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Interfaces Brasil/Canadá. Canoas, v. 13, n. 2, 2013, p. 333-338. OLIVIERI-GODET, Rita. A alteridade ameríndia na ficção contemporânea das Américas. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. 180p. Lucas Graeff¹ Submetido em 30 de junho e aprovado em 21 de julho de 2013. Quais são as linhas de força temáticas e formais que autores de ficção do Brasil, da Argentina e do Quebec constituem, conformam e transformam, ao produzir tex- tos que versam sobre a alteridade ameríndia? Como eles colocam em cena os encontros e desencontros de sistemas culturais e visões de mundo distintas, que construíram e constituem o imaginário literário que circula sobre os ameríndios na contemporaneidade? Eis duas ques- tões fundamentais que motivam e atravessam o mais recente livro de Rita Olivieri-Godet, A alteridade ameríndia na ficção contemporâ- nea das Américas, publicado pela Editora Fino Traço, de Belo Hori- zonte. Pesquisadora e professora nas áreas de letras, literatura compara- da e teoria literária, Rita Olivieri- -Godet é autora de diversos livros e artigos em língua portuguesa e inglesa. Dentre eles, destacam-se La littérature brésilienne contem- poraine (de 1970 à nos jours), li- vro escrito em parceria com Andrea Hossne, e Construções identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro, também publicado em francês. Or- ganizou recentemente uma coleção de ensaios relativos à escrita e à identidade na literatura romanesca, intitulado Écriture et identité dan

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    Interfaces Brasil/Canad. Canoas, v. 13, n. 2, 2013, p. 333-338.

    OLIVIERI-GODET, Rita. A alteridade amerndia na fico contempornea das Amricas. Belo Horizonte: Fino Trao, 2013. 180p.

    Lucas Graeff

    Submetido em 30 de junho e aprovado em 21 de julho de 2013.

    Quais so as linhas de fora temticas e formais que autores de fico do Brasil, da Argentina e do Quebec constituem, conformam e transformam, ao produzir tex-tos que versam sobre a alteridade

    amerndia? Como eles colocam em cena os encontros e desencontros de sistemas culturais e vises de mundo distintas, que construram e constituem o imaginrio literrio que circula sobre os amerndios na contemporaneidade? Eis duas ques-tes fundamentais que motivam e atravessam o mais recente livro de Rita Olivieri-Godet, A alteridade amerndia na fico contempor-nea das Amricas, publicado pela Editora Fino Trao, de Belo Hori-zonte.

    Pesquisadora e professora nas reas de letras, literatura compara-da e teoria literria, Rita Olivieri--Godet autora de diversos livros e artigos em lngua portuguesa e inglesa. Dentre eles, destacam-se La littrature brsilienne contem-poraine (de 1970 nos jours), li-vro escrito em parceria com Andrea Hossne, e Construes identitrias na obra de Joo Ubaldo Ribeiro, tambm publicado em francs. Or-ganizou recentemente uma coleo de ensaios relativos escrita e identidade na literatura romanesca, intitulado criture et identit dan

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    Interfaces Brasil/Canad. Canoas, v. 13, n. 2, 2013, p. 333-338.

    Lucas Graeff

    sla nouvelle fiction romanesque. Nessa obra, o texto La potique de laltrit et la reprsentation de lAmrindien dans la fiction des Amriques, de sua autoria, anteci-pa a temtica da potica e das re-presentaes da alteridade amern-dia em romances contemporneos. Essa mesma temtica desdobrada e aprofundada por Rita Olivier--Godet, em A alteridade amerndia na fico contempornea das Am-ricas, a partir da anlise literria de autores brasileiros, argentinos e quebequenses.

    Na introduo do livro, Rita Olivier-Godet subscreve a tem-tica em questo, limitando-a a um corpus de autores cujas obras vie-ram a pblico entre 1980 e 2009, exceo do livro Mara, de Darcy Ribeiro, publicado em 1976. A in-troduo aborda, sobretudo, as convices e dvidas da autora a respeito de uma eventual identi-dade amerndia. Como a prpria autora indica, a partir de Mrcio Santilli, essa identidade se afirma invariavelmente, referenciando-se a dos brancos europeus que colo-

    nizaram o continente. O termo ge-nrico amerndios, utilizado no plural, se impe consensualmente e procura resgatar a diversidade dos grupos e populaes que habitavam ou ainda habitam o que se conhece hoje por continente americano. E a palavra alteridade termina por resguardar tal resgate.

    Essa conscincia do peso poltico da nomeao se reflete no corpus dos romances que servem de base para a anlise de repre-sentaes e figuraes da alteri-dade amerndia nas Amricas. O recorte ou parti pris inicial de Rita Olivieri-Godet envolve autores que elegem o ndio como instncia de alteridade (p. 10). Atravs dele, a escritora se inscreve em vertentes de produo e anlise literrias que exploram as relaes entre identi-dade e alteridade, entre a projeo de Si e do Outro e, sobretudo, entre os densos espaos identitrios ou nacionais e as fluidas mobilidades culturais.

    Nove captulos compem a obra. Eles renem temticas co-

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    Trao, 2013. 180p.

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    muns ou contrastantes entre os li-vros que compem o corpus de anlise. No primeiro, intitulado O amerndio como instncia de alteri-dade, Rita Olivieri-Godet apresen-ta um panorama das produes lite-rrias por pas: a respeito do Brasil, a autora evoca o esquecimento do extermnio de grupos indgenas e o mito da mestiagem como funda-mentos do imaginrio conciliador do processo de fundao da nao (p. 15); em relao Argentina, o extermnio se apresenta explicita-mente nas fices e nos discursos oficiais, quer seja como algo neces-srio e justificvel ou, a partir da nova histria e de seu interesse pela voz dos oprimidos, como um dever de memria resgatado e tematizado pelos romancistas argentinos estu-dados; no que se refere ao Quebec, por fim, a questo indgena se con-funde com as polticas multicultu-ralistas e o processo de integrao tnica que, conforme indicam a au-tora e as obras por ela analisadas, ocasionam tenses e derivas essen-cialistas.

    O segundo captulo de A al-

    teridade amerndia convida o lei-tor a imergir ainda mais na potica e nas representaes do amerndio na produo literria das Amri-cas, ressaltando os deslocamentos espaciais e temporais implicados nas tentativas de representar o Ou-tro e, por que no dizer, de se imaginar Outro. No romance El entenado, de Jorge Saer, quem se desloca um marinheiro que narra suas memrias sessenta anos aps ter sido acolhido pela tribo dos Co-lastin. Em Nove Noites, Bernardo Carvalho constri uma trama na qual o protagonista deixa seu pas de origem, os Estados Unidos, para seguir as pistas de um antroplogo norte-americano que se suicidou no Xingu cerca de sessenta anos antes. Em Mistouk, terceira obra analisada no captulo, o personagem principal de Grard Bouchard percorre uma aventura inicitica sob orientao de Mose (Moiss, em francs), que lhe faz conhecer e reconhecer a longa historicidade dos povos do Grande Norte canadense.

    O Captulo III do livro de Rita Olivieri-Godet apresenta o

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    olhar de dois romancistas-antro-plgos: Darcy Ribeiro e Bernard Assiniwi. O romance de Darcy Ribeiro, Mara, tece sua trama em torno de uma tribo imaginria que mistura mitos e lendas outrora tra-tados em textos cientficos pelo au-tor. O que est em jogo, nesse caso, um choque entre as civilizaes ocidental e amerndia que interro-ga o futuro da nao brasileira e cujo resultado uma negatividade desestabilizante que obriga os n-dios a se metamorfosear para so-breviver (p. 69). Em La saga des Bothuks, de Bernard Assiniwi, o questionamento da identidade ame-rndia se estende no tempo. O autor percorre cerca de mil anos de hist-ria, partindo de mitos de fundao e lendas dos povos originrios da Amrica do Norte. O romance os-cila entre a lenda, a arqueologia, a histria e o dever de memria, ca-bendo ao autor o trabalho de re-cuperar os vestgios da memria de um povo condenado ao esqueci-mento [...] para que ela possa con-tribuir para alimentar o imaginrio de outro mundo possvel (p. 76).

    O quarto captulo do livro dedicado a duas obras de Robert Lalonde: Le derniert desindiens, publicado em 1982, e Septlacs-plusaunord, de 1993. Conforme assinala Rita Olivieri-Godet, os romances projetam a formao e o desenvolvimento de uma subjetivi-dade complexa, a do personagem Michel, tecendo ligaes entre os processos coletivo e individual de construo identitria (p. 80). Ver-sam, tambm, em torno de repre-sentaes dicotmicas, como natu-reza-cultura, selvagem-civilizado e assimilao-resistncia. Como pro-jeto maior, estabelecem a afirmao dos limites e das possibilidades de uma identidade coletiva, pautada pelo processo de mestiagem.

    Os Captulos V e VI referem--se literatura argentina. Destacam tanto a figura da cautiva, figura branca e crist, submetida s barba-ridades dos amerndios, que povoa o imaginrio argentino, quanto os paradoxos das fronteiras territo-riais, subjetivas e identitrias. Nos romances de Leopoldo Brizuela e Csar Aira, as figuraes da cau-

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    tiva trazem consigo o desejo como mediao (im)possvel entre alteri-dades e imagens legendrias, que realam o papel submisso que a so-ciedade patriarcal impe mulher (p. 107). Em Una vaca ya pronto sers, de Nstor Ponce, a anlise de Rita Olivieri-Godet destaca a re-cusa de pensar o Outro a partir de si mesmo [e da possibilidade] de se transformar no Outro(p. 117).

    A alteridade amerndia se en-cerra com trs captulos dedicados a romances brasileiros: O Rastro do Jaguar, de Murilo de Carvalho (Cap. VII), Meu querido canibal, de Antnio Torres (Cap. VIII), e rfos do Eldorado, de Milton Hatoum (Cap. IX). Em comum, os romances dirigem uma crtica ao discurso mistificador de uma nao mestia e pacfica, alm de contribuir para a compreenso da diversidade dos povos e culturas in-dgenas no Brasil. Se O Rastro do Jaguar se serve do desaparecimen-to dos botocudos e da participao dos guaranis na Guerra do Paraguai para encenar a violenta desterrito-rializao das tribos indgenas no

    pas, Meu querido canibal incorpo-ra e inverte relatos histricos, con-jugando-os com mitos, poemas e memrias imaginrias, com o obje-tivo explcito de heroicizar grupos marginais, subjugados e extermina-dos ao longo da colonizao brasi-leira. Os rfos do Eldorado, por fim, analisado por suas dimenses de sofrimento subjetivo e social: o que se esconde sob as aparncias do paraso?, pergunta Rita Olivieri--Godet, a partir de Milton Hatoum; como traduzir a inacessibilidade do Outro? Em que medida possvel representar experincias limites de violncia, de assimilao e de es-quecimento?

    Ao apresentar e analisar cui-dadosamente as representaes esttico-literrias do amerndio em romances brasileiros, argentinos e quebequenses, Rita Olivieri-Godet brinda seus leitores com uma agra-dvel viagem no tempo e no espa-o pelo continente americano. O recorte ou parti pris inicial de Rita Olivieri-Godet envolve autores que elegem o ndio como instncia de alteridade (p. 10). Neste momento

    OLIVIERI-GODET, Rita. A alteridade amerndia na fico contempornea das Amricas. Belo Horizonte: Fino Trao, 2013. 180p.

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    em que as temticas da migrao e das mobilidades culturais esto en-tre as que mais inovam no campo das cincias humanas e sociais, A alteridade amerndia apresenta-se como um diagnstico das dificul-dades de se compreender, inverter, superar ou rejeitar a temtica da he-terogeneidade e do hibridismo das culturas, que vem dando vida s Amricas desde que alguns primei-

    ros europeus empreenderam seu processo colonizador alm-mar.

    Notas Professor do Programa de Ps-Graduao

    do Centro Universitrio La Salle (Unilasalle), Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutor em Etnologia e Sociologia Comparada pela Universidade de Paris 5 - Sorbonne.

    Lucas Graeff

    Interfaces Brasil/Canad. Canoas, v. 13, n. 2, 2013, p. 333-338.