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JuStiçA e VerdAde: AlternAtiVAS não penAiS pArA lidAr com o legAdo dA ditAdurA brASileirA1

Inês Virgínia Prado Soares2

Sumário: 1. Introdução; 2. A difícil convivência entre a verdade sobre as atrocidades e a impunidade dos algozes: a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei de Anistia brasileira; 3. A responsabilização dos perpetradores da ditadura brasileira na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos; 4. Me-canismos de tutela coletiva para atender às demandas por justiça, memória e verdade no cenário brasileiro; 4.1. A ação civil pública ; 4.2. Ação Popular; 4.3. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) combinado com o cumprimento da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos ; 4.4. Recomendação 5. Conclusões;

1. INTRODUÇÃO

No estudo sobre as formas de como lidar com o passado recente de graves violações em massa de direitos humanos praticadas durante um período de ex-ceção - ditadura ou guerra civil, a discussão acerca do tratamento que deve ser dado às graves violações de direitos humanos ocorridas está baseada no arca-bouço prático e teórico que se convencionou denominar de justiça de transição3.

Com objetivo de que as atrocidades cometidas no período já superado não voltem a acontecer, a justiça de transição tem a justiça, a verdade, a memória e a reformulação das instituições como eixos orientadores. É uma concepção que se desenvolve em um campo multidisciplinar e não deve ser entendida como uma forma especial de justiça, mas sim uma justiça apta a contribuir com socie-dades que se transformam (imediatamente ou após muitas décadas) depois de um período de violação generalizada de direitos humanos.4

1 Esse capítulo é resultado da pesquisa de pós-doutorado realizada no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo, entre 2009 e 2010, e atualizada para esta publicação, Texto inédito. Pesquisa financiada pelo Ministério Público Federal.

2 Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Procuradora Regional da República. Membro do IDEJUST (Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição).

3 A justiça de transição é definida pela ONU como o conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e extrajudiciais) e estratégias adotado por cada país para enfrentar o legado de violência em massa do passado, para atribuir responsabilidades, para exigir a efetividade do direito à memória e à verdade e para fortalecer as instituições com valores democráticos (não repetição das violações de direitos humanos). UN Securite Council, The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies. Report Secretary-General , S/2004/616, 23 August 2004, Transitional Justice, parágrafo 8, p.4

4 ICTJ, ¿Qué es la justicia transicional?, http://www.ictj.org/es/tj/, acesso em 10.03.2010

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E neste artigo argumenta-se que, enquanto não for possível responsabilizar criminalmente os perpetradores no âmbito local, deve-se utilizar mecanismos jurídicos de tutela coletiva para proteção da memória e da verdade.

A estrutura chamada tutela coletiva tem sua essência na proteção de direi-tos que não podem (ou não devem) ser fruídos de modo fracionado; ou na tutela de direitos que exigem uma resposta jurídica que se traduza em uma solução uniforme (e equânime) para um grupo ou para a sociedade como um todo.

A argumentação desenvolvida tem a finalidade de demonstrar que o uso de instrumentos típicos da tutela coletiva pode ser uma saída para se chegar rapi-damente a outras formas de responsabilização, de reparação simbólica, de valo-rização da memória ou de revelação e conhecimento da verdade. E também para se atingir a responsabilização penal, com a mudança de postura institucional.

O tema será exposto em três tópicos: a) A difícil convivência entre a verdade sobre as atrocidades e a impunidade dos algozes: a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei de Anistia brasileira; b) A responsabilização dos perpetradores da ditadura brasileira na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos; c) Mecanismos de tutela coletiva para atender às demandas por justiça, memória e verdade no cenário brasileiro

A argumentação de todo o ensaio conduz à proposta de que os instrumen-tos e abordagens do passado de violações da ditadura militar sejam integradas, no que for cabível, aos mecanismos atuais para defesa dos direitos coletivos e interesses difusos.

2. A DIFÍCIL CONVIVÊNCIA ENTRE A VERDADE SOBRE AS ATROCIDADES E A IMPUNIDADE DOS ALGOZES: A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A LEI DE ANISTIA BRASILEIRA

A resposta judicial às demandas que buscam responsabilização penal dos agressores não tem sido satisfatórias no Brasil. O exemplo mais destacado é a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em abril de 2010, na ação que julgou a validade da Lei de Anistia em face da Constituição, na Ação de Arguição de Preceito Fundamental nº 153 (doravante ADPF 153), que é uma ação de con-trole concentrado de constitucionalidade.

A ação analisou o dispositivo que anistiava os agentes que, durante a ditadu-ra militar brasileira (1964-1985), praticaram crimes comuns contra os presos políticos (tortura, assassinato, sequestros, estupros, desaparecimentos força-dos, dentre outros). E o entendimento dos Ministros da Corte Constitucional, por sete votos a dois, foi de que os dispositivos da Lei de Anistia não contraria-vam os preceitos fundamentais da Constituição5.

5 Sobre a decisão da ADPF e uma análise filosófica ver: Fabio Henrique Araujo Martins, Uma análise da ADPF 153 desde a Fórmula de Radbruch e da Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n.9, fev. 2011, p.43-53.

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O argumento6 que prevaleceu, desenvolvido pelo Ministro-relator, foi no sentido de que a lei de anistia foi elaborada e promulgada dentro de um histó-rico “acordo político”, que viabilizou a redemocratização, e que o Judiciário não teria poderes para rever tal acordo. Esse argumento também foi o fio condutor do parecer do Ministério Público Federal, que atuou como custos legueis nesta ação. Ou seja, o STF entendeu que não tinha poderes para visitar o passado e analisar se a lei baseada no tal “acordo histórico” era compatível com a atual Constituição.

No entanto, em outros casos, quando o STF ponderou entre o momento his-tórico da edição da lei e a ordem constitucional vigente - prevaleceu esta última. Como exemplo, vale lembrar o julgamento da ADPF 130, em 2009, no qual a mesma Corte declarou que a Lei de Imprensa (Lei nº 5250/67), editada durante a ditadura militar, era incompatível com os valores e princípios abrigados com a atual Constituição de 1988 e decidiu pela sua revogação integral.7

Outro argumento levantado no voto relator foi a falta de adequação da ADPF 153, já que a ação era contra o texto legal (que anistiava os torturadores e as-sassinos dos presos políticos) e não contra um dispositivo específico da lei de Anistia8. A pretensão era de revisão da lei de anistia e isto somente poderia ser feito pelo Poder Legislativo. Ou seja, ao STF caberia um pedido de interpreta-ção conforme a Constituição, o que, na compreensão do ministro relator, não aconteceu no caso. A alegada violação do direito à verdade foi rebatida pelos ministros sob afirmação de que Lei de Anistia impediria qualquer ação estatal dirigida à reconstrução histórica, mas, tão somente, a adoção de medidas cri-minais de punição. Nesse aspecto, considerou que a controvérsia relacionada com a superação do sigilo de documentos oficiais já seria alvo de ação judicial específica, em curso perante o próprio STF.

Ainda sobre os direitos à verdade e à informação, em quatro dos sete votos favoráveis à manutenção da anistia, houve uma separação entre a responsabili-

6 Para uma análise profunda da julgamento da ADPF 153, ver: AMBOS, Kai, ZILLI, Marcos e outros, Anistia, Justiça e Impunidade: Reflexões sobre a Justiça de Transição no Brasil, Editora Fórum, 2010; e r SILVA FILHO, José Carlos Moreira da O Julgamento da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal e a Inacabada Transição Democrática Brasileira, Direito ao Desenvolvimento, coordenadoras: Flávia Piovesan e Inês Virginia Prado Soares, Editora Fórum, 2010, p.515-545.

7 Em discussão semelhante à brasileira, o argumento “do momento histórico/acordo político” foi rechaçado pela Corte Uruguaia: “Nenhum acordo político nem uma consequência lógica pode investir a representação original ou delegada da soberania e, portanto, resulta absolutamente inidôneo para emitir norma jurídica válida, vigente ou aceitável.(...) a lei é inconstitucional porque, no caso, o Poder Legislativo excedeu o marco constitucional para acordar anistias.” Julgamento da sentença nº 365, Ministro Relator: Dr. Jorge Omar Chediak González, (sentença definitiva no caso “SABALSAGARAY CURUTCHET, BLANCA STELA. DENUNCIA. EXCEPCIÓN DE INCONSTITUCIONALIDAD ARTS. 1, 3 Y 4 DE LA LEY Nº 15.848”, 19.Out.2009).

8 Art. 1º, parágrafo primeiro da Lei 6.683/79

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zação criminal e o direito da sociedade e das vítimas de saber o que aconteceu durante a ditadura militar. Assim, a maioria dos Ministros destacou o direito de acesso a documentos produzidos pelos órgãos de repressão e ainda conside-rados sigilosos. Essa atenção do STF à obrigação estatal de revelar a verdade é importante no atual contexto brasileiro, porque está prestes a ser julgada nessa Corte ação que trata da inconstitucionalidade das normas que regulamentam a sigilação e acesso a documentos governamentais produzidos pelos órgãos de segurança no período da ditadura militar 9.

No sistema jurídico brasileiro, a verdade está ligada ao direito de saber e compreender o passado. Nesta perspectiva, a verdade é essencial para a identi-dade cultural e também para formação e fruição da memória individual e coleti-va (art. 216, caput, CF). A verdade está prevista expressamente como direito no art. 1º da Lei 12.527/2011 (que cria a CNV) e encontra na liberdade de informa-ção um suporte formal para ser veiculada como um direito – direito à verdade. No mesmo passo, a Lei 12.527/2011, publicada na mesma data da lei que criou a CNV, regulamentou o direito ao acesso a informações.

O direito de saber sobre o passado da ditadura militar foi confirmado pelo STF na referida ADPF 153: em quatro dos sete votos favoráveis à manutenção da Lei de Anistia foi feita a separação entre a responsabilização criminal e o direito da sociedade e das vítimas de saber o que aconteceu durante a ditadura militar. Com destaque trecho do voto da Ministra Carmen Lúcia quando diz que “ao contrário do que comumente se afirma de que anistia é esquecimento, o que aqui se tem é situação bem diversa: o Brasil ainda procura saber exatamente a extensão do que aconteceu nas décadas de sessenta, setenta e início da década de oitenta (período dos atentados contra o Conselho Federal da OAB e do Rio-centro), quem fez, o que se fez, como se fez, por que se fez e para que se fez (...)E tal conhecimento não é despojado de consequências (...)”10

Por isso, como ressalvado no trecho do voto supra transcrito, os per-petradores anistiados não tem direito ao esquecimento. A anistia é restri-ta ao âmbito penal e não à responsabilidade do agente pelos atos nefas-tos cometidos durante a ditadura. Ou seja: os que cometeram os crimes anistiados, podem ser declarados responsáveis pelas atrocidades, como forma de valorização do direito à verdade, tanto em sua ótica individual, de cada vítima, como sob a ótica coletiva.

O entendimento fixado na ADPF 153 sobre a possibilidade de respon-sabilização pública dos perpetradores bem como sobre o direito de sa-

9 ADI 4077, Relatora: Ministra Ellen Gracie. Para maiores informações e acompanhamento processual, consultar: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2618912

10 P. 02/21 do voto do v. acórdão publicado em 06/08/2010

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ber o que aconteceu, como e por que cada ato nefasto foi praticado, foi reafirmado e explicitado em uma reclamação constitucional proposta por Carlos Alberto Brilhante Ustra (apontado pelas vítimas como autor de inúmeras práticas nefastas - de tortura, desaparecimentos etc), contra atos de magistra-dos11 no julgamento de ação cível proposta pela família Merlino (Caso Merlino), que no entender do suposto torturador teriam violado a decisão deste Supremo Tribunal Federal na ADPF 153. A decisão de relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto foi no sentido de que a “Lei de anistia, contudo, que não trata da respon-sabilidade civil pelos atos praticados no chamado “período de exceção”. E é cer-to que a anistia como causa de extinção da punibilidade e focada categoria de direito penal não implica a imediata exclusão do ilícito civil e sua consequente repercussão indenizatória”.12

As respostas do Supremo Tribunal Federal indicam um modelo inusi-tado e contraditório para lidar com as violações de direitos humanos co-metidas pela ditadura, que é a combinação entre a não responsabilização criminal e a efetividade do direito à verdade.

3. A RESPONSABILIZAÇÃO DOS PERPETRADORES DA DITADURA BRASILEIRA NA DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A injustiça da situação brasileira vem à tona pouquíssimo tempo depois da decisão do STF na ADPF 153: em novembro de 2010, o Brasil foi condenado, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no caso conhecido como “Caso do Araguaia”.13

A condenação do Brasil pela Corte IDH já era esperada. Para a Corte e tam-bém para os estudiosos do tema da justiça de transição, o processamento penal dos perpetradores e a revelação da verdade sobre as graves violações de direi-tos humanos que ocorreram na ditadura militar brasileira constituem obriga-ções peremptórias assumidas perante a comunidade internacional, das quais o Estado brasileiro não pode se eximir14.

11 Atos do Juízo da 20ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo e do Desembargador Relator do Agravo de Instrumento nº 0045692-42.2011.8.26.0000.

12 Reclamação 12.131 (468), Origem: AI 00456924220118260000- Tribunal de Justiça Estadual - São Paulo, Relator :Min. Ayres Britto, reclte(s): Carlos Alberto Brilhante Ustra, adv(a/s) : Paulo Esteves e outro(a/s) recldo.(a/s) : Juíza da 20ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo, recldo(a/s) :desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Intdo (a/s): Angela Maria Mendes de Almeida intdo.(a/s): Regina Maria Merlino Dias de Almeida

13 Para acesso ao teor integral da decisão ver:http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf

14 ZALAQUETT, José, El Caso Almonacid: La Noción de una Obligación Imperativa de Derecho Internacional de Enjuiciar Ciertos Crímenes y la Jurisprudencia Interamericana sobre Leyes de Impunidad, http://

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Em 199515, o Caso Araguaia foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (doravante Comissão) pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL/Brasil) e pela Human Rights Watch/Americas (HRWA). A Comissão admitiu o Caso Guerrilha do Araguaia no ano de 2000 e no ano de 2009 submeteu o caso à Corte. Em dezembro de 2010, foi divulgada a senten-ça do Caso Araguaia, quarta16 condenação do Estado brasileiro no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (doravante SIDH).

A decisão da Corte no Caso Araguaia impõe ao Estado brasileiro os seguin-tes deveres: investigar e sancionar as graves violações aos direitos humanos referentes ao período da ditadura militar brasileira; averiguar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares; adotar todas as ações que garantam o efetivo julgamento e, se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimen-to forçado por meio dos mecanismos existentes no direito interno; continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar.

Dentre os atores do Estado que estão vinculados ao cumprimento da deci-são, cabe destacar o Ministério Publico Federal, pela sua legitimidade exclusiva na propositura das ações penais públicas. Com a condenação do Brasil, logo no início de 2011, o MPF passou a ter um olhar muito mais atento à responsabi-lização penal pelos crimes contra dos direitos humanos cometidos durante a ditadura militar e os desdobramentos positivos dessa tomada de posição, certa-mente, serão sentidos em um futuro próximo.

Nessa linha, destaca-se o parecer emitido pelo órgão criminal de âmbito na-cional do MPF (2ª CCR), em 27.02.2011, no qual há orientação de que a institui-ção “conduza eficazmente a investigação penal para esclarecer os fatos, para de-finir as correspondentes responsabilidades penais e para impor efetivamente as sanções penais cabíveis” (p. 3). Indo além, no mesmo documento, é afirmado que “as dúvidas sobre a aplicação da lei da anistia, da prescrição e da retroativi-

www.estadodederechocdh.uchile.cl/publicaciones/ acesso em 03.05.2010. Tradução livre. Glenda Mezarobba. Entrevista com Juan Méndez, presidente do Internacional Center for Transitional Justice (ICTJ). Sur Revista Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v. 7, 2007, p. 168-175.

15 Em 1982, familiares de 22 desaparecidos na Guerrilha do Araguaia propuseram uma ação civil perante a Justiça Federal, 1ª Vara Federal do Distrito Federal (ação nº 82.00.24682-5). O trânsito em julgado dessa decisão ocorreu apenas em 09-11-2006.

16 A primeira condenação, ocorrida em 2006, foi no caso da morte de Damião Ximenes Lopes (Demanda n. 12.237), em março de 1999, em uma instituição psiquiátrica filiada ao Sistema Único de Saúde, localizada no interior do Ceará. A segunda condenação se deu no ano de 2009, no caso Escher, referente a grampos ilegais, com autorização judicial, em linhas telefônicas de integrantes do MST. O terceiro, também em 2009, é o caso Sétimo Garibaldi, camponês assassinado por homens encapuzados em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra no Paraná.

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dade da lex gravior não podem subsistir no Ministério Público Federal após 24 de novembro de 2010, data de prolação da sentença pela Corte” (p. 7)17.

Desde a condenação do Brasil pela Corte, o MPF já propôs quatro ações pe-nais. O detalhamento dessas ações e seus respectivos andamentos processuais estão disponíveis na internet no Relatório intitulado ‘Crimes da Ditadura Mili-tar: Relatório sobre as atividades de persecução penal desenvolvidas pelo MPF em matéria de graves violações a DH cometidas por agentes do Estado durante o regime de exceção (2008-2012)”18, lançado no início de 2013.

A condenação do Estado brasileiro pela Corte não se limita à questão da responsabilização penal dos algozes por meio da revisão da anistia. Há outros Pontos Resolutivos na decisão do Caso Araguaia que destacam a necessidade de exercício de direitos individuais ou coletivos a serem exercidos pelas vítimas e familiares ou pela sociedade.

Pela existência de instrumentos próprios para tutela de direitos metaindi-viduais no sistema brasileiro e também pela dimensão coletiva dos direitos à justiça, memória e verdade, o cenário brasileiro permite que se use concomi-tantemente os instrumentos de tutela coletiva e as ferramentas indicadas pela comunidade internacional como aptas para lidar com o passado autoritário19.

É o que veremos a seguir.

4. MECANISMOS DE TUTELA COLETIVA PARA ATENDER ÀS DEMANDAS POR JUSTIÇA, MEMÓRIA E VERDADE NO CENÁRIO BRASILEIRO

No sistema de justiça brasileiro há uma gama de mecanismos e instrumen-tos judiciais e extrajudiciais de tutela coletiva que podem ser utilizados para o fortalecimento da memória das vítimas e para a revelação e difusão da ver-dade sobre as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura militar (1964-1985).

A possibilidade de realização de justiça no plano não-penal e a fruição da memória e verdade pela sociedade permitem não somente a restauração da dig-nidade das vítimas, pelo seu potencial reconciliador, mas podem transformar a opinião pública em relação à tirania do Estado, contribuindo, assim, para a com-preensão do passado violento e para que as situações mais nefastas do período não voltem a acontecer20.

17 Disponível em http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/, acesso em 23.10.201118 Relatório disponível em http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-

transicao/relatorios-1/Relatorio%20GT%20Revisado%20FinalMarco2012_1_Pagina.pdf, acesso em 22.04.2013

19 MÉNDEZ , Juan E., El derecho a la verdad frente a las graves violaciones a los derechos humanos, In “La Aplicación de los Tratados sobre Derechos Humanos por los Tribunales Locales”, CELS, 1997, pág. 517

20 TEITEL, Ruti. Transitional Justice. Nova York: Oxford University, 2000, p.82-84; POPKIN, Margaret; ROHT-ARRIAZA, Naomi. Truth as justice: investigatory commissions in Latin America. In: KRITZ, Neil.

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O manejo dos instrumentos de tutela coletiva para atender às demandas por justiça, verdade e memória, é uma abordagem útil, mas ainda pouco usada para se enfrentar o legado de violência do regime ditatorial. Este manejo tem sido testado no Brasil nos últimos vinte e cinco anos na defesa do meio ambiente21, do consumidor e de outros direitos coletivos, e os avanços são inegáveis.

As experiência exitosas na defesa dos outros bens e direitos coletivos po-dem ser transportadas para a seara da justiça de transição e , nesse sentido, os instrumentos de tutela coletiva são ferramentas úteis, importantes e aptas a serem usadas no tema da responsabilização pública dos perpetradores da dita-dura militar brasileira.

É o que se verá a seguir.

4.1. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA

A Ação Civil Pública (ACP), criada pela Lei nº 7.347/85, é um importante instrumento judicial na defesa dos interesses metaindividuais (difusos, coleti-vos em sentido estrito e individuais homogêneos) 22 no Brasil. Esta ação visa à “proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros in-teresses difusos e coletivos”. Foi prevista novamente em 1988 no art. 129, III, da Constituição, dispositivo que versa sobre as atribuições do Ministério Pú-blico 23 e seu campo de incidência foi ampliado em 1990, pelo Código de Defesa do Consumidor. A ação civil pública é, portanto, o instrumento processual para reprimir (tutela ressarcitória) ou impedir (tutela inibitória), sem prejuízo das demais ações ordinárias de responsabilização no âmbito cível.

As normas processuais que regulamentam a ACP indicam os parâmetros para consideração dos legitimados ativos24 para a tutela dos valores e direitos da justiça de transição, ao lado da legitimidade das vítimas para a defesa de seus direitos individuais em ações ordinárias. O Ministério Público e algumas asso-ciações da sociedade civil utilizam esse instrumento legal desde sua origem, em 1985 e, atualmente, já há certa expertise no manejo desta ação para resolução de conflitos de massa, bem como há um know how na judicialização das políticas públicas via ACP.

Transitional Justice. General Considerations. Washington: United States Institute of Peace Press, 1995. p. 262-289; LAX, Ilan. Strategies and methodologies for finding the truth. 2003. Disponível em: http://www.sierra-leone.org/trcbook-ilanlax.html,Acesso em: 20 jun 2010.

21 No ordenamento jurídico brasileiro, a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) trouxe conceitos, princípios e instrumentos para proteção do bem ambiental. Esta lei também apresenta instrumentos extrajudiciais específicos para proteção ambiental.

22 Código de Defesa do Consumidor, art. 81, III, c/c arts. 83 e 117.23 Art. 129. Compete ao Ministério Público: III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a

proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;24 Art. 5º da lei de Ação Civil Pública,

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No mais, ao exercer papel de autor da ação civil pública, o Ministério Público sai do exclusivismo das funções de autor no campo criminal e da tarefa de fiscal da lei no campo cível para defender o direito da coletividade.

O sentido jurídico do trabalho dos mecanismos da justiça de transição tem um potencial concreto muito semelhante ao trabalho do Ministério Público no manejo de instrumentos extrajudiciais de tutela coletiva, como, por exemplo, o termo de ajustamento de conduta e a audiência pública.

É relevante notar que os mecanismos da justiça de transição, que visam ga-rantir o justiça, verdade e reparação material e imaterial, integram um pacote de medidas institucionais destinadas a contemplar as vítimas diretas da ditadu-ra militar e a sociedade como um todo (interesses coletivos e difusos). E o Mi-nistério Público tem condições de atuar perante o Poder Público com o objetivo de que as políticas ou os procedimentos sejam aplicados corretamente, no tem-po razoável e da forma devida, colaborando para a viabilidade das ferramentas.

Sem prejuízo das demais ações ordinárias de responsabilização no âmbito cível, a ACP é “um instrumento com múltipla aptidão”25 para proteger os direitos transindividuais, pois serve para sua tutela preventiva e reparatória e, também, para que se faça algo (obrigação de fazer) em favor desses direitos ou mesmo para impedir (obrigação de não fazer) atuações que lhes prejudiquem. A ACP pode também ter como pedido prestação de natureza pecuniária (condenação em dinheiro) para reconstituição dos bens lesados. Porém, neste caso, não há reversão da indenização diretamente às vítimas e a indenização pecuniária pelo dano causado reverterá a um Fundo26 gerido por um Conselho Federal27 ou por Conselhos Estaduais.

No sistema de justiça brasileiro, esta ação é extremamente relevante no âmbito da responsabilização judicial não criminal e da reparação de vítimas. Portanto, a ACP é apta para exigir o cumprimento das obrigações do Estado brasileiro no tema da justiça de transição, tanto as que atendem à coletividade, quanto as que visam à reparação das vítimas. Nesta última situação, a ACP será proposta para defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos das ví-timas do regime militar que tenham sofrido um dano de origem comum (como, por exemplo, ter sido submetido a torturas e outras formas de violência em cen-tros de detenção ou ter perdido ente querido, assassinado por ser considerado opositor político da ditadura militar).

25 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de Direitos Coletivos e Tutela Coletiva de Direitos, Editora Revista dos Tribunais, 4 ed. 2009, p.57

26 Art. 13 da Lei de Ação Civil Pública27 A Lei 9.008/95 criou, na estrutura organizacional do Ministério da Justiça, o Conselho Federal de que

trata o art. 13 da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, denominado Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (CFDD).

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Além disso, na perspectiva de proteção dos direitos e interesses coletivos ou difusos, a ACP pode veicular pedidos que contribuam para ações de não-repe-tição ou para afastar condutas de negacionismo, com a indicação de obrigações ligadas à política de reparação das vítimas28, de revelação da verdade, valoriza-ção da memória ou reformulação das instituições, dentre outras29.

Geralmente antes de propor a ACP, o Ministério Público instaura um proce-dimento administrativo de natureza inquisitiva (ICP- Inquérito Civil Público), com a finalidade de recolher elementos de prova. Este instrumento é exclusivo do Ministério Público e está previsto em lei. No entanto, a instauração de ICP não é obrigatório para propositura de ACP. Essa opção de investigação e coleta de provas documentais e testemunhos por meio de IPC é uma deliberação do Ministério Público e depende do caso concreto.

As informações e as peças colhidas no ICP permitem a busca de uma solução extrajudicial. Ou seja, nem sempre o ICP se transforma em uma ação judicial, já que o Ministério Público pode transacionar com a parte (que pode ser um ente público) para encontrar uma solução administrativa. Geralmente os compro-missos assumidos são firmados por Termo de Ajuste de Conduta- TAC (que se analisará a seguir). Embora o foco do ICP esteja ligado à ação civil pública, os elementos colhidos podem indicar a propositura de outras medidas judiciais.

Há diversos exemplos de ICPs que culminaram na propositura de ACPs, po-dendo-se citar as seis ações propostas pelo Ministério Público Federal em São Paulo, as quais estão disponíveis na internet, no sítio da Procuradoria Regional da República30.

A primeira ACP sobre o tema, conhecida como “Caso DOI-CODI São Paulo”31, foi ajuizada em 2008 contra o Estado brasileiro e dois torturadores, que eram comandantes do DOI/CODI em São Paulo32 durante a ditadura militar. A ação traz à tona mais de 60 (sessenta) mortes ocorridas no prédio do DOI/CODI, que ficou conhecido como um dos principais espaços de prática de tortura e perpe-tração de homicídios e desaparecimentos forçados. A ação foi baseada em docu-

28 Louis Bickford, The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity (Macmillan Reference USA, 2004), vol. 3, p.1047.

29 Nas situações em que a ação é proposta contra o Estado brasileiro, contra as instituições federais, o processo será na Justiça Federal e o autor da ação será o Ministério Público Federal.

30 Dsiponível em http://www.prr3.mpf.mp.br/ditadura-militar/145-providias-cis , acesso em 10.12.201231 ACP n.º 0011414-28.2008.4.03.6100 – 8ª Vara Federal Civel de São Paulo. As informações sobre

essa ação e as peças processuais estão disponíveis em http://www.prr3.mpf.mp.br/component/content/147?task=view . Acesso em 22.01.2013

32 A sigla DOI-CODI significa Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna. Este destacamento surgiu em janeiro de 1970 e em Estado, os CODI passaram a dispor do comando efetivo sobre todos os organismos de segurança existentes na área, sejam das Forças Armadas, sejam das polícias estaduais e federais.

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mentação oficial produzida pela Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e, além de pedidos vinculados à lustração (ou a purgas), havia também pedidos com a finalidade de reparação simbólica e de acountability, para obtenção de reconhecimento judicial acerca da responsabilidade cível dos réus. Essa ação foi julgada improcedente em 2010 e o Ministério Público recorreu da decisão.

Outra ACP interessante, que prescindiu de instauração de ICP, é a que trata do Caso OBAN33. Nesta ação há pedidos variados de responsabilização de torturadores e do Estado brasileiro, com destaque para os pedido para que a União e o Estado de São Paulo sejam condenadas a a) “repararem os danos imateriais mediante pedido formal de desculpas a toda a popu-lação brasileira”; e b) “ao cumprimento de obrigação de fazer consistente em tornar públicas à sociedade brasileira todas as informações relativas às atividades desenvolvidas na Operação Bandeirantes – OBAN”. Um dos pontos da decisão de primeiro grau que merece destaque, como exemplo da postura ainda retrógrada do Judiciário em relação a este tema no âm-bito cível, é o não reconhecimento do interesse de agir do MPF no tocante ao pedido de desculpas formais por parte da União e do Estado de São Paulo. A justificativa do juízo foi que “a farta documentação demonstra que os entes requeridos não negam suas responsabilidades e já editaram leis para indenizar as vítimas do regime e outras ações de recomposição da memória e da verdade tem sido tomadas”. Essa ação ainda tramita em grau de recurso e será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça.

Apesar das ACPs foram propostas pelo MPF em São Paulo, não há um uso reiterado deste tipo de ação para se avançar no processo de justiça de transição no Brasil. E, se comparada com a atuação do MPF na defesa dos mais variados interesses e direitos difusos e coletivos (com instauração de ICP e propositura de ACP), as ações que versam sobre o legado de vio-lência deixado pela ditadura militar são pouquíssimas.

4.2. AÇÃO POPULAR

A ação popular é o instrumento pelo qual qualquer cidadão34 pode “anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à mo-ralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural”.

33 Ação Civil Pública nº 0021967-66.2010.403.6100.As informações sobre essa ação e as peças processuais

estão disponíveis em http://www.prr3.mpf.mp.br/ditadura-militar/463?task=view . Acesso em

22.01.2013.34 Como qualquer “cidadão” é parte legítima para propor a ação popular, é condição dessa ação que o autor

esteja no gozo de seus direitos políticos, isto é, que seja eleitor.

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Esta ação está prevista na Constituição de 198835 e já era regulamentada desde 1965 (no período da ditadura militar). Na ação popular, o direito amparado é o da coletividade, embora o autor da ação esteja no exercício de seu direito indi-vidual de acesso à justiça. Atualmente é um remédio jurídico constitucional que legitima o cidadão como defensor do patrimônio público perante o Judiciário.

A Constituição ampliou o objeto da ação popular para defesa de outros di-reitos fundamentais, como o patrimônio histórico e cultural. Com isso, há espa-ço para a intervenção direta do cidadão, em verdadeira possibilidade do exercí-cio da cidadania participativa na correção das disfunções existentes nas tarefas de valorização e resguardo da memória das vítimas da ditadura militar ou dos Lugares de Memória. O autor da ação deve, contudo, caracterizar esses valores ou bens como bens culturais pertencentes à coletividade.36

Na defesa do patrimônio público, sob a ótica da justiça de transição, o cida-dão pode propor Ação Popular apontando a lesividade de práticas de diversas instituições públicas ao negar as graves violações aos direitos humanos ocorri-das durante a ditadura militar.

Além de tal prática ser uma afronta ao direito à memória e à verdade, com dano direto e imediato às vítimas e à sociedade, o negacionismo é, também, uma lesão que atinge o patrimônio público e à moralidade administrativa, já que importa em esforço no sentido oposto ao das obrigações que o Estado deve cumprir ao retornar para a democracia, especialmente depois da condenação do Brasil pela Corte IDH no caso Guerrilha do Araguaia.

É possível, também, que a Ação Popular siga o caminho reverso para evitar a lesividade ao patrimônio público e cultural relativa a elementos ou abordagens vinculados ao tema da justiça de transição.

Nesse sentido, a Ação Popular pode, por exemplo, questionar gastos públi-cos com bens e edificações que homenageiem ditadores e torturadores ou pedir a anulação dos atos de órgãos estatais que promovam a destruição de lugares de memória e outros bens materiais ou imateriais portadores de valor histórico, antropológico, arqueológico ou cultural que podem servir para ações ligadas às garantias de não-repetição.

Apesar da sua potencialidade, a Ação Popular não tem sido utilizada para debater o passado autoritário, evitar o negacionismo ou indicar formas alter-nativas de reparação simbólica. Ao mesmo tempo, tem ocorrido no Brasil a uti-lização dessa ação com objetivo de declarar oposição às medidas estatais para

35 Art. 5.º, LXXIII.36 Ação popular: um exercício da cidadania ambiental?, Antônio Herman V. Benjamin e Édis Milaré (coord.),

Revista de Direito Ambiental 17, ano 5, jan.-mar., 2000, São Paulo, RT, p. 126-127.

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reparação às vítimas das graves violações de direitos humanos no período da ditadura militar.

Exemplo disso, é a ação popular proposta em 2009 perante a Justiça Federal do Rio de Janeiro, questionando o pagamento de indenizações, pela Comissão de Anistia, a 45 vítimas que viviam na região onde ocorreu a Guerrilha do Ara-guaia bem como os deslocamentos promovidos pela Caravana da Anistia, inicia-tiva de reparação simbólica promovida pela Comissão de Anistia.

O juiz aceitou os argumentos do autor da ação e determinou a suspensão dos pagamentos em setembro de 2009. Os camponeses/vítimas tiveram seu di-reito à reparação financeira suspenso por mais de dois anos. Em pequeno texto sobre o caso, Dalmo Dallari realçou que essa decisão - de suspender os paga-mentos - além de refletir a desatenção aos interesses desses pobres agriculto-res, foi uma afronta à verdadeira Justiça.37

A justificativa da União apresentada na Ação Popular para reparação dos camponeses da região do Araguaia foi de que estas decorreram de apuração administrativa entre 2008 e 2009, com colheita de mais de 300 depoimentos na região do Araguaia, nos quais há relatos de tortura, per-da de pequenas propriedades e mortes durante a ação dos militares bra-sileiros contra a guerrilha que atuava na região.

Portanto, os camponeses beneficiados com indenização prevista para anistiados políticos efetivamente sofreram violências praticadas por militares do Exército brasileiro que, na busca de informações sobre a localização e movimentação dos “guerrilheiros”, efetuaram a prisão de pequenos agricultores, barqueiros, lavadeiras e pequenos comerciantes daquela região. Por isso, podem ser anistiados políticos nos termos da Lei 10.559/2002, que baliza esse tema.

A Ação Popular em comento foi extinta em 2011, e assim houve a confirma-ção da legalidade e validade do ato de reconhecimento da condição de anistia-dos políticos desses camponeses.

A menção ao uso da Ação Popular (ou de outras ações de repercussão co-letiva), com a finalidade tática de retardar, impedir ou desmerecer políticas públicas38 para lidar com o legado de violência deixado pela ditadura militar é um aspecto que não pode passar despercebido na reflexão dos defensores dos direitos humanos no cenário brasileiro de justiça de transição.

37 Dalmo de Abreu Dallari, Ecos do Araguaia: Os mais pobres fora da pauta, publicado em 6/7/2010, no site: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=597CID001, acesso em 30.03.2011

38 Esses objetivos táticos são mencionados por Matthew TAYLOR em sua argumentação sobre a utilização dos tribunais como veto points pelos atores políticos. In TAYLOR, Matthew M, Judging Policy: Courts and Policy Reform in Democratic Brazil. Stanford, Stanford University Press, Matthew 2008, p.10.

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4.3. O TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA (TAC) COMBINADO COM O CUMPRIMENTO DA DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Na reparação às graves violações de direitos humanos ocorridas em regimes de exceção, ainda que o uso dos mecanismos judiciais formais (processo judi-cial) seja essencial, os mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos são igualmente relevantes39, principalmente porque podem se particularizar e re-parar as vítimas de acordo com suas necessidades.

Ao refletirem sobre mecanismos que favoreçam a construção de consenso para a efetiva aplicação das decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Abregú e Espinosa apontam que o desenvolvimento de processo para solução amistosa pode ser uma das práticas mais eficazes na reparação de vio-lações de direitos humanos e na efetiva salvaguarda dos direitos vulnerados40.

A principal vantagem da composição amistosa é viabilizar o cumprimento da decisão da Comissão ou da Corte no âmbito local. Além dessa previsão no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, no sistema de justiça brasileiro há um mecanismo - denominado de Termo de Ajustamento de Con-duta (doravante TAC) - que serve para a composição de uma solução amistosa visando o cumprimento das obrigações estabelecidas em decisões da Corte In-teramericana de Direitos Humanos.

O TAC é um instrumento extrajudicial previsto na Lei de Ação Civil Públi-ca41 com a finalidade de proteger direitos e interesses transindividuais. A lei prevê que os órgãos públicos legitimados para propor a ação civil pública po-derão firmar, com os interessados (investigados ou réus), compromisso de ajus-tamento de sua conduta às exigências legais, com penalidades no caso de não cumprimento.

A lei indica, como legitimados ativos para celebrar o TAC, apenas os órgãos públicos. Por ausência de previsão legal, as organizações sociais não estão legi-timadas para tomar um TAC (ausência de legitimidade ativa). O termo firmado tem eficácia de título executivo extrajudicial e pode ter o Estado brasileiro como parte comprometida a cumprir as obrigações assumidas.

O TAC é um instrumento de composição de deveres e obrigações resultantes eminentemente de responsabilidade civil. Por isso, não recai sobre cumprimen-to de deveres administrativos, mesmo que tenha sido firmado por órgãos públi-cos, e muito menos serve para afastar responsabilidades penais.

39 Report Secretary General transitional justice, par.7.40 ABREGÚ, Martin e ESPINOZA, Olga, La eficacia de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos y la

aplicación de sus decisiones por los Estados Parte, in ...p.191-216 41 1985 Federal Law n.7.347.

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Apesar de ser um instituto de composição, que resulta do acordo e do con-senso das partes, é sempre estabelecido em favor da tutela dos direitos transin-dividuais e não pode dispor sobre os direitos dos envolvidos, apenas repactuar prazo e forma de cumprimento das obrigações.

Além disso, o TAC é uma modalidade de tutela inibitória pela qual se evita a prática de atos ilícitos ou a continuidade de sua ocorrência. Assim, é uma ferra-menta que trabalha com a perspectiva de futuro e “estabelece como deve ser a conduta do obrigado daí por diante em relação à observância daquele direito.” 42

O TAC é um instrumento hábil para o cumprimento de pontos específicos da condenação do Brasil pela Corte IDH no Caso Guerrilha do Araguaia. Nesse sentido, o TAC pode ser usado para o cumprimento de alguns dos pontos resolu-tivos da referida decisão, por exemplo, para composição da obrigação do Estado brasileiro de “continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como de informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regi-me militar, garantindo o acesso à mesma.”(ponto 7).

O TAC pode sempre ser usado para outras obrigações que não envolvam res-ponsabilização penal. Assim, no acordo que preveja o cumprimento das obriga-ções previstas nessa sentença da Corte IDH, as iniciativas de memorialização e de educação em direitos humanos, dentre outras, podem entrar como cláusulas extras de cumprimento obrigatório, já que no TAC as partes têm liberdade de inserir outros deveres, desde que sirvam para atender ao objetivo do acordo.

Uma possibilidade de TAC ainda não trabalhada, mas que seria um exercício desafiador de composição é o cumprimento do ponto resolutivo n.14 da deci-são da Corte no Caso Araguaia. Este ponto prevê que “o Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em con-formidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença”, também pode ser objeto de um TAC.

O MPF tem “know how” em composição extrajudicial de conflitos e na bus-ca de uma solução que impulsione o cumprimento deste ponto resolutivo de maneira eficiente. Nesse esteio, a União poderia, via assinatura de termo de ajustamento de conduta - TAC, estabelecer parâmetros objetivos a serem segui-dos nos cursos das Forças Armadas (matérias obrigatórias, conteúdos das dis-ciplinas, forma de abordagem das matérias), inclusive com a previsão de curso preparatório para os professores-facilitadores, dentre outras cláusulas.

42 Geisa de Assis Rodrigues, Ação Civil Pública e Termo de Ajustamento de Conduta: Teoria e Prática, p. 128.

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