatrojaponesesque viajamparaandia,cadaumcomsua emocionante histria pessoal. Oromance forneceumcontextoparaexporocaso daSra.Mitsukoedeumdeseusantigos colegas de universidade, Otsu, que depois dos estudos teolgicos na Frana, onde foi ordenado padre catlico, vive num ashram, rejeitadopelosconfradesdominicanos, etestemunhasolidariedadeparacomos pobres, as prostitutas, os moribundos, nas margens do Ganges.O ttulo original da obra tomado de um negro spiritual conhecido, Deep River, e a crtica considerou o romance apressado epoucodesenvolvidonacaracterizao dos personagens (Nakamura et al., 1997). Talvezasadeprecriadoautorotenha levado a termin-lo logo. Com efeito, Endo morreu dois anos depois da publicao do livro. Do ponto de vista literrio e teolgi-co, o romance se parece com os escritos de Shimao, porque, embora no negue a orien-tao crist, o autor a insere no grande rio humano/religioso do Ganges, o que levou NakamuraadizerqueEndoseinspirou nasidiasdeRamakrishna(Nakamuraet al., 1997). HtrsmomentosnarelaodeMit-suko e Otsu: os anos da universidade, seu encontro em Lyon, seu encontro em Varanasi REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 188(Benares). O o desses trs momentos a conana, quase infantil, de Otsu em Cristo, oposta incredulidade religiosa e ausn-cia de amor de Mitsuko. Na universidade, Mitsuko se liga a um estranho colega, de nome Otsu, estudante de losoa, um jovem de aspecto nada atraente, tmido, de famlia catlica devota, que leva seus estudos at a Escolstica para compreender o esprito europeu.Usandoasmanhasdeseusexo, Mitsuko procura separar Cristo de Otsu e oconsegue,nacabeadeOtsu,masno na de Cristo.Em seu encontro em Lyon, onde Mitsuko interrompe sua lua-de-mel em Paris, Otsu lheexplicaque,depoisdesetersentido rejeitadoporela,eletinhacompreendido aquelehomem,quetinhasidorejeitado portodos,equeotinhaseguido.Para noperturbarMitsuko,paraquemapa-lavra Deus no signica absolutamente nada, Otsu substitui o nome do objeto de seu amor pelo de Tomate e de Cebola. Em seus dilogos, contudo, Otsu, h trs anos na Frana, deixa entender claramente que a cultura europia se choca com o carter japons: No creio no cristianismo europeu. Estou cansadodomododepensardaspessoas daqui. Seu modo de pensar, que corresponde s exigncias de seu corao, pesado para um asitico como eu. Cada dia um inferno para mim. Quando procuro dizer a algum de meus colegas ou professores franceses como me sinto, eles dizem que a verdade no conhece distino entre Europa e sia. Penso que o bem olha por detrs do mal e por isso que Deus pode realizar suas artes mgicas: Ele se serviu de meus pecados e me deu a salvao.Seu terceiro encontro se realiza em Va-ranasi, beira do Ganges, onde Otsu, agora padreignoradoporseusconfrades,vive como um sadhu (mas celebrando a missa privadamente), passa os dias na companhia dosharijan(lhosdeDeus),isto,os prias,carregandonosombrososcorpos dospobres,dasprostitutas,dosvelhose levando-os ao forno crematrio na margem do grande rio. Otsu diz a Mitsuko que, se aquele homem vivesse hoje na ndia, faria a mesma coisa, carregando-os nos ombros comoacruz.Eacrescenta:Finalmente, decidiqueminhaCebolanovivesno cristianismoeuropeu.Elepodeseracha-donohindusmoetambmnobudismo. Quando os cadveres so envolvidos pelas chamas, fao uma orao a minha Cebola: recebeestapessoaqueterecomendoe toma-a nos braos.Pelo m do romance, Otsu vai em so-corro de um turista japons que no respeita os tabus dos hindus a respeito da cremao etiraumafotodacerimnia.Oturista imediatamente atacado pelos participantes e Otsu, como sempre, procura fazer a paz entre todos, embora saiba que o estrangeiro culpado. Mas ele que recebe os golpes; ele jogado escada abaixo e tem o pescoo quebrado. Dois dias depois, Mitsuko recebe a notcia de que seu estado se tornou crtico, e o romance termina a. Dois captulos relativos a Otsu tm os ttulos:CertamenteEleTomouparaSi Nosso Sofrimento e No Tinha Aparncia nem Formosura.Parece-nos interessante apontar, tambm nesse romance, o sbito aparecimento e o sbito desaparecimento de um personagem singular, a do estrangeiro chamado Gasto, de face eqina como Fernandel, que, apesar de seu japons lastimvel e de sua falta de co-ordenao motora, ajuda, como voluntrio, no hospital e presta socorro a um paciente que se sente desesperadamente culpado por tercomidoapernadeumsoldadomorto duranteaguerra.Gasto,quecatlico (faz o sinal-da-cruz antes de comer) e reza pelo doente moribundo, lhe restitui a paz. Endopareceinsistirnumpontoessencial nos caracteres literrios que ele destaca, em Gasto, em Admirvel Idiota, e em Otsu, em Rio Profundo, a saber, a simplicidade desnorteante da identicao com o Cristo compassivo.Segundo os intrpretes e comentadores da obra de Endo (Gessel, 1978; Hagiwara, 1995; Heremans, 1987; Mathy, 1967; Naka-mura et al., 1997), trs grandes inuncias culturaisdoJapoestonaorigemdos REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 189conitos de Endo com o catolicismo e na fonte do conito entre culturas, que reper-cute na adeso religiosa: 1) a inexistncia deumDeusnicopessoaltranscendente ao homem; 2)a inexistncia do senso do pecado e da culpa diante de Deus; 3) o sen-tido da morte como um retorno natureza. O prprio Endo o expressa em um de seus ensaios: [] o elemento na sensibilidade japonesa que desaa o cristianismo uma tripla insensibilidade: a Deus, ao pecado e morte (Mathy, 1967, p. 593). Essa ab-soropassiva,semresistncia,notodo; essa forma de pantesmo que no oferece maisqueumamlgamaeumaextenso doindivduo(Mathy,1967,pp.594e 608)arrastouEndo,eoutros,emdireo atrao do vazio e do niilismo, propcio aosuicdio.entoqueelesereergueu, reconhecendoaalternativagrandiosa oferecida pelo catolicismo (Mathy, 1967, p. 595). Em outras palavras, o solo religioso doJapoanimista,politesta,holstico, absorvente,natural.Deve-senotarque essasinflunciasculturaisdesafiaram tambmmuitosoutrosescritoresjapone-ses cristos (Kamei, 1976; Takeda, 1978). Endoserefereaessasinunciascoma palavra pntano. Para ele, o pntano a regio do lodo que recolhe a variedade dos elementos, os absorve, os aquieta em sua tepidez e os reduz matria informe; mas, paradoxalmente, acontece s vezes de ver desabrochar, a, a or do ltus.DUAS FASES NA BUSCA DA SUPERAO DO CONFLITOEndo tentou superar o profundo conito entre o catolicismo e essas inuncias que constituem a identidade japonesa a tal ponto que mesmo hoje pode-se dizer, com Vergote (1999, p. 6), um cristo japons sempre, em grande medida, um estrangeiro. Endo no conseguiu resolver ou superar de ime-diato seus dilemas religiosos-culturais. Ao contrrio, podemos descobrir duas grandes fases em seu esforo, que ele manteve at seus ltimos dias, e que se traduziram em gurasliterriasdistintaseemmodelos psicolgicos diferentes. Seramos tentados a dizer que na primeira fase Endo chegou a uma soluo do conito, mas que ele s o superou na segunda. Superar um conito, parece, implica no negar nenhuma fonte de tenso, segundo um tipo de Aufhebung hegeliana, ao passo que resolver um con-itopodecompor-secomanegaode elementos que criam tenso. Embora seja possvel considerar as narrativas de Endo sobaticadoinconsciente,inclusiveo junguiano (Williams, 1999), preferimos en-car-lo no nvel do consciente. Destacamos, pois, nesse nvel alguns traos facilmente acessveis ao leitor.Admirvel IdiotaO ttulo portador de um conceito essen-cialmente social, derivado da comparao feita pelo grupo a respeito do lugar ocupado por um de seus membros em referncia maioria na distribuio da inteligncia. O idiota objeto de um juzo negativo e pre-conceituoso. No caso presente, a aparncia fsica do personagem est bem adequada a essejuzosegundopropriedadession-micas:faltadeintelignciaededesen-volvimento moral correspondem um rosto eqino e comportamentos infantis. As aes do personagem esto relacionadas com seu amor pelos animais e pelos fracos, fsica e moralmente, ao cuidado que ele lhes pres-ta e ao perdo que lhes concede. Ele no fala muito e est na narrativa antes por sua presena e por sua ao.SilncioOttuloigualmentesocialpelofato de referir-se s relaes interpessoais entre Deus e os homens. um ttulo aberto, cujo sentido se revela aos poucos. As aes dos personagensprincipaissereferemaoato deapostasiaeasuasconseqncias,por REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 190exemplo, o casamento, procura de uma compreensoabsolutamenteno-conven-cional do amor de Cristo pelos homens, ao esforo de se convencer a si e aos outros da incompatibilidade radical entre o cris-tianismo e o pntano japons.Rio ProfundoO ttulo continua sempre social, pois o Ganges um rio da humanidade ao longo das pocas e faz pensar nos cristos negros do sul dos Estados Unidos. A aparncia fsica dopersonagemprincipalnoatraente, oqueconcordacomsuascaractersticas psicolgicasdetimidezedeconfiana infantil. As aes desse personagem prin-cipalsereferemsolidariedadecomos despossudos, inclusive os despossudos da f, ao testemunho sereno do cristianismo, abertura em relao s religies, explici-tamente ao hindusmo e ao budismo. Suas palavrasrejeitam ocristianismo europeu, insuportvel para um asitico.Numa primeira fase, a catolicidade est detalmodoenvoltanasvesteseuropias queEndonopodeadmitirquealgum sejacapazdepermanecerumtempona Frana sem voltar para o Japo mais ma-gro, em conseqncia de um estado geral deangstia.Esseperodocorrespondea uma fase no sentido etimolgico, a saber, uma manifestao que se faz presente, de-saparece e reaparece, como as fases da lua. Assim, desde os primeiros escritos at Rio Profundo, existe um frico evidente entre a maneira ocidental e a maneira japonesa de compreender o cristianismo. Nessa primeira fase a divergncia apresentada por meio de trs guras: a do homem branco versus o homem amarelo, a da forma cncava versus a forma convexa, e a da incompatibilidade dos tipos de sangue. Fiquemos com a se-gunda forma. De acordo com Endo, toda a cultura japonesa, inclusive a religiosa, est contida nela mesma e voltada para si mesma: elanoseabreparaoutrasculturasnem para um Deus que transcenderia o homem ou a natureza. O cristianismo, ao contrrio, e a cultura ocidental que dele derivaso convexos, isto , abertos para fora, at um Deus transcendente. No se pode estar ao mesmo tempo no cncavo e no convexo, e a relao entre cultura japonesa e religio crist se faz, por isso, sob o signo da escolha, do aut/aut, sob o signo do pai. Nessa fase, Endoprefereviverantescomocatlico do que como japons, com as conseqn-cias psicolgicas, e certamente religiosas, ligadas a essa escolha. Entre essas conse-qnciaspsicorreligiosas,pode-secontar a rigidez da justia divina e a aniquilao desimesmodiantedaculpa,dequedo testemunho os missionrios europeus que desertaram, os quais, ao contrrio, invejam a despreocupao moral de suas mulheres japonesas.Numasegundafase,Endoconsegue perceberquedeveexistirumamaneira japonesadesercatlico.Note-seofato de que Endo, apesar da opinio de alguns, dentreosquaisNakamura(Nakamuraet al.,1997),nuncapropsajaponesaro catolicismo ou mescl-lo com o budismo ou o xintosmo, precisamente porque essas posies religiosas so fundamentalmente antitticas ao cristianismo. A maneira japo-nesa de ser catlico, Endo a concebe como uma verdadeira humanizao de Deus na pessoa de Jesus, seguido de perto por Maria e, na realidade, pelo conjunto de todas as MariasdosEvangelhos.ParaEndo,com efeito,JesusademonstraodoDeus compassivo,misericordioso,prximo dospobres,dossofredores,dosfracose dos pecadores. Jesus, psicologicamente, como a me que, ao contrrio do pai, no fazdiferenaentreoslhosnemimpe condies para reconhec-los como seus. A partir da, no mais necessrio escolher entre o cncavo e o convexo: essa distino e outras, embora verdadeiras sob um ponto de vista, no so indispensveis. Ao con-trrio, quando algum pode abandonar-se compaixo maternal de Jesus, pode tambm descer, de um modo criativo, ao que corres-ponde o solo morno da natureza e dele sair transformado, como a or do ltus.REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 191Alguns exemplos.Gasto, em Admirvel Idiota, rosto de cavalo, membros desproporcionados, andar desajeitado,cometeridculosenganosde linguagem com duplo sentido, corre atrs de ces asquerosos; em suma, no corresponde absolutamente ao estilo de gente de bem e se assemelha exatamente a um louco, se-parado dos comedimentos e convenincias sociais. Mas ele , ao mesmo tempo, puro, inocente,esquecidodesi,generosoata loucura, pacicador dos inimigos, capaz de morrer e, talvez, de ser morto, em favor de quem quer mat-lo. A explicao? Gasto querialevarCristoaosjaponeses.Noo pdefazercomopadremissionrio,por faltadeinteligncia.F-lo,ento,como um catlico sem qualidades.Rodrigues e Kachijiro, em Silncio, so pessoas fracas. Rodrigues, antes um homem forte, no fsico e no esprito, est enfraque-cido pela amarga experincia missionria dograndeFerreira;sucumbevistados camponeses cristos torturados e, por amor deles, pisa o rosto de Cristo, renega a f. Com Ferreira, tornam-se respectivamente os apstatas Pedro e Paulo. Kachijiro um Judas arrependido, mas no muito: sabe que no digno de conana, que medroso, quetraicomfreqncia.Noentanto,se Rodrigues pisoteia o rosto de Cristo, no somente porque est inspirado pelo amor de Cristo e dos cristos, mas tambm porque impelido pelas palavras que ele pensa ouvir do prprio Cristo, que lhe diz que o amor eacompaixopelospobrescamponeses cristos um testemunho mais forte do que aprossodef.Kachijirosearrepende de suas traies, trai de novo, de novo se arrependee,nalmente,serecomenda Virgem... Ambos so fracos, engolidos pela indiferenciaoentredeusesehomens, vida e morte, bem e mal, que constituem o pntano tpido do modo de ser absorvente do Japo, conforme o prprio shogun Inoue. Mas o que vence a compaixo, a esperana e o amor de Cristo e da Virgem.Em Rio Profundo, Otsu o personagem central: bizarro como estudante universit-rio, que se afasta dos outros porque estuda e reza em lugar de se divertir, humano ao mximo quando se perde como um por-co no corpo de Mitsuko, suspeito para os superiores religiosos da Frana por causa desuasdiculdadescomocatolicismo europeu, vivendo fora de sua comunidade religiosa na ndia e, nalmente, vivendo e trabalhando com as prostitutas e os cad-veres dos pobres nas margens do Ganges, at cair ferido de morte ao defender a sa-cralidade da cremao dos corpos contra a v curiosidade de um turista fotgrafo. No entanto, Otsu um padre, que testemunha, embora desconhecido, o Cristo pobre e com-passivo. Feitas as contas, ele quem tem razo,contraoscolegasdauniversidade, contra Mitsuko, contra os superiores, con-tra os turistas, porque ele um verdadeiro cristo que, como o Cristo, acolhe os mais fracos dentre os fracos.De um ponto de vista psicolgico, qual o encaminhamento da superao do con-itonessasegundafase?Certamente,h vriosenfoquestericosqueesclarecem os processos psicolgicos importantes para asoluoouasuperaodosconitos. Williams (1999), como crtico literrio da obradeEndo,pensaqueocontatodesse autor com a psicologia analtica de Jung o levou a mergulhar at as fontes psicolgicas inconscientes, onde os diversos arqutipos, ao invs de se contradizerem, se completam. Entre esses arqutipos os de persona e de sombrasoparticularmenteimportantes, segundo Williams.Comefeito,oprprio Endoconcedesombraolugardeuma terceira dimenso, abaixo do inconsciente de Freud, Bergson e Proust, a do sobrena-tural, habitada pelos demnios (Williams, 1999, pp. 39 e 46). Ele prope investigar a identidade ou o self dos personagens (e do escritor), admitindo que o self est dividido, que existe um segundo self ou um doppel-gnger, de sorte que se deve falar de um inevitvel dois que so, ao mesmo tempo, um indiscutvel um (Williams, 1999, pp. 55). Poderia, igualmente, ser procurada uma compreenso psicossocial e personalizada do processo, como se fez em relao adeso de sujeitos ocidentais catlicos a religies japonesas(Paiva,2006).Nessesestudos manifestou-se a convergncia entre a ade-REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 192so psicossocial ao novo grupo religioso e a organizao pessoal dos signicantes ao redor de um novo eixo de signicao, que teve por efeito instaurar o processo de uma real mudana religiosa, da ordem do simblico. Quando, ao contrrio, a pertena grupaleaorganizaodossignicantes permanecemosmesmos,ca-secoma mesma identidade religiosa, uma vez que oscontatoscomogrupoeoscontedos da outra religio no ultrapassam a ordem do imaginrio. Enm, cremos que pos-svel, e talvez at conatural, responder aessaquestocomaajudadoconceito, propriamente japons, de amae. o que faremos no restante do artigo, observando que, embora o conceito de amae tenha sido apresentadoediscutidoprincipalmente por psicanalistas e, portanto, no nvel do inconsciente,oprprioconceitoesuas expresses comportamentais, enquanto se referem a relaes interpessoais, prestam-se igualmente a uma discusso na esfera cognitiva do consciente.Pessoalmente,noencontramoso equivalente palavra amae nas tradues dos escritos em que Endo expe sua f ca-tlica. at provvel que ele no a tenha utilizado,sedermoscrditoaWilliams (1999), que no a registra entre o grande nmero de palavras japonesas de seu rico ndiceremissivo.Masparece-nosque essapossvelomissoexplcitaindica, narealidade,umaestruturaprofundado pensamentodeEndo,dequeelenose deve dar conta a no ser pelo quadro que desenha das relaes entre o cristo catli-co e seu Deus. Seja como for, o equilbrio aoqualnossoautorchegounasegunda fase (e cuja solidez teolgica no nos deve ocuparcomopsiclogos),podesermais bem compreendido mediante a referncia a esse conceito de amae muito prprio psicologia afetiva do japons (Doi, 1973; Freeman, 1999; Morsbach & Tyler, 1986; Okonogi, 1994). Foi o psiquiatra japons TakeoDoiqueapresentouaoOcidente, em 1956, o conceito de amae, com o ttulo Japanese Language as an Expression of JapanesePsychology(Okonogi,1994; Doi, 1999). Comparando-o com o concei-to de amor (love), Doi insiste no aspecto passivo prprio de amae, isto , o fato de ser amado (to be loved) por algum sig-nicativo (em geral os pais), e no o fato de amar (to love) simplesmente. Segundo ele, o Ocidente, por inuncia da losoa grega e do cristianismo, reforou o sentido ativodeamar,apontodeesquecera pessoa que o objeto do amor, enquanto a psicologia dos japoneses repousa no as-pecto passivo que exprime o fato de ser amado. Reconheceu ele, no entanto, em estudos posteriores, que amae no indica um estado afetivo exclusivo dos japoneses, masque,aocontrrio,encontram-seem outras lnguas, culturas e teorias psicol-gicas,conceitosepalavrasparcialmente semelhantes.Etimologicamente,amae o substantivo do verbo amaeru, que pode ser traduzido como depender do e conar noamordeumoutro. Apalavratema mesma raiz que amai, doce. E amaeru evoca o sabor de doura que, segundo Doi,embebeaslembranasdainfncia dequasetodososadultosjaponeses.O prprioDoi(1999)acrescentaqueessa espciederelaointerpessoal,mesmo se tipicamente exemplicada pela criana que procura a me (e corre o risco de ser estragada),podeseraplicadatambm ao adulto quando cona totalmente numa outra pessoa, pelo que a pessoa ou pelo que ele espera dela. Para bem compreender o alcance do conceito de amae, sigamos a descrioque,nesseesprito,fazKawai dos princpios me e pai:A funo do princpio me a de abraar. Ela abraa cada coisa boa ou m, e segundo esse princpio toda coisa absolutamente igual. Desde que so seus, todos os lhos so igualmente dignos do amor da me, e seu amor nada tem a ver com a persona-lidade ou a capacidade dos lhos. [...] Ao contrrio,oprincpiopaiestbaseado nafunodeseparao:tomaesepara cada coisa; divide as coisas em sujeito e objeto, bem e mal, em cima e embaixo, etc.Emoposioaoprincpiome,de acolhimento igual a todos os lhos, o pai faz distino entre os lhos segundo suas REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 193capacidades e personalidades. No princpio me, todos os lhos so educados segundo asuposiomeuslhossotodosbons filhos,enquantonoprincpiopai,os lhos so disciplinados segundo a norma: meus lhos so apenas os que so bons (Hagiwara, 1995, p. 415)Parece, pois, que, se amae pode em geral referir-se aos pais, o conceito se relaciona sobretudome,queabraaseuslhos, ama-os incondicionalmente, julga-os todos bons lhos, mesmo se reconhece seus er-ros. isso que Endo chega a propor como cristo, japons e escritor, depois de ter analisado as oposies entre o catolicismo ocidental e o catolicismo japonesa: Deus Jesus-me.Halgunsanos,ospesquisadoresdo Centro de Psicologia da Religio de Leuven (Vergote & Tamayo, 1981) demonstraram que os crentes ocidentais conotavam o Deus do cristianismo de um modo complexo: sem dvida como o pai que ordena e sanciona, mas mais ainda como a me que acolhe e protege, sendo seu conceito afetivo de Deus o de um Deus que exerce a funo pai/me; os agnsticos privilegiavam as caracters-ticasmaternas;osdescrentesconotavam Deus tipicamente como um pai severo, que rejeitavam;selhesfosseperguntadoque Deuslhesseriaconveniente,indicavam um deus com caractersticas inteiramente maternas.NaelaboraodeEndodescobrimos umadinmicapsicoculturaldiferentee especca: o Deus cristo que lhe convm umDeusmaterno;estenosuprimeo pecado e a culpa mas cobre-os com a in-condicionalidade do amor materno e colo-ca-os no contexto mais geral da existncia do mal, de que a mulher e a natureza so, aosolhosdeumoriental,odepositrio simblico,damesmaformacomooso dobem.Essapercepoexplcitaem RioProfundo.Nostrsromances,Gas-toeOtsu,esuamaneiraRodrigues, homens e no mulheres (e pour cause!), sotestemunhasdessadinmica,como pessoas e em seus atos. Parece, pois, que paraEndoamaneirajaponesadecom-preender psicologicamente o catolicismo diferedamaneiraocidentaleuropia,na linha de uma percepo materna particular deDeus,elaboradaapartirdoconceito de amae. , de resto, notvel que quando oskakurekirishitan,isto,oscristos escondidos,quepersonicam,segundo Endo,osdecadosquepermaneceram is, foram encontrados por missionrios francesesporvoltade1870,seusinal dereconhecimentotenhasidoumsinal feminino, exatamente Santa Maria, em portugus (Druix, 1999).Parece-nos, contudo, razovel dizer que essa leitura japonesa dos grandes textos da tradio bblica parece no conceder um lugar adequado identidade de Deus como pai. Alm das diculdades teolgicas, que no so assunto do psiclogo, permanecem diculdadespsicolgicas:assim,su-cienteentreterrelaespessoaissempre incondicionais?Umpsiclogonodeve levar a srio as referncias fundamentais que denem uma adeso religiosa, inclu-sive a da paternidade divina? As modali-dades culturais locais da paternidade so, porsiss,sucientesparaaapreenso psicolgicadoDeuscristo?Areligio cristpodepermitir-seencaixar-secul-turalmenteatnasrelaesparentaisde seus aderentes?Do ponto de vista psicolgico, a solu-o de Endo desaa a percepo afetiva de Deus no catolicismo ocidental (com que se preocupouemprimeirolugarapesquisa deVergoteeTamayo).Serianecessrio, com efeito, conseguir equilibrar melhor a funo simblica do pai, to essencial nas fontes escritas e na experincia vivida do cristianismo,comafunosimblicada me. Dito de outra forma, seria necessrio conseguir conciliar, no ser cristo e sobre-tudo catlico, dois tipos de percepo: a do afeto materno, e portanto da imanncia, e a da transcendncia, que se ajusta bem com ocorteintroduzidopelafunopaterna. No est excludo que sensibilidades psi-colgicas diferentes, construdas histrica eculturalmente,encontremseucaminho legtimo para o cristianismo por vias igual-mente diversas.REVISTA USP, So Paulo, n.79, p. 183-194, setembro/novembro 2008 194BIBLIOGRAFIABERRY, J. W. Migrao, Aculturao e Adaptao, in S. D. DeBiaggi e G. J. de Paiva (orgs.). Psicologia, E/Imigrao e Cultura. So Paulo, Casa do Psiclogo, 2004, pp. 29-45.BOYER, P. The Naturalness of Religious Ideas: A Cognitive Theory of Religion. Berkeley, University of California Press, 1994.________. Religion Explained: The Evolutionary Origins of Religious Thought. Nova York, Basic Books, 2001.DETWEILER, R. Breaking the Fall: Religious Readings of Contemporary Fiction. Louisville/Westminster, John Knox Press, 1995.DOI, T. The Anatomy of Dependence. Tquio, Kodansha, 1973.________. Amae and Western Concept of Love, in Paper apresentado no Congresso Internacional de Psicanlise. Santiago do Chile, 1999.DRUIX, C. 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