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RAQUEL DO CARMO SANTOS [email protected] E les saem às ruas em uma sinfonia muito semelhante à dos ritmos tribais afri- canos, valendo-se de ins- trumentos como sanfona, violão, tamborim, ganzá, agogô, entre outros. Trajes e adereços com um colorido vibrante não faltam, assim como a fé em santos conhecidos do catolicismo, entre os quais São Be- nedito, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Aparecida e Divino Espírito Santo. São os congueiros que perpetuam a celebração de um dos mais antigos folguedos do país, de tradição afro-brasileira, a Congada. A dança, envolvente, é dramática e representa a coroação de um rei e, às vezes, também de uma rainha do Congo. É constituída de um cortejo com passos e cantos caracterizado pela embaixada e pelas lutas simbólicas rea- lizadas com bastões ou espadas. Como curiosidade, acredita-se que a dança ritual dos negros foi executada para o Conde Maurício de Nassau no palácio Friburgo, no Recife, por uma comitiva enviada pelo próprio rei do Congo, em 1642. Este seria o registro mais antigo dessa manifestação cultural em solo brasileiro. “A herança desta festividade foi posteriormente incorporada e se man- teve viva ao longo do tempo, até a época atual”, destaca o linguista Valdir Luciano Pfeifer da Silva. Interessado em investigar a presença de elementos de origem africana no português brasi- leiro, ele estudou, em sua pesquisa de mestrado, não só as letras de músicas do acontecimento festivo de grupos do Estado de São Paulo, como as narrati- vas orais de membros da comunidade Congada de São Benedito, de Mogi das Cruzes. O trabalho de campo desenvolvido ao longo de um ano por Silva, orientado pela professora do Instituto de Estu- dos da Linguagem (IEL) Tania Alk- mim, traz uma con- tribuição para a so- ciolinguística, além de constituir um acervo documental sobre as celebra- ções no Estado. O linguista realizou um registro em áudio, em vídeo e também foto- gráfico de 40 grupos paulistas de 24 municípios. Foram coletadas as com- posições musicais, tanto de autores das agremiações, como aquelas de domínio público transmitidas pelos congueiros, de geração em geração. De norte a sul do Brasil, as festividades estão presentes e em cada região foram incorporados elementos diferentes. No Estado de São Paulo, Silva constatou uma maior concen- tração de grupos. Em Atibaia, por exemplo, o folguedo é mantido com mais força. Na cidade foram registra- dos cinco grupos, representados pelas cores verde, vermelho, rosa, azul e branco. Na cidade litorânea de Ilha Bela permanece até hoje a congada artística, que consiste, além do cortejo, em encenações de textos teatrais. Segundo a pesquisa, todos os gru- pos paulistas obedecem a um formato de cortejo e os participantes e perso- nagens da companhia estão dispostos sempre na mesma ordem. É a carac- terística da festa folclórica no Estado de São Paulo. Em qualquer uma das cidades, serão vistos em primeiro lugar o Rei e Rainha, Príncipes e Princesas. Só então aparecem outros nobres da corte – o Capitão e Batalhão, os mes- tres e músicos e demais instrumen- tistas. Por último, aparecem aqueles ainda não-iniciados, denominados de noviços. “Os grupos não são formados apenas por pessoas de mais idade que mantêm o ritual festivo. Também crian- ças, adolescentes e jovens compõem o cortejo”, explica. Uma questão a ser destacada é a transformação da festa popular ao longo dos anos. A Congada, segundo Silva, deixou de ser uma manifestação exclusiva dos negros. Hoje é possível observar brancos, negros, mestiços, amarelos e até mesmo vermelhos no ritual. Em geral, são de classes sócio- culturais menos favorecidas e se reú- nem por meio de um compromisso de louvação a santos católicos. 12 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 22 de abril a 3 de maio de 2009 No dia 22 de abril de 2007, aconteceu o primeiro encontro de Silva com o fun- dador e principal líder da Congada de São Benedito, Francisco Alves de Oliveira ou ‘seo’ Chico Preto, como é conhecido na agremiação. Neto de ex-escravos trazidos da África, ‘seo’ Chico Preto é casado com Maria de Oliveira ou, simplesmente, dona Zeca. O fundador da Congada de São Benedito iniciou, como noviço, aos seis anos de idade. Em suas palavras, segundo Silva, ficam claras as recordações legendárias que fundamentam e estruturam a natureza do compromisso com a tradição passada de pai para filho. A Congada de São Benedito foi formada em 1961 e é composta por 23 integrantes. Está localizada no município de Mogi das Cruzes, região do Alto Tietê, pertencente à região metropolitana de São Paulo. Esta região, segundo o censo demográfico de 2000, tem uma das maiores populações de afro-descendentes no Estado: 32,1% de cerca de 18 milhões de habitantes, o que dá, aproximadamente, 5,7 milhões de pessoas. Babá, cachaça, coque, fuxico, garapa, miçanga são algumas das palavras de origem africana que Valdir Silva identificou como sendo de uso corrente no vocabulário dos membros da Congada São Benedito, de Mogi das Cruzes. Ele aplicou um ques- tionário para 14 integrantes do grupo, com idades entre 19 e 72 anos, com o objetivo de apurar os vocábulos presentes nas nar- rativas orais desta população. “A análise de dez horas de gravação permitiu que fossem identificados 83 palavras comuns aos 14 entrevistados, sendo que 65 são de uso corrente no universo dos indivíduos e de maneira geral na comunidade”, desta- ca. Outra lista contendo 18 palavras são conhecidas dos informantes, porém não usadas no cotidiano. Num segundo momento, o linguista comparou o que chamou de acervo lexical para elaborar uma classificação em três diferentes categorias. Na primeira, são os termos usados na interação social que so- mam 24. A segunda categoria é composta por seis termos informais que podem ser substituídos por outro, a depender do even- to comunicativo. E, na terceira categoria, oito palavras marcadamente informais e de uso restrito. “A partir da aplicação desse questionário pôde-se confirmar a presença de um acervo lexical de base africana pro- veniente de um fenômeno sociolinguístico, O linguista Valdir Luciano Pfeifer da Silva: “A herança da festividade foi incorporada e se manteve viva” que aconteceu a partir do contato entre falantes de línguas distintas”, esclarece. Por outro lado, Silva constatou que nas letras das músicas cantadas durante o tem- po festivo as palavras de origem africana são raras. “O vocabulário é essencialmente português”, atesta. Este aspecto difere das canções de outras regiões, como, por exemplo, Minas Gerais. Uma das justificativas seria a origem histórica dos escravos em São Paulo. Segundo Silva, em sua maioria eram negros nascidos no Brasil que migravam de outras regiões do país. Com isso, na sua grande maioria, já tinham o português como língua mãe. O que Silva argumenta é que embo- ra não exista uma evidência clara das palavras de origem africana nas letras das Congadas em São Paulo, há o que ele chamou de uma memória da África. Quando realizam o ritual, os congueiros resgatam no corpo, na dança, na gestua- lidade e no ritmo dos Congos uma África mítica. “Quando executam as músicas muito da personalidade dos congueiros é incorporada às letras das músicas, demonstrando a maneira particular como cada grupo interpreta a tradição. Ou seja, mesmo com um vocabulário português, as letras cantadas, recriam por meio de um jogo de palavras, o continente africano, em terras brasileiras”, ressalta. Africa mítica ‘Seo’ Chico Preto e Dona Zeca O acervo lexical ´ Terno de Congo Irmãos Paiva “Sainha”, de Santo Antonio da Alegria Grupo Brasil de Congada, de Diadema Congada Branca, de Atibaia Músicos da Congada de São Benedito, de Mogi das Cruzes Nª Sª Aparecida, de Mogi das Cruzes Congada Verde, de Atibaia Batalhão da Congada de São Benedito, de Mogi das Cruzes Seo Chico Preto Dona Zeca Fotos: Valdir Luciano Pfeifer da Silva

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Page 1: 12 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 22 de abril a 3 de maio de ...€¦ · de maneira geral na comunidade”, desta-ca. Outra lista contendo 18 palavras são conhecidas dos informantes,

RAQUEL DO CARMO [email protected]

Eles saem às ruas em uma sinfonia muito semelhante à dos ritmos tribais afri-canos, valendo-se de ins-trumentos como sanfona,

violão, tamborim, ganzá, agogô, entre outros. Trajes e adereços com um colorido vibrante não faltam, assim como a fé em santos conhecidos do catolicismo, entre os quais São Be-nedito, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora Aparecida e Divino Espírito Santo. São os congueiros que perpetuam a celebração de um dos mais antigos folguedos do país, de tradição afro-brasileira, a Congada.

A dança, envolvente, é dramática e representa a coroação de um rei e, às vezes, também de uma rainha do Congo. É constituída de um cortejo com passos e cantos caracterizado pela embaixada e pelas lutas simbólicas rea-lizadas com bastões ou espadas. Como curiosidade, acredita-se que a dança ritual dos negros foi executada para o Conde Maurício de Nassau no palácio Friburgo, no Recife, por uma comitiva enviada pelo próprio rei do Congo, em 1642. Este seria o registro mais antigo dessa manifestação cultural em solo brasileiro.

“A herança desta festividade foi posteriormente incorporada e se man-teve viva ao longo do tempo, até a época atual”, destaca o linguista Valdir Luciano Pfeifer da Silva. Interessado em investigar a presença de elementos de origem africana no português brasi-leiro, ele estudou, em sua pesquisa de mestrado, não só as letras de músicas do acontecimento festivo de grupos do Estado de São Paulo, como as narrati-vas orais de membros da comunidade Congada de São Benedito, de Mogi das Cruzes.

O trabalho de campo desenvolvido ao longo de um ano por Silva, orientado pela professora do Instituto de Estu-dos da Linguagem (IEL) Tania Alk-mim, traz uma con-tribuição para a so-ciolinguística, além de constituir um acervo documental sobre as celebra-ções no Estado. O linguista realizou um registro em

áudio, em vídeo e também foto-gráfico de 40 grupos paulistas de 24 municípios. Foram coletadas as com-posições musicais, tanto de autores das agremiações, como aquelas de domínio público transmitidas pelos congueiros, de geração em geração.

De norte a sul do Brasil, as festividades estão presentes e em cada região foram incorporados elementos diferentes. No Estado de São Paulo, Silva constatou uma maior concen-tração de grupos. Em Atibaia, por exemplo, o folguedo é mantido com mais força. Na cidade foram registra-dos cinco grupos, representados pelas cores verde, vermelho, rosa, azul e branco. Na cidade litorânea de Ilha Bela permanece até hoje a congada artística, que consiste, além do cortejo, em encenações de textos teatrais.

Segundo a pesquisa, todos os gru-pos paulistas obedecem a um formato de cortejo e os participantes e perso-nagens da companhia estão dispostos sempre na mesma ordem. É a carac-terística da festa folclórica no Estado de São Paulo. Em qualquer uma das cidades, serão vistos em primeiro lugar o Rei e Rainha, Príncipes e Princesas. Só então aparecem outros nobres da corte – o Capitão e Batalhão, os mes-tres e músicos e demais instrumen-tistas. Por último, aparecem aqueles ainda não-iniciados, denominados de noviços. “Os grupos não são formados apenas por pessoas de mais idade que mantêm o ritual festivo. Também crian-ças, adolescentes e jovens compõem o cortejo”, explica.

Uma questão a ser destacada é a transformação da festa popular ao longo dos anos. A Congada, segundo Silva, deixou de ser uma manifestação exclusiva dos negros. Hoje é possível observar brancos, negros, mestiços, amarelos e até mesmo vermelhos no ritual. Em geral, são de classes sócio-culturais menos favorecidas e se reú-nem por meio de um compromisso de louvação a santos católicos.

12 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 22 de abril a 3 de maio de 2009

No dia 22 de abril de 2007, aconteceu o primeiro encontro de Silva com o fun-dador e principal líder da Congada de São Benedito, Francisco Alves de Oliveira ou ‘seo’ Chico Preto, como é conhecido na agremiação. Neto de ex-escravos trazidos da África, ‘seo’ Chico Preto é casado com Maria de Oliveira ou, simplesmente, dona Zeca. O fundador da Congada de São Benedito iniciou, como noviço, aos seis anos de idade. Em suas palavras, segundo Silva, ficam claras as recordações legendárias que fundamentam e estruturam a natureza do compromisso com a tradição passada de pai para filho. A Congada de São Benedito foi formada em 1961 e é composta por 23 integrantes. Está localizada no município de Mogi das Cruzes, região do Alto Tietê, pertencente à região metropolitana de São Paulo. Esta região, segundo o censo demográfico de 2000, tem uma das maiores populações de afro-descendentes no Estado: 32,1% de cerca de 18 milhões de habitantes, o que dá, aproximadamente, 5,7 milhões de pessoas.

Babá, cachaça, coque, fuxico, garapa, miçanga são algumas das palavras de origem africana que Valdir Silva identificou como sendo de uso corrente no vocabulário dos membros da Congada São Benedito, de Mogi das Cruzes. Ele aplicou um ques-tionário para 14 integrantes do grupo, com idades entre 19 e 72 anos, com o objetivo de apurar os vocábulos presentes nas nar-rativas orais desta população. “A análise de dez horas de gravação permitiu que fossem identificados 83 palavras comuns aos 14 entrevistados, sendo que 65 são de uso corrente no universo dos indivíduos e de maneira geral na comunidade”, desta-ca. Outra lista contendo 18 palavras são conhecidas dos informantes, porém não usadas no cotidiano.

Num segundo momento, o linguista comparou o que chamou de acervo lexical para elaborar uma classificação em três diferentes categorias. Na primeira, são os termos usados na interação social que so-mam 24. A segunda categoria é composta por seis termos informais que podem ser substituídos por outro, a depender do even-to comunicativo. E, na terceira categoria, oito palavras marcadamente informais e de uso restrito. “A partir da aplicação desse questionário pôde-se confirmar a presença de um acervo lexical de base africana pro-veniente de um fenômeno sociolinguístico,

O linguista Valdir Luciano Pfeifer da Silva: “A herança da festividade foi incorporada e se manteve viva”

que aconteceu a partir do contato entre falantes de línguas distintas”, esclarece.

Por outro lado, Silva constatou que nas letras das músicas cantadas durante o tem-po festivo as palavras de origem africana são raras. “O vocabulário é essencialmente português”, atesta. Este aspecto difere das canções de outras regiões, como, por exemplo, Minas Gerais. Uma das justificativas seria a origem histórica dos escravos em São Paulo. Segundo Silva, em sua maioria eram negros nascidos no Brasil que migravam de outras regiões do país. Com isso, na sua grande maioria, já tinham o português como língua mãe.

O que Silva argumenta é que embo-ra não exista uma evidência clara das palavras de origem africana nas letras das Congadas em São Paulo, há o que ele chamou de uma memória da África. Quando realizam o ritual, os congueiros resgatam no corpo, na dança, na gestua-lidade e no ritmo dos Congos uma África mítica. “Quando executam as músicas muito da personalidade dos congueiros é incorporada às letras das músicas, demonstrando a maneira particular como cada grupo interpreta a tradição. Ou seja, mesmo com um vocabulário português, as letras cantadas, recriam por meio de um jogo de palavras, o continente africano, em terras brasileiras”, ressalta.

Africa mítica

‘Seo’ Chico Preto e Dona Zeca

O acervo lexical

´

Terno de Congo Irmãos Paiva “Sainha”, de Santo Antonio da Alegria Grupo Brasil de Congada, de Diadema

Congada Branca, de Atibaia Músicos da Congada de São Benedito, de Mogi das Cruzes Nª Sª Aparecida, de Mogi das Cruzes

Congada Verde, de Atibaia

Batalhão da Congada de São Benedito, de Mogi das Cruzes

Seo Chico Preto Dona Zeca

Fotos: Valdir Luciano Pfeifer da Silva