1 sermÕes e escolas: meios utilizados pela igreja
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Universidade Estadual de Maringá 24 a26 de setembro de 2008
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SERMÕES E ESCOLAS: MEIOS UTILIZADOS PELA IGREJA COMO AÇÃO
EDUCADORA PARA UMA SOCIEDADE EM TRANSFORMAÇÃO
PEINADO, Maria Rita Sefrian de Souza
OLIVEIRA, Terezinha
Para discutir a influência de Santo Agostinho (354-430), lídimo representante da Igreja
Cristã Medieval, analisaremos sermões desse autor como meios educativos para a
sociedade do século V e como essa influência se estendeu na Idade Média até o século
XIII. Situaremos historicamente o contexto em que foram criadas as escolas monacais,
paroquiais e episcopais, para em seguida tratarmos da proposta educativa cristã que
norteou a educação naquele período.
Nosso objetivo é compreender em que medida os sermões proferidos por Santo
Agostinho difundiu o conhecimento para povos diferentes, a saber, os romanos e os
nômades. Esses ensinamentos criariam uma unidade na nova sociedade que no século
V, em virtude das migrações nômades e dissolução das instituições Romanas se
caracterizava por múltiplos costumes, religiões e hábitos sociais.
Para o desenvolvimento do nosso objeto utilizamos o método histórico social que nos
permite entender como se realizou a educação no período. Cumpre observar ainda que
as fontes deste texto, serão dois sermões de Santo Agostinho e um de seus livros mais
referenciados pela historiografia A Doutrina Cristã. A historiografia constituirá, nesta
pesquisa em fontes secundárias, a fim de nos subsidiar a compreensão da influência de
Santo Agostinho no processo educativo que delineou o pensar e o fazer educacional do
século V e se estenderia por séculos durante a Idade Média.
Agostinho incidia sobre todos os aspectos da vida, preocupado em secundar o papel que a Igreja desempenhava desde o fim da Antigüidade - e continuaria a desempenhar ao longo da Idade Média - como educadora do povo. E não apenas com relação à inteligência. A Igreja era também a grande escola de formação humana e moral. Numa de suas cartas, Agostinho apontava a ação vivificadora de atitudes éticas "que se ensinam e aprendem em nossas igrejas, que crescem e se espalham por todo o mundo como santas escolas dos povos" (Epist. 93,3) ( LAUAND,1998, p. 12).
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Santo Agostinho viveu em um período de transição da Antiguidade para Idade Média,
no qual, os sermões que ele proferiu e escreveu para serem lidos por padres e leigos em
outras paróquias se constituíram em meios pelos quais a Igreja exerceu, junto à
sociedade, uma função educadora. Em face da dissolução das relações sociais e das
instituições do Império Romano se colocou como necessidade a organização da vida dos
homens por meio de valores cristãos.
Santo Agostinho, pensador cristão, preocupado com a formação das crianças, dos jovens
e com a difusão de uma cultura que a sociedade não conhecia, empreendeu esforços
para alcançar o objetivo de difundir a doutrina cristã.
Devemos levar em consideração o fato de o cristianismo ter nascido no bojo da cultura
helênica, talvez seja por isso que tenha Santo Agostinho sistematizado o conhecimento
clássico em seu livro A Doutrina Cristã. No seu entender seria impossível o trabalho de
leitura e compreensão das Escrituras, sem esse conhecimento. Para o autor, a
compreensão dos textos sagrados passaria, necessariamente, pelo conhecimento das
disciplinas que compunham o Trivium e o Quadrivium. Dito de outro modo, era
necessário um arcabouço teórico que instrumentalizasse o estudioso das Escrituras nesse
esforço de compreendê-la, para também divulgar os preceitos nela contidos.
A dedicação de Santo Agostinho ao estudo o conduziu a difundir seu conhecimento
entre outras pessoas. Esse princípio de vida delineou sua conduta. A nosso ver, isso teria
contribuído para a formação e articulação de pessoas que se tornariam, posteriormente,
divulgadores do conhecimento nas Igrejas e escolas. Nas palavras do Bispo de Hipona
“Possuir algo que ao ser dado não se esgota e não reparti-lo com os outros é possuir
como não convém” (2002, p. 41).
Com esse intuito, a proposta pedagógica de Santo Agostinho foi difundida de tal
maneira que delineou a ação educativa para a formação do homem no período da
transição da Antiguidade para a Idade Média. Essa influência estendeu-se por séculos,
ao longo do período medieval. Nunes (1979, p. 100) diz que “Santo Agostinho legou
aos educadores medievais os princípios pelos quais eles se pautaram quanto à orientação
dos estudos”.
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Nesse período, era perceptível a ascensão da Igreja como instituição organizada e, no
âmbito político, a decadência do poder imperial. Nesse contexto, o poder espiritual se
sobrepôs ao imperial, expandindo suas fronteiras, inclusive para o campo educacional.
Conforme afirma Nunes em História da Educação na Idade Média, os estabelecimentos
escolares mais importantes ou eficientes eram cada vez mais raros e, à medida que as
instituições oficiais desapareciam, estavam a surgir, entre fins do século IV e início do
V, as escolas paroquiais, sob administração exclusivamente eclesiástica (NUNES, 1979,
p.102).
Diante da decadência imperial, a instituição religiosa assumiu o ensino nas escolas. No
entanto, apesar das características religiosas, podemos observar que não foi possível
abandonar um elemento fundamental da educação: o ensino dos clássicos. É o momento
em que, ao lado das paróquias são organizadas pelos padres as escolas denominadas
paroquiais. Essas escolas se tornaram local de ensino em que a formação intelectual era
acompanhada de um direcionamento moral.
As escolas monacais, situadas ao lado dos mosteiros, com suas regras e seus princípios,
tornaram-se modelos de organização para a sociedade. Inicialmente, se destinavam
apenas aos internos, posteriormente, atendia à comunidade externa. Nesses mosteiros,
além do ensino de normas de vida cristãs, ensinava-se o gosto pela leitura e escrita.
Queremos destacar ainda, um trabalho significativo realizado nos mosteiros, o dos
copistas. Eles contribuíram, não só com a preservação, como, especialmente, com a
produção e com a reprodução dos manuscritos.
Esses mosteiros eram preservados inclusive dos roubos, por serem vistos pelo povo
como local de santidade. Os monges também tinham livre acesso entre os mosteiros, o
que possibilitava intercâmbio dos manuscritos.
A preservação da cultura da Antiguidade, do conhecimento produzido pelos autores
desse período, passou, em grande medida, pela leitura e pela produção dos copistas
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medievos. Esses copistas cristãos reescreveram os Antigos, a partir do filtro cristão.
Eles exerceram, desse modo, uma função social no seu tempo.
O saber antigo preservou-se nos livros que os mosteiros e as igrejas agasalharam carinhosamente. A sua transmissão às gerações da Idade Média operou-se por meio da cópia dos manuscritos e da elaboração dos manuais e enciclopédias por alguns autores do mundo antigo, tais como Santo Agostinho e Marciano Capela, e por escritores do início da Idade Média, tais como Cassiodoro, Boécio, Santo Isidoro de Sevilha e São Beda, o Venerável. A obra de Santo Agostinho agigantou-se no legado antigo e as suas diretivas filosóficas e educacionais que imperaram soberanas’’ até o século XIII, e alguns dos seus tratados influíram constante e diretamente nas escolas, como o De Doctrina Christiana, o De Magistro, o De Civilitate Dei, as Confessiones e o De Musica, a única obra completa que restou da sua enciclopédia sobre as artes liberais (NUNES, 1979, p. 74,75).
Não há dúvida de que esse conhecimento transmitido pelas escolas cristãs era
impregnado de uma formação moral cristã. No entanto, nesse período de difusão de sua
doutrina, a Igreja preservou os clássicos. Isto se deveu em virtude de uma formação
mais rudimentar nas escolas paroquiais, à formação cultural das escolas episcopais e à
formação das escolas monacais.
Segundo Durkheim, o ensino cristão agostiniano assume um caráter formativo e
coletivo, pois reunia as pessoas num mesmo local sob o direcionamento de formação do
caráter e da conduta cristã. A formação do cristão consistia em uma formação moral. O
ensino da moral cristã deveria direcionar as atitudes do indivíduo. E isto desde a
infância.
O próprio conceito de pecado se constitui em preceito pedagógico, pois era necessário
ensinar ao cristão as atitudes que possibilitassem o convívio entre povos tão diferentes.
Formava-se uma sociedade pautada em princípios que a Igreja delineava. Nesse sentido,
Durkheim diz que a Igreja tinha uma mensagem conciliadora, no aspecto de ir ao
encontro dos interesses de povos tão distintos.
Era, em certa medida, contraditório que esses povos tão diferentes recebessem a
mensagem, mas a Igreja se constituiu em ponto de convergência de interesses e sua
mensagem alcançava estes povos tão distintos.
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Proferidos pelos padres com perceptível intenção educadora e apreciados pelos
ouvintes, a educação se efetivava por meio dessa ação e pelo trabalho realizado nas
escolas que foram assumidas pela Igreja.
Santo Agostinho utilizava todo o seu conhecimento para o elaborar seus sermões. Sua
mensagem deveria convencer o povo a seguir os preceitos cristãos. Isso era feito com a
articulação de um discurso em que a beleza e o ritmo se faziam notar.
Lauand, ao tratar especificamente da função educadora do sermão em Dois Sermões de
Agostinho, chama a atenção para o fato de que o sermão não só complementava o rito
litúrgico na Igreja, mas era esperado pelos fiéis que o ouviam em pé, com atenção.
Vejamos nas palavras do autor o significado que era atribuído pelo povo aos sermões.
De qualquer forma, os assuntos doutrinais e teológicos continham para aqueles ouvintes um significado único. Não eram vistos como uma coisa acessória ao cotidiano mas como algo vívido e vivido, de profundo alcance existencial. Só levando em conta este vínculo entre religião e vida é possível compreender o impacto educacional que a homilética de então provocava. O último camponês analfabeto e o trabalhador mais rústico podiam estar destituídos de tudo. Tinham, porém, uma riqueza inalienável: a de encontrar na Igreja a abertura da alma para a grandiosidade, tanto arquitetônica e plástica como a da inteligência e a da palavra (LAUAND, 1998, p. 8-9).
Percebemos nesse excerto que, para a sociedade, ouvir os sermões constituía em
oportunidade de adentrar a grandiosidade e a abstração, quase como um exercício de
memorização. Nesse sentido, a função do sermão ultrapassava o seu aspecto puramente
religioso para propiciar, também, o desenvolvimento do pensamento abstrato e das
funções cognitivas dos ouvintes, na medida em que ouvir falar de Deus, era ouvir falar
de alguém que não se poderia ver. Memorizar os seus preceitos, por seu turno, consistia
em condição para que as instruções, por meio da recordação, fossem colocadas em
prática. Assim, essa comunicação oral exercia função educativa e intelectual.
Em um período em que a comunicação oral assumiu um papel significativo para os
ouvintes, a utilização do recurso da memória tornou-se instrumento fundamental à
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aprendizagem, na medida em que eles, além de memorizar, efetivavam o ensino na
prática quotidiana.
Ao contrário da pedagogia atual, que não valoriza e até chega a desprezar a memória, Agostinho e todos os grandes medievais sabiam reconhecê-la como o tesouro por excelência, como um precioso dom de Deus. A memória, muito mais do que a mera faculdade natural de "lembrar-se" ou o exercício de habilidades mnemônicas, era vista como a base de todo o relacionamento humano com a realidade. "A memória é, para S. Agostinho, a primeira realidade do espírito, a partir da qual se originam o pensar e o querer; e assim constitui uma imagem de Deus Pai, de quem procedem o Verbo e o Espírito Santo". (LAUAND, 1998, p. 10-11)
Lauand afirma ainda que “[...] a memória era o principal instrumento de quem aprendia,
e muitos sabiam de cor os sermões de Agostinho!” Tal é a importância da memória na
vida das pessoas, no aprendizado, que proporciona uma prática pela recordação.
Para que essas profundas idéias sobrevivam na mente de seu rebanho e lhe sirvam como alimento espiritual, Agostinho oferece ao povo fórmulas-resumo rimadas/ritmadas que se tornam um gancho de memória entre a pregação que se ouviu hoje e a realidade que se enfrentará amanhã (Lauand, 1998, p. 13).
A memória está presente em diferentes tempos históricos. Elemento fundante da
aprendizagem, pois, pela memória, criam-se os hábitos de comportamento. No ato de
lembrar, o indivíduo lembra-se como se deve comportar. Nesse sentido, a memória na
Idade Média constitui-se a condição de fazer-se sujeito.
A síntese entre espontaneidade e domínio da arte retórica numa linguagem compreensível para o povo simples e o arrebatamento de coração causado pela Sagrada Escritura numa alma sensível e aguda como a de Agostinho explicam o fascínio que seus sermões exerciam sobre seus ouvintes e que também nós, leitores de hoje, podemos experimentar. (LAUAND, 1998, p. 13, 14).
Com esse conhecimento das Escrituras, de retórica e de vida em seus múltipos aspectos,
Santo Agostinho, além de proferir seus sermões, dedicou-se a escrevê-los para que
fossem lidos em outras Igrejas por não haver quem os preparasse. O conteúdo e a forma
marcavam o estilo desse autor.
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Segundo Lauand, Santo Agostinho colocava o estilo a serviço da transmissão de sua
mensagem. Ele pregava biblicamente, articulava os textos das Escrituras com a
situações da vida e com uma beleza que, em alguns casos dificulta a tradução, pela
impossibilidade de manter o sentido, o ritmo e a rima dos jogos de palavras utilizados:
Nessa tarefa educadora, Agostinho sabia que a beleza era fundamental, não só pelo valor que possui em si mesma mas também porque mantém o ouvinte atento e atua sobre a sua memória. Mestre do ritmo, da rima e dos jogos de linguagem antes mesmo de converter-se ao cristianismo, Agostinho valeu-se depois de todo o seu arsenal retórico nos sermões. No sermão 265A, sobre a ascensão do Senhor, começa com estas engenhosas e belas oposições rimadas, dificilmente traduzíveis: Hoje brilhou o dia solene e santo da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo: exultemos e alegremo-nos nele. Christus descendit, inferi patuerunt. Christus ascendit, superna claruerunt. Christus in ligno, insultent furentes. Christus in sepulcro, mentiantur custodientes. Christus in inferno, visitentur quiescentes. Christus in caelo, credant omnes gentes. (Cristo desceu, os infernos se abrem; Cristo ascendeu, os céus se glorificam; Cristo na cruz, insultam-no os furiosos; Cristo no sepulcro, mentem os guardas; Cristo nos infernos, sejam visitados os que repousam; Cristo no Céu, creiam todos os povos) (Lauand, 1998, p. 12, 13).
Para além do estilo de seus Sermões, Santo Agostinho em seu livro A Doutrina Cristã,
elabora normas que devem ser ensinadas para produzir a autonomia de compreensão das
Escrituras e de explanação do que foi entendido. Ele elege um conjunto de disciplinas
que devem fazer parte do conjunto de conhecimentos básicos para a formação do
indivíduo.
A análise de A Doutrina Cristã nos permite perceber que Santo Agostinho elabora um
ensino fundamentado teoricamente. Neste livro ele postula que os estudiosos das
Escrituras deveriam conhecer e ter propriedade para expor o que foi entendido. Com o
intuito de orientá-los, a fim de alcançarem autonomia na leitura e compreensão dos
textos sagrados, ele se propôs a dissertar sobre a metodologia para se realizar o que
chamou de descoberta da verdade e o modo de exposição do que fora descoberto.
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A respeito da interpretação das Escrituras existem certas normas que me parecem poder ser ensinadas com proveito aos que se dedicarem ao estudo. Assim, poderão eles progredir não apenas lendo obras de outros que esclareceram as obscuridades dos Livros santos, mas ainda progredir, com os esclarecimentos que eles próprios poderão dar a outros. Proponho-me a comunicar essas normas aos que desejam e são capazes de aprendê-las (AGOSTINHO, 2002, p. 31).
Para Santo Agostinho, a interpretação das Escrituras obedece às normas do
conhecimento que podem ser ensinadas e aprendidas. Por esse motivo, ele as
sistematizou nesse livro. O trabalho de dedicação aos estudos também beneficiaria a
outros a partir do momento em que aquele que aprende pode ensinar outros: O leitor que faz a leitura a ouvintes conhecedores das letras, sem dúvida, exprime o que sabe. O professor que ensina o alfabeto, por sua vez, faz com que outros aprendam a ler [...] Assim acontece com as santas Escrituras. Quem possui o entendimento faz o papel de leitor junto aos que as conhecem. E quem dá as normas para as entender é semelhante ao professor que ensina o alfabeto, isto é, ensina a ler. Assim como quem aprendeu a ler, ao encontrar um livro não precisa de um leitor para entender o que está escrito, igualmente acontecerá com os que receberem as normas que intencionamos entregar. [...] observando as normas que lhes servirão como as letras do alfabeto, não precisarão de alguém para lhes descobrir o que estiver oculto (AGOSTINHO, 2002, p. 38).
Ele comparou as instruções de A Doutrina Cristã com o trabalho do professor que
alfabetiza. Uma vez alfabetizada, a pessoa não depende mais de um leitor, de modo que
o conhecimento produz a autonomia necessária ao leitor. Essa autonomia deveria ser
alcançada pelo estudioso das Escrituras.
No início de seu livro, Santo Agostinho argüiu contra os possíveis opositores que
porventura considerassem inútil esse trabalho de sistematização dos conhecimentos e
prosseguiu com a defesa da necessidade do ensino ser realizado por pessoas que tenham
conhecimento. Ele admoesta “[...] para que cada um aprenda humildemente de outra
pessoa o que deve aprender” (AGOSTINHO, 2002, p. 34).
Santo Agostinho se empenhava com o ensino das normas. Para ele, o estudioso das
Escrituras deveria ensinar a outros o que aprendera. Nisso consiste o elo entre a
evangelização e o ensino. Assim, não se poderia dissociar ensino das Escrituras do
ensino das letras.
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Nesse sentido, o processo de evangelização em Santo Agostinho se constitui um projeto
de ensino de leitura e escrita para o período de transição da Antiguidade e que perdura
durante séculos direcionando a educação medieval.
O autor tratou, também, nesse livro, da utilidade do conhecimento, porque para Santo
Agostinho, “[...] a ignorância da natureza das coisas dificulta a interpretação das
expressões figuradas, quando estas se referem aos animais, pedras, plantas ou outros
seres citados freqüentemente nas Escrituras e servindo como objeto de comparações”
(AGOSTINHO, 2002, p. 111).
Para ele, os cristãos não têm motivos para não utilizar os conhecimentos humanos:
“Toda essa parte de instituições humanas que são convenientes para as necessidades da
vida, os cristãos não têm razão nenhuma para evitá-la”. Eles devem, bem ao contrário, à
medida de suas precisões, dedicar-se a seu cumprimento e aprende-las de memória”
(AGOSTINHO, 2002, p. 127).
Ele legitima a utilização do conhecimento por parte dos cristãos:
[...] é preciso apropriar-se das instituições que os homens estabeleceram entre si, se não forem supérfluas ou de luxo. É para serem adotadas, principalmente, os signos das letras, sem os quais nos é impossível ler. Igualmente, as diversas línguas sobre as quais já falei anteriormente. (cf.II,11,16). [...]A essa categoria pertencem também os signos estenográficos (notae), que valeram aos que os aprenderam o título de estenógrafos (notarii). Todos esses conhecimentos são úteis. É lícito adquiri-los. Eles não implicam superstições, nem levam ao relaxamento pelo luxo. Todavia, sob a condição de que nos entretenham sem trazer obstáculo aos bens superiores, os quais eles devem ajudar-nos a adquirir. (AGOSTINHO, 2002, p. 127)
Santo Agostinho entendia que, sem o conhecimento de leitura e escrita, sem a noção dos
signos utilizados nas Escrituras, não seria possível a compreensão da mensagem nela
contida.
Enfatizando, desse modo, a importância de se obter o conhecimento pelo ensino e
aprendizagem, Santo Agostinho propôs um sistema pedagógico que lançou as bases não
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somente de formação moral, como também para a formação intelectual do indivíduo e
da sociedade.
Para Nunes a influência da proposta agostiniana é tão evidente que ele declara que
Não se pode compreender a pedagogia medieval, nem se lhe pode aquilatar a Filosofia da Educação sem o prévio conhecimento do legado doutrinário dos Antigos e dos Santos padres. Aliás, até o século XIII, a orientação educacional da Idade Média foi visceralmente agostiniana, e Santo Agostinho foi o último Santo Padre e o grande inspirador do pensamento medieval. (NUNES, 1979, p.5)
Por isso tornou-se relevante para a compreensão do pensamento medievo, bem como da
educação e da sociedade nesse período, a análise de A Doutrina Cristã, pois as
formulações contidas nesse livro influenciaram diretamente as escolas. Segundo Nunes
[...] A orientação pedagógica da Idade Média iria obedecer ao plano traçado por Santo Agostinho na sua obra De Doctrina Christiana que serviu de roteiro para os estudos dos intelectuais cristãos e de ideário e programa para as escolas. (NUNES, 1979, p. 74)
Nunes atesta a relevância da proposta pedagógica agostiniana sistematizada em A
Doutrina Cristã. Para o autor, neste livro evidencia-se o ideal de formação do cristão e a
diretriz filosófica educacional que perdurou durante séculos na Idade Média.
Os postulados de Santo Agostinho foram marcados pela preservação do conhecimento
Antigo. Ele enfatizou a necessidade do conhecimento do Trivium e do Quadrivium de
maneira que essas disciplinas fizessem parte do conjunto de conhecimentos medievais,
estabelecendo o vínculo entre os saberes pagãos e os saberes cristãos, pois era
impossível ao ensino cristão, naquele contexto, negar o conhecimento produzido pela
humanidade até então.
Nesse contexto, em que a sociedade se faz pela leitura e pela audição, o cristão tinha
que saber que era cristão. Para isso, a linguagem torna-se instrumento para o ensino e a
formação, no qual o conhecimento se materializa em atos. Este trabalho fora
desempenhado pelos padres, ao proferirem seus sermões, especialmente por Santo
Agostinho.
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Considerações finais
Entender esse processo de difusão da mensagem pela linguagem e pela construção da
memória consiste em compreender o processo de civilidade dos homens, o qual a Igreja
do século V se tornou a grande mentora.
O próprio Santo Agostinho, como seu representante, compunha belíssimos sermões
utilizando ritmos e rimas que as pessoas que o ouviam aprendiam e decoravam. Sem
dúvida, não podemos deixar de levar em consideração que, para uma sociedade que não
possuía recursos como os atuais no que diz respeito ao acesso aos escritos sagrados, os
sermões se constituíam em oportunidade singular aos ouvintes.
Por que essas considerações são relevantes? Não podemos de maneira nenhuma criticar
a memorização sem considerar as condições de acesso à leitura, tanto no que diz
respeito ao conhecimento e ao domínio de leitura e de escrita, quanto no que diz
respeito à quantidade de exemplares disponíveis.
Assim, a religião, por meio da linguagem e da memória construiu a identidade do
cristão medievo. O ensino se constitui em elemento civilizatório para os indivíduos e
condição para a existência em sociedade, na medida em que ensinava o respeito ao
próximo.
Os sermões proferidos pelos padres, na Idade Média, portanto, constituíam-se em meio
educativo para a sociedade, na medida em que era espaço para a difusão de
conhecimentos e da maneira de ser cristão. Altamente valorizados, os sermões
medievais eram esperados pelo povo, que além de ouvi-los atentamente, memorizava-
os.
A igreja assumiu uma função educadora na sociedade em um momento em que somente
ela, como instituição, tinha condições para exercê-lo. Exercia essa função na medida em
que organizava a vida dos homens por meio dos sermões proferidos nas Igrejas e do
ensino ministrado com um direcionamento moral cristão, em um contexto de dissolução
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social e das instituições do Império Romano em desagregação, ela exerceu o papel
relevante de conferir um direcionamento para a sociedade.
Assim, podemos considerar que esse ensino que se verifica em um espaço coletivo,
tanto da pregação, quanto da escola, é o processo pelo qual a formação cristã se
consolidaria na vida dos indivíduos e da sociedade. Esse processo educativo realizado
pela Igreja corresponde ao processo de articulação social.
Em virtude da preocupação e do cuidado de Santo Agostinho com a difusão do
conhecimento por meio do ensino e da aprendizagem, ele sistematizou essas normas
para compreensão das Escrituras possibilitando a autonomia nos estudos aos que
querem aprender. Contribuiu para a preservação do Trivium e do Quadrivium ao eleger
essas disciplinas como essenciais à formação. Pela profundidade e aplicabilidade de
suas reflexões, contribuiu para a formação do pensamento educativo e para a formação
de uma sociedade fundamentalmente cristã.
Quando destacamos a influência agostiniana no medievo, cabe dizer que os postulados
desse autor constituíram a matriz teórica para os educadores medievais. Eles foram
preservados e difundidos na sociedade.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. A Doutrina Cristã. Traduzido por Ir. Nair de Assis Oliveira e
Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2002.
DURKHEIM, Emile. A igreja primitiva e o ensino. A evolução pedagógica. Tradução
de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995
LAUAND, Jean Luiz. Agostinho: dois sermões. Cultura e educação na Idade Média:
textos do século V ao XIII / seleção, tradução, notas e estudos introdutórios Luiz
Jean Lauand. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
NUNES, R. A. C. História da Educação na Idade Média. São Paulo: USP, 1979.