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O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiado da Aplicação da Pena)

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O Papel dos Atoresdo Sistema Penal

na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiadoda Aplicação da Pena)

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www.lumenjuris.com.br

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Salo de CarvalhoMestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito

Pós-Doutor em Criminologia (Universidade Pompeu Fabra, Barcelona)Professor Adjunto do Departamento de Ciências Penais da UFRGS

[htt p://antiblogdecriminologia.blogspot.com/]

O Papel dos Atoresdo Sistema Penal

na Era do Punitivismo (O Exemplo Privilegiadoda Aplicação da Pena)

CriminologiaS: Discursos para a Academia

Editora Lumen JurisRio de Janeiro

2010

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Copyright © 2010 Salo de Carvalho

Categoria: Criminologia

Produção EditorialLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.não se responsabiliza pela originalidade desta obra.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou pro-cesso, inclusive quanto às características gráfi cas e/ou editoriais. A

violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 10.695, de 1º/07/2003), sujeitando-se à busca e apreensão e

indenizações diversas (Lei nº 9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados àLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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O livro é dedicado aoProfessor Doutor Tupinambá Pinto de

Azevedo, pelo seu compromisso republicano e democrático com a Universidade pública e pela

sua militância pela humanização do Direito Penal.

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O presente trabalho seria impossível sem o apoio da equipe do

Escritório “Alexandre Wunderlich & Salo de Carvalho Advogados Associados”, integrado por Antônio Tovo Loureiro,

Camile Eltz de Lima, Elisângela Franco Lopes, Fernanda Luft Tessaro,

Gisele Maldonado Barcellos, Juliana Oliveira Rocha, Karina Reginatt o

dos Santos, Lilian Christine Reolon, Natalie Ribeiro Pletsch, Paula Lopes,

Paulo Saint Pastous Caleffi , Renata Saraiva e Sueli dos Santos Meireles.

A análise dos dados somente foi possível pelo apoio dos Mestres

e Mestrandos Alexandre Costi Pandolfo, Gregori Elias Laitano,

Marco Antônio de Abreu Scapini, Raccius Pott er, Marcelo Mayora

Alves, Nereu Lima Filho e Thayara Castelo Branco.

Mariana de Assis Brasil e Weigert, Amilton Bueno de Carvalho,

Alexandre Wunderlich e Rafael Braude Canterji, leitores atentos e interlocutores privilegiados,

possibilitaram o amadurecimento de inúmeras questões trabalhadas na

pesquisa.

Rodrigo Ghiringhelli Azevedo contribuiu com importantes

indicações de leitura.

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Lia Weigert Bressan auxiliou na elaboração dos gráfi cos e Thaís

Weigert realizou inúmeras revisões no texto.

Elena Larrauri Pij oan, de forma muito amável, possibilitou a realização dos estudos de Pós-

Doutorado na Universitat Pompeu Fabra, em Barcelona, durante os anos de 2008 e 2009, e forneceu

a orientação segura para o desenvolvimento e aprimoramento das ideias presentes na pesquisa.

A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça

(SAL/MJ), através do Projeto Pensando o Direito, possibilitou o fi nanciamento parcial do trabalho, cujo resultado é

exposto na criação do banco de dados e análise documental dos julgados.

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Sumário

Apresentação ........................................................................... xiii(Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Salo de Carvalho)

Apresentação ............................................................................ xixRicardo Timm de Souza (PUCRS)

Introdução ................................................................................. 1

PARTE IA FORMAÇÃO CULTURAL

DOS ATORES PROCESSUAISE O CENÁRIO PUNITIVISTA CONTEMPORÂNEO

1. Vontade de Punir: Populismo Punitivo e Pânicos Morais ...... 7

2. Crimes e Prisões no Século XXI ............................................. 15

3. Punitivismo e Reinvenção das Prisões .................................... 273.1. Populismo Punitivo e a Reinvenção da Prisão no Brasil: Diagnóstico Normativo..................................... 323.2. O Grande Encarceramento ........................................... 363.3. A Centralidade do Cárcere na Lógica Punitivista: Substitutivos Penais ....................................................... 47

4. Os Atores e as Agências Punitivas no Brasil: Filtros à Inci- dência do Poder Penal ............................................................. 59

5. Os Paradoxos do Sistema Jurídico-Penal Brasileiro ............... 675.1. A Falta de Controle e de Transparência ...................... 675.2. Cifras Ocultas, Inefi ciência Resolutiva e Alta Puni- tividade ........................................................................... 69

6. As Instituições da Persecução Penal e a Formação Cultural dos seus Atores: a Tradição Inquisitória ................................. 73

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x

6.1. Estrutura do Sistema Inquisitório e as suas Conse- quências na Formação dos Atores Processuais ......... 776.2. Mentalidade Inquisitória e Formas de Produção da Verdade ........................................................................... 84

7. Os Atores da Persecução Penal e a Cultura Punitivista Con- temporânea .............................................................................. 97

7.1. As Funções do Ministério Público na Nova Ordem Constitucional e o Perfi l Político-Criminal dos seus Integrantes ....................................................................... 997.2. As Funções da Magistratura na Persecução Criminal .. 103

PARTE IIAPLICAÇÃO DA PENA

E PUNITIVISMO NO BRASIL(EXPERIMENTO E

ESTUDO DE CASOS)

8. Aplicação Judicial da Pena no Brasil: Tema, Problema e Pro- cedimento Metodológico da Investigação ................................ 115

8.1. Referenciais Bibliográfi cos (Fase 01) ........................... 1188.2. Levantamento Jurisprudencial (Fase 02) .................... 1198.3. Critérios de Corte do Número Total de Acórdãos: Metodologia, Objetivos e Dados de Análise ............. 1228.4. Levantamento da Jurisprudência Nacional e Cria- ção do Banco de Dados ................................................. 137

8.4.1. Levantamento de Dados no Supremo Tribunal Federal ..................................................................... 1378.4.2. Levantamento de Dados Superior Tribunal de Justiça ....................................................................... 138

9. A Motivação Judicial na Defi nição da Pena ........................... 145

10. Estrutura da Aplicação da Pena no Brasil ............................ 15110.1. Eleição da Pena Cabível .............................................. 15210.2. Quantifi cação da Pena ................................................ 153

10.2.1. Pena-Base ................................................................ 15510.2.2. Pena Provisória e Pena Defi nitiva ....................... 160

10.3. Qualidade de Pena (Regime) e Substitutivos Penais .. 161

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xi

11. Critérios de Aplicação da Pena-Base pelos Tribunais Supe- riores no Brasil: Análise Qualitativa .................................... 165

11.1. Advertência: Sobre o Conteúdo dos Julgados e os Critérios da Análise Qualitativa ................................ 16911.2. Valoração e Conceituação das Circunstâncias Judi- ciais ................................................................................. 170

11.2.1. Dupla Valoração de Circunstâncias: Violação ao Princípio Ne Bis in Idem ........................................ 17111.2.2. Culpabilidade: Imprecisão Conceitual ............... 17911.2.3. Volatilidade dos Conceitos de Personalidade e Conduta Social ....................................................... 184

12. Problemas na Aplicação da Pena Provisória (Atenuantes e Agravantes) pelos Tribunais Superiores no Brasil: Análise Qualitativa ............................................................................. 193

12.1. Aplicação de Atenuantes Abaixo do Mínimo Legal ... 19312.2. (In)Constitucionalidade da Agravante da Reinci- dência............................................................................. 197

13. Aplicação da Pena Defi nitiva pelos Tribunais Superiores no Brasil: Análise Qualitativa .................................................... 201

13.1. Quantifi cação da Minorante da Tentativa ................ 20113.2. Critério de Aplicação e de Aumento da Pena do Crime Continuado ....................................................... 20413.3. (Des)Proporcionalidade do § 4º, Art. 155 do Códi- go Penal ......................................................................... 20813.4. Motivo de Valor Social, Intensidade da Emoção e Provocação da Vítima: Critério de Diminuição de Pena ................................................................................ 21213.5. Arma de Fogo Desmuniciada e § 2º, Inciso I, Art. 157, Código Penal ............................................................... 21413.6. Concurso de Causas Especiais de Aumento de Pena . 215

14. Questões Processuais na Aplicação da Pena pelos Tribunais Superiores no Brasil: Análise Qualitativa ............................ 219

14.1. Dever de Fundamentar a Aplicação da Pena ........... 21914.2. Questão Probatória: Confi ssão. Fundamentação de Juízo Condenatório e Não-Aplicação da Atenuante ..227

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CONCLUSÕES

15. As Reformas Penais e o Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Encarceramento em Massa ................................... 231

16. O Estado Penal e os Atores das Ciências Criminais ............. 239

17. Resistências (Im)Possíveis .................................................... 245

18. Conclusão Específi ca: Reformas Penais, Punitivismo e Res - ponsabilidade Político-Criminal: Duas Propostas Legislativas . 253

18.1. Vedação Expressa ao Encarceramento ...................... 25418.2. Responsabilidade Político-Criminal ......................... 257

19. Atuação no Campo Punitivo e Redução de Danos ............... 263

20. Conclusão Específi ca: Limites e Critérios de Aplicação da Pena e Punitivismo no Brasil ............................................... 267

Bibliografi a .................................................................................. 273

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xiii

Apresentação

CriminologiaS: Discursos para a Academia

A ideia de lançar uma coleção acadêmica na linha de pes-quisa da Criminologia surgiu da constatação do avanço da disciplina no Brasil.

Nas últimas duas décadas, dois institutos, vinculados fundamentalmente à área do direito – o Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e o Instituto Brasileiro de Ciências Cri-minais (IBCCrim) –, com muita competência, congregaram os fóruns de debate criminológicos, realizando eventos, fi nan-ciando publicações, realizando concursos, dentre uma série de importantes e destacadas atividades. No campo edito-rial, as revistas Discursos Sediciosos (ICC) e Revista Brasileira de Ciências Criminais (IBCCrim) e as coleções Pensamento Criminológico (ICC) e Monografi as (IBCCrim) foram responsá-veis pela divulgação, ao público nacional, de trabalhos clássi-cos e de inovações no pensamento criminológico. Assim, ao mesmo tempo em que estes veículos resgataram importan-tes obras, com a tradução de textos fundamentais, lançaram novos autores que hoje representam o que há de melhor na academia criminológica brasileira. Nilo Batista e Alberto Silva Franco podem ser nominados como os legítimos representan-tes do esforço que move os Institutos para consolidar uma tradição crítica nas Ciências Criminais do Brasil.

Paralelamente ao desenvolvimento do campo dos estu-dos criminológicos vinculados ao Direito, a dimensão e o im-pacto das diferentes manifestações da violência sobre o tecido

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social e a incapacidade do sistema de segurança pública e de justiça criminal em responder de forma minimamente efi cien-te e juridicamente correta as demandas de controle do crime começaram a chamar a atenção dos cientistas sociais. Possível indicar como marco inicial, para além de trabalhos pioneiros, a criação, nos anos 80, do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), na Universidade de São Paulo, e os trabalhos reali-zados por pesquisadores, como Sérgio Adorno, Paulo Sérgio Pinheiro, Alba Zaluar, Luiz Eduardo Soares, José Vicente Tavares dos Santos, Roberto Kant de Lima e Michel Misse. E seguindo esta geração de investigadores, novos pesquisado-res vêm desvendando os mecanismos de produção e reprodu-ção social e institucional da violência no Brasil.

Nos anos 90, os estudos sobre a violência e a seguran-ça pública deixaram de ser exclusividade dos estudiosos do Direito Penal e passaram a constituir um dos campos mais destacados da produção acadêmica no âmbito de programas de pós-graduação em Sociologia, Antropologia e Ciência Política, com a criação de grupos de pesquisa em vários cantos do país. Representativos deste crescimento são os Grupos de Trabalho realizados nos Encontros Nacionais da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs) e nos Congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) e da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) so-bre Violência, Confl itualidade e Administração Institucional de Confl itos, não obstante o crescimento da produção de teses e dissertações sobre estes temas.

Com base nestes estudos, dispomos hoje de um impor-tante acervo de pesquisas de diferentes perspectivas teórico--metodológicas que permite indicar caminhos para o enfren-tamento de um problema cujas vias de equacionamento estão

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inexoravelmente vinculadas às possibilidade de construção democrática no Brasil.

Neste mesmo período de consolidação do Instituto Carioca de Criminologia e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, e de desenvolvimento dos estudos sobre vio-lência, confl itualidade e segurança pública no âmbito das Ciências Sociais, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul lançou o projeto de criação do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais. Sob a coordenação da incansável Ruth Gauer, desde a sua fundação em 1996, o PPGCCrim destacou- se como o primeiro programa nacional de pós-graduação com área de concentração específi ca nas Ciências Criminais e linhas de pesquisa que contemplam, de um lado, o campo da Criminologia e do Controle Social e, de outro, com perfi l normativo, a Dogmática Jurídico-penal (sis-temas penais contemporâneos).

A primeira geração de mestres formados pelo PPGCCrim da PUCRS, capitaneada por Alexandre Wunderlich, orga-nizou-se em torno do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (!TEC). O !TEC mobilizou o cenário universitário do Rio Grande do Sul e sua publicação ofi cial (Revista de Estudos Criminais) ganhou destaque no panorama nacional. Na atu-alidade, uma nova geração de mestres em ciências criminais que frequentou o PPGCCrim inova o saber criminológico. Aglutinados no Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA), estes jovens pesquisadores oxigenam o debate na academia gaúcha, consolidando pesquisas de vanguarda no campo cri-minológico a partir de uma clara percepção das fronteiras e dos horizontes da disciplina – sobretudo a radical diferencia-ção que demarca a Criminologia como o saber autônomo e crí-tico da limitada análise normativa fornecida pelas Dogmáticas Penais, mesmo as autodenominadas críticas.

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A série CriminologiaS: Discursos para a Academia inau-gura seus trabalhos com a publicação de cinco dissertações representativas dessa dupla vertente de estudos criminoló-gicos, em diálogo com o Direito, a Filosofi a, a Psicanálise e as Ciências Sociais: Alexandre Costi Pandolfo (A Criminologia Traumatizada: um Ensaio sobre Violência e Representação dos Discursos Criminológicos Hegemônicos no Século XX), Carla Marrone Alimena (A Tentativa do (Im)Possível: Feminismos e Criminologias), Fernanda Bestett i de Vasconcellos (A Prisão Preventiva como Mecanismo de Controle e Legitimação do Campo Jurídico), José Antônio Gerzson Linck (A Criminologia nos Entre-Lugares: Diálogos entre Inclusão Violenta, Exclusão e Subversão Contemporânea), Marcelo Mayora Alves (Entre a Cultura do Controle e o Controle Cultural: um Estudo sobre Práticas Tóxicas na Cidade de Porto Alegre).

Em conjunto com as publicações dos coordenadores da coleção – Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (Sociologia e Justiça Penal: Teoria e Prática dos Estudos Sociocriminológicos) e Salo de Carvalho (O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo: o Exemplo Privilegiado da Aplicação da Pena) –, a série inaugural de CriminologiaS: Discursos para a Academia reforça o papel da academia na construção de um sólido saber crítico.

Em uma era de pasteurização e de mercantilização dos saberes, com o ensino universitário imerso na lógica atuarial das metas quantitativas e com o império da lógica manualís-tica que traduz o descomprometimento do mercado editorial com a publicação de sérias obras propedêuticas e de investiga-ções específi cas em temas sensíveis, a academia nacional vive seu período de maior crise. Neste cenário de educação vir-tual, muitos pesquisadores – termo utilizado neste momento para designar o investigador comprometido com a formação e a densifi cação do pensamento acadêmico crítico – encontram-

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se no dilema entre o imobilismo ou o assimilacionismo, ou seja, entre cair no ostracismo e abandonar projetos sérios ou aderir à lógica do mercado educacional e agir pensando exclusiva-mente na sua promoção pessoal, fenômeno este que pode ser denominado de carreirismo acadêmico.

Todavia, conforme reivindica Ricardo Timm de Souza, é necessário transformar a crise em crítica.

Desde a perspectiva estridentemente transdisciplinar que orienta as pesquisas publicadas nesta coleção, a possibilida-de de um saber criminológico crítico é visualizada através do diálogo franco com os demais campos das humanida-des, notadamente a Sociologia, a Antropologia, a Filosofi a e a Psicanálise, e com os saberes tradicionalmente desqualifi -cados pelas ciências como profanos, sobretudo a Arte. Sem, contudo, cair na tentação de disciplinar a transdisciplinaridade, isto é, criar um novo campo hermético e dogmático a partir da conciliação de dois ou mais discursos científi cos. Não por outra razão a enunciação do título da coleção no plural.

A série de publicações de trabalhos essencialmente aca-dêmicos (monografi as, dissertações e teses) pretende cons-truir mais um espaço de diálogo, ser mais um canal de divul-gação do pensamento crítico. E reivindicar a postura crítica implica, necessariamente, em realizar autocrítica, o que é re-fl etido na perspectiva de desconstrução que os investigado-res associados têm sobre as falsas imagens acadêmicas que habitam determinadas mentes e certas instituições. A ironia kafk iana do subtítulo da coleção pauta esta gaia abordagem que conduz o projeto.

O projeto CriminologiaS: Discursos para a Academia está vinculado formalmente ao Departamento de Ciências Penais da UFRGS e ao Departamento de Direito Penal e Direito Processual Penal da PUCRS. No entanto, apesar do

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localismo da coordenação, o conselho editorial foi formado de maneira a dar representatividade nacional e abrangência transdisciplinar, não limitando o projeto à determinada re-gião ou a campo de investigação.

Fundamental, pois, o apoio da Editora Lumen Juris, que vem apostando na divulgação de trabalhos com características distintas daqueles que habitam a grande imprensa editorial na área das Humanidades, sobretudo no campo do Direito.

Assim, a aposta é que a série CriminologiaS: Discursos para a Academia atinja uma grande parcela de leitores des-contentes com o marasmo editorial brasileiro e ansiosos para receber conteúdo acadêmico de qualidade, em oposição à ló-gica manualesca que vem preponderando no mercado.

Porto Alegre, inverno de 2010.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (PUCRS) Salo de Carvalho (UFRGS)

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xix

Apresentação

CriminologiaS

A “combinação etimológica” greco-latina “criminologia” atravessa no momento presente a crise gerada pelo fruto de-senvolvido, ao longo do tempo, desde sua própria genealogia, exatamente como seus infi nitos assemelhados – da socio-logia à antropo-logia, da mito-logia à bio-logia. Ramos da ciência ou do saber – da questão pelo ser em algum de seus aspectos ou formas, para falar como os inarredáveis ancestrais de todo o conhecimento científi co ocidental, os fi lósofos gregos – que se perguntam, sempre presentes, pela razão de seu próprio existir em função dos objetos no qual se focam –, navegam todos esses conceitos no mar tempestuoso da indeterminação que perdeu a consciência de sua raiz, ou seja, a visibilidade real de seu sentido, na ilusão de que este fosse tão óbvio que todo falar sobre se tornasse supérfl uo. O fl uxo gerador das linguagens, que geram os conceitos, que a Filosofi a organiza em termos causais e categorias através do logos, oportunizando assim o surgimento e desenvolvimento das ciências, levanta, ao assu-mir feições de especialidades, prematuramente, na agitação da modernidade e no frenetismo da contemporaneidade, o vôo temerário da auto-sufi ciência. Vôos prematuros e teme-rários são vôos de Ícaro: a queda é longa, proporcional exata-mente à pretensão de auto-sufi ciência. Restam os destroços: a questão do sentido.

É, portanto, da questão do sentido que se trata – dir-se-ia fi losofi camente: a questão da multiplicidade dos sentidos. E a an-

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CriminologiaS: Discursos para a Academia

xx

fi bologia da palavra “sentido”, sábia como todas as palavras que resistiram ao tempo, já diz tudo. Sentido aponta cami-nhos, direções possibilidades, ousadia, télos; sentido aponta origens, fontes, ancestralidade, arché. Ao mesmo tempo. O tem-po da ética. Porque a questão do sentido é, nada mais, nada menos, do que a questão de saber o que fazer com o tempo de que se dispõe. E fazer – mesmo em sua intelectualizada versão de tramas complexas de conceitos – é, necessariamente, uma questão ética.

A racionalidade encontra, assim, sua necessidade mais profunda, que é, igualmente sua condição de sobrevivência em meio à tempestade: percorrer fi losofi camente a arque-olo-gia das categorias, refazendo caminhos, passando por lógicas, conceitos e suas tramas, procurando chegar à fons vitae das linguagens que se dão no tempo, transformando-o em tem-pos – ou seja, rompendo fi nalmente com a unidade “de Jônia a Jena”, esses dois mil e quinhentos anos que são os nossos e dos quais vivemos –, e que, tomando uma outra vereda que aquela – sediciosa – que culmina nas cores fátuas, nos exotis-mos hipócritas e na infi nitas razões ardilosas que justifi cam o indecente, desemboque no instante de origem dos tempos que ainda restam: os instantes de desconstrução da violência. Múltiplos como os instantes que ainda restam. Pluralizados como alguém que descobre não estar só no mundo. Variados como os que encontram uns aos outros. Atentos à tentação da auto-sufi ciência. Com verdadeiro “S” fi nal.

Ricardo Timm de Souza (PUCRS)

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1

Introdução

A análise dos dados de encarceramento no Brasil nas duas últimas décadas permite diagnosticar o ingresso do país no cenário punitivista internacional. No entanto esta situação de encarceramento em massa gera verdadeiro paradoxo, pois este de período recrudescimento das leis penais é, ao mesmo tempo, o momento de transição e de consolidação democráti-ca após a experiência dos anos de Ditadura Militar.

Neste quadro, a investigação pretende analisar o papel dos atores do sistema penal, sobretudo dos operadores do di-reito, no panorama político-criminal punitivista que se inst-aura paralelamente à promulgação da Constituição de 1988 e à luta pela constitucionalização das leis penais e processuais penais no Brasil.

A abordagem dos temas de investigação é, fundamental-mente, criminológica e crítica, embora o objeto de análise (critérios judiciais de aplicação da pena) esteja, em princípio, vinculado à dogmática jurídico-penal. É que a perspectiva cri-minológica permite olhar sensível sobre as agências e os ato-res que sustentam o sistema punitivo brasileiro, sem incorrer nos vícios paleopositivistas comuns à análise dogmática que, no caso, estaria limitada ao horizonte interpretativo do direito penal – normativo, portanto.

O texto inicia com refl exão que procura aterrissar os dis-cursos penalógicos no panorama punitivista que marca os países ocidentais. Desta forma, pretende realizar o diagnós-tico normativo e empírico dos fatores que contribuíram para a adesão nacional às políticas de encarceramento. Outrossim,

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CriminologiaS: Discursos para a Academia

2

procura encontrar elementos históricos que forneçam pistas sobre a edifi cação autoritária das instituições jurídico-penais brasileiras. Identifi ca, pois, a formação cultural inquisitó-ria dos operadores jurídicos nacionais, dado que possibilita compreender a natural identifi cação da política e da jurídica criminal brasileira com o projeto transnacional de grande en-carceramento.

Com o objetivo de demonstrar empiricamente os efei tos da formação inquisitória dos atores da cena jurídica e a sua adesão ao punitivismo – fenômeno derivado do que se deno-minará como vontade de punir –, foi realizado levantamento de dados e análise qualitativa de julgados dos Tribunais Su-periores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça). A partir da criação de instrumento de análise, foram verifi cados os critérios utilizados pelos Tribunais Superiores para quantifi cação da pena carcerária. O período de análise foi delimitado no primeiro semestre de 2008.

A hipótese que orientou o trabalho foi a de que a forma-ção autoritária das instituições penais e a inserção dos seus atores na cultura inquisitória permitem a adesão do Brasil às políticas globais de hiperencarceramento, situação que acaba sendo densifi cada na realidade marginal da América Latina.

O objetivo da investigação, portanto, é o de analisar o pa-pel dos atores do sistema penal no cenário punitivista e os refl exos na política criminal brasileira. Apesar de os dados relativos ao encarceramento serem absolutamente preocupantes, parte-se do pressuposto de que a análise exclusiva da situação prisio-nal é insufi ciente, pois revela apenas os resultados legislativos de processo que atinge toda a persecução penal, da investiga-ção do fato à execução da pena.

A investigação da formação cultural e das tendências po-lítico-criminais dos atores que põem em marcha a persecução

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criminal permite compreensão global do problema e, em con-sequência, facilita projetar alternativas viáveis para redução dos danos causados pelo projeto punitivista de edifi cação de Estados penais.

Importante referir que a presente publicação é fruto de dois projetos de pesquisa complementares.

A pesquisa documental realizada nas Cortes Superio-res foi fi nanciada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a partir de pesquisa apresentada para a linha de pesquisa sobre pena mínima, do projeto Progra-ma Pensando o Direito, da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) do Ministério da Justiça. Realizada ao longo do ano de 2008, foi criado banco de dados e desenvolvida análise quali-tativa dos julgados pelo grupo de investigação que, naquele momento, estava vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS. O trabalho foi fi nalizado e o relatório aprovado pelos técnicos da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL).

Em paralelo à pesquisa sobre pena mínima, foi realizado estudo sobre o papel dos atores jurídicos na realidade político--criminal punitivista junto ao programa de Pós-Graduação em Direito, linha de Criminologia, da Universidade Pompeu Fa-bra, Barcelona. Esta investigação de pós-doutoramento, reali-zada nos anos de 2008 e 2009, sob a orientação da Profa. Dra. Elena Larrauri Pij oan, foi concluída em maio de 2010, com a apresentação e aprovação de ensaio teórico homônimo ao presente livro.

A pesquisa neste momento publicada é, portanto, versão unifi cada e reduzida dos produtos fi nais destes dois projetos autônomos, devidamente harmonizados, revisados e atuali-zados.

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PARTE IA Formação Culturaldos Atores Processuaise o Cenário Punitivista

Contemporâneo

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1.Vontade de Punir: Populismo

Punitivo e Pânicos Morais

A crise do Welfare State nos países centrais, que culmi-na na década de 80, imprime profundas alterações no cenário político-econômico mundial e, agregada aos efeitos provoca-dos simbolicamente pela queda do Muro de Berlim, cria as condições de implementação das políticas neoliberais no fi nal do século XX.

No novo cenário, com a constrição dos investimentos em políticas públicas na área social, a estrutura de apoio e de avaliação dos condenados criada pelo correcionalismo demonstra-se inviável. Por outro lado, a própria legitimidade de manutenção fi nanceira do modelo ressocializador é ques-tionada, pois no discurso político ofi cial o momento é o de estabelecer prioridades nos investimentos públicos, restando a recuperação dos condenados em plano secundário.

A desestabilização do pensamento correcionalista é pro-vocada por dois distintos discursos deslegitimadores. O pri-meiro, relativo à deslegitimação político-econômica, deriva da falta de capacidade ou de interesse político-econômico em manter a estrutura penal-welfare; o segundo, referente à desle-gitimação teórico-acadêmica, decorrência das críticas sobre a intervenção estatal com objetivo de correção dos condenados (criminologia crítica e garantismo penal) e à falta de contro-

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le sobre regime de penas altamente fl exíveis (teoria do justo merecimento).

As desqualifi cações que atingem o modelo penal inter-vencionista abrem espaço para alterações nas fi nalidades po-líticas da punição e, subsidiariamente, nas construções teóri-cas sobre os sistemas de penas. Importante perceber, porém, que estas desqualifi cações são direcionadas desde locais po-lítico-ideológicos absolutamente distintos: a deslegitimação estrutural advém do pensamento político conservador e a te-órica das tendências acadêmicas críticas, não sendo cabíveis, portanto, quaisquer aproximações.

Outrossim, paralelo ao avanço do pensamento con-servador no espaço político, o Ocidente assiste, a partir da década de 80, ao real crescimento nas estatísticas criminais relativas aos tradicionais crimes violentos e, ao mesmo tem-po, ao surgimento de novas formas de dano que fomentarão novas espécies de criminalização. Há, portanto, signifi cativa mudança quantitativa e qualitativa do fenômeno crime ou da questão criminal. Entende-se por questão criminal os fenômenos relativos às práticas delitivas e suas circunstâncias, ou seja, as formas do delito, seu o modo de execução, as consequências que produz e grau de vitimização que provoca. Alterações na questão criminal provocam, inexoravelmente, modifi cações na questão penal, ou seja, nos procedimentos e nos mecanismos de atribuição de responsabilidade regidos pelo direito penal e processual penal.

O novo ambiente político-econômico e social possibilita o desenvolvimento daquilo que Denis Salas nominou como vontade de punir.1 A vontade de punir, que emerge como sinto-ma do sistema político, segue a mesma lógica da vontade de

1 Salas, La Volontè de Punir, pp. 103-138.

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sistema que caracteriza as ciências (criminais)2. Como legado da racionalidade instrumental, a vontade de sistema se carac-teriza pela construção de modelos políticos e científi cos a par-tir de fórmulas totalizadoras de compreensão dos fenômenos, circunstância que produzirá imagens e representações falsas, como a de que a redução da complexidade do problema ga-rante estabilidade e segurança.

O sintoma contemporâneo vontade de punir, que atinge os países ocidentais e que desestabiliza o sentido substan-cial de democracia, propicia a emergência das macropolíticas punitivistas (populismo punitivo), dos movimentos político- criminais encarceradores (lei e ordem e tolerância zero) e das teorias criminológicas neoconservadoras (atuarismo, geren-cialismo e funcionalismo-sistêmico).

Neste cenário, Elena Larrauri aponta quatro fatores que possibilitam condições de consolidação do populismo puni-tivo nos países ocidentais: (1º) o neoliberalismo econômico, que rompe com a ideia de Estado Social e defi ne formas de gover-nar através do crime, consolidando Estados punitivos; (2º) o neoconservadorismo político, que enfatiza a mensagem da peri-culosidade da delinquência; (3º) o sentimento de insegurança ontológica, derivado dos novos riscos e da desagregação da co-munidade local e do grupo familiar tradicional, que se projeta nos grupos econômicos-sociais vulneráveis; e (4º) o aumento continuado do delito e seu redimensionamento em formas or-ganizadas e transnacionais.3

A prisionalização massiva contemporânea não pode, po-rém, ser restringido ao aumento do número de delitos, inclu-sive porque as taxas internacionais de criminalidade violenta,

2 Sobre a vontade de sistema nas ciências criminais, conferir Carvalho, Antima-nual de Criminologia, pp. 35-54.

3 Larrauri, Populismo Punitivo... y como Resistirlo, pp. 11-14.

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em geral, têm sido reduzidas, conforme será demonstrado. Percebe Larrauri, portanto, que as taxas de encarceramento são construções políticas decorrentes de decisões em distintas esferas: “(...) o aumento de pessoas que estão na prisão não repro-duz o aumento da delinquência, mas multiplicidade de outros fato-res, como decisões legislativas, sensibilidade judicial e capacidade e limites do próprio sistema para processar os diversos atos delitivos.”4

Portanto a questão seria defi nir quais os fatores que pos-sibilitam afi rmar ser determinada realidade político-criminal classifi cada como punitivista ou, em termos mais precisos, se os dados relativos aos índices de encarceramento seriam sufi -cientes para indicar o nível de punitivismo de uma sociedade.

Apoiada em Nelken, Larrauri constata que uma socieda-de poderia ser considerada não punitiva por ter baixas taxas de encarceramento, mas, em termos de controle social infor-mal, ser bastante intolerante com o delito e o desvio, fator que possibilitaria fosse adjetivada como punitivista. De igual for-ma, extenso rol de delitos previstos na Lei penal, seguido de cominações abstratas de penas altas, poderia indicar adesão às políticas punitivas, porém o baixo grau de incidência das agências punitivas na efetivação do programa criminalizador indicaria baixo nível de punitividade.5

Não obstante, indicadores de análise como sentimento de impunidade e sensação de insegurança, comumente expostos pelos meios de comunicação de massa como conteúdo de demandas criminalizantes, poderiam indicar baixo grau de punitivismo decorrente de alta taxa de inefi ciência do siste-ma penal ou da alta tolerância da comunidade com práticas delituosas.

4 Larrauri, Populismo..., p. 14.5 Larrauri, La Economia Política del Castigo, pp. 02-03.

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No entanto estes referentes de análise, apesar de relevan-tes em termos político-criminais pelos indícios que fornecem ou pela simbologia que representam, apresentam incontestá-veis difi culdades de averiguação, fato que torna questioná-vel sua utilização como critérios de graduação dos níveis de punitividade social. A ausência de instrumentos efi cazes para demonstrabilidade empírica de indicadores como sentimento de impunidade e sensação de insegurança, amplamente utilizados como argumentos de ampliação do punitivismo pelos empre-endedores morais, torna volátil a associação entre medo e da-manda sancionatória.

É notório, pela sua própria natureza, que categorias que projetam sentimentos e sensações se constituem como indi-cadores imprecisos, sendo altamente questionáveis as meto-dologias que procuram realizar sua comprovação e calcular sua intensidade. Difícil e impreciso, portanto, confi rmar ou refutar se efetivamente, em determinada sociedade, a sensa-ção de insegurança e o sentimento de impunidade são altos ou baixos.6 Não obstante, análise dos discursos político-crimi-

6 A partir da década de 70, com as preocupações decorrentes das campanhas de pânico moral, inúmeras metodologias foram criadas para realizar a graduação do sentimento de insegurança. O signifi cado e a valoração da insegurança pública em relação ao crime adquirem dimensões emocionais, cognitivas e comportamentais que projetam distintas ênfases metodológicas.

Conforme destacam Gerber, Hirtenlehner e Jackson, em especial referência às pesquisa sobre segurança na Alemanha, Áustria e Suíça, “modelos explicativos, ferramentas empíricas e discussões políticas foram recebidas e muitas vezes adotadas acriticamente” (Gerber, Hirtenlehner & Jackson, Insecurities about Crime in Germany, Austria and Switzerland, p. 151).

Apontam os autores, contudo, que inúmeras e distintas fontes e métodos têm sido utilizados, circunstâncias que alteram, inclusive, o foco se comparadas às investigações sobre medo do crime nos países europeus continentais e anglo-saxões – “enquanto a literatura britânica e americana enfatiza o papel da vizinhança e da comunidade, a pesquisa alemã está mais preocupada com o impacto das incertezas globais e remotas no bem-estar dos cidadãos” (Gerber, Hirtenlehner & Jackson, Insecurities..., p. 152).

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nais revela sua utilidade publicitária e/ou ideológica, normal-mente para substancialização de práticas punitivas violentas.

Conforme inúmeros estudos criminológicos têm de-monstrado, o medo do delito e o delito mesmo são fenôme-nos distintos, e na maioria dos casos o sentimento de insegu-rança excede superlativamente a realidade criminal. Segundo Hassemer, “criminalidade e medo do crime não são como a coisa e a sua imagem no espelho. Sentimento de ameaça e insegurança não são meros refl exos de ameaças reais, mas também consequência de circunstâncias de dessocialização e intranquilidade sociais.”7

Todavia, conforme sustenta Barry Glassner, “um dos pa-radoxos da cultura do medo é que sérios problemas permanecem ignorados, apesar de originarem precisamente aqueles perigos que a população mais abomina.”8 Dentre estes principais fatores de ansiedade, a quantidade e a gravidade dos crimes encontra destaque. Demonstra Gassner, porém, que os pânicos morais, conceito trabalhado por Cohen9, são normalmente amplifi ca-dos pelos meios de comunicação de massa, que interpretam e expressam incidentes isolados como epidemias, causando traumas sociais. Em precisa análise sobre a forma e o conte-

Note-se que a defi nição do foco de interpretação – do aspecto comunitário ao global – implica necessariamente a alteração da estratégia de pesquisa, sendo incabível pensar em adequação e concretude de dados. Sobretudo em países sem tradição em pesquisas criminológicas empíricas o mesmo em tabulação estatísticas de dados sobre crime e criminalidade como é o caso do Brasil.

7 Hassemer, Segurança Pública no Estado de Direito, p. 163.8 Glassner, The Culture of Fear, p. xxvi.9 O conceito de pânico moral, introduzido pela teoria do etiquetamento – em

especial por Stanley Cohen no clássico estudo Folk Devils and Moral Panics (1972) – adquiriu, no fi nal do século passado, importância fundamental para análise e compreensão da cultura ocidental. Não por outra razão é categoria instrumenta da sociologia, psicologia social, antropologia, jornalismo e, logicamente, das ciências criminais.

Sobre as origens da categoria, os problemas e as limitações conceituais, e as perspectivas contemporâneas, conferir Garland, On the Concept of Moral Panics, pp. 09-30.

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údo de abordagem da questão criminal realizada pela mídia norte-americana, o autor expõe os mecanismos de constru-ção dos pânicos através de falsas imagens ou de representações distorcidas da violência. Gangues juvenis, homicidas em série, cybercriminosos, adolescentes armados, maníacos estupradores, trafi cantes de drogas e sequestradores de crianças são caracte-rizados como os superpredadores urbanos que geram instabi-lidade e caos na sociedade norte-americana contemporânea. O exagero nos dados e a inversão do signifi cado dos indicadores ofi ciais de violência permitem que o autor revele por que os nor-te-americanos têm medo das coisas erradas.10

Pesquisa realizada por Roberts, Stalans, Indermaur e Hough, a partir de entrevistas no Canadá, Estados Unidos, Inglaterra, Austrália e Nova Zelândia, demonstra como “(...) as pessoas tendem a crer que há mais delito do que existe, que o delito é mais grave do que realmente é e que as penas que os Tribunais im-põem são menos severas do que realmente são. Ou seja, tende a crer que a situação está mais descontrolada do que efetivamente está: mais delito, sempre de caráter violento e condenações benevolentes.”11 No entanto expõem os pesquisadores que as mesmas pesso-as ao serem informadas dos princípios que regem o sistema penal e ao serem confrontadas com casos reais julgados pelo

10 O subtítulo do livro de Glassner é provocativo: “why americans are afraid of the wrong things: crime, drugs, minorities, teen moms, killer kids, mutant microbes, plane crashes, road rage, & so much more”. No capítulo 02 (Crime in the News: Tall Tales and Overstated Statistics), o autor aborda a mídia dos Estados Unidos como fonte de produção de pânico. Neste sentido, conferir Glassner, The Culture..., pp. 23-49.

Analisando o caso brasileiro, especifi camente a questão carioca, a partir da análise histórica da consolidação do medo na formação cultural, conferir Batista, O Medo na Cidade do Rio de Janeiro, pp. 75-121.

11 Roberts, Stalans, Indermaur & Hough Apud Larrauri, Populismo..., p. 18.

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Judiciário, normalmente concluem de forma similar ao enten-dimento do juiz.12

Viável concluir, pois, que a formação do imaginário so-cial sobre crime, criminalidade e punição se estabelece a par-tir de imagens publicitárias, sendo os problemas derivados da questão criminal, não raras vezes, superdimesionados. A hipervalorização de fatos episódicos e excepcionais como re-gra e a distorção ou incompreensão de importantes variáveis pelos agentes formadores da opinião pública, notadamente os meios de comunicação de massa, densifi cam a vontade de punir que caracteriza o punitivismo contemporâneo.

Desta forma, em face da inconstância e da inconsistência de dados sobre os mecanismos informais de controle social e da ausência de demonstrabilidade empírica de variáveis emo-tivas como sentimento de insegurança e de impunidade – ele-mentos que poderiam ser compreendidos metodologicamen-te como mecanismos de análise e medição –, o instrumento eleito para defi nição do nível de punitivismo será o dos índi-ces de encarceramento. Assim, na linha de Larrauri,13 o termo punitivismo será empregado na pesquisa como sinônimo de elevadas taxas de prisionalização, exatamente por serem as polí-ticas de encarceramento a principal ferramenta do populismo punitivo.

12 Roberts, Stalans, Indermaur & Hough Apud Larrauri, Populismo..., p. 18.13 Larrauri, La Economia..., p. 03.

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2.Crimes e Prisões no Século XXI

O cenário político-criminal dos países ocidentais, cen-trais e periféricos, nas duas últimas décadas, sofreu signifi -cativa alteração. As taxas de encarceramento, que se manti-nham relativamente estáveis em comparação com o aumento populacional, a partir do fi nal da década de 70, demonstram vertiginoso crescimento.

Inegavelmente, conforme antecipado, no mesmo perío-do houve aumento dos índices de criminalidade, fato que, em tese, justifi caria o acréscimo dos níveis de encarceramento. No entanto, a expansão das políticas criminais encarcerado-ras não se explica exclusivamente pelo aumento nos índices de delitos registrados, sendo dois dados importantes para sua análise autônoma e para compreensão da tendência de revi-talização da instituição prisional: primeiro, porque o cresci-mento do número da população reclusa foi substancialmente superior, em termos quantitativos e qualitativos, ao aumento do registro de crimes; segundo, porque delitos e prisões não são fenômenos necessariamente vinculados, constituindo-se como realidades distintas.

Alguns aspectos preliminares são necessários para com-preensão destas duas hipóteses traçadas como pressupostos de análise do punitivismo contemporâneo.

Apesar das relevantes críticas aos fundamentos da po-lítica criminal correcionalista que orientaram a reforma da legislação penal e penitenciária da maioria dos países ociden-

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tais no fi nal do século XX, o procedimento de individualiza-ção científi ca da pena proposto pelo paradigma penal-welfare possibilitou inúmeras formas de fl exibilização da prisão. Dentre os instrumentos mais notórios de descarcerização, o aperfeiçoamento do sistema progressivo propiciava que o condenado, ao longo de sua trajetória na instituição, conforme o nível de adesão e de adaptação ao programa ressocializador, evoluísse de grau, sendo paulatinamente transferido dos regi-mes severos para instituições de maior liberdade. Concluídas as etapas de desinstitucionalização, o condenado fi nalizaria o cumprimento de sua pena em liberdade, observadas deter-minadas condições e sob a vigilância dos órgãos de controle penitenciário (livramento condicional, parole). Frise-se, porém, que a fl exibilização da pena poderia ser, a qualquer momento, revogada, inclusive com a determinação de regime de cumpri-mento de pena mais severo que o da condenação, em caso de descumprimento das condições impostas ou reincidência.1

Além da gradual fl exibilização do cumprimento de pena pelo sistema progressivo, incluído o instituto do livramento condicional, série de substitutivos penais foram, ao longo do tempo, incorporados pelo modelo correcionalista de forma a descentralizar a pena de sua modalidade exclusivamente car-cerária. Prisão domiciliar, suspensão condicional da pena, li-mitação de fi nal de semana, interdição temporária de direitos, prestação de serviços à comunidade, proibição de frequência em determinados locais, pena de multa entre inúmeras outras modalidades de respostas penais, foram agregadas à institui-ção prisão como formas de proporcionar, conforme o caso es-pecífi co e de acordo com as condições pessoais do condenado,

1 Sobre os procedimentos de individualização executiva da pena e o controle da identidade do condenado, conferir Carvalho, Pena e Garantias, pp. 182-188.

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a individualização da pena criminal com a efi caz adequação ao tratamento corretivo.

Desta forma, em razão das inúmeras alternativas puniti-vas criadas, ou seja, das várias possibilidades de sanção penal existente, o acréscimo nos níveis de delitos registrados pelas agências de controle e julgados pelo Poder Judiciário não implicava, necessariamente, aumento dos níveis de encarce-ramento. Ademais, a consciência do sistema punitivo acerca das cifras ocultas da criminalidade – delitos cometidos mas não registrados pelos órgãos ofi ciais – e das cifras de inefi ciência das agências penais – delitos registrados mas sem desdobrar procedimentos efi cazes para a atribuição de responsabilidade penal ao autor –, permitia, ainda na plena vigência do cor-recionalismo, constatar a efetiva inexistência de relação e de dependência entre crimes e penas.

Elena Larrauri lembra que “o fato de que o aumento da pri-são não se produza de forma correlacionada com os índices de delitos é uma conclusão majoritariamente aceita por toda a literatura crimi-nológica, seja qual for sua orientação ideológica.”2

Os dados apresentados por Garland sobre o registro de crimes e os índices de aprisionamento nos Estados Unidos, entre 1950 e 1998, e na Grã-Bretanha, entre 1925 e 1998, são signifi cativos e demonstram esta ausência de correlação.3 Percebe-se da exposição realizada pelo autor que o aumento do registro do número de crimes nos Estados Unidos ocorre a partir do início da década de 60 e atinge seu ápice nos anos de 80 e 92, apesar de estabilizar-se quantitativamente entre 76 e 98. De forma distinta, a curva de encarceramento apresenta crescimento gradual neste período, com vertiginoso aumen-

2 Larrauri, La Economia..., p. 04.3 Garland, The Culture..., pp. 208-209.

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to a partir das décadas de 80 e 90. Na Grã-Bretanha, embora os números acerca do aumento de crimes e de prisões sejam mais próximos, similar leitura é possível.

Em sentido semelhante, Wacquant, ao constatar que “basta uma única estatística para fazer sobressair a falta de cone-xão fl agrante e crescente entre crime e encarceramento nos Estados Unidos: em 1975, o país prendia 21 criminosos para cada 1.000 crimes graves (homicídio, estupro, agressão, roubo, assalto e furto de carros); em 1999, este número havia chegado a 106. Se conside-rarmos o crime como uma constante, a sociedade norte-americana é cinco vezes mais punitiva hoje do que era há um quarto de século.”4

Zimring, a partir da análise de dados dos últimos anos, demonstra que nos Estados Unidos houve substancial decrés-cimo nas taxas de crime, apesar de o índice de encarceramen-to seguir aumentando. Conclui, porém, ser assimétrica a rela-ção entre crime e punição e não corresponder a diminuição do número de registros de ilícitos com o incremento das penas ou, ao contrário, ter a restrição da punição relação direta com a aumento do delito.5 A variação de um destes fatores (cri-me ou pena), embora possa ter impacto no outro elemento de análise, não é fator determinante.

Dados atualizados coletados junto ao United States Bureau of Justice Statistics permitem esta conclusão. A partir de 1992, os índices de registro de crimes violentos – homicídio, estupro, roubo e roubo qualifi cado –, nos Estados Unidos, ini-ciam signifi cativo processo de declive. Conforme os números apresentados pelo órgão estatístico ofi cial norte-americano, três são os indicadores de medição da quantidade de delitos

4 Wacquant, O Lugar da Prisão na Nova Administração da Pobreza, p. 10.5 Zimring Apud Larrauri, La Economía..., p. 04.

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graves: dados de vitimização,6 crimes registrados pela polí-cia7 e prisões em fl agrante em casos de crimes violentos.8 A conjugação destas três variáveis permite realizar a estimativa do número total de crimes violentos.

Gráfi co 01EUA: Número Total de Crimes Violentos (1973-2007)

Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

Análise do número de homicídios por 100.000 ha-bitantes, indicador internacional para medição do nível

6 Os dados de vitimização correspondem à “estimativa do número de homicídios de pessoas com idade acima de 12 anos registrados pela polícia, acrescida do número de estupros, roubos e roubos qualifi cados a partir da pesquisa de vitimização” (Bureau of Justice Statistics, Four Measures of Serious Violent Crimes).

7 Os dados de registro policial correspondem ao “número de homicídios, estupros, roubos e agressões incluídos no Uniform Crime Reports do FBI, excluindo roubos em estabelecimentos comerciais e crimes cujas vítimas envolvidas tinham idade inferior a 12 anos” (Bureau of Justice Statistics, Four…).

8 Os dados de prisões em fl agrante em crimes violentos correspondem ao “número de pessoas presas por homicídio, estupro, roubo e roubo qualifi cado, conforme relatórios apresentados pelas autoridades policiais ao FBI” (Bureau of Justice Statistics, Four…).

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de violência dos países, reforça a conclusão apresentada pelas estatísticas oficiais sobre a substancial queda dos índices de delitos violentos nos Estados Unidos nas últi-mas décadas. Após o contínuo decréscimo entre os anos de 1991 e 2000, momento no qual os índices são reduzi-dos de 9,8 para 5,5 homicídios por 100.000 habitantes, ocorre sua estagnação.

Gráfi co 02EUA: Registro de Homicídios (1960-2008)

9,5

6,85,6

5,65,4

8,69,6

7,36,2

4,65,1

8,3

02468

1012

60 62 65 69 73 77 81 85 89 93 97 01 05 09

Índice de Homicídios por 100.000 Habitantes

Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

No entanto de forma inversamente proporcional encon-tram-se os níveis de prisionalização, pois nas duas últimas décadas houve substancial incremento no grau de encarcera-mento, fator que confi gurou os Estados Unidos como país de maior contingente de pessoas presas no mundo. Estimativas apontam que 01 em cada 04 presos no mundo encontra-se de-tido em prisões norte-americanas.

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Gráfi co 03EUA: Taxas de Encarceramento (1980-2008)

Fonte: United States Bureau of Justice Statistics

Segundo dados do International Centre for Prison Studies do King’s College de Londres, ao final de 2008, os Estados Unidos atingia a cifra de 2,3 milhões de pessoas encarceradas, correspondendo a 753 presos por 100.000 habitantes. Acrescentando nestes números os condena-dos não envolvidos na forma carcerária de execução pe-nal (probation e parole), o número de pessoas sob vigilân-cia penitenciária atingia 7,2 milhões. Em termos univer-sais, apenas a Rússia se aproxima destes números, mas com índices significativamente inferiores (610 presos por 100.000 habitantes em 2009).

Ao cruzarmos os dados, temos a seguinte representação gráfi ca.

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Gráfi co 04EUA: Curvas de Encarceramento e de Homicídios (1991-2008)

9,8 9,5

8,2

6,86 5,7 5,6 5,7 5,6 5,6 5,4

505550

600 630669 675 685 700 723 740 760

0

100

200

300

400

500

600

700

800

0

2

4

6

8

10

12

92 93 95 97 98 99 2001 2003 2004 2005 2008

Homicídios Encarceramento

Fontes: United States Bureau of Justice Statistics e International Centre for Prison Studies, King’s College (Londres)

Observe-se, contudo, que em razão de os números serem substancialmente distintos, são atribuídos dois valores ao eixo vertical, gerando dados autônomos – eixo vertical direito regis-tro de delitos de homicídio por 100.000 habitantes; eixo vertical esquerdo número de pessoas presas por 100.000 habitantes. Do contrário, ou seja, atribuindo paridade aos valores, o cruzamento seria impossível. Assim, o gráfi co apresenta imagem simbólica das distintas curvas, permitindo apenas visualizar a tendência encarceradora do sistema norte-americano apesar da diminui-ção dos índices ofi ciais de registro de crimes violentos.

Embora a ressalva de ser este princípio apenas referen-cial teórico, não necessariamente resultado concretizado na prática,9 sustenta Garland que no sistema penal-welfare a pri-

9 Garland, The Culture..., p. 177.

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são funcionaria como a última instância do sistema de con-trole, como recurso extremo no continuum do tratamento, direcionado exclusivamente àqueles delinquentes que não respondessem adequadamente às medidas reformadoras aplicadas em outras instituições punitivas.

Do ponto de vista teórico, o postulado da utilização da pena, em geral, e da pena de prisão, em particular, como últi-mo recurso sancionatório do sistema penal é legado do pen-samento liberal clássico, consolidado pelo direito penal con-temporâneo nos princípios de intervenção mínima, de frag-mentariedade ou de subsidiariedade que concentram a ideia da ultima ratio. E, diferentemente de ser conquista do modelo correcionalista, conforme sustenta Garland, o discurso de defesa da intervenção mínima acompanha a trajetória dos discursos do direito penal e do direito processual penal da Modernidade, apesar de, nos dois últimos séculos, sua con-solidação científi ca (dogmática penal) ter, ao instrumentalizar a aplicação do poder punitivo, operado constantes inversões do signifi cado liberal de subsidiariedade cuja consequência é a relegitimação e ampliação do uso da pena.

Todavia parece ser correto o diagnóstico de Garland em relação ao processo de reinvenção da prisão no período pós--crise do modelo correcionalista.

As mudanças econômicas e sócio-culturais da década de 80, sobretudo com a consolidação da economia de mercado e do modelo político-econômico de gerenciamento neoliberal, impuseram radicais câmbios na estrutura dos Estados, atin-gindo diretamente os serviços prestados pelas suas institui-ções. Assim, o giro ao punitivismo da década de 90 não cor-responde apenas ao esgotamento do intervencionismo, como se as críticas acadêmicas dos anos 60 e 70 tivessem o poder de provocar rupturas na estrutura política. O colapso do modelo

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penal-welfare é decorrência lógica da substituição do projeto de Estado de Bem-Estar (Welfare State) por estruturas estatais pautadas pelos princípios de efi ciência e controladas pela ló-gica do gerenciamento atuarial.

Assim como no período de transposição do Estado Liberal ao Estado Social a concepção de intervenção penal re-sidual é invertida em direção ao correcionalismo10, com a fa-lência da política de bem-estar social as instituições do Estado Providência igualmente entram em crise. O giro em direção ao punitivismo, com o consequente declínio das formas pu-nitivas ressocializadoras, é refl exo direto do câmbio político--econômico, não podendo ser reduzido à mudança de pers-pectiva teórica do mainstream jurídico-penal e criminológico.

Parecem, pois, absolutamente estéreis e descolados da realidade os debates acadêmicos voltados a identifi car, inter-namente aos discursos das ciências criminais, as causas do

10 François Ost expõe a transposição das funções estatais do Estado Liberal absenteísta ao Estado Social intervencionista referindo que “é pois como Estado protector que o Estado moderno se identifi ca. No século XIX, esta protecção assumirá a forma minimalista da garantia generalizada da sobrevivência, com o Estado liberal a deixar à esfera privada a gestão das condições materiais de existência. No século XX, em compensação, as missões do Estado alargam-se, na medida em que ele toma a seu cargo, para além da simples sobrevivência, a garantia de certa qualidade de vida: fala-se então de Estado-providência ou de Estado social” (Ost, O Tempo do Direito, p. 336).

Com ênfase na ocupação e na gestão da população excedente, Zygmunt Bauman apresenta similar diagnóstico acerca das funções do Estado Social: “(...) o estado de bem-estar foi, originalmente, concebido como um instrumento manejado pelo estado a fi m de reabilitar os temporariamente inaptos e estimular os que estavam aptos a se empenharem mais, protegendo-os do medo de perder a aptidão no meio do processo. Os dispositivos da previdência eram então considerados como uma rede de segurança, estendida pela comunidade como um todo, sob cada um de seus membros (...). A comunidade assumia a responsabilidade de garantir que os desempregados tivessem saúde e habilidades sufi cientes para se reempregar e de resguardá-los das temporárias soluções e caprichos das vicissitudes da sorte. O estado de bem-estar não era concebido como uma caridade, mas como um direito do cidadão, não como o fornecimento de donativos individuais, mas como uma forma de seguro coletivo” (Bauman, O Mal-Estar da Pós-Modernidade, p. 51).

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esgotamento do paradigma ressocializador, como se o eixo político estivesse condicionado ao campo teórico. A imputa-ção da responsabilidade sobre o avanço do punitivismo para determinadas teorias criminológicas – v.g. a teoria do justo merecimento ou a criminologia crítica –, não apenas desloca a política criminal da política, como superdimensiona o pa-pel das teorias, refl etindo o profundo narcisismo dos atores das ciências criminais. Nenhuma teoria (da pena) contempo-rânea, frise-se à exaustão, teria o poder de defi nir os rumos da política-criminal. Outrossim, e esta é uma das principais teses propostas neste trabalho, serão os atores judiciais das agên-cias de punitividade os que, conforme o seu maior ou menor grau de identifi cação (ou de resistência) com o projeto político-criminal, (des)legitimarão sua aplicação, visto serem os sujeitos que detêm a capacidade de efetivar as reformas.

Interessante perceber, ainda, que, sob o aspecto do im-pacto das alterações político-econômicas na política criminal ocidental, os recursos de interpretação fornecidos pela cri-minologia crítica são extremamente válidos, pois permitem compreender a infl uência decisiva do câmbio provocado pelo neoliberalismo no direcionamento da punição e o papel exer-cido pelas instituições totais, sobretudo a prisão, neste novo contexto social.

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3.Punitivismo e Reinvenção

das Prisões

Questão preliminar a ser colocada é sobre como a prisão, instituição gradualmente deslegitimada durante o século XX, foi reinventada e elevada ao posto de principal símbolo do punitivismo contemporâneo.

A incisiva crítica criminológica aos fundamentos jurídi-co-penais e às formas de aplicação e de execução do potestas puniendi, agregada aos importantes avanços desinstituciona-lizadores irrompidos pela antipsiquiatria e pelo movimento antimanicomial, haviam aberto espaço para a superação do modelo carcerário de resposta punitiva. Andrew Scull, no fi -nal dos anos 70, expondo o sentimento otimista comum na academia, sustenta que “a crise fi scal do Estado de bem-estar keynesiano conduzia à desprisionalização; [o que] ocorreu com os pacientes psiquiátricos mas não com os delinquentes.”1

Garland, ao analisar as raízes sociais do controle con-temporâneo do delito, remeterá exatamente nesta perspectiva seus questionamentos: “por que a prisão, instituição desprestigia-da e destinada à abolição, constituiu-se em pilar aparentemente in-dispensável e em expansão na vida social da modernidade tardia?”2 Segundo o autor, o ressurgimento e a relegitimação das pri-

1 Apud Braithwaite, El Nuevo Estado Regulador y la Transformación de la Criminología, p. 52.

2 Garland, The Culture..., p. 199.

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sões ocorreram em razão de sua utilidade na nova dinâmi-ca das sociedades neoliberais no horizonte da modernidade tardia: encontrar sentidos civilizados e constitucionais de se-gregar as populações problemáticas criadas pelas instâncias econômicas e sociais. Sustenta que a prisão se encontra no ponto de encontro entre duas das mais importantes dinâmi-cas sociais do nosso tempo: o risco e a retribuição.3 Assim, “em poucas décadas deixou de ser instituição correcional desacreditada e decadente, para constituir-se em pilar maciço e aparentemente in-dispensável da ordem social contemporânea.”4

No diagnóstico de Downes e Morgan, em referência às reformas penais ocorridas no Reino Unido, a redescoberta da via criminal é decorrência da absorção pelo discurso político do populismo punitivo, acrescido da retórica de tolerância zero e da lógica da ressignifi cação retributivista das funções da prisão (prision works). O expansionismo punitivo, inserido no quadro emotivo da demanda social por medidas emergen-ciais, inscreve-se na cultura contemporânea às expensas do devido processo e das liberdades públicas.5

Na hipótese de Garland, voltada para interpretação das mudanças no controle social nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha6, o uso da prisão contemporânea se assemelha ao

3 “Com a lógica absolutista da sanção penal, castiga e protege, condena e controla. O encarceramento serve, simultaneamente, como satisfação expressiva de sentimentos retributivos e como mecanismo instrumental para gestão do risco e confi namento do perigo” (Garland, The Culture..., p. 199).

4 Garland, The Culture..., p. 14.5 Downes & Morgan, No Turning Back, p. 214.6 Ao analisar o trabalho de Garland e sua circunscrição ao universo norte-

americano e inglês, Larrauri demonstra que as generalizações quanto ao fenômeno da cultura do controle não podem ser aplicadas indistintamente. Assim, entende ser “(...) mais frutífero que discutir que países escapam da análise de Garland talvez seja analisar quais são as características das sociedades que não desenvolveram tendências tão punitivas nas últimas décadas” (Larrauri, Populismo..., p. 17).

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do gulag soviético, visto ser utilizada como local de reserva, como zona de quarentena na qual são segregadas as pesso-as supostamente perigosas, em nome da segurança pública. Similar “às sanções pré-modernas de degredo ou banimento, as prisões funcionam como forma de exílio e o seu uso está delineado menos pelo ideal da reabilitação e mais por aquilo que Rutherford denomina de ‘eliminação’.”7

Wacquant, analisando a relação dos processos econômi-cos das últimas décadas com as novas formas de utilização da prisão, aproxima seu olhar da realidade dos países peri-féricos, e, ao relacionar cárcere e gueto8, demonstra como a consolidação do Estado Penal restou como alternativa fren-te à falência do modelo do Welfare State. As prisões, na con-temporaneidade, justifi cam-se como mecanismos de gestão da miséria e dos grupos inconvenientes representados pelos mal- adaptados e desajustados sociais.9

A perspectiva da presente pesquisa é a de analisar as circunstâncias que possibilitaram a assunção do punitivismo no Brasil. Compartilha a perspectiva de Larrauri quanto à utilidade da compreensão dos fatores desenvolvidos em outras realidades socioculturais de forma a produzir discurso e atuação de resistência ao punitivismo.

Todavia, é importante perceber que, apesar das especifi cidades, a “política de ‘contenção punitiva’ das camadas precarizadas do novo proletariado urbano se difundiu por todo o planeta, na esteira do neoliberalismo econômico” (Wacquant, O Corpo, o Gueto e o Estado Penal, p. 12).

7 Garland, The Culture..., p. 178.8 “A representação maciçamente predominante e crescente de afroamericanos em

qualquer nível do aparato penal tinge a segunda função assumida pelo sistema carcerário da nova administração da pobreza na América de uma cor desagradável: compensar e complementar a falência do gueto como mecanismo de confi namento de uma população considerada divergente, desonesta e perigosa, bem como supérfl ua no plano econômico (imigrantes mexicanos e asiáticos são trabalhadores mais dóceis) e no plano político (negros pobres raramente votam e,de qualquer forma, o centro gravitacional eleitoral mudou das regiões centrais urbanas decadentes para os prósperos subúrbios brancos)” (Wacquant, O Lugar..., p. 13).

9 Segundo Wacquant, “longe de contradizer o projeto neoliberal de desregulamentação e degradação do setor público, a ascensão irrefreável do estado penal norte-americano constitui, por assim dizer, o seu negativo (ou seja, é a um só tempo a revelação e a

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No mesmo sentido Bauman, ao perceber que, com a falta de emprego e a crise de fi nanciamento dos Estados para pro-mover bem-estar, a prisão surge como local de reserva da popu-lação excedente: “nas atuais circunstâncias, o confi namento é antes uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho ‘ao qual se reintegrar’”10. Neste aspecto, acrescenta os socialmente inconvenientes (excluídos do processo de produção e de consumo) aos grupos perigosos identifi cados por Garland, ampliando o rol de destinatários das prisões. No panorama atual, portanto, “a incriminação [e o encarceramento, por consequência] parece estar emergindo como o principal substituto da sociedade de consumo para o rápido desaparecimento dos dispositi-vos do estado de bem-estar.”11

A hipótese sustentada nesta investigação corrobora o diagnóstico dos autores, mas amplia os horizontes ao procu-rar visualizar as especifi cidades da margem latino-americana, pois, se nos países centrais a reinvenção da prisão adquire funções instrumentais na nova lógica do capitalismo pós--Welfare State, sua ressignifi cação adquirirá potência em grau superlativo nos países periféricos. Na margem, como é notó-rio, as conquistas do Estado Social foram simulacros e, no que

manifestação do seu reverso), uma vez que evidencia a implementação de uma política de criminalização da pobreza, que é o complemento indispensável à imposição de ofertas de trabalho precárias e mal remuneradas na forma de obrigações cívicas para aqueles que estão cativos na base da estrutura de classes e castas,bem como a reimplantação concomitante de programas de welfare reformulados com uma face mais restritiva e punitiva” (Wacquant, O Lugar..., p. 11).

Sobre o tema da consolidação do Estado Penal, conferir Wacquant, As Prisões da Miséria, pp. 77-152; Wacquant, Punir os Pobres, pp. 53-98; Wacquant, A Tentação Penal na Europa, pp. 07-12; Wacquant, A Ascenção do Estado Penal nos EUA, pp. 13-40.

10 Bauman, Globalização, pp. 119-120.11 Bauman, O Mal-Estar..., p. 78.

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tange especifi camente à dimensão do penal, os modelos cor-recionalistas foram implementados de forma residual, sendo possível, em nível macropolítico criminal, sustentar sua in-corporação meramente formal.

Em termos punitivos, portanto, nos países da América Latina os discursos penalógicos neorretribucionistas, de neu-tralização e de incapacitação ingressam com força máxima, legitimando científi ca e politicamente a atuação genocida das agências de controle. Se na experiência punitiva latino-ameri-cana a pena nunca abandonou a função explícita de controle violento dos indivíduos e dos grupos perigosos e inconve-nientes, mesmo sob a égide formal das reformas em direção ao correcionalismo, com o abandono das políticas penal-wel-fare e a ressignifi cação da prisão como mecanismo exclusivo de neutralização, a violência da aplicação do poder punitivo será densifi cada.

A perversa equação que agrega as históricas omissões nas políticas sociais às políticas criminais de ampliação das hipóte-ses de criminalização e punição produz, como resultado, a bar-barização dos espaços de encarceramento. Locais de punitivida-de cada vez mais alheios aos projetos voltados à implementação dos programas de ressocialização e defi citários em relação aos investimentos que propiciem a sobreviência digna aos apenados (cárceres, manicômios e instituições juvenis).

Neste quadro, seja no que tange à exclusão da dimen-são qualitativa do idealizado projeto ressocializador, seja no que diz respeito ao incremento quantitativo nos índices de encarceramento, as formas de aplicação e de execução da pena criminal na realidade periférica ingressam, no ter-ceiro milênio, como problema central das perspectivas cri-minológicas minimamente preocupadas com a efetividade dos direitos humanos.

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3.1. Populismo Punitivo e a Reinvenção da Prisão no Brasil: Diagnóstico Normativo

A legislação brasileira, em especial a penal e a processual penal, foi objeto de profunda modifi cação após a publicação da Constituição de 1988. Apesar de o sistema político pré--Constituição ser de nítida natureza autoritária e conformar, no âmbito da repressão aos crimes políticos, modelo penal e político-criminal de exceção que contaminou as práticas punitivas e repressivas da criminalidade comum, o cenário legislativo (formal) encontrava-se razoavelmente estável e em associação ao welfarismo penal, sobretudo após a Reforma de 1984, com a publicação da nova parte geral do Código Penal e a unifi cação das regras penitenciárias na Lei de Execução Penal.

A constância legislativa em relação à criminalidade co-mum pode ser caracterizada pela preservação da estrutura penal e processual penal codifi cada em realidade que deman-dava reduzidas inovações em matéria de criminalização, pou-cas alterações visando ao aumento de penas e escassa criação de leis penais especiais e/ou complementares. Entre o período das décadas de 60 e 80, o impacto mais profundo no Código Penal pode ser visualizado na descodifi cação dos crimes con-tra a saúde pública e a elaboração da Lei 6.768/76, que institui sistema integral de prevenção e repressão ao consumo e ao comércio de entorpecentes (Lei de Drogas).

A propósito, interessante notar certo paradoxo entre a estrutura jurídico-penal formal e a atuação das agências de punitividade. Enquanto a relativa estabilidade legal era man-tida – inclusive com a participação de experts de tradição libe-ral e humanitária na reforma da parte geral do Código Penal e na elaboração da Lei de Execução Penal em 1984 –, a atuação do sistema repressivo, sobretudo o policial e o carcerário, in-

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corporou a ideologia (de segurança nacional) e as estratégias militarizadas de combate ao crime político (repressão ao ini-migo interno).12 Percebe-se, inclusive, que a permanência da estrutura inquisitiva do Código de Processo Penal de 1941, redigido sob a forte infl uência do Código de Rocco, facilitou, durante o período de exceção, a adoção de posturas autoritá-rias pelos atores judiciais.

Com a mudança no cenário político no fi nal da década de 80, a expectativa da comunidade jurídica nacional e dos analistas do sistema penal foi a de gradual abertura e demo-cratização dos poderes e das instituições que integravam as inúmeras agências do sistema punitivo.

O texto constitucional de 1988, no que diz respeito à maté-ria penal, apresentou, porém, ambiguidades. Apesar de manter a tradicional exposição de princípios limitadores do potestas pu-niendi, trouxe inúmeras modifi cações na estrutura do direito pe-nal e do processual penal que abriram espaço para o incremento do punitivismo que caracterizou a década de 90.

A atividade legislativa da década de 90 no Brasil, po-tencializada em parte pelo conjunto de normas constitucio-nais programáticas, ampliou as hipóteses de criminalização primária e enrij eceu o modo de execução das penas. Para-lelamente à criação de inúmeros novos tipos penais, houve substancial alteração na modalidade de cumprimento das sanções, sendo o resultado desta experiência a dilatação do input e o estreitamento do output do sistema, com refl exos di-retos no número de pessoas processadas e presas (provisória ou defi nitivamente).

O exemplo mais signifi cativo da tendência legislativo- punitivista que orientou a política criminal brasileira foi a re-

12 Neste sentido, conferir Carvalho, A Política Criminal de Drogas no Brasil, pp. 29-42.

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dação da Lei 8.072/90, a qual aumentou as penas dos delitos classifi cados como hediondos e, no que diz respeito à execu-ção penal, estabeleceu vedação na progressão de regime, au-mento de prazo para livramento condicional e obstrução de comutação e de indulto aos crimes nela dispostos. A obstacu-lização do processo de desinstitucionalização progressiva na execução da pena estabelecida pela Lei dos Crimes Hedion-dos foi, inegavelmente, uma das principais causas do aumen-to da taxa de encarceramento no país. E não obstante algumas decisões monocráticas isoladas que reputavam inconstitucio-nal a Lei 8.072/90, em harmonia com a unanimidade da dou-trina, sobretudo a partir da edição da Lei 9.455/97 (Lei dos Crimes de Tortura), o Supremo Tribunal Federal (STF), com o intuito de pacifi car a matéria, emitiu a Súmula 698, afi rmando sua constitucionalidade.13 Apenas com o julgamento do HC 82.959/06 pelo Pleno do STF, por maioria de votos a Corte re-conheceu, após 16 anos de vigência, a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos.14

Além da Lei dos Crimes Hediondos, o processo de descodi-fi cação e de reforma parcial do Código Penal ampliou a crimina-lização primária, criando novos tipos penais, aumentando penas e alargando as hipóteses de aplicação e de execução das penas privativas de liberdade em regime carcerário fechado.

Em matéria processual penal, as alterações no Código de Processo densifi caram a criminalização secundária. Não

13 “Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão de regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura.”

14 Importante registrar que mesmo após a publicação da Súmula 698, a 1ª Turma do STF decidiu, em dois Habeas Corpus (HC 87.623 e HC 87.452), à unanimidade, afastar a proibição da progressão de regime em casos de extorsão mediante sequestro (art. 159, § 1º CP) e de tráfi co ilícito de entorpecentes (art. 12 c/c art. 18, III da Lei 6.368/76). Os precedentes deram origem à referida decisão do Tribunal Pleno: STF, Tribunal Pleno, Habeas Corpus 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio de Mello, j. 23.02.06.

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apenas as possibilidades de prisão cautelar foram (re)estrutu-radas – v.g. prisão temporária (Lei 7.960/89) e novas espécies de inafi ançabilidade e vedação de liberdade provisória (Leis 7.716/89, 8.072/90, 9.034/95 e Lei 9.455/97) –, como foi possi-bilitada modalidade de execução de pena sem o trânsito em julgado de sentença condenatória (Lei 8.038/90), denominada execução penal antecipada.15

Nota-se, portanto, que no âmbito do Poder Legislativo inúmeros fatores contribuíram para o aumento dos índices de encarceramento:

(a) criação de novos tipos penais a partir do rol de bens jurídicos expostos na Constituição (campo penal);

(b) ampliação da quantidade de pena privativa de liber-dade em inúmeros e distintos delitos (campo penal);

(c) sumarização do procedimento penal, com o alar-gamento das hipóteses de prisão cautelar (prisão preventiva e temporária) e diminuição das possi-bilidades de fi ança (campo processual penal);

(d) criação de modalidade de execução penal anteci-pada, prescindindo o trânsito em julgado da sen-tença condenatória (campo processual e da execu-ção penal);

(e) enrij ecimento da qualidade do cumprimento da pena, com a ampliação dos prazos para progressão e livra-mento condicional (campo da execução penal;

15 O Superior Tribunal de Justiça, em 2005, revisou a posição que admitia cumprimento de pena sem o trânsito em julgado de sentença penal condenatória — execução penal antecipada (STJ, 6ª Turma, Habeas Corpus 25.310, Rel. Min. Paulo Medina, DOU 02.02.05). Até a revisão do posicionamento, os Tribunais entendiam que a interposição de Recursos Federais (Especial e Extraordinário) contra acórdão condenatório não suspendia os efeitos da decisão, conforme disciplina o art. 27, § 2º, da Lei 8.038/90. O Entendimento havia sido pacifi cado na Súmula 267 do STJ (“a interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão”).

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(f) limitação das possibilidades de extinção da pu-nibilidade com a exasperação dos critérios para indulto, graça, anistia e comutação (campo da exe-cução penal); e

(g) ampliação dos poderes da administração carcerária para defi nir o comportamento do apenado, cujos refl exos atingem os incidentes de execução penal (v.g. Lei 10.792/03) (campo penitenciário).

A partir do diagnóstico normativo, é possível dizer, em ter-mos preliminares, que a diminuição das taxas de encarceramen-to no Brasil prescindiria reforma geral no quadro legislativo, atingindo na integralidade todas as fases de persecução crimi-nal, ou seja, da investigação policial à execução da pena.

Todavia, apesar de se entender como correta a assertiva da necessidade de racionalização e de ressistematização do quadro geral dos delitos, das sanções, dos procedimentos e da execução (law in books), é lícito afi rmar que as mudanças devem necessa-riamente operar de forma intensa na cultura dos atores jurídicos que realizam a law in action. Isto porque, ao longo do processo de formação do grande encarceramento nas duas últimas déca-das, inúmeras hipóteses concretas de estabelecimento de fi ltros minimizadores da prisionalização foram criadas pelo Poder Legislativo, sendo obstaculizadas na esfera do Poder Judiciário, nitidamente infl uenciado pela racionalidade punitivista.

3.2. O Grande Encarceramento

Os dados quantitativos sobre encarceramento no Brasil passa-ram a ter periodicidade apenas na última década. Anteriormente, o controle do número de presos era realizados pelos Estados da Federação, não havendo integralização. Atualmente, o órgão en-carregado em receber, unifi car e divulgar os números sobre a situ-

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ação carcerária nacional é o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), vinculado ao Ministério da Justiça.

No entanto, apesar de não existirem condições de ana-lisar o nível de encarceramento no período anterior ao iní-cio da reforma no sistema punitivo, os números parciais dos anos 90 e integrais da última década permitem diagnosticar a profunda imersão da política criminal brasileira no cená-rio punitivista internacional. O aumento de 87,87 para 247,68 presos por 100 mil habitantes nos últimos 15 anos é dado que sustenta a hipótese, sendo de difícil refutação.

Tabela 01Brasil: Número de presos por 100.000 habitantes

Ano População PresosPresos/100.000

hab.1994 147.000.000 129.169 87,871995 155.822.200 148.760 95,471997 157.079.573 170.207 108,362000 169.799.170 232.755 137,082001 172.385.826 233.859 135,662002 174.632.960 239.345 137,062003 176.871.437 308.304 174,312004 181.581.024 336.358 185,242005 184.184.264 361.402 196,222006 186.770.562 401.236 214,832007 183.965.854 419.551 228,062008 189.612.214 451.429 238,102009 Sem dados 473.626 249,781

Fonte: Censos Penitenciários (Ministério da Justiça) e do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística.

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Ao ser analisada a curva de aumento da população carcerária nas duas últimas décadas, nota-se que a opção político-criminal autoritária de recrudescimento dos apa-relhos punitivos tem obtido êxito. Dados que, desde o pon-to de vista da crítica criminológica, tomam dimensões pre-ocupantes.

Em relação aos países da América do Sul, o Brasil é su-perado em número de presos por 100.000 habitantes pela Guiana Francesa (365), Suriname (356), Chile (297) e Guiana (260). Todos os demais países do continente apresentam ní-veis de encarceramento inferiores aos brasileiros: Argentina (154), Bolívia (82), Colômbia (151), Equador (126), Paraguai (95), Peru (146), Uruguai (193) e Venezuela (79) – dados relati-vos ao biênio 2006-2008.16

Se proposta comparação dos índices apresentados pelo Brasil com os dos países da Comunidade Europeia (dados de 2006)17, percebe-se que o grau de encarceramento supera em grande medida países como Portugal (104,3), Espanha (146,1), França (91,6), Itália (65,2), Inglaterra (145,1) e Alemanha (95,8), aproximando-se de países do Leste, como Azerbaij ão (211,9), Lituânia (237,0), Moldávia (230,0) e Polônia (229,9). Os países mencionados são ultrapassados apenas pela Estônia (321,6), Georgia (302,7), Ucrânia (355,3) e, notoriamente, pela Rússia (608,6), país com a maior densidade populacional encarcera-da do continente.

Como ressaltado anteriormente, os Estados Unidos per-manecem com a maior taxa de encarceramento mundial, atin-gindo em 2007 o número absoluto entre presos provisórios e

16 Dados colhidos pelo International Centre for Prison Studies (ICPS).17 Council of Europe, Annual Penal Statistics 2006, p. 18.

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

defi nitivos de 2.293.157, correspondendo a 756 presos por 100 mil habitantes.18

Gráfi co 05Brasil: Curva de Encarceramento 1994-2009

87,87 95,47 108,36137,08 135,66 137,06

174,31185,24 196,22214,83 228,06 238,1 249,78

0

50

100

150

200

250

300

1994 1995 1997 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Signifi cativo nos dados apresentados pelo Brasil é o núme-ro de presos provisórios, cujo percentual varia, na média dos úl-timos 05 anos, em torno de 30% da população carcerária.

18 Bureau of Justice Statistics, Prisioners in 2007, p. 04.

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CriminologiaS: Discursos para a Academia

40

Tabela 02Brasil: Relação Presos Condenados e Presos Provisórios

(2000-2009)

AnoTotal dePresos

PresosProvisórios

PresosCondenados

2000 232.755 80.775 151.9802001 233.859 78.437 155.4222002 239.345 80.235 159.1102003 308.304 67.549 240.2032004 336.358 86.766 249.5922005 361.402 102.116 259.2862006 401.236 112.138 289.0982007 422.590 127.562 295.0282008 451.429 138.940 312.4892009 473.626 152.612 321.014

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Em termos absolutos, apesar de o número de mulhe-res encarceradas ser infinitamente menor que o de ho-mens, nota-se que nos últimos anos o volume da popu-lação feminina presa supera, proporcionalmente, a mas-culina. Se no ano de 2000 o número de mulheres presas era de 10.112, no primeiro semestre de 2009, havia 24.068 encarceradas, correspondendo a 5,12% do total de brasi-leiros nas prisões.

No que diz respeito à relação presas provisórias e presas condenadas, os índices são similares aos da população encar-cerada masculina, girando em torno de 30%.

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tabela 03Brasil: Mulheres Condenadas e Presas Provisórias (2000-2009)

Ano PresasPresas

ProvisóriasPresas

Condenadas2000 10.112 3.382 6.7302001 9.873 3.373 6.5002002 10.285 3.536 6.7492003 9.863 2.700 7.1632004 16.473 8.174 8.2992005 12.925 3.894 9.0312006 17.216 4.170 13.0462007 19.034 5.228 13.8062008 21.594 6.535 15.0592009 24.686 8.671 16.015

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

A substancial diferença entre as populações presas masculina e feminina diz respeito à espécie de crime pra-ticado. Enquanto o fenômeno da prisionalização masculi-na é caracterizado pela pluralidade dos crimes, com certa prevalência dos patrimoniais, a maioria das mulheres se encontra presa em decorrência de delitos vinculados ao tráfi co de entorpecentes.

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CriminologiaS: Discursos para a Academia

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Tabela 04Brasil: População Carcerária Masculina

e Espécies de Crimes (2009)

CrimeNúmero

de Presos ProporçãoHomicídio* e Latrocínio** 60.489 12,88%Furto*** 61.440 13,08%Receptação, Estelionato eApropriação 17.476 3,72%Roubo**** 108.824 23,17%Extorsão e Sequestro***** 6.083 1,29%Tráfi co de Drogas****** 73.877 15,73%Crimes Sexuais 17.283 3,68%Demais Crimes 124.074 26,45%

Total 469.546 100%

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

* Estão representadas nos números as formas tentadas, simples e qualifi ca-das.

** O delito de latrocínio, apesar de ser cometido contra o patrimônio, em face do resultado morte foi vinculado com o homicídio, de forma a dar a representati-vidade pelas consequências.

*** Estão representadas nos números as formas tentadas, simples e qualifi ca-das.

**** Estão representadas nos números as formas tentadas, simples e qualifi ca-das.

***** Incluem-se nos dados os casos de extorsão mediante sequestro.****** Estão representadas nos números as modalidades de tráfi co internacional

e doméstico.

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tabela 05Brasil: População Carcerária Feminina

e Espécies de Crimes (2009)

Crime* Número de Presas ProporçãoHomicídio e Latrocínio 1.765 7,33%Furto 1.949 8,09%Receptação, Estelionato eApropriação 578 2,4%Roubo 2.127 8,83%Extorsão e Sequestro 522 2,1%Tráfi co de Drogas 11.629 48,31%Crimes Sexuais 117 0,48%Demais Crimes 5.381 22,46%

Total 24.068 100%

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Em relação ao perfi l das pessoas encarceradas, nota-se que o produto da incorporação do punitivismo é o da hiper-criminalização da juventude pobre e analfabeta, conforme indicam os dados ofi ciais de encarceramento. Relatório refe-rente ao primeiro semestre de 2009 informa que dos 409.287 presos(as) que indicaram escolaridade e instrução, 31.575 (7,71%) eram analfabetos, 50.502 (12,33%) eram alfabetizados sem es-colaridade, 186.949 (46,47%) possuíam ensino fundamental incompleto, 48.372 (11,81%) possuíam ensino fundamental completo, 40.894 (9,99%) possuíam ensino médio incompleto e 27.920 (6,82%) possuíram ensino médio completo, sendo ir-

* Aplicam-se todas as observações anteriores às imputações realizadas à po-pulação carcerária feminina.

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risórias as taxas de ensino superior (completo ou incompleto), que atingiam apenas 4.486 (1,09%) das pessoas presas.

Quanto ao item faixa etária, a partir da mesma quanti-dade de informantes, obtém-se os seguintes dados: 127.386 (31,12%) presos entre 18 e 24 anos, 105.471 (25,76%) entre 25 e 29 anos, 69.384 (16,95%) entre 30 e 34 anos, 60.000 (14,65%) entre 35 e 45 anos e 26.597 (6,49%) acima de 46 anos.

No que tange à relação entre índices de aprisionamento e nível de gravidade dos delitos, o cenário é próximo ao fenô-meno norte-americano. Embora os níveis de encarceramento no Brasil sejam menores e as taxas de homicídio superiores às apresentadas pelos Estados Unidos, nos últimos anos per-cebe-se que enquanto o número de crimes contra a vida se mantém estável, com tendência de queda, o aumento do apri-sionamento em massa segue ritmo acelerado.

De 1993 a 2003, período de forte recrudescimento da lei penal, os níveis de homicídio por 100.000 habitantes no Brasil foram substancialmente alterados, aumentando de 18,7 para 28,16. Todavia, nos últimos 05 anos, o descréscimo das taxas é sensível e, apesar de o número de crimes contra a vida ainda permanecer demasiadamente alto, estabilizou-se em 25,2.

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Gráfi co 06Brasil: Número de Homicídios por 100.000 habitantes

(1985-2008)

14,916,5

19,821,7

18,720,8

24,226,5 27,11 28,16 27

25,2

0

5

10

15

20

25

30

85 87 89 91 93 95 97 99 2001 2003 2006 2008

Brasil - Taxa de Homicídios

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Em análise comparativa, é possível perceber a diferen-ça entre as curvas de encarceramento e de homicídios por 100.000 habitantes.

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Gráfi co 07Brasil: Curvas de Homicídios e de Encarceramento

(1994-2008)19

87,87 95,47108,36

137,8 135,66137,06

174,31185,24196,22214,83

228,06238,1 249,7820,8

23,426 26,8 27,11 27,67 28,16 28 27,5 27 26 25,2 25,2

0

50

100

150

200

250

300

94 95 97 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

0

5

10

15

20

25

30

Encarceramento Homicídios

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

Conforme indicado na análise relativa ao caso norte-ameri-cano, os dados permitem visualizar a ausência de relação causal entre altas taxas de encarceramento e diminuição de crimes vio-lentos. Os fenômenos são, defi nitivamente, distintos e operam igualmente a partir de lógicas autônomas. O interessante de se notar, contudo, é de que o discurso do incremento da violência, que legitima as campanhas para o aumento do número de encar-cerados, não encontra fundamento empírico.

19 Em relação ao comparativo entre as curvas de homicídio e de encarceramento no Brasil, são aplicáveis as mesmas observações realizadas no Gráfi co 04, quando estabelecida a relação entre homicídios e encarceramento nos EUA. Assim, são atribuídos dois valores distintos aos eixos vertical, gerando dados autônomos – eixo vertical direito registro de delitos de homicídio por 100.000 habitantes; eixo vertical esquerdo número de pessoas presas por 100.000 habitantes. Do contrário, o cruzamento dos dados seria impossível.

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3.3. A Centralidade do Cárcere na Lógica Punitivista: Substitutivos Penais

Antes de qualquer análise crítica detalhada, importante reafi rmar a consagrada hipótese de Alessandro Baratt a de que “deve ser olhado com respeito qualquer passo que se possa dar para que as condições de vida nos cárceres sejam menos dolorosas e menos danosas, ainda que seja para apenas um condenado, quando real-mente inspirado no interesse pelos direitos e pelo destino das pessoas presas, e provenha de uma vontade de mudança radical e humanista, e não de um reformismo tecnocrático cuja fi nalidade e funções sejam legitimar, através de alguns melhoramentos, a instituição carcerária em seu conjunto.”20

Assim, fundamental perceber que as medidas descar-cerizadoras devem ser vistas como importantes mecanismos de desinstitucionalização, sendo sua aplicação inegavelmen-te mais vantajosa que qualquer forma de aprisionamento. O problema que se coloca na investigação, porém, é o de até que ponto os substitutivos penais efetivamente diminuem o im-pacto do carcerário sobre os grupos vulneráveis/criminaliza-dos, ou seja, se as alternativas são efetivamente incorporadas pelos sistemas político-legislativo, jurídico e executivo como alternativas à prisão (e também ao processo penal) ou se cons-tituem aditivo de ampliação do controle social punitivo retro- alimentador da prisão.

Desde a assertiva de Baratt a, cabe avaliar se na atual rea-lidade político-criminal brasileira os novos mecanismos insti-tucionais de diversifi cação processual e de descentralização da pena de prisão (composição civil, transação penal, suspensão condicional do processo, penas restritivas de direito) rompem

20 Baratt a, Resocialización o Controle Social, p. 254.

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CriminologiaS: Discursos para a Academia

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com a lógica punitivista ou simplesmente revigoram o paradig-ma penal-carcerário, representando reformismo tecnocrático, conservador e relegitimador da instituição prisional.

O projeto de reforma prisional com a criação de medidas alternativas ao cárcere é universalizado no 8º Congresso da Organização das Nações Unidas (1990), quando da elabora-ção das Regras de Tóquio. O acordo internacional visou enun-ciar conjunto principiológico que promovesse o emprego de medidas não-privativas de liberdade substitutivas à prisão. Neste quadro, elenca que suas “regras têm por objetivo promover uma maior participação da comunidade na administração da justiça penal e, muito especialmente, no tratamento do delinquente, bem como estimular entre os delinquentes o senso de responsabilidade em relação à sociedade.”21

Em termos de justifi cação, a fundamentação da pena criminal, carcerária ou restritiva de direitos, permanece asso-ciada ao correcionalismo do modelo penal-welfare. Segundo a orientação das Nações Unidas, caberia aos Estados-membos introduzir medidas não-privativas de liberdade em seus sis-temas jurídicos, levando em consideração as necessidades de reabilitação do delinquente (art. 12.2) a partir de intervenções de ordem ressocializadora visando à não-reincidência – “as condições da medida devem ser práticas, precisas e tão poucas quan-to possíveis, e terão por objetivo reduzir as possibilidades de reinci-dência do comportamento delituoso e incrementar as possibilidades de reintegração social do delinquente” (art. 9.1).

Todavia, para além das discussões epistemológicas – in-tensamente refutadas pelas criminologias burocráticas con-temporâneas –, e centrado nos problemas empíricos, restaria saber se a política de substitutivos penais implementada no

21 Organização das Nações Unidas, Regras de Tóquio, art. 1.2.

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Brasil, sobretudo a partir de 1995, propiciou, minimamente, a diminuição do encarceramento e a melhoria na qualidade de vida dos grupos e pessoas criminalizadas. Inclusive porque para os modelos criminológicos tecnocráticos (criminologias atua-riais, situacionais e sistêmicas) a constatação fática da diminui-ção do encarceramento suplantaria qualquer discussão sobre os fundamentos do novo status puniendi, tornando supérfl uo o de-bate sobre a validade dos discursos que o sustentam.

Hipótese tradicional comungada pelas vertentes da criminologia crítica foi a de que a política dos substitutivos penais não rompe com a estrutura de punição centralizada no carcerário. Pelo contrário, atuaria como elemento de re-produção e de relegitimação da lógica do encarceramento. A título exemplifi cativo, Stanley Cohen aponta para os efeitos maximizadores do controle punitivo/carcerário ínsitos aos modelos de diversifi cação penal e processual penal: “os distin-tos estudos nos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra demonstram que as alternativas aos cárceres não são válidas. Pelo contrário, se convertem em ‘aditivos/somatórios’ das prisões, seja pelo simples fato de aumentar o número de pessoas sob controle social formal, seja por somar mais do que obstruir o sistema de controle formal. As ‘alternativas’ planifi cadas tendem claramente a ‘estender a rede’ (...).”22 Para Nils Christie, “as experiências recentes com ‘opções ao encarceramento’ indicam que facilmente se tornam ‘prolongações do encarceramento’, e que as decisões condicionais em realidade se convertem em mais tempo de permanência na prisão.”23 Andrew Coyle demonstra que a Inglaterra, apesar do amplo uso das alternativas ao cárcere, aumentou seu contingente prisional, gerando sério problema aos direitos humanos: as alternativas

22 Apud Mathiesen, La Politica del Abolicionismo, p. 115.23 Christie, Los Límites del Dolor, p. 151.

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são usadas pelas Cortes de Justiça como extensão da rede de controle.24 Na literatura criminológica brasileira, sob o título ‘a ampliação do controle social’, Juarez Cirino dos Santos, ao co-mentar a inserção das penas restritivas de direito na Reforma Penal de 1984, chamava atenção para a armadilha que pode-riam representar os mecanismos legais de desprisionalização: “os substitutos penais não enfraquecem a prisão, mas a revigo-ram; não diminuem sua necessidade, mas a reforçam; não anulam sua legitimidade, mas a ratifi cam: são instituições tentaculares cuja efi cácia depende da existência revigorada da prisão, o centro ne-vrálgico que estende o poder de controle, com a possibilidade do reencarceramento se a expectativa comportamental dos controla-dos não confi rmar o prognóstico dos controladores.”25

Conforme sustentam os autores, é necessário que as alter-nativas à prisão sejam efetivamente alternativas, e não sistemas adicionais, apêndices ou válvulas de escape do insolvente mo-delo carcerário. Deveriam constituir-se, pois, em possibilidades reais de minimizar a dor e o volume da prisionalização, estabele-cendo ruptura com a tradicional lógica encarceradora.

As assertivas estão seriamente fundamentadas em Foucault, que demonstrou que o objetivo de reforma da pri-são nasce com a sua construção, basicamente porque o mode-lo disciplinar de isolamento e de reforma individual cumpre funções (reais) distintas do discurso ofi cial que o legitima. Segundo o autor, “se em pouco mais de um século o clima de ob-viedade se transformou, não desapareceu. Conhecem-se todos os in-convenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil.

24 Coyle, Alternatives to Imprisonment, p. 04.25 Santos, Direito Penal, p. 299.

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E entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.”26

Passados dois séculos de afi rmação do encarceramento como ‘a’ pena por excelência, a partir da década de 70 são de-senvolvidos mecanismos penais, processuais penais e de execu-ção com objetivo de evitar prisionalização. Dentre os de maior aceitação estão as denominadas penas alternativas ou, conforme a Lei Penal brasileira, penas restritivas de direito (prestação de serviço à comunidade, limitação de fi nal de semana, interdição temporária de direitos, prestação pecuniária).

As soluções alternativas ao cumprimento da pena privativa de liberdade em regime carcerário foram vislumbradas e aper-feiçoadas em inúmeros institutos, da pena pecuniária à suspen-são condicional da pena e ao livramento condicional.27 Todavia é com as medidas restritivas de direito, sobretudo na espécie pres-tação de serviço à comunidade, que os atores jurídicos passam a conceber forma de sanção distinta do aprisionamento.

Apesar da previsão das penas restritivas de direito na re-forma da parte geral do Código Penal em 1984 (Lei 7.210/84), a inserção normativa não produziu o efeito de efetiva imple-mentação do projeto descarcerizador. Conforme os dados do Ministério da Justiça,28 em 1987 apenas 197 condenados cumpriam penas alternativas, todos localizados na cidade de Porto Alegre, em decorrência da iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, trabalho inovador que consti-

26 Foucault, Vigiar e Punir, p. 209.27 Sobre o tema, conferir o importante trabalho de demonstração da gradual

incorporação dos substitutivos penais (livramento condicional, penas pecuniárias, suspensão condicional da pena e penas restritivas de direito) na legislação penal ocidental, Bitencourt, Falência da Pena de Prisão, pp. 212-332.

28 Departamento Penitenciário Nacional, Evolução Histórica das Penas e Medidas Alternativas (PMAS) no Brasil, p. 01.

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tuiu projeto piloto para posterior implantação do sistema das penas alternativas em todo o Brasil.

No entanto, o grande giro na concepção de como julgar e como punir na cultura jurídica nacional ocorreu na década de 90 com a publicação de dois instrumentos normativos: a Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais, e a Lei 9.714/98, que redefi niu a aplicação das penas alterna-tivas. A primeira, concretização de preceito do art. 98, I, da Constituição, defi niu possibilidade de composição civil e tran-sação penal nas infrações de menor potencial ofensivo, delitos cuja pena máxima não ultrapasse 02 anos de prisão, e criou o ins-tituto da suspensão condicional do processo, aplicável aos delitos de médio potencial ofensivo, cuja pena mínima não seja fi xa-da acima de 01 ano de prisão. A segunda normativa revigorou a concepção das sanções restritivas de direito, ampliando as possibilidades para os casos de pena de prisão aplicada na quantidade máxima de 04 anos de reclusão.

No primeiro ano de vigência da Lei 9.099/95, o Ministério da Justiça registrou o cumprimento de 78.612 medidas diver-sifi cadoras (composição civil, transação penal ou suspensão condicional do processo) e 1.692 penas alternativas. Em 2002, com a redefi nição dos critérios da Lei 9.099/95,29 e após perí-odo razoável de vigência da Lei 9.714/98, os números foram substancialmente alterados.

29 A Lei 9.099/95 dispôs como infrações de menor potencial ofensivo aquelas condutas cuja pena máxima prevista abstratamente não ultrapassasse 01 (um) ano. Posteriormente, com o advento da Lei 10.259/01, que instituiu os Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal, o critério da menor potencialidade delitiva foi ampliado para os crimes cuja pena máxima prevista não fosse superior a 02 (dois) anos, ou multa (art. 2o). Com a Lei 11.313/06, o patamar foi universalizado para ambas as esferas de competência (Justiça Estadual e Justiça Federal), embora a jurisprudência, a partir de 2001, admitisse esta equivalência.

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Tabela 06Brasil: Evolução das Penas e Medidas Alternativas (1987-2008)

AnoCumprimento de

Penas Alternativas(Lei 9.714/98)

Cumprimento de Medidas Alternativas

(Lei 9.099/95)Total

1987 197 Sem previsão legal 1971995 1.692 78.672 80.3642002 21.560 80.843 102.4032006 63.457 237.945 301.4022007 88.837 333.685 422.5222008 97.674 401.055 498.729

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)

A evolução do controle punitivo formal não carcerário, instrumentalizado pelos substitutivos penais, pode ser de-monstrada da seguinte forma:

Gráfi co 08Brasil: Evolução das Penas e Medidas Alternativas (1995/2008)

78.670 80.840

237.950

333.690

401.060

1.690 21.56063.460

88.840 97.67080.360 102.400

301.410

422.520

498.730

0

100.000

200.000

300.000

400.000

500.000

600.000

1995 2002 2006 2007 2008

MA

PA

Total

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).

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Ao cruzar os dados de cumprimento de penas e medi-das alternativas com a curva de encarceramento, percebe--se a veracidade dos argumentos da criminologia crítica no sentido de os substitutivos penais atuarem como mecanis-mos de relegitimação do cárcere, fato que acaba por reduzir a potência do discurso anticarcerário em nome de alterna-tivas político-criminalmente viáveis. Conforme Cirino dos Santos, é mantido o sistema tradicional de penas no qual a instituição carcerária segue no papel central e, nas suas margens, encontram-se as ferramentas substitutivas. Não por outro motivo “é indispensável a efi cácia dos substitutivos penais, cuja função reversa é legitimar a prisão, como centro do ‘arquipélago carcerário’, com novas estratégias e métodos que controlam, de forma mais intensa e mais generalizada, o conjunto dos setores marginalizados.”30

Do que se pode observar na realidade brasileira contem-porânea, a institucionalização das penas e medidas alternati-vas não diminuiu os níveis de encarceramento. Pelo contrário, as taxas de prisionalização vêm crescendo gradual e constan-temente e, em paralelo, de forma abrupta, o controle punitivo formal amplia hiperbolicamente seus horizontes em face da instituição dos substitutivos penais.

Os dados comparativos permitem esta conclusão.

30 Santos, Direito..., p. 298.

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Gráfi co 09Brasil: Relação entre Prisão e Penas e Medidas Alternativas

(1995-2008)

80.400 102.400

301.400

498.700

149.000

239.000

401.000440.000422.500

420.000

0

100.000

200.000

300.000

400.000

500.000

600.000

1995 2002 2006 2007 2008/1

PMAsPrisão

Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN).

A comprovabilidade empírica da hipótese traçada pela criminologia crítica em relação aos substitutivos penais de-manda importantes questionamentos e novas refl exões no que diz respeito às estratégias político-criminais. A principal, logicamente, diz respeito à inefi cácia dos substitutivos pe-nais como mecanismos alternativos e de ruptura com a lógica carcerária,31 isto é, se os instrumentos substitutivos, em nossa

31 Em sentido idêntico as conclusões realizadas pelo Instituto Latino Ame-ri cano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD/Brasil), em virtude de convênio celebrado com o Ministério da Justiça por meio do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN/MJ). Nas conclusões da pesquisa Levantamento Nacional sobre Execução de Penas Alternativas, realizada entre dezembro de 2004 e janeiro de 2006, os investigadores expõem que “A pena alternativa, tal como é prevista no ordenamento brasileiro e aplicada pelo sistema de justiça, não cumpre a função de “esvaziar as prisões”, ou seja, o perfi l do indivíduo apenado por pena restritiva de direito, especialmente quanto ao delito cometido, não se identifi ca com o da população

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realidade, efetivamente minimizaram o impacto das políticas encarceradoras, sobretudo em razão da possibilidade de sua conversão em pena carcerária face ao descumprimento.

Andrew von Hirsch, ao analisar o processo de imple-mentação de penas substitutivas nos Estados Unidos, cons-tata que “à medida que foram sendo introduzidas novas opções [multa, prestação de serviços comunitários, supervisão inten-siva e prisão domiciliar] se pensou que os juízes as aplicariam em substituição da prisão. No entanto, a estratégia de criar mais opções demonstrou-se decepcionante. Sem princípios que regiam seu uso, as novas sanções não foram aplica das no lugar da prisão. Em vez disso, os juízes seguiram condenando à prisão como anteriormente e passaram a usar as novas sanções como substitutivos às tradicionais medidas não privativas de liberdade [suspensão da pena].”32

Outrossim, questão derivada latente, de improvável de-monstração, é relativa à aplicação dos substitutivos penais como alternativas ao princípio do in dubio pro reu. Apesar de esta per-cepção ser meramente intuitiva, seria altamente relevante se

carcerária” (ILANUD, Levantamento..., p. 16). Ademais, “conclui-se que os indivíduos que são condenados à pena privativa de liberdade e que têm realmente sua pena substituída pela pena restritiva de direitos não seriam apenados com a prisão, dada a pré-existência de outros institutos, como o sursis, que evitariam sua prisão. A Lei 9.714/98, promulgada com vistas à ampliação das possibilidades de aplicação das penas alternativas, ao prever o aumento para quatro anos do quantum de pena passível de substituição, mostrou-se absolutamente inefi ciente para essa fi nalidade. Os resultados da pesquisa indicam que os juízes, na maior parte dos casos, decidem pela substituição de penas com duração de até um ano, alcançando percentuais signifi cativos tão-somente até dois anos, tempo de pena que não se enquadra nas modalidades penais de maior incidência no sistema penal. Nesse mesmo sentido, a restrição introduzida pela referida lei aos delitos cometidos com ameaça e violência também afastou as possibilidades de aplicação das penas alternativas aos condenados pelo delito de roubo, ainda quando é compatível o tempo de pena. Tendo em vista a imensa proporção de indivíduos condenados no sistema carcerário por esse crime e por outros delitos também excluídos das possibilidades legais de substituição, chega-se à conclusão de que é reduzido o impacto das penas alternativas para diminuição do contingente prisional” (ILANUD, Levantamento..., p. 16-17).

32 Hirsch, Censurar y Castigar, p. 99.

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

fosse possível quantifi car os casos em que tradicionalmente, em face da dubiedade da prova, o julgamento seria absolutório, mas, em decorrência da possibilidade de aplicação de pena não carcerária, há opção judicial pela condenação criminal.

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4.Os Atores e as Agências Punitivas

no Brasil: Filtros àIncidência do Poder Penal

A principal tese desenvolvida nesta pesquisa é a de que o diagnóstico sobre os efeitos produzidos pelas alterações le-gislativas das duas últimas décadas não pode fi car adstrito ao âmbito normativo. Aliás, imputar os problemas gerados pelo grande encarceramento que marca o cenário político- criminal nacional exclusivamente aos Poderes Legislativo, em maior medida, e Executivo, é simplifi car o problema, eximindo a responsabilidade dos atores que atuam nas diversas agências que compõem a rede do sistema de justiça penal. Isto porque são os atores que diariamente presentifi cam as agências de punição e tornam concreta a atuação desta abstração denomi-nada sistema penal. Assim, é possível constatar que apesar de o impulso punitivista ser defl agrado na órbita legislativa, são estes atores que lhe conferem efetividade.

Portanto conclusão preliminar pode ser apontada como hipótese de investigação: o fenômeno do grande encarceramen-to que marca a política criminal nacional não está restrito à incor-poração do populismo punitivo por parte das agências legislativas, mas requer, para sua plena efetivação, que os atores com poder de decisão na cena processual penal entendam a diretriz punitivista

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como legítima, concretizando-a através da racionalidade jurídico--instrumental.

Outrossim, importante destacar que hipótese de traba-lho centrada na esfera decisional não limita a pesquisa à atu-ação dos atores vinculados à Magistratura, embora tenha o Poder Judiciário evidente protagonismo no poder decisório. É que na complexa rede que conforma a abstração denominada poder punitivo, série de personagens atuam preliminarmen-te como fi ltros ou impulsionadores do punitivismo, muitas vezes condicionando a própria decisão judicial. O ato judi-cial, mormente a sentença penal, apenas consolida a série de inúmeras decisões político-criminais que são tomadas pelos operadores jurídicos ao longo da persecução penal (fase ad-ministrativa de investigação, processo de instrução e, poste-riormente, no processo de execução penal).

Neste aspecto, a teoria interacionista do desvio, respon-sável pelo criminological turn1, defi ne com precisão as etapas do processo de criminalização, estando o Poder Legislativo limitado à seletividade das condutas e às formas abstratas de punição (criminalização primária). Diversamente, são as agências dos Poderes Executivo (Polícia, Ministério Público e Administração Carcerária) e Judiciário (Magistratura), que es-tabelecem os critérios de interpretação (regras e metarregras) que defi nirão as formas de incidência do controle penal na sociedade civil (criminalização secundária) com a efetivação/obstaculização da política legislativa, aumentando ou restrin-gindo o punitivismo. Não obstante comporem a mesma rede, as instâncias e os personagens são autônomos e independen-tes na tomada das decisões. Assim, se houver direcionamen-to harmônico no que respeita às opções político-criminais, os

1 Sobre o tema, Carvalho, Antimanual..., pp. 79-98.

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níveis de punitivismo terão intensidade ótima (alta ou baixa); se houver discordâncias e/ou resistências entre as distintas instâncias, os efeitos encarceradores provavelmente serão es-tabilizados em níveis intermediários.

As performances (grau de efi ciência) e os consensos político-criminais das distintas instituições que compõem o sistema penal defi nem, ao fi nal, o nível de punitividade de determinado contexto espaço-temporal.

No Brasil, assim como na maioria dos países ocidentais, o primeiro fi ltro estabelecido à criminalização secundária se encontra nas agências policiais, responsáveis pela investiga-ção preliminar (inquérito policial). Encerrada a investigação, a autoridade policial pode requerer o arquivamento do caso (em razão de ausência de provas de autoria ou de materia-lidade ou em razão de o fato não constituir delito) ou enca-minha o inquérito ao Ministério Público, com o indiciamento formal do investigado.

A investigação preliminar é de natureza eminentemente administrativa, no qual cabe à Polícia Judiciária, sob a presi-dência do Delegado de Polícia, realizar inquérito com objeti-vo de coletar o máximo de elementos de prova sobre o fato--crime. Assim, na fase investigativa, são produzidas todas as provas indiciárias em direito admitidas (testemunhal, pericial e documental), com objetivo de reconstrução do delito e de imputação de responsabilidade ao seu autor.

O procedimento investigativo é eminentemente inquisi-torial, burocratizado e regido pela escritura, sendo a forma dos atos totalmente alheia aos princípios e regras do devido processo legal, visto inexistir previsão legal de contraditório e de ampla defesa nesta fase preliminar. O modelo investi-gatório do inquérito policial foi incorporado pela legislação brasileira em 1940 (Decreto-Lei 3.689/41, Código de Processo

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Penal) sob forte infl uência do Código de Processo Penal italia-no, editado pelo regime fascista, o qual se apropria do modelo francês napoleônico.

Somente após a Constituição de 1988, algumas limita-ções à discricionariedade plena da autoridade policial foram estabelecidas, sobretudo com a determinação da obrigatorie-dade de decisão judicial nos casos de restrição aos direitos e às garantias fundamentais dos acusados. Assim, apesar de permanecer evidente sua natureza administrativa, as decisões produzidas no inquérito passaram a requerer o controle ju-dicial. Os exemplos mais notórios são os casos de medidas cautelares (prisão cautelar, busca e apreensão, interceptação telefônica e ambiental, arresto e sequestro de bens entre ou-tras) em que, diferentemente do cenário pré-constitucional, quando o Delegado de Polícia decidia livremente sobre sua conveniência, há necessidade de requerimento da autoridade policial à judicial, que é a detentora do poder soberano de deferir ou indeferir o pedido.

Finalizado o procedimento investigativo, o inquérito é encaminhado ao Ministério Público, titular da ação penal pública,2 para análise da conclusão administrativa de indicia-

2 No Brasil há previsão de duas espécies de ação penal: pública e privada. Na ação penal pública, o Ministério Público titulariza a ação penal, conforme determinado pelo art. 129, I da Constituição. A exceção da ação penal pública é a ação penal privada, na qual o ofendido ou seu representante legal exercem a ação. As diferentes espécies de ação determinam, inclusive, distintos procedimentos e ônus processuais, sobretudo porque são orientadas por diferentes princípios reitores, quais sejam, o princípio da obrigatoriedade na ação penal pública e o princípio da disponibilidade na ação penal privada.

Outrossim, dependendo da espécie de delito, da natureza ou do nível de gravidade da lesão ao bem jurídico e da qualidade dos sujeitos imputados, existem distintos procedimentos previstos na lei processual penal brasileira. No caso de infrações de menor potencial ofensivo, a competência para julgamento é dos Juizados Especiais Criminais, cuja lei prevê mitigação no

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mento do investigado, de determinação de novas diligências, ou de arquivamento do caso. O agente do Ministério Público, órgão do Poder Executivo, realiza o segundo fi ltro na criminali-zação secundária, pois sua opção por denunciar, requerer novas investigações ou arquivar o inquérito é autônoma e independe da conclusão realizada pela polícia. Possível, pois, a autoridade policial indiciar o investigado e o Ministério Público entender não estarem presentes os requisitos para ação penal ou inexistir indiciamento e o dominis litis oferecer denúncia. Embora ambas sejam agências persecutórias, a conclusão do órgão investigador não vincula a opinião do órgão acusador.

Com base nos dados colhidos na investigação, o Ministério Público analisa formal e materialmente as possibi-lidades de imputação de responsabilidade e, estando presen-tes as condições da ação, exerce o poder-dever de acusar atra-vés do oferecimento formal da peça acusatória (denúncia).3

O oferecimento da denúncia estabelece o terceiro fi ltro ao processo de criminalização. Conforme o procedimento perse-cutório estabelecido pelo Código de Processo Penal brasileiro após a série de reformas consolidadas em 2008, oferecida de-

princípio da obrigatoriedade da ação penal com a previsão de hipóteses de transação ou conciliação penal (institutos diversifi cadores) – igualmente há restrição ao princípio da obrigatoriedade no caso dos crimes de médio potencial ofensivo que, apesar de serem julgados pelo procedimento comum, comportam a possibilidade de suspensão condicional do processo. Em caso de crimes dolosos contra a vida, o rito estabelecido é o do julgamento pelo Tribunal do Júri, em procedimento que sucede a instrução processual própria do rito ordinário. Nos demais delitos, o procedimento comum orienta a forma dos atos.

A exposição do procedimento persecutório é baseada, exclusivamente, no rito ordinário, notadamente em razão de ser a regra no processo penal brasileiro.

3 “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualifi cação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identifi cá-lo, a classifi cação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas” (art. 41, CPP).

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núncia pelo agente ministerial cabe ao juiz analisar as condi-ções da ação4 – previsão legal da conduta narrada (tipicidade aparente5); interesse de agir (punibilidade concreta), legiti-midade para a causa (titularidade da parte) e justa causa pro-cessual penal (provas mínimas de autoria e materialidade)6 – e, após a manifestação técnica da defesa do denunciado (res-posta à acusação7), receber ou rejeitar8 9 a inicial acusatória ou, ainda, absolver sumariamente o acusado.10 Apenas com o recebimento da denúncia, através de decisão judicial motiva-

4 Sobre as condições genéricas da ação, conferir Tucci, Teoria do Direito Pro-cessual Penal, pp. 89-97.

5 Sobre a inaceitabilidade da possibilidade jurídica do pedido como condição de ação e a substituição pela ideia de tipicidade aparente, conferir Coutinho, A Lide e o Conteúdo do Processo Penal, pp. 146-148; e Silveira, A Tipicidade e o Juízo de Admissibilidade da Acusação, pp. 75-91.

6 Sobre a justa causa processual penal, conferir Moura, Justa Causa para a Ação Penal, pp. 47-59.

7 A obrigatoriedade de a defesa do acusado manifestar-se antes do recebimento formal da denúncia pelo juiz decorreu de recente alteração legislativa (Lei 11.719/08). Segundo a nova redação do art. 396, CPP: “nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”

8 “A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I – for manifestamente inepta; II – faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III – faltar justa causa para o exercício da ação penal” (art. 395, CPP).

9 Antes da reforma operada pela Lei 11.719/08, para diferenciar a análise judicial do mérito e a análise dos requisitos formais, havia diferenciação entre rejeição e não recebimento da denúncia – na rejeição havia discussão do mérito da causa, enquanto no não-recebimento havia apreciação das condições da ação, confi gurando situações processuais distintas. Com a reforma e a previsão da absolvição sumária, a rejeição da denúncia refere análise dos requisitos formais (art. 396, CPP) e o juízo sumário diz respeito ao mérito da causa (art. 397, CPP).

10 “Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando verifi car: I – a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do fato; II – a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do agente, salvo inimputabilidade; III – que o fato narrado evidentemente não constitui crime; ou IV – extinta a punibilidade do agente” (art. 397, CPP).

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da, é que se instaura a situação processual penal, adquirindo o acusado a condição de réu.

Percebe-se, portanto, que somente após o caso registrado passar por três fi ltros de análise, em três distintas agências penais, inicia-se efetivamente o processo penal, com instrução processual regida pelos princípios ínsitos ao sistema acusa-tório do due processo of law (princípios da presunção de ino-cência, ampla defesa, contraditório, proibição de prova ilícita, nemo tenetur se detegere, motivação dos atos judiciais, in dubio pro reu, duplo grau de jurisdição).

Ao fi nal da instrução, após manifestação das partes, o Magistrado julga o caso, absolvendo ou condenando o acusado. Desta decisão proferida pelo juiz singular cabe re-curso aos Tribunais, local em que colegiado de juízes com-posto por Câmaras ou Turmas re-analisará as matérias de fato e de direito, proferindo novo julgamento. Todavia, em caso de ofensa direta às normas constitucionais e/ou nega-tiva de vigências à Legislação Federal ou divergência juris-prudencial, a matéria de direito poderá ser submetida aos Tribunais Federais (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), mediante a interposição de Recurso Extraordinário (art. 102, Constituição11) e/ou Recurso Especial (art. 105, Constituição12).

Após a tramitação do caso, com o esgotamento das vias recursais e o trânsito em julgado da decisão conde-

11 “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) I II – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição (...).”

12 “Compete ao Superior Tribunal de Justiça: ( ...) III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a ) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b ) julgar válido

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natória, inicia-se a execução da pena, com o retorno dos autos ao juiz de primeiro grau e a formação do processo de execução penal.

ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.”

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5.Os Paradoxos do

Sistema Jurídico-Penal Brasileiro

5.1. A Falta de Controle e de Transparência

Conforme antecipado, o levantamento de dados sobre a situação da Justiça Criminal brasileira é experiência relativa-mente recente. Em relação à população carcerária, apenas a partir do ano de 2000 há periodicidade na sistematização e na atualização dos dados, fato que permite analisar razoavel-mente o fenômeno do punitivismo no Brasil.

Em relação ao desempenho das instituições que compõem a rede de Justiça Criminal, os instrumentos de interpretação possíveis advêm de estudos acadêmicos sobre casos específi cos ou de experiências inovadoras, porém incipientes, das próprias instituições. Aliás, a própria análise do processo legislativo em matéria penal carece profundamente de transparência, apesar de a visibilidade dos Poderes ser uma das principais caracterís-ticas dos regimes democráticos, constituindo-se, inclusive, como qualidade ínsita aos deveres republicanos.

A análise, portanto, será realizada a partir do reconhe-cimento do “défi cit de informações públicas sobre o sistema penal brasileiro.”1

1 Machado & Machado (coords.), Sispenas: Sistema de Consulta sobre Crimes, Penas e Alternativas à Prisão, p. 04.

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Neste quadro, sustentado nos estudos de Pierre Landreville, preciso o diagnóstico proferido por Marta Machado e Maíra Machado sobre a absoluta carência de controlabilida-de do sistema penal brasileiro, ou seja, a ausência, por parte dos Poderes Públicos, de coordenação sobre suas próprias operações. Em cenário absolutamente complexo em razão das sucessivas reformas do sistema penal ao longo das úl-timas décadas, “esse quadro traduz-se na ausência de produção de informações e de compartilhamento de resultados, bem como na falta de mecanismos de planejamento.” A consequência, exemplifi cada no caso das mudanças nas quantidades das penas, é que “atualmente, esses dois conjuntos – as normas de sanção acopladas às normas de conduta, de um lado e, de outro, as normas sobre procedimentos e benefícios – praticamente não se comunicam (...). E o que é pior: modifi cam-se simultaneamente sem que haja verifi cação prévia sobre o impacto que exercem mu-tuamente. Isto quer dizer que quando são propostas mudanças pontuais nas penas cominadas para determinados crimes não se sabe facilmente que tipo de consequência isso vai ter no que diz respeito aos benefícios que deixarão ou passarão a ser passíveis de aplicação a esse crime.”2

Assim, a leitura sobre a cultura dos atores do sistema penal brasileiro será realizada a partir de uma série instru-mentos coletados, aplicados por distintos grupos de pesquisa em diferentes contextos. Em sua maioria, investigações aca-dêmicas sobre o funcionamento da justiça criminal brasileira e que possibilitam, de forma consistente, apontar seu modus de atuação, projetando instrumentos parciais de controlabili-dade da rede de punitividade.

2 Machado & Machado (coords.), Sispenas..., pp. 04-05.

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5.2. Cifras Ocultas, Inefi ciência Resolutiva e Alta Punitividade

A questão central que surge das investigações sobre o sistema formal de criminalização no Brasil é o paradoxo entre a notória inefi ciência das agências de controle em investigar e elucidar delitos e, ao mesmo tempo, o alto grau de punitivis-mo refl etivo no número de pessoas aprisionadas.

Como a maioria dos países ocidentais, o Brasil assistiu nas últimas décadas ao aumento do número de delitos violen-tos, conforme exposto anteriormente – apesar do leve decrés-cimo e da estabilização nos últimos anos. Todavia é inegável que a taxa de homicídios por 100.000 habitantes, indicador internacional de violência, ainda é bastante alta.

Ocorre que apesar do alto grau de violência urbana e do enorme contingente de pessoas presas – o que poderia, em tese, ser fenômenos refl exo – a inefi cácia das instituições em termos de resolução dos casos que lhes são apresentados é superlativa.3 Rodrigo Azevedo demonstra que no Rio Grande do Sul, Estado cuja taxa de elucidação de crimes está entre as maiores do país, os dados ofi ciais referentes a 2007 demons-tram que do total de Inquéritos instaurados, 55% são fi nali-zados e remetidos ao Ministério Público. No entanto, deste

3 Registre-se que apresentar diagnóstico e apontar o grau de inefi cácia do sistema de justiça criminal na resolução dos casos que lhe são apresentados não implica em aderir ao que se convencionou chamar de discursos efi cientistas, em grande parte inspirados nos discursos atuariais e nas políticas criminais securitizadoras. Pelo contrário, a orientação da investigação está em sentido oposto ao discurso efi cientista que se refl ete exatamente na alta seletividade e na aplicação desigual da sanção criminal contra grupos vulneráveis denunciada nesta pesquisa.

A constatação da alta punibilização de grupos vulneráveis apesar da inefi cácia patológica do sistema penal é provavelmente o maior sintoma da orientação efi cientista das agências punitivas nacionais.

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universo, apenas 15% originam denúncia e são submetidos à primeira análise judicial (terceiro fi ltro).4

Se for incluída neste cálculo a cifra oculta de delitos não comunicados às autoridades policiais e se forem agregados os números de absolvições por fragilidade probatória e as ex-tinções de punibilidade (prescrição, p. ex.), a inefi ciência ope-racional do sistema torna-se bastante elevada. O problema é que apesar desta falta de efetividade na formação de conjunto probatório lícito e idôneo para alcançar a responsabilização pela prática do delito, o Brasil apresenta elevados índices de encarceramento.

Fernanda Vasconcellos e Rodrigo Azevedo explicam este paradoxo demonstrando que é exatamente em decorrência da falta de credibilidade no sistema de justiça criminal que “o processo penal, que é instaurado em relativamente poucos casos, passa a ser utilizado como um mecanismo de punição antecipada, já que a prisão imediata e todos os demais ritos processuais podem oferecer a falsa sensação de efi cácia do poder punitivo do Estado.”5 O descrédito deriva, segundo os pesquisadores, do alto grau de seletividade na criminalização secundária, da ausência de imparcialidade nos julgamentos, da superlativa cifra oculta e da lentidão burocrática das instituições, fatores que produ-zem inefi cácia quanto aos resultados esperados pelo público consumidor do discurso punitivo.

A utilização do processo penal como efetiva (antecipa-ção de) pena contra os grupos vulneráveis criminalizados e os autores de obras toscas da criminalidade6 fornecem elementos

4 Azevedo, Justiça Penal e Segurança Pública no Brasil, pp. 98-99.5 Apud Azevedo, Justiça..., p. 99.6 Segundo Zaff aroni, Batista, Alagia e Slokar, “a regra geral da criminalização

secundária se traduz na seleção: a) por fatos burdos ou grosseiros (obra tosca da criminalidade, cuja detecção é mais fácil), e b) de pessoas que causem menos problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico

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para compreensão da patologia do grande encarceramento brasileiro, seja em relação ao alto número de prisões caute-lares, inclusive em casos de delitos praticados sem violência, seja em decorrência de condenações criminais. Além disso, igualmente possibilita formas de compreensão do (ab)uso de métodos ilegais para a construção da prova, especialmente na fase policial, seja através da violação dos procedimentos for-mais estabelecidos pelas normas processuais (buscas e apre-ensões, interceptações telefônicas e prisões sem autorização judicial), seja pelo uso brutal da força física e pelo abuso da autoridade (torturas, ameaças, extorsões).

ou à comunidade massiva” (Zaff aroni, Batista, Alagia & Slokar, Direito Penal Brasileiro, p.46).

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6.As Instituições da Persecução Penal e a Formação Cultural

dos seus Atores:a Tradição Inquisitória

José Eduardo Faria enuncia a crise do sistema de Justiça brasileiro a partir da inefi ciência no desempenho de três fun-ções que considera básicas: a instrumental, a política e a sim-bólica. A função instrumental seria relativa à capacidade de o Judiciário e de o Ministério Público resolver os confl itos que lhes são apresentados; a função política representaria o papel das instituições como mecanismos de controle social e efeti-vação dos direitos; a função simbólica efetivaria as expectativas sociais de aplicação equânime da justiça.1

Alerta o investigador que a crise de disfuncionalidade instrumental, política e simbólica não é fenômeno contempo-râneo, pois remete a questão para a formação histórica das instituições da Justiça luso-brasileira. Note-se, ainda, que o autor não restringe sua análise à questão penal, mas visualiza o sistema de Justiça de forma ampla, integrando o sistema pe-nal às demais agências da Administração da Justiça.

Se é possível diagnosticar como causa da crise da ad-ministração da Justiça brasileira o fato de ter sido concebida

1 Faria, O Sistema Brasileiro de Justiça, p. 104.

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para atuação em sociedade relativamente estável, com níveis equitativos de distribuição de renda, refl etida em ordem le-gal integrada por normas padronizadas e unívocas, não é lí-cito olvidar a tradição luso-brasileira de formação dos atores que manipulam este sistema burocrático. Desta forma, possí-vel verifi car que além da confi guração de sistemas de gestão pública a partir de modelos idealizados – modelos de justiça e de sociedade distintos da brasileira, fato que refl ete haver grande incompatibilidade entre a realidade social e a progra-mação das instituições2 – a justiça criminal atual é o refl exo natural do pensamento inquisitório institucionalizado desde a colonização que se consolidou ao longo do processo de for-mação do Estado nacional.

Segundo Faria, “A inefi ciência do ‘sistema de Justiça’ no exercício dessas funções decorre, em grande parte, da incompati-bilidade estrutural entre sua arquitetura e a realidade socioeco-nômica sobre a qual tem de atuar. Em termos históricos, desde seus primórdios no Brasil colonial, como instituição de feições inquisitórias forjada pelo Estado português a partir das raízes culturais da Contra-Reforma, com seus prazos, instâncias e re-

2 “A realidade brasileira é incompatível com esse modelo de Judiciário. Contraditória e confl itiva, ela se caracteriza por desigualdades sociais, regionais e setoriais; por situações de miséria que negam o princípio da igualdade formal perante a lei, impedem o acesso de parcelas signifi cativas da população aos tribunais e comprometem a efetividade dos direitos fundamentais; pelo aumento do desemprego aberto e oculto e pela redução do número de trabalhadores com carteira assinada; por uma violência urbana desafi adora da ordem democrática e oriunda dos setores sociais excluídos da economia formal, para os quais a transgressão cotidiana se converteu na única possibilidade de sobrevivência; por um aumento preocupante nos índices de criminalidade; e por um sistema legal fragmentário e incapaz de gerar previsibilidade, dada a profusão de regras editadas para casos conjunturais” (Faria, A Crise do Judiciário no Brasil, p. 25).

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cursos, o Judiciário sempre foi organizado como um burocratiza-do sistema de procedimentos escritos.”3

O diagnóstico apresentado por José Eduardo Faria permi-te não apenas encontrar importante chave de interpretação para compreender a estrutura da administração da Justiça luso-bra-sileira, mas, sobretudo, para avaliar seu sistema de Justiça pe-nal. Sobretudo porque é no âmbito da repressão ao crime e aos desvios que a mentalidade inquisitória se infi ltra de forma mais vigorosa e produz seus mais consistentes efeitos.

Importante destacar, portanto, que a técnica repressiva moldada no sistema inquisitório estabelece modelo paradig-mático de administração da justiça criminal que orientará grande parte dos modelos jurídicos autoritários contemporâ-neos. Conforme destaca Jacinto Coutinho, a elaboração desta matriz processual penal é tão genial que permanece vigente nos tempos atuais4 – diagnóstico, diga-se, não restrito apenas à realidade brasileira.

Caracterizar a estrutura do paradigma inquisitório, com a precisa identifi cação dos papéis atribuídos aos sujeitos da persecução penal, permite, portanto, traçar o horizonte de projeção, apontar o direcionamento da atuação do sistema punitivo5, pois “mudam os sinais, mas não a lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer diferença.”6 Nas palavras de Umberto Eco, “a Idade Média representa o crisol da

3 Faria, O Sistema..., p. 104.4 Coutinho, Jurisdição, Psicanálise e Mundo Neoliberal, p. 47.5 Nas palavras de Novinsky, “na Inquisição está o modelo ideal da implantação de

regimes totalitários, dos seus métodos de tortura, de como são tratados dissidentes políticos e sociais, de como isolar milhares de pessoas proibidas de conhecer suas origens culturais, da miséria dos condenados ao silêncio e à incomunicabilidade, do racismo mascarado em novas ideologias e da apropriação de bens como fi ança desses crimes.” (Novinsky, Inquisição: Rol dos Culpados, p. XI)

6 Boff , Inquisição, p. 20.

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Europa e da civilização moderna. A Idade Média inventa todas as coisas com as quais ainda estamos ajustando as contas.”7

Em sua forma jurídico-penal, o sistema inquisitório se es-trutura em economia de poder cujo protagonismo é exercido pelo Magistrado. A relação que se estabelece entre julgador e julgado é estruturante, pois traça os limites de atuação dos su-jeitos processuais. Aliás, todos os demais atores desta cena pro-cessual são coadjuvantes, detentores de papéis secundários, pois a resolução do caso se vincula fundamentalmente à técnica do Magistrado em descobrir a verdade que o acusado é o exclusivo detentor. O poder, portanto, é altamente concentrado e direcio-nado exclusivamente contra o suspeito-acusado-réu.

A forma judicial de atuação-protagonismo processual se manifesta, pois, como “verdadeira obsessão do inquisidor; daí ser natural, nessa perspectiva, a utilização do saber do próprio acusado como fonte de informação.”8

Fundamental frisar, porém, que as referências históricas ao sistema inquisitório ou aos Tribunais do Santo Ofício9 têm

7 Eco, Dez Modos de Sonhar a Idade Média, p. 78.8 Gomes Filho, O Direito à Prova no Processo Penal, p. 21.9 No Brasil, o Tribunal do Santo Ofício iniciou sua atividade em 1572,

permanecendo ativo até a Independência. Apesar de centralizar a persecução no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Paraíba, atuou em todo o território nacional – “na verdade, o Santo Ofício interferiu profundamente na vida colonial, durante mais de dois séculos, perseguindo portugueses, brasileiros, índios e africanos nos quatro cantos do Brasil.” (Fernandes, A Inquisição e as Etnias, p. 232).

A instalação do aparato judiciário-clerical em Portugal ocorre no ano de 1536, tendo perdurado até 1821 com a ruptura imposta pela revolução constitucionalista. Gestada na Lei da Boa-Razão (1769), que seculariza o direito pela restrição à soberania das fontes do Direito Canônico, e na reforma pombalina, que cria condições de formação de um novo caldo de cultura (Gauer, A Modernidade Portuguesa e a Reforma Pombalina de 1772, pp. 63-86), a cisão com o modelo inquisitorial nas terras lusitanas culmina com a insurreição do Porto de 1820 e com o início do processo codifi cador.

Com a colonização nota-se claramente a transposição desta máquina judiciária para o Brasil, a qual possibilitou não apenas a repressão política dos ‘hereges’, mas o controle dos dissidentes políticos e das classes

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como única função a elaboração de motivo histórico-conceitual, recurso interpretativo sem qualquer pretensão de estabele-cer linearidade histórica estável ou origens fenomênicas ou epistemológicas. A temática inquisitorial está inserida em terreno volátil de alta complexidade, não podendo ser en-clausurada em modelos históricos cerrados, sobretudo jurí-dicos. Importante ressaltar, contudo, na demonstração deste modelo persecutório de investigação e conquista de verdade juridicamente válida, a sua proliferação em dimensões extra-ordinárias10, decorrência de sua característica trans-histórica e de sua alta funcionalidade para legitimação de máquinas judiciárias autoritárias.

6.1. Estrutura do Sistema Inquisitório e as suas Consequências na Formação dos Atores Processuais

Ao procurar elemento para a caracterização de uma epis-temologia inquisitiva, Ferrajoli propõe identifi car e expor ele-mentos assimétricos ao tipo-ideal garantista. Cria, pois, dois

subalternas (Novinsky, Inquisição: rol dos culpados, pp. VII-XIX; e Novinsky & Carneiro, Inquisição: ensaios sobre mentalidades, heresias e arte, pp. 03-10, pp. 97-159, pp. 337-439), inclusive com o genocídio dos povos nativos (Silva Filho, Da ‘Invasão’ da América aos Sistemas Penais de Hoje, pp. 279-329).

Se as Ordenações Afonsinas (1446) e Manuelinas (1521) não tiveram ampla aplicação, as Ordenações Filipinas (1603) representaram o complexo legislativo do modelo jurídico-penal da Inquisição no Brasil. No Livro V das Ordenações Filipinas encontra-se a codifi cação penal e processual penal da Colônia que refl ete o espírito pré-secular de ausência de distinção entre direito, moral e religião.

Mister notar que o estatuto repressivo inquisitorial que perdura formalmente mesmo após a proclamação da Independência (1822) e a outorga da Constituição de 1824, sendo substituído apenas em 1830 com o Código Penal e em 1832 com o Código de Processo Criminal de Primeira Instância – em 1823 foi editada Lei que mantinha a vigência das Ordenações Filipinas.

10 Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas, pp. 53-78.

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modelos epistemológicos puros e estabelece seus contrapon-tos na defi nição normativa do ilícito (direito penal), nas for-mas de comprovação judicial do desvio penalmente relevante (processo penal) e nos modelos de sanção (execução da pena).

Conforme o autor, o primeiro aspecto caracterizador da epistemologia inquisitiva seria a concepção ontológica de delito – “das doutrinas moralistas que identifi cam no crime um pecado às naturalistas que vêem no crime um sinal de anormalidade ou patolo-gia psicofísica do sujeito, até aquelas pragmáticas e utilitaristas que a este conferem relevância somente quando se mostra como sintoma especial e alarmante da periculosidade do seu autor.”11 A concep-ção substancialista do desvio, consequência lógica da fusão antissecular entre elementos do direito e da moral, redefi niria os limites de incidência do poder punitivo (garantias) forneci-dos pelo princípio da legalidade (mala prohibita), substituindo a proibição formal da conduta pela ideia material de autor/conduta criminais (mala in se).

Em termos genéricos, a epistemologia inquisitiva no direito penal (teoria da lei penal, teoria do delito e teoria da pena) potencializa modelos de direito penal de autor nos quais são reprimidos comportamentos individuais ou estados/condições pessoais em detrimento da violação ex-terna de bens jurídicos normativamente tutelados (direito penal do fato). Em termos político-criminais, a tensão entre os dois modelos extremos delineia projetos de direito penal máximo (sistema inquisitório) e de direito penal mínimo (sistema garantista).

O segundo elemento da epistemologia inquisitiva é refe-rente ao processo penal e às formas de execução da pena, na caracterização do decisionismo processual. A tensão apresenta-

11 Ferrajoli, Diritt o e Ragione, p. 14.

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da defi niria os sistemas processuais penais como acusatórios ou inquisitórios.

A principal caracterização dos modelos processuais pe-nais é realizada a partir da posição do Magistrado no proces-so. No sistema acusatório, regido pelo princípio dispositivo do juiz espectador, o Magistrado é sujeito passivo, tanto no que concerne à iniciativa da ação penal quanto na gestão da prova. Encontra-se rigidamente separado das partes, principalmente do órgão acusador, de forma a garantir a imparcialidade do julgamento.12 O juízo é caracterizado por procedimento oral e público, sendo a decisão fi nal modelada pelo princípio do livre convencimento, ou seja, a sentença cabe exclusivamente ao Juiz que, a partir da exposição motivada dos argumentos que permitiram concluir sobre o objeto de discussão (caso penal), coloca termo ao procedimento. Opõe-se, portanto, ao modelo inquisitivo no qual o Juiz procede à busca e à valo-ração das provas, decidindo após procedimento instrutório escrito e sigiloso.

No entanto, alerta Tornaghi13 que apesar de o sistema inquisitório ser modelado pela escritura e pelo sigilo, essas características não lhe são essenciais, pois o que distinguiria a forma acusatória da inquisitória é o fato de que, na primei-ra, as funções de acusar, defender e julgar estão distribuídas igualmente entre três órgãos distintos (acusador, defensor e juiz), e no segundo modelo as funções estão confi adas a um

12 Segundo Luigi Ferrajoli, a postura imparcial dos julgadores nos modelos acusatórios resulta caracterizada pela sua posição desprendida do sistema político e pela ausência de vínculo com as partes do caso em julgamento ou de qualquer interesse particular no resultado da demanda (Ferrajoli, Giurisdizione e Democracia, p. 293).

13 Tornaghi, Instituições de Processo Penal, p. 465.

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único sujeito, pois, conforme Feuerbach, “en el proceso inquisi-torio se considera al juez como una triple persona.”14

Apesar da importância da distribuição equânime de po-deres instrutórios às partes, entende-se que a gestão judicial da prova segue sendo o elemento que melhor indica a adjeti-vação inquisitória ou acusatória aos sistemas processuais.

Claus Roxin, avaliando a posição jurídica dos sujeitos processuais, sustenta que o processo inquisitivo é baseado “en el principio de que la investigación de la verdad está em manos del juez: él reúne, desde el principio en material probatório, interroga al imputado, dirige el juicio y dicta la sentencia.”15

Barreiros, ao traçar as principais características dos sis-temas, sustenta que no acusatório o julgador é representado por assembleia ou corpo de jurados populares; o juiz é árbitro sem iniciativa na investigação; a ação é popular (delitos públi-cos) ou compete ao ofendido (delitos privados); o processo é oral, público e contraditório; a prova é valorada livremente; a sentença faz coisa julgada; e a regra nas medidas cautelares é a liberdade do arguido. Na antípoda inquisitória, o julgador é permanente; o juiz investiga, dirige, acusa e julga numa po-sição de superioridade face ao imputado; a acusação procede ex offi cio, admitindo-se denúncia secreta; o processo é escrito, secreto e não-contraditório; a prova é legalmente tarifada; a sentença não faz coisa julgada; e a característica das medidas de cautela é o aprisionamento.16 Dessa forma, como salienta Ferrajoli, enquanto “ao sistema acusatório convém um juiz espec-tador, voltado sobretudo à objetiva e imparcial avaliação dos fatos, e portanto mais sábio que ilustrado, o rito inquisitório exige um juiz ator, representante do interesse punitivo, e por isso legalista, versado

14 Feuerbach, Tratado de Derecho Penal, p. 372.15 Roxin, Derecho Procesal Penal, p. 122.16 Barreiros, Processo Penal, p. 12.

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nos procedimentos e dotado de capacidade investigativa.”17 Trata-se, em última análise, de opção política entre duas distintas espécies de julgadores: juízes-cidadãos ou juízes-magistrados.

O sistema inquisitório, portanto, exclui o contraditório, limita a ampla defesa e obstaculiza, quando não inviabiliza, a presunção de inocência, cuja comissividade é o postulado bá-sico do garantismo processual.18 Recorde-se que no processo penal inquisitório a insufi ciência de provas e sua consequente dubiedade não gera absolvição; ao contrário, o indício equi-vale à semiprova, que comporta juízo de semiculpabilidade e, em consequência, semicondenação.19

Conforme as lições de Franco Cordero, possível identifi -car o estilo inquisitivo a partir de duas constatações: (1a) a sobre-valorização da imputação em relação à prova, confi gurando o primado das hipóteses sobre os fatos; e (2a) a conversão do processo em psicoscopía, ao estabelecer rito fatigante e isento de forma rígida.20 Assim, as técnicas do modelo inquisitório desenvol-vem no Magistrado quadros mentais paranoicos e tendências po-licialescas, visto que, ao invés de o juiz “se convencer através da prova careada para os autos, inversamente, a prova servia para de-monstrar o acerto da imputação formulada pelo juiz-inquisidor.”21 Conclusão idêntica é a de Roxin, para quem a desvantagem signifi cativa do processo inquisitivo, como resultado da união dos papéis processuais de persecutor e julgador na fi gura do

17 Ferrajoli, Diritt o..., p. 588.18 Sobre a importância do princípio da presunção de inocência no processo

penal garantista, conferir Ibáñez, Garantismo y Proceso Penal, pp. 52-55.19 Quanto ao regime probatório e à formulação de juízos de semiculpabilidade

a partir de indícios, verifi car Foucault, Vigiar e Punir, pp. 11-61.20 Nas lições de Cordero: “a solidão na qual trabalham os inquisidores, nunca

expostos ao contraditório, alheios à dialética, pode ser útil ao trabalho policialesco, mas desenvolve quadros mentais paranóicos. Poderíamos chamar ‘primado das hipóteses sobre os fatos’” (Cordero, Guida alla Procedura Penale, p. 51).

21 Jardim, Ação Penal Pública, p. 24.

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Juiz, é a “sobre-exigência psicológica: aquele que reuniu o material de prova, em geral, não se coloca de forma imparcial em relação ao resultado da investigação, posição indispensável para ditar uma sen-tença fundada em valorações equitativas.”22

Neste quadro inquisitorial, o réu transforma-se em ob-jeto de investigação, pois detém com exclusividade verdade histórica (verdade material) que necessita ser revelada – “o inquisidor investiga, procurando buscar signos do delito, e trabalha sobre os acusados, porque, culpados ou inocentes, sabem tudo o que se requer para decisões perfeitas; tudo se resume a fazê-lo dizer.23”

Os dois extremos da intervenção processual penal descri-tos nos sistemas acusatório e inquisitório apresentam escopos substancialmente diferenciados. Enquanto o modelo garantis-ta-acusatório vincula-se à racionalidade do juízo, tendo como objetivo principal a máxima tutela das liberdades contra os po-deres, o modelo inquisitivo potencializa a violência institucio-nal, pois isento de mecanismos de contenção à intervenção do poder punitivo, motivo pelo qual determinados autores sequer nominam como processo o rito inquisitório.24

Não por outro motivo o resultado do processo inquisiti-vo é determinado ex ante, pois a conclusão posta em senten-

22 Roxin, Derecho..., p. 122.23 Cordero, Procedura Penale, p. 580. No papel de único detentor da verdade, o réu se transforma na própria

verdade a ser explorada, motivo pelo qual as técnicas de investigação não respeitam limites: “o estilo inquisitório multiplica os fl uxos verbais: é preciso que o imputado fale; o processo se transforma em sonda psíquica. O inquisidor trabalha livremente, indiferente aos limites legais, mas recolhe toda sílaba: a obsessão micro-analítica desenvolve um formalismo gráfi co; nenhum fato é realmente um fato enquanto não fi gure no papel” (Cordero, Procedura..., p. 329).

24 Segundo Montero Aroca, “o denominado processo inquisitivo não foi e, obviamente, não pode ser, um verdadeiro processo. Se este se identifi ca como actus trium personarum, no qual perante um terceiro imparcial comparecem dois sujeitos parciais, situados em posição de igualdade e com pleno contraditório, e colocam um confl ito para que aquele o solucione concretizando o Direito objetivo,

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ça deriva de prova antecipada à sua realização, concebida previamente à sua produção – “o Juiz-acusador formula uma hipótese e realiza a verifi cação. A verdade admitida como ‘ada-equatio rei et intellectus’ é atingível e deve ser alcançada. Esta verdade, verdade material, já existente como hipótese na mente do Juiz-acusador, deve, por outro lado, ser atingida solipsistica-mente. O contraditório perturba esta investigação. A poluição da prova daquela verdade já postulada é o maior de todos os perigos. Daí resulta o sigilo do processo, a ausência do indiciado ou do seu defensor na aquisição da prova que poderá servir para fundamen-tar a sentença de condenação.”25

A identidade Juiz-acusador produz a sacralização do rito (procedimento instrutório burocrático), situação que anula qualquer possibilidade de defesa, visto reduzir o imputado a objeto privilegiado do saber – “o instrumento inquisitório de-senvolve um teorema óbvio: culpado ou não, o indiciado é detentor das verdades históricas; tenha cometido ou não o fato; nos dois ca-sos, o acontecido constitui um dado indelével, com as respectivas memórias; se ele as deixasse transparecer, todas as questões seriam liquidadas com certeza; basta que o inquisidor entre na sua cabeça. Os juízos tornam-se psicoscopia.”26

Em conclusão, nas precisas lições de Geraldo Prado ao analisar o papel dos sujeitos nos sistemas processuais, “(...) a função predominante do processo inquisitório consiste na realização do direito penal material. O poder de punir do Estado (ou de que

algunas das características indicadas como próprias do sistema inquisitivo levam ineludivelmente à conclusão de que esse sistema não pode permitir a existência de um verdadeiro processo. Processo inquisitivo se resolve, pois, como uma contradictio in terminis” (Montero Aroca, Princípios del Proceso Penal, pp. 28-29).

No mesmo sentido, Montero Aroca, El Derecho Procesal en el Siglo XX, pp. 106-107.

25 Bett iol, & Bett iol, Instituzioni di Diritt o e Procedura Penale, p. 129.26 Cordero, Guida…, pp. 48-49.

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exerça o poder concretamente) é o dado central, o objetivo primor-dial. No sistema inquisitório, portanto, os atos atribuídos ao juiz devem ser compatíveis com o citado objetivo. Em linguagem con-temporânea equivale a dizer que o juiz cumpre função de segurança pública no exercício do magistério penal.”27

6.2. Mentalidade Inquisitória e Formas de Produção da Verdade

O sistema de administração da justiça criminal brasileira, conforme delineado anteriormente, é caracterizado por dois momentos distintos: o primeiro, de natureza administrativa, no qual atuam os agentes de investigação (Polícia Judiciária) sob a fi scalização do Ministério Público e com parte de sua discricionariedade subordinada à autorização do Poder Judiciário; e o segundo, eminentemente jurisdicional, no qual é consolidada a situação processual de partes.

A bipartição do procedimento persecutório em duas fa-ses com naturezas jurídicas distintas (administrativa e juris-dicional) induziu a percepção pela doutrina e pela jurispru-dência de o processo penal brasileiro estar orientado por dis-tintos sistemas processuais. Assim, conforme o pensamento processual-penal dominante, a fase de Inquérito seria regida pelos princípios do sistema inquisitório, marcado pelas au-sências de contraditório, de publicidade e de ampla defesa, e, após o recebimento da denúncia pelo Magistrado, ou seja, constituída a situação processual penal, o procedimento es-taria orientado pela estrutura do processo acusatório, com a efetivação plena das garantias constitucionais.

27 Prado, Sistema Acusatório, p. 105.

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Todavia, conforme vem sendo denunciada pela crítica do direito penal nacional28, a lógica que orienta a atuação dos su-jeitos do processo penal no Brasil, em grande medida pela in-corporação da sistemática do Código de Processo Penal de 1942, é notadamente inquisitória, apesar de ser suavizada pela apa-rência de o procedimento ser guiado pelo due process of law. A crítica direcionada ao pensamento processual dominante se alia, portanto, às conclusões apresentadas de José Eduardo Faria, em sua análise global do sistema de Justiça brasileiro.

No entanto, para além da arquitetura processual que caracteriza como inquisitório o processo penal brasileiro, in-clusive em sua fase jurisdicional, Kant de Lima percebe na cultura judiciária brasileira a incorporação de determinadas formas de produção da verdade que permite a manutenção e a transcendência da lógica inquisitória, inclusive após a rede-mocratização política com a Constituição de 1988.

Sustenta Kant de Lima29 que a moldura dos sistemas judiciários se defi ne a partir da compreensão dos confl itos, fundamentalmente se a sociedade na qual se está inserido percebe o confl ito como fonte de desordem e de ruptura com a harmonia social, sendo imprescindível sua repressão, ou se entende como inevitáveis no convívio e, portanto, fonte de or-

28 Dentre os autores, destacam-se, sobretudo, Bueno de Carvalho, Nós, Juízes, Inquisidores, pp. 39-50; Bueno de Carvalho, Atuação dos Juízes Alternativos Gaúchos no Processo de Pós-Transição Democrática, pp. 29-32; Carvalho, Pena e Garantias, pp. 257-265; Carvalho, As Reformas Parciais no Processo Penal Brasileiro, pp. 83-132; Carvalho, Antimanual de Criminologia, pp. 57-78; Choukr, Processo Penal de Emergência, pp. 56-69; Coutinho, O Papel do Novo Juiz no Processo Penal, pp. 33-44; Coutinho, Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro, pp. 26-51; Lopes Jr., Introdução Crítica ao Processo Penal Brasileiro, pp. 150-174; Prado, Sistema..., pp. 104-124; Rosa, Decisão Penal, pp. 117-151; Wunderlich, Por um Sistema de Impugnações no Processo Penal Constitucional Brasileiro; pp. 15-45.

29 Kant de Lima, Polícia e Exclusão na Cultura Judiciária, pp. 170-171.

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dem quando devidamente solucionados. As distintas formas como cada sociedade compreende o confl ito instituiriam di-ferentes sistemas ou regimes de verdade que caracterizariam seus sistemas judiciários.

Assim, utilizando-se do método comparativo, distingue dois sistemas de produção da verdade: os sistemas de decisão consensual e os sistemas de decisão confl itiva (ou de disso-nância cognitiva).30 Nos sistemas consensuais, cuja tradição se encontra consolidada nos países da common law, o regime de verdade é baseado na ideia de decisão como resultado de processo de negociação entre as partes, seja no momento em que o acusado se declara culpado (plea guilty) após a barganha com a acusação (plea bargain), seja quando a decisão requer a arbitragem judicial nos casos em que o réu se declara inocente (not guilty) – “neste último caso, constrói-se também a verdade pela negociação, pois o veredict nada mais é do que uma decisão toma-da por maioria ou por unanimidade dos jurados, que a negociam discutindo entre si até chegarem a uma conclusão satisfatória para todos.” A decisão que encerra o caso é, portanto, consequência do debate entre acusação e defesa ou entre os jurados, quando

30 O autor trabalha a comparação entre os dois modelos em inúmeros artigos distintos, mas, principalmente, em Kant de Lima, Polícia..., p. 169-183; Kant de Lima, Os Cruéis Modelos Jurídicos de Controle Social, pp. 131-147; Kant de Lima, Direitos Civis e Direitos Humanos, pp. 49-59.

Em relação à utilização do método, sustenta o autor que “a perspectiva que se adotou na apresentação desses dados foi ditada pelo uso do método comparativo como em voga na tradição antropológica contemporânea, que enfatiza as diferenças e as descontinuidades, mais que as semelhanças e as continuidades, entre os sistemas de justiça criminal estudados. Tal ponto de vista pode ser responsabilizado pela maior parte das polêmicas geradas por seus resultados, tanto no que diz respeito a sua validade e abrangência, quanto a sua contraposição a outros usos do método comparativo correntes na ciência política e no direito que, enfatizando semelhanças, costumam classifi car as diferenças empíricas de acordo com um sistema de referências pré-estabelecido, o que resulta exatamente naquilo que aqui se quer evitar: classifi cá-las como piores ou melhores, independentemente de seu contexto” (Kant de Lima, Polícia..., p. 170).

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“cada uma das partes desiste da sua verdade para compor uma ter-ceira versão satisfatória para todos” ou é necessário “decidir qual a verdade que vão dizer ao público, depois de presenciarem a exposição dos fatos admitidos em juízo”.31

A característica fundamental deste regime de verdade é a resolução do caso a partir do seu debate no espaço públi-co, local em que verdades parciais – apresentadas pelas partes processuais – serão propostas, abdicadas e fi nalmente nego-ciadas com intuito de se estabelecer nova verdade, partilhada entre os envolvidos e o público. Não interessa, portanto, a tentativa, sempre falha, de reconstrução da verdade do fato, verdade substantiva que se encontra congelada e obscurecida pelo tempo. Ao contrário, a negociação (diálogo) processual pública pretende construir uma verdade possível, atual e que possibilite a resolução do confl ito em termos razoáveis.

A importância do momento dialogal na resolução do caso torna o procedimento oral indispensável, pois serão as falas das partes no espaço público que possibilitarão representar e signifi car as inúmeras verdades possíveis. Publicidade, orali-dade e contraditório pleno delineiam a estrutura acusatória de procedimento no qual o árbitro judicial atua como garante da regularidade dos atos e das decisões, sem interferências na negociação. A fala judicial, neste modelo, é, portanto, restrita à exclusiva declaração pública do acordo realizado entre as partes ou partilhado entre os jurados.

Ao interpretar o complexo sistema processual penal bra-sileiro, Kant de Lima apresenta quatro procedimentos dis-tintos de produção da verdade: Inquérito Policial, Processo

31 Kant de Lima, Polícia..., pp. 171-172.

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Judicial, Tribunal do Júri e, mais recentemente, Juizados Especiais Criminais.

Conforme relatado, o Inquérito constitui-se como um dos principais instrumentos de investigação preliminar no processo penal brasileiro. Embora não seja o único mecanis-mo previsto em Lei,32 a investigação titularizada pela autori-dade policial adquiriu status principal na lógica da persecu-ção criminal. O Inquérito Policial, passível de ser instaurado para quaisquer hipóteses de delito, independente da natureza do bem jurídico tutelado (crime de maior ou menor potencial ofensivo) ou do rito judicial (Procedimento Comum, Juizado Especial Criminal ou Tribunal do Júri), constitui-se como input do sistema penal brasileiro e, de forma substancial, rege a mentalidade dos atores processuais.

Inquisitorial por excelência, o Inquérito pode ser instau-rado de ofício, ou seja, sem a provocação das partes em con-fl ito, a partir de iniciativa espontânea do agente público. Nas palavras de Kant de Lima, “o inquérito policial é um procedimen-to no qual quem detém a iniciativa é um Estado imaginário, todo poderoso, onipresente e onisciente, sempre em sua busca incansável da verdade, representado pela autoridade policial, que, embora sendo um funcionário do Executivo, tem uma delegação do Judiciário e a ele está subordinado quando da realização de investigações.”33

Com objetivo de reconstrução do fato passado através dos elementos de prova a serem traduzidos e inseridos no Inquérito, a Polícia Judiciária realiza a investigação investida

32 Em tese, qualquer procedimento Administrativo (ou Legislativo, como no caso das Comissões Parlamentares de Inquérito) na esfera do Poder Público pode colher elementos probatórios que deem sustentação à ação penal, independentemente da atuação da Polícia Judiciária. No entanto, apesar de não ser exclusivo, o Inquérito tornou-se presente em praticamente todos os procedimentos preliminares de investigação criminal.

33 Kant de Lima, Direitos..., p. 52.

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de poder legítimo para, em sua discricionariedade, imputar responsabilidade do delito ao investigado. Os indícios, por-tanto, visto se tratar de fase preliminar preparatória, tornam--se sufi cientes para a atribuição de autoria, sendo descartável a possibilidade de o investigado refutar a hipótese formula-da pela Autoridade Policial, pois publicidade, ampla defesa e contraditório não são princípios que se harmonizam com a lógica administrativo-inquisitorial.

Embora no plano discursivo a doutrina processual pe-nal atribua ao procedimento policial papel secundário, o fato de ser o input do sistema de persecução criminal constitui o Inquérito como principal mecanismo de produção da verda-de processual. As hipóteses de imputação nele produzidas infl uenciarão todas as decisões posteriores, condicionando a atuação do Ministério Público e do Poder Judiciário à perqui-rição da verdade pré-constituída na fase inquisitorial.

Assim, apesar de as demais fases do processo penal em termos estritamente técnicos estarem formalmente orientadas pelos princípios do sistema acusatório conforme estabele-ce a Constituição, a manutenção da investigação através do Inquérito presentifi ca a forma inquisitorial, pulverizando sua lógica em todas as fases posteriores. O processo misto, “mons-tro de duas cabeças” (Cordero) idealizado por Napoleão34, man-

34 Com o Código de Napoleão, fonte inspiradora de grande parte da legislação processual penal de tradição latina, nasce o denominado processo misto. Cordero sintetiza com precisão o efeito desta sistematização legislativa: “e assim, pela Lei de 17 de novembro de 1808, nasce o chamado processo misto, monstro de duas cabeças: nos labirintos escuros da instruction reina Luís XIV; segue uma cena disputada coram populo. Para alguns um capolavoro (...). Jean Constantin, Charles Demoulin, Pierre Ayrault, julgam-na menos bem: existe um abismo, nota o último, entre ‘instrução secreta’ e pública; ‘é fácil a portas fechadas ajustar ou diminuir, produzir brigas ou impressões’; a audiência pública garante um trabalho limpo; ‘haverá sempre alguma coisa a ser dita novamente’ sobre os juízos não produzidos em público, do começo ao fi m; ‘esta face composta de mais olhos, mais

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tém viva estrutura fundada na concentração do poder de cri-minalização na autoridade do inquisidor.

O cenário do Inquérito descrito por Kant de Lima, em atual pesquisa empírica realizada no Rio de Janeiro, é eluci-dativo: “registradas as práticas no trabalho de campo, pesquisas históricas complementares mostraram que os procedimentos obser-vados eram muito semelhantes aos da ‘inquirição-devassa’ do direito português ou da ‘inquisitio’ do direito canônico: procedimentos si-gilosos, que preliminarmente investigam, sem acusar, visando obter informações sobre perturbações da ordem denunciadas pública ou anonimamente (...).”35

Posteriormente, instaurado o processo com o recebimento da denúncia, o protagonismo transfere-se da autoridade Policial para a autoridade Judicial. Toda a prova a ser (re)produzida tem como destinatário o Magistrado, que, ao fi nal da instrução, pro-ferirá sentença a partir do seu livre convencimento.

A partir da Constituição de 1988, com a defi nição do Ministério Público como dominis litis (titular exclusivo da ação penal pública), foi vedada a possibilidade de o Juiz ins-taurar de ofício o processo penal, hipótese anteriormente ca-bível no caso de imputação de prática de contravenção penal (art. 2636 e art. 53137, CPP) ou de lesão corporal culposa (art. 1º, Lei 4.611/6538). A iniciativa de propositura da ação penal

orelhas, mais cabeças, que aquelas de todos os monstros e gigantes dos poetas, tem mais força... para penetrar até as consciências e ali ler de que lado está o bom direito, que a nossa instrução tão secreta’” (Cordero, Guida alla Procedura Penale, pp. 73-74).

35 Kant de Lima, Direitos..., p. 53.36 “A ação penal, nas contravenções, será iniciada com o auto de prisão em fl agrante ou

por meio de portaria expedida pela autoridade judiciária ou policial.”37 “O processo das contravenções terá forma sumária, iniciando-se pelo auto de prisão

em fl agrante ou mediante portaria expedida pela autoridade policial ou pelo juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público.”

38 “O processo dos crimes previstos nos artigos 121, § 3º, e 129, § 6º, do Código Penal, terá o rito sumário estabelecido nos arts. 531 a 538 do Código de Processo Penal.”

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ao Ministério Público, agregada à série de princípios relativos ao devido processo legal nominados entre os direitos e garan-tias individuais (presunção de inocência, ampla defesa, pu-blicidade, duplo grau de jurisdição, vedação da prova ilícita, motivação das decisões, nemo tenetur se detegere), demarcou a opção constitucional por estrutura processual acusatória.

No entanto a manutenção dos dispositivos do Código de Processo Penal que centralizam o processo na fi gura do Juiz, mormente no que tange à gestão da prova, mantém forte traço inquisitório, invertendo a ênfase constitucional de pro-tagonismo das partes.

Assinala Kant de Lima que “embora se diga que este pro-cesso não é conduzido pelo juiz, mas pelo Ministério Público, não caracterizando, assim, um inquérito judicial propriamente dito, a ênfase no papel do juiz é manifesta, seja na iniciativa a ele atribuída de buscar a verdade real, crível além de qualquer dúvida, seja na condução exclusiva do interrogatório do réu, seja na tomada do de-poimento das testemunhas, quando o juiz sempre pode interpretar as respostas dos ouvidos e interrogados ao escrivão, ditando-as ou mandando-as transcrever para registro nos autos.”39

Importante frisar que apesar de a reforma parcial do Código de 2008 ter ampliado as formas de atuação das partes, sobretudo através do questionamento direto, sem interferên-cia judicial, das testemunhas e com a alteração do momento do interrogatório para o fi nal do procedimento, a prevalência do papel do juiz é manifesta, inclusive pela manutenção da gestão judicial da prova.

Ademais, como característica da postura inquisitória, os procedimentos judiciais privilegiam a escrita e a interpreta-ção, diferentemente da oralidade e da literalidade que mar-

39 Kant de Lima, Polícia..., p. 176.

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cam a forma acusatória nos países da common law.40 Conclui José Eduardo Faria, acerca do papel do Magistrado no proces-so brasileiro, que “a conversão dos cartórios judiciais em máqui-nas kafk ianas de fazer transcrições e expedir notifi cações transforma juízes em gestores de escritório emperrados.”41

A sentença fi nal, portanto, que deveria demarcar a re-solução do caso para as partes, representa a manifestação de ato de império, resumindo-se à imposição, através da força legítima, da verdade revelada pelo Estado-Juiz: “o juiz, não mais o Estado, é visto como um ser superior, capaz de formular um julgamento racional, imparcial e neutro, que descubra não só a ‘ver-dade real’ dos fatos, mas as verdadeiras intenções dos agentes.”42

Sequer no julgamento realizado pelos juízes leigos no Tribunal do Júri há a possibilidade de se encontrar a resolu-ção para o caso de forma consensual através do debate, visto ser expressa a proibição do contato (incomunicabilidade) en-tre as pessoas que compõem o Conselho de Sentença43. Aliás, a manifestação do jurado aos demais membros do Conselho de Sentença sobre o conteúdo ou a intenção do seu voto acar-reta na nulidade do julgamento.

A mentalidade inquisitorial é tão marcante na cultura dos operadores da cena jurídica que chega ao ponto de anular

40 “À literalidade e oralidade dos procedimentos judiciais dos EUA, os procedimentos brasileiros apontam para o privilegiamento da escrita e da interpretação” (Kant de Lima, Polícia..., p. 177).

41 Faria, O Sistema..., p. 105.42 Kant de Lima, Polícia..., p. 176. 43 “Art. 466. Antes do sorteio dos membros do Conselho de Sentença, o juiz presidente

esclarecerá sobre os impedimentos, a suspeição e as incompatibilidades constantes dos arts. 448 e 449 deste Código. § 1o O juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, na forma do § 2o do art. 436 deste Código. § 2o A incomunicabilidade será certifi cada nos autos pelo ofi cial de justiça.” (Código de Processo Penal).

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determinadas reformas legislativas. Veja-se, p. ex., a frustra-da tentativa de instituir modelo dialogal de justiça no caso das infrações de menor potencial ofensivo. A Lei 9.099/95, ao criar os Juizados Especiais Criminais, não apenas criou nova modalidade de ilícito na legislação penal brasileira (infrações de menor potencial ofensivo), como impôs a readequação da forma dos atos, projetando sistema eminentemente consen-sual moldado pelos princípios de oralidade, simplicidade, in-formalidade, economia processual e celeridade. O câmbio ob-jetivava, fundamentalmente, facilitar a composição civil entre autor do fato e vítima ou, nos casos de infrações públicas, a transação com o Ministério Público.

A composição civil ou a transação penal seriam institutos diversifi cadores, propostos em audiência preliminar antes do oferecimento formal da acusação. Em caso de acordo, ou seja, havendo decisão consensual entre as partes, o processo penal fi -caria suspenso até o cumprimento das deliberações, extinguindo a punibilidade do fato após o adimplemento da decisão pactu-ada. Na audiência preliminar, a Lei 9.099/05 previa o protago-nismo das partes, ocorrendo a intervenção judicial apenas para fi scalizar a legalidade do acordo e homologar seus termos.

Para além das críticas acerca da ruptura do novo pro-cedimento com o sistema de garantias moldado pela Consti-tuição,44 estudos realizados sobre a Lei 9.099/95 após dez anos

44 Dentre as principais críticas apresentadas, notou-se que o objetivo de ce-leri dade e desburocratização na busca da composição civil e da tran–sação penal, aacabou por romper com a estrutura formal mínima dos procedimentos penais, mesmo aqueles previstos aos ritos sumários. A opção pela simplicidade procedimental gerou total descontrole no que tange à regularidade dos atos, expondo, em inúmeros casos, os autores dos fatos a situações constrangedoras, vista a ausência de mecanismos de controle típicos dos sistemas processuais de garantias. Sobre a incompatibilidade do sistema de justiça penal brasileiro com os mecanismos da conciliação e transação, conferir Carvalho, Considerações sobre as Incongruências da Justiça

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de sua implementação demonstram que a interferência inábil dos atores processuais (Magistrados, Promotores de Justiça, Defensores Públicos e Advogados) obstaculizou a criação de espaço público para mediação de decisões.45 A formação deci-sionista-inquisitorial dos operadores jurídicos, sobretudo dos Juízes, revela sua profunda incapacidade de escuta para apreender as angústias das partes envolvidas na causa, fato que obstacu-liza qualquer possibilidade de mediação razoável de confl itos. Ao contrário, em determinados casos específi cos a intervenção jurídica potencializou o confl ito, ao invés de encontrar sua reso-lução, como nos casos de violência doméstica.46

Embora a conclusão seja eminentemente intuitiva, a tra-dição inquisitória da formação dos atores do processo penal no Brasil proporciona visualizar forte tendência de que a am-pliação da oralidade no procedimento de julgamento dos cri-mes comuns (rito ordinário), instituída pela reforma proces-sual de 2008, seja obstruída através de contrarreforma velada para o reforço da burocracia formal e escrita.

Possível concluir, portanto, que o sistema brasileiro de Justiça criminal opera através de técnicas eminentemente in-

Penal Consensual, pp. 263-284; e, sobretudo, Prado, Elementos para uma Análise Crítica da Transação Penal, pp. 111-220.

45 “Os JECrim, embora não se defi nindo ofi cialmente como tal, pretendem introduzir uma espécie de civilização da lei penal, buscando, mediante a composição e a transação penal, saídas alternativas para as penas de prisão. Entretanto, devido a vários fatores, não sendo de menor importância aqueles ligados à tradição inquisitorial e de aplicação desigual do direito a segmentos distintos da população descritos acima, o tratamento desigual dado às partes em função de seu status social, a ausência de funcionários e de operadores especialmente sensíveis a uma atuação tão díspar daquela encontrada no sistema de justiça criminal tradicional e uma forte ambiguidade com relação à aplicação universal das garantias constitucionais, em especial no que se refere ao emprego da transação penal, estão se evidenciando como prováveis obstáculos à plena realização de seus objetivos explícitos, de desafogar os tribunais e de democratizar-lhes o acesso” (Kant de Lima, Direitos..., p. 56).

46 Neste sentido, conferir Carvalho & Campos, Violência Doméstica e Juizados Especiais Criminais: Análise desde o Feminismo e o Garantismo, pp. 409-422.

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quisitoriais de revelação de verdade, incorporadas na forma-ção cultural dos atores jurídicos. Centralizada na fi gura de autoridade (Juiz ou Delegado), os procedimentos, apesar de distintos – “o inquérito policial enfatiza procedimentos de inqui-rição, o processo judicial enfatiza procedimentos de inquérito, e o tribunal do júri enfatiza procedimentos do sistema de prova legal, ou de justiça divina”47 –, fomentam o enfrentamento entre as partes a partir da imposição da sua verdade sobre o caso, situ-ação que reforça o decisionismo e o protagonismo judicial.

47 Kant de Lima, Polícia..., p. 180.

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7.Os Atores da Persecução

Penal e a Cultura Punitivista Contemporânea

A reforma do sistema de Justiça criminal, das agências que integram as instituições policiais e carcerárias àquelas que compõem as judiciais, é tema de constante investiga-ção nas ciências sociais, sobretudo nas duas últimas déca-das, quando se consolida o processo formal de redemocra-tização brasileiro.

No entanto, se o diagnóstico em outras áreas do sistema de administração da Justiça é o da ocorrência de importantes alterações estruturais – “de um lado, há os estudos que tematizam o sistema de justiça no contexto da democratização e das reformas normativas e institucionais, privilegiando o tratamento dos confl i-tos cíveis e, em geral, diagnosticando rupturas na confi guração das instituições” –, no âmbito criminal percebem-se “(...) difi cul-dades de democratização, a persistência de padrões hierárquicos e obstáculos de atualização das instituições para o enfrentamento da criminalidade no período democrático.”1

O diagnóstico sustenta a hipótese da investigação de que a formação cultural inquisitória dos atores da persecução cri-

1 Sinhorett o, Reforma da Justiça (Estudo de Caso), p. 159.

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minal representa um dos principais obstáculos à reforma e à democratização do sistema punitivo nacional.

O cenário de permanência da mentalidade inquisitória e de resistência das agências de repressão penal ao processo de democratização apresenta-se como terreno fértil para incor-poração do punitivismo, nas políticas institucionais e no agir dos atores que as instrumentalizam. Assim, são estabelecidas condições ótimas de incorporação da ideia de serem legítimas as demandas populistas de necessidade de encarceramento em grande escala.

A impressão inicial, que será objeto de indagação mais apurada na análise qualitativa das decisões penais, é a de que os atores processuais, notadamente a Magistratura – com principal ênfase nos Juízos monocráticos de primeiro grau (Juízes singulares) –, são reticentes em efetivar as mudanças determinadas pela Constituição de 1988, fundamentalmente em razão desta formação inquisitória. Desta forma, a postura conservadora dos atores jurídicos opera como canal de ex-pansão da criminalização (e em especial do encarceramento), quando, conforme os parâmetros constitucionais, seu papel deveria ser o de criar, incrementar ou potencializar fi ltros pro-cessuais de resistência à demanda punitiva.

A mentalidade inquisitória que percebe como legítima a demanda punitiva cria, nos principais momentos processuais – v.g. pedido de prisão cautelar, indiciamento do investigado, ofe-recimento e recebimento da denúncia, sentença e aplicação da pena, incidentes de execução –, importantes espaços de abertu-ra/vazão ao punitivismo. Nestes momentos centrais da atuação dos operadores jurídicos, a opção entre ampliar ou minimizar o poder punitivo é colocada de forma explícita. Ocorre que a formação cultural autoritária dos atores transforma espaços de fechamento em canais de abertura, cujo efeito, sobretudo no mo-

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mento de aplicação judicial da pena, será signifi cativo para o au-mento quantitativo do encarceramento.

Conforme destaca Rodrigo Azevedo, no campo de atua-ção processual penal, ou seja, excluindo a fase preliminar de Inquérito Policial no qual há o protagonismo da Autoridade Policial, os atores do sistema penal que se destacam como agentes de realização da ordem jurídica são o Ministério Público e a Magistratura. Embora seja imprescindível para o funcionamento da Justiça Criminal a presença do Defensor (Público ou Privado), a natureza do seu trabalho é eminente-mente de reação à imputação, com atuação comissiva no sen-tido de anular ou minimizar os efeitos da criminalização ou da punição, mormente com o fato de serem muito restritas as possibilidades de propositura de ação penal privada e de o trabalho de assistência de acusação ser sempre auxiliar e sub-sidiário ao do agente público de acusação. Assim, as possibi-lidades de ampliação ou diminuição dos fi ltros processuais ao punitivismo fi cam, evidentemente, concentradas nas fi guras do acusador e, fundamentalmente, na do julgador.

7.1. As Funções do Ministério Público na Nova Ordem Constitucional e o Perfi l Político-Criminal dos seus Integrantes

O Ministério Público, após a Constituição de 1988, ga-nhou papel de destaque no cenário político nacional. A rees-truturação das suas funções, com a atribuição de novos pa-péis, sobretudo de tutela dos direitos coletivos e transindivi-duais, fortaleceu a instituição, que passou a protagonizar série de demandas em nome da sociedade civil. A titularidade na propositura das ações civis públicas, por exemplo, deslocou parte do debate sobre a implementação de políticas públicas

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do Executivo para o Judiciário, gerando no Brasil fenômeno conhecido como judicialização da política2. Em face do princípio da inércia da jurisdição, é através da iniciativa processual for-mulada pelo Ministério Público que houve a possibilidade de ampliação da interferência judicial nos critérios de defi nição das políticas públicas.

No entanto, apesar de o Ministério Público ter adquiri-do o status de “(...) o mais importante agente da defesa dos di-reitos coletivos pela via judicial, produzindo um alargamento do acesso à justiça no Brasil”3, é possível destacar, conforme indica Arantes, o predomínio de postura corporativa conservadora acerca da política e da sociedade, na qual grande parte dos seus integrantes percebem a instituição como órgão público de tutela da sociedade marcadamente hipossufi ciente.4

2 Neste sentido constata Santos que “num contexto, caracterizado pela crise de legitimação dos poderes executivo e legislativo, de profundas transformações no Estado, na sociedade e na economia, de fortes mutações e do agravamento da criminalidade grave, em especial da corrupção e da criminalidade económica, cada vez mais com conexões internacionais e transfronteiriças, de emergência de novos riscos públicos em domínios vários, do agravamento das desigualdades sociais, de “velhas” e de “novas” violações dos direitos humanos, as sociedades contemporâneas viram-se para os tribunais, conferindo-lhes um papel central no funcionamento e consolidação dos regimes democráticos, seja como órgãos de controlo externo das instituições do Estado e da própria acção governativa, como garantes das liberdades cívicas, da protecção e da efectivação dos direitos sociais e humanos, seja, ainda, como instrumentos de criação de um ambiente de estabilidade e segurança jurídica que facilite o comércio jurídico e o crescimento económico. A expansão do poder judicial para áreas que tradicionalmente se situavam na esfera dos poderes legislativo e executivo é um sinal forte do protagonismo dos tribunais nas sociedades contemporâneas” (Santos, A Justiça Penal: uma Reforma em Avaliação, p. 527).

Sobre o tema da judicialização da política, conferir Faria, Independência..., pp. 23-51; Faria, O Sistema..., pp. 103-125.

3 Azevedo, Direito e Controle Social, p. 62. No mesmo sentido o diagnóstico de que “O Ministério Público, cada vez mais,

vislumbra-se como órgão constitucionalmente encarregado de induzir políticas públicas e catalisar demandas sociais” (Azevedo & Weingartner Neto, Perfi l Socioprofi ssional e Concepções de Política Criminal do Ministério Público Gaúcho, p. 02).

4 Apud Azevedo, Justiça..., p. 103.

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No campo político-criminal, a postura conservadora refl e-tirá, naturalmente, na substancialização da demanda punitiva, através de inúmeras ações pontuais no processo persecutório como, p. ex, aumento na representação por prisões cautelares; propositura indiscriminada de ações penais independentemente da intensidade de lesão ou da qualidade do bem jurídico tutela-do; adoção de política de recursos automáticos em casos de deci-sões favoráveis aos imputados no processo de conhecimento ou aos condenados no de execução entre outras.

Expressiva pesquisa, realizada pela Procuradoria Geral de Justiça em convênio com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre o perfi l político-criminal dos membros do Ministério Público gaúcho,5 comprova as hipóteses ante-riormente apresentadas.

Os Procuradores e os Promotores de Justiça indagados sobre o motivo pelo qual escolheram a carreira do Ministério Público, em escala de prioridades, 57,7% apontaram a crença na função social da instituição, sendo seguida, como segunda opção, além da própria função institucional (20,2%), a atuação no combate à criminalidade, com 30,8% das indicações, e a defe-sa dos direitos difusos e coletivos, com 20,2% de adesão.

Confrontados diretamente sobre as opções político-crimi-nais, 54,4% dos pesquisados identifi caram-se com as políticas de tolerância zero, 26,9% aderiram ao funcionalismo penal. Do total, 8,2% demonstraram-se infl uenciados pelo garantismo penal.

Em relação ao papel do Ministério Público em matéria cri-minal, responderam, em escala de prioridades, em primeira op-ção a tutela dos direitos e garantias individuais (48%), seguida da

5 A pesquisa obteve a participação de 48,5% dos integrantes da instituição, sendo os questionários elaborados pelos pesquisadores respondidos por 331 integrantes do Ministério Público do Rio Grande do Sul (Azevedo & Weingartner Neto, Perfi l..., pp. 01-34).

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opção da busca de elementos para garantir a punição dos acu-sados (44,7%). Como segunda opção, o quadro é invertido, com 46,2% de respostas direcionadas à garantia de elementos para condenação do réu e 33,5% para defesa dos direitos individuais.

No que tange às funções da pena, apresentadas quatro hipóteses, optaram pela prevenção do delito como sentido prioritário da sanção 59,6% dos entrevistados, seguida pelas opções de ressocialização do delinquente (18,2%), retribuição ao delito (17,9%) e reparação do dano (4,5%).

Na análise da legislação e do funcionamento do sistema penal, 83,8% aderiam à afi rmação de que a legislação brasi-leira seria excessivamente branda, com demasiados benefí-cios aos réus e penas muito curtas, situação que difi cultaria a contenção da criminalidade. Em relação à necessidade de ampliar a legislação para tutelar bens jurídicos ameaçados pe-los novos riscos sociais, 82% manifestaram-se favoráveis à ex-pansão do direito penal; e indagados sobre a possibilidade de esta expansão gerar a vulgarização do sistema penal, 62,8% contrariaram a assertiva. Sobre a efi cácia da Lei dos Crimes Hediondos em realizar as metas de prevenção geral e espe-cial, 80,1% concordaram com a afi rmação.

No que diz respeito às questões processuais, a tendência persecutória é revelada com maior vigor: 66,9% manifesta-ram-se favoráveis à ampliação do papel do órgão no Inquérito Policial, inclusive no sentido de coordenar diretamente a ati-vidade de investigação; 94,2% aderiam à ideia de a institui-ção realizar investigações paralelas ou complementares à da Polícia Judiciária; 83,8% foram contrários à possibilidade de contraditório e de ampla defesa no Inquérito Policial; 71,6% demonstraram-se em desacordo com a ampliação do princí-pio da oportunidade da ação penal de forma a criar novas possibilidades de negociação entre acusação e imputado.

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Sobre temas relativos à execução penal notou-se signi-fi cativa resistência às penas restritivas de direito (34,4% em desacordo com a efi cácia das medidas alternativas à prisão, mesmo se ampliadas as formas de fi scalização); e divisão em relação à proposta de uso exclusivo da prisão em casos de prática de crimes graves (53,5% favoráveis ao uso subsidi-ário do cárcere) e à relevância da progressão de regime na individualização da pena (64,5% entendem ser importante o sistema progressivo). Contrariamente, sobre a necessidade dos laudos criminológicos como requisito para progressão de regime, praticamente foi unânime a posição contrária à altera-ção legislativa de substituição da perícia técnica por atestado de boa conduta carcerária (97,6%).

Embora a pesquisa relatada esteja restrita ao Estado do Rio Grande do Sul, apresenta dados signifi cativos sobre o per-fi l político-criminal dos integrantes da instituição Ministério Público e, de forma geral, está em sintonia com os diagnósti-cos apresentados por pesquisas realizadas em âmbito nacio-nal que apontam para “a valorização das práticas exclusivamente retributivas na área penal e a falta de investimento institucional no controle e persecução à violência policial.”6

7.2. As Funções da Magistratura na Persecução Criminal

Inúmeras pesquisas de opinião têm indicado a tendência político-criminal conservadora da Magistratura nacional, so-bretudo em relação aos Juízes de primeiro grau de jurisdição. A adesão integral ou parcial às correntes punitivistas demonstra que a infl uência do populismo punitivo não se restringe apenas

6 Azevedo, Direito..., p. 63.

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à esfera Legislativa, exercendo importante impacto no senso co-mum prático-teórico dos operadores do direito.

O efeito mais evidente é o da permanência da centralidade da pena de prisão em regime fechado como resposta ao delito, apesar da existência de ferramentas infraconstitucionais descarcerizan-tes e de normas constitucionais dirigidas ao deslocamento do carcerário para a margem do sistema de penas no Brasil.

Dados de importante pesquisa, realizada entre os anos de 2005 e 2006 pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), apontam esta forte tendência de a Magistratura agir na potencialização do punitivismo legislativo e na obstaculi-zação dos substitutivos como efetivos instrumentos alterna-tivos à prisão. Na investigação, cerca de 03 mil juízes brasi-leiros, ou seja, 25,1% do total de Magistrados nacionais, res-ponderam questões relativas ao direito do trabalho, ao direito penal, ao direito ambiental, à formação profi ssional e à polí-tica eleitoral, sendo reveladores os dados relativos à questão político-criminal. Rodrigo Collaço, na época Presidente da Associação, ao manifestar-se sobre as conclusões da investi-gação, constatou que “a pesquisa revela que o ambiente extremo de violência que atinge as grandes cidades brasileiras infl uencia o comportamento da magistratura. A categoria coloca-se como protagonista importante do combate à criminalidade e anseia pela instituição de formas mais poderosas para combatê-la, seja por meio de alterações legislativas ou da instrumentalização de procedimentos que possam ser aplicados no combate ao crime. Os magistrados querem o endurecimento da lei penal.”7

Indagados sobre os aspectos que infl uenciam a impu-nidade no país, foram considerados altamente importantes, dentre outros, o excesso de recursos (86,1%), a falta de coo-

7 Collaço, Desenvolvimento: Uma Questão de Justiça, p. 06 (grifou-se).

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peração do Judiciário com as instâncias administrativas de persecução (Polícias e Ministério Público) (70%), a existência de várias instâncias de julgamento (68,1%), a amplitude dos indultos (35,6%), os prazos prescricionais (44,1%), a inexistên-cia de vagas no sistema carcerário (71,9%).8

Ao serem respondidos temas específi cos de política cri-minal, os Magistrados demonstraram-se totalmente favoráveis ou favoráveis à diminuição da idade penal (61%), ao aumen-to do tempo de internação de menores em confl ito com a Lei (75,3%), ao aumento das hipóteses de internação de menores (73,8%), ao aumento do tempo de cumprimento de pena para progressão de regime em crimes graves (89,3%), ao aumento do tempo de cumprimento de pena para livramento condicio-nal (81,5%), à ampliação do sigilo das investigações em crimes graves (84,1%), ao aumento da pena mínima para crimes de tráfi co de drogas (76,8%), à proibição da liberdade provisória, com ou sem fi ança, para crimes de tráfi co de drogas (74,5%), ao aumento de pena para casos de corrupção e improbidade (95,6%), ao aumento do limite máximo de cumprimento de pena privativa de liberdade (69,1%), à privatização do siste-ma carcerário (49,4%), à ampliação das hipóteses de crimes hediondos (50,9%). Em contraparte, e em certo grau de forma contraditória, manifestaram-se totalmente favoráveis ou favo-ráveis9 à ampliação da aplicação das penas alternativas (64,9%) e ao caráter ressocializador da pena criminal (86,4%).

A postura dos juízes brasileiros revelou similar ambiva-lência que acomete o setor político-legislativo, sendo pendula-

8 A metodologia da pesquisa apresentou, para cada indagação, rol de possibilidades nas quais os pesquisados respondiam ser o critério (a) altamente importante, (b) medianamente importante, (c) sem importância ou (d) não possuir o entrevistado opinião sobre o tema.

9 Neste caso, foram apresentados problemas político-criminais aos quais os pesquisados respondiam ser (a) totalmente favoráveis, (b) favoráveis, (c)

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res as posições entre o incremento do punitivismo, a opção des-carcerizadora e a função ressocializadora da pena. No entanto resta clara a atribuição de papel ativo de combate ao crime, em espécie de transmutação da função judicial em função policial.

Mesmo que os pesquisados não atuem na integralidade da área penal10, a pesquisa expõe a postura da Magistratura brasileira sobre os temas, revelando o senso comum teórico e ideológico da categoria em matéria político-criminal. Assim, os dados são relevantes visto possibilitarem diagnosticar o conjunto de regras e metarregras interpretativas que será orientador das decisões judiciais nos casos penais concretos.

A pesquisa quantitativa da Associação dos Magistrados é validada por duas importantes investigações qualitativas reali-zadas pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

O primeiro estudo, desenvolvido em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), analisou processos relativos aos crimes patrimoniais violentos (rou-bos) no Estado de São Paulo. O estudo apresentou como obje-to de pesquisa os casos em que houve sentença condenatória com interposição de recurso de apelação ao (extinto) Tribunal de Alçada Criminal (TACRIM-SP). Foram analisados 6.530 processos, com data de julgamento entre 01.01.99 e 31.12.00.

Os crimes patrimoniais violentos, sobretudo nos grandes centros urbanos, representam parte signifi cativa da popula-ção carcerária nacional. Conforme exposto, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, a atual população masculina nacional encarcerada em decorrência da imputação

indiferente, (d) contrário, (e) totalmente contrário ou (f) sem opinião sobre a proposta.

10 A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) reúne todos os integrantes do Poder Judiciário nacional, independente da esfera de atuação. Assim, as questões não revelam a posição específi ca dos juízes criminais, mas de parte representativa da classe, visto que praticamente a integralidade é associada.

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dos crimes de roubo (simples e qualifi cado) é de 114.907 pes-soas, correspondendo a 24,46% dos presos. Entre as mulheres a proporção é menor, mas de igual forma relevante, signifi -cando 10,93% do universo feminino encarcerado. Outrossim, a pesquisa é relevante pois a população carcerária do Estado de São Paulo é a maior do país, com aproximadamente 40% do total de presos.

O problema que motivou a investigação foi a constatação de que nas sentenças condenatórias em que a pena foi fi xada no mínimo legal (77,19%), o regime fechado imposto foi, em expressiva maioria, o fechado – em primeiro grau de jurisdi-ção: 80,75% dos casos para primários e 97,6% para reinciden-tes; em segundo grau 69,85% para primários e 98,65% para reincidentes. Ocorre que a Lei penal defi ne que para as penas aplicadas entre 04 e 08 anos o regime inicial de cumprimento será o semiaberto, facultando o regime fechado apenas nos casos de reincidência.

A distorção percebida na pesquisa, evidentemente no caso de réus primários, foi a de que ao fi xar a pena no míni-mo legal, seguindo consolidada doutrina e jurisprudência, to-das as circunstâncias judiciais presentes no art. 59 do Código Penal (culpabilidade, antecedentes, motivos, personalidade, conduta social, consequências e circunstâncias do crime, com-portamento da vítima) eram consideradas favoráveis. No en-tanto, ao ser defi nido o regime de cumprimento, a argumen-tação judicial se alterava, sendo cominada qualidade de pena mais grave do que a prevista no Código, isto é, era fi xado regime fechado ao invés do regime semiaberto. Importante referir que, em se tratando de reincidentes, o Código faculta a aplicação do regime inicial fechado, fato relevante em face

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do escasso número de decisões favoráveis no que tange ao regime para os réus com antecedentes criminais.

As justifi cativas judiciais para determinação de regime fechado de encarceramento, segundo indicam os investigado-res, variam entre valorações negativas da gravidade do delito (60,83%), periculosidade do agente (56,86%), defesa da socieda-de e prevenção do crime (42%) – motivações não excludentes.

A conclusão da pesquisa é a de que para além das barrei-ras legais, das orientações doutrinárias e da consolidação da jurisprudência, os integrantes do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, a partir de dupla valoração (bis in idem) de cir-cunstâncias idênticas (a gravidade do delito nos crimes de roubo é elementar do tipo) e de adoção de metarregras inter-pretativas (periculosidade, defesa social e prevenção do crime – circunstâncias não previstas na sistemática da aplicação da pena no Código Penal), fi xavam regime de pena mais grave do que o cominado legislativamente, violando signifi cativa-mente o Código Penal e a Constituição.

Na sequência de estudos sobre os operadores do sis-tema de justiça criminal paulistano, em 2007 o Núcleo de Pesquisa do IBCCrim publicou Visões de Política Criminal entre Operadores da Justiça Criminal de São Paulo.

A partir do mapeamento das inúmeras vertentes con-temporâneas de política criminal, foi realizada série de entre-vistas semiestruturadas com Defensores Públicos e Juízes11 do Complexo Jurídico Mário Guimarães, onde está localizado o

11 Segundo relatado na pesquisa, houve recusa em blocos dos promotores de justiça atuantes no local em razão de alegada parcialidade do IBCCrim. Segundo o argumento apresentado pelos membros da instituição, a parcialidade do Instituto decorreria de sua associação com os movimentos de direitos humanos e pelo fato de ser integrado por juristas contrários à expansão do direito penal e por defensores com práticas garantistas (IBCCrim, Visões..., p. 04).

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Fórum da capital paulista que centraliza as 34 Varas Criminais de primeiro grau de jurisdição. Na época atuavam no local 111 Juízes, cerca de 80 Promotores de Justiça, 27 Defensores Públicos e 67 Procuradores do Estado.

As posições político-criminais foram classifi cadas em quatro grupos ou correntes: a primeira incluiu as posições abolicionistas, minimalistas e garantistas, baseadas na residu-alidade da legislação penal; a segunda indicou o garantismo e o minimalismo no sentido de reforço das agências de controle penal para o aumento da efi cácia do sistema; a terceira, além de enfatizar a necessidade de reforçar as instituições, inseriu propostas de expansão do direito penal para tutela de novos bens jurídicos e o aumento de penas, mantendo, contudo, o sistema de garantias; a quarta exporia tendências próximas aos movimentos de lei e ordem, defesa social e gestão penal da sociedade, com preponderância do interesse estatal e dos valores sociais em detrimento da proteção individual.12

Segundo os investigadores, apesar de as posições extre-mas serem facilmente identifi cadas, o principal resultado da pesquisa foi “(...) a confi rmação de que há, entre os operadores da justiça criminal, uma zona de consenso, um centro político-crimi-nal, caracterizado pelo reconhecimento comum da necessidade de reforço das capacidades institucionais e da importância do sistema de garantias individuais, diferindo, contudo, quanto à efi cácia da expansão da tutela penal e ao sentido (repressivo, contra-repressivo ou preventivo) do aumento do reforço institucional.”13

Contudo a tendência geral de os atores judiciais apre-sentarem nas respostas de identifi cação direta opção por correntes político-criminais intermediárias acabou sen-

12 IBCCrim, Visões..., pp. 15-16.13 IBCCrim, Visões..., p. 16.

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do diluída nas questões específi cas, inclusive entre os Defensores Públicos que, em geral, adotariam naturalmen-te a postura garantista em oposição às posições de reforço e de ampliação do papel do Estado advogadas pelos mem-bros do Ministério Público.

Conforme o levantamento de dados, os Juízes entrevis-tados demonstraram tendência “a ser mais ‘rigorosos’ na defesa de estratégias de política criminal baseadas na penalização/crimina-lização de condutas, quando concordam, no todo ou em parte, que a legislação penal é excessivamente branda, difi cultando a contenção da criminalidade (61,9% dos respondentes), e que o direito penal deve expandir seu campo de abrangência para novos bens jurídicos ameaçados, cuidando de novos riscos sociais (85,4% dos responden-tes), referendando assim posições de governo penal da sociedade, seja pela sua matriz punitivista mais clássica (defesa social), seja em suas atualizações pelas doutrinas penais do risco.”14

Em conclusão, interessante notar que o conteúdo de am-bas as pesquisas reforçou o papel dos Tribunais Superiores na defesa da Constituição e na inibição do punitivismo.

Possível perceber, nos últimos anos, sobretudo pelos es-paços de destaque na imprensa nacional, a importância do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça na limitação da tendência punitivista da jurisdição penal de primeiro grau. A diferença entre as formas de atuação pare-ce ser infl uenciada pela formação política das Cortes, com abertura às demais carreiras jurídicas através da indicação de membros do Ministério Público e da Ordem dos Advogados para composição dos colegiados de julgamento. Outrossim, o

14 IBCCrim, Visões..., p. 25.

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distanciamento do confl ito tende a ser outro importante ele-mento de análise.

No entanto cabe alertar que tais hipóteses apenas apon-tam tendências ou situações episódicas, fato que não compro-va serem efetivamente as Cortes Superiores menos punitivis-tas que a Magistratura de primeiro grau.

A investigação empírica e a análise dos discursos judi-ciais dos Tribunais Supremo e Superior sobre os critérios de fundamentação da aplicação da pena, objeto de análise na segunda parte deste estudo, serão importantes indicadores e instrumentos privilegiados para realizar este diagnóstico.

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PARTE IIAplicação da Pena

e Punitivismo no Brasil(Experimento e

Estudo de Casos)

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8.Aplicação Judicial da Pena

no Brasil: Tema, Problema e Procedimento Metodológico

da Investigação

A tradição inquisitorial que modelou a cultura dos ope-radores do direito no Brasil se consolida, na atualidade, a partir da signifi cante aproximação com os discursos político--criminais punitivistas.

Dentre os inúmeros atores que compõem a cena judicial brasileira, a Magistratura criminal adquire importante papel em razão da possibilidade de defi nição, no caso concreto, dos rumos da política criminal. Conforme destacado anterior-mente, qualquer proposta político-criminal, de natureza ga-rantista ou inquisitiva, não subsiste sem a concretização dos seus postulados pelos atores judiciais.

A atuação da Magistratura, na resistência ou na adesão aos discursos punitivistas, será, portanto, fundamental para diagnosticar o estado da arte político-criminal. Outrossim, dentre os inúmeros momentos de intervenção judicial que possibilitam estabelecer fi ltros ao punitivismo, a aplicação da pena, como etapa fi nal da sentença penal condenatória, tem destacado papel.

O destaque, porém, não diz respeito apenas ao fato de a sentença fi xar a quantidade de pena ao caso penal judicializa-

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do, situação que permitiria quantifi car o volume de condena-ções e estabelecer o tempo médio de condenação para as prin-cipais condutas puníveis no Brasil. Além disso, a argumenta-ção judicial na aplicação da pena revela-se como importante instrumento de análise em razão das seguintes circunstâncias:

(a) a legislação brasileira defi nir, como pena de refe-rência, a pena de prisão, ou seja, mesmo nos casos em que há possibilidade de aplicar pena diversa da privativa de liberdade o ordenamento jurídico impõe ao Magistrado o dever de analisar o caso concreto, aplicar a pena de prisão e, posteriormen-te, substituir pela pena alternativa;

(b) o sistema de penas no Brasil adotar critérios de quantifi cação variável entre mínimos e máximos, cabendo ao juiz, no caso concreto, individualizar a quantidade de pena a partir da análise fundamen-tada das circunstâncias impostas em lei;

(c) as circunstâncias de análise judicial para dosime-tria da pena serem caracterizadas, em sua maioria, pela tipicidade aberta, ampliando o poder discri-cionário do Magistrado; e

(d) a qualidade da pena, isto é, a forma de execução da sanção, ser determinada pelo juiz, na sentença penal, após o cálculo da quantidade de pena.

Desta forma, um dos principais mecanismos de avaliação da adesão ou da resistência dos atores judiciais ao punitivis-mo encontra-se na interpretação dos critérios judiciais da de-fi nição da pena na sentença penal condenatória. Os critérios e os argumentos utilizados para justifi car a quantidade e a qua-lidade das penas sinalizam como estão sendo preenchidos os

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espaços legais e quais as formas de controle democrático da decisão judicial no campo do direito e do processo penal.

Para realizar a análise proposta, a primeira etapa da pesquisa foi a de sistematização de material doutrinário e ju-risprudencial relativo à aplicação das penas no Brasil, desde os seguintes campos de análise: Direito Penal: análise doutri-nária e jurisprudencial dos critérios de aplicação da pena; e Direito Processual Penal: análise doutrinária e jurispruden-cial dos limites e controles processuais à aplicação da pena (requisitos e fundamentos da sentença penal).

A sistematização do material foi realizada de modo a permitir o diagnóstico sobre (a) os critérios de aplicação da pena no Brasil, mormente da pena privativa de liberdade, (b) as for-mas de controle da atividade judicial e, fi nalmente, (c) as alterna-tivas possíveis presentes na legislação brasileira.

A partir da perspectiva fi xada nos campos de análise refe-ridos, o procedimento metodológico foi delimitado do seguin-te modo: (a) levantamento e sistematização de doutrina acerca da aplicação das penas; e (b) levantamento e sistematização de jurisprudência relativa ao tema junto aos Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça).1

Defi nido o caminho metodológico, a pesquisa se desdo-brou nas seguintes etapas:

(a) Fase 01: sistematização dos referenciais bibliográ-fi cos atualizados na doutrina nacional (2000-2008).

1 A criação do banco de dados e a posterior análise qualitativa dos julgados foram realizadas conjuntamente com o desenvolvimento de pesquisa fi -nanciada pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ), através do Projeto Pensando o Direito.

Outras versões parciais do trabalho apresentado nesta segunda parte foram publicadas em Carvalho et al., Notas sobre os Critérios de Aplicação da Pena no Brasil: Síntese da Análise Doutrinária e Jurisprudencial da Conveniência da

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O levantamento objetivou analisar o estado da arte da matéria no Brasil e verifi car se houve alterações signifi cativas da doutrina a respeito da aplicação judicial da pena.

(b) Fase 02: sistematização da jurisprudência nacional atualizada (janeiro-julho de 2008) nos Tribunais Superiores. O levantamento objetivou analisar os referenciais judiciais sobre a matéria e verifi car se houve alterações signifi cativas da jurisprudência a respeito da aplicação da pena.

8.1. Referenciais Bibliográfi cos (Fase 01)

O levantamento da bibliografi a nacional foi restrito ao período 2000 a 2008 e originalmente limitado à palavra-chave ‘aplicação da pena’. Objetivou analisar se houve signifi cativa mudança da doutrina na concepção tradicional sobre a apli-cação judicial da pena.

No desenvolvimento da pesquisa houve necessidade de harmonizar os referenciais do direito penal sobre a defi nição da pena com as formas processuais de limitação e controle da atividade judicial. Assim, seguindo o projetado para a análise jurisprudencial, ao tema ‘aplicação da pena’ foram agregadas as palavras-chaves ‘fundamentação da pena’, ‘motivação da pena’, ‘dosimetria da pena’, ‘cálculo da pena’ e ‘sentença cri-minal’, vinculando a sanção à forma de motivação exigida aos juízes no momento da sentença criminal.

Determinação da Pena Mínima, pp. 363-392 e Carvalho et al, Dos Critérios de Aplicação da Pena no Brasil: Análise Doutrinária e Jurisprudencial da Conveniência da Determinação da Pena Mínima, pp. 01-118.

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Foram levantados trabalhos gerais, específi cos e que, de alguma forma, tangenciam o tema. O levantamento foi con-cluído e está exposto na bibliografi a fi nal do trabalho.

8.2. Levantamento Jurisprudencial (Fase 02)

A sistematização da jurisprudência nacional, delimitada entre os meses de janeiro a julho de 2008, foi alterada ao longo do levantamento.

No primeiro momento foram estabelecidos critérios de pesquisa no âmbito do direito penal e do direito processual penal a partir de palavras-chave que seriam os indicadores para eleição dos julgados. Foram escolhidas inicialmente, na área penal e processual penal, duas palavras-chave: ‘aplica-ção da pena’ e ‘fundamentação da pena’.

Posteriormente, sentiu-se necessidade de ampliar os cri-térios de busca englobando: ‘dosimetria da pena’, cálculo da pena’, ‘pena-base’, ‘circunstâncias judiciais’, ‘pena mínima’, ‘pena abaixo/aquém do mínimo’, ‘súmula 231’, ‘motivação da pena’, ‘proporcionalidade da pena’, ‘nulidade da aplicação da pena’, ‘atenuantes’, ‘agravantes’, ‘periculosidade’, ‘culpa-bilidade’, ‘antecedentes’, ‘conduta social’, ‘personalidade do agente’, ‘motivos do crime’, ‘circunstâncias do crime’, ‘com-portamento da vítima’, ‘consequências do crime’, ‘mínimo le-gal’ e ‘pena acima do mínimo’. Com o aumento dos critérios de busca foram totalizadas 25 palavras-chaves para a realiza-ção da pesquisa jurisprudencial.

Neste segundo momento houve limitação da pesquisa anteriormente prevista. A ideia do projeto seria a de levanta-mento e sistematização de jurisprudência sobre o tema junto ao Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e os principais Tribunais de Justiça dos Estados e Tribunais Re-

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gionais Federais. Ocorre que mesmo limitando-a no primeiro semestre de 2008, com a ampliação dos critérios de seleção tornou-se inexequível pesquisa fora do âmbito do STF e do STJ. Assim, em face de o STJ ser o sistematizador da jurispru-dência nacional e o STF o regulador/controlador da constitu-cionalidade, optou-se por restringir a pesquisa nestas cortes, mais especifi camente nas 1ª e 2ª Turmas do STF e 5ª e 6ª Tur-mas do STJ, responsáveis por julgar as matérias criminais.

Cumpre salientar que as buscas fi xadas inicialmente em 02 (duas) e posteriormente em 25 (vinte e cinco) palavras- chave foram realizadas nos sítios virtuais dos Tribunais com o uso de aspas, vislumbrando circunscrever os resultados à expressão.

As buscas ocorreram nos espaços virtuais dos Tribunais e os documentos obtidos (inteiro teor da decisão) foram sal-vos em banco de dados em arquivos no formato “pdf” ou “doc”, respeitando a seguinte regra de nomenclatura: sigla do recurso/número do processo/estado da federação (p. ex.: RESP 896874-RS) – e armazenados em pastas correspondentes à respectiva palavra-chave (p. ex.: ‘dosimetria da pena’).

Por fi m foi criada a pasta ‘resultados’, em que foram de-positados todos os documentos, eliminando-se aqueles que se repetiram ao longo da coleta dos dados.

Importante destacar que todo processo de levantamento de dados foi realizado com base no problema de pesquisa, delimi-tado do seguinte modo: quais as circunstâncias de aplicação da pena que mais infl uenciam o juiz e quais os critérios que impedem sua aplica-ção no mínimo ou abaixo do mínimo fi xado pelo Legislador.

Realizado o levantamento foi iniciada a análise da juris-prudência nacional. Assim, o estudo do acervo (banco de da-dos) passou por duas etapas distintas: (a) análise quantitativa do material a partir das palavras-chaves preestabelecidas; e, posteriormente, (b) análise qualitativa dos julgados.

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A primeira etapa correspondeu ao levantamento dos dados brutos a partir dos elementos de busca defi nidos pelo problema de pesquisa. A partir de sistematização do material integral foi possível estabelecer critérios de seleção e a fi ltra-gem dos dados para análise qualitativa.

O levantamento inicial capturou centenas de julgados, grande parte deles repetidos pela incidência de mais de uma palavra-chave por resultado ou porque o material colhido se encontrava vinculado a outras áreas do direito – direito ad-ministrativo (p. ex., palavra-chave agravante, vinculada ao polo ativo recursal), direito trabalhista (p. ex. palavra-chave periculosidade, vinculada ao ambiente de trabalho), direito juvenil (p. ex. inúmeras referências similares de atos infra-cionais) entre outras – distintas do objeto central ‘critérios de aplicação da pena’. Foram somados, nas primeiras buscas, 181 resultados no Supremo Tribunal Federal (STF) e 1.365 no Superior Tribunal de Justiça (STJ) – v.g. análise apenas da área do direito penal, a partir de todas as palavras-chave, excetua-dos os demais campos, com acórdãos repetidos.

O primeiro passo após a coleta deste material bruto foi se-lecionar e fi ltrar os julgados. A fi ltragem ocorreu, portanto, com a limitação da matéria no direito penal e processual penal, ex-cluindo, inclusive, matéria relativa à execução penal, visto ser etapa posterior à aplicação da pena – p. ex. palavras- chaves co-muns à aplicação, mas vinculadas aos incidentes de execução.

Neste segundo fi ltro foram selecionados 108 julgados do Supremo Tribunal Federal e 621 do Superior Tribunal de Justiça – v.g. análise da área do direito penal, excetuando acórdãos repetidos. Filtrados os acórdãos relacionados espe-cifi camente com o objeto de investigação (aplicação judicial da pena e critérios de cominação), foi aplicado critério de cor-te para análise quantitativa-qualitativa.

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8.3. Critérios de Corte do Número Total de Acórdãos: Metodologia, Objetivos e Dados de Análise

As jurisprudências selecionadas no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça necessitaram ser fi l-tradas por uma série de circunstâncias.

Ademais dos critérios de corte expostos, nas duas primeiras seleções foram incorporados julgados por palavras-chave. O re-sultado foi a inserção de recursos ou de ações que estavam fora do parâmetro estabelecido na pesquisa, como Agravos Regimentais ou Embargos – p. ex., no Supremo Tribunal Federal foram exclu-ídos 13 julgados com incidência na palavra-chave ‘agravantes’, que, por se tratarem de Agravos Regimentais, ingressaram na seleção inicial em decorrência do termo ‘agravante(s)’ que quali-fi cava os proponentes do recurso.

Houve incidência de grande porte, mas que foi excluída para a análise qualitativa, de Habeas Corpus ou Agravos interpos-tos em questões como análise de critérios de prisões cautelares (prisão preventiva, temporária ou provisória), aplicação do prin-cípio da insignifi cância, nulidade de sentença e questões relati-vas à execução da pena (p. ex., progressão de regime, livramento condicional, regressão, detração e remição). No âmbito do STF, p. ex., foram excluídos 33 julgados com incidência nos termos ‘aplicação da pena’, ‘culpabilidade’, ‘circunstâncias judiciais’ e ‘antecedentes’ por incurso nas questões acima expostas, sobretu-do prisões preventivas, havendo, ainda, exclusão de um Recurso Extraordinário que abordava tema relativo ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda foi excluído um processo de extradição, no qual constou o termo ‘culpabilidade do extraditando’.

Na busca pelo critério ‘cálculo da pena’, dois Habeas Corpus selecionados no STF foram eliminados por tratarem de vícios processuais e nulidade da sentença condenatória – falta

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de motivação no juízo e não na aplicação da pena –, assuntos não tratados na pesquisa.

Por fi m, ainda no âmbito do Supremo Tribunal, todos os ar-quivos capturados com a palavra-chave ‘periculosidade’ foram excluídos: 02 por serem Agravos Regimentais sobre questões tra-balhistas e 01 Agravo Regimental no Recurso Extraordinário sobre o mesmo assunto. Ademais, o termo envolveu questões como pro-gressão de regime e, sobretudo, Habeas Corpus em temas cautelares (prisão preventiva), de tipicidade (princípio da insignifi cância) e de nulidades (condenação indevidamente fundamentada).

Os mesmos fi ltros expostos acima foram aplicados no Superior Tribunal de Justiça.

Outrossim, de forma a densifi car a pesquisa na análise de discurso para procurar compreender os critérios judiciais de valoração das circunstâncias de aumento e de diminuição de pena, foi estabelecido critério de corte dos dados selecionados como ideais (julgados de referência). Isto porque o objetivo da análise qualitativa é apontar os elementos mais signifi cativos das decisões de cada instância de julgamento, sobretudo STF, 5ª Turma do STJ e 6ª Turma do STJ.

O direcionamento da pesquisa buscou estabelecer critério acerca das decisões mais rotineiras, dados que permitam indicar a tendência de cada esfera de julgamento acerca da aplicação da sanção penal e os efeitos (positivos ou negativos) sobre a pena. Ademais, procura indicar quais decisões que fogem do padrão ou, inclusive, se eventualmente não há padrão único, mas altera-ção nos julgados a partir de variáveis determinadas ou indeter-minadas (p. ex., tipo de crime, Relator, Corte etc.).

Neste sentido, foi elaborado instrumento no qual se pro-cedeu ao preenchimento de formulário para cada decisão, apontando as circunstâncias que mais interessavam do ponto de vista dos objetivos da pesquisa.

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A partir deste mapa quantitativo restou viável a análise quali-tativa, selecionando, a partir da tabulação dos dados do formulário, alguns acórdãos representativos de cada tipo de decisão. Somente com o preenchimento do formulário foi possível ter ideia do con-junto geral do material coletado no banco de dados.

Procurou-se, igualmente, estabelecer análises distintas conforme as instâncias de julgamento, o que tornou a diferen-ça da quantidade das decisões até certo ponto irrelevante e de pouca infl uência no resultado geral.

Optou-se, pois, em face da impossibilidade de aplicação do instrumento em todo material coletado, por trabalhar com amostra proporcional de cada esfera de julgamento, elimi-nando 50% do material a partir da eleição dos acórdãos por data de julgamento, realizando avaliação cronológica de um acórdão analisado para cada excluído.

O universo fi nal de análise pode ser assim representado:

Tabela 07Mapa da Pesquisa Qualitativa dos Julgados

Supremo Tribunal Federal – STFTotal de decisões selecionadas 181Resultado discriminado (Excluídos os acórdãos repetidos) 108Acórdãos que tratam especifi camente da aplicaçãoda pena (Seleção e fi ltragem) 48Acórdãos Analisados 27

Superior Tribunal de Justiça – STJTotal de decisões selecionadas 1.365Resultado discriminado (Excluídos os acórdãos repetidos) 621Acórdãos que tratam especifi camente da aplicação da pena (Seleção e fi ltragem) 247Acórdãos Analisados 148

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

Importante, antes de ingressar na análise qualitativa, apontar alguns dados quantitativos preliminares, notada-mente os tipos de crimes julgados e a média das penas aplica-das, a partir dos acórdãos selecionados – 27 acórdãos no STF e 148 no STJ, no total de 175 julgados analisados.

Em termos gerais, a quantifi cação das penas defi nitivas em relação à pena mínima fi cou representada da seguinte forma: (a) pena aplicada aquém do mínimo (8,47%); (b) pena aplicada no mínimo (10,16%); (c) pena aplicada acima do mí-nimo (68,36%); (d) sem referência (12,99%).

Gráfi co 10Classifi cação dos Julgados conforme Cominação da Pena

15 18

121

23

020406080100120140

Abaixo do Mínimo Mínimo Acima do Mínimo Não Menciona

Relevante salientar que a diferença entre o número de acórdãos selecionados para pesquisa (175) e a quantidade de penas expostas no gráfi co acima (177) ocorreu em face de existência, em dois julgados, de concurso de pessoas (art. 29, Código Penal), havendo, nestes dois acórdãos dois processos distintos de aplicaçção da pena.

De igual forma esta representação exposta no Gráfi co 10 é indicativa da pena fi nal (defi nitiva) aplicada, isto por-que nas Cortes Superiores, diferentemente do que ocorre em

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Tribunais isolados, sobretudo o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), não se concebe aplicação de pena-base ou provisória aquém do mínimo. A existência de sanção do-sada abaixo do mínimo decorre da incidência, na terceira fase, de circunstância especial de diminuição de pena ou minoran-te, conforme será demonstrado ao longo da pesquisa.

Quanto aos tipos de crimes analisados, é possível expor da seguinte forma o universo de análise, divididos por Corte:

Tabela 08Espécies de Crime Julgados pelo STF

Concussão (Art. 316 do Código Penal) 1Crime contra a Ordem Tributária(Art. 3, II, da Lei 8.137/90) 1

Extorsão (Art. 188, § 1, do Código Penal) 1Furto Qualifi cado (Art. 155, § 4, IV, do Código Penal) 5Furto Simples (Art. 155 do Código Penal) 1Homicídio Qualifi cado (Art. 205, § 1 e 2, IV do CódigoPenal Militar) 1Homicídio Qualifi cado Tentado (Art. 121, § 2, c/c o art.14,II do Código Penal) 1Homicídio simples (Art. 121 do Código Penal) 1Latrocínio (Art. 155, § 3, do Código Penal) 1Peculato (Art. 312 do Código Penal) 1Porte Ilegal de Arma de Uso Permitido (Art. 14 daLei 10.826/03) 2Porte Ilegal de Arma de Uso Restrito/Proibido cometidopor Servidor Público (Art. 10, § 2 e 4 da Lei 9.437/97) 1Quadrilha ou Bando (Art. 288, do Código Penal) 2Roubo Qualifi cado (Art. 157, § 2, do Código Penal) 6Roubo Simples (Art. 157 do Código Penal) 2Tráfi co de Drogas – Associação (Art. 14 da Lei 6.368/76) 2Tráfi co de Drogas (Art. 12 da Lei 6.368/76) 2Total 31

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Tabela 09Espécies de Crime Julgados pelo STJ

Adulteração de Sinal Identifi cador de Veículo Automotor (Art. 311 do Código Penal) 2

Apropriação Indébita (Art. 168 do Código Penal) 3

Apropriação Indébita Previdenciária (art. 168A do Código Penal) 4

Atentado Violento ao Pudor (Art. 214 do Código Penal) 3Comunicação Falsa de Crime (Art. 340 do Código Penal) 1Concussão (Art. 316 do Código Penal) 2Contrabando ou Descaminho (Art. 334 do Código Penal) 1Corrupção Ativa (Art. 333 do Código Penal) 1Corrupção de Menores (Art. 1º da Lei 2252/54) 1

Crime Contra a Administração Pública (Art. 50 da Lei 6766/79) 1

Crime Contra a Ordem Econômica (Art. 4°, da Lei 8137/90) 1

Crime Contra a Ordem Tributária (Art. 1° e 2° da Lei 8137.90) 1

Crimes contra o Meio Ambiente (Art. 46, § único da Lei 9605/98) 1

Desacato (Art. 331 do Código Penal) 1Dispensar Licitações (Art. 89 da Lei 8666/93) 1Estelionato (Art. 171 do Código Penal) 6Estelionato Tentado (Art. 171, caput, c/c o art. 14, II do Código Penal) 2

Estupro (Art. 213 do Código Penal) 3Evasão de Divisas (Art. 22 da Lei 7492/90) 2

Falsidade Ideológica (Art. 299 do Código Penal) 3

Falsifi cação de Documento Público (Art. 297 do Código Penal) 1

Fraude a Licitações (Art. 90 da Lei 8666/93) 1Furto (Art. 155, caput, do Código Penal) 4Furto Qualifi cado (Art. 155, § 4° do Código Penal) 7

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Furto Qualifi cado Tentado (Art. 155, § 4°, c/c art. 14, II do Código Penal) 1

Furto Simples Tentado (Art. 155, c/c art. 14, II do Código Penal) 3

Homicídio Culposo (Art. 121, § 3° do Código Penal) 1Homicídio Culposo no Trânsito (Art. 302 da Lei 9503/93) 2Homicídio Qualifi cado (Art. 121, § 2° do Código Penal) 12

Homicídio Simples (Art. 121, caput do Código Penal) 2Homicídio Simples Tentado (Art. 121, caput, c/c art. 14, II do Código Penal) 1

Incêndio (Art. 250, I do Código Penal) 1Injúria Qualifi cada (Art. 140, § 3° do Código Penal) 1Latrocínio (Art. 157, § 3° do Código Penal) 4

Lesão Corporal de Natureza Grave (Art. 129, § 2° do Código Penal) 1

Lesão Corporal de Natureza Leve (Art. 129, § 1° do Código Penal) 1

Ocultação de Cadáver (Art. 211 do Código Penal) 2Peculato (Art. 312 do Código Penal) 1Porte Ilegal de Arma de Uso Permitido (Art. 14 da Lei 10826 ou Art. 10 da Lei 9437/97) 5

Posse ou Porte Ilegal de Arma de Fogo de Uso Restrito (Art. 16 da Lei 10826/03) 2

Quadrilha ou Bando (Art. 288 do Código Penal) 2Receptação (Art. 180, caput do Código Penal) 4Receptação Qualifi cada (Art. 180, § 1° do Código Penal) 2Resistência (Art. 329 do Código Penal) 1Roubo Qualifi cado (Art. 157, § 2° do Código Penal) 35Roubo Simples (Art. 157 do Código Penal) 4

Roubo Tentado (Art. 157, caput, c/c o art. 14, II do Código Penal) 3

Sequestro e Cárcere Privado (Art. 148 do Código Penal) 2

Subtração de Livro ou documento (Art. 338 do Código Penal) 1

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Tráfi co de Drogas (Art. 12, caput da Lei 6368/76 ou Art. 33 da Lei 11343/06) 16

Tráfi co de Drogas - Associação (Art. 12, caput, c/c art. 14 ou art. 18, I da Lei 6368/76) 11

Uso de Documento Falso (Art. 304 do Código Penal) 3

Utilizar-se de Bens, Rendas ou Serviços Públicos (Art. 1° do Dec. Lei 201/67) 4

Não Menciona 1Total 182

Frise-se, novamente, que eventuais confl itos entre o uni-verso de acórdãos e os tipos de crime decorrem da presença de concurso de agentes (art. 29, Código Penal) ou concurso de delitos (art. 69, Código Penal).

Em relação à média de penas (quantidade de tempo) impos-tas pelas Cortes, foi constatado, dos dados colhidos na pesquisa qualitativa, que o STF, dos 27 acórdãos analisados: em 04 deci-sões (14,81%) aplicou pena até 02 anos de reclusão, em 03 acór-dãos (11,11%) entre 02 e 04 anos, em 10 casos (37,04%) penas acima de 04 e inferior a 08 anos de prisão, em 05 oportunidades (18,52%) penas acima de 08 anos e em 05 casos (18,52%) dos jul-gados não faziam referência à quantidade fi nal imposta.

Gráfi co 11Média de Tempo de Pena Imposta – STF

14,81%

37,04%

18,52%

18,52%

11,11% Até 02 Anos

02 a 04 Anos

04 a 08 Anos

Acima de 08 Anos

Sem Referência

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Em relação ao STJ, os números globais podem ser expres-sos da seguinte forma (158 acórdãos avaliados): 33 casos de penas aplicadas até 02 anos (20,50%); 37 julgados com penas aplicadas entre 02 e 04 anos (22,98%); 41 processos com pena fi nal acima de 04 e não superior a 08 anos (25,47%); 20 acima de 08 anos (12,42%) e 30 casos sem referência à sanção fi nal (18,63%). Desdobrados os números por Turma, fi nalizam no seguinte cálculo: (a) 5ª Turma (104 processos) – 19 casos com penas aplicadas até 02 anos (18,26%); 18 processos com penas entre 02 e 04 anos (17,30%); 31 julgados com pena fi nal acima de 04 e não superior a 08 anos (29,80%); 12 casos acima de 08 anos (11,53%) e 24 sem referência à sanção fi nal (23,07%); e (b) 6ª Turma (57 decisões) – 14 julgados com penas até 02 anos (24,56%); 19 processos com penas entre 02 e 04 anos (33,33%); 10 decisões com pena fi nal acima de 04 e não superior a 08 anos (17,54%); 08 sentenças acima de 08 anos (14,03%) e 06 casos sem referência à sanção fi nal (10,52%).

Gráfi co 12Média de Tempo de Pena Imposta – STJ

20,50%

22,98%

25,47%

12,42%

18,63%

Até 02 Anos

02 a 04 Anos

04 a 08 Anos

Acima de 08 Anos

Sem Referência

Realizados os primeiros cruzamentos das informa-ções, a pesquisa procurou avaliar de forma global a apli-cação da quantidade de pena por fase (método trifásico

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do art. 68 do Código Penal), desde os critérios anterior-mente analisados: pena aquém do mínimo, pena no mí-nimo e pena acima do mínimo.

Importante dizer que aplicação de pena aquém do mí-nimo é absolutamente possível no Brasil. A estrutura de aplicação da quantidade de pena é dividida em três etapas, conforme estabelece o art. 68 do Código Penal2, denominadas pena-base, provisória e defi nitiva. E segundo as regras pretoria-nas, está o juiz limitado ao mínimo apenas nas duas primeiras etapas, conforme a Súmula 231 do STJ3. Todavia, na terceira fase, se incidirem causas especiais de diminuição, há possibi-lidade de fi xar a quantidade da sanção aquém do mínimo le-gal em inúmeras hipóteses, como, por exemplo, nos casos de tentativa (art. 14, Código Penal4), arrependimento posterior (art. 17, Código Penal5), erro sobre a ilicitude do fato (art. 21, Código Penal6), semi-imputabilidade (art. 26, parágrafo úni-co, Código Penal7), participação de menor importância (art. 29, § 1º, Código Penal8), além das circunstâncias minorantes

2 “A pena-base será fi xada atendendo-se ao critério do Art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.”

3 “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.”

4 “Salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços.”

5 “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.”

6 “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.”

7 “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”

8 “Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.”

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previstas na parte especial do Código Penal e na legislação extravagante.

Para classifi cação dos julgados igualmente foi observa-da existência de concurso material de crimes (art. 69, Código Penal9), com análise individualizada da aplicação da pena para cada delito e sua soma fi nal. Nestes casos, a análise foi realizada por crime, pois do contrário a pena fi caria sempre acima dos mínimos legais estabelecidos.

Verifi cou-se, ainda, nesta etapa, se houve omissão da deci-são no que diz respeito à fundamentação da aplicação da pena.

A primeira análise possibilitou a realização da avaliação dos discursos dos julgados, orientada pela indagação do mo-tivo pelo qual a pena havia sido fi xada abaixo do mínimo, no mínimo ou acima do mínimo, a partir de questões específi cas determinadas pelo art. 68, Código Penal.

Em relação à pena-base, a preocupação foi indicar as cir-cunstâncias judiciais do caput do art. 59, do Código Penal10, com maior utilização e quais os argumentos apontados para sua valoração positiva, negativa ou neutra.

Conforme exposto, a jurisprudência e a doutrina não per-mitem a aplicação de pena abaixo do mínimo na primeira fase de aplicação de pena. Todavia estabelece critérios para fi xação no

9 “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.”

10 “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e sufi ciente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.”

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

mínimo (todas circunstâncias favoráveis) ou acima dele (quando houver cumulação de circunstâncias desfavoráveis).

Apesar deste indicativo, três análises foram propostas: (1ª) pena-base abaixo do mínimo; (2ª) pena-base no mínimo, situação em que todas circunstâncias judiciais seriam favo-ráveis; (3ª) pena-base acima do mínimo, situação na qual se detectaria presença de circunstâncias desfavoráveis. O con-teúdo da decisão que justifi cou aplicação acima do mínimo consta na análise quantitativa e, quantitativamente, o número de acórdãos pode ser representado da seguinte forma:

Gráfi co 13Classifi cação dos Julgados conforme Aplicação da Pena-Base

Importante destacar, novamente, que a soma das apli-cações de pena nas três fases supera o número de acórdãos selecionados no banco de dados em decorrência dos casos de concurso material (art. 69, Código Penal) ou concurso de agentes (art. 29, Código Penal), casos em que há mais de uma aplicação de pena. O item ‘não menciona’ inclui, fundamen-talmente, casos de (a) declaração nulidade da sentença por parte do Tribunal Superior; (b) anulação parcial da sentença,

0

64

91

45

0

20

40

60

80

100

Abaixo do Mínimo Mínimo Acima do Mínimo Não Menciona

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especifi camente na dosimetria da pena; ou (c) exposição in-completa de dados na decisão.

Na pena provisória foram observados os critérios de apli-cação de agravantes11 e atenuantes12. Três análises seriam pos-síveis: (1º) pena provisória abaixo do mínimo; (2º) pena pro-visória aplicada no mínimo, quando a pena-base fi cou acima do mínimo e o juiz aplicou atenuante ou quando a pena-base fi cou no mínimo e inexiste atenuante e agravante; (3º) pena provisória acima do mínimo nos casos em que há agravante ou quando a pena-base fi cou acima do mínimo e a provisória não trouxe ao mínimo por força de mínima redução.

Todavia, em razão da Súmula 231 do STJ, há impediti-vo pretoriano de aplicação de pena abaixo do mínimo nes-

11 “Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualifi cam o crime: I - a reincidência; II - ter o agente cometido o crime: a) por motivo fútil ou torpe; b) para facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime; c) à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou outro recurso que difi cultou ou tornou impossível a defesa do ofendido; d) com emprego de veneno, fogo, explosivo, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que podia resultar perigo comum; e) contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge; f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específi ca; g) com abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo, ofício, ministério ou profi ssão; h) contra criança, maior de 60 (sessenta) anos, enfermo ou mulher grávida; i) quando o ofendido estava sob a imediata proteção da autoridade; j) em ocasião de incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade pública, ou de desgraça particular do ofendido; l) em estado de embriaguez preordenada.”

12 “Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: I - ser o agente menor de 21 (vinte e um), na data do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença; II - o desconhecimento da lei; III - ter o agente: a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral; b) procurado, por sua espontânea vontade e com efi ciência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as consequências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano; c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a infl uência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima; d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime; e) cometido o crime sob a infl uência de multidão em tumulto, se não o provocou.”

“Art. 66 - A pen a poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.”

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ta fase, embora isso não impeça que determinados Tribunais deixem de aplicar a Súmula. No entanto, em sua totalidade, decisões diversas do entendimento sumulado são revogadas nas Cortes Superiores, motivo pelo qual não houve nenhuma incidência, sendo o critério eliminado.

Gráfi co 14Classifi cação dos Julgados conforme Aplicação

da Pena Provisória

0

59

93

48

0

20

40

60

80

100

Abaixo do Mínimo Mínimo Acima do Mínimo Não Menciona

Observaram-se, nesta fase, os fundamentos e os critérios de defi nição da quantidade de aumento ou de diminuição da pena, bem como se houve concurso de atenuantes e agravan-tes (02 ou mais agravantes; 02 ou mais atenuantes; ou atenu-ante e agravante), bem como os critérios de resolução.

No que tange à aplicação da pena defi nitiva, foram avalia-das as causas especiais de aumento e de diminuição de pena (majorantes e minorantes).

Conforme a legislação pátria, as majorantes e minoran-tes variam a pena independentemente dos marcos fi xados pelo Legislador, não havendo limites mínimos e máximos que delimitem a pena defi nitiva.

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Diante disso, três análises foram possíveis: (1ª) pena defi -nitiva abaixo do mínimo legal, quando há incidência de mino-rante da parte geral ou especial, (2ª) pena defi nitiva aplicada no mínimo, quando nenhuma circunstância das três fases foi desfavorável ou quando, pela aplicação de variáveis, o cálcu-lo fi nal resta no mínimo – p. ex., pena-base acima do mínimo com aplicação de atenuante no mínimo e ausência de majo-rante/minorante; pena provisória acima ou abaixo do mínimo com aplicação de majorante ou minorante; e (3ª) pena defi ni-tiva acima do mínimo, quando há aplicação da pena-base ou provisória acima do mínimo sem majorante ou com minoran-te que não diminui o sufi ciente ou quando a provisória fi ca no mínimo ou abaixo com aplicação de majorante.

Gráfi co 15Classifi cação dos Julgados conforme Aplicação

da Pena Defi nitiva

17 18

117

48

020406080100120140

Abaixo do Mínimo Mínimo Acima do Mínimo Não Menciona

Foram observados os fundamentos e os critérios de defi -nição da quantidade de aumento ou de diminuição e se houve concurso de majorantes ou minorantes (02 ou mais majoran-tes; 02 ou mais minorantes; ou majorante e minorante) e quais os critérios de resolução. Igualmente foi verifi cada a existên-cia de critérios específi cos para determinadas majorantes e

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minorantes, p. ex., crime continuado (número de crimes), ten-tativa (maior ou menor perigo ao bem jurídico) entre outras.

8.4. Levantamento da Jurisprudência Nacional e Criação do Banco de Dados

A formação do banco de dados de pesquisa seguiu os parâmetros estabelecidos na fase 02 do procedimento meto-dológico, ou seja, a coleta do material ocorreu a partir das 25 palavras-chaves pré-fi xadas, delimitada no período de 1° de janeiro a 30 de junho de 2008.

8.4.1. Levantamento de Dados no Supremo Tribunal Federal

As buscas no Supremo Tribunal Federal foram realizadas no site do órgão durante o mês de setembro de 2008 (www.stf.gov.br, link ‘consulta’, ‘jurisprudência’/’pesquisa’).

Do total dos documentos coletados, foram selecionados 108, salvos no banco de dados na pasta STF – Resultados.

A palavra-chave de maior incidência foi ‘mínimo legal’ com 34 resultados (STF/Mínimo legal). As palavras-chave ‘aplicação da pena’, ‘cálculo da pena’, ‘pena-base’, ‘circuns-tâncias judiciais’, ‘agravantes’, ‘atenuantes’, ‘periculosidade’, ‘culpabilidade’, ‘antecedentes’ e ‘conduta social’ obtiveram, respectivamente, as seguintes incidências: 08 (STF/Aplicação da Pena), 02 (STF/Cálculo da pena), 21 (STF/Pena-Base), 19 (STF/Circunstâncias Judiciais), 17 (STF/Agravantes), 09 (STF/Atenuantes), 21 (STF/Periculosidade), 10 (STF/Culpabilidade), 25 (STF/Antecedentes) e 05 (STF/Conduta Social).

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Tabela 10Resultado da Pe squisa por Incidência de

Palavra-Chave – STF

Agravantes 9Antecedentes 25Aplicação da Pena 8Atenuantes 13Cálculo da Pena 2Circunstâncias Judiciais 19Conduta Social 5Culpabilidade 10Dosimetria da Pena 14Mínimo Legal 34Pena-Base 21Periculosidade 21Demais Palavras-Chave 0Resultado 181Resultado Discriminado (excluídos os acórdão repetidos) 108

Os critérios de pesquisa ‘dosimetria da pena’, ‘súmula 231’, ‘fundamentação da pena’, ‘motivação da pena’, ‘propor-cionalidade da pena’, ‘motivos do crime’, ‘pena abaixo do mí-nimo’, ‘ pena aquém do mínimo’, ‘pena mínima’, ‘nulidade da aplicação da pena’, ‘comportamento da vítima’, ‘persona-lidade do agente’, ‘circunstâncias do crime’ e ‘pena acima do mínimo’ não obtiveram nenhum resultado.

8.4.2. Levantamento de Dados Superior Tribunal de Justiça

A pesquisa jurisprudencial no Superior Tribunal de Justiça foi dividida em duas etapas devido ao volume de re-

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Salo de Carvalho O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo

sultados e a existência de duas Turmas responsáveis por jul-gar a matéria criminal.

A coleta de dados na Quinta Turma foi realizada du-rante o mês de setembro de 2008 (site www.stj.gov.br, link ‘consulta’, ‘jurisprudência’, ‘jurisprudência do STJ’). Foram preenchidos os seguintes campos, na qualidade de parâ-metros de pesquisa: ‘pesquisa livre’, com a palavra-chave entre aspas, ‘data do julgamento’ (01/01/2008 a 30/06/2008), ‘órgão julgador’ (Quinta Turma) e ‘acórdão’ (decisão objeto da pesquisa).

Foram selecionados e salvos no banco de dados 439 acór-dãos (STJ/Quinta Turma/Resultados).

A palavra-chave de maior incidência foi ‘pena-base’ com 175 resultados (STJ/Quinta Turma/Pena-base). Os critérios de pesquisa ‘aplicação da pena’, ‘agravantes’, ‘antecedentes’, ‘pena mínima’, ‘cálculo da pena’, ‘pena abaixo/aquém do mínimo’, ‘súmula 231’, ‘atenuantes’, ‘periculosidade’, ‘personalidade do agente’, ‘circunstâncias do crime’, ‘mínimo legal’ e ‘pena acima do mínimo’ obtiveram como resultado, respectivamente, as se-guintes incidências: 36 (STJ/Quinta Turma/Aplicação da pena), 7 (STJ/Quinta Turma/Agravantes), 142 (STJ/Quinta Turma/Antecedentes), 11 (STJ/Quinta Turma/Pena Mínima), 9 (STJ/Quinta Turma/Cálculo da Pena), 13 (STJ/Quinta Turma/Pena Abaixo ou Aquém do Mínimo), 8 (STJ/Quinta Turma/Súmula 231), 11 (STJ/Quinta Turma/Atenuantes), 120 (STJ/Quinta Turma/Periculosidade), 12 (STJ/Quinta Turma/Personalidade do Agente), 17 (STJ/Quinta Turma/Circunstâncias do Crime), 145 (STJ/Quinta Turma/Mínimo Legal) e 10 (STJ/Quinta Turma/Pena Acima do Mínimo).

As palavras-chave ‘dosimetria da pena’, ‘circunstân-cias judiciais’, ‘culpabilidade’, ‘conduta social’ e ‘consequ-ências do crime’ obtiveram, respectivamente, os seguintes

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resultados: em 86 (STJ/Quinta Turma/Dosimetria da Pena), 123 (STJ/Quinta Turma/Circunstâncias Judiciais), 63 (STJ/Quinta Turma/Culpabilidade), 15 (STJ/Quinta Turma/Conduta So cial) e 17 (STJ/Quinta Turma/ Consequências do Crime).

Tabela 11

Resultado por Incidência de Palavra-Chave - 5ª Turma STJ

Agravantes 7Antecedentes 142Aplicação da Pena 36Atenuantes 11Cálculo da Pena 9Circunstâncias do Crime 17Circunstâncias Judiciais 123Conduta Social 15Consequências do Crime 17Culpabilidade 63Dosimetria da Pena 86Fundamentação da pena 0Mínimo Legal 145Pena Abaixo do Mínimo 13Pena Acima do Mínimo 10Pena Mínima 11Pena-Base 175Periculosidade 120Personalidade do Agente 12Súmula 231 8Demais Critérios 0Resultado 1011Resultado Discriminado (excluídos os acórdãos repetidos) 427

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Os critérios de pesquisa ‘fundamentação da pena’, ‘mo-tivação da pena’, ‘proporcionalidade da pena’, ‘nulidade da aplicação da pena’, ‘motivos do crime’ e ‘comportamento da vítima’ não obtiveram nenhum resultado.

A investigação na Sexta Turma foi realizada nos meses de setembro e outubro de 2008, sendo capturados 199 acórdãos (STJ/Sexta Turma/Resultados).

A palavra-chave de maior incidência foi ‘anteceden-tes’ com 65 resultados (STJ/Sexta Turma/Antecedentes). Os critérios de pesquisa ‘aplicação da pena’, ‘agravantes’, ‘pe-na-base’, ‘pena mínima’, ‘cálculo da pena’, ‘súmula 231’, ‘atenuantes’, ‘periculosidade’, ‘personalidade do agente’, ‘circunstâncias do crime’, ‘mínimo legal’ e ‘pena acima do mínimo’ obtiveram como resultado, respectivamente, a se-guinte incidência: 7 (STJ/Sexta Turma/Aplicação da Pena), 3 (STJ/Sexta Turma/Agravantes), 47 (STJ/Sexta Turma/Pena-Base), 3 (STJ/Sexta Turma/Pena Mínima), 4 (STJ/Sexta Turma/Cálculo da Pena), 2 (STJ/Sexta Turma/Súmula 231), 3 (STJ/Sexta Turma/Atenuantes), 49 (STJ/Sexta Turma/Periculosidade), 7 (STJ/Sexta Turma/Personalidade do Agente), 2 (STJ/Sexta Turma/Circunstâncias do Crime), 59 (STJ/Sexta Turma/Mínimo Legal) e 3 (STJ/Sexta Turma/Pena Acima do Mínimo).

As palavras-chave ‘dosimetria da pena’, ‘circuns-tâncias judiciais’, ‘culpabilidade’, ‘conduta social’, ‘con-se quências do crime’ e ‘comportamento da vítima’ re-sultaram, respectivamente, as seguintes incidências: 13 (STJ/Sexta Turma/Dosimetria da Pena), 49 (STJ/Sexta Turma/Circunstâncias Judiciais), 31 (STJ/Sexta Turma/Culpabilidade), 9 (STJ/Sexta Turma/Conduta Social), 1 (STJ/Sexta Turma/Consequências do Crime) e 2 (STJ/Sexta Turma/Comportamento da vítima).

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Tabela 12Resultado por Incidência de Palavra-Chave - 6ª Turma STJ

Agravantes 3Antecedentes 65Aplicação da Pena 7Atenuantes 3Cálculo da Pena 4Circunstâncias do Crime 2Circunstâncias Judiciais 48Comportamento da vítima 2Conduta Social 9Consequências do Crime 1Culpabilidade 31Dosimetria da Pena 13Mínimo Legal 59Pena Abaixo do Mínimo 0Pena Acima do Mínimo 3Pena Mínima 3Pena-Base 47Periculosidade 49Personalidade do Agente 7Súmula 231 2Demais Critérios 0Resultado 354Resultado discriminado (excluídos os acórdãos repetidos) 194

Os critérios de pesquisa ‘fundamentação da pena’, ‘pena abaixo/aquém do mínimo’, ‘motivação da pena’, ‘proporcio-nalidade da pena’, ‘nulidade da aplicação da pena’, ‘motivos do crime’ não obtiveram resultado.

O levantamento total da pesquisa no STJ pode ser assim representado:

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Tabela 13Resultado Total da Pesquisa no Superior Tribunal de Justiça

Agravantes 10Antecedentes 204Aplicação da Pena 42Atenuantes 14Cálculo da Pena 13Circunstâncias do Crime 19Circunstâncias Judiciais 170Comportamento da Vítima 2Conduta Social 23Consequências do Crime 17Culpabilidade 92Dosimetria da Pena 98Fundamentação da Pena 0Mínimo Legal 204Motivação da Pena 0Motivos do Crime 0Nulidade da Aplicação da Pena 0Pena Abaixo do Mínimo 13Pena Acima do Mínimo 13Pena Mínima 15Pena-Base 220Periculosidade 168Personalidade do Agente 18Proporcionalidade da Pena 0Súmula 231 10Resultado 1365Resultado Discriminado (excluído os acórdãos repetidos) 621

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9.A Motivação Judicialna Defi nição da Pena

O art. 93, IX, da Constituição Federal, estabelece que to-dos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão pú-blicos e todas as decisões serão fundamentadas, sob pena de nulidade. A sanção processual penal de nulidade é prevista na Constituição em apenas dois casos: ilicitude da prova – art. 5º, LVI, Constituição1 e, posteriormente, sua incorporação no art. 157, CPP2 pela Lei nº 11.690, de 2008 – e ausência de motiva-ção das decisões judiciais (art. 93, IX, Constituição3). A previsão constitucional de nulidade, portanto, coloca estas duas ques-tões no centro das investigações do processo penal.

1 “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.”2 “Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas

ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais. § 1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. § 2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova. § 3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.”

3 “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)

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Embora os critérios de determinação da quantidade e da qualidade da pena estejam defi nidos no Código Penal, sua previsão no momento da sentença penal condenatória impõe esteja adequada aos princípios constitucionais que regulam o processo penal. Assim, necessariamente, a aplicação da pena é vinculada ao princípio constitucional da fundamentação/motivação dos atos judiciais.

Ensina Ney Fayet que é pela motivação que se aprecia “se o juiz julgou com conhecimento de causa, se sua convicção é le-gítima e não arbitrária”, tendo em vista que “interessa à sociedade e, em particular, às partes saber se a decisão foi ou não acertada. E, somente com a exigência da motivação, da fundamentação, se per-mitiria à sociedade e às partes a fi scalização da atividade intelectual do magistrado no caso decidido.”4

Trata-se, portanto, “(...) de uma imposição do princípio do devido processo legal em que se busca a exteriorização das razões de decidir, o revelar do prisma pelo qual o Poder Judiciário interpretou a lei e os fatos da causa”, visto que, “do ponto de vista mais jurídi-co, a motivação é importante, pois viabiliza aferir a vinculação do juiz à prova (...).”5 Conforme leciona Nilo Bairros de Brum, “é na forma de argumento que a prova aparece na fundamentação da sentença, quando o juiz procura justifi car sua decisão perante as partes, os tribunais e a comunidade jurídica.”6 Lembram Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci, que “(...) a motivação da sentença tem por escopo imediato demonstrar ao próprio juiz, antes mesmo do que às partes, a ‘ratio scripta’ que legitima o ato decisório, cujo teor se encontrava em sua intuição.”7

4 Fayet, A Sentença Criminal e suas Nulidades, p. 49-50.5 Portanova, Princípios do Processo Civil, p. 248-9.6 Brum, Requisitos Retóricos da Sentença Penal, p. 70.7 Tucci & Tucci, Constituição de 1988 e Processo, p. 74.

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Conforme Ferrajoli, o valor fundamental do princípio da motivação se expressa por sua natureza cognitiva, e não potestativa (antigarantista), que vincula a decisão, na esfera do direito, à estrita legalidade (motivo de direito) e, na esfera fática, à prova das hipóteses acusatórias (motivo de fato): “a motivação permite a fundamentação e o controle das decisões tanto em direito, pela violação da lei ou defeitos de interpretação ou de sub-sunção, como em fato, por defeito ou insufi ciência de provas ou por inadequada explicação do nexo entre convicção e provas.”8

A fundamentação deve cumprir, portanto, requisitos materiais e processuais, a partir das noções de motivação fáti-ca e legal do juízo de condenação ou absolvição, ou seja, cor-respondência dos argumentos da sentença com a base legal e o material probatório colhido em procedimento público e contraditório.

A obrigatoriedade da dupla referência encontra amparo no art. 381, III, do CPP, que impõe ao juiz o dever de indicar na sentença os motivos de fato e de direito que fundam sua decisão. Todavia este dever não obriga que apenas os juízos absolutórios ou condenatórios estejam sustentados em prova produzida (motivo de fato) admissível (legalidade da prova) segundo a Constituição e as leis ordinárias (motivo de direi-to). Vincula, igualmente, o processo de aplicação da pena, no qual o Magistrado deve indicar as circunstâncias que entende ca-bíveis para graduar a pena (motivo de direito) e apresentar o suporte probatório que a sustenta (motivo de fato).

Note-se que, ao privilegiar a fundamentação das deci-sões, a Reforma do Código Penal, em 1984, adotou modelo escalonado de aplicação da pena, superando a tradicional po-

8 Ferrajoli, Diritt o e Ragione, p. 640.

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lêmica entre Nélson Hungria e Roberto Lyra9. O art. 68 esta-beleceu, portanto, o método trifásico para a fi xação da pena, no qual “o juiz tem que dizer não somente por que razão condena, mas também por que aplica determinada pena, especialmente no que respeita à quantidade.”10

Se a forma é predeterminada no modelo trifásico, o con-teúdo dos argumentos judiciais igualmente deve ser regrado, fundamentalmente pela opção do Direito Penal da moderni-dade em instituir modelo do fato-crime, excluindo valorações de cunho eminentemente morais.11

O controle material-substantivo da decisão que aplica a pena, referente àquilo que pode ou não ser objeto de valora-

9 No texto originário do Código Penal de 1940 (Decreto-Lei 2.848/40), o processo de quantifi cação da sanção era distinto do atual. Previa o art. 42 que “compete ao juiz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo ou grau da culpa, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime: I – determinar a pena aplicavel, dentre as cominadas alternativamente; II – fi xar, dentro dos limites legais, a quantidade da pena aplicavel.”

Em relação às atenuantes e agravantes e às majorante e minorantes, o Código previa, apenas, o concurso de circunstâncias agravantes e atenuantes (“art. 49. no concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência”) e a existência de causas de aumento ou diminuição (“art 50. A pena que tenha de ser aumentada ou diminuida, de quantidade fi xa ou dentro de determinados limites, é a que o juiz aplicaria se não existisse causa de aumento ou de diminuição”), sem, contudo, escalonar o procedimento.

Assim, inexistindo previsão, Roberto Lyra advogava método dividido em duas fases, segundo o qual a partir da análise das circunstâncias judiciais do caput do art. 42 e em conjunto com ateniantes e agravantes, o juiz fi xaria a pena (base). Posteriormente, na segunda fase, incidirima as causas de aumento e de diminuição, defi nitivizando a pena.

Contrariamente, posição que foi adotada no art. 68, na ocasião da Reforma da Parte Geral de 1984, Nélson Hungria defendia sistema trifásico no qual, a partir da pena-base, seriam aplicadas agravantes e atenuantes (pena provisória) e, sobre este cálculo, incidiriam as causas de aumento e de diminuição (pena defi nitiva).

10 Apud Schecaira, Cálculo da Pena e Dever de Motivar, p. 175.11 Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 5-19; 35-37.

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ção, é imprescindível nos sistemas que primam pela motiva-ção. Mesmo critérios subjetivos (referentes ao autor do fato) devem ser demonstrados empiricamente, ou seja, objetivados na prova, pois a subjetivação de hipóteses e argumentos “gera uma perversão inquisitiva do processo, dirigindo-o não mais à com-provação de fatos objetivos, mas para a análise da interioridade da pessoa julgada”; obtendo, como corolário, a degradação “(...) da verdade processual (empírica, pública e intersubjetivamente contro-lável) em convencimento intimamente subjetivo e, portanto, irrefu-tável do julgador.”12

Na estrutura do direito penal e processual penal roma-no-germânico a única forma de controle do arbítrio judicial é através da análise dos argumentos que fundamentam as deci-sões. No caso específi co da aplicação da pena, através da ava-liação da forma pela qual o juiz justifi ca sua decisão, preenche as lacunas (tipos penais abertos), soluciona as contradições e defi ne a quantidade e a qualidade de pena.

Se a motivação caracteriza as decisões judiciais nos siste-mas garantistas, possível notar que na lógica inquisitiva a exi-gência de fundamentação representará formalismo incômodo – “o devido processo legal aplicado em sua integralidade passou a ser considerado como um formalismo incômodo para o direito brasileiro, esquecendo-se a lição de Hassemer, ao afi rmar que as formalidades do procedimento penal não são meras formalidades.”13 Não por ou-tra razão Fauzi Choukr14 diagnosticará, na cultura processual penal inquisitória e emergencial brasileira, a pauperização da garantia da motivação das decisões, provocando, em relação à aplicação da pena, incompreensão sobre o signifi cado e o alcance do princípio constitucional da individualização.

12 Ferrajoli, Diritt o..., p. 15-6.13 Choukr, Processo Penal de Emergência, p. 139.14 Choukr, Processo..., pp. 157-161.

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10.Estrutura da Aplicação

da Pena no Brasil

Na legislação brasileira, os artigos 68 e 59, do Código Penal, fi xam os critérios e estabelecem o escalonamento de fa-ses de aplicação da pena.

Em realidade, por força de complexa redação, a primei-ra estruturação da aplicação da pena encontra-se nos incisos do art. 59 do Código. De maneira didática, para compreender a primeira formulação da técnica de dosimetria da pena, es-tabelecida no art. 59 do Código Penal, modifi cado pela Lei 7.209/84, poderia ser lido da seguinte forma: “o juiz (...) es-tabelecerá, conforme seja necessário e sufi ciente para reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.”

Trata-se de sistema composto por quatro operações ne-cessárias, preliminares uma da outra, quais sejam: 1ª eleição da pena cabível entre as cominadas (pena privativa de liber-dade, pena de multa ou pena restritiva de direito); 2ª determi-nação da quantidade de pena (tempo); 3ª fi xação da qualida-de de pena (regime de cumprimento de pena); e 4ª avaliação da possibilidade de aplicação de substitutivos penais (pena de multa ou pena restritiva de direito).

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Conforme apontam Zaff aroni e Pierangeli, a fórmula da aplicação da pena (art. 59 c/c art. 68 do Código Penal) é bastante complexa, exigindo “(...) uma ordenação sistemática de critérios e regras, porque não se trata de uma síntese ordenada, mas de elementos um tanto dispersos, e cuja ordem hierárquica se faz necessário determinar.”1

10.1. Eleição da Pena Cabível

A primeira operação (eleição da pena cabível) ocorre quando o preceito secundário do tipo penal incriminador prevê duas ou mais modalidades distintas de penas, normal-mente alternando a pena privativa de liberdade com a multa.

São casos esporádicos como, p. ex., no Código Penal, o furto privilegiado2 e, na Legislação ordinária, as inúmeras modalidades de crime contra a ordem econômica3, os vários

1 Zaff aroni & Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 829.2 “Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de

um a quatro anos, e multa. (...) § 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa” (grifou-se).

3 “Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica: I - abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante: a) ajuste ou acordo de empresas; b) aquisição de acervos de empresas ou cotas, ações, títulos ou direitos; c) coalizão, incorporação, fusão ou integração de empresas; d) concentração de ações, títulos, cotas, ou direitos em poder de empresa, empresas coligadas ou controladas, ou pessoas físicas; e) cessação parcial ou total das atividades da empresa; f) impedimento à constituição, funcionamento ou desenvolvimento de empresa concorrente. II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fi xação artifi cial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores. III - discriminar preços de bens ou de prestação de serviços por ajustes ou acordo de grupo econômico, com o fi m de estabelecer monopólio, ou de eliminar, total ou parcialmente, a concorrência; IV - açambarcar, sonegar, destruir ou inutilizar bens de produção ou de consumo, com o fi m de estabelecer monopólio ou de eliminar, total ou parcialmente, a concorrência; V - provocar oscilação de preços em detrimento de empresa concorrente ou vendedor de matéria-prima, mediante ajuste ou acordo,

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crimes ambientais4, os casos de porte de droga para consumo pessoal na inovadora redação da Lei de Drogas5 ou, ainda, os tipos previstos como contravenções penais6 eventualmente recepcionados pela Constituição, não incorporados em Leis ordinárias e que se mantêm como infrações de menor poten-cial ofensivo (Lei 9.099/95).

10.2. Quantifi cação da Pena

Vencida a primeira etapa (eleição da pena), o segundo passo é defi nir a quantifi cação da sanção, objeto privilegiado

ou por outro meio fraudulento; VI - vender mercadorias abaixo do preço de custo, com o fi m de impedir a concorrência; VII - elevar sem justa causa o preço de bem ou serviço, valendo-se de posição dominante no mercado. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.” (grifou-se)

4 “Art. 33. Provocar, pela emissão de efl uentes ou carreamento de materiais, o perecimento de espécimes da fauna aquática existentes em rios, lagos, açudes, lagoas, baías ou águas jurisdicionais brasileiras: Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas cumulativamente.” (grifou-se); “Art. 34. Pescar em período no qual a pesca seja proibida ou em lugares interditados por órgão competente: Pena - detenção de um ano a três anos ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem: I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores aos permitidos; II - pesca quantidades superiores às permitidas, ou mediante a utilização de aparelhos, petrechos, técnicas e métodos não permitidos; III - transporta, comercializa, benefi cia ou industrializa espécimes provenientes da coleta, apanha e pesca proibidas” (grifou-se); “Art. 38. Destruir ou danifi car fl oresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção: Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente” (grifou-se), entre outros.

5 “Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1º. Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. (...) § 3º. As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.”

6 Neste sentido, conferir o Decreto-Lei 3.688/41, art. 18 ao art. 70.

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da investigação, seja qual for a pena (privativa de liberdade, restritiva de direito ou multa).

Todavia, como pode ser percebido, as possibilidades de aplicação de pena não privativa de liberdade nesta primei-ra fase são remotas, visto a centralidade da pena de prisão no ordenamento jurídico brasileiro. A privação da liberdade, desde a Modernidade penal, é a pedra angular dos sistemas jurídicos. Embora a previsão de outras espécies de pena como a restritiva de direitos e a multa, estas operam normalmen-te como substitutivas do encarceramento, conforme regrado pelo inciso IV do art. 59 (última fase do sistema de aplicação da pena), após a quantifi cação da privação de liberdade e de-fi nição de sua qualidade (regime).

No segundo momento, o art. 59, II, do Código Penal, re-mete o aplicador do direito ao art. 68, no qual está fi xado o trifásico de cálculo da quantidade de pena: “a pena-base será fi xada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.”

A assistematicidade pode ser visualizada no fato de a fase de quantifi cação, prevista no inciso II do art. 59 do Código, remeter para a discriminação do modelo trifásico no art. 68, e este, por sua vez, ao regular a primeira etapa (pena-base), reenviar os critérios de valoração ao caput do mesmo art. 59. Denota-se, no mínimo, emprego equivocado da técnica legis-lativa, normalmente organizada a partir do escalonamento dos artigos em caput, incisos, parágrafos e alíneas, tendo em vista o maior ou menor grau de abstração das circunstâncias do tipo penal. Ao contrário de estabelecer a especifi cação das matérias na ordem do geral ao particular, o Legislador, nes-te importante momento de incidência do sistema punitivo,

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abdicou da técnica e pulverizou a estrutura em regramentos dispersos.

No entanto, ao estabelecerem a fórmula trifásica de quantifi cação das penas, lecionam Miguel Reale Jr., René Ariel Dott i, Ricardo Andreucci e Sérgio de Moraes Pitombo que “sendo as circunstâncias legais uma especifi cação de algumas possíveis circunstâncias gerais, descritas de forma aberta no art. 59, deve o processo de fi xação da pena ser dividido: primeiramente as circunstâncias judiciais sem se levar em conta fatos descritos nas circunstâncias legais, depois as circunstâncias legais e por fi m as causas de aumento ou diminuição.”7

10.2.1. Pena-Base

O art. 63, do Código Penal de 1969, defi nia a pena-base como aquela “que tenha de ser aumentada ou diminuída, de quan-tidade fi xa ou dentro de determinados limites, é a que o juiz aplica-ria, se não existisse a circunstância ou causa que importe o aumento ou diminuição da pena”.

Dessa forma, leciona Paganella Boschi que “pena-base, enfi m, é aquela que atua como ponto de partida, ou seja, como parâ-metro para as operações que se seguirão. A pena-base corresponde, então, à pena inicial fi xada em concreto, dentro dos limites estabele-cidos a priori na lei penal, para que, sobre ela, incidam, por cascata, as diminuições e os aumentos decorrentes de agravantes, atenuan-tes, majorantes ou minorantes.”8

Do que se pode notar, inclusive pela exposição da Comissão de Reforma, ao predeterminar as fases e os pa-râmetros para a aplicação da pena, o Código Penal intenta

7 Reale Jr. (et alii.), Penas e Medidas de Segurança no Novo Código, p. 188.8 Boschi, Das Penas e seus Critérios de Aplicação, p. 187.

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reduzir ao máximo o arbítrio, embora sejam ainda elevados os espaços de discricionariedade, notadamente na fi xação da pena-base em decorrência dos tipos penais abertos previstos no caput do art. 59 do Código Penal.

A caracterização da tipicidade aberta das circunstâncias objetivas (circunstâncias e consequências do crime e compor-tamento da vítima) e subjetivas (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente e motivos) expostas no art. 59, caput, Código Penal, é em decorrência de não esta-rem previamente conceituadas legislativamente e, sobretudo, pelo fato de, diferentemente das circunstâncias previstas na segunda e terceira fase, não estarem previamente defi nidas em Lei como critérios de aumento ou de diminuição da pena. Fica, pois, ao critério do juiz, se determinada circunstância judicial objetiva ou subjetiva prevista no caput do art. 59 do Código Penal, no caso concreto, será utilizada como critério de aumento ou de diminuição, aproximando a pena-base do mínimo ou do termo médio. Exatamente por este motivo são chamadas circunstâncias judiciais.

Inegavelmente a amplitude das hipóteses (08 circunstân-cias), notadamente de circunstâncias subjetivas (05 circuns-tâncias), amplia os espaços de discricionaridade/arbitrarie-dade, o que, invariavelmente, em direito penal, representa aumento de punitividade.

Segundo estabelecido pela jurisprudência, após serem demonstradas probatoriamente e valoradas as circunstân-cias judiciais como favoráveis, desfavoráveis ou neutras, o Magistrado quantifi caria a pena-base. Para tanto, deve variar a quantidade entre o mínimo legalmente previsto e o termo médio, construção pretoriana que signifi ca o ponto de equi-líbrio entre o mínimo e o máximo da pena. Encontra-se o ter-mo médio através do cálculo da soma simples das quantida-

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des mínimas e máximas de pena divididas pela metade – p. ex., no caso do homicídio, o termo médio será o resultado da soma do mínimo (06 anos) com o máximo (20 anos) de pena prevista, dividida por 02, ou seja, a pena-base deve variar en-tre 06 e 13 anos de pena.

Estabelecidos os parâmetros mínimos e máximos, a ju-risprudência orienta o julgador aos seguintes raciocínios: (1º) havendo integralidade ou intensa preponderância de circuns-tâncias favoráveis, a pena-base deve ser fi xada ou se apro-ximar do mínimo; (2º) em caso de integralidade ou intensa preponderância de circunstâncias desfavoráveis, a pena-base deve se aproximar do termo médio; e (3º) ocorrendo concurso de causas favoráveis e desfavoráveis, o julgador deve aplicar a quantidade de pena a partir da análise e da dosagem da in-cidência das circunstâncias judiciais tendo como referência a proporcionalidade e o grau de reprovabilidade indicado pela ponderação das circunstâncias.

Em relação à forma de cálculo da pena-base, importante dizer da impossibilidade de fi xação matemática de quantida-des de aumento ou de diminuição de pena a partir da iden-tifi cação de incidência das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal. Isto porque, em vários casos, se percebe a tentativa de produzir fórmula mecânica de cálculo da pena, notadamente nesta primeira fase da pena-base. A ideia que persegue certa corrente doutrinária e jurisprudencial é a de produzir fórmula matemática a partir da interpretação exe-gética das guias e dos indicativos jurisprudenciais, fato que, objetivamente, induz ao seguinte método:

(1º) no caso do furto simples, p. ex., a pena-base deve variar entre o mínimo (01 ano) e o termo médio de 02 anos e 06 meses (01 ano mais 04 anos previsto no máximo dividido por 02);

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(2º) conforme jurisprudência consolidada, se todas as circunstâncias judiciais forem favoráveis a pena--base deve ser aplicada no mínimo; se todas des-favoráveis deve aproximar-se do termo médio; se houver incidência parcial deve haver cálculo pon-derado;

(3º) em razão de haver 08 circunstâncias judiciais no art. 59, do Código Penal, cada uma representaria o valor de 1/8 da diferença entre o mínimo e o termo médio, p. ex., no caso do furto simples (art. 155, do Código Penal), cada vetor corresponderia à fração de um oitavo de 01 ano e 06 meses (diferença entre o mínimo 01 ano e o termo médio 02 anos e 06 me-ses), correspondendo a 02 meses e 07 dias9; ou, no caso de imputação por evasão de divisas (art. 22, caput, da Lei 7.492/86) a pena-base variaria entre o mínimo 02 e o termo médio 03 anos, visto o máxi-mo ser 04 anos, e cada circunstância corresponde-ria a 01 mês e 15 dias (12 meses da variação entre mínimo e termo médio divididos pelas 08 circuns-tâncias). Desta forma o juiz, realizado o cálculo, e partindo sempre do mínimo em direção ao termo médio, verifi caria a quantidade de circunstâncias negativas (as positivas mantém ancorada a pena no mínimo e as ‘neutras’, sem valoração, atuam favoravelmente), somaria, e calcularia a pena-base – p. ex., no caso do furto, se apenas os antecedentes fossem negativos, a pena-base fi caria em 01 ano, 02 meses e 07 dias; no caso da evasão de divisas, se fossem negativos à culpabilidade, os motivos e as

9 Exclui-se do cálculo, por incidência do art. 11 do Código Penal, as frações de dia em horas: “desprezam-se, nas penas privativas de liberdade e nas restritivas de direitos, as frações de dia, e, na pena de multa, as frações de cruzeiro”.

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consequências do delito, a pena-base fi caria apli-cada em 02 anos, 04 meses e 15 dias.

No entanto esta racionalidade simplifi cadora não pode ser aplicada em direito penal e, sobretudo, no processo penal moderno. Conforme demonstrado, a aplicação da pena inte-gra a sentença criminal e está vinculada aos princípios consti-tucionais do devido processo, notadamente aos princípios da motivação fática e jurídica, nos quais se observam a vincula-ção do juiz ao direito e à prova produzida.

O equívoco do raciocínio exposto é a geração de modelo de prova tarifada, típico dos sistemas processuais inquisiti-vos10, em total afronta ao sistema da livre apreciação delinea-do pela Constituição (art. 5º, LV11) ao determinar a motivação das decisões e o contraditório. Segundo o art. 155 do Código de Processo Penal, “o juiz formará sua convicção pela livre apre-ciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informati-vos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.

Desta forma, o Magistrado, no caso concreto, tendo em vista a peculiaridade das circunstâncias, pode estabelecer cri-térios de preponderância, de valoração diferenciada de uma

10 Recorde-se que “no processo penal inquisitório a insufi ciência de provas e sua conseqüente dubiedade não gerava imperiosa absolvição; mas, ao contrário, o mero indício equivalia a uma semi-prova, que comportava um juízo de semi-culpabilidade e uma semi-condenação”, (Carvalho, Pena e Garantias, p. 33) próprio do sistema de tabelamento probatório. Quanto ao regime probatório da Inquisição e a formulação de juízos de semi-culpabilidade pelos indícios, verifi car Foucault, Vigiar e Punir, pp. 11-61; sobre o modelo de prova tarifada como estruturante do sistema inquisitivo, conferir, dentre outros, Gomes Filho, Direito à Prova no Processo Penal, pp. 22-25

11 “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”

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ou outra circunstância, sempre vinculada sua opção ao dever de fundamentar.12 Note-se, inclusive, que o próprio Código Penal, ao enfrentar o tema do confl ito entre circunstâncias agravantes e atenuantes, entende que as subjetivas devem preponderar sobre as objetivas, deixando claro não haver paridade ou tarifa entre os critérios de aumento ou diminuição da pena.13

10.2.2. Pena Provisória e Pena Defi nitiva

Assim, vencida a etapa de identifi cação, demonstração, valoração e cálculo da pena-base, sobre esta o julgador incidi-rá as circnstâncias legais atenuantes e agravantes (pena provi-sória) e as causas especiais de aumento e de diminuição (pena defi nitiva).

Atenuantes, agravantes, majorantes e minorantes, di-ferentemente das circunstâncias judiciais, vêm previamente

12 Veja-se, p. ex., entendimento que prevaleceu no Tribunal Regional Federal da 4ª Região no sentido de que apenas uma circunstância judicial negativa não tem a possibilidade de elevar a pena-base acima do mínimo legal:

“OMISSÃO DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDEN-CIÁ RIAS. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO LEGAL. PERCENTUAL DE AUMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA MANTIDO. 1. A culpabilidade dos réus é a normal ao delito em questão, cuja reprovabilidade social encontra resposta adequada nas sanções previstas no tipo. 2. Os motivos do ilícito são os inerentes à espécie de delito, não justifi cando o aumento da pena. 3. Ainda que as consequências do crime tenham sido valoradas desfavoravelmente aos réus, na decisão recorrida, entendo que tal circunstância não pode prejudicá-los, na medida em que o prejuízo causado à Previdência Social é inerente ao tipo. 4. Penas-bases mantidas no mínimo legal, ante o reconhecimento de apenas uma circunstância judicial desfavorável. 5. Em razão do número de infrações praticadas, é razoável fi xar-se a majorante da continuidade delitiva em 1/4, razão pela qual mantém-se as penas defi nitivas fi xadas na sentença condenatória em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de reclusão. 6. Apelação improvida.” (TRF4, ACR 2002.04.01.042792-0, Sétima Turma, Relator Fábio Bitt encourt da Rosa, DJ 30/04/2003).

13 “Art. 67 - No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência”.

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valoradas (favoráveis ou desfavoráveis) pelo Legislador, ca-bendo ao juiz identifi cá-las na prova produzida durante a instrução e, posteriormente, aplicá-las conforme as regras de cálculo das penas provisória e defi nitiva.

Segundo a jurisprudência, o quantum de aumento ou de diminuição das atenuantes e agravantes deve girar em torno de 1/6 da pena aplicada na primeira fase, em vista de ser este valor o grau mínimo de aumento ou de diminuição previsto na Legislação penal às majorantes e minorantes. Assim, para que se estabeleça hierarquia entre as fases e as circunstâncias, as atenuantes não poderiam diminuir mais que as minorantes e as agravantes aumentar além do possível às majorantes.

Na terceira fase, além de estarem majorantes e minoran-tes pré-valoradas, o próprio Legislador determina quantida-des fi xas ou variáveis de aumento ou diminuição, havendo em alguns casos específi cos regras próprias – p. ex., crime con-tinuado (número de delitos), crime tentado (maior ou menor probabilidade de dano ao bem jurídico tutelado) entre outras –, que serão desenvolvidas na análise qualitativa.

Assim, tendo como norte as conclusões apresentadas, reali-zou-se, segundo a metodologia proposta pelo Código, avaliação dos critérios de defi nição da pena nas Cortes Superiores.

10.3. Qualidade de Pena (Regime) e Substitutivos Penais

As terceira e quarta etapas de aplicação da pena dispos-tas nos incisos do art. 59 do Código Penal referem-se à fi xação da qualidade (regime) de pena (inciso III) e à possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por outra espécie de pena (inciso IV).

As regras de defi nição do regime e as distinções entre as formas aberta, semi-aberta e fechada estão dispostas no art.

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33, Código Penal14. O principal critério para defi nição do re-gime inicial de cumprimento de pena, bem como a possibili-dade de aplicação dos substitutivos penais, é objetivo: tempo de pena fi xado pelo juiz. Nota-se, pois, que a arquitetura da aplicação da pena vincula o regime e os substitutos à quanti-dade da sanção, motivo pelo qual o processo de dosimetria ganha relevância. Quantifi cada pena e não ultrapassados 04 (quatro) anos, o regime inicial de cumprimento será o aberto; determinada entre 04 (quatro) e 08 (oito) anos, o regime será o semi-aberto; dosada acima de 08 (anos), o condenado iniciará o cumprimento em regime fechado.

A exceção ao critério exclusivamente objetivo é a previ-são de determinação de grau mais severo em caso de reinci-dência. Assim, em caso de condenado reincidente, o regime inicial aberto seria convertido para o semi-aberto e o semi--aberto para o fechado, conforme determinam as alíneas ‘b’ e ‘c’ do parágrafo segundo do art. 33, Código Penal15.

Em relação à possibilidade de substituição da pena pri-vativa de liberdade por restritiva de direitos, a Lei 9.714/98 alterou o art. 44, Código Penal, ampliando o requisito objeti-

14 “Art. 33 – A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado.

§ 1º - Considera-se: a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado.”

15 “Art. 33 (...) § 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.”

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vo para 04 (quatro) anos. Desta forma, (a) não sendo imposta quantidade de pena superior a 04 (quatro) anos, (b) não tendo sido o crime praticado com violência ou grave ameaça à pes-soa – ou (c) qualquer que seja a pena, se o delito for culposo – e (d) preenchendo o condenado os requisitos subjetivos (fa-vorabilidade das circunstâncias judiciais – culpabilidade, an-tecedentes, conduta social, personalidade, motivos e circuns-tâncias), há possibilidade de a pena de prisão ser substituída por restritivas de direito.

O inciso II do art. 44, Código Penal, exclui a possibili-dade de substituição da pena aos casos de reincidência em crime doloso. No entanto o parágrafo terceiro do referido artigo relativiza esta regra, determinando que “se o conde-nado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.”

Entende-se, inclusive, que a relativização acerca da favora-bilidade social da medida atinge o instituto da reincidência e não apenas sua aplicação residual no caso de penas alternativas. Neste caso, a aplicação da agravante e a modifi cação do regime igualmente poderiam ser excluídas em caso de a medida (não--aplicação da circunstãncia de aumento ou determinação de re-gime mais benéfi co) ser socialmente recomendável.

Vencidas as quatro etapas, fi nalizado o processo de apli-cação da pena, projetando, em caso de trânsito em julgado da decisão, sua execução.

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11.Critérios de Aplicação da

Pena-Base pelos Tribunais Superiores no Brasil:Análise Qualitativa

Conforme exposto, a análise do padrão e/ou da varia-ção dos critérios de quantifi cação da pena (art. 59, II c/c art. 68, caput, Código Penal) pelas Cortes Superiores de Justiça no Brasil seguirá o sistema trifásico delimitado no Código Penal. O objetivo da investigação é o de verifi car qual o conteúdo de signifi cados atribuídos pelos Tribunais para cada circunstân-cia de graduação da sanção criminal, quais os confl itos con-ceituais, quais as dúvidas doutrinárias e quais os eventuais erros técnicos e os vícios processuais cometidos. A preocupa-ção central, em face do tema central punitivismo, é a da aná-lise dos argumentos que possibilitam aos Magistrados elevar a pena acima do limite mínimo ou a não reduzi-la aquém dos patamares fi xados pelo Legislador.

Durante a apreciação dos julgados que compuseram o banco de dados foi possível perceber a forma pela qual os Tribunais entendem as circunstâncias e como preenchem os conteúdos abertos de sua estrutura normativa. Foi possível, também, notar importantes difi culdades dos julgadores, seja nas Cortes em que foram selecionadas as decisões, seja nos Tribunais Regionais Federais, nos Tribunais dos Estados ou

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nos juízes singulares que suscitaram o recurso ou a ação de impugnação.

As situações são bastante específi cas e permitem diag-nóstico preliminar:

(a) difi culdade em defi nir claramente o signifi cado (conceito) das circunstâncias;

(b) difi culdade em diferenciar o conteúdo das circuns-tâncias com os elementos constitutivos do tipo;

(c) difi culdade em diferenciar o conteúdo das cir-cunstâncias judiciais e das circunstâncias legais;

(d) difi culdade em distinguir argumentos próprios do juízo de condenação e o grau de reprovabilidade da conduta;

(e) difi culdade em concretizar as circunstâncias e vin-cular o juízo às provas válidas produzidas na ins-trução processual; e

(f) difi culdade em quantifi car o peso das circunstân-cias na dosimetria (cálculo) da pena.

As difi culdades provêm, fundamentalmente, de fatores derivados da técnica legislativa empregada na elaboração do sistema de aplicação da pena. O primeiro problema decorre da assistematicidade da matéria, disposta disjuntivamente no Código. O segundo é o da complexidade da operação para defi nição da quan-tidade de pena – isso sem falar nas demais etapas de defi nição de regime e de substituição da privação da liberdade por restrição de direito ou multa (art. 59, III e IV, Código Penal).

Outrossim, agrega-se terceiro problema, que é o da falta de harmonia entre a parte geral do Código Penal, reformado em 1984, e as sanções penais estabelecidas em sua parte especial, originalmen-te redigida em 1942, mas que, durante todo o século passado, sofreu reformas pontuais, assistemáticas e não-metódicas. Esta

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situação gera profunda disparidade entre as penas e os bens ju-rídicos tutelados, difi cultando ao intérprete a defi nição de cri-térios claros e harmônicos, sobretudo se utilizada metodologia comparativa entre tipos incriminadores e sanções.

Como quarto problema, enfatiza-se o emprego, desde o ponto de vista legislativo, de estruturas normativas vagas, im-precisas, sem defi nição semântica, de difícil apreensão empírica e de tipos penais conceituais ou abertos. O emprego de circuns-tâncias com estas características aumenta de forma superlativa as possibilidades de equívocos interpretativos e, em última aná-lise, a abertura dos espaços de discricionariedade judicial apro-xima, quando não ultrapassa, a fronteira do arbítrio.

A somas de todas estas variáveis aponta processo de densifi cação das penas, característico das políticas punitivis-tas, a partir da violação de garantias penais materiais ou pro-cessuais constitucionalizadas, como:

(a) violação do princípio da motivação mínima das decisões, em razão de fundamentação defi ciente ou omissão de fundamentação;

(b) violação do princípio ne bis in idem, pela aplicação cumulada de circunstâncias elementares do tipo penal imputado na aplicação da pena, pela aplica-ção dobrada de circunstâncias judiciais e legais ou pela aplicação cumulada das próprias circunstân-cias judiciais de forma que a anterior preencha o juízo de reprovação da posterior.

(c) violação ao princípio do contraditório, pela utili-zação de argumentos de impossível refutabilidade pelas partes para dosar a pena;

(d) violação ao princípio da legalidade, através da uti-lização de metarregras ou circunstâncias não pre-vistas em lei para graduar juízo de reprovação;

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(e) violação do princípio da livre apreciação da prova, pela aplicação tarifada de circunstâncias a partir de determinadas regras ou Súmulas;

(f) violação do princípio da isonomia, pela aplicação tarifada de circunstâncias a partir de determina-das regras ou Súmulas sem observar critérios sub-jetivos de preponderâncias;

(g) violação do princípio da secularização, na aprecia-ção eminentemente moral(ista) das circunstâncias do delito ou do imputado, reproduzindo modelo penal de autor.

Fundamental chamar atenção, no entanto, que o trabalho não tem por objetivo criticar a atuação das Cortes Superiores (STF e STJ) ou do Poder Judiciário, em geral. A propósito, o que se aponta na pesquisa qualitativa é que normalmente o próprio Judiciário intervém na correção das violações elen-cadas, normalmente em decorrência de recursos ou de ações de impugnação interpostos contra decisões dos Tribunais Federais ou Tribunais de Justiça dos Estados, que mantiveram sentenças de juizados singulares – fato que reforça a hipótese apresentada sobre a diferença de graus de punitivismo entre as instâncias do Poder Judiciário. Não obstante, registre-se, haver forte tendência de as Cortes Superiores, em temas mui-to específi cos, manter tradição jurisprudencial de harmonia constitucional criticável, como será demonstrado.

A questão é que se do ponto de vista dogmático penal e processual penal o sistema de aplicação da pena é caracte-rizado pela produção e proliferação de lacunas, de omissões e de contradições entre as normas que delineiam a forma e o conteúdo da dosimetria; desde o local da criminologia o diag-nóstico a que se chega é o de que o resultado concreto deste modelo produz ampliação das hipóteses criminalizadoras,

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com a potencialização do punitivismo. Se poder é exercício e os seus vazios são rapidamente preenchidos, os espaços em branco (lacunas e omissões) e as zonas cinzentas (dúvida e contradição) presentes no sistema de quantifi cação de penas, ao invés de projetarem atuação parcimoniosa dos operadores judiciais, baseada na cautela em relação à eventual violação de direitos, geram, ao contrário, condições ideais para inci-dência desproporcional do potestas puniendi.

11.1. Advertência: Sobre o Conteúdo dos Julgados e os Critérios da Análise Qualitativa

Os julgados selecionados como decisões de referência para delimitação dos critérios judiciais de aplicação da pena apre-sentam conteúdo distinto que pode ser classifi cado em duas linhas: (a) decisões que possuem equívocos conceituais des-de o ponto de vista doutrinário do Direito Penal material ou padecem de nulidades conforme a compreensão teórica do Direito Processual Penal; e/ou (b) decisões que projetam conte-údo conceitual para fi xação de guias interpretativas às Cortes inferiores, adquirindo notória substância doutrinária desde os fundamentos confi guradores da dogmática jurídico-penal.

Importante registrar, porém, que o equívoco conceitual ou a nulidade processual não são necessariamente produtos da decisão do Relator do julgado de referência apresentado. Aliás, de forma oposta, normalmente os Tribunais Superiores fi xam as guias de interpretação a partir da correção das falhas apresentadas nas decisões dos Tribunais regionais ou dos juí-zes de primeiro grau de jurisdição.

Ocorre que em razão de a investigação ser direcionada aos critérios judiciais de aplicação da pena, interessará à análi-se qualititiva todas as valorações constantes nos acórdãos, ou

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seja, além da decisão fi nal da Corte Superior, serão expostos os fundamentos dos juízes singulares ou dos Tribunais locais que integram o relatório. Neste sentido, determinada referên-cia das instâncias inferiores pode ser identifi cada em certo jul-gado sem que necessariamente o seu conteúdo seja comparti-lhado pelo Relator ou pela Corte de Julgamento. Constitui-se como objeto de investigação, portanto, tanto o argumento da decisão que defi ne o posicionamento do Relator em relação à matéria discutida como o conjunto de decisões expostas no relatório do caso.

É possível, pois, que o argumento apresentado pela pes-quisa indique apenas o conteúdo da sentença de primeiro grau ou do julgado do Tribunal local que, posteriormente, apreciado pela Corte Superior, foi mantido ou alterado.

A advertência é importante para que, em caso de leitu-ra superfi cial das referências, não se atribua ao Relator(a) do julgado o posicionamento que se pretende criticar, pois em muitos casos revela tão-somente a motivação da decisão que foi reformada.

11.2. Valoração e Conceituação das Circunstâncias Judiciais

As circunstâncias judiciais estão estabelecidas no art. 59, caput, do Código Penal, em duas ordens de valoração: circuns-tâncias judiciais objetivas que dizem respeito aos elementos ex-ternos do fato-crime (circunstâncias e consequências do crime e comportamento da vítima) e as circunstâncias judiciais sub-jetivas que dizem respeito ao autor responsável pela conduta ilícita (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personali-dade e motivos).

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A investigação permitiu concluir que, por ser esta fase a de maior prevalência de categorias abertas (fase da quantifi -cação da pena), na pena-base residem os maiores problemas e difi culdades judiciais.

Optou-se, metodologicamente, por avaliar isoladamente a categoria (a) culpabilidade e conjuntamente (b) personalidade e conduta social e (c) circunstâncias, consequências e motivos. A eleição das análises conjuntas ocorreu em face de as catego-rias apresentarem problemas similares relativos à sua nature-za, objetiva ou subjetiva.

Não houve nenhuma incidência da circunstância compor-tamento da vítima nos julgados do STF. No STJ foram localizadas apenas 04 referências sem qualquer relevância para a investi-gação – “comportamento da vítima em nada contribuiu para a prá-tica delituosa” (STJ – 5º Turma – Habeas Corpus 72024/DF – Rel. Min. Laurita Vaz; STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus 92431/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 19/06/2008; STJ – 6ª Turma – Recurso Especial 658.512/GO, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 25/02/2008; STJ – 6ª Turma - Habeas Corpus 67.710/PE, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 27/03/ 2008).

11.2.1. Dupla Valoração de Circunstâncias: Violação ao Princípio Ne Bis in Idem

A principal nulidade em relação à fundamentação da aplicação da pena foi diagnosticada a partir da sobreposição de circunstâncias, fato caracterizador de bis in idem (dupla va-loração).

A violação ao princípio da proibição da dupla valoração (ne bis in idem) pode ser constatada em três planos. Primeiro, em nível horizontal, entre as categorias de dosimetria, quan-do ocorre a duplicação de efeitos entre as circunstâncias judi-

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ciais do art. 59 do Código Penal, ou seja, quando uma circuns-tância atua como conteúdo de outra e sustenta novo juízo de reprovação. Segundo, em nível vertical, quando há aplicação cumulada de circunstâncias judiciais, circunstâncias legais agravantes ou majorantes e causas especiais de aumento e de diminuição (majorantes e minorantes). Terceiro, igualmente no plano vertical, quando ocorre a sobrevaloração de circuns-tâncias elementares do tipo penal imputado em qualquer das fases de quantifi cação da pena.

Os casos mais comuns de bis in idem ocorrem na primei-ra fase (pena-base), seja pela sobrevalorização de elementares do tipo (plano vertical) ou pela duplicação de conteúdo entre as circunsâncias judiciais (plano horizontal).

§ 1º. Ação de Habeas Corpus julgada em abril de 2008 pela 2ª Turma do STF, Rel. Min. Eros Grau, exemplifi ca ambas as hipóteses de bis in idem mencionadas acima.

HABEAS CORPUS. PENAL. TRÁFICO DE EN-TOR PECENTES. PENA-BASE. CIRCUNSTÂNCIAS JU DICIAIS. GRANDE QUANTIDADE DE SUBSTÂN-CIA ENTORPECENTE.

1. Paciente condenado pela prática do crime de tráfi co de entorpecentes. Grande quantidade de maconha (aproxi-madamente duzentos quilos). Circunstância que, ao lado da má conduta social e da propensão ao tráfi co de entorpecentes, justifi ca a imposição de pena-base acima do mínimo legal.

Ordem denegada. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 93875-2, Min. Eros Grau, 15/04/2008).

No julgamento em primeiro grau, em caso de imputação de tráfi co de entorpecentes, o Magistrado valorou negativa-mente 05 circunstâncias judiciais para graduar a pena-base acima do mínimo: culpabilidade, conduta social, personali-

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dade, consequência do crime e maus antecedentes. Valorou a culpabilidade sustentando que “o acusado atuou com signifi cati-vo grau de culpabilidade, face ao longo iter que percorreu, revelador de sua obstinação e insistência na prática do delito”. Ao funda-mentar conduta social, antecedentes e personalidade afi rmou: “além disso possui péssima conduta social e personalidade voltada à delinqüência, como aliás revelam seus péssimos antecedentes”. Por fi m, em relação às consequências do crime, sustentou: “não pode passar despercebida, de outro lado, a signifi cativa quantidade de maconha apreendida, qual seja, 196kg e 700gr, a ensejar, tam-bém por essa razão, à luz do art. 37 da Lei Antitóxicos, a elevação da pena-base, máxime considerando que delitos desse jaez têm sido responsáveis pela destruição de lares, famílias, bem como têm gera-do a prática de tantos outros, tais como furto e roubo, constituindo atualmente o fl agelo da humanidade, notadamente na quantidade acima mencionada, e considerando tratar-se de maconha, ou seja, entorpecente sabidamente consumido em proporções ínfi mas”.

A pena-base foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) acima do mínimo legal previsto (03 anos), restando em 06 anos de reclusão e multa de 100 dias-multa. A Suprema Corte manteve a pena-base entenden-do que esta se encontrava satisfatoriamente fundamentada nas hipóteses do art. 59 do Código Penal.

Nota-se, no caso, que houve valoração redobrada dos maus antecedentes criminais, os quais serviram para fundamentar o juízo negativo da culpabilidade (“obstinação e insistência na prática do delito”), a conduta social e a personalidade, além dos próprios antecedentes (“possui péssima conduta social e perso-nalidade voltada à delinquência, como aliás revelam seus péssimos antecedentes”).

Outrossim, na análise das consequências do crime, a decisão incorre em juízo de cunho essencialmente moral, em

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afronta ao princípio da secularização, confundindo desdo-bramentos naturais da conduta (elementares do tipo penal) com as consequências do crime (“delitos desse jaez têm sido res-ponsáveis pela destruição de lares, famílias, bem como têm gerado a prática de tantos outros, tais como furto e roubo, constituindo atu-almente o fl agelo da humanidade”).

§ 2º. De forma análoga dois Recursos Ordinários Consti-tucionais julgados pelo Supremo Tribunal Federal:

DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS COR PUS. REGIME INICIAL FECHADO. CIR CUNS-TÂNCIAS SUBJETIVAS DESFAVORÁVEIS. MAUS ANTECEDENTES, PÉSSIMA CONDUTA SOCIAL. DENEGAÇÃO.

1. Paciente condenado à pena corporal de 3 (três) anos, de reclusão, em regime fechado, devido às circunstâncias ju-diciais desfavoráveis (CP, art. 59).

2. Sentença fundamentada nos maus antecedentes (condenações transitadas em julgado), personalidade volta-da ao crime e péssima conduta social.

3. Recurso improvido. (STF, 2ª Turma, Recurso Or-dinário em Habeas Corpus nº 89000-8/MS, Min. Ellen Gracie, 24/06/2008).

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS COR-PUS. EXTORSÃO MEDIANTE SEQUESTRO. DOSI-METRIA DE PENA. PENA-BASE. MAJORAÇÃO. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. ORDEM DENEGADA. PROGRESSÃO DE REGIME. CRIME HEDIONDO. POSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS DE OFÍCIO.

1. Não merece reparo a sentença na qual o juízo de primeiro grau fundamenta, de maneira concreta e precisa, as circunstâncias que ensejaram a fi xação da pena-base do paciente em patamar acima do mínimo legal.

2. Ordem denegada.

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3. O plenário do Supremo Tribunal Federal pronun-ciou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do óbice legal à progressão de regime, contido na Lei dos Crimes Hediondos (HC nº 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio).

4. Conforme fi cou consignado no mencionado prece-dente, a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo não signifi ca que o condenado tenha um direito subjetivo ao ingresso em regime menos gravoso. Apenas se permite que aquele que se encontre preso pela prática de crime he-diondo tenha sua situação subjetiva analisada, cabendo ao juízo competente avaliar se estão presentes os requisitos ne-cessários à pretendida progressão. Habeas Corpus de ofício concedido para essa fi nalidade. (STF, 2ª Turma, Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 90223-5/RJ, Min. Joaquim Barbosa, 08/04/2008)

No primeiro caso, o Magistrado de primeiro grau (decisão mantida em todos os níveis de jurisdição), com base nos ante-cedentes, fundamenta conduta social e personalidade: “sobre a conduta social do réu, cumpre considerar seu comportamento junto à comunidade, tratando-se de cidadão há muito vocacionado ao ilícito, preferindo viver de rapinas ao labor honesto”; (...) “a sua personali-dade demonstra ser de indivíduo com intensa inclinação à senda do crime, com especial predisposição para os crimes contra o patrimônio, posto que já condenado neste juízo por idêntica prática”.

No segundo, além de os antecedentes (re)fundamen-tarem juízo sobre personalidade, a categoria periculosidade é utilizada como metarregra de interpretação: “trata-se, portan-to, de pessoa de acentuada periculosidade, de personalidade voltada para o mundo do crime, ganhando a vida mediante a exploração de uma das modalidades criminosas mais abomináveis que há”.

§ 3º. Nota-se, porém, que apesar de terem sido mantidas as decisões dos juízes singulares nos casos acima expostoas,

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os Tribunais têm plena compreensão da impossibilidade de valorar mais de uma vez a mesma circunstância, como pode ser visualizado nos seguintes acórdãos do STF e do STJ:

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PE-NAL. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE. GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO. LESÃO AO ERÁRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE POR CONSTITUÍREM ELEMENTARES DO TIPO. SANÇÃO CORPORAL MITIGADA. REGIME INICIAL ABERTO, FIXADO COM BASE NO ART. 33, § 2º, C. ORDEM CONCEDIDA.

I - A gravidade abstrata do delito já foi levada em con-sideração pelo legislador para a cominação das penas míni-ma e máxima.

II - Nos delitos materiais contra a ordem tributária, a lesão ao erário público é elementar do tipo.

III- Imprestáveis ambas as circunstâncias, portanto, para a exasperação da pena-base, que deve ser fi xada no mí-nimo legal.

IV- O regime inicial, à falta de qualquer consideração desfavorável na sentença, é o aberto, com fundamento no art. 33, §2°, c, do CP.

V - Ordem concedida. (STF, 1ª. Turma, Habeas Corpus nº 92274-1/MS, Min. Ricardo Lewandowski, 19/02/2008)

HABEAS CORPUS. PRISÃO DOMICILIAR. NÃO COMPROVAÇÃO DA IDADE (75 ANOS) DO PACIENTE. DOENÇA. ALEGAÇÃO FORMULADA ORIGINARIAMENTE NO PRESENTE HABEAS COR PUS . SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. DO-SI METRIA DA PENA. CONSIDERAÇÃO IN-DE VIDA DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS CO-MO DESFAVORÁVEIS. AUSÊNCIA DE FUN-DAMENTAÇÃO.

(...) 3. O julgador deve, ao individualizar a pena, examinar com acuidade os elementos que dizem respeito ao

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fato, obedecidos e sopesados todos os critérios estabelecidos no art. 59 do Código Penal, para aplicar, de forma justa e fundamentada, a reprimenda que seja, proporcionalmente, necessária e sufi ciente para reprovação do crime.

4. Não é cabível a adoção de elementares concernentes ao próprio tipo penal previsto no art. 50, inc. I, e parágrafo único, incisos I e II, da Lei n.º 6.766/79 - promoção, durante anos, de venda de frações do imóvel irregular, mesmo dian-te dos diversos embargos promovidos pela Administração Municipal ao seu empreendimento imobiliário, e dos even-tuais prejuízos impostos aos diversos adquirentes dos lotes -, para fundamentar a exacerbação da pena-base.

5. Habeas Corpus não conhecido. Ordem concedida, de ofício, para determinar que o Juízo de primeiro grau, manti-da a condenação, proceda à nova dosimetria das penas, com a observância da devida fundamentação, e, por conseguinte, proceda à análise da possibilidade de prisão domiciliar ao ora Paciente. (STJ, 5ª. Turma, Habeas Corpus n° 95102/RJ, Min. Laurita Vaz, 08/05/2008)

Desta forma, foi possível perceber, na pesquisa, que resta demasiado dúbio aos Magistrados a extensão a ser dada ao prin-cípio ne bis in idem, sobretudo em relação às estruturas típicas abertas ou imprecisas. Nestes casos, em face do apelo punitivista e da formação inquisitorial, verifi ca-se maior tendência à viola-ção da garantia de proibição da dupla valoração.

§ 4º. Decisão altamente complexa proferida pelo STJ, de-vido ao grau de profundidade exposto na valoração dos con-ceitos das circunstâncias judiciais, merece especial destaque.

No julgado várias categorias da pena-base são analisa-das, com especial cuidado para identifi car e sanar as possi-bilidades de bis in idem. Outrossim, a decisão se destaca pela posição clara em relação à necessidade de exclusão de juízos morais na aplicação da pena (argumentos inidôneos) que acabam preenchendo as circunstâncias judiciais subjetivas,

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sobretudo. Ademais, conforme o entendimento das Cortes Superiores, a obrigatoriedade de fundamentação das circuns-tâncias que agravam a pena é princípio processual confi gura-dor de toda a decisão, inclusive no momento da dosimetria.

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS COR-PUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. 1. DOSIMETRIA DA PENA. DUPLA VALORAÇÃO DE UMA DAS QUALIFICADORAS. UTILIZAÇÃO PARA QUALIFICAR O DELITO E PARA FIXAR A PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL NA PRIMEIRA ETAPA DE DOSIMETRIA DA PENA, COMO CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL. 2. CONDUTA SOCIAL. DESFAVORÁVEL. COMETIMENTO DO PRÓPRIO DELITO. IMPOSSIBILIDADE. AVALIAÇÃO ÉTICA DA CONDUTA DO PACIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 3. COMPORTAMENTO DA VÍTIMA NEUTRO. VA -LORAÇÃO EM PREJUÍZO DO ACUSADO. IM-POSSIBILIDADE. 4. ORDEM CONCEDIDA.

1. Inviável se torna a dupla valoração de qualifi ca-doras, tanto para qualifi car o delito, quanto para a fi xação da pena-base acima do mínimo legal, na primeira etapa de dosimetria da pena, sob pena de incorrer-se em bis in idem.

2. A conduta social do agente não pode ser considera-da desfavorável apenas por conta do cometimento do próprio delito, assim como considerações de cunho ético e moral de-vem ser excluídas da avaliação.

3. O comportamento da vítima tachado como neutro não pode ser valorado como prejudicial ao acusado.

4. Ordem concedida para anular o acórdão que mante-ve a sentença, de modo a excluir as circunstâncias judiciais concernentes à culpabilidade, à conduta social e ao compor-tamento da vítima, por entendê-las fundamentadas com base em argumentos inidôneos, vedando qualquer consideração desfavorável com relação a estas circunstâncias, bem como para determinar ao tribunal a quo que proceda a nova in-dividualização da pena, fundamentando adequadamente as

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demais circunstâncias (motivo, circunstâncias e consequ-ências), redimensionando-se a pena apenas de acordo com estas. (STJ – 6ª Turma - HABEAS CORPUS Nº 67.710/PE, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. em 27 de março de 2008)

11.2.2. Culpabilidade: Imprecisão Conceitual

§ 5º. Questão visualizada em inúmeros acórdãos e que merece especial atenção é a forma de conceituação da circuns-tância culpabilidade.

Em várias sentenças, em diversos níveis de jurisdição, foi perceptível a utilização de conceitos totalmente distintos. Em sua maioria os julgados analisados apresentavam a conceitu-ação utilizada pelo juiz em primeiro grau, aderindo ou modi-fi cando o seu conteúdo.

A pluralidade de conceitos adotados indica claramente a confusão conceitual sobre a categoria culpabilidade, fato que requer avaliação específi ca.

Exemplifi cativamente são arroladas decisões que ex-põem as argumentações dos juízes singulares, a partir da crí-tica ou adesão realizada pelo Tribunal.

“Reprimenda fi xada acima do mínimo legal em ra-zão do modo intensamente reprovável de execução do deli-to”. (STF, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 92956-7/SP, Min. Cármen Lúcia, 01/04/2008)

“O acusado atuou com signifi cativo grau de culpabili-dade, face ao longo iter que percorreu, revelador de sua obs-tinação e insistência na prática do delito”. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 93875-2, Min. Eros Grau, 15/04/2008)

“Deve ser considerada também como desfavorável ao réu a alta reprovabilidade da sua conduta” (STF, 2ª Turma,

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Recurso Ordinário em Habeas Corpus, nº 93855-8/RJ, Min. Eros Grau, 08/04/2008)

Com igual incidência nas Turmas do STJ:

“Demonstrou culpabilidade de elevado grau de repro-vabilidade, pois se associou ao um grupo delituoso, tendo o seu genitor como um dos membros (denunciado Silvio Amadi), voltado para a prática do tráfi co de drogas em grande quantidade (654.350kg), proveniente do Estado do Paraná, o que torna extremamente nociva a sua conduta.” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 94.549/DF, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 21/02/08)

“Aumentei a pena privativa de liberdade, em face do dolo intenso do réu na prática delitiva, reveladora de insen-sibilidade moral e exacerbada cupidez.” STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 52.558/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 11/03/08)

“Quanto à culpabilidade, anoto que é alta, eis que o crime foi cometido com violência contra a pessoa.” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 84.050/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 11/03/08)

“(...) foi intensa a sua culpabilidade, já que agiu inter-na e externamente visando resultado fi nal lucrativo (...)”.(STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 97.447/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 01/04/08)

“A reprovabilidade de sua conduta é de grau intenso porque subtraiu a vultuosa importância de R$ 356.379,50.” (STJ – 6ª Turma – AgRg no Agravo de Instrumento nº 916.884/PR, Rel. Min. Nilson Naves, j. em 27 de março de 2008)

“(...) reconheço alta a culpabilidade do sentenciado, que, no veredicto do Júri, ceifou a vida da vítima por ‘motivo torpe’ (visando ao recebimento da recompensa) e sem lhe dei-xar possibilidades de defesa, pela ação surpreendente.” (STJ

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– 6ª Turma - Habeas Corpus 67.710/PE, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. em 27 de março de 2008)

“A culpabilidade é acentuada, tendo em vista a instru-ção do réu (2o grau completo).” (STJ – 6ª Turma – AgRg no Recurso Especial 753.419/RS, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), j. em 29 de abril de 2008)

“Não resta dúvida que o delinqüir de um policial se reveste de maior culpabilidade, na medida em que é a mais crassa quebra da confi ança que lhe fora depositada pela sociedade, que lhe destinou a tão nobre missão de comba-te ao crime, investindo-o de poder para tanto.” (STJ – 6ª Turma – Habeas Corpus 37.107/SP – Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. em 1º de abril de 2008).

A ausência de critérios precisos para valorar a categoria culpabilidade gera inúmeros vícios (lacunas, contradições, imprecisões, confusões conceituais), dentre os quais valora-ções de modus operandi do delito, iter crime, reprovabilidade intrínseca à conduta, coautoria, dolo, bem jurídico, fi m econô-mico, expressividade da lesão, grau de instrução e atividade profi ssional, respectivamente.

Na maioria dos casos há fundamentação da culpabilida-de com elementos diretamente vinculados à tipicidade (ele-mentares). Referência expressa a qualifi cadoras igualmente emerge da apreciação.

§ 6º. Julgado da 6ª Turma do STJ merece especial destaque:

RECURSO ESPECIAL. CRIME DE SEQÜESTRO. CONHECIMENTO PELA ALÍNEA “B”. ATO DE GO-VERNO LOCAL. INEXISTÊNCIA. DIVERGÊNCIA JU-RISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADA. OFENSA AO ARTIGO 619 DO CÓDIGO DE PROCESSO PE-NAL. OMISSÃO NÃO APONTADA. SÚMULA Nº

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284/STF. NÃO-CONHECIMENTO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. INEXISTÊNCIA DE DOLO. REEXAME DO MATERIAL FÁTICO-PROBATÓRIO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. INOCORRÊNCIA. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. COISA JULGADA. INOCORRÊNCIA. INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA.

(...) 8. A consciência da ilicitude, a exigibilidade maior da conduta conforme ao direito e o dolo intenso são induvi-dosas circunstâncias judiciais, nos próprios da culpabilida-de, não existindo ilegalidade qualquer a gravar, no particu-lar, a individualização da pena.

9. A investigação temerária, confessada como motivo do agir criminoso, diversamente do que entendem os recor-rentes, é expressão manifesta do autoritarismo que ofende os valores essenciais do Estado Democrático de Direito, mormente na perspectiva da liberdade individual, não tendo cabida sequer cogitar de bons serviços prestados à sociedade.

10. Recurso parcialmente conhecido e improvido. (STJ – 6ª Turma - Recurso Especial Nº 864.163/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. em 1º de abril de 2008)

No relatório são expostos os argumentos que embasam a circunstância culpabilidade, com especial referência ao dolo: “no tocante às circunstâncias judiciais de aplicação da pena, leva--se em conta a culpabilidade dos acusados, principalmente ao que se refere a Jackson e Marcelo, os quais tinham plena consciência da ilicitude do ato praticado, sendo que lhes eram exigidas condutas bem diversas, principalmente pelo fato de ser o primeiro policial civil e o segundo ter sido policial militar, tendo agido todos os três de-nunciados com dolo intenso, ao apanhar a vítima em casa e fi car na companhia da mesma por horas, ostentando arma de fogo.”

§ 7º. Em julgamento na mesma Turma, decisão explora com profundidade acadêmica o conceito de culpabilidade,

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em oposição direta à noção empregada anteriormente: “(...) tida na reforma penal como o fundamento e a medida da responsabi-lidade penal. Substituiu-se na lei as expressões ‘intensidade do dolo’ e ‘grau de culpa’, com a justifi cativa de que ‘graduável é a censura cujo índice, maior ou menor, incide na quantidade da pena’, confor-me se vê no item 50 da ‘Exposição de Motivos da Lei nº 7.209/84’. O exame da culpabilidade, quando da dosimetria, constitui, hoje, um juízo de reprovabilidade da conduta praticada, ou seja, a sua medida, sendo que alguns autores entendem que ela integra o próprio delito, não podendo ser considerada como critério de majoração da pena pelo juízo de censura.” (STJ – 6ª Turma – Habeas Corpus 43.930/RJ – Rel. Ministra Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), j. em 22 de abril de 2008).

De forma análoga descrição encontrada em julgado da 5ª Turma: “como circunstância judicial, a culpabilidade deve ser analisada em sentido lato, entendida como a reprovação social que o crime e a autora merecem. Diferente, pois, da culpabilidade elemento constitutivo do delito, cujos requisitos são a imputabilidade do agen-te, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Nesta fase da dosimetria, cabe ao juiz avaliar, não mais a presença dos pressupostos acima declinados, sem os quais não há crime, mas o grau de censura social que incide sobre a agente e sobre o fato cometido. Assim é que, nesta oportunidade, classifi -ca-se a culpabilidade entre intensa, média ou reduzida.” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus 64.903/PE, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 07/02/08)

Nos casos expostos e contrapostos, percebe-se que gran-de parte da jurisprudência resiste à Reforma de 1984, enten-dendo, como se o Código Penal ainda adotasse o sistema causalista, estar dolo localizado na culpabilidade. Com a in-corporação do fi nalismo e o deslocamento do dolo (e da ne-gligência) para a tipicidade, na qualidade de elementares sub-

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jetivas do tipo sua revaloração na aplicação da pena implica, necessariamente, bis in idem.

11.2.3. Volatilidade dos Conceitos de Personalidade e Conduta Social

§ 8º. A volatilidade dos conceitos personalidade e con-duta social – diferentemente do conceito culpabilidade que, embora de conteúdo dúbio na jurisprudência, possui defi ni-ção precisa na dogmática – possibilita os mais diversos tipos de interpretação. Exatamente por isso são os conceitos que mais ampliam o punitivismo judicial, atuando como espaços abertos para valorações morais e impressões pessoais sobre o estilo de vida dos réus, ilações acerca dos seus deveres e res-ponsabilidades éticos, entre outros.

Seguindo a metodologia utilizada em relação ao conceito de culpabilidade, na sequência são expostas decisões que, no relatório ou no voto, há tentativa de conceituar a circunstân-cia personalidade:

“Tendo em vista o modo de execução do delito, pre-viamente ajustado entre quatro pessoas, com o uso de duas armas - revólver e faca - e, ainda, utilizando-se do estímulo à lascívia para atrair a vítima, atitude veemente imoral, de-monstrando grave falha na formação do seu caráter.” (STF, 1ª. Turma, Habeas Corpus n° 92956-7/SP, Min. Cármen Lúcia, 01/04/2008)

“Considerando ter o réu personalidade perigo-sa, atuando conforme já apontado em diferentes Estados da Federação.” (STF, 2ª. Turma, Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 92295-3/RJ, Min. Ellen Gracie, 24/06/2008)

“(...) a sua personalidade demonstra ser de indivíduo com intensa inclinação à senda do crime, com especial pre-

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disposição para os crimes contra o patrimônio, posto que já condenado neste juízo por idêntica prática”. (STF, 2ª. Turma, Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 89000-8/MS, Min. Ellen Gracie, 24/06/2008)

“Trata-se, portanto, de pessoa de acentuada periculo-sidade, de personalidade voltada para o mundo do crime, ga-nhando a vida mediante a exploração de uma das modalida-des criminosas mais abomináveis que há”. (STF, 2ª. Turma, Recurso Ordinário em Habeas Corpus n° 90223-5/RJ, Min. Joaquim Barbosa, 08/04/2008)

De igual forma decisões no STJ:

“(...) apresentarem personalidades distorcidas e com-prometidas com os valores deletérios da continuidade do comportamento punível” (STF, 5ª. Turma, Habeas Corpus n° 92956-7/SP, Min. Cármen Lúcia, 01/04/2008).

“(...) a sua personalidade, com tenra idade é de índo-le destemida e ousada, em face da quantidade de droga que transportou e escoltou, passando por quatro Estados da Federação (Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Goiás) com desdém para com as instituições públicas legalmente consti-tuídas.” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 94.549/DF, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 21/02/08)

“Pelo fato de já ter sido condenado, responder a outras ações penais e voltar a delinqüir demonstra personalidade com-prometida com o ilícito” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 90.513/DF, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 26/02/08)

“(...) devem ser lembradas as qualidades morais do ape-nado, a sua boa ou a má índole, o sentido moral do crimino-so, bem como sua agressividade e o antagonismo em relação à ordem social e seu temperamento. Também não devem ser desprezadas as oportunidades que o réu teve ao longo de sua vida e consideradas em seu favor uma vida miserável, redu-zida instrução e defi ciências pessoais que tenham impedido o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade. Cabe lembrar que não se pode considerar de má personalidade

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quem possui inquéritos e processos em andamento, conforme iterativas decisões dos Tribunais.” (STJ – 6ª Turma – Habeas Corpus 43.930/RJ – Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), j. 22/04/ 2008).

“(...) personalidade voltada à prática de condutas deli-tivas, conforme se infere da folha de antecedentes criminais (fl s. 97/105).” (STJ – 6ª Turma - Habeas Corpus 54.616/RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 22/04/2008)

“(...) que demonstra o réu a personalidade violenta, haja vista o seu especial apreço por armas de fogo” (STJ – 6ª Turma - Recurso Especial 658.512/GO, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 25/02/2008)

Na maioria dos casos a valoração negativa é derivada de juízos essencialmente morais ou possui notória vinculação aos antecedentes e/ou habitualidade delitiva. Em casos extre-mos, as decisões imputam graus de periculosidade, dado que, tecnicamente, determinaria a ausência de reprovabilidade do agente, por ser este elemento (periculosidade) fundamento de aplicação de medida de segurança – diferentemente da culpa-bilidade, fundamento de aplicação das penas.

Em inúmeros casos foi perceptível nos relatórios das de-cisões a fusão das circunstâncias personalidade e conduta so-cial ou destas com os antecedentes, reforçando a hipótese de alta incidência de dupla valoração dos elementos de aplicação da pena:

“(...) além disso possui péssima conduta social e per-sonalidade voltada à delinqüência, como aliás revelam seus péssimos antecedentes.” (STF, 2ª. Turma, Habeas Corpus n° 93875-2, Min. Eros Grau, 15/04/2008)

“No que diz respeito à sua conduta social e personali-dade, verifi ca-se a contumácia na prática de delitos contra o patrimônio – especifi camente envolvendo aparelhos de som de veículos –, afeição à criminalidade para produzir o seu

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sustento, vivência em completo descaso com a Justiça; igno-ra o comando legal e não valoriza o sagrado direito à liberda-de.” (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 95.022/MS, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em 11/03/08)

Neste aspecto, recente súmula do STJ impede, igualmen-te, que inquéritos policiais e processos penais sem trânsito em julgado sejam valorados na pena-base como personalidade negativa, conforme alguns Tribunais locais estavam susten-tando: “é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base” (Súmula 444).

§ 9º. Não diferem as valorações relativas à conduta social.

“(...) condutas sociais marginais, mas sem prejuízo de exibirem uma audácia e uma agressividade ímpares.” (STJ – 5ª Turma – Agravo Regimental em Agravo de Instrumento nº 87.896/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, j. em 10/06/08)

“(...) a sua conduta social sofre restrição na prova colhida, haja vista que teve diversas passagens pela polícia e respondeu a processos em outras Varas (...)”. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 97.447/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 01/04/08)

§ 10º. No entanto duas decisões do STJ merecem desta-que em face do seu caráter didático e da séria discussão acerca da ilegitimidade de o Judiciário realizar valorações eminente-mente morais sobre os denunciados:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS COR-PUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTE QUALIFICADO. 1. DOSIMETRIA DA PENA. DUPLA VALORAÇÃO DE UMA DAS QUALIFICADORAS. UTILIZAÇÃO PARA QUALIFICAR O DELITO E PARA FIXAR A PENA-BASE

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ACIMA DO MÍNIMO LEGAL NA PRIMEIRA ETAPA DE DOSIMETRIA DA PENA, COMO CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL. 2. CONDUTA SOCIAL. DESFAVORÁVEL. COMETIMENTO DO PRÓPRIO DELITO. IMPOSSIBILIDADE. AVALIAÇÃO ÉTICA DA CONDUTA DO PACIENTE. IMPOSSIBILIDADE. 3. COMPORTAMENTO DA VÍTIMA NEUTRO. VA -LORAÇÃO EM PREJUÍZO DO ACUSADO. IM-POSSIBILIDADE. 4. ORDEM CONCEDIDA.

1. Inviável se torna a dupla valoração de qualifi ca-doras, tanto para qualifi car o delito, quanto para a fi xação da pena-base acima do mínimo legal, na primeira etapa de dosimetria da pena, sob pena de incorrer-se em bis in idem.

2. A conduta social do agente não pode ser considera-da desfavorável apenas por conta do cometimento do próprio delito, assim como considerações de cunho ético e moral de-vem ser excluídas da avaliação.

3. O comportamento da vítima tachado como neutro não pode ser valorado como prejudicial ao acusado.

4. Ordem concedida para anular o acórdão que mante-ve a sentença, de modo a excluir as circunstâncias judiciais concernentes à culpabilidade, à conduta social e ao compor-tamento da vítima, por entendê-las fundamentadas com base em argumentos inidôneos, vedando qualquer consideração desfavorável com relação a estas circunstâncias, bem como para determinar ao tribunal a quo que proceda a nova in-dividualização da pena, fundamentando adequadamente as demais circunstâncias (motivo, circunstâncias e consequ-ências), redimensionando-se a pena apenas de acordo com estas. (STJ – 6ª Turma – Habeas Corpus 67.710/PE, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. em 27/03/2008)

Na declaração de voto, a Relatora argumenta: “(...) enten-do que a atribuição de conduta social desfavorável ao paciente em razão de ter esta sido ‘manchada pelo evento que gerou o processo, dando péssimo exemplo à sociedade’ não procede, dado que a condu-ta social deve ser avaliada fora do contexto do próprio delito, já que,

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do contrário, toda conduta social seria avaliada desfavoravelmente em caso de condenação, o que não é intuito do legislador, que pro-curou avaliar se o paciente tinha à época do cometimento do delito uma conduta social boa, como se portava no ambiente de trabalho, e sua relação com a família, etc. (...) Pelo mesmo motivo, o ‘péssimo exemplo dado à sociedade’ não constitui argumento idôneo para ava-liar a conduta social do paciente como sendo ruim. Aliás, qualquer avaliação ética ou moral deve ser afastada deste processo de fi xação da pena, pois não se pode exigir de qualquer pessoa que dê um bom exemplo à sociedade, cobrando-se do cidadão em geral apenas que se omita do cometimento de condutas criminosas.”

Sobre a diferença conceitual entre conduta social e ante-cedentes criminais:

PENAL – HABEAS CORPUS – PENA BASE EXACERBADA – CONSIDERAÇÃO DE UM MESMO FATO PARA ANALISAR CIRCUNSTÂNCIAS JUDI-CIAIS DIVERSAS – ATENUANTE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA CONSIDERADA PARA A CON DE-NAÇÃO – NECESSIDADE DA REDUÇÃO DA PENA PELA ATENUANTE GENÉRICA – REGIME DE CUMPRIMENTO DE PENA – RÉU REINCIDENTE – ALGUMAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DES-FAVORÁVEIS – ORDEM CONCEDIDA PARA RE-CONHECER A CONFISSÃO ESPONTÂNEA E, DE OFÍCIO MODIFICAR A PENA BASE E A FINAL.

1- A conduta social não se confunde com os antece-dentes criminais; a primeira se refere aos antecedentes so-ciais e o segundo se refere a condenações referentes a fatos criminais anteriores ao que se examina e resultantes de deci-são transitada em julgado.

2- Não se pode tomar um mesmo fato mais de uma vez para considerá-lo em diversas circunstâncias judiciais.

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3- Se a sentença considera as declarações do réu para a condenação, impõe-se à redução da pena pela atenuante genérica.

4- Ordem concedida para reconhecer a atenuante da confi ssão espontânea e, de ofício para reestruturar a pena base e a fi nal. (STJ – 6ª Turma – Habeas Corpus nº 98.284/SP, Rel. Min. Jane Silva, j. em 17/04/08)

Ambos os acórdãos estabelecem importantes parâme-tros para o fechamento das lacunas existentes nos critérios utilizados para valoração de antecedentes e conduta social.

§ 11º. Em relação à necessidade de demonstrabilidade empírica da circunstância personalidade, a partir de referên-cia à prova colhida na instrução, recente decisão do STF é pa-radigmática:

DIREITO PENAL. INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. FIXAÇÃO DA PENA. CONDUTA SOCIAL. PERSONALIDADE DO RÉU. CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO.

1. Ação Penal. Condenação. Sentença condenatória. Pena. Individualização. Circunstâncias judiciais desfavo-ráveis. Conduta social negativa. Passagens pela polícia. Processos penais sem condenação. Não caracterização. A existência de inquéritos ou processos em andamento não constitui circunstância judicial desfavorável.

2. Ação Penal. Condenação. Sentença condenatória. Pena. Individualização. Circunstâncias judiciais desfavo-ráveis. Personalidade do agente voltada para o crime. Base empírica. Inexistência. Não caracterização. Desajudada ou carente de base factual, é ilegal a majoração da pena-base pelo reconhecimento da personalidade negativa do agente. 3. Ação Penal. Condenação. Sentença condenatória. Pena. Individualização. Circunstâncias judiciais. Conseqüências do delito. Elevação da pena-base. Idoneidade. Fixação no aci-ma do dobro do mínimo legal. Abuso do poder discricionário

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do magistrado. Inteligência do art. 59 do CP. HC concedido, em parte, para redimensionar a pena aplicada ao paciente. É desproporcional o aumento da pena-base acima do dobro do mínimo legal tão-só pelas conseqüências do delito.” (STF – 2ª Turma – Habeas Corpus nº 97.400 - Rel. Min. Cezar Peluso, j. em 02/02/10).

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12.Problemas na Aplicação da

Pena Provisória (Atenuantes e Agravantes) pelos Tribunais

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Na fase de aplicação da pena provisória, dois temas obti-veram especial relevância: aplicação de atenuantes abaixo do mínimo legal e (in)constitucionalidade da agravante da rein-cidência.

As ações e os recursos que foram propostos ao STF e STJ advieram, em sua integralidade, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), mais especifi camente da 5ª Câmara Criminal, reconhecida nacionalmente pela postura garantista de resistência ao punitivismo.

12.1. Aplicação de Atenuantes Abaixo do Mínimo Legal

§ 12º. O tema, pacifi cado na jurisprudência nacional após a edição da Súmula 231 do STJ (“a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”), retorna ao debate nacional após constantes manifesta-ções do TJRS.

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Interessantes decisões do STJ apontam os motivos pelos quais haveria impossibilidade de aplicação de pena abaixo do mínimo legal.

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCES SUAL PENAL. APRECIAÇÃO DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS QUE DEPENDE DE EXAME APROFUNDADO DE PROVAS. NÃO CONHECIMENTO. CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE. ALEGAÇÃO DE QUE A PENA PODE SER FIXADA ABAIXO DO MÍNIMO COMINADO. TESE CONTRÁRIA À JURISPRUDÊNCIA DESTE SUPREMO TRIBUNAL. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS INDEFERIDO.

1. A análise das circunstâncias judiciais, no caso, de-pende de exame aprofundado do contexto probatório, o que é vedado na estreita via do Habeas Corpus.

2. Impossibilidade de que a pena venha a ser fi xada, por conta de reconhecimento de circunstância atenuante, em patamar inferior ao mínimo legal.

3. A segurança jurídica penal não se revela apenas na segura descrição típica, mas também na previsibilidade das sanções.

4. Função preventiva da sanção que vem expressa no art. 59, caput, in fi ne, do Código Penal.

5. Impetração conhecida em parte e indeferida na parte conhecida. (STF, 1ª Turma, Habeas Corpus n° 93455-2/RS, Min. Ricardo Lewandowski, 13/05/2008)

Na decisão os Ministros adotam o entendimento acerca da impossibilidade de aplicação da pena abaixo do mínimo na segunda fase do método de dosimetria sob dois argumen-tos: (a) ruptura com a segurança jurídica; (b) enfraquecimento da função de prevenção geral da pena criminal.

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Sustentam que “a fi xação da pena em limite abaixo do mínimo legal, tendo em conta a simples apreciação de circunstâncias, cumpre ressaltar, colocaria também em xeque a segurança jurídica. É que, no Direito Penal, este princípio exterioriza uma dupla garantia: de um lado coloca-se a inequívoca descrição típica, a qual permite que toda a sociedade tenha conhecimento da conduta vedada pela lei penal. De outro, ela se completa mediante a clara descrição da sanção que deve ser aplicada àquele que pratica um delito. Acrescento, ademais que, presentes todos os elementos típicos na conduta, a aplicação de uma sanção abaixo do mínimo legal poderia levar ao enfraquecimento de uma de suas principais funções, qual seja, a da prevenção da prática de condutas criminosas.”

No mesmo sentido: STF, 1ª Turma, Habeas Corpus n° 92742-4/RS, Min. Menezes Direito, 04/03/2008; STF, 2ª. Turma, Habeas Corpus nº 93908-2/RS, Min. Eros Grau, 01/04/2008; STF, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 94234-2/RS, Min. Ricardo Lewandowski, 20/05/2008; STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 92926-5/RS, Min. Ellen Gracie, 27/05/2008; STF, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 94684-4/RS, Min. Carlos Britt o, 17/06/2008; STF, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 94365-9/RS, Min. Menezes Direito, 17/06/2008STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 93141-3/RS, Min. Ellen Gracie, 24/06/2008.

No STJ, corte de origem da Súmula 231, o argumento acerca da possibilidade de aplicação da pena provisória abai-xo do mínimo é naturalmente rechaçado, sendo a integralida-de dos julgados que admitem esta possibilidade reformada.

§ 13º. Em julgados sobre o mesmo tema, além dos argu-mentos expostos acima, é invocado terceiro motivo, segundo o qual se admitida pena provisória aquém do mínimo restaria aberta a possibilidade para que o Juiz aplicasse sanções além

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do máximo, situação que na concepção dos julgadores viola-ria a legalidade penal.

HABEAS CORPUS. PENAL. APLICAÇÃO DA PENA. CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE. IMPOS-SI BILIDADE DE FIXAÇÃO DA PENA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL. APLICAÇÃO ANALÓGICA DO CRITÉRIO DE EXASPERAÇÃO DA PENA PREVISTO NO ROUBO CIRCUNSTANCIADO PELO CONCURSO DE AGENTES PARA O FURTO QUALIFICADO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES.

1. Como assentado em precedentes da Suprema Corte, a presença de atenuantes não pode levar a pena a fi car abaixo do mínimo, e a de agravantes também não pode levar a pena a fi car acima do máximo previsto no tipo penal básico ou qualifi cado.

2. Não é possível a aplicação, por analogia, do critério de exasperação da pena previsto no roubo circunstanciado pelo concurso de agentes (1/3 sobre a pena de roubo simples) para o furto qualifi cado em razão da norma expressa no §4° do art. 155 do Código Penal. A analogia pressupõe, para o seu uso, uma lacuna involuntária (art. 4° da LICC), ausente no caso.

3. Habeas Corpus denegado. (STF, 1ª Turma, Ha beas Corpus nº 93071-9/RS, Min. Menezes Direito, 18/03/2008)

Na declaração de voto o argumento aparece em toda sua intensidade: “uma característica fundamental das circunstâncias judiciais, atenuantes e agravantes, é a de que sua aplicação deve estar sempre dentro dos limites mínimo e máximo da pena abstrata-mente cominada. Assim, a presença de atenuantes não pode levar a pena a fi car abaixo do mínimo, e a de agravantes também não pode levar a pena a fi car acima do máximo previsto no tipo penal básico ou qualifi cado.” Decisão idêntica: STF, 1ª Turma, Habeas Corpus nº 90659-1/SP, Min. Menezes Direito, 12/02/2008.

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Em julgamento de outro Habeas Corpus, é invocado o ar-gumento da sensação de impunidade se houvesse a possibi-lidade de o Magistrado diminuir a pena abaixo do mínimo fi xado legislativamente: (...) A tese sustentada pela defensoria Pública, caso seja acolhida, possibilitará o surgimento de situações esdrúxulas. Dela poderia resultar, por exemplo, a imposição de pena irrisória para condenados por crimes graves, o que conduziria à sen-sação de impunidade.” (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus n° 94354-3/RS, Min. Eros Grau, 29/04/2008)

12.2. (In)Constitucionalidade da Agravante da Reincidência

Embora haja referência histórica1 e a temática sobre a in-constitucionalidade da agravante ter espaço privilegiado na doutrina penal latino-americana de inspiração criminológica crítica,2 o debate nunca havia sido proposto no espaço juris-dicional.

A partir da posição fi xada em 1999 pela 5ª Câmara Cri-minal do TJRS,3 compartilhada posteriormente pela 6ª Câmara

1 Na história do Direito Penal, o estatuto penal decorrente da Riforma della Legislazione Criminale Toscana de 1786 estabelecia, em seu parágrafo 57, que, após executada a sanção imposta pela prática de conduta descrita como crime, as pessoas “não poderão ser consideradas como infames, para nenhum efeito, nem ninguém poderá jamais reprovar-lhes por seu delito passado, que deverá se considerar plenamente purgado e expiado com a pena sofrida”.

2 Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, pp. 61-70; Cernicchiaro, Questões Penais, p. 221/2; Copett i, Direito Penal e Estado Democrático de Direito, p. 194; Karam, Aplicação da Pena: por uma nova atuação da justiça criminal, p. 125; Streck, Tribunal do Júri: simbolos e rituais, p. 66; Maia Neto, Direitos Humanos do Preso, p. 147; Santos, Direito Penal: a nova parte geral, p. 245; Maier, Derecho Procesal Penal: fundamentos, p. 644; Zaff aroni, Sistemas Penales y Derechos Humanos en América Latina, p. 89; Zaff aroni, Tratado de Derecho Penal, p. 360; Zaff aroni, Reincidência: um conceito do direito penal autoritário, p. 53.

3 “FURTO. CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE. REINCIDÊNCIA – IN CONS TI-TUCIONALIDADE POR REPRESENTAR ‘BIS IN IDEM’. VOTO VENCIDO.

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e 3ª Turma da mesma Corte,4 o debate atingiu os Tribunais Superiores.

§ 14º. No STF a questão tem sido discutida e os posicio-namentos são pela constitucionalidade do instituto.

HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO CON SU-MADO OU TENTADO. CONTROVÉRSIA. AUSÊNCIA DE IDENTIDADE DE SITUAÇÃO FÁTICA COM PRECEDENTE DESTA CORTE. REINCIDÊNCIA BIS IN IDEM. NÃO CONFIGURAÇÃO. FIXAÇÃO DA PENA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL. VEDAÇÃO. 1. O crime de roubo consuma-se com a verifi cação de que, ces-sada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posso da coisa subtraída, ainda que esta tenha sido retomada logo em seguida por perseguição imediata.

2. Invocação de precedente desta Corte, fi rmado no HC n. 88.259, em que foi reconhecido o crime de roubo tentado e não o delito de roubo consumado. Inocorrência de identidade de situação fática: no HC invocado o agente subtraiu um passe de ônibus utilizando-se de arma de brin-quedo. Considerou-se a particularidade de ter sido ele todo o tempo monitorado por policiais que se encontravam no local do crime. No caso sob exame os bens subtraídos permanece-ram com o paciente, ainda que por pouco tempo. As vítimas chamaram policiais que passavam pelo local, quando já ocor-rido o roubo. A ação policial foi concomitante ao roubo, no primeiro caso; posterior, no segundo.

NEGARAM PROVIMENTO AO APELO DA ACUSAÇÃO POR MAIORIA” (Apelação Crime no. 699291050, 5a. Câmara Criminal TJRS, Rel. Amilton Bueno de Carvalho, j. em 11.09.1999)

4 Julgados nº 70001004530 e 70001014810 (Apelação-Criminal, 6ª Câmara Criminal TJRS, Rel. Des. Sylvio Baptista) e nº 70000916197 (Embargos Infringentes, 3º Grupo Criminal TJRS, Rel. Des. Paulo Moacir Aguiar Vieira)

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3. O reconhecimento de reincidência não confi gura bis in idem. O recrudescimento da pena imposta resulta da opção do paciente em continuar delinqüindo. Precedentes.

4. A pena cominada para o tipo penal não pode fi car aquém do mínimo legal.

5. Ordem denegada. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 92203-1/RS, Min. Eros Grau, 20/05/2008)

Em caso análogo, contra a alegação de ilegalidade do re-conhecimento da reincidência, por traduzir bis in idem, o STF decidiu que “o recrudescimento da reprimenda imposta resulta da opção do paciente em continuar delinqüindo”. (STF, 2ª. Turma, Habeas Corpus n° 93620-2/RS, Min. Eros Grau, 08/04/2008)

§ 15º. Embora o entendimento seja de aplicação unâni-me, foi possível verifi car tendência à adesão da tese da in-constitucionalidade pela Min. Carmen Lúcia: “não desconheço a crítica acirrada de parte da doutrina, que inspirada por alguns dos princípios orientadores do Direito Penal, notadamente pelo repúdio do denominado direito penal do autor, defende ser inadmissível o agravamento obrigatório da pena em razão da reincidência. A tese de ineludível fascínio, jamais obteve, contudo, o beneplácito da ju-risprudência deste Supremo Tribunal, que sempre reputou válida a fi xação daquela agravante, reconhecendo, inclusive, que, ao contrá-rio do que decido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, se justifi caria o ‘recrudescimento da pena imposta ao paciente’ em ra-zão da reincidência, pois isto resultaria de sua ‘opção por continuar a delinqüir’ (...) Assim, rendo-me, por ora, à jurisprudência consoli-dada neste Supremo Tribunal.” (STF, 1ª Turma, Habeas Corpus n° 93969-4/RS, Min. Cármen Lúcia, 22/04/2008)

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13.Aplicação da Pena Defi nitiva pelos

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Foi possível perceber na pesquisa que conforme o pro-cesso de aplicação da pena vai se aproximando da quanti-fi cação fi nal, os temas de confronto e lacuna vão diminuin-do. Este fato fornece importantes elementos para compre-ensão dos problemas causados pelas tipifi cações abertas na vida cotidiana dos operadores do direito, cujos efeitos são diretamente projetados nas pessoas que respondem os pro-cessos criminais.

Dentre os principais debates avaliados destacam-se: (a) quantifi cação da tentativa; (b) quantifi cação e reconhecimento de continuidade delitiva ou concurso material; e (c) (des)pro-porcionalidade do § 4º, art. 155 do Código Penal.

13.1. Quantifi cação da Minorante da Tentativa

§ 16º. A 5ª Turma do STJ em dois casos analisou a ques-tão da quantidade de pena a ser aplicada quando houvesse incidência da tentativa, causa especial de diminuição de pena prevista no parágrafo único do art. 14 do Código Penal. A propósito, importante frisar que a defi nição de critérios para quantifi cação é tema fundamental nos casos de majorantes ou minorantes variáveis.

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PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTELIONATO. DOSIMETRIA DA PENA. VIOLAÇÃO DO CRITÉRIO TRIFÁSICO. TENTATIVA. REDUÇÃO MÍNIMA SEM FUNDAMENTAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.

1. É nula a dosimetria da pena que não atende ao dis-posto nos arts. 59 e 68 do Código Penal, sendo a fi xação da pena-base realizada em desacordo com o critério trifásico, em virtude da consideração da agravante da reincidência em momento inadequado.

2. Na ocorrência de crime tentado, a lei penal faculta ao julgador aplicar uma redução maior ou menor da pena, a depender do iter criminins percorrido. Assim, quanto mais a ação delituosa se aproximar da consumação, menor será a redução imposta e vice-versa.

3. Hipótese em que o Tribunal de origem não se pro-nunciou de forma clara e precisa sobre o iter criminis percor-rido e sua relação com a redução operada pelo reconhecimen-to da tentativa, asseverando apenas que a pena seria dimi-nuída de 1/3 em razão da forma tentada do delito, em franca violação ao art. 14, II, do Código Penal e aos postulados da individualização da pena e da motivação dos atos decisórios.

4. Recurso provido para anular a sentença e o acórdão impugnado no tocante à dosimetria da pena, a fi m de que outra seja realizada, com observância do disposto nos arts. 14, II, 59 e 68 do Código Penal. (STJ - 5ª Turma – Recurso Especial 564858/RO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, J. em 08/05/2008).

RECURSO ESPECIAL. PENAL. CRIME DE FUR-TO. TENTATIVA. CONTRADIÇÃO INEXISTENTE. ITER CRIMINIS PERCORRIDO. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS DO ART. 59 DO CÓ-DIGO PENAL. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO. DE-CLA RAÇÃO DE OFÍCIO DA EXTINÇÃO DA PU-

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NIBILIDADE ESTATAL. OCORRÊNCIA DA PRES-CRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA.

1. A contradição, sanável por aclaratórios, é a incoe-rência entre afi rmações atuais e anteriores dentro da mesma decisão.

2. A redução prevista no art. 14, inciso II, do Código Penal deve corresponder ao trecho do iter criminis percorri-do pelo Réu.

3. As circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal devem ser fundamentadas para a fi xação da pena-base, o que não ocorreu no caso em apreço.

4. Recurso parcialmente conhecido e, nessa parte, provido. Concedido Habeas Corpus de ofício para declarar a extinção da punibilidade estatal pela ocorrência da pres-crição da pretensão punitiva. (STJ - 5ª Turma – Recurso Especial 870630/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, J. em 26/02/2008).

Duas questões relevantes são debatidas nos julgados: a exposição do motivo de diminuição mínima e a graduação da quantidade de pena.

No primeiro caso nota-se a determinação da necessidade de fundamentação da pena em todas as fases de aplicação, inclusive na pena defi nitiva. Assim, tanto em níveis mínimos de diminuição quanto nos patamares máximos de aumento, torna-se imprescindível a demonstração dos motivos que le-varam o juiz ao cálculo fi nal.

O segundo debate é acerca da consolidação do entendi-mento jurisprudencial e doutrinário que vincula o maior ou menor aumento ou diminuição à proximidade da lesão ao bem jurídico provocada pela conduta. Como o fundamento da punição do crime tentado é o perigo de dano ao bem jurí-dico, a graduação da pena estaria vinculada ao grau de pro-babilidade de ofensa.

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13.2. Critério de Aplicação e de Aumento da Pena do Crime Continuado

Em relação ao crime continuado, dois temas foram deba-tidos em acórdãos da 5ª Turma do STJ: (a) aplicação ou não da regra do art. 71 do Código Penal nos casos de concurso entre estupro e atentado violento ao pudor; (b) critérios de aumen-to da majorante, em razão de ser a causa de aumento com maior variabilidade de pena existente na legislação nacional – o art. 71 do Código Penal prevê aumento de 1/6 a 2/3 da pena provisória, diferentemente das demais causas especiais que, em sua grande maioria, operam variação entre 1/3 a 2/3.

§ 17º. No primeiro caso, em julgamento de caso relativo aos crimes sexuais, a 5ª Turma admitiu a inexistência do crime continuado e aplicou a regra do concurso material, impondo duas penas, uma por cada imputação:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ES-PECIAL. REINCIDÊNCIA. APLICAÇÃO OBRIGATÓRIA. CRI MES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ES-TUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONTINUIDADE DELITIVA. INADMISSIBILIDADE. DELITOS DE ESPÉCIES DISTINTAS. CRIMES HE-DIONDOS, AINDA QUE PRATICADOS SEM VIO LÊNCIA OU GRAVE AMEAÇA ÀS VÍTIMAS. PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. As agravantes são de aplicação obrigatória, de sorte que o Julgador não pode deixar de majorar a pena, existindo discricionariedade tão-somente no tocante ao quantum a ser aplicado. Ora, se nem com base nas circunstâncias do caso concreto e nos elementos inerentes à pessoa do agente pode

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a agravante ser repelida, menos admissível ainda o seu afas-tamento calcado em considerações de lege ferenda, como o alegado fracasso teleológico do Estado.

2. A jurisprudência desta Corte fi xou que são hedion-das todas as modalidades de estupro, ainda que simples ou com violência presumida.

3. Em diversas oportunidades, este Superior Tribunal já se manifestou pela inexistência de continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, pois, apesar de serem do mesmo gênero, não são da mesma espécie, possuindo elementos objetivos e subjetivos distintos, não ha-vendo, dessa forma, homogeneidade de execução, ainda que praticados contra a mesma vítima.

4. Agravo Regimental desprovido. (STJ – 5ª Turma – Agravo Regimental em Recurso Especial nº 984.726/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 03/06/08)

No entanto, em razão da alteração provocada pela Lei 12.015/09, que unifi cou no mesmo tipo penal (art. 213, Código Penal) as antigas modalidades de estupro e de atentado vio-lento ao pudor1, o STF, alterando posição histórica, afastou o concurso material e admitiu a continuidade delitiva2.

1 “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.”

2 “1. O Plenário desta Corte, no julgamento do HC nº 86.238 (Rel. p/ac. Min. Ricardo Lewandowski, j. 18/06/2009) assentou, contra meu voto, que se não admite reconhecimento de crime continuado entre os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, ainda que presentes os requisitos conceptuais que se devem extrair do art. 71 do Código Penal …”. “Entendo, contudo, que o debate adquiriu nova relevância com o advento da Lei nº 12.015/2009, que, entre outras alterações no Título VI do Código Penal, lhe unifi cou as redações dos antigos arts. 213 e 214 em um tipo único, verbis: ‘Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção ‘carnal’ ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos’”.

“Conquanto mantenha o nomen juris, a redação do novo tipo penal ‘descreve e estabelece uma única ação ou conduta do sujeito ativo, ainda que mediante uma pluralidade de movimentos. Há somente a conduta do agente de constranger

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§ 18º. Em relação ao debate sobre a possibilidade de ha-ver confi guração da continuidade delitiva nos casos de crimes contra a vida, defi niu a Corte:

alguém, mediante violência ou grave ameaça’. Ademais, ‘é de vital importância observar que o constrangimento é dirigido a que a vítima pratique ou deixe que com ela se pratique atos libidinosos, sejam eles de qualquer espécie, seja através de conjunção carnal, seja através de coito anal, seja através de felação etc., já que tais modalidades nada mais são do que espécies do gênero ato libidinoso, e, tanto isso é verdade, que o tipo penal em questão é explícito ao mencionar conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a confi rmar, pois, tal afi rmação’”. Como se vê, a alteração legislativa repercute decisivamente no debate. Ora, se o impedimento para reconhecer a continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor residia tão-somente no fato de não serem crimes da mesma espécie, entendidos, pela ilustrada maioria, como fatos descritos pelo mesmo tipo penal, tal óbice foi removido pela edição da nova lei”.

“Pode-se extrair, daí, que o novo tipo penal vai além da mera junção dos tipos anteriores, na medida em que integra todas as espécies de atos libidinosos praticados num mesmo contexto fático, sob mesmas circunstâncias e contra a mesma vítima. Isso signifi ca que a nova lei torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva entre os antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias, sem prejuízo do entendimento da Corte de reduzir conceitualmente a fi gura à identidade de espécie dos crimes.

Nesse sentido, entende Matheus Silveira Pupo, em recentíssimo artigo: ‘[A]glutinando aqueles dois crimes em um único dispositivo, certamente se terá como repercussão prática a mudança no entendimento quase pacífi co no âmbito dos Tribunais Superiores, não reconhecendo a existência de crime continuado entre o antigo estupro e o atentado violento ao pudor, afora as hipóteses de praeludia coiti, sob o argumento de que não seriam crimes da mesma espécie, ainda que praticados nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução. Afi nal, doravante, o óbice intransponível apontado por esta corrente - tratar-se de crimes antevistos em tipos diferentes - deixou de existir, pois as duas condutas, antes autônomas, estão agora tratadas na mesma fi gura penal. Por ser assim, quando perpetrados nas mesmas condições de locus, tempus e modus operandi, nos termos do artigo 71 do Código Penal, deverá ser reconhecida a existência de crime continuado, quanto às condutas que antes recebiam o nomen iuris de estupro e de atentado violento ao pudor, hoje contempladas no artigo 213, caput, da Lei Penal.’”

“2. Está claro, pois, que a Lei nº 12.015/09 constitui lei penal mais benéfi ca, donde aplicar-se retroativamente, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição Federal, e art. 2º, parágrafo único, do Código Penal. E, como visto, é incontroverso que os fatos imputados ao ora paciente foram cometidos nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima, razão por que, aliás, a continuidade já havia sido reconhecida pelo Tribunal local. Afastada, pois, a base legal da decisão ora impugnada, deve restabelecida a decisão do Tribunal de Justiça”.

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PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. ROU-BOS MAJORADOS. OCULTAÇÃO DE CADÁVER E QUA DRILHA. JÚRI. ALEGAÇÃO DE ERRO NA FIXAÇÃO DA PENA-BASE. MATÉRIA NÃO SUSCITADA PERANTE O E. TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. RECONHECIMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA ESPECÍFICA DES-FAVORÁVEL AO RÉU. CONCURSO MATERIAL. QUESITO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE A DES-TEMPO. PRECLUSÃO. ALEGAÇÃO DE DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. REEXAME DE PROVA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.

(...) II - A ofensa a bens personalíssimos, com violên-cia ou grave ameaça à pessoa, no caso dos crimes da mesma espécie (homicídios qualifi cados consumados), pode ensejar o crime continuado na forma preconizada no parágrafo úni-co do art. 71 do Código Penal. O que, in casu, entretanto, poderia acarretar o aumento de uma das penas até o triplo. Assim, a aplicação da regra do concurso material mostra-

“3. Quanto ao regime de cumprimento de pena também lhe assiste razão ao paciente. Como já asseverei em sede liminar, o Plenário, no julgamento do HC nº 82.959 (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 01/09/2006), declarou ‘a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990’, o que afasta, para efeito de progressão de regime, o obstáculo representado por essa norma tida por inválida. E, como os fatos ocorreram antes da entrada em vigor da Lei nº 11.464/07, incide a regra do art. 112 da Lei de Execução Penal (HC nº 91.631, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 09.11.2007; HC nº 92.410, Rel. Min. Menezes Direito, DJ 01.02.2008; HC nº 89.699, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 09/05/2008), sem prejuízo da apreciação, pelo magistrado competente, nos termos do art. 66, inc. III, alínea b, da LEP, dos demais requisitos de admissibilidade de progressão de regime prisional”.

“4. Diante do exposto, concedo a ordem para restabelecer o acórdão proferido pelo Tribunal local, que fi xou a pena do paciente em 7 (sete) anos de reclusão, em regime inicialmente fechado”. (STF – 2ª Turma – Habeas Corpus nº 86.110, Rel. Min. Cezar Peluso, j. em 02/03/10)

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-se mais benéfi ca ao paciente (Precedentes desta Corte e do Pretório Excelso).

III - Para a exacerbação da pena, em razão do crime continuado previsto no parágrafo único, do art. 71, do CP, considera-se não apenas o número de infrações cometidas, mas também as mesmas circunstâncias do art. 59 do estatu-to repressivo (Precedentes do STJ).

(...) Ordem parcialmente conhecida e, nesta parte, de-negada. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 87.676/RJ, Rel. Min. Feliz Fischer, j. em 04/03/08)

Outrossim, além do debate acerca da aplicação da regra do art. 71, Código Penal, nos crimes contra a pessoa, neste jul-gado a 5ª Turma do STJ agregou ao critério do número de de-litos o grau de culpabilidade (sentido amplo) auferido na pri-meira fase da aplicação da pena (art. 59, caput, Código Penal).

13.3. (Des)Proporcionalidade do § 4º, Art. 155 do Código Penal

§ 19º. Questão igualmente tematizada pelas Câmaras da referida Corte gaúcha foi a do confronto entre os crité-rios de majoração da pena nos crimes de furto e roubo a partir da análise de proporcionalidade das penas previstas no Código Penal.

O Código estabelece para o crime de furto (art. 155), pena de 01 a 04 anos de reclusão e multa. Todavia impõe pena de dois a oito anos e multa, se o crime é cometido nas se-guintes circunstâncias: I - com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa; II - com abuso de confi ança, ou mediante fraude, escalada ou destreza; III - com emprego de chave falsa; IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas (art. 155, § 4º, Código Penal).

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Ao regrar o crime de roubo, o art. 157 fi xa pena reclusi-va de 04 a 10 anos e multa, prevendo aumento de um terço até metade nos seguintes casos: I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma; II - se há o concurso de duas ou mais pessoas; III - se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância; IV - se a sub-tração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior; V - se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade.

Alguns julgados do TJRS entendiam, pois, desproporcio-nal majoração distinta das penas para as mesmas circunstân-cias especiais de aumento, fundamentalmente por se tratar de condutas similares contra o mesmo bem jurídico,

O STF, em vários julgados, decidiu ser incabível a po-sição de ausência de proporcionalidade entre as sanções dos tipos penais, entendendo serem possíveis aumentos díspares:

HABEAS CORPUS. PENAL. PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL. REAPRECIAÇÃO, VEDAÇÃO. FURTO. ART. 157, § 2°, DO CP. APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. FIXAÇÃO DA PENA ABAIXO DO MÍNIMO.

1. Não compete ao Supremo Tribunal Federal re-apreciar os pressupostos de admissibilidade do recurso especial.

2. A causa de aumento de pena pelo concurso de pes-soa no crime de roubo (art. 157, § 2°, do CP) não se aplica ao crime de furto; há, para este, idêntica previsão legal de aumento de pena (art. 155, §4°, IV do CP).

3. A pena relativa ao tipo penal não pode fi car aquém do mínimo cominado.

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4. Ordem denegada. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 94362-4/RS, Min. Eros Grau, 13/05/2008)

HABEAS CORPUS. DOSIMETRIA DA PENA. FURTO QUALIFICADO. INTERGRAÇÃO DA NOR-MA. MAJORANTE DO CRIME DE ROUBO COM CONCURSO DE AGENTES. INADMISSIBILIDADE. CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE. PENA AQUÉM DO MÍNIMO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. JU RIS-PRUDÊNCIA CONSOLIDADA.

1. As questões controvertidas neste writ - acerca da alegada inconstitucionalidade da majorante do § 4º, do art. 155, CP (quando cotejada com a causa de aumento de pena do § 2º, do art. 157, CP) e da possibilidade (ou não) da fi -xação da pena abaixo do mínimo legal devido à presença de circunstância atenuante - já foram objeto de vários pronun-ciamentos desta Corte.

2. No que tange à primeira questão, não existe lacuna a respeito do quantum de aumento da pena no crime de furto qualifi cado (art. 155, § 4º, CP), o que inviabiliza o emprego da analogia.

3. Os tipos penais referentes aos crimes de furto e roubo recebem tratamento diferenciado, iniciando-se pelos limites mínimo e máximo relativos às penas-base. Por opção legal (critério de política legislativa), considerou-se necessá-rio estabelecer diferentes fatores de aumento das penas.

4. A jurisprudência desta Corte é tranqüila no que tange à aplicação da forma qualifi cada do furto em que há concurso de agentes mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988 (HC nº 73.236-SP, rel. Min. Sidney Sanches, 1ª Turma, DJ 17.05.1996).

5. Quanto à segunda questão, na exegese do art. 65, do Código Penal, “descabe falar dos efeitos da atenuante se a sanção penal foi fi xada no mínimo legal previsto para o tipo” (HC nº 75.726, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 06.12.1998).

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6. De acordo com a interpretação sistemática e teleoló-gica decorrente do Código Penal e das leis especiais, somente ma terceira fase da dosimetria da pena é possível alcançar pena fi nal aquém do mínimo cominado para o tipo simples ou além do máximo previsto.

7. Há diferença quanto ao tratamento normativo entre as circunstâncias atenuantes/agravantes e as causas de di-minuição/aumento da pena no que se refere à possibilidade de estabelecimento da pena abaixo do mínimo legal - ou mes-mo acima do máximo legal.

8. O fato de o art. 65, do Código Penal, utilizar o ad-vérbio sempre, em matéria de aplicação das circunstâncias ali previstas, para redução da pena-base em patamar inferior ao mínimo legal, deve ser interpretado para as hipóteses em que a pena-base tenha sido fi xada em quantum superior ao mínimo cominado no tipo penal.

9. É pacífi ca a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido da impossibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal quando houver a presença de algu-ma circunstância atenuante.

10. Ordem denegada. (STF, 2ª Turma, Habeas Corpus nº 92926-5/RS, Min. Ellen Gracie, 27/05/2008)

O último acórdão – que, a propósito, igualmente rea-liza amplo debate sobre a questão da possibilidade de as atenuantes estabelecerem pena abaixo do mínimo legal co-minado –, limita-se a negar o argumento remetendo a jus-tifi cativa à opção político-legislativa. Não aprecia, porém, se efetivamente houve recepção constitucional dos disposi-tivos em questão.

O posicionamento contrário ao entendimento do TJRS foi recentemente sumulado pelo STJ: “é inadmissível aplicar, no furto qualifi cado pelo concurso de agentes, a majorante do roubo” (Súmula 441).

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13.4. Motivo de Valor Social, Intensidade da Emoção e Provocação da Vítima: Critério de Diminuição de Pena

§ 20º. O regramento do homicídio pelo Código Penal (art. 121) prevê como causa especial de diminuição da pena (minorante), quando “o agente comete o crime impelido por moti-vo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima” (art. 121, §1º). Em tais circunstâncias, o juiz pode reduzir a pena, no patamar de um sexto a um terço, daquela prevista no caput (reclusão de 06 a 20 anos).

Com a mesma natureza das circunstâncias judiciais do art. 59, caput, e de grande parte daquelas previstas no Código Penal como qualifi cadoras do delito de homicídio (motivo torpe, motivo fútil, meio insidioso ou cruel, recurso que im-possibilite ou difi culte a defesa da vítima)3, a minorante cons-titui-se como tipo penal aberto, deixando amplo espaço de discricionaridade judicial.

§ 21º. Em caso de referência julgado pelo STF, entende-ram os Ministros ser cabível a minorante, reconhecendo sua incidência em razão de o homicídio ter sido cometido contra esposa adúltera.

3 “§ 2º Se o homicídio é cometido: - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II - por motivo fútil; III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfi xia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que difi culte ou torne impossível a defesa do ofendido; V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime: Pena - reclusão, de doze a trinta anos.”

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HABEAS CORPUS. PENAL. CAUSA DE DI-MINUIÇÃO DA PENA REFERENTE AO HO-MICÍDIO PRVILEGIADO E REDUÇÃO FACE AO RECONHECIMENTO DE CIRCUNSTÂNCIAS JU-DICIAIS FAVORÁVEIS. VALORAÇÃO IN DE PEN-DENTE.

1. Pena-base fi xada no mínimo legal à consideração de circunstâncias judiciais desfavoráveis.

2. Diminuição de um sexto em virtude do reconheci-mento da causa de diminuição referente ao homicídio privi-legiado (art. 121, § 1º do CP).

3. Improcedência da alegação de constrangimento ilegal fundada em que a diminuição pelo reconhecimento do homicídio privilegiado deveria ser de um terço. Isso porque o Juiz reconheceu circunstâncias judiciais favorá-veis ao paciente.

4. A diminuição da pena em virtude do reconhecimen-to do homicídio privilegiado nada tem a ver com a redução operada face às circunstâncias judiciais favoráveis.

5. O juiz, ao aplicar a causa de diminuição do § 1º do art. 121 do Código Penal, valorou a relevância do motivo de valor social, a intensidade da emoção e o grau de provocação da vítima, concluindo, fundamentadamente, pela diminui-ção da pena em apenas um sexto.

6. Ordem denegada. (STF, 2ª. Turma, Habeas Corpus nº 93242-8/SP, Min. Eros Grau, 26/02/2008)

O Magistrado da causa reconheceu a minorante, manti-da pelos Tribunais Superiores, sob o seguinte argumento: “o privilégio sufragado neste plenário impõe redução da reprimenda em 1/6, consolidando, na ausência de outras causas modifi cadoras, pena corporal de 05 (cinco) anos de reclusão. Optei pela redução mínima da pena face às circunstâncias que ladearam o ensejo. Efetivamente, decidindo lavar com sangue sua desonra pessoal o acusado entre-

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mostrou, para todos os efeitos, que o contexto não foi ocasional. Pelo contrário, foi por si decisivamente precipitado - até porque não apre-sentou prova contrariando essa inferição, o que, tenho para mim, contrapõe-se ao trato mais benevolente do enredo. Veja-se que o acu-sado foi ao encontro da vítima, ceifando-a nas imediações de sua residência. E o fez, segundo alegou, um dia após fl agrar sua adúltera esposa com o amante. Para corroborar a preordenação de sua ira, impossível olvidar o descarregamento da arma que levou proposi-talmente consigo e com a qual crivou o tronco da vítima de tiros. Poderá descontar essa reprimenda em regime inicial semi-aberto (nos termos do artigo 33, § 2°, letra b, do Código Penal), de qual-quer modo, adequado para refl etir sobre o desvalor de sua conduta”.

13.5. Arma de Fogo Desmuniciada e § 2º, Inciso I,Art. 157, Código Penal

§ 22º. No julgamento do Recurso Especial 213.054-SP, na sessão de 24/10/2001, a Terceira Seção do STJ deliberou pela revogação da Súmula 174, que enunciava que “no crime de rou-bo, a intimidação feita com arma de brinquedo autoriza o aumento da pena” prevista no § 2º, inciso I, art. 157, Código Penal. Ou seja, o uso de arma não letal operaria a reclassifi cação do de-lito de furto para roubo, contudo não autorizaria a aplicação da majorante.

Avançando na matéria, a 5ª Turma ampliou a negativa da majorante aos casos de arma desmuniciada.

HABEAS CORPUS. PENAL. TENTATIVA DE ROUBO. ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. CAUSA DE AUMENTO DE PENA NÃO APLICÁVEL. REGIME PRISIONAL FECHADO. IMPOSSIBILIDADE. CIR-CUNSTÂNCIAS JUDICIAIS FAVORÁVEIS. RÉU

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PRIMÁRIO. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO. ART. 33, § 2º, ALÍNEA C, e § 3º DO CÓDIGO PENAL.

1. A inclusão da majorante prevista no art. 157, § 2º, inciso I, do Código Penal, diverge da posição adota-da pelo Superior Tribunal de Justiça, porquanto o uso de arma de fogo desmuniciada no crime de roubo não confi gura causa especial de aumento da pena.

2. Fixada a pena-base no mínimo legal, porquan-to reconhecidas as circunstâncias judiciais favoráveis ao réu primário e de bons antecedentes, não é cabí-vel infl igir regime prisional mais gravoso apenas com base na gravidade genérica do delito. Inteligência do art. 33, §§ 2º e 3º, c.c. art. 59, ambos do Código Penal.

3. Habeas Corpus concedido para restabelecer a sentença de primeiro grau. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 96.388/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 27/03/08)

O precedente é importante em face da grande incidência de casos desta natureza nos Tribunais.

13.6. Concurso de Causas Especiais de Aumento de Pena

§ 23º. O acórdão de referência que discute a quantidade de aumento no caso de concurso de majorantes é bastante comple-to, com várias tematizações acerca da aplicação da pena.

HABEAS CORPUS. APLICAÇÃO DA PENA. REINCIDÊNCIA. AUMENTO DA SANÇÃO. ALE-GAÇÃO DE DESPROPORCIONALIDADE. QUESTÃO NÃO APRECIADA PELO TRIBUNAL IMPETRADO. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO CONHECIMENTO.

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1. A questão aventada na impetração, relativa ao au-mento desproporcional da pena em virtude do reconhecimen-to da reincidência, por não ter sido debatida pelo Tribunal de origem, não pode ser apreciada nesta Corte Superior, sob pena de indevida supressão de instância.

DOSIMETRIA. PENA-BASE FIXADA POUCO ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. PRE-SENÇA DE CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS CON-SIDERADAS DESFAVORÁVEIS. PERSONALIDADE VOLTADA À CRIMINALIDADE E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. JUSTIFICATIVA IDÔNEA. COAÇÃO ILEGAL NÃO DEMONSTRADA.

1. Não há como se acoimar de fl agrantemente ilegal ou abusivo, ou mesmo desproporcional, o pequeno aumento de sanção procedido na primeira fase da dosimetria, se a eleva-ção foi devidamente motivada, em razão do reconhecimento de mais de uma circunstância judicial desfavorável, no caso, a personalidade do agente, inclinada à criminalidade, e as consequências do crime sofridas pelas vítimas, justifi cativas que se mostram idôneas para a majoração.

REPRIMENDA. ROUBO. CONCURSO DE AGEN TES. MENOR INIMPUTÁVEL. IRRELEVÂNCIA. CAUSA DE ESPECIAL AUMENTO DEVIDAMENTE RECONHECIDA. CONSTRANGIMENTO NÃO EVI-DENCIADO.

1. Confi gura-se como majorado o crime de roubo pelo concurso de duas ou mais pessoas, ainda que uma delas seja menor inimputável, pois este integra o número de agentes e, com isso, contribui para uma maior intimidação da vítima, elevando, via de consequência, a gravidade da ação crimino-sa. Precedentes deste

PENA. TERCEIRA ETAPA DA DOSIMETRIA. PRESENÇA DE TRÊS CIRCUNSTÂNCIAS AGRA-VADORAS DO DELITO. EXASPERAÇÃO À ME-TADE. CRITÉRIO OBJETIVO. IMPOSSIBILIDADE.

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AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO QUALITATIVA. COAÇÃO ILEGAL PATENTEADA.

1. Caracteriza-se constrangimento ilegal o acréscimo da pena, considerado na terceira fase da dosimetria, por ter o julgador levado em conta, em sua fundamentação, apenas a quantidade de majorantes elencadas. Precedentes deste STJ.

2. Writ parcialmente conhecido e, nessa extensão, em parte concedido para reformar o acórdão recorrido, apenas no tocante ao aumento procedido na terceira etapa da dosi-metria, que se fi xa em 1/3, em razão da presença das majo-rantes previstas nos incisos I, II e V do § 2º do art. 157 do Código Penal, restando a pena defi nitiva em 8 anos de reclu-são, mantida, no mais, a sentença condenatória. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 91.702/DF, Rel. Min. Miguel José Mussi, j. em 27/03/08)

Na decisão supra, a 5ª Turma do STJ anulou sentença que aumentara, em face do concurso de majorantes do art. 157, Código Penal, na metade a pena provisória, situação que impunha, no caso, pena de 09 anos de reclusão.

Por força da fundamentação do quantum de aumento, anulou parcialmente impondo o mínimo previsto no Código Penal, ou seja, um terço.

Em caso similar, a mesma Turma manteve o entendimen-to do aumento mínimo em razão de não ter sido demonstrada nenhuma excepcionalidade no fato julgado.

HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTAN CIA-DO PELO USO DE ARMA DE FOGO E CONCURSO DE AGENTES. PENA-BASE FIXADA NO MÍNIMO LEGAL (4 ANOS), AUMENTADA DE 3/8 PELA DU-PLICIDADE DE CAUSAS DE AUMENTO. TOTAL CONCRETIZADO: 5 ANOS E 6 MESES DE RECLUSÃO.

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ELEVAÇÃO NÃO JUSTIFICADA. REGIME INICIAL SEMI-ABERTO. ORDEM CONCEDIDA.

1. Segundo iterativa jurisprudência desta Corte, a presença de mais de uma circunstância de aumento de pena no crime de roubo não é causa obrigatória de majoração da punição em percentual acima do mínimo previsto, a menos que seja constatada a existência de circunstâncias que indi-quem a necessidade da exasperação.

2. No caso concreto, as instâncias ordinárias decidi-ram aplicar o aumento de 3/8 na pena-base em razão, tão-só, da existência das duas causas de aumento de pena, quais sejam, concurso de agentes e emprego de arma de fogo. Não registraram qualquer excepcionalidade que ensejasse a ma-joração acima de um terço, não sendo, para tanto, sufi ciente a gravidade em abstrato do crime ou a mera constatação da existência das referidas causas de aumento, motivo pelo qual a exasperação da reprimenda deve ser reduzida para 1/3.

3. As doutas Cortes Superiores do País (STF e STJ) já assentaram, em inúmeros precedentes, que, fi xada a pena--base no mínimo legal e reconhecidas as circunstâncias ju-diciais favoráveis ao réu, é incabível o regime prisional mais gravoso (Súmulas 718 e 719 do STF).

4. Ressalva do entendimento pessoal do Relator, de que o Magistrado não está vinculado, de forma absoluta, à pena-base aplicada ao crime, quando opera a fi xação do regi-me inicial de cumprimento da sanção penal, podendo impor regime diverso do aberto ou semi-aberto, pois os propósitos da pena e do regime prisional são distintos e inconfundíveis. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 90.497/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. em 07/02/08)

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14. Questões Processuais na Aplicação da Pena pelos Tribunais

Superiores no Brasil:Análise Qualitativa

A investigação permitiu detectar importantes diretrizes no sentido de densifi car a tentativa de controle e o fechamen-to dos espaços que potencializam a ruptura com as garantias fundamentais na aplicação da pena. importante registrar, contudo, que posturas garantistas não são constantes nos jul-gamentos do STF e STJ, sendo possível visualizar clara polí-tica judicial de controle do arbítrio, notadamente porque as próprias Cortes Superiores incorrem em inúmeros vícios e equívocos, conforme apontado.

Em sua grande maioria, porém, a tutela do direito ma-terial vem amparada por avanços na interpretação das regras processuais penais.

14.1. Dever de Fundamentar a Aplicação da Pena

§ 24º. A principal garantia visualizada na pesquisa é a do submetimento da decisão judicial, em geral, e das razões da aplicação da pena, no caso, ao princípio da motivação, confor-me o art. 93, IX da Constituição.

Vigente durante longo período a ideia de que a funda-mentação seria sufi ciente apenas em relação aos juízos mate-riais acerca do crime (absolutórios e condenatórios), fi cando a

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questão da pena isolada na sentença, como se fosse apêndice administrativo, vinculado à execução de ato decisório.

Contudo, superada esta fase – e a jurisdicionalização da execução da pena na Reforma de 1984 teve importante pa-pel neste processo –, nota-se a consolidação do alcance do princípio da fundamentação da aplicação da pena nas Cortes Superiores, em que pese muitas vezes os próprios Tribunais não atribuírem ao referido princípio toda a extensão possível.

Neste sentido manifestou-se a 6ª Turma do STJ ao anu-lar decisão e fi xar novo apenamento, com específi ca valoração das circunstâncias:

PENAL. HABEAS CORPUS. CONCUSSÃO. PO LICIAIS. DOSIMETRIA DA REPRIMENDA. NE-CESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES. AUSÊNCIA DE CONSIDERAÇÃO DE TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. REINCIDÊNCIA NÃO-COMPROVADA POR CERTIDÃO CARTORÁRIA JUDICIAL. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E PARCIALMENTE CONCEDIDA.

1. As decisões judiciais devem ser cuidadosamente fundamentadas, principalmente na dosimetria da pena, em que se concede ao Juiz um maior arbítrio, de modo que se permita às partes o exame do exercício de tal poder.

2. Reincidência não-comprovada por certidão carto-rária judicial não pode ser considerada para fi ns de fi xa-ção da pena.

3. Ordem parcialmente conhecida e nesta extensão concedida para anular parcialmente o acórdão e a decisão de primeiro grau, no que se refere à dosimetria das penas, fi xando-se novo regime de cumprimento; e para excluir a agravante da reincidência aplicada a um dos pacientes. (STJ – 6ª Turma - Habeas Corpus Nº 43.930/RJ – Rel. Ministra

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Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ/MG), j. 22/04/2008).

§ 25º. De forma mais clara e apontando para a necessida-de de embasar os juízos sobre aplicação da pena em prova re-futável produzida sob contraditório, duas decisões da 6ª Turma merecem destaque:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. 1. HO MICÍDIO QUALIFICADO PRIVILEGIADO. DO-SIMETRIA. PENA-BASE. EXACERBAÇÃO. 2. ELE-MENTOS DO TIPO CONSIDERADOS COMO CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. INVIABILIDADE. 3. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA.

1. Para a majoração da pena-base é necessário que se explicite, de modo concreto, os fatos que dão azo à incidência das circunstâncias judiciais.

2. Os elementos inerentes à conduta típica não podem ser considerados para se valorar negativamente as circuns-tâncias do delito.

3. Ordem parcialmente concedida. (STJ – 6ª Turma - Habeas Corpus Nº 54.616/RJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 22/04/ 2008)

PENAL – LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE – DOSIMETRIA DA REPRIMENDA – NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES – AUSÊNCIA DE CONSIDERAÇÃO DE TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS – CULPABILIDADE DESFAVORÁVEL – PENA DE MULTA APLICADA – AUSÊNCIA DE COMINAÇÃO NA LEI – EXCLUSÃO - ORDEM CONCEDIDA, INCLUSIVE DE OFÍCIO.

1. As decisões judiciais devem ser cuidadosamente fundamentadas, principalmente na dosimetria da pena, em

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que se concede ao Juiz um maior arbítrio, de modo que se permita às partes o exame do exercício de tal poder.

2. Se apenas a circunstância judicial da culpabilida-de resulta desfavorável ao condenado, sua pena base deve se aproximar do mínimo legal.

3. A pena de multa, se aplicada ao réu condenado por lesões corporais de natureza grave, deve ser excluída, pois o legislador cominou somente a pena privativa de liberdade na Lei Penal.

4. Ordem parcialmente concedida para reduzir as pe-nas privativas de liberdade, e, de ofício, excluir as penas de multa. (STJ – 6ª Turma - HABEAS CORPUS Nº 106.491/MG, Rel. Min. Jane Silva, j. 24/06/2008)

No julgado exposto, além da sustentação do dever de motivar, nota-se a vedação ao bis in idem: “no que diz respeito às circunstâncias do delito, negativamente valoradas pelo magistrado sentenciante, sob o argumento do paciente ter atingido a vítima em área letal, razão assiste à douta defensora, tendo em vista que ao ma-gistrado é vedado proceder tal valoração utilizando-se de elementos próprios do tipo, como ocorreu no caso em apreço.”

Em sentido similar decisões da 5ª Turma do STJ:

HABEAS CORPUS . PENAL. CRIME DE ROUBO QUALIFICADO. FIXAÇÃO DA PENA. NULIDADE. ART. 59 DO CÓDIGO PENAL. INEXISTÊNCIA DE MOTIVAÇÃO CONCRETA. INOBSERVÂNCIA DO CRITÉRIO TRIFÁSICO. REGIME INICIAL FECHADO PARA CUMPRIMENTO DA PENA. IMPROPRIEDADE. PRECEDENTES.

1. Não pode o magistrado sentenciante majorar a pena fundando-se, tão-somente, em referências vagas, sem a indicação de qualquer circunstância concreta que justifi -que o aumento, e inobservando o critério trifásico, de forma

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desordenada e em fases aleatórias. Precedentes desta Corte Superior.

2. Inexistindo circunstâncias judiciais válidas desfa-voráveis ao réu – primário e com bons antecedentes, não é possível infl igir regime prisional mais gravoso apenas com base na gravidade genérica do delito. Inteligência do art. 33, §§ 2.º e 3.º, c.c. o art. 59, do Código Penal. Incidência das Súmulas n.º 718 e 719 do Supremo Tribunal Federal.

3. Ordem concedida, e em parte de ofício, para, manti-da a condenação, anular a sentença e o acórdão que a mante-ve na parte relativa à dosimetria da pena e, por conseguinte, ao regime prisional, fi xando a pena defi nitiva do ora Paciente em 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em re-gime semi-aberto, além de 12 (doze) dias-multa. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 96.395/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 11/03/08)

PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 171, CAPUT, DO CP. DOSIMETRIA DA PENA. FIXAÇÃO DA PENA-BASE. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. EXASPERAÇÃO NÃO JUSTIFICADA.

I - A pena deve ser fi xada com fundamentação concreta e vinculada, tal como exige o próprio princípio do livre con-vencimento fundamentado (arts. 157, 381 e 387 do CPP c/c o art. 93, inciso IX, segunda parte da Lex Maxima). Dessa maneira, considerações genéricas, abstrações ou dados inte-grantes da própria conduta tipifi cada não podem supedanear a elevação da reprimenda (Precedentes do STF e STJ).

II - In casu, verifi ca-se que o v. acórdão recorrido apresenta em sua fundamentação incerteza denotativa ou vagueza, utilizando-se, entre outras, de expressões como: “manifesta periculosidade, materializada na prática de atos preparatórios e de execução, muito bem pensados e deter-minados”; “dolo intenso”; “delito bem pensado, bem me-ditado, bem planejado, que se consumou justamente por

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isso”. Dessa forma, não existem argumentos sufi cientes a justifi car, no caso concreto, a exacerbação da reprimenda ao máximo legal previsto para o delito de estelionato (art. 171, caput, CP), a exceção de uma condenação passada em jul-gado pelo delito de apropriação indébita. Ordem concedida. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 96.395/SP, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 11/03/08). Em idêntico sentido: STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 97.796/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 27/03/08.

PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 157, § 2º, I E II, DO CP. MAJORANTE. EMPREGO DE ARMA. CONFIGURAÇÃO. NÃO APREENSÃO. ART. 167 DO CPP. DOSIMETRIA DA PENA. INCIDÊNCIA DE DUAS MAJORANTES. FUNDAMENTAÇÃO. INO CORRÊNCIA. REGIME PRISIONAL. CIR CUNS-TÂNCIA JUDICIAIS TOTALMENTE FAVORÁVEIS. SEMI-ABERTO.

I - O exame de corpo de delito direto, por expressa de-terminação legal, é indispensável nas infrações que deixam vestígios, podendo apenas supletivamente ser suprido pela prova testemunhal quando tenham estes desaparecido, ex vi do art. 167 do Código de Processo Penal.

II – Esse entendimento deve ser aplicado no que con-cerne à verifi cação de ocorrência ou não da majorante do emprego de arma no crime de roubo, caso contrário o cance-lamento da Súmula 174 do STJ seria, em boa parte, inócuo.

III - No caso concreto, há dúvida relevante sobre o motivo da não apreensão da arma de fogo, o que atrai a incidência do disposto no art. 167 do CPP. Dessa forma, existindo nos autos depoimentos testemunhais que com-provam a sua efetiva utilização, não há como afastar a aplicação da majorante.

IV - Tendo em vista o disposto no parágrafo único do art. 68 e no § 2º do art. 157, ambos do CP, o aumento de

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pena, acima do patamar mínimo, pela ocorrência de duas majorantes específi cas, não pode se dar pela simples cons-tatação da existência das mesmas, como in casu, mas deve ser feito com base nos dados concretos em que se eviden-ciou o fato criminoso (Precedentes desta Corte e do Pretório Excelso).

V - Uma vez atendidos os requisitos constantes do art. 33, § 2º, “b”, e § 3º, c/c o art. 59 do CP, quais sejam, a ausên-cia de reincidência, a condenação por um período superior a 4 (quatro) anos e não excedente a 8 (oito) e a existência de circunstâncias judiciais totalmente favoráveis, devem os pacientes cumprir a pena privativa de liberdade no regime inicial semi-aberto. (Precedentes).

VI - A gravidade genérica do delito, por si só, é insu-fi ciente para justifi car a imposição do regime inicial fechado para o cumprimento de pena. Faz-se indispensável a crite-riosa observação dos preceitos inscritos nos arts. 33, § 2º, “b”, e § 3º, do CP. (Precedentes).

VII - “A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para a im-posição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada.” (Enunciado nº 718 da Súmula do Pretório Excelso, DJU de 09/10/2003). Ordem parcialmente conce-dida. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 97.348/SP, Rel. Min. Felix Fischer, j. em 17/04/08)

§ 26º. O tema da motivação atinge, inclusive, via princípio da proporcionalidade, os critérios de dosimetria e quantifi cação (cálculo) da pena, conforme importante decisão do STJ.

PENAL. HABEAS CORPUS. PECULATO. DO-SIMETRIA DA PENA. MAJORAÇÃO EXACERBADA. CONSTRANGIMENTO CARACTERIZADO. ORDEM CONCEDIDA.

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1. Eventual constrangimento ilegal na aplicação da pena, passível de ser sanado por meio de Habeas Corpus , depende, necessariamente, da demonstração inequívoca de ofensa aos critérios legais que regem a dosimetria da res-posta penal, de ausência de fundamentação ou de fl agrante injustiça.

2. Embora não fi que o sentenciante adstrito, simples-mente, à quantidade de circunstâncias judiciais desfavorá-veis na fi xação da pena-base, é necessário que a fundamenta-ção utilizada seja sufi ciente para justifi car o quantum apli-cado, observando-se o princípio da proporcionalidade, o que não ocorreu na espécie.

3. Ordem concedida para redimensionar a pena do pa-ciente, fi xando-a em 2 anos de reclusão, em regime aberto, substituída por pena restritiva de direitos, e a 10 (dez) dias- multa, com o valor unitário descrito na sentença. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus 77.822/DF, Arnaldo Esteves Lima, j. em 09/05/08)

Os julgados são paradigmáticos em razão de vincularem a valoração da aplicação da pena à prova produzida, indepen-dente da fase, isto é, pena-base (circunstâncias judiciais) ou penas provisória e defi nitiva (circunstâncias legais). Ademais, na própria dosimetria (cálculo), é imposta a necessidade de demonstração pelo juiz de dados processuais idôneos para amparar o cálculo.

Recente súmula do STJ reforça o argumento: “o au-mento na terceira fase de aplicação da pena no crime de roubo circunstanciado exige fundamentação concreta, não sendo sufi -ciente para a sua exasperação a mera indicação do número de majorantes” (Súmula 443).

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14.2. Questão Probatória: Confi ssão. Fundamentação de Juízo Condenatório e Não-Aplicação da Atenuante

§ 27º. Se os Tribunais, do ponto de vista abstrato, im-põem a demonstração probatória de todas as circunstâncias que fundamentaram aumento de pena, redobrada a obriga-toriedade de motivação quando valoradas negativamente de-terminadas circunstâncias para fundar juízo condenatório, p. ex., a confi ssão.

No caso de referência, ao estabelecer a pena provisória, foram reconhecidas duas agravantes (ter o agente cometido crime por motivo fútil ou torpe e mediante recurso que di-fi cultou ou tornou impossível a defesa do ofendido – alíne-as ‘a’ e ‘c’, inciso II, art. 61 do Código Penal) e uma circuns-tância atenuante (menoridade – art. 65, I do Código Penal). Entendidas como equivalentes, não surtiram efeito no dimen-sionamento da pena.

O Tribunal de origem, em face de Apelação, foi provocado a se manifestar quanto ao reconhecimento da atenuante da con-fi ssão espontânea. Julgou que a atenuante havia sido reconhe-cida na sentença, embora a fundamentação da pena provisória tivesse ocorrido em sentido contrário (“a confi ssão qualifi cada foi sim, efetivamente levada em consideração no caso em tela, mesmo que, contraditoriamente, tenha a Mma. Dra. Juíza a quo, a seguir, referido que doutrinariamente entendia que não haveria a atenuante da confi s-são, porquanto o réu ofereceu versão diversa da realidade da prova, a qual, obviamente, lhe geraria maior benefício”).

Em sede de Habeas Corpus, o Min. Relator demonstrou que a sentença aplicou apenas a atenuante da menoridade, reconhecendo a confi ssão espontânea por ter sido argumento para legitimar condenação – “(...) observa-se que a juíza conside-

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rou a confi ssão do réu, para fi ns de confi rmação da autoria do crime, ao concluir que ‘o próprio acusado confessa seu atuar, tanto no inter-rogatório de fl s. 110/111, como no interrogatório prestado na presente sessão plenária’. (...) Ora, se a juíza sentenciante utilizou a confi ssão para condenar o réu pela prática de lesão corporal de natureza gravís-sima – art. 129, § 2º, inc. IV, do CP –, não poderia ter desconsiderado a referida circunstância atenuante na fi xação da pena. (...)

O julgado recebeu a seguinte ementa:

HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVÍSSIMA. ATENUANTE DA CON FISSÃO ESPONTÂNEA. FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. NÃO-INCIDÊNCIA NO CÁLCULO DA PENA. NULIDADE DO ACÓRDÃO RECORRIDO. ORDEM CONCEDIDA.

1. A interpretação dada pelo réu ao fato típico por ele confessado não afasta a incidência da corres-pondente atenuante (art. 65, I, d, do Código Penal).

2. Se o juiz sentenciante utilizou a confi ssão para condenar o réu pela prática de lesão corporal de na-tureza gravíssima, não poderia ter desconsiderado tal circunstância atenuante na fi xação da pena.

3. Habeas Corpus concedido para declarar a nu-lidade do acórdão recorrido, devendo o Tribunal de origem redimensionar a pena do paciente, levando-se em consideração a atenuante da confi ssão espontânea. (STJ – 5ª Turma – Habeas Corpus nº 37.150/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 21/02/08)

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Conclusões

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15.As Reformas Penais e o Papel dos

Atores do Sistema Penal na Era do Encarceramento em Massa

A necessidade atual – mas sempre constante – de re-forma dos sistemas penais, conforme destaca Boaventura de Souza Santos, surge de forma paralela em diferentes pa-íses, “(...) para dar resposta a problemas que se têm apresentado de forma mais ou menos semelhante em todos eles: não só a questão do já mencionado equilíbrio entre os princípios garantísticos (com fundamento no respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos) e a necessidade de responder de forma rápida e efi caz ao crime; mas também a necessidade de dar resposta à sobrelotação das cadeias e à reincidência, associada ao reconhecimento da urgência de encontrar alternativas à pena de prisão.”1

Possível notar que o principal refl exo do punitivismo, o encarceramento em massa, é tratado como problema central pelas agências internacionais – v.g. o debate temático sobre su-perlotação carcerária na 18ª sessão da Comissão de Prevenção do Crime e Justiça Penal da ONU, 2009. O gradual aumento dos níveis de encarceramento nos países europeus nas duas últimas décadas tornou a questão carcerária um dos pontos centrais das principais reformas do sistema penal.

1 Santos, A Justiça..., p. 38.

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No entanto percebe-se que dentre os principais elemen-tos facilitadores do avanço do punitivismo está a formação cultural dos operadores do direito que, em decorrência da men-talidade inquisitória, veem a prisão como resposta natural ao cri-me. Se este diagnóstico é possível ser realizado nos países euro-peus2, sobretudo os de tradição jurídica romano-germânica, de igual modo o será no Brasil, conforme apresentado.

Assim, o debate político-criminal não pode fi car restrito à criminalização primária, como se todos os problemas do pu-nitivismo estivessem centralizados na fi gura do Legislador. Inclusive porque é notório que são os atores do sistema pe-nal que possuem as ferramentas para resistir ou aderir às políticas criminais populistas. Outrossim, de forma alguma estão alheios ao problema os pensadores das ciências crimi-nais, pois não esporadicamente criam, através dos discursos de justifi cação, condições de legitimidade para o incremento da legislação penal e do uso da pena carcerária. Veja-se, por exemplo, toda a construção teórico-dogmática para legitima-ção de novos tipos penais aos denominados bens jurídicos de-correntes da sociedade do risco – são criados novos tipos pe-nais, a pena de prisão é relegitimada com a ênfase na proteção

2 A título de exemplifi cação, Boaventura de Souza Santos, ao analisar as reformas penais na Espanha, assinala que “a cultura jurídico-penal espanhola tende a considerar a pena de prisão como a reacção normal face à criminalidade. As penas alternativas aparecem como reacções aceitáveis quando ocorrem certas circunstâncias muito específi cas que permitem renunciar à pena de prisão, tais como a gravidade diminuta do crime e a ausência de antecedentes criminais. Reconhece-se, no entanto, que a prisão é pouco efi caz, dessocializadora, criminógena e que representa um custo desproporcionado face aos resultados. Daí que, nos últimos anos, se tenha assistido a um esforço legislativo no sentido de diversifi car o sistema sancionatório através de penas alternativas, às quais se apontam as vantagens de apresentarem uma maior facilidade de individualizar a sanção atendendo às circunstâncias pessoais do delinquente, favorecendo a reabilitação do condenado com menor custo” (Santos, A Justiça..., p. 47).

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aos novos bens jurídicos, mas o perfi l da população carcerária segue inalterado.

O problema, portanto, é global: atinge todos os níveis dos saberes criminais e todos os atores da política e da dog-mática criminal – atores do processo legislativo, atores das agências de punitividade, atores das ciências criminais. É, pois, esta rede de atores que torna legítima ou ilegítima a inter-venção punitivo-carcerária, fornecendo condições de possibi-lidade de resistência ou adesão ao cenário punitivista. A repeti-ção parece necessária: são os atores da rede político-criminal que legitimam ou resistem ao populismo punitivo, conforme o maior ou menor grau de identifi cação com as formas jurídi-cas criminalizadoras.

Desta forma, se os atores da rede político-criminal incor-poram o papel inquisitivo, instrumentalizarão formas puniti-vistas de protagonizar a cena processual e potencializarão o populismo transposto em Lei.

Neste quadro, a fi gura do Juiz é central. Se o Magistrado perceber sua atividade como fundamental para o combate ao crime, seu papel de garante imparcial dos direitos será substi-tuído pela fi gura de agente de segurança pública, conforme apon-tado por Geraldo Prado3, estabelecendo perigoso protagonismo na arquitetura processual. E nesta possibilidade de mutação da fi gura do juiz em agente de segurança pública reside a preocupa-ção com o ativismo judicial que, em regra – e o exercício histórico permite que esta conclusão seja colocada como argumento – é direcionado à maximização dos poderes estatais em detrimento dos direitos e das garantias individuais.

Indiscutível, portanto, que a efetivação da reformas pe nais punitivistas ou garantista depende da postura da

3 Prado, Sistema Acusatório, p. 105.

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Magistratura, pois “não podendo o poder judicial propor formal-mente reformas, pode infl uenciá-las ou condicioná-las à sua pers-pectiva corporativa porque o êxito da sua execução depende muito da acção dos operadores. Aliás, neste processo, o maior ou menor ac-tivismo judicial, seja no combate à corrupção ou na defesa das liber-dades cívicas e dos direitos humanos, tem um forte impacto e pode interferir, de forma decisiva, no processo e no sentido das reformas.”4

Ocorre que os estudos sobre a formação cultural in-quisitória dos operadores da Justiça criminal no Brasil têm diagnosticado, na atividade judicial, a realização de dupla seletividade: “seletividade na aplicação da lei, com maior proba-bilidade de punição para os setores sociais desfavorecidos econômica e culturalmente e de favorecimento para as classes superiores; e se-letividade na interpretação da lei, com a utilização pelo juiz de seu poder discricionário segundo suas opções políticas e ideológicas.”5 A tendência que se percebe historicamente e que se consoli-da na atualidade é a de os operadores do direito, sobretudo os juízes, legitimarem as reformas punitivistas e resistirem às mudanças garantistas.

O produto da adesão política e jurídica ao punitivismo, conforme destacado na primeira parte da investigação, é o da hipercriminalização da juventude pobre e analfabeta, confor-me indicam os dados ofi ciais de encarceramento no país.6

4 Santos, A Justiça..., p. 528.5 Azevedo, Justiça..., p. 104.6 Importante destacar, novamente, os dados do DEPEN referentes ao primeiro

semestre de 2009. Dos 409.287 presos(as) que informaram escolaridade e instrução, 31.575 (7,71%) eram analfabetos, 50.502 (12,33%) declararam alfabetizados sem escolaridade, 186.949 (46,47%) possuíam ensino funda-mental incompleto, 48.372 (11,81%) possuíam ensino fundamental com-pleto, 40.894 (9,99%) possuíam ensino médio incompleto, 27.920 (6,82%) possuíram ensino médio completo, sendo irrisórias as taxas de ensino superior (completo ou incompleto) que atingiam 4.486 (1,09%).

Quanto ao item faixa etária, a partir da mesma quantidade de informantes,

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O cotidiano forense experimentado no Brasil revela, via de regra, postura judicial condescendente com o punitivismo, mormente nos momentos processuais decisivos, fenômeno que se materializa na jurisprudência através do “desvirtua-mento da prática”, nos termos apresentados por Fauzi Choukr.7 Dentre os inúmeros momentos-chave de atuação judicial, é possível visualizar esta prática desvirtuada dos preceitos constitucionais, exemplifi cativamente, na facilidade no de-ferimento e na manutenção de prisões cautelares8; na distri-buição não paritária da prova, em detrimento dos direitos dos acusados9; na utilização de metarregras para acentuar a quantidade de pena nas sentenças condenatórias10; na resis-tência em aplicar alternativas à prisão11; e na difi culdade em

obtêm-se os seguintes dados: 127.386 (31,12%) presos entre 18 e 24 anos, 105.471 (25,76%) entre 25 e 29 anos, 69.384 (16,95%) entre 30 e 34 anos, 60.000 (14,65%) entre 35 e 45 anos e 26.597 (6,49%) acima de 46 anos.

7 Choukr, Processo Penal de Emergência, pp. 147-162.8 Neste sentido, conferir dissertação sobre os discursos dos acórdãos judiciais

provenientes das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, referentes a julgamentos de Habeas Corpus em casos de prisão preventiva nos anos de 2005 e 2006, Vasconcellos, A Prisão Preventiva como Mecanismo de Controle e Legitimação do Campo Jurídico, pp. 129-169. De igual forma, Vasconcelos & Azevedo, O Campo Jurídico e a Demanda Punitiva: uma análise sociológica das decisões sobre prisão preventiva no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pp. 01-14. De igual forma, Choukr, Processo..., pp. 147-157.

9 Neste sentido, conferir dissertação sobre os discursos dos acórdãos judiciais provenientes das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, referentes aos casos de argumentação de nulidade nos anos de 2005 e 2006, Tovo, Nulidades e Limitação do Poder de Punir: Análise de Discurso de Acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pp. 43-80. De igual forma, Tovo & Carvalho, Nulidades do Processo Penal e Constituição, pp. 511-533.

10 Neste sentido, conferir dissertação sobre os discursos judiciais na aplicação da pena nos crimes do roubo no Rio Grande do Sul, Rodrigues, As Fontes do Imaginário Judicial: Motivação das Decisões nos Crimes de Roubo no Rio Grande do Sul, pp. 48-71; e o resultado parcial da investigação sobre aplicação da pena nos Tribunais Superiores, Carvalho et al., Notas sobre os Critérios de Aplicação da Pena no Brasil, pp. 363-392.

11 Neste sentido, conferir Carvalho, Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento, pp. 01-24.

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deferir os direitos dos apenados em sede de execução penal12. As atuações no sentido da imposição de limites à hipercrimi-nalização e ao encarceramento em massa, no ambiente políti-co-criminal atravessado pelo populismo punitivo, tornam-se episódicas e, frequentemente, rejeitadas pela opinião pública e pelo senso comum prático-teórico da rede de atores do sis-tema judicial.

Desta forma, o controle da ampliação dos processos de criminalização acaba sendo realizado pelas Cortes Superiores, cujo atuar, apesar de oscilatório entre tendências garantistas e punitivistas, ainda permite fi xar alguns parâmetros mínimos ao excesso encarcerador.

A imersão histórica dos atores processuais na cultura inquisitória produz, inclusive, a inviabilização de eventuais mudanças legislativas direcionadas à diminuição dos níveis de encarceramento. Destacou Boaventura de Souza Santos, na análise da reforma do sistema judicial penal em Portugal, que “não há reformas que resolvam os problemas se não houver uma cultura judiciária que as sustente (...). Só a mudança cultural - que para que ocorra “amanhã” exige que se defi nam e comecem a execu-tar, desde já, os instrumentos dessa mudança – é que pode impedir atitudes de resistência a alterações legais, mais chocantes naquelas, cujo objectivo principal é o aprofundamento de direitos e garantias constitucionalmente consagrados. O trabalho de campo realizado

12 Neste sentido, conferir as dissertações sobre as decisões judiciais nos incidentes de execução penal, Larruscahin, Práticas Institucionais Violentas no Processo de Execução Penal, pp. 59-120; Conti, A (I)Legitimidade dos Laudos Periciais na Execução Penal, pp. 95-108; e Bujes, Entre Sagrados e Profanos: Ensaio sobre as Práticas Jurídicas e a Produção de Sentidos em Processos de Execução Criminal, pp. 98-159. De igual forma, Bujes & Azevedo, Os Refl exos do Discurso Penal Repressivo nas Decisões Judiciais de Concessão de Progressão de Regime Prisional da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre/RS, pp. 01-03.

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permitiu identifi car vários casos emblemáticos dessa resistência, al-guns com sérios efeitos perversos.”13

Os efeitos perversos produzidos pelos atores, ao des-naturalizar normas que ampliam liberdade através de inter-pretações punitivistas, caracterizam, em realidade, processos hermenêuticos de inversão ideológica no sentido garantista de determinados estatutos, expondo, em toda sua extensão, a forma mentis inquisitória, que caracteriza a postura dos opera-dores do direito.

Neste aspecto, apesar da postura pessimista (ou radical-mente realista), importante o diagnóstico de Hulsman sobre os projetos de reforma do sistema penal: “as intenções de re-forma, como mostra a história recente, produzem, geralmente, re-sultados opostos aos esperados.”14 Isto porque, segundo o autor, inexiste coesão no interior do sistema, atuando os operadores de forma totalmente autônoma em seus sub-sistemas em re-lação aos seus deveres e responsabilidades, de forma a tornar incontrolável o poder punitivo.15

A questão parece indicar, conforme apontou o estudo lu-sitano, que, se o Poder Judiciário pretende ser efetivamente legítimo, não pode ser passivo e transferir suas responsabili-dades16, como ocorre em inúmeros casos no Brasil em relação à postura dos juízes frente ao caos penitenciário. Pelo contrá-rio, deve enfrentar estes problemas e, por mais difícil que seja romper o ciclo de violência institucional no interior do siste-ma penal, projetar postura de radicalização no enfrentamento às violações dos direitos humanos das pessoas.

13 Santos, A Justiça..., p. 549.14 Hulsman, Criminologia Critica y Concepto de Delito, p. 88.15 Hulsman, Criminologia..., p. 88.16 Santos, A Justiça..., pp. 550-551.

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16.O Estado Penal e os Atores

das Ciências Criminais

Na formulação teórica do modelo garantista, Ferrajoli es-tabelece os critérios para defi nição da democracia substancial e as formas de intervenção estatal para concretizar o Estado constitucional de direito. Alia o absenteísmo do Estado liberal com o intervencionismo do Estado social para forjar a máxi-ma que resumiria o tipo ideal de Estado de direito nas demo-cracias ocidentais: “direito penal mínimo, direito social máximo.”1 Intervenção subsidiária do Estado para limitação dos direitos individuais, preponderância da atuação estatal para efetiva-ção dos direitos sociais.

No entanto, na fase do desenvolvimento do capitalis-mo mundial, com a gradual ruptura com as bases do Estado de bem-estar a partir da efetivação das políticas econômicas neoliberais, percebe-se a inversão da máxima proposta por Ferrajoli, com a ampliação do direito penal e a redução dos direitos sociais.

A patologia punitivista que atinge grande parte dos países ocidentais reforça a ideia de consolidação de Estados Penais (Carceral State), nos quais a prisão adquire importante função de gestão das massas excluídas e vulneráveis, percebi-das como riscos sociais a serem neutralizados e incapacitados.

1 Ferrajoli, Diritt o..., pp. 901-904.

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Não por outra razão Larrauri aponta que dentre os prin-cipais fatores de resistência e de proteção da sociedade contra o populismo punitivo estão a integração e a diminuição das de-sigualdades sociais – “os seguintes fatores se associam com a ma-nutenção de castigos limitados e orientados à ressocialização, são por assim dizer ‘fatores protetores’ do populismo punitivo: o grau de in-tegração da sociedade; menores cotas de desigualdade; não utilização eleitoral da questão penal; alta contenção dos meios de comunicação; e a existência de um corpo técnico para assessorar sobre a efi cácia e o impacto das reformas penais e que atuem como instituição ‘interme-diária’ entre a opinião pública e os políticos.”2 Segundo a autora, é possível afi rmar a existência de importante relação entre os índices de encarceramento, o modelo político-econômico (re-lação entre Estado social, delito e prisionalização) e a cultura política (relação entre participação social e legitimidade go-vernamental, demanda punitiva e prisionalização).3

Estados democráticos e sociais nos quais há intervenção para efetivação dos direitos coletivos e diminuição da desi-gualdade; governos com níveis adequados de legitimidade; e sociedades participativas nas decisões das políticas governa-mentais, são fatores que tendem a direcionar diagnóstico de estruturas sociais e políticas menos punitivistas e, em conse-quência, com reduzidos índices de encarceramento.

Nos países centrais que assumem o papel de gestores do neoliberalismo e nas sociedades periféricas que consomem tais políticas econômicas – mesmo sem haver efetivado em sua história a integralidade das políticas públicas do Estado de Bem-Estar –, inegavelmente o alto grau de punitivismo será realidade inquestionável.

2 Larrauri, Populismo..., p. 17.3 Larrauri, Economia..., pp. 08-14.

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O caso brasileiro torna-se, pois, exemplar. A questão que se coloca na investigação, portanto, é so-

bre o papel dos atores do sistema penal neste cenário político--econômico e político-criminal. Sobretudo o papel do juiz. A possibilidade de ação resistente ou a adesão ao punitivismo pelo operador do direito passa, conforme destacado, pela per-cepção da política populista punitiva como (i)legítima.

Conforme demonstrado ao longo da pesquisa, a tradi-ção jurídica brasileira tem como referência uma cultura de inter-venção na qual predominam práticas inquisitórias. O Delegado de Polícia, no inquérito policial, e o Juiz, no processo criminal, tornaram-se, por força desta tradição, os principais atores, os protagonistas para a resolução do desvio criminalizado. O papel de protagonistas, localizado no centro do poder punitivo, pro-duz mentalidade e forma de atuar punitivista (inquisitória), nas quais o investigado e o réu são percebidos como fonte de prova e objeto de intervenção (punição) e não como sujeitos de direitos em situação processual paritária.

A mentalidade inquisitória estabelece relação verti-calizada na qual o juiz, apesar das regras penais protetivas vinculadas ao devido processo, extravasa o potesta puniendi concretizando-o em forma de punitividade. A formação de quadros mentais paranóicos e a atuação regida pelo primado das hipóteses sobre os fatos (Cordero) marca a forma de agir do inquisidor.

Desta maneira, aliando o cenário político-criminal e a cultura inquisitória, é possível compreender a tendência dos atores do sistema punitivo nacional em aderir naturalmente ao populismo punitivo, transformando as demandas repres-sivas em concretude prisional. A propósito, as pesquisa reali-zadas pelas Instituições, Institutos e Associações expostas ao

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longo do texto permitem perceber que, em alguns casos, há adesão explícita à lógica punitivista-inquisitorial.

No campo da aplicação da pena, conforme demons-trado na pesquisa empírica, as amarras legais fornecem importantes barreiras de contenção à vontade de punir. No entanto, em determinados casos, o processo de interpreta-ção judicial permite realizar, na redação da sentença penal condenatória, inversão do sentido garantista dos institutos de tutela dos direitos fundamentais – reversibilidade do di-reito (Herrera Flores e Sanchez Rúbio) –, fazendo com que normas ampliadoras da liberdade sejam utilizadas como fundamento para a sua limitação. Outrossim, leis lacuna-res e porosas, como os tipos penais abertos que compõem grande parte da arquitetura legal de aplicação da pena, tornam-se, em meio à lógica inquisitorial, instrumentos de legitimação do punitivismo.

Fundamental notar, contudo, que as conclusões extraí-das da pesquisa empírica não estão isoladas. Pelo contrário, ao agregar às investigações sobre o pensamento político--criminal dos atores processuais penais desenvolvidas pelas Instituições, Institutos e Associações, as inúmeras teses e dis-sertações sobre a forma de interpretação judicial em situações determinantes para a redução do encarceramento (v.g. estudo sobre decretos de prisões preventivas, sobre a forma de decla-rar nulidades, sobre os critérios de progressão de regime na execução penal), confi rma-se a hipótese de adesão dos opera-dores do sistema penal brasileiro ao punitivismo.

Logicamente existem focos de resistência. Nota-se, po-rém, que estas zonas de resistência confi guram exceção.

Outrossim, possível perceber através da pesquisa sobre aplicação da pena que o maior grau de punitivismo está locali-zado nos julgamentos monocráticos, adquirindo os Tribunais,

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sobretudo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, fundamental papel de contenção dos excessos ine-rentes à lógica punitivista. E, além disso, em momentos im-portantes, direcionar a jurisprudência no sentido garantista da interpretação das normas penais e processuais penais.

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17.Resistências (Im)Possíveis

No entanto à hipótese da incorporação do punitivismo pelos atores do sistema penal no Brasil devem ser confronta-das as possibilidades de sua alteração.

Inúmeros trabalhos têm como ideia central que o esclareci-mento dos consumidores leigos sobre os princípios que regem o sistema penal, seus procedimentos e a exposição de situações concretas, provocaria sensível diminuição na vontade de punir.

Larrauri sustenta que é possível convencer o legisla-dor de que ele não está determinado pelo populismo puni-tivo, que inclusive há sufi ciente base social para resistência. Segundo a autora, o processo de esclarecimento permitiria demonstrar para as pessoas que o número de delitos é menor do que se imagina, que a maioria não possui a gravidade que é noticiada, que o número de condenações não é baixo e que as penas impostas não são tão benevolentes como parecem ser. Apresentar o delito em seu contexto, iluminar o proble-ma, permitiria diminuir a ansiedade, o medo, a tensão sobre a questão criminal.1

Inegavelmente, apresentar o problema criminal e pe-nitenciário como realmente se manifesta auxilia na compre-ensão da questão criminal e tende a diminuir os fatores que potencializam repressivismo. Neste aspecto, o trabalho dos investigadores das ciências criminais é extremamente neces-

1 Larrauri, Populismo..., p. 18.

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sário, inclusive para contrapor a espetacularização do crime realizada por grande parte da imprensa. Encontrar mecanis-mos de diálogo com o público consumidor do sistema penal parece, portanto, fundamental. Não apenas porque há indí-cios sufi cientes na literatura criminológica para afi rmar que a demanda emotiva do leigo é minimizada no momento da confrontação com casos concretos, mas, sobretudo, porque é democrático e necessário que as pessoas (opinião pública) se envolvam com a questão criminal e participem ativamente da tomada de decisões.

Outra questão importante é a falsa percepção, exposta por inúmeros experts, de que a racionalidade das decisões político-criminais é mantida com a exclusão da opinião públi-ca do debate. Loader reputa como elitista o modelo que opta pela delegação da defi nição das políticas criminais aos dou-tos em detrimento da participação da sociedade, consideran-do equivocada a presunção de que os especialistas são liberais ilustrados e o povo emotivo e punitivo.2

Gertner, avaliando o papel dos juízes na construção de alternativas ao Estado penal, agrega elementos que permitem concluir que a opinião pública não seria tão punitiva, como sugerem a mídia e os políticos, se lhes fossem fornecidos os fatos. No entanto a má notícia seria a de que os Tribunais, que efeti-vamente conhecem os fatos individuais, têm sofrido extraor-dinárias pressões, independente do delito cometido. Assim, “a conclusão é irônica: aqueles que possuem a informação sobre os infratores – os juízes – enfrentam extraordinária pressão por aqueles que não possuem – o público.”3

2 Apud Larrauri, Economia..., p. 17.3 Gertner, Alternatives to the Carceral State: the Judge’s Role, p. 664.

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Novamente o problema se direciona ao papel dos atores do sistema penal no cenário de hiperencarceramento provo-cado pelo populismo punitivo. A questão que resta, portanto, é se os operadores do direito possuem mecanismos protetivos contra as demandas punitivistas que lhes permita julgar sob a orientação da proteção dos direitos e garantias individuais.

Do contrário, poderia ser colocada a seguinte aporia: como explicar a expectativa (teórica) de que se a opinião pública conhe-cesse os casos reais teria postura menos punitivista, se atores judi-ciais, que efetivamente dominam a realidade concreta do sistema e o caso concreto, incorporam o populismo punitivo?

Os diagnósticos apresentados pelas pesquisas de campo apontam, porém, para a ampla proliferação da ideia puniti-vista, independente do grau de esclarecimento das pessoas sobre a questão criminal. E em revisão da literatura, possível perceber que o fenômeno não atinge apenas o Brasil.

Em importante análise das formas de gestão administra-tiva e judicial que se desenvolveram nos Estados Unidos a partir da denominada guerra contra o crime (war on crime4), Jonathan Simon conclui que o fenômeno punitivista modifi -cou as mentalidades e a lógica da justiça criminal. Destaca, inclusive, que o populismo punitivo foi especialmente árduo com os juízes, em decorrência da cobrança por resultados pragmáticos, notadamente o encarceramento. Nota que “des-

4 Wacquant considera inadequado utilizar a expressão guerra contra o crime. Em primeiro lugar porque os processos de criminalização não são operados por militares contra inimigos externos da nação, mas por órgãos civis que lidam com cidadãos detentos que, ao invés de serem expulsos ou aniquilados, são reintroduzidos na sociedade; em segundo, porque a declarada guerra não teria sido empreendida contra o crime em geral, mas, basicamente, contra os crimes de rua cometidos em bairros de classes desfavorecidas e segregadas das metrópoles norte-americanas; em terceiro, porque o acionamento da luta contra o crime serviu tão-somente como pretexto para a reformulação das funções do Estado (Wacquant, O Lugar..., p. 10).

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de os anos 60, notavelmente com poucas alterações nos últimos 40 anos, os juízes têm sido amplamente responsabilizados pelos políti-cos por serem ‘indulgentes com a criminalidade’.”5 A indulgência refere-se, fundamentalmente, à individualização e limitação das penas – sobretudo no sistema anterior às guidelines senten-cing – e diminuição das prisões (preventivas). O efeito deste processo foi o desenvolvimento de “(...) jurisprudência pouco identifi cada com o liberalismo ou o conservadorismo, mas cada vez mais complicada, orientada aos fi ns e defensivista.”6 Outrossim, “conduzida pela Suprema Corte, os Tribunais americanos produzi-ram uma postura judicial reativa em relação à guerra contra o crime que se traduz em ampla gama de teorias jurídicas (...).” Conclui, apoiado em Bilionis, que “os elementos chave desta jurisprudên-cia inclui antipatia em relação às posturas liberais, formuladas por um conjunto de ideias políticas conservadoras sobre o crime, enfa-tizando principalmente a dissuasão e o potencial incapacitante da punição severa e a estratégia de distinguir o núcleo dos direitos libe-rais, enquanto os mesmos direitos são reduzidos em sua periferia.”7

Parafraseando o próprio Simon, é possível dizer que o fe-nômeno da guerra ao crime produziu nos atores do Judiciário norte-americano mentalidade regida pela lógica de julgar através do crime, o que implica sempre decidir de acordo com as expectativas da repercussão que a decisão produzirá na opinião pública.

A dúvida acerca do impacto neutralizador que o esclare-cimento provocaria nos índices de punitivismo, a partir das hipóteses trabalhadas em relação à opinião pública e ao tra-balho dos experts, parece direcionar o problema para resposta inconclusa. Todavia os fundamentos de fi losofi a política que

5 Simon, Governing Through Crime, p. 113.6 Simon, Governing… p. 113. 7 Simon, Governing… p. 130-131.

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sustentam a teoria do garantismo penal e a perspectiva crítica que a ruptura provocada pelo paradigma do etiquetamen-to produziu na criminologia possibilitam compreender esta aparente aporia.

A teoria garantista, ao interpretar o atuar dos operado-res processuais e as formas de produção da decisão, procura encontrar mecanismos para potencializar o sistema acusató-rio, opondo-se aos efeitos altamente deletérios decorrentes da lógica inquisitória que confi gurou historicamente o sis-tema penal. A criminologia (crítica), ao analisar a incidência das agências penais sobre as pessoas e os grupos vulneráveis (processos de criminalização), percebe que a inquisitorialida-de é ínsita e molda as práticas punitivas.

A convergência de ambas as perspectivas permite con-cluir que o exercício do poder punitivo, independente da boa ou da má intenção dos seus titulares, é potencialmente viola-dor dos direitos fundamentais, ou seja, tende à proliferação do punitivismo e da lógica encarceradora. Não por outra razão o desenvolvimento de perspectiva teórica garantista estrutu-rada nos ensinamentos da criminologia crítica impõe que seja pressuposta concepção pessimista (ou trágica) sobre os pode-res, sobretudo os punitivos, de forma a entender seu exercício como naturalmente voltado à violação (e não à defesa) dos direitos das pessoas.

Assim, a lógica inquisitorial e punitivista passa a ser per-cebida como variável constante na confi guração da estrutura penal repressiva. Conforme proposto em outro momento,8 seria mais coerente identifi car graus (baixo ou alto) de inten-sidade do inquisitorialismo do sistema penal presentes nos distintos momentos históricos, nos diversos discursos de legi-

8 Carvalho, Antimanual de Criminologia, pp. 73-78.

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timação e nas diferentes leis penais, do que dicotomizar com modelos garantistas.

A questão não seria, portanto, se o esclarecimento das pes-soas permite diminuir os níveis de punitivismo. Esta dúvida a criminologia contemporânea respondeu, satisfatoriamente, de forma positiva. O problema parece não estar radicado nas pes-soas que, apesar de suas perspectivas político-ideológicas mais ou menos punitivistas, tendem a ser mais racionais em suas res-postas quando obtêm informações menos confusas e sensacio-nalistas sobre a questão criminal. O problema parece radicar nas formas pelas quais os locais do poder punitivo capturam seus atores e desenvolvem mentalidade inquisitória.

Possível compreender, portanto, o garantismo penal como discurso e como prática voltada para a instrumentalização do con-trole e da limitação dos poderes punitivos. Desde esta perspectiva, entende-se que a forma de diminuir punitivismo na atividade dos atores (administrativos e jurisdicionais) do sistema pu-nitivo passa, fundamentalmente, pelo estabelecimento de re-gras claras e precisas, diminuindo ao máximo os espaços de discricionariedade. No caso do estudo da aplicação da pena, possível perceber claramente como os tipos penais abertos são preenchidos pela lógica inquisitorial, motivo pelo qual a limitação da discricionariedade judicial é fundamental para a inversão do atual direcionamento hipercarcerizador.

No entanto este controle interno que seria possibilitado em decorrência de emprego de melhor técnica legislativa na redação dos tipos penais e/ou de orientações jurisprudenciais claras e precisas, diz respeito aos mecanismos de interpreta-ção da Lei, estando restrito aos horizontes dogmáticos da ati-vidade dos próprios atores judiciais. E por esta razão enten-de-se limitada sua efi cácia para a mudança da cultura judicial

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inquisitória que se desdobra em punitivismo e se efetiva em encarceramento.

Embora tenha sido defendida em momento anterior postura conservadora em relação aos riscos que a abertura do procedimento judicial pode acarretar aos direitos e garantias fundamentais,9 após a investigação sobre o papel dos atores do sistema penal, foi possível perceber a necessidade de que os envolvidos diretamente no confl ito tenham possibilidade de fala e possam intervir e opinar sobre as alternativas para resolução do seu caso.

A abertura do espaço público não pode implicar, logi-camente, limitação aos direitos e às garantias do réu. No en-tanto, torna-se inconcebível para um modelo de Justiça, que se pretenda democrático, que a única fala legítima no pro-cesso seja aquela emitida pela autoridade judicial, como se todo o rito tivesse como único interessado o representante do Estado. Não apenas porque esta concentração de poder tende a supervalorizar o papel do juiz e, consequentemente, reforçar sua (auto)imagem como principal sujeito do ritual processual, mas, sobretudo, porque o confl ito pertence às pes-soas, devendo ser o processo mecanismo voltado à tentativa de resolução do caso que envolve o(s) autor(es) do fato e a(s) vítima(s). Do contrário, o processo judicial transforma-se em mera burocracia, fi m em si mesmo, forma pela forma.

A possibilidade de que no espaço público sejam criadas condições para que as pessoas possam realizar encontro, con-frontar as circunstâncias que causaram o confl ito e discutir alterna-tivas é fundamental para que o trauma do delito seja supera-do. Aos poderes públicos, neste caso, cabe o exclusivo papel

9 Neste sentido, conferir Carvalho, Considerações sobre as Incongruências da Justiça Penal Consensual, pp. 129-159; e Carvalho, Cinco Teses para Entender a Desjudicialização Material do Processo Penal Brasileiro, pp. 89-106.

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de intermediador e facilitador do encontro e das resoluções. Aliás, provavelmente os atores do processo, pela cultura inquisitória, sejam as fi guras menos indicadas para atuar neste momento.

As condições para realização deste encontro – o momen-to, o local, a forma de intermediação e as alternativas propos-tas – e os efeitos na esfera processual, podem ser vislumbra-dos nos atuais procedimentos da Justiça Restaurativa e con-duzem à conclusão de que a intervenção e a adjetivação do confl ito como penal normalmente cria maiores problemas do que proporciona soluções.

No entanto, para além das práticas restaurativas, mesmo os casos que sobram à Justiça Penal, entende-se fundamental a abertura do espaço para os envolvidos, de forma que possam ser efetivamente ouvidos e possam intervir realmente na sua resolução. A abertura do procedimento com a ênfase em falas não-tecnocráticas pode contribuir positivamente para a rup-tura, a mudança e, quem sabe, a superação da mentalidade inquisitória que confi gura a lógica do sistema penal.

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18.Conclusão Específi ca: Reformas

Penais, Punitivismo e Responsabilidade

Político-Criminal:Duas Propostas Legislativas

Na atual situação político-criminal de ampliação super-lativa da criminalização, parece não haver possibilidade outra senão radicalizar o discurso na defesa de signifi cativa mudan-ça do cenário de encarceramento.

O projeto, no plano legislativo, estaria inexoravelmente vinculado à proposta abolicionista de moratória no processo de construção de novos presídios ou de novas vagas prisio-nais. No entanto igualmente requer efetiva alteração nos cri-térios legais e judiciais de decisão que fomentam o aprisiona-mento em massa, como destacado na análise dos critérios de aplicação da pena.

Questão outra e de fundamental necessidade de análise é a da possibilidade de criação de instrumentos de responsabi-lização dos atores da política criminal nos planos Legislativo, Executivo e, inclusive, Judiciário.

Ambas as ações, porém, não podem prescindir de ver-dadeira alteração na cultura punitivista que as sociedades de controle contemporâneas estão submersas, e que no Brasil,

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em virtude da formação histórica dos atores, se confunde com a própria construção das agências do sistema penal.

18.1. Vedação Expressa ao Encarceramento

O art. 5º, XLVI da Constituição, determina que a lei re-gulará a individualização da pena e aplicará, entre outras, (a) privação ou restrição da liberdade; (b) perda de bens; (c) pres-tação social alternativa; (de) multa; e (e) suspensão ou interdi-ção de direitos. Do rol constitucional referente às espécies de penas conclui-se que sua previsão é meramente exemplifi cati-va, sendo, portanto, abertas possibilidades de outras sanções, desde que respeitados os limites do art. 5º, XLVII.

As penas previstas na Constituição permitem não ape-nas deslocar a centralidade da privativa de liberdade como perceber que a própria privação de liberdade não implica em reclusão carcerária, apesar da histórica associação. Não por outro motivo a Lei 9.714/98, ao alterar o Código Penal, regu-lamentou as penas restritivas de direito e criou modalidades sancionatórias distintas daquelas arroladas na Constituição.

Caso exemplar, porém, é o da nova Lei de Drogas. Ao seguir o processo de diversifi cação e de descentralização da prisão, ao regulamentar a sanção do delito de porte de drogas para uso pessoal (art. 28, Lei 11.343/06), inovou em algumas importantes questões, possibilitando novas compreensões so-bre a relação entre delito e sanção. Em primeiro lugar, rom-peu com o histórico vínculo entre crime e pena privativa de li-berdade, fato que levou, inclusive, alguns doutrinadores mais apressados a sugerir a descriminalização da conduta. A Lei 11.343/06 inovou ao fi xar diretamente no preceito secundário penas não-privativas de liberdade. A segunda alteração foi no que diz respeito à incorporação ao ordenamento jurídico

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brasileiro da pena de admoestação (art. 28, I), na modalidade advertência sobre os efeitos das drogas. Em terceiro, estabelece vedação expressa de qualquer tipo de encarceramento (caute-lar ou defi nitivo) ao usuário de drogas (art. 28, caput §§ 3º, 4º e 6 e art. 48, caput, §§ 2º, 3º e 4º1).

A técnica utilizada parece ser absolutamente adequada e defi ne novo estilo legislativo, orientado à redução dos danos produzidos pela prisionalização a partir da constatação do alto poder de atração que exerce o carcerário. Pelos resulta-dos produzidos nas últimas décadas e vislumbrados na pes-quisa, parece notório que as cláusulas abertas e genéricas que facultam ao Judiciário o aprisionamento são, invariavelmen-

1 “Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade; III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. (...)

§ 3º. As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4º. Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 6º. Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustifi cadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I - admoestação verbal; II - multa.”

“Art. 48. O procedimento relativo aos processos por crimes defi nidos neste Título rege-se pelo disposto neste Capítulo, aplicando-se, subsidiariamente, as disposições do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.(...)

§ 2º. Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em fl agrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários.

§ 3º. Se ausente a autoridade judicial, as providências previstas no § 2o deste artigo serão tomadas de imediato pela autoridade policial, no local em que se encontrar, vedada a detenção do agente.

§ 4º. Concluídos os procedimentos de que trata o § 2o deste artigo, o agente será submetido a exame de corpo de delito, se o requerer ou se a autoridade de polícia judiciária entender conveniente, e em seguida liberado.” (grifou-se)

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te, mandatos em branco que geram como resultado concreto ampliação do encarceramento.

Em decorrência deste alto poder de atração exercido pela instituição carcerária, Leis que vedam expressamente sua aplica-ção são as únicas ferramentas adequadas para sua contenção do punitivismo no plano da criminalização secundária, embora seja imprescindível, de igual forma, projetar possibilidades reais de responsabilização dos atores do sistema penal por ações temerá-rias e que desrespeitem os Direitos Humanos.

O necessário processo de autorresponsabilização pelo atual estado do sistema penal-carcerário brasileiro impõe a percepção de que as prisões que constituem o arquipélago punitivo são efe-tivamente as nossas prisões – e não outras, idealizadas, como se percebe nos discursos punitivistas e nas construções da dogmá-tica ascética. E esta realidade prisional da vida crua é o refl exo da assustadora competência inquisitória dos atores da rede política e jurídica em sempre (e cada vez mais) fomentar criminalização e impor sofrimento através da pena.

O estado atual dos cárceres diz da forma como a socie-dade brasileira resolveu historicamente suas questões sociais, étnicas, culturais, ou seja, pela via da exclusão, da neutrali-zação, da anulação da alteridade. Diz da violência hiperbó-lica das instituições, criadas no projeto Moderno para trazer felicidade às pessoas (discurso ofi cial), mas que reproduzem – artifi cialmente, mas com inserção no real – a barbárie que a civilização tentou anular. Diz da falácia dos discursos polí-ticos, dos operadores do direito e da ciência (criminológica), sempre perplexos com a realidade e ao mesmo tempo rece-osos, temerosos, contidos, parcimoniosos frente às soluções radicais (anticarcerárias), pois protegidos pela repetição da máxima da prisão como solução necessária.

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Se a opção político-criminal produz como único resul-tado a ampliação do encarceramento, o ciclo de violência inerente às estratégias de legitimação do arquipélago carce-rário difi cilmente será minimizado com o acréscimo de redes alternativas. Neste quadro, aliado à necessidade de vedação expressa do encarceramento, imprescindível a responsabili-zação dos atores das agências punitivas pelo uso abusivo do sistema penal-carcerário, para poder minimizar os impactos decorrentes da cultura do encarceramento em massa.

18.2. Responsabilidade Político-Criminal

O ordenamento jurídico brasileiro fornece algumas di-cas sobre mecanismos que poderiam obstruir a interferência episódica e contingencial da agência Legislativa no campo político-criminal, sem obstaculizar legítima intervenção em casos relevantes.

Nas últimas décadas, é possível perceber certa patologia nas reformas penais (direito penal, processo penal e execução penal) que atinge não apenas o Brasil, mas grande parte dos países ocidentais de tradição romano-germânica: absoluta au-sência de estudo prévio dos efeitos da legislação penal. Não apenas nos casos de normas penais que direta ou indiretamente am-pliam hipóteses de incriminação, mas inclusive nas normas que ampliam direitos individuais, há total ausência de contro-labilidade e planejamento.2

Invariavelmente as reformas penais punitivas ocorrem a partir de dois eixos centrais: (a) projetos para responder casos emergenciais (v.g. Lei dos Crimes Hediondos) ou (b) projetos

2 Importante estudo sobre a ausência de controlabilidade no sistema de penas é verifi cado em Machado & Machado, Sispenas..., p. 04-06.

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baseados em sistemas dogmáticos idealizados por notáveis (v.g. Lei dos Juizados Especiais Criminais, reformas parciais do Código de Processo Penal).

No primeiro caso, o Legislativo, impulsionado pela pressão da opinião pública, realiza alterações com objetivo de responder contingencialmente casos de grande repercussão. Nestes episódios, as leis normalmente são impulsionadas pela demanda midiática, representando claramente o fenômeno político-criminal do populismo punitivo. No segundo caso, a tendência é a elaboração de projetos com maior coerência em termos dogmáticos, ou seja, Leis harmônicas com a estrutura e a principiologia penal e processual penal.

Em ambas as situações, porém, nota-se absoluta ausência de investigações empíricas prévias que possibilitem projetar minimamente os impactos da nova Lei no âmbito judicial e ad-ministrativo. Assim, a tradição legislativa brasileira tem oscilado entre o populismo e o idealismo punitivo, ou seja, entre Leis penais de cunho meramente populistas e Leis penais voltadas à preser-vação do ideal de harmonia e coerência do sistema jurídico-pe-nal – normalmente a partir de defi nidas concepções ideológicas que se refl etem na dogmática e na política criminal. Lógico que o encontro de ambos os idealismos pode ocorrer, notadamente durante o debate parlamentar, quando o discurso populista in-sere elementos estranhos nos projetos ideais originários, retiran-do a pretensa coerência auferida pelos notáveis.

Ocorre que, na maioria dos casos, os textos legais pro-vocam alterações signifi cativas no perfi l do sistema punitivo sem que tenham sido projetados seus resultados. Em relação aos substitutivos penais, p. ex., as Leis 9.099/95 e 9.714/98, que teriam importantes efeitos na minimização dos níveis de pri-sionalização, foram abruptamente incorporadas no sistema sem qualquer preparação dos operadores do sistema e, ao in-

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vés de alcançar a meta descarcerizadora, aumentou a rede de controle punitivo.

Em termos macropolíticos, portanto, importante apontar para a necessidade de incorporação na cultura legislativa de estudos prévios de impacto político-criminal nos projetos de Lei que versam sobre matéria penal. A pesquisa preliminar de impacto não apenas vincularia o projeto à necessidade de in-vestigação das consequências da nova Lei no âmbito da admi-nistração da Justiça Criminal (esferas Judiciais e Executivas), mas poderia exigir, inclusive, a exposição da dotação orça-mentária para sua implementação. Assim, exemplifi cativa-mente, em casos de Leis com proposta de criação de novos tipos penais ou aumento de penas, tornar-se-ia imprescindí-vel, para aprovação do projeto na Casa Legislativa, exposição de motivos que apresentasse (a) o número estimado de novos processos criminais que seriam levados a julgamento pelo Judiciário, (b) os números de novas vagas necessárias nos es-tabelecimentos penais, (c) o volume e a origem dos recursos para efetiva implementação da Lei.

Se a opção político-criminal dos Poderes Públicos é o au-mento das penas e o recrudescimento das formas de execução, imperativo que imponha deveres e implique responsabilida-des. Na esfera das fi nanças públicas, p. ex., existem importan-tes precedentes, como é o caso da Lei Complementar 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que estabelece normas de fi nanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fi scal, com amparo na Constituição.

À exigência de responsabilidade fi scal dos gestores pú-blicos deve estar agregado o dever de responsabilidade políti-co-criminal, notadamente pelo caos que vive o sistema carce-rário brasileiro. Ação planejada e transparente, prevenção de riscos e desvios para que sejam cumpridos os ditames cons-

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titucionais e legais referentes à dignidade do réu e do conde-nado é o mínimo que se espera quando se tem como primeira opção política o encarceramento. Do contrário, inexiste legiti-midade possível na punição.

Ademais, além da necessidade de estudo do impacto das novas Leis no sistema punitivo (Judiciário e Executivo) – com a indicação dos recursos necessários para instrumentalizar o processamento e o julgamento dos casos, a ampla defesa dos acusados e a execução das penas e/ou medidas –, fundamen-tal prever formas de aplicação localizada do novo instrumen-to Legislativo, de modo a permitir análise laboratorial.

Neste sentido, interessante o procedimento adotado na reforma da Justiça Criminal chilena.

Após longa vigência do Código de Processo Penal, o Chile reformulou, em sentido estrito, sua legislação pro-cessual penal, e, de forma ampla, a estrutura judiciária. Em face do profundo impacto da alteração, sobretudo em razão da cultura inquisitiva que formou os atores do sistema pe-nal chileno, a reforma foi estruturada em distintas dimen-sões. A estratégia de instrumentalizar e de dar efetividade ao câmbio estrutural foi a de implementação gradual do novo Código, com apoio na observação empírica por especialistas. Assim, a reforma inaugurada no fi nal de 2001 iniciou-se em dois setores específi cos do país, locais de menor densidade populacional. Após 14 meses foi implementada nas regiões intermediárias, atingindo, por fi nal, a região metropolitana e a capital Santiago. Ao longo do período de incorporação da reforma pelo sistema jurídico-político, projeto envolvendo as Universidades e o Centro de Estudos da Justiça das Américas designou observadores para analisar os pontos problemáticos e sugerir adequações.

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Conforme indicam Baytelman & Duce, ao expor as técnicas de análise dos observadores, a “metodologia radica na observação in loco e descrição das práticas cotidianas dos operadores do novo sis-tema de justiça criminal (...)” que permitiu “ter uma imagem geral do funcionamento da reforma e que se baseiam, em grande medida, em profundas entrevistas realizadas com mais de 90 atores do sistema, a compilação e análise de diversos documentos e estudos empíricos acerca da reforma, a revisão da imprensa nacional e regional.”3

O modelo de reforma gradual, com constante e ininter-rupta (auto)crítica sobre o impacto das novas estruturas na vida real das pessoas às quais o sistema é dirigido (atores processuais, réus, vítimas e colaboradores), permite desen-volver práticas facilitadoras, além de envolver, através do di-álogo e da escuta, os diretamente implicados, diminuindo a resistência ao novo. Outrossim, facilita detectar problemas e efeitos perversos típicos das políticas institucionais e fomen-tar a profi ssionalização dos serviços a partir de boas práticas administrativas. No caso chileno, segundo os observadores, a reforma permitiu a efetivação do sistema acusatório, com gradual assunção dos novos papéis pelos atores das agências do sistema penal.

3 Baytelman & Duce, Evaluación de la Reforma Procesal Penal: Estado de una Reforma en Marcha, p. 07.

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19.Atuação no Campo Punitivo

e Redução de Danos

A alteração no rumo das políticas econômicas internacio-nais, a partir da década de 80, delineou nova forma de inter-venção punitiva na qual a prisão exerce importante papel de neutralização das pessoas e dos grupos incômodos. A pesquisa pretendeu analisar as circunstâncias normativas e culturais que fomentaram o fenômeno punitivista no Brasil, pois, na realidade marginal, a (re)signifi cação do sentido retributivo e incapacitador da prisão, aliada à carência das políticas do modelo penal welfare, potencializa a violência das agências de execução penal.

Embora seja evidente que o fenômeno do punitivismo foi transnacionalizado com as políticas econômicas neolibe-rais, as especifi cidades locais não permitem que o fenômeno seja percebido como universal. Inclusive porque em muitas sociedades ocidentais foram impostos freios que limitaram de forma consistente a consolidação do Estado Penal.

Torna-se fundamental, pois, em nossa realidade, com-preender, ao mesmo tempo, o processo global de expansão do punitivismo e o impacto do fenômeno. Desde esta com-preensão, elaborar pautas de atuação objetivando a redução dos danos causados pela constante e redundante intervenção legislativa no recrudescimento do direito penal e pelas omis-

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sões dos órgãos administrativos em garantir condições míni-mas de sobrevivência dos condenados nos cárceres.

Assim, para além da necessidade de racionalização e de ressistematização do quadro geral dos delitos, das sanções, dos procedimentos e da execução – atuação na esfera do Poder Legislativo –, é imprescindível atuação de resistência junto aos operadores do direito, de forma a provocar ranhu-ras na cultura jurídica inquisitória que tende a perceber como legítimas as políticas punitivistas derivadas da assunção do populismo pela política criminal ofi cial. Conforme sustenta-do, durante o processo de construção da política de encarce-ramento, hipóteses concretas de limitação de prisionalização foram e são disponibilizadas. No entanto os fi ltros ao encar-ceramento acabam sendo obstaculizados ou simplesmente es-quecidos pelos operadores do direito.

Neste quadro, a hipótese que guiou a investigação foi a de que o fenômeno do grande encarceramento que caracteriza a po-lítica criminal nacional não está limitado à incorporação do populis-mo punitivo pelo Poder Legislativo, visto que para sua consolidação é necessário que os sujeitos processuais assumam como legítima a intervenção punitivista e a vivifi quem durante a persecução penal.

A sintonia entre os sujeitos processuais (agência Judiciária) e os atores das agências Legislativa e Executiva de-corre do compartilhamento da vontade de punir, presente na formação inquisitória dos operadores do direito e nas expec-tativas publicitárias (eleitorais) dos agentes públicos.

No campo do sistema penal, o inquisitorialismo cria regi-me de produção de verdade que exclui os envolvidos no caso pe-nal, reforçando o papel de império do julgador (decisionismo judicial) – protagonista da cena processual, incapaz de ouvir o drama das pessoas envolvidas e mediar resolução. O efeito, em termos processuais penais, é obstaculizar a efetivação do

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sistema acusatório delineado na Constituição, impedindo que se realize democracia processual.

No entanto possível perceber que apesar do senso comum prático-teórico inquisitório que orienta as ações dos sujeitos processuais, as Cortes Superiores brasileiras ainda exercem, de forma tímida e esporádica, controle dos excessos punitivos, em atuar que oscila tendências garantistas e punitivistas.

Ao vislumbrar possibilidades de ação resistente, foi questionado o papel dos atores do sistema penal no cenário político-econômico e político-criminal, sobretudo do juiz. Se ao aliar o cenário político-criminal e a cultura inquisitória é possível compreender a tendência dos atores do sistema punitivo em aderir ao punitivismo, igualmente possível es-tabelecer formas de atuação crítica com objetivo de reduzir os danos provocados pelo encarceramento massivo. Desde o plano intradogmático, através da utilização das lacunas e contradições da Lei penal para ampliar os espaços de liberda-de; e desde o plano extradogmático, com o incentivo da par-ticipação cada vez mais efetiva dos envolvidos na resolução dos confl itos (justiça dialogal).

Por mais que o discurso da dogmática penal seja poroso e predisposto a produzir inversões ideológicas nas normas que garantem liberdade, é na racionalidade jurídica que se encontram as ferramentas que possibilitam atuação resistente dos operadores.

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20.Conclusão Específi ca:

Limites e Critérios de Aplicaçãoda Pena e Punitivismo no Brasil

Através da análise quantitativa e qualitativa dos jul-gados foi possível verifi car uma das hipóteses iniciais da investigação, qual seja, a de que existe forte tendência de os Tribunais (em praticamente todos os graus de jurisdição) manterem estáveis e pouco fl exíveis suas posições jurispru-denciais, situação que solidifi ca a tradição jurídica inqui-sitorial arraigada no senso comum teórico dos juristas, no preciso diagnóstico de Warat.1

A compreensão da formação cultural inquisitiva é fun-damental para que se possam estabelecer parâmetros razoa-velmente viáveis para qualquer reforma do sistema penal que vise minimizar os efeitos das políticas criminais punitivistas, sobretudo no que tange à dosimetria da pena. Isto porque mudanças que não observem esta tradição tendem a tornar- se estéreis e inefi cazes, quando não produzem efeitos perver-sos, como foi a alteração provocada pela Lei 9.714/98 (Lei das Penas Alternativas).2

1 Warat, Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas, pp. 27-35.2 Importantes críticas à Lei em Reale Jr., Mens Legis Insana: Corpo Estranho,

pp. 23-25. Sobre os efeitos perversos da Lei 9.714/98, conferir Carvalho, Substitutivos Penais na Era do Grande Encarceramento (prelo).

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Neste sentido, é possível apresentar algumas conclusões específi cas em relação aos critérios de aplicação da pena a partir do diagnóstico prático-teórico. A pesquisa na jurispru-dência dos Tribunais e na doutrina especializada possibilitou confrontar os critérios de aplicação e vincular sua (falta de) instrumentalidade à cultura jurídico-criminal brasileira.

Outrossim, em relação aos projetos de reforma no sis-tema de penas, as recentes experiências – não apenas as Leis 9.099/95 e 9.714/98, mas, inclusive, as reformas no Código de Processo Penal – permitem traçar alguns importantes diag-nósticos e prognósticos.

1º. O atual quadro de penas no Brasil padece de profunda assistematicidade em todos os níveis: penas cominadas legalmente, critérios judiciais de aplicação e forma judicial-administrativa de execução. O proble-ma é gerado pela ausência de reforma geral que re-alize adequação ao postulado da proporcionalidade das sanções. Assim, a manutenção da parte especial, mutilada por reformas ocasionais e na maioria das ve-zes populistas; a gradual descodifi cação; e a mudança metodológica da parte geral com a Lei 9.714/98 gerou sistema altamente complexo e aberto ao punitivismo.

2º. O esforço legislativo, portanto, deveria ser o de recodifi cação, objetivando a redação de novo Código Penal, na linha do trabalho da atual Comissão de redação do Novo Código de Processo Penal (PLS 156/2009).

3º. A existência de Comissão para redigir novo Código de Processo Penal, logo após a aprovação de inú-meras reformas no processo, expõe os equívocos das re-formas parciais. No campo das penas, projeta a necessi-

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dade de reforma geral na estrutura das penas, sobretudo nos crimes em espécie e na legislação ordinária, de forma a adequar aos comandos constitucionais.

Conforme demonstrado anteriormente, o atual quadro de penas, imerso em complexo e assistemático modelo, apre-senta quadro preocupante, sobretudo em relação à falta de guias claras sobre a aplicação da pena, situação que, na atual conjuntura político-criminal, potencializa o encarceramento massivo.

Na análise dos acórdãos foi possível perceber o emara-nhado no qual estão inseridos os aplicadores do direito, per-didos em conceitos vagos, lacunosos, contradições legais e imprecisas fórmulas jurisprudenciais. A ausência de critérios que permita ao julgador realizar de forma razoável e propor-cional a individualização da pena – como, p. ex., para decifrar o signifi cado das circunstâncias judiciais, para diferenciar as circunstâncias e os elementos do tipo, para diferenciar o con-teúdo de circunstâncias judiciais e legais, para distinguir ar-gumentos condenatórios e valoração da reprovabilidade, para concretizar as circunstâncias e vincular a aplicação da pena às provas produzidas na instrução processual, para quantifi car o peso das circunstâncias na dosimetria da pena – fomenta o descontrole neste momento crucial de incidência do sistema punitivo na sociedade, produzindo as inúmeras lesões nos di-reitos individuais expostas na análise da pesquisa empírica – violação dos princípios da fundamentação das decisões, do ne bis in idem, do contraditório, da legalidade, da livre apreciação da prova, da isonomia e da secularização.

Frise-se novamente, porém, que a crítica não é dirigida exclusivamente ao Poder Judiciário. A pesquisa qualitativa demonstra, inclusive, que normalmente o próprio Judiciário intervém na correção das violações elencadas, revelando dis-

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tintos graus de punitivismo entre as esferas. Todavia, como igualmente foi percebido, o respeito sacral à tradição juris-prudencial também produz efeitos negativos que devem ser enfrentados.

Em termos político-criminais, com objetivo de redução dos danos do punitivismo e diminuição dos índices de en-carceramento, entende-se que eventual reforma (parcial ou global) no sistema de aplicação de penas deveria primar por alguns valores.

4º. Para efetivar reforma no sistema de aplicação das penas é imprescindível o aprimoramento da técni-ca legislativa, com redação clara e objetiva e demons-tração exaustiva dos critérios de valoração da reprova-ção pessoal pelo ilícito.

5º. Em relação à graduação (cálculo) da pena, referência importante seria a metodologia prevista no Código Eleitoral, que, em razão da não-fi xação de mí-nimo, estabelece piso sancionatório comum a todos os crimes3 e critérios específi cos de quantifi cação de ate-nuantes e agravantes4 – o que permitiria, inclusive, a rediscussão da Súmula 231 do STJ.

6º. Como forma de valorizar experiências im-portantes e não esquecer nosso presente, interessan-te a possibilidade de retomar projetos que antecipam em muito as conclusões apresentadas, notadamen-te o Projeto Reale Jr. Conforme destacado em outro

3 “Art. 284. Sempre que este Código não indicar o grau mínimo, entende-se que será ele de quinze dias para a pena de detenção e de um ano para a de reclusão.”

4 “Art. 285. Quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena sem mencionar o quantum, deve o Juiz fi xá-lo entre um quinto e um terço, guardados os limites da pena cominada ao crime.”

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momento,5 o projeto Reale Jr. atingia pontos efetiva-mente problemáticos do nosso sistema, diminuindo a abertura das normas de aplicação da pena que, na pesquisa, demonstrou ser a principal potencializadora de punitividade.

7º. Na redação do art. 59, caput, do Código Penal, proposta pelo Projeto Reale Jr., são excluídas as circuns-tâncias personalidade e conduta social (substituídas por condições pessoais do acusado), e é acrescida a circunstância de coculpabilidade intitulada oportunidades sociais ofereci-das. Ademais, há o deslocamento, para a primeira fase, da agravante da reincidência. Verbis: “o juiz, atendendo à culpabilidade, antecedentes, reincidência e condições pessoais do acusado, bem como as oportunidades sociais a ele oferecidas, aos motivos, circunstâncias e consequências do crime e ao com-portamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e sufi ciente à individualização da pena”.

8º. Em nosso sistema, conforme constatado, nas circunstâncias personalidade e conduta social proliferam inúmeras contradições e indeterminações. De igual forma, é notório o fato de que a quantidade das penas é severamente acrescida pela agravante da reincidência. A alteração proposta indica soluções interessantes que merecem ser debatidas. Inclusive porque na exposição de motivos é justifi cada a exclusão da personalidade e da conduta social, a partir da percepção de sua inde-monstrabilidade e irrefutabilidade empíricas, situação que ofende o princípio do contraditório.

5 Carvalho & Carvalho, Aplicação da Pena e Garantismo, p. 78/9.

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Outrossim, sustenta-se que qualquer reforma no sistema deve prescindir não apenas de investigações acadêmicas e de diálogo com os operadores, mas de laboratórios de testagem empírica.

9º. Adequado, portanto, na esfera das reformas legislativas, criação de instrumentos de estudo de impacto político-criminal6 como forma de projetar eventuais efeitos perversos e de criar condições de im-plementação de boas práticas. Assim, para além das análises laboratoriais, a testagem empírica torna-se altamente salutar no quadro político-criminal e carce-rário brasileiro.

Para fi nalizar, mister ressaltar que qualquer reforma no sistema puntivo, seja de maior ou de menor impacto, deve criar condições efetivas de aplicabilidade das normas e deve ser orientada, político-criminalmente, para diminuir ao máxi-mo o encarceramento. Ademais, dentro dos limites do possí-vel, deve evitar, ao máximo, os riscos e os efeitos perversos, sobretudo aqueles de ampliação da rede de punição.

Assim, sem olvidar a tendência sempre presente nas prá-ticas penais de ampliação da violência, olhar realista sobre o problema pode auxiliar no processo de vivifi cação do texto constitucional e de tutela dos direitos humanos das pessoas.

6 Carvalho, Em Defesa da Lei de Responsabilidade Político Criminal, pp. 08-09.

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