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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
ESCOLA DE DIREITO DE SÃO PAULO
DANIEL LEIB ZUGMAN
PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO NORMATIVA E DIREITO
TRIBUTÁRIO:
Transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal
SÃO PAULO
2014
2
DANIEL LEIB ZUGMAN
PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO NORMATIVA E DIREITO
TRIBUTÁRIO:
Transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal
Dissertação apresentada à Escola de Direito
de São Paulo da Fundação Getulio Vargas,
como requisito para obtenção do título de
Mestre em Direito
Campo de conhecimento: Direito e
Desenvolvimento/Direito Tributário
Orientador: Prof. Dr. Dimitri Dimoulis
Coorientador: Prof. Dr. Eurico Marcos Diniz
de Santi
SÃO PAULO
2014
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DANIEL LEIB ZUGMAN
PROCESSO DE CONCRETIZAÇÃO NORMATIVA E DIREITO
TRIBUTÁRIO:
Transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal
Dissertação apresentada à Escola de Direito
de São Paulo da Fundação Getulio Vargas,
como requisito para obtenção do título de
Mestre em Direito
Campo de conhecimento: Direito e
Desenvolvimento/Direito Tributário
Data de Aprovação:
__/__/____
Banca examinadora:
___________________________________
Prof. Dr. Dimitri Dimoulis (Orientador)
___________________________________
Prof. Dr. Eurico Marcos Diniz de Santi
(Coorientador)
___________________________________
Prof. Dr. José Rodrigo Rodriguez
___________________________________
Prof. Dr. Luís Cesar Souza de Queiroz
4
Zugman, Daniel Leib. Processo de Concretização Normativa e Direito Tributário: transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal. / Daniel Leib Zugman. - 2014. 142 f. Orientador: Dimitri Dimoulis. Coorientador: Eurico Marcos Diniz de Santi. Dissertação (mestrado) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. 1. Direito tributário. 2. Transparência no governo. 3. Sigilo (Direito). 4. Estado de direito. I. Dimoulis, Dimitri. II. Santi, Eurico Marcos Diniz de. III. Dissertação (mestrado) - Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. IV. Título.
CDU 34::336.2
5
AGRADECIMENTOS
Embora escrever seja uma prática solitária, este trabalho não teria sido
produzido sem o apoio de várias pessoas durante os últimos dois anos.
Conta Hesse que Sidarta, após estudar e compreender a doutrina de Buda,
percebeu que apenas sozinho alcançaria seu destino e descobriria sua própria verdade.
Buda, do alto de sua sabedoria, compreendeu as necessidades do jovem sacerdote, e
não se zangou: abençoou o rapaz para que tivesse êxito em sua empreitada espiritual.
Do mesmo modo meus professores me conduziram e transmitiram seus
ensinamentos, porém sempre com a preocupação de que eu me apoderasse do
trabalho, construísse e desconstruísse minhas próprias verdades. Foi-me dado o
privilégio de ser livre para acertar e para errar. Assim são os verdadeiros mestres:
guiam-nos para nos tornarmos aquilo que somos, tal como recomendaria Leminski.
Professor Dimitri Dimoulis, obrigado pela rigorosa orientação, por me fazer
refletir sempre, buscar as fontes originais, contrapô-las, não aceitar verdades pré-
concebidas, por ler e reler meus escritos com atenção, questionando-me e fazendo
com que criasse calos e cicatrizes para suportar as dores do crescimento pelo próprio
esforço.
Professor Eurico Marcos Diniz de Santi, serei eternamente grato pela amizade,
pela generosidade inigualável, por tratar seus alunos como membros de sua família. E,
sobretudo, por mostrar, com o poder dos atos e não meramente das palavras, que
mesmo no mundo do direito, onde a tradição e o formalismo têm assento especial, há
espaço para a intuição e a criatividade. Melhorar o Brasil, sim, nós podemos!
Sou imensamente grato a meus pais, Noêmia e Ari, por terem possibilitado
que viesse a São Paulo estudar. Não apenas me provendo materialmente, mas me
oferecendo todo suporte e carinho que um filho pode esperar dos pais. Muito
obrigado, também, aos meus irmãos Gabriel e Ana Beatriz, sempre comigo.
Obrigado à família Roiter Prestes pela recepção tão acolhedora em São Paulo,
que, em muitos momentos, fez com que me sentisse ter duas famílias.
Não posso deixar de agradecer aos grandes amigos que fiz no Núcleo de
Estudos Fiscais da Direito GV, os quais muito me ensinaram, contribuíram para
qualificar este trabalho e também para que minha estada em São fosse tão agradável
quanto tem sido. Obrigado, Andressa Torquato, Andreia Scapin, Ariel Kövesi, Basile
6
Christopoulos, Dalton Hirata, Isaias Coelho, Mariana Pacheco, Nara Taga, Roberto
Codorniz e Vanessa Rahal Canado.
Um agradecimento especial a Frederico Bastos, companheiro de mestrado, de
NEF/Direito GV e que esteve junto nas angústias e alegrias dos últimos dois anos.
Obrigado, irmão.
Também agradeço a todos os colegas de mestrado, cujo convívio rendeu
excelentes amizades, o que faço especialmente nas pessoas de Antonio Deccache,
Fernando Stival e Vicente Braga (mais conhecido como “regulador”).
Agradeço à Fundação Getulio Vargas pela Bolsa Mario Henrique Simonsen,
que me permitiu, sem custos, estudar na escola de direito mais inovadora da América
Latina. A todos os funcionários da instituição, especialmente aos professores, que
sempre demonstraram grande empenho e seriedade na condução dos cursos, os quais
muito contribuíram para minha formação e para a elaboração desta dissertação.
Muito obrigado ao Professor Luís Cesar Souza de Queiroz, da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, pelas importantes sugestões e críticas construtivas feitas
em minha banca de defesa de dissertação, as quais possibilitaram o refinamento
analítico deste texto.
Um agradecimento efusivo ao Professor José Rodrigo Rodriguez, não apenas
por sua produção acadêmica profícua e inovadora, que muito me auxiliou na
construção deste trabalho, mas principalmente pelo diálogo enriquecedor que
passamos a travar desde minha banca.
Obrigado, também, ao Professor Humberto Ávila, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, pelas relevantes considerações tecidas em minha banca de
qualificação, fundamentais para determinar a verdadeira vocação desta pesquisa.
Tenho de agradecer, ainda, à Professora Betina Treiger Grupenmacher,
primeira incentivadora e orientadora de minhas incursões ao direito tributário na
Universidade Federal do Paraná, casa onde me graduei.
Por fim, agradeço à Yasmin. Não há palavra no vernáculo capaz de expressar
minha gratidão a você.
De Curitiba para São Paulo,
Fevereiro de 2014.
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RESUMO
Este trabalho tem por objetivo analisar o processo de concretização normativa
do art. 198 do Código Tributário Nacional. Tal dispositivo veda a divulgação, por
parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do
ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e
sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. Trata-se do chamado
"sigilo fiscal", hipótese infraconstitucional de proteção de dados pessoais no âmbito
tributário que visa dar efetividade ao direito fundamental à privacidade.
Inicialmente, adota-se como pressuposto o conceito de Estado de Direito, que
se fundamenta na previsibilidade conferida pelas normas e procedimentos
estabelecidos previamente a respeito das consequências jurídicas das condutas
praticadas por cada indivíduo. Também se utiliza o conceito de zona de autarquia para
demonstrar que, mesmo em sociedades democráticas, há decisões jurídicas que são
tomadas de modo puramente arbitrário, sem se preocupar em demonstrar os
raciocínios dogmáticos que pautam a tomada de decisão.
Tais conceitos, aplicados em pesquisa empírica que analisa os argumentos
propugnados em atos de interpretação e aplicação da norma do sigilo fiscal, aliados ao
histórico de pesquisas do Núcleo de Estudos Fiscais da DireitoGV, demonstram que
há um déficit de informações tributárias no Brasil. Ademais, permitem apontar uma
série de contradições e incoerências na interpretação atualmente predominante do
"conceito" de sigilo fiscal.
Tendo em vista as mencionadas incoerências, e com o objetivo de incrementar
a conformidade ao ideal político do Estado de Direito, apresentam-se parâmetros
interpretativos que permitem conciliar a necessidade de sigilo e proteção a
informações tributárias, de um lado, e de publicidade de atos de aplicação da
legislação tributária, de outro. Basicamente, defende-se que a publicidade dos atos de
aplicação do direito pode contribuir para o aumento de shared sensibilities
(expectativas compartilhadas) entre contribuintes e instituições fiscais, tornando mais
segura a aplicação das normas tributárias.
Palavras-chave: Direito Tributário; Processo de Concretização; Transparência; Sigilo
Fiscal; Zona de Autarquia; Estado de Direito.
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ABSTRACT
This work intends to analyze the process of normative enforcement of Article
198 of the Brazilian Tax Code. Such Article prohibits the disclosure, by the Tax
Administration or its servers, of information obtained by virtue of the tax audits and
other kinds of services on the economic or financial condition of the taxpayer or a
third party and the nature and condition of its business or activities. It constitutes the
so-called "tax secrecy", legal hypothesis of protection of personal data in the tax
framework that aims to give effect to the right to privacy.
Initially, we adopt the concept of rule of law which is based on predictability
enabled by rules and procedures regarding the legal consequences of behaviors
practiced by individuals. We also use the concept of zone of authority, which
demonstrates that even in democratic societies, there are legal decisions taken in a
purely arbitrary way, without bothering to demonstrate the dogmatic reasoning that
guide the decision-making.
Such concepts, applied in the empirical research that examines the arguments
developed in documents and decisions which apply the tax secrecy rule, combined
with the historical of researches of the Center for Fiscal Studies of DireitoGV,
demonstrate that there is a shortfall of tax information in Brazil. Furthermore, it
enables to indicate contradictions and inconsistencies in the currently prevailing
interpretation of the "concept " of tax secrecy .
Given the inconsistencies mentioned, and with the aim of increasing
conformity to the political ideal of the rule of law, we present interpretative
parameters for reconciling the need for secrecy and protection of tax information, on
one hand, and disclosure of decisions applying tax law, on the other. Basically, it is
argued that disclosing decisions which apply tax legislation may contribute to the
increase of shared sensibilities between taxpayers and tax authorities, making the
application of tax rules more certain.
Keywords : Tax Law; Enforcement Process; Transparency; Tax Secrecy; Zone of
Authority ; rule of law .
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SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................... 14
1. Capítulo metodológico: escolhas e justificativas de uma pesquisa empírica em
direito tributário ........................................................................................................... 17
1.1. Objetivos, métodos e relevância da pesquisa empírica ..................................... 17
1.2. Estratégia de investigação e organização do trabalho ....................................... 19
2. Estado de Direito, processo de concretização normativa e zonas de autarquia: o
ideal político da redução do arbítrio por meio da previsibilidade, a constatação de que
normas gerais e abstratas são insuficientes para produzir segurança jurídica e a
necessidade de que os atos de aplicação do direito sejam racionalmente reconstruíveis
e possibilitem efetivo controle social ........................................................................... 23
2.1. Estado de Direito como possibilidade de controle do poder ............................. 24
2.2 Processo de concretização normativa: normas gerais e abstratas dependem de
normas individuais e concretas para garantir a efetividade do direito ..................... 29
2.3. Modelos de racionalidade jurídica e zonas de autarquia: discricionariedade não
significa irracionalidade, sendo necessário que os atos de aplicação do direito
permitam aos seus interlocutores a possibilidade de reconstruir os raciocínios
dogmáticos que pautam a tomada de decisão .......................................................... 38
3. Percurso de pesquisa empírica tributária do Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de
Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas: Direito & Desenvolvimento,
modificação da estratégia da reforma legislativa para a do incremento do fluxo de
informações entre Fisco e contribuinte, constatação do déficit de informações
tributárias no Brasil e a inutilização do conceito de sigilo fiscal por meio da insólita
interpretação de que ele tudo protege .......................................................................... 46
3.1. Primeiras pesquisas do Núcleo de Estudos Fiscais: constatação do déficit de
informações tributárias no Brasil ............................................................................. 48
3.2. Atual linha de pesquisa: transparência de informações tributárias como
estratégia para tornar o sistema tributário brasileiro mais seguro e previsível ........ 49
3.3. Constatações específicas sobre o sigilo fiscal durante o trajeto de pesquisa: a
inversão da regra geral da transparência de informações públicas em nome de
insólita interpretação do conceito de sigilo .............................................................. 51
10
4. Pesquisa empírica e análise argumentativa dos discursos e práticas institucionais
sobre o sigilo fiscal: contradições, incoerências e patologias da interpretação
predominante do “conceito” de sigilo fiscal ................................................................ 57
4.1. Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal do Brasil ................ 59
4.2. Respostas da Administração Tributária Federal a Pedidos de Acesso a
Informações de Natureza Tributária ........................................................................ 63
4.2.1. Resposta para Pedido de Disponibilização de Inteiro Teor de Soluções de
Consulta sobre Interpretação da Legislação Tributária ....................................... 64
4.2.2. Resposta para Pedido de Disponibilização de Decisões de Primeira
Instância Proferidas em Processos Administrativos Fiscais ................................ 66
4.2.3. Respostas Relativas a Pedidos de Informações sobre Benefícios Fiscais .. 67
4.2.4. Resposta para Pedido de Disponibilização de Autos de Infração Fiscal ... 69
4.3. Parecer PGFN/CAT 2.458/2012: análise do entendimento consolidado da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional sobre o sigilo fiscal ................................ 70
4.4. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: análise de decisões do órgão
administrativo envolvendo o tema do sigilo fiscal .................................................. 73
4.5. Supremo Tribunal Federal: análise de decisões da Corte a respeito do sigilo
fiscal ......................................................................................................................... 74
4.6. Superior Tribunal de Justiça: análise de decisões do STJ envolvendo os temas
do sigilo fiscal e da publicidade de informações tributárias .................................... 76
4.7. Avaliação dos resultados obtidos com a análise argumentativa: arbitrariedade,
“justiça opinativa” e ocultação da indeterminação dos atos de aplicação do sigilo
fiscal ......................................................................................................................... 82
4.8. Falas individuais de atores que participaram de debates promovidos pelo NEF:
confirmando a falta de coerência a respeito do “conceito” de sigilo fiscal ............. 90
5. Convite ao debate público: quais devem ser os limites do sigilo fiscal? ................. 96
5.1. A questão da privacidade: reconhecendo sua natureza vaga e cambiante e
distinguindo informações desprovidas de potencial danoso à vida privada ............ 99
5.2. O art. 198 do CTN no contexto do ordenamento jurídico brasileiro: quando não
for autorizado acesso integral à informação por ser ela parcialmente sigilosa, é
assegurado o acesso à parte não sigilosa com ocultação da parte sob sigilo ......... 106
5.3. Benefícios fiscais para empresas: ausência de justificativas para considerar as
respectivas informações sigilosas e estabelecimento de uma pauta de pesquisa para
o futuro ................................................................................................................... 110
11
5.4. Transparência do processo de concretização normativa e segurança jurídica:
constrangimento institucional para coibir alterações interpretativas e instrumento
para incrementar shared sensibilities entre Fisco e contribuintes ......................... 113
Conclusões ................................................................................................................. 127
Referências ................................................................................................................. 135
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O segredo está no núcleo mais interno do poder. (...) O poderoso, que se serve do próprio segredo, conhece-o com exatidão e sabe muito bem apreciar a sua importância nas várias circunstâncias. Ele sabe qual o seu objetivo se quer obter algo, e sabe também qual de seus colaboradores empregar na cilada. Ele tem muitos segredos porque deseja muito, e combina-os em um sistema dentro do qual se preservam reciprocamente: um segredo confia a este, ou àquele, e faz de tal modo que os indivíduos depositários dos segredos não possam unir-se entre si. Qualquer um que saiba de alguma coisa passa a ser controlado por um outro que contudo ignora qual seja na verdade o segredo espionado. (...) [Apenas o poderoso] tem a chave do todo complexo de segredos, e sente-se em perigo quando deve dele tornar inteiramente partícipe um outro. Elias Canetti1
1 CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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Introdução
O Estado de Direito cria regras e procedimentos para a prática de atos de
poder, permitindo captar as diversas demandas sociais e transformá-las em decisões
oficiais, e, ao mesmo tempo, possibilitando que os órgãos competentes comuniquem
suas deliberações à sociedade. Tais regras e procedimentos são anunciados de
antemão e tornam possível prever com relativa certeza quando e como o poder
coercitivo será empregado, permitindo que os indivíduos planejem suas vidas com
base nesse conhecimento.
Onde não há Estado de Direito, o poder não é constrangido por regras e
procedimentos, não sendo possível prever as consequências jurídicas das condutas
praticadas por cada um. Desse modo, o soberano, arbitrariamente, impõe suas
decisões aos súditos.
A característica central do Estado de Direito, portanto, reside na possibilidade
de controlar o poder mediante a previsibilidade conferida por regras e procedimentos.
Todas as ações estatais devem estar fundamentadas em uma regra e/ou seguir um
procedimento de tomada de decisão, o que torna menos provável a produção de
decisões puramente arbitrárias.
Hoje, quase todos os países possuem sistemas jurídicos baseados em
instituições que conferem algum grau de previsibilidade, seja privilegiando regras
gerais e abstratas, seja por meio de precedentes que estabelecem padrões decisórios e
que acabam por criar guias de conduta. Assim sendo, o Estado de Direito pode ser
considerado um ideal político que um sistema jurídico pode respeitar em menor ou
maior grau.
Mesmo em sociedades democráticas é possível encontrar certas zonas de
autarquia, conceito de José Rodrigo Rodriguez que será detalhado no decorrer deste
trabalho, nas quais o Estado utiliza o direito como mero instrumento para dar forma
legítima às suas decisões, mas cujo conteúdo é essencialmente arbitrário. É o caso de
decisões baseadas em argumentos irracionais. Essas zonas funcionam como canos de
escape para o poder fugir do direito e tomar decisões de forma autárquica, evitando o
controle social, com o objetivo de agir unilateralmente.
O Núcleo de Estudos Fiscais (“NEF”) da Escola de Direito de São Paulo da
Fundação Getulio Vargas (“Direito GV”) possui importantes constatações empíricas
sobre a existência de zonas de autarquia no processo de concretização de normas
15
tributárias no Brasil. Em suas investigações empíricas, o NEF/Direito GV se deparou
com um grande obstáculo: a dificuldade de acesso a informações e documentos
detidos por órgãos da Administração Tributária, tais como autos de infração, decisões
das Delegacias Regionais de Julgamento (“DRJs”), acórdãos do Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais (“CARF”), soluções de consulta sobre
interpretação da legislação tributária, representações fiscais para fins penais e atos
administrativos que concedem desonerações fiscais.
Diante da impossibilidade de ter acesso a atos de aplicação do direito
praticados por órgãos da Administração Tributária e da tese de que isso pode produzir
zonas de autarquia, a tarefa deste trabalho é dar maior precisão àquele diagnóstico
inicial. Para tanto, será adotada uma perspectiva eminentemente empírica. O
argumento central é o de que a transparência dos atos de concretização normativa
emanados de autoridades tributárias é uma estratégia adequada para desestimular o
surgimento de zonas de autarquia. Tais atos, portanto, deveriam ser sigilosos apenas
em circunstâncias excepcionais.
No decorrer da dissertação, serão articulados argumentos no sentido de que a
transparência do processo de concretização normativa: i) possibilita o controle social
dos atos de poder praticados por autoridades tributárias; ii) estimula a deliberação
pública sobre a melhor interpretação da legislação tributária, tornando as instituições
fiscais mais legítimas perante a sociedade; iii) enriquece o repertório de soluções
dogmáticas para conflitos tributários que surgem cotidianamente nas relações entre
Fisco e contribuinte, agregando eficácia ao direito tributário; e iv) consiste em
relevante constrangimento institucional, que contribui para o incremento da segurança
jurídico-tributária mediante a exposição dos critérios interpretativos utilizados pelos
órgãos competentes, inibindo a modificação desses critérios.
É evidente que a transparência dos atos de concretização normativa,
isoladamente, não pode dar respostas completas ou definitivas para todos os
problemas que têm importunado a política fiscal e a Administração Tributária. Porém,
para uma sociedade que deseja um sistema tributário seguro, previsível e isonômico,
pautado por padrões interpretativos consistentes e que perdurem no tempo, a
transparência aqui proposta é um instrumento útil.
Após a descrição detalhada dos caminhos teóricos que conduziram à ideia de
transparência dos atos de aplicação das normas tributárias, será desenvolvida uma
pesquisa empírica acerca do processo de concretização da norma do sigilo fiscal, cuja
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principal fonte legislativa é o artigo 198 do Código Tributário Nacional.2 Afinal, seja
qual for o modelo teórico ou o argumento que se defenda, sempre é preciso testá-los
empiricamente, e não tentar sacralizá-los por meio de abstrações.
O sigilo fiscal não foi escolhido aleatoriamente. Como será demonstrado
adiante, os atos de concretização dessa norma estão repletos de zonas de autarquia,
porquanto assentados em uma série de justificativas irracionais e incoerentes. Essa
aplicação irracional tem impedido o acesso a diversos atos decisórios e
interpretativos, sob o argumento de que sua publicidade poderia violar a privacidade
de contribuintes. Tal prática tende a ampliar a irracionalidade e a obscuridade no
processo de concretização de outras normas tributárias, criando, assim, outras zonas
de autarquia.
Por esses motivos, procurar-se-á identificar como o processo de concretização
do sigilo fiscal é estruturado e quais as justificativas que o sustentam, com o objetivo
de verificar se podem ser consideradas racionais e se, de fato, faz sentido resguardar
dos olhares do público certos atos do processo de concretização das normas
tributárias.
2 “Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. § 1º Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça; II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa. § 2º O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo. § 3º Não é vedada a divulgação de informações relativas a: I – representações fiscais para fins penais; II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública; III – parcelamento ou moratória.”
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1. Capítulo metodológico: escolhas e justificativas de uma pesquisa empírica em
direito tributário
The science of law is just as much a science of norms as of reality. As a science of norms it has as its subject-matter the objective meaning of legal norms. As a science of reality it investigates the relations between legal norms, the social substructure (Substrat), the social behavior of the legal subjects, and of legal administrators. Franz Neumann3
O problema de pesquisa está relacionado ao processo de concretização
normativa do sigilo fiscal. Nesse rumo, torna-se relevante explicar quais são os
caminhos teóricos que conduziram à ideia da transparência do processo de
concretização das normas tributárias, e como ela se relaciona à segurança jurídica e à
legitimidade e eficácia do direito tributário.
Mas este é um passo anterior à resolução do problema, que consiste, na
verdade, em identificar quais os discursos e práticas institucionais de alguns dos
principais atores brasileiros a respeito do sigilo fiscal e como são fundamentados. O
objetivo, em última instância, é entender como diversos atores relevantes lidam com o
tema da transparência e do sigilo na esfera tributária.
A resolução do problema permitirá testar duas hipóteses de pesquisa:
Hipótese 1: Os discursos sobre o sigilo fiscal contêm zonas de autarquia
porque são fundamentados em argumentos irracionais.
Hipótese 2: Os discursos sobre o sigilo fiscal produzem zonas de autarquia
externas porque restringem a transparência de atos de concretização de outras normas
do ordenamento jurídico.
1.1. Objetivos, métodos e relevância da pesquisa empírica
Não é o propósito desta dissertação afirmar que as interpretações praticadas
por órgãos tributários a respeito do sigilo fiscal estão equivocadas e que a
interpretação aqui esposada é a correta. Defende-se que, dentro do espaço de
indeterminação que é possível constatar na redação do art. 198 do CTN, conforme
3 NEUMANN, Franz L. The Rule of Law: Political theory and the legal system in modern society (1936). Leamington: Berg, 1986, p. 13.
18
explicitado mais adiante, uma interpretação que procure equacionar a necessidade do
sigilo para proteger a privacidade de contribuintes, de um lado, com a publicidade dos
atos de aplicação do direito, de outro, é mais interessante do que aquela atualmente
predominante. Grosso modo, tem-se a intenção de argumentar que, em geral, quanto
mais decisões e informações produzidas por órgãos públicos forem publicadas, mais
próximo do ideal político do Estado de Direito se estará, não só pelo valor intrínseco
da liberdade e da submissão estatal ao controle social, mas também como caminho
apto a construir padrões interpretativos mais estáveis.
Para realizar essa crítica será utilizado o conceito de zona de autarquia
formulado por José Rodrigo Rodriguez. O autor é deveras influenciado por Franz
Neumann, pensador alemão citado na epígrafe deste capítulo, integrante da segunda
geração da Escola de Frankfurt, nascida na década de 1920, durante a República de
Weimar, e formada por pensadores dedicados aos mais diversos campos das ciências
sociais. Partindo do diagnóstico de Kelsen de que a mesma norma pode autorizar
múltiplas interpretações4, Neumann afirma que o objeto da Ciência do Direito deve
abarcar o estudo das normas e do comportamento dos responsáveis por aplicá-las.
Considerando que o ato de aplicação possui parcela criativa, segundo Franz
Neumann, é papel da pesquisa jurídica vigiar constantemente os órgãos de aplicação,
tendo em vista possíveis reformas institucionais para mitigar o excesso de
indeterminação no momento da aplicação das normas.
Há poucos autores que trabalham o direito de forma crítica internamente.
Rodriguez e Neumann ajudam a refletir essa face interna, ressaltando a importância
de se analisar como o direito e as normas são manipuladas cotidianamente pelas
instituições.
Como explica José Rodrigo Rodriguez: Não há crítica do direito sem análise das instituições reais, ou seja, sem pesquisas empíricas que as sustentem e informem propostas normativas de reforma. Neumann deixa muito claro que a crítica ao direito deve estar fundada em evidências empíricas. Para criticar o direito é preciso fazer-se
4 Para Kelsen: “A interpretação jurídico-científica tem de evitar, com o máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal de segurança jurídica. Em vista da plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente”. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Ensino Superior), p. 396.
19
jurista, ou seja, reconstruir internamente o sentido daquelas instituições que se reproduzem referindo seu comportamento a normas jurídicas.5
A necessidade de controlar a ação do soberano advém de se pensar a
dogmática como instrumento de controle do poder e não apenas como um meio de
exercê-lo. Pesquisar desta maneira e com este objetivo significa cobrar racionalidade
do poder, exigindo que ele siga os procedimentos de tomada e decisão e aja de acordo
com a racionalidade dogmática: Ora, se considerarmos que o modo de pensar dogmático é o instrumental de que os órgãos jurisdicionais se utilizam para tomar suas decisões, descrever seu funcionamento por meio de pesquisas empíricas é reconstruir a maneira pela qual esses órgãos realizam raciocínios dogmáticos a fim de controlar o grau de indeterminação que caracteriza seus julgamentos e, nos termos de Neumann, propor, eventualmente, reformas institucionais...6 Um dogmático que não examina a dimensão da aplicação faz um trabalho parcial que pode se tornar esquizofrênico caso ignore a efetividade do ordenamento jurídico sob a forma de jurisprudência. Ou seja, caso ignore o direito positivo, sem pesquisar “sociologicamente” a jurisprudência, não terá boa dogmática.7
Por isso, este trabalho não procura simplesmente descrever as interpretações
cabíveis a partir do contato com textos legislativos. O objetivo primordial é
compreender como as autoridades que lidam com matéria tributária no país
manipulam o direito, especificamente a norma do sigilo fiscal. Daí a importância da
pesquisa empírica, que procura entender os problemas concretos para, a partir daí e
em conexão com a prática, propor soluções mais seguras e menos ingênuas.
1.2. Estratégia de investigação e organização do trabalho
Para resolver o problema e testar as hipóteses, e com o objetivo de
desenvolver uma pesquisa crítica nos moldes acima mencionados, este trabalho foi
dividido em quatro capítulos adicionais. O capítulo “Estado de Direito, processo de
concretização normativa e zonas de autarquia: o ideal político da redução do arbítrio
5 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito: um estudo sobre o Direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. São Paulo: Saraiva, 2009. (Série direito em debate. Direito, Desenvolvimento e Justiça), p. 140. 6 RODRIGUEZ, José Rodrigo. A dogmática jurídica como controle do poder soberano: pesquisa empírica e Estado de Direito. In: PÜSCHEL, Flavia Porte; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (orgs.). Dogmática é Conflito: uma visão crítica da racionalidade jurídica. São Paulo: Saraiva, 2012. (Coleção Direito, Desenvolvimento e Justiça: série direito em debate), p. 78. 7 Idem, p. 81.
20
por meio da previsibilidade, a constatação de que normas gerais e abstratas são
insuficientes para produzir segurança jurídica e a necessidade de que os atos de
aplicação do direito sejam racionais e possibilitem efetivo controle social” é
eminentemente teórico e consiste, na verdade, em um passo anterior ao objeto central.
Nele são explicitados os parâmetros teóricos que serão utilizados como ponto de
referência para a realização da pesquisa empírica mais adiante, bem como para a
avaliação de seus resultados.
Neste capítulo são utilizados, principalmente, textos de José Rodrigo
Rodriguez, professor e editor de publicações da Direito GV e pesquisador permanente
do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(“CEBRAP”), duas das principais instituições brasileiras que pregam a realização de
pesquisas empíricas na Ciência do Direito.
Influenciado por Franz Neumann, Rodriguez defende que o direito, como
disciplina acadêmica e como campo institucional, é um importante espaço para lutas
emancipatórias concretas. Argumenta que o papel do Estado de Direito é manter a
tensão entre Estado e sociedade por meio de formas e procedimentos que permitam
controlar o poder e assegurar liberdade; nesse sentido, chama a atenção para a
importância de se criar mecanismos de controle dos atos de aplicação, que compõem
o processo de concretização das normas jurídicas. Nisso reside a principal conexão
entre as ideias do autor e a transparência do processo de concretização normativa
defendida neste trabalho.
Estabelecidas as premissas teóricas que justificam a relevância da
transparência do processo de concretização das normas tributárias, e que também
servirão de parâmetro para avaliar os resultados da pesquisa empírica no penúltimo
item, no capítulo “Percurso de pesquisa empírica tributária do Núcleo de Estudos
Fiscais da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas: Direito &
Desenvolvimento, modificação da estratégia da reforma legislativa para a do
incremento do fluxo de informações entre Fisco e contribuinte, constatação do déficit
de informações tributárias no Brasil e a inutilização do conceito de sigilo fiscal por
meio da insólita interpretação de que ele tudo protege” será narrado o trajeto de
pesquisas do Núcleo de Estudos Fiscais da Direito GV, onde o autor deste trabalho foi
pesquisador, e que acaba por se confundir com o próprio percurso desta dissertação.
Os resultados desse histórico de pesquisas reforçam que há um déficit de acesso a atos
de concretização normativa no campo tributário. Também ficará claro que
21
provavelmente o principal obstáculo para se ter acesso a atos de aplicação do direito
tributário no Brasil é a interpretação atualmente predominante acerca do sigilo fiscal.
Por esse motivo, em seguida, no capítulo “Pesquisa empírica e análise
argumentativa dos discursos e práticas institucionais sobre o sigilo fiscal:
contradições, incoerências e patologias da interpretação predominante do ‘conceito’
de sigilo fiscal”, realiza-se um trabalho de análise argumentativa dos discursos de
alguns dos principais atores brasileiros sobre o sigilo fiscal, com base no conceito de
zona de autarquia. São utilizadas decisões do Supremo Tribunal Federal (“STF”), do
Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (“CARF”), o Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal do
Brasil (“RFB”), o parecer consolidador do entendimento da Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional (“PGFN”) sobre o sigilo fiscal, e respostas da RFB a pedidos de
acesso à informação. Por fim, são expostas as falas de interlocutores que participaram
de debates promovidos pelo NEF acerca do assunto, mas que não serão analisadas do
ponto de vista argumentativo, servindo apenas como ilustração das conclusões obtidas
a partir do estudo dos demais suportes.
No capítulo “Convite ao debate público: quais devem ser os limites do sigilo
fiscal?”, a partir da visão empírica dos problemas relativos à interpretação do sigilo
fiscal e perseguindo o ideal político do Estado de Direito, sugerem-se critérios para
interpretar de modo mais delimitado o sigilo fiscal, procurando levar em conta os
argumentos de oposição mais comuns, mas sem a pretensão de fazer uma construção
dogmática suficientemente robusta e sistematizada a ponto de esgotar o tema.
Argumentar-se-á, ainda, que a publicidade dos atos de aplicação do direito
pode contribuir para o aumento de shared sensibilities (expectativas compartilhadas)
entre contribuintes e instituições fiscais, tornando mais segura a aplicação das normas
tributárias.8 No aludido capítulo, não se tem como escopo ignorar os limites impostos
pelo texto do art. 198 do CTN ou pelas práticas institucionais existentes sobre o tema
para estabelecer o sentido do sigilo fiscal com base em elementos externos ao direito.
Apenas será desenvolvido o argumento de que, dentro do espaço de manobra
conferido pela redação consideravelmente vaga do art. 198, não há óbice à
8 Esse conceito foi desenvolvido pelo australiano John Braithwaite, Distinguished Professor e fundador da Regulatory Institutions Network na Australian National University. As teses de Braithwaite têm um inequívoco potencial para lidar com problemas concretos, pois orientaram reformas realizadas na Administração Fiscal australiana na década de 2000, as quais se tornaram referência mundial, seguidas por Reino Unido, Nova Zelândia, Pensilvânia (EUA) e Indonésia.
22
publicidade dos atos de concretização das normas fiscais, pelo menos caso sejam
adotados certos cuidados.
No fim das contas, este trabalho é muito mais um convite ao debate público do
que uma proposta interpretativa pronta e definitiva. Não se advoga em nome da
verdade, até porque não se acredita ser possível extrair verdades inquestionáveis de
textos legislativos abstratos. Defende-se um ponto de vista que leva em conta a
imprecisão intrínseca à linguagem: se, em geral, não é possível extrair uma única
verdade dos textos legais, que se exponham todas as verdades praticadas.
Por fim, ressalte-se que este trabalho não pretende se alinhar à corrente do
realismo jurídico, que defende que as decisões jurídicas são mais importantes que os
textos legislativos, os quais poderiam estabelecer apenas um ideal aproximativo de
segurança jurídica. Aqui, parte-se do pressuposto de que leis e regulamentos
vinculam, em algum nível, os tomadores de decisões. Mas não se tomará partido
sobre um modelo de racionalidade jurídica específico, limitando-se a afirmar que,
hoje, a maior parte deles reconhece, com maior ou menor intensidade, que muitos
textos legais possuem “textura aberta” e que, em muitas situações, os órgãos
jurisdicionais criam direito.
23
2. Estado de Direito, processo de concretização normativa e zonas de autarquia:
o ideal político da redução do arbítrio por meio da previsibilidade, a constatação
de que normas gerais e abstratas são insuficientes para produzir segurança
jurídica e a necessidade de que os atos de aplicação do direito sejam
racionalmente reconstruíveis e possibilitem efetivo controle social
Se no direito público prescindo, como habitualmente o concebem os juristas, de toda a matéria (...), ainda me resta a forma da publicidade, cuja possibilidade está contida em toda a pretensão jurídica, porque sem ela não haveria justiça alguma (que só pode pensar-se como publicamente manifesta), por conseguinte, também não haveria nenhum direito, que só se outorga a partir da justiça. Toda pretensão jurídica deve possuir a possibilidade de ser publicada... (...) São injustas todas as acções que se referem ao direito de outros homens, cujas máximas não se harmonizem com a publicidade. Immanuel Kant9
Neste capítulo, argumenta-se que a característica fulcral do Estado de Direito
reside na possibilidade de controlar o poder, coibindo o arbítrio e assegurando a
liberdade dos cidadãos mediante a previsibilidade das consequências jurídicas das
condutas praticadas por cada indivíduo.
Na sequência, partindo do diagnóstico de Kelsen de que dificilmente é
possível obter, a partir da lei, uma única resposta para casos concretos, assume-se que
a atividade de aplicação do direito contém, ao menos em parte, caráter criativo. Isso
exige compreender que os embates políticos e as pressões sociais que alimentam o
direito não ocorrem estritamente no Legislativo. Esse processo de “informar” o direito
é dinâmico e segue ocorrendo no momento da aplicação. Portanto, é relevante
conhecer não apenas as regras produzidas pelo Legislativo, porém também os atos de
aplicação do direito.
Combinando a noção de Estado de Direito mencionada com a referida
constatação kelseniana, passa-se a defender a necessidade de se criar mecanismos
para que os atos de aplicação não consistam em simples produtos da subjetividade dos
aplicadores, sendo mister que tenham alguma coerência entre si e confiram um
mínimo de previsibilidade.
9 KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2002, pp. 164-165.
24
Esse caminho teórico conferirá parâmetros para a pesquisa empírica
empreendida no capítulo quatro e para a avaliação de seus resultados, bem como
servirá de ponto de partida para a formulação de critérios interpretativos no último
capítulo.
2.1. Estado de Direito como possibilidade de controle do poder10
Pode-se afirmar que a ideia central que norteia os escritos de Neumann é a de
que o Estado de Direito se caracteriza, fundamentalmente, pela possibilidade de
controlar o poder. Quando este controle está em ato, abre-se a possibilidade de que a
sociedade transforme sua vontade em norma jurídica e em políticas públicas. Ou seja,
não há um conceito de justiça que deve orientar a produção normativa para que se
possa considerar um Estado efetivamente um Estado de Direito. O que importa para
caracterizá-lo, sobretudo, é a possibilidade de controlar o poder e de afastar o arbítrio
por meio da segurança jurídica, ou seja, a previsibilidade que as normas gerais e
abstratas e os procedimentos conferem acerca das consequências jurídicas das
condutas praticadas por cada indivíduo11: Na concepção ocidental do termo, estado de direito significa a imposição de limites ao poder soberano e ao poder privado. Ninguém pode agir licitamente sem fundamento em uma norma jurídica ou em uma norma social que autorize diretamente uma determinada conduta ou crie um espaço de autonomia dentro dos limites impostos pelo direito de determinado ente soberano. Pode-se dizer que haja um estado de direito quando toda ação possa ser justificada a partir de uma norma criada ou não pelo Estado e, neste último caso, reconhecida por ele.12
10 A expressão “império do direito” também é frequentemente utilizada para designar o que estamos chamando de “Estado de Direito”. O primeiro termo procura ressaltar que o conceito de direito inclui, além do aparelho estatal, práticas sociais mediadas por normas jurídicas que não passam necessariamente pelos órgãos do Estado e, portanto, são reguladas por critérios nascidos na esfera privada e não na esfera pública. A despeito disso, optamos por utilizar “Estado de Direito” por nos parecer ser expressão mais difundida na cultura jurídica brasileira. 11 “Na verdade, Neumann empregava o termo rule of Law, em vez de estado de direito, com o objetivo de ressaltar que o conceito de direito inclui, além do aparelho estatal, práticas sociais mediadas pelas normas jurídicas que não passam necessariamente pelos órgãos do Estado e, portanto, são reguladas por critérios nascidos na esfera pública e não na esfera privada. Neumann defendia um conceito de direito descentrado do aparelho estatal, concebido como uma forma de sociabilidade abrangente. O uso do termo rule of law por Neumann, na contramão da tradição alemã, berço do conceito de estado de direito, liga-se à sua crítica radical a esta mesma tradição, marcada por um Estado forte e autoritário, desprovido de um polo de oposição ancorado na sociedade civil.” Nesse sentido, ver: RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes: para uma crítica do Direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 40, nota de rodapé 23. 12 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 69.
25
Neumann faz acréscimos ao seu conceito de Estado de Direito a partir de uma
descrição histórica.13 O Estado de Direito nasce para afirmar a burguesia como classe
excluída do âmbito da ação do Estado. Ao defender que o Estado deve realizar a
vontade da sociedade, a burguesia pôde se apresentar como portadora dos interesses
universais, forçando sua entrada na condução das políticas estatais, ou seja, na
definição do que seja interesse público. O processo de construção dos Estados de
Direito resultou na destruição do antigo regime, cujas estruturas não suportavam a
participação de outras classes além da aristocracia e do clero na formação da vontade
do soberano.14
Nessa linha, a edificação do Estado de Direito e suas instituições
fundamentais, especialmente o governo das leis por meio de normas gerais, incluía a
garantia da igualdade perante a lei, bem como a liberdade e a segurança individual
para todos os indivíduos, a liberdade de associação e o direito de voto. Todas essas
instituições permitem que outras classes excluídas tomem parte do sistema político
por meio de reivindicações de direitos.15
Não à toa, ao longo do tempo passou-se a contar com a previsão de direitos
em quase todos os sistemas jurídicos do mundo para trabalhadores, mulheres, negros
e outros grupos historicamente desfavorecidos, que lançaram mão das estruturas e
instituições do Estado de Direito para realizar suas reivindicações.
Como exemplo, cite-se o caso do Brasil, que, com o início do processo de
abertura democrática do final da década de 1970, ao lado do aumento da
complexidade social, foi sensivelmente impactado na esfera política mediante o
reconhecimento de novos agentes dotados de voz legalmente reconhecida. Cada vez
mais atores passaram a participar do cenário político, tornando mais complexas as
negociações, barganhas e procedimentos de deliberação que se pretendam legítimos
perante a esfera pública. A Constituição de 1988 é um marco fundamental deste
13 A descrição histórica de Neumann possui a finalidade de demonstrar que a “forma” Estado de Direito pressupõe escolhas e acontecimentos históricos que, por si só, já dotam essa “estrutura” de conteúdo. Na linha de Hegel, Neumann procura demontrar que não se pode falar de forma dissociada de conteúdo e nem de conteúdo sem forma. Forma e conteúdo não se definem por si mesmos, erigindo-se uma relação íntrinseca entre ambos. Isso significa que a lei não é aleatória e nem casuísta, pois se funda sobre o que já se pratica, isto é, o costume. Este, por sua vez, não pode ser fruto de mera arbitrariedade, mas somente se constitui e subsiste por meio / em meio a um processo histórico que o interpela permanentemente. Sua efetivação é a expressão viva do que as pessoas pensam, desejam e fazem cotidianamente. Para mais detalhes, consultar: G.W.F. HEGEL, Princípios da Filosofia do Direito. Trad. de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 14 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, pp. 70-71. 15 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, p. 71.
26
processo, tendo contado com intensa participação da sociedade civil em todos os
níveis.16
Retomando a exposição, “a afirmação de que a vontade do Estado deve
coincidir com a vontade da sociedade arma um mecanismo que tende a colocar em
xeque instituições construídas para deixar de fora do sistema político qualquer classe
ou grupo.”17 Conforme o autor alemão, esta é a estrutura essencial do Estado de
Direito: “Trata-se de uma estrutura institucional que constrange o poder soberano a
agir conforme a vontade da sociedade por meio de normas gerais e as instituições
ligadas a elas (...), que instituem e garantem a separação entre soberania e liberdade,
entre sociedade e Estado”.18
O Estado de Direito, portanto, aponta para além de si mesmo porque
possibilita que classes e grupos sociais se utilizem dele para incluir suas demandas no
interior do sistema político. Por isso, pode-se afirmar que o Estado moderno
caracteriza-se pela existência de duas esferas: a da soberania e a da liberdade em
relação à soberania. A separação do Estado nessas duas esferas, acrescida da
afirmação de que ele deve servir às necessidades e à vontade de todos os cidadãos,
possibilita a ampliação do espaço de participação política das forças sociais por meio
das normas do Estado de Direito.19
O Estado de Direito instaura e garante a separação entre Estado e sociedade,
criando canais para captar a vontade desta em seu devir e transmiti-la para os órgãos
do poder. “Trata-se de uma estrutura inclusiva e, por isso mesmo, aberta para o
futuro, capaz de apreender as novas demandas sociais. A questão não é mais qual é a
verdade substantiva que deve orientar a elaboração do direito positivo, mas como
construir instituições capazes de ouvir a voz da sociedade.”20 21
16 Como decidem as Cortes, pp. 56-57. 17 Idem, p. 72. 18 Ibidem, p. 72 19 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, p. 84. 20 Idem, p. 123. 21 Esse acréscimo de Neumann ao conceito de Estado de Direito, no sentido de que o Direito deve atender à vontade popular, é visto com reservas por autores que defendem um conceito puramente formal de Estado de Direito. Joseph Raz explica que Estado de Direito (rule of law) é apenas uma das virtudes que um sistema jurídico pode possuir. Não deve ser confundido com democracia, justiça, igualdade, direitos humanos ou quaisquer outros aspectos que digam respeito à dignidade humana. Um sistema não democrático, baseado na negação de direitos humanos, em pobreza endêmica, em segregação racial, sexismo e perseguição religiosa pode, em princípio, se conformar aos requisitos do Estado de Direito melhor do que alguns dos sistemas mais democráticos do mundo ocidental. Isso não significa que eles são melhores do que as democracias ocidentais. Serão sistemas jurídicos muito piores, mas, considerando que a essência do Estado de Direito é a liberdade assegurada pela
27
Para os fins deste trabalho, o principal raciocínio de Neumann está em
reconhecer que, mesmo que os aplicadores procurem se ater aos conteúdos
normativos, há quase sempre aspectos e situações que demandam criação jurídica na
aplicação das normas gerais, os quais não podem ser utilizados de qualquer maneira
pelos aplicadores, ainda que a norma conceda “espaços” de discricionariedade. O
autor alemão não explica como deveriam ser utilizados, entretanto o racional
formulado parece ser um ponto de partida adequado para lidar com sistemas jurídicos
cada vez mais complexos e dotados de normas de baixa densidade normativa, ponto
que será aprofundado no próximo item.
Nesse passo, ressalte-se que não apenas as normas gerais e abstratas são
importantes, mas também os atos de aplicação do direito, ou seja, as normas
individuais e concretas.22 Considerando que as normas costumam admitir múltiplas
interpretações, os órgãos que detêm a competência para aplicá-las também precisam
assegurar previsibilidade, ainda que em menor grau. Mesmo quando o legislador
conferir discricionariedade para os aplicadores, as decisões não poderão ser tomadas
inadvertidamente, sem algum tipo de racionalidade por trás que permita aos
destinatários das decisões compreenderem por que se privilegiou uma solução jurídica
em detrimento de outra.
Rodriguez chama atenção para esse fato e para a importância de que a Ciência
do Direito se dedique a ambas as expressões do Estado de Direito: Diga-se que o conceito de Estado de Neumann é construído para dar conta do problema da aplicação e seu controle. Para ele, o Estado tem, de um lado, uma dimensão jurídica, o poder de estatuir normas individuais e normas gerais; de outro lado, este mesmo estado tem uma dimensão sociológica: poder de impor suas normas sobre um determinado território. Ele não se reduz ao direito positivado em abstrato, mas se projeta em suas decisões concretas, tomadas pelos poderes e por todas as pessoas, públicas ou privadas, que atuam em seu nome (...). Em todos os casos, estamos diante do objeto de estudo da ciência do direito.23
previsibilidade que o Direito confere, aqueles países poderão sobressair em um aspecto: sua conformidade ao Estado de Direito. (RAZ, Joseph. The autority of Law: essays on law and morality. Oxford: Oxford University Press, 1979). 22 Raz também reconhece a relevância das normas individuais e concretas. O vocábulo “direito”, da expressão “Estado de Direito”, significa mais do que leis gerais e abstratas. Ele inclui a Constituição, as leis produzidas pelo parlamento, regulamentações ministeriais, atos administrativos emanados de agentes reguladores etc. Segundo o autor, a doutrina do Estado de Direito não nega que os sistemas jurídicos consistem tanto de regras gerais e abstratas (general, open and stable rules), quanto de normas individuais e concretas (particular laws, legal orders). O que o conceito exige é que as normas individuais e concretas sejam subordinadas a normas gerais e abstratas. O autor reconhece que as normas individuais são comumente utilizadas para flexibilizar as normas gerais, criando instabilidade, e que isso pode colocar em risco o ideal político de Estado de Direito. O que Neumann defende é que a pesquisa jurídica deve vigiar esses atos para reduzir excessos de indeterminação e arbitrariedade. 23 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Dogmática é conflito, p. 81.
28
Merece destaque a constatação de que esses controles não são suficientes para
coibir arbitrariedades, como demonstra a dimensão sociológica. A possibilidade de
controlar o poder por meio da previsibilidade deve se estender aos atos de aplicação
do direito, já que, em geral, eles possuem parcela criativa.
Cumpre ressaltar, por fim, que a despeito do que sua conexão com a Teoria
Crítica poderia sugerir, o conceito de Estado de Direito de Neumann aproxima-se da
noção formal. A fim de qualificar um Estado de Direito, é suficiente que as
autoridades estatais e os indivíduos sejam submetidos ao direito positivo, seja qual for
seu conteúdo.24 Não se confunde a avaliação do caráter justo ou adequado do direito
com o problema da existência de um Estado de Direito. “O Estado de Direito não é
um ‘Estado de justiça’, mas simplesmente uma forma de organização política e social
que garante a previsibilidade das decisões. Mesmo se a norma válida for claramente
injusta (...), não deixa de ser juridicamente válida...”.25
Assim, não obstante Neumann seja um defensor do proletariado e lute pela sua
emancipação, o autor reconhece que o Estado de Direito, em si, é um tipo de
emancipação jurídica. Ou seja, uma ação previsível do Estado, mesmo que opressiva,
é preferível a uma ação arbitrária, isto é, não sujeita a padrões.26 27
O que Neumann defende é que as normas do Estado de Direito podem ser
empregadas em favor da causa proletária, seja por meio de alterações legislativas via
Parlamento, seja por meio da luta por interpretações das normas em vigor a favor dos
interesses dos trabalhadores. Por isso os direitos fundamentais, cujo texto geralmente
24 Kelsen refina ainda mais o conceito de Estado de Direito, mas não chega a se afastar da proposta de Neumann: “Se o Estado é reconhecido como uma ordem jurídica, se todo Estado é um Estado de Direito, esta expressão representa um pleonasmo. Porém, ela é efetivamente utilizada para designar um tipo especial de Estado, a saber, aquele que satisfaz aos requisitos da democracia e da segurança jurídica. ‘Estado de Direito’ neste sentido específico é uma ordem jurídica relativamente centralizada segundo a qual a jurisdição e a administração estão vinculadas às leis – isto é, às normas gerais estabelecidas por um parlamento eleito pelo povo, com ou sem a intervenção de um chefe de Estado que se encontra à testa do governo − os membros do governo são responsáveis pelos seus atos, os tribunais são independentes e certas liberdades dos cidadãos, particularmente a liberdade de crença e de consciência e a liberdade da expressão do pensamento, são garantidas”. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, p. 346). 25 DIMOULIS, Dimitri. Manual de Introdução ao Estudo do Direito, p. 85. 26 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, p. 96. 27 Sobre este ponto, afirma William Scheurmann: “Ele quer tanto as reformas sociais e econômicas radicais (ambas explicitamente anticapitalistas) e todas as virtudes das normas jurídicas liberais. Neumann tenta não somente mostrar que a igualdade econômica e os padrões jurídicos classicamente liberais são compatíveis, mas que precisam um do outro”. (SCHEURMANN, William E. Between Norm and Exception: the Frankfurt School and the rule of law. Cambridge: MIT Press, 1997, p. 101).
29
possui textura consideravelmente aberta, ganham atenção especial na obra do autor,
especialmente o direito de propriedade: O resultado deste processo é a explicitação da possibilidade de construir e reconstruir, por meio da forma direito, todos os direitos fundamentais e instituições capitalistas. Todos eles aparecem como escolhas que não se justificam em si mesmas, mas precisam servir à vontade e aos desejos dos cidadãos. Desse modo, Neumann demonstra que, mantida a separação entre as esferas da soberania e da liberdade, existe a possibilidade de que a classe operária transforme o direito a partir de dentro, promovendo a apropriação coletiva dos meios de produção por força de lei. Por isso mesmo, postas estas condições históricas, o direito passa a ser mediação necessária para a emancipação humana.28
Independentemente da concepção política, sociológica ou filosófica para a
qual a “forma direito”29 for direcionada, importa destacar para os fins deste trabalho
não o potencial do direito para atuar como mediador da emancipação do proletariado,
mas a importância intrínseca de se evitar a arbitrariedade por meio da previsibilidade
possibilitada pelo direito.
2.2 Processo de concretização normativa: normas gerais e abstratas dependem
de normas individuais e concretas para garantir a efetividade do direito
Se há um consenso entre os teóricos contemporâneos do direito é o de que a
solução de casos concretos a partir de normas gerais não se resolve exclusivamente
com o texto destas, ou seja, a aplicação das normas não se resume a revelar o sentido
contido nos textos legislativos.30 É possível haver várias interpretações das mesmas
normas. Como afirmou Kelsen, toda decisão jurisdicional, mesmo aquelas que
aparentam ser extremamente simples, contém um elemento de decisão, ou seja, um
elemento de exercício de poder. Sempre há um espaço de indeterminação para a
decisão jurisdicional; maior ou menor, conforme o texto da norma produzida pelo
Poder Legislativo. Normas que contenham termos muito abstratos ou terminologia
difusa aumentam o espaço de indeterminação para a ação dos aplicadores, mas este
espaço está sempre presente:
28 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, pp. 94-95. 29 Expressão utilizada por Rodriguez para se referir àquilo que estamos chamando de Estado de Direito. Ver: Fuga do Direito. 30 Esta afirmação pode ser encontrada em: ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução de Zilda H. S. Silva; revisão técnica da tradução e introdução à edição brasileira de Claudia Toledo. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005.
30
A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato. Mesmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer. Se o órgão A emite um comando para o que órgão B prenda o súdito C, o órgão B tem de decidir, segundo o seu próprio critério, quando, onde e como realizará a ordem de prisão, decisões essas que dependem de circunstâncias externas que o órgão emissor do comando não previu e, em grande parte, nem sequer podia prever. Daí resulta que todo ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica, quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado.31
É possível dar vários exemplos ilustrativos no âmbito do direito tributário da
indeterminação das normas jurídicas, mesmo daquelas que aparentemente não dariam
margens para grandes controvérsias interpretativas.
Por exemplo, auferir renda ou obter acréscimo patrimonial são os fatos
jurídicos sobre os quais incide o imposto sobre a renda (IR). Todavia, a percepção de
recursos a título de indenização por danos morais por pessoa física pode ser
considerada fato jurídico tributário para fins de incidência do IR?
A Receita Federal, historicamente, entendia que em casos como este o imposto
era devido. O fundamento da aludida interpretação residia no artigo 91 do Código
Civil (“CC”) combinado com o artigo 43 do Código Tributário Nacional. De acordo
com o art. 91 do CC, patrimônio é o complexo de todas as relações jurídicas do
titular, desde que dotadas de valor econômico. Assim sendo, considerando que os
bens morais de uma determinada pessoa não possuem expressão econômica, não
poderiam pertencer ao patrimônio. Desse modo, sempre que recebida uma
indenização por lesão a bens morais, restaria configurado acréscimo patrimonial. E,
nos termos do art. 43 do CTN, o IR incide sobre a aquisição da disponibilidade
econômica ou jurídica de renda, assim entendido o produto do capital ou do trabalho,
e de proventos de qualquer natureza, assim compreendidos os acréscimos
patrimoniais não abarcados pelo conceito de renda. Portanto, a indenização por danos
morais estaria sujeita à incidência do IR.
Durante certo período de tempo este foi o entendimento predominante acerca
da matéria, tendo o STJ proferido decisão nesse sentido (no Recurso Especial
748.868, em 28 de agosto de 2007, até recentemente considerado leading case na
31 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, pp. 388-389.
31
matéria). No entanto, em 8 de outubro de 2008, a Primeira Seção do STJ, colegiado
composto por ministros da Primeira e da Segunda Turmas, proferiu entendimento
diverso. O Ministro Relator Herman Benjamin concluiu que a indenização por dano
moral não representa riqueza nova, mas sim uma reposição do patrimônio imaterial
pela via da substituição monetária. Ademais, a incidência do IR nesse caso reduziria a
eficácia do princípio da reparação integral.
Tal acórdão do STJ influenciou seguidas decisões no mesmo sentido,
impingindo várias derrotas ao Fisco. Após sucessivos fracassos no Judiciário e ante o
argumento favorável e justo dos contribuintes, em 2011 a Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional emitiu o Parecer/CRJ n. 2.123/2011, posteriormente reconhecido
pelas autoridades fiscais por meio do Ato Declaratório n. 9/2011, os quais
explicitaram formalmente que não incide IR sobre as indenizações por danos morais
recebidas por pessoas físicas e dispensam os procuradores de recorrer em processos
em que a União é derrotada.
Outra discussão que demonstra a indeterminação de regra jurídica
aparentemente precisa diz respeito à incidência (ou não) de ICMS sobre veiculação de
material publicitário em sítios eletrônicos de provedores de internet. Sabe-se que o
ICMS incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações
de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Porém, o
que pode ser considerado exatamente um serviço de comunicação? A veiculação de
material publicitário estaria abrangida pela aludida hipótese de incidência?
Até 30 de julho de 2003 sobre esta atividade incidia o Imposto sobre Serviços
de Qualquer Natureza (ISS), conforme constava no item 86 da lista anexa ao Decreto-
Lei n. 406/68, acrescentado pela Lei Complementar n. 56/87. Entretanto, com a
promulgação de nova lista de serviços, por meio da LC n. 116/03, esta atividade foi
objeto de veto pelo Ministério da Justiça, tendo como justificativa a incompetência do
ente municipal para tributar serviços de comunicação, que seriam de competência
estadual.
A referida alteração legislativa combinada com o fundamento do veto
governamental atraiu a atenção dos entes estaduais, que viram na tributação desta
atividade, mediante o ICMS-Comunicação, uma potencial fonte de receitas
tributárias. Para tanto, seria necessário enquadrar a veiculação de material publicitário
na internet como “serviço de comunicação”. Diante disso, diversas autuações fiscais
foram lavradas, retroativamente, com amparo do prazo decadencial de cinco anos,
32
para cobrar o ICMS-Comunicação de provedores de acesso à internet que,
historicamente, eram contribuintes do ISS e nunca haviam sido orientados a recolher
o ICMS-Comunicação.
Isso deu azo ao surgimento de várias decisões judiciais em que se debate o
conceito de “serviço de comunicação” e a incidência (ou não) do ICMS-Comunicação
sobre serviços de veiculação de material publicitário na internet. Na esteira desses
acontecimentos, observou-se também a profícua produção de artigos científicos pela
doutrina tributária discutindo o mesmo assunto.
Não bastasse isso, alguns entes municipais continuaram exigindo o ISS do
contribuinte prestador de tal atividade, passando a enquadrar o serviço de veiculação
de material publicitário na hipótese de incidência prevista para a atividade de
publicidade e propagada ou de agenciamento de publicidade, serviços que
continuaram previstos na nova lista anexa introduzida pela LC 116/03.
Basicamente, as autoridades tributárias procuram argumentar que o serviço de
veiculação de material publicitário enquadra-se no conceito de “serviço de
comunicação” e, desde sempre, seria hipótese de incidência do ICMS-Comunicação,
na linha do veto governamental acima referido.
No entanto, os contribuintes alegam que a expressão “serviço de
comunicação” significa a atividade remunerada de colocar à disposição de terceiro
meios ou instrumentos para que ocorra a comunicação, como tal entendida a ação
bilateral, ou multilateral, em que informações ou dados são enviados de um sujeito a
outro, ou a outros, e daquele ou daqueles a este, em verdadeira interação. Assim
sendo, no que tange às prestações de serviço de comunicação por meio de veiculação
de material publicitário, estaria ausente o elemento volitivo por parte dos receptores
da ação comunicativa.
Em outras palavras, o serviço de comunicação pressuporia a “vontade” de
duas ou mais pessoas identificáveis de se comunicarem. Na relação entre o provedor
de acesso à internet e o anunciante da publicidade, aquela com conteúdo econômico
passível de tributação na ação comunicativa, mesmo que exista o elemento volitivo de
transmitir a informação não há a contrapartida do receptor, do destinatário, desta
mensagem (parte da relação comunicativa), que não contratou o recebimento dos
anúncios e não escolheu o seu conteúdo. Faltaria, portanto, elemento intrínseco para
caracterizar a veiculação de material publicitário como prestação de serviço de
comunicação, não sendo passível de incidência do ICMS-Comunicação.
33
Há inúmeras discussões nos tribunais administrativos e judiciais a respeito
desses e outros conceitos, aparentemente precisos e delimitados.
Além disso, cada vez mais os sistemas jurídicos vêm recebendo o influxo de
normas de baixa densidade normativa, ou seja, normas vagas e genéricas, que
ampliam ainda mais as possibilidades interpretativas e a indeterminação no momento
da aplicação, conferindo maior discricionariedade para os aplicadores. No nosso
sistema, merece destaque o parágrafo único do artigo 116 do CTN, que veicula a
chamada norma antielisiva geral. De acordo com esta norma, a autoridade
administrativa pode desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a
finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos
elementos constitutivos da obrigação tributária. Esse dispositivo legal deu azo ao
surgimento de várias interpretações que pregam a necessidade de que a forma legal
utilizada seja compatível com a essência econômica da operação praticada. Com isso,
vários planejamentos tributários realizados dentro dos limites “formalmente legais”, e
que há algum tempo seriam considerados válidos, têm sido, ultimamente,
considerados ineficazes para fins fiscais.
Tal dispositivo implicou a instalação, na última década, de combate ideológico
e teórico de duas concepções sobre o planejamento tributário, representadas por
renomados juristas: de um lado, a defesa do Estado Liberal, dos princípios da livre-
iniciativa, da ampla liberdade negocial e da tipicidade cerrada do fato gerador; de
outro, a defesa do Estado Social, a busca da solidariedade e da capacidade
contributiva como valores constitucionais, pretendendo oferecer novas alternativas à
“teoria do fato gerador” e propondo a requalificação do fato em sintonia com o
propósito negocial (“business purpose”).32 Ou seja, o debate sobre planejamento
tributário foi “principiologizado”, isto é, em ambos os lados ganhou relevância a
utilização de princípios constitucionais para argumentar em prol de uma dada posição,
resultado da considerável vagueza do art. 116, parágrafo único, do CTN.
Para lidar com a indeterminação inerente à linguagem, com o crescente
número de normas vagas e indeterminadas e com o aumento da complexidade dos
sistemas jurídicos contemporâneos, as sociedades modernas passaram a se preocupar
em estabelecer o controle da Administração mediante a criação de procedimentos 32 SANTI, E. M. D. de. Poder da Violência Simbólica e o “Planejamento Tributário ao Contrário”. In: ADEODATO, J. M.; BITTAR, E. C. B. (org.). Filosofia e Teoria Geral do Direito: Homenagem a Tercio Sampaio Ferraz Junior por seu septuagésimo aniversário. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 364.
34
decisórios. A necessidade de criar caminhos conforme o direito para a tomada de
decisões surgiu justamente da necessidade de controlar o momento da aplicação do
direito.33
A articulação entre normas substantivas e procedimentais possibilita que estas
últimas compensem a indeterminação das primeiras por meio da construção de
critérios e procedimentos rígidos para a decisão de casos concretos. No entanto, não
se pode olvidar que, mesmo com a criação de procedimentos, sempre haverá um
órgão encarregado de aplicar as normas substantivas. Assim, inevitavelmente, por
mais constrangimentos institucionais que se criem para compensar a indeterminação
das normas gerais e abstratas, e considerando que os órgãos são constituídos por seres
humanos, o momento derradeiro da aplicação sempre dependerá, ainda que
minimamente, da vontade da pessoa responsável pela tomada de decisão: todas estas normas precisam ser aplicadas por órgãos de poder. Alguma autoridade, um ser humano ou grupo deles, será competente para seguir as regras do procedimento e utilizar as normas substantivas para solucionar os casos. Esta autoridade é o primeiro juiz, por assim dizer, do sentido que deve ser emprestado a elas. Mesmo que suas ações estejam sujeitas à revisão por outra autoridade, no limite, será sempre uma determinada pessoa ou pessoas o órgão competente para decidir sobre o sentido de uma norma jurídica, seja ela material ou processual.34
Afinal, as normas não são capazes de aplicar a si mesmas. “Mesmo que o ato
de aplicação seja simples e aparentemente repetitivo, trata-se sempre de inovar o
ordenamento jurídico, acrescentando mais um ato de autoridade a uma série
anterior”35. Assim, a racionalidade da aplicação das normas abre uma problemática
própria, que não se resolve na descrição em abstrato das normas gerais e abstratas: O Direito a aplicar forma (...) uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta,
33 Para aprofundamentos sobre a mudança de paradigma da segurança jurídica e a utilização de procedimentos para lidar com a crescente indeterminação do Direito, ver: RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito e; RODRIGUEZ, José Rodrigo. Segurança Jurídica e Desenvolvimento. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). Fragmentos para um Dicionário Crítico de Direito e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. (Coleção Direito, Desenvolvimento e Justiça: Série produção científica). 34 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, p. 109. 35 Idem, p. 110.
35
mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa – não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.36
Hart possui posição semelhante. Reconhece amplos espaços de
discricionariedade do aplicador, isto é, o seu papel criativo. “O caráter vago e incerto
da linguagem humana não permite termos sempre certeza em relação aos casos que se
subsumem na norma”37. Alguns casos são de fácil solução, pois pertencem ao núcleo
conceitual da norma, permitindo uma resposta certa e clara e podendo ser vistos como
fáceis (clear cases). Outros casos são, ao contrário, complexos (hard cases). Situam-
se em uma zona cinzenta (penumbra) e impõem a tomada de decisões incertas que
devem ser estabelecidas pelo aplicador de forma discricionária, ocorrendo uma
criação judicial do direito: Em todos os sistemas jurídicos, um espaço amplo e importante é deixado aberto à discricionariedade dos tribunais e de outras autoridades para concretizar cláusulas inicialmente vagas, para responder a incertezas em relação às normas ou para desenvolver e especificar normas que se encontram, de forma abstrata, em precedentes vinculantes.38
Texto legislativo e norma, portanto, não são absolutamente coincidentes. Há a
necessidade de que normas individuais e concretas complementem o “processo de
positivação”39 de normas gerais e abstratas.40 As normas gerais e abstratas não são
36 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, pp. 390-391. 37 DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico, p. 55. 38 HART, Herbert Lionel Adolphus. The Concept of law. Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 136. 39 Para um aprofundamento deste ponto, ver: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 40 A divisão entre normas individuais e concretas, de um lado, e normas gerais e abstratas, de outro, consiste em uma simplificação da distinção apontada por Norberto Bobbio no que diz respeito ao grau de generalidade e abstração das normas. Para Bobbio, normas gerais são as que se dirigem a uma classe de pessoas, contrapondo-se às que têm por destinatário um indivíduo singular, chamadas de normas individuais. Normas abstratas, por sua vez, são aquelas que regulam uma ação-tipo, ou uma classe de ações, contrapondo-se àquelas que regulam uma ação singular, chamadas de normas concretas. Assim, pode-se identificar quatro tipos de normas jurídicas: a) normas gerais e abstratas: trata-se da maior parte das leis, como as normas de incidência tributária, por exemplo; b) normas gerais e concretas: por exemplo uma lei que se destina a uma classe de cidadãos e ao mesmo tempo prescreve uma ação singular, a qual uma vez cumprida exaure a eficácia da norma; c) normas individuais e abstratas: por exemplo uma lei que atribui a uma determinada pessoa um ofício, como por exemplo, o de juiz da Corte constitucional, dirigindo-se a um só indivíduo e lhe prescrevendo não uma ação singular, mas todas aquelas que são inerentes ao exercício da função;
36
autoaplicáveis e precisam da intervenção humana para surtir efeitos na realidade.
Como explica Eurico Marcos Diniz de Santi, esses dois tipos de normas apresentam
funções prescritivas diversas: as normas gerais e abstratas voltam-se para o futuro e
para todos, utilizam-se de enunciados conotativos, informando a conduta que ainda
não aconteceu; as normas individuais e concretas são denotativas e dirigem-se ao
passado para construir fatos passados e prescrever condutas, imprimindo caráter de
“definitividade” ao sentido do direito. Sem normas individuais e concretas, o direito
não alcança essa necessária objetividade e certeza. O eixo de positivação do direito
visa reduzir a conotação e precisar a denotação dos preceitos jurídicos, passando do
fato típico para o acontecimento concreto.41
É preciso reconhecer que, embora os teóricos contemporâneos do direito
sejam praticamente unânimes quanto à constatação de que quase sempre há um
espaço de indeterminação no momento de aplicação das normas, a extensão dessa
indeterminação e a forma com que cada autor procura lidar com ela variam bastante.
Para simplificar grosseiramente, há os que dão maior importância ao texto legislativo,
ressaltando a necessidade de o intérprete se ater aos conteúdos legislativos
(textualistas), enquanto há os que admitem maior abertura para a utilização de
critérios políticos e morais no momento da aplicação (moralistas). Independentemente
da linha que se adote, o fato de que os atos de aplicação contêm parcela criativa, na
essência, não muda.42
Diante dessas afirmações, o estudo dos atos de aplicação mostra-se essencial
para a reconstrução da dogmática do ordenamento jurídico: o exame das leis deve ser
acompanhado do estudo da jurisprudência e dos atos de aplicação isolados, também
responsáveis pela positivação do direito. Perdem força análises que vejam o direito
positivo estaticamente, apenas como texto normativo, sem levar em conta sua
d) normas individuais e concretas: o exemplo mais comum é o fornecido pelas sentenças do juiz; (Para mais detalhes, ver: BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Bauru/SP: EDIPRO, 2001, p. 177-187). 41 Para um desenvolvimento deste tema, ver: SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 42 Para uma descrição crítica dos “moralistas”, ver: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico. E para uma noção crítica a respeito dos “textualistas”, consultar; RODRIGUEZ, José Rodrigo. A persistência do formalismo: uma crítica para além da separação de poderes. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo et al. (orgs.). Nas Fronteiras do Formalismo: a função social da dogmática jurídica hoje. São Paulo: Saraiva, 2010. (Série direito em debate. Direito, Desenvolvimento e Justiça).
37
elaboração sob a forma de normas e o processo de atribuição de sentido, levado a
cabo pelas autoridades aplicadoras43.
O argumento propugnado, portanto, é o de que conhecer as normas gerais e
abstratas não é suficiente para compreender o direito positivo. Se não é possível
estabelecer abstratamente os sentidos de todos os conceitos contidos na legislação e
tampouco prever todos os efeitos dela decorrentes, abre-se um espaço de
arbitrariedade e de instabilidade jurídica que torna o ideal de segurança jurídica
apenas aproximativo, na medida em que se depende da interpretação de diversos
órgãos para conhecer o “derradeiro” sentido das normas gerais e abstratas.44 Isso torna
necessário conhecer as normas individuais e concretas introduzidas pelos atos de
aplicação para que se possa não apenas conhecer o direito positivo em toda sua
extensão, mas efetivamente garantir meios de controle social do poder praticado pelos
órgãos competentes para aplicar as normas, assegurando a possibilidade de coibir
arbitrariedades e de ampliar a previsibilidade também no momento da aplicação.45
Acrescente-se, por fim, que esta é a estratégia específica que este trabalho
utiliza para lidar com a indeterminação intrínseca ao direito. Como visto acima,
outros autores também admitem a existência da indeterminação. Ocorre que utilizam
estratégias que variam, geralmente, entre, de um lado, a redação de normas gerais e
abstratas mais precisas e detalhadas, que confiram margem de discricionariedade
menor no momento da aplicação e, de outro, métodos de ponderação de valores que
pretendem facilitar a construção de soluções para casos concretos com base no
sopesamento de valores relevantes em um dado contexto histórico-social. Esta
43 Este argumento é desenvolvido com maior detalhamento em: RODRIGUEZ, José Rodrigo. A persistência do formalismo: uma crítica para além da separação de poderes. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo et al. (orgs.). Nas Fronteiras do Formalismo. 44 Não estamos assumindo uma posição alinhada ao realismo jurídico. Esta abordagem do positivismo concentra seu interesse cognitivo nas normas formuladas pelas autoridades que aplicam o direito e, principalmente, pelos juízes, considerando que a aplicação do direito não se vincula casualmente a normas gerais e preexistentes. Apenas estamos reconhecendo que as normas gerais e abstratas, embora vinculem em algum nível os aplicadores, geralmente deixam abertos certos espaços de discricionariedade, que dependem de concretização. Assim, além das normas gerais e abstratas, é importante ter acesso aos atos de aplicação para conhecer todo o direito positivo. 45 Isso não significa que se deve almejar um Estado de absoluta segurança. Afinal, como explica José Roberto Vieira, na vida social, é inevitável, e até mesmo necessária, a existência de uma pequena dose de insegurança, “[...] que dê margem às perspectivas de mudança, inovação e evolução, sob pena de que a segurança em demasia implique paralisação e inatividade, cerrando as portas ao progresso e ao desenvolvimento social.” VIEIRA, José Roberto. Medidas provisórias tributárias e segurança jurídica: a insólita opção estatal pelo “viver perigosamente”. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.). II Congresso Nacional de Estudos Tributários. São Paulo: Noeses, 2005, pp. 371-372. Tampouco significa que as normas individuais e concretas são totalmente determinadas ou que as normas gerais e abstratas absolutamente sempre dão margem para controvérsias.
38
dissertação não descarta a relevância ou a pertinência dessas outras estratégias.
Apenas chama a atenção para o fato de que os atos de aplicação do direito não podem
ser ignorados, pois estabelecem importantes parâmetros para a interpretação de
normas gerais e abstratas.
2.3. Modelos de racionalidade jurídica e zonas de autarquia: discricionariedade
não significa irracionalidade, sendo necessário que os atos de aplicação do direito
permitam aos seus interlocutores a possibilidade de reconstruir os raciocínios
dogmáticos que pautam a tomada de decisão
Assumir que os atos de aplicação, geralmente, contêm algum conteúdo
criativo, implica admitir que projetos de exceção podem se instalar no âmbito da
aplicação das normas.46 Isso traz consequências à Ciência do Direito, passando-se a
exigir dela um momento empírico com o objetivo de identificar a configuração do
Estado de Direito, investigar suas fronteiras e, mormente, permitir que a sociedade
exerça controle sobre o soberano, afastando o perigo do arbítrio.47
A descrição de como os órgãos jurisdicionais tomam suas decisões torna
possível reconstruir seus raciocínios dogmáticos. Isso permite fiscalizar e controlar o
grau de indeterminação que caracteriza seus julgamentos e, eventualmente, propor
reformas institucionais para mitigar excessos de indeterminação.48
Para descrever empiricamente a racionalidade jurisdicional, Rodriguez utiliza
a ideia de modelo de racionalidade jurídica (“MRJ”), que conceitua como “o conjunto
de raciocínios utilizados para resolver casos concretos a partir do direito posto, ou
seja, do material jurídico à disposição do juízo.”49
O MRJ pode ter, para os estudiosos do direito, diversas funções, tais como:
parâmetro para pesquisas empíricas que pretendam descrever sociologicamente de
46 Os conceitos de racionalidade, modelo hermenêutico, constrangimento institucional e zonas de autarquia utilizados neste capítulo foram formulados por José Rodrigo Rodriguez. Para um aprofundamento dessas ideias, ver: Zonas de Autarquia nas Decisões Jurisdicionais: Estado de Direito, indeterminação e democracia. In: VIEIRA, Oscar Vilhena; DIMOULIS, Dimitri (orgs.). São Paulo: Saraiva, 2011. (Coleção Direito, Desenvolvimento e Justiça. Série produção científica). 47 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Dogmática é conflito, p. 86. 48 Para um desenvolvimento sobre a relação entre pesquisa empírica e Ciência do Direito, ver: RODRIGUEZ. A dogmática jurídica como controle do poder soberano: pesquisa empírica e Estado de Direito. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo; PÜSCHEL, Flavia Portella; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (orgs.). Dogmática é Conflito. 49 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 65.
39
que modo os órgãos jurisdicionais tomam decisões; instrumento didático para ensinar
estudantes a operar o ordenamento jurídico; e objeto de investigação filosófica com o
objetivo de refletir sobre qual seria a melhor forma de organizar o raciocínio jurídico
para solucionar casos concretos.
Geralmente, os teóricos do direito se limitam a pensar os MRJs com relação à
última das funções supramencionadas, propondo abstrata e normativamente modelos
de racionalidade jurídica sem se preocupar em realizar descrições empíricas de como,
na prática, as decisões jurídicas são tomadas. Tal atuação restritiva pode ser
prejudicial porquanto, para realizar uma crítica, seja qual for sua natureza, é preciso
estar baseado em dados empíricos, sob o risco de se produzir conhecimento alienado
da prática.
É natural que mais de um modelo esteja em funcionamento em um mesmo
ordenamento jurídico, não obstante alguns possam considerar desejável que todas as
autoridades competentes para tomar decisões sigam o mesmo modelo de
racionalidade. Todavia, como argumenta Dworkin50, “há vários MRJ em disputa, cada
um com uma visão diferente sobre o significado da fundamentação das sentenças e,
portanto, sobre a função do juiz e sobre o conceito de estado de direito”51. Afinal, os
modelos de racionalidade estão conectados com ideias mais profundas, geralmente
relacionadas ao papel do Estado na sociedade e ao desenho institucional desejável da
separação de poderes, crenças e convicções que costumam variar consideravelmente
dentro de uma mesma coletividade. Sendo assim, há várias posições ideológicas em
disputa, quadro que se reflete “tanto na teoria quanto nas argumentações
jurisdicionais propriamente ditas”.52
Além de descrever os modelos de racionalidade jurídica existentes na prática,
a pesquisa empírica no direito pode se prestar a criticar as práticas institucionais reais.
Considerando a premissa lógica kelseniana de que qualquer escolha
interpretativa dentro da moldura do direito é plausível, o papel da teoria do direito
passa a ser favorecer escolhas refletidas e identificar escolhas irrefletidas, ou seja,
50 “As teorias interpretativas de cada juiz se fundamentam em suas próprias convicções sobre o ‘sentido’ – o propósito, objetivo ou princípio justificativo – da prática do direito como um todo, e essas convicções serão inevitavelmente diferentes, pelo menos quanto aos detalhes, daquelas de outros juízes.” DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo; revisão técnica de Gildo Sá Leitão Rios. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Justiça e Direito), p. 110. 51 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 66. 52 Idem, p. 66.
40
escolhas que naturalizem soluções e desenhos institucionais ou que não sejam
justificadas de maneira coerente.
Se se concorda que os atos de aplicação do direito geralmente implicam uma
escolha política, já que, em geral, não é possível deduzir das normas gerais e abstratas
as consequências jurídicas de todas as condutas praticadas em uma dada sociedade,
pode-se aceitar que essa escolha política se funde simplesmente na autoridade do
órgão competente para tomar a decisão, ou se pode exigir algo mais: que aquela
autoridade demonstre, racional e exaustivamente, por que optou por uma solução
jurídica em detrimento de outra. E, caso se admita que a característica central do
Estado de Direito reside na possibilidade de evitar o arbítrio por meio de regras e
procedimentos que possibilitem construir um ambiente de segurança jurídica, então
não resta outra opção senão procurar formas de constranger a escolha política inerente
ao ato de aplicação, a fim de que se mitigue a indeterminação do ato.
Esse “controle” das decisões não deve ser entendido como uma característica
de regimes autoritários, em que se subtrai a liberdade de consciência dos tomadores
de decisão. Pelo contrário: considerando que em um Estado de Direito nenhuma
função pode ser exercida de modo arbitrário, é preciso refletir sobre a criação de
procedimentos e parâmetros para a atividade jurisdicional.53
A racionalidade do direito, agora, passa a ser valorada de acordo com o
modelo de racionalidade jurídica das decisões tomadas: Ora, tal momento de autoridade, evidentemente, pode se fundar na força simbólica da autoridade do juiz, ou legitimar-se democraticamente por meio de um modelo de justificação que leve em conta os argumentos apresentados e os aceite ou refute num discurso racional. A adoção de um padrão de argumentação deste tipo irá favorecer a aceitação da decisão não em função do medo, da violência ou do temor reverencial, mas em função do convencimento das partes na ação jurisdicional e dos cidadãos em geral.54
Para nortear as pesquisas empíricas que pretendam criticar práticas
institucionais reais55, Rodriguez formula o conceito de zona de autarquia. Com ele,
será possível descobrir se há setores dos sistemas jurídicos em que os órgãos de poder
atuam de forma arbitrária e explicitar modelos autoritários ou meramente simbólicos
de legitimação das decisões:
53 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Zonas de Autarquia nas Decisões Jurisdicionais. 54 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Zonas de Autarquia nas Decisões Jurisdicionais p. 300. 55 Idem.
41
... chamaremos de zona de autarquia um espaço institucional em que as decisões são tomadas sem que se possa identificar um padrão de racionalidade qualquer, ou seja, em que as decisões são tomadas num espaço vazio de justificação. (...) zonas de arbitrariedade em que a forma jurídica se torna apenas aparência vazia para justificar a arbitrariedade do poder público ou privado.56
Zona de autarquia, nessa linha, pode ser entendida como um espaço
institucional em que as decisões são tomadas sem que se possa identificar um modelo
de racionalidade jurídica específico, ou seja, em que as decisões são tomadas sem
fundamentação adequada. Advirta-se que dificilmente uma autoridade declarará
explicitamente “decido assim porque quero”, sendo provável que esteja presente
algum tipo de falsa justificação que busque conferir forma aparentemente racional
para decisões puramente arbitrárias.
A tarefa de identificar zonas de autarquia não pressupõe advogar por um
modelo de racionalidade jurídica ou por um desenho institucional específico; significa
apenas cobrar racionalidade do poder: Lembremos que não nos referimos aqui a nenhum modelo hermenêutico em particular ou a nenhuma justificativa de escolha de desenho institucional específica, afinal, a pluralidade é característica do direito contemporâneo. As várias alternativas podem estar em disputa e ocupar este ou aquele lugar em uma dada sociedade em momentos históricos diferentes. Uma zona de autarquia se caracteriza, com efeito, quando não se possa identificar nenhuma justificação racional, nenhum conjunto de regras que organize a fundamentação da decisão tomada.57
Uma zona de autarquia, portanto, é composta por argumentos travestidos sob a
forma de direito, mas que, na prática, não permitem o controle pela sociedade, uma
vez que não possibilitam, pelos seus interlocutores, a reconstrução dos raciocínios
dogmáticos que nortearam sua produção. Ou seja, zonas de autarquia constituem
“áreas” do processo de concretização normativa não transparentes e, portanto, não
permitem controle social, pois os argumentos utilizados são irracionais e não seguem
nenhum modelo de racionalidade jurídica específico. Assim, grosso modo, zonas de
autarquia são áreas de sistemas jurídicos em que a conformidade ao Estado de Direito
ocorre em menor grau: Uma zona de autarquia, portanto, existe na ausência de fundamentação, ou seja, de uma justificação em que a autoridade levante pretensões de validade fundadas em normas jurídicas, as quais, quando necessário, podem ser sustentadas sem contradição. Não se pode sustentar racionalmente A e não A ao mesmo tempo; não se pode recusar,
56 Ibidem, p. 308. 57 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Zonas de Autarquia nas Decisões Jurisdicionais, p. 309.
42
racionalmente, a justificar uma asserção proferida quando alguém se põe a questioná-la; também não se pode, racionalmente, desqualificar o interlocutor que demanda por minhas razões ou impedir que outro faça o mesmo, desde que cumpra os requisitos dos procedimentos que preveem oportunidades em que é possível falar diante da autoridade.58
Portanto, uma decisão que não seja capaz de atender a critérios desse tipo
pode ser classificada como irracional e tendente a formar uma zona de autarquia no
interior das instituições formais.
As zonas de autarquia são utilizadas pelos detentores de posições de poder
com o objetivo de congelar as instituições postas. “Desta forma, os poderosos livram-
se da necessidade de justificar racionalmente suas posições de domínio ao excluir
determinados conceitos jurídicos e desenhos institucionais do debate público.”59 Tal
procedimento, que pode se dar com a utilização de tipos variados de argumentos, ou
seja, com a incorporação de diversas “entidades” judiciais, “pode vir a transformar o
direito em mero instrumento para satisfazer o interesse deste ou daquele grupo
social.”60
No Brasil, a criação de zonas de autarquia está relacionada a um forte
personalismo, sob o qual as decisões costumam estar “legitimadas” na opinião do
órgão ou do agente competente para tomar a decisão61: a criação de zonas de autarquia está ligada a uma falsa justificação das decisões judiciais (e de poder em geral) com fundamento em argumentos exclusivamente personalistas e em conceitos ou raciocínios naturalizados. Ambos os procedimentos têm o potencial de retirar da esfera pública a possibilidade de debater as razões para decidir e a justificativa do desenho do Estado, tornando ambas completamente imunes ao debate racional e público.62
Além disso, essas práticas “parecem guardar semelhanças com manobras
parecidas, noticiadas pela teoria social em outras realidades e contextos. Max Weber
já dizia, em sua Sociologia Jurídica, que as várias posições revolucionárias costumam
nascer como concepções de direito natural”63. Tais posições reivindicam como justo
um determinado desenho institucional ou conceito jurídico que beneficia este ou
aquele grupo social, em detrimento do direito positivo e com fundamento em razões
transcendentais. 58 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 70. 59 Idem, p. 21. 60 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 21. 61 Idem. 62 Ibidem, p. 21. 63 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes, p. 21.
43
Um dos escopos desta dissertação é exatamente explicitar e discutir esse tipo
de manobra praticada com relação ao sigilo fiscal, cobrando das autoridades
competentes para aplicar a norma a explicitação dos raciocínios que utilizam para
tomar suas decisões e demonstrando que a interpretação atualmente predominante é
apenas um dos projetos interpretativos possíveis.
Encarar o conflito social como uma disputa entre concepções naturalizadas do
direito, de conceitos jurídicos ou de desenhos institucionais, serve apenas para
justificar a visão política de seus representantes, sem possibilitar que o debate público
se desenvolva plenamente. A naturalização de certos conceitos jurídicos bem como de
desenhos institucionais frustra o objetivo inerente ao ideal político de Estado de
Direito. A ausência de um debate informado dá maior margem para que decisões
arbitrárias e imprevisíveis sejam produzidas, permitindo que o direito se transforme
em mero instrumento de dominação, com fundamento no fato de que as decisões são
adequadas porque tomadas pela autoridade competente para tanto.64
Cumpre observar, por fim, que identificar zonas de autarquia em
“decisões jurídicas” tomadas por órgãos competentes não se confunde com identificar
“ilegalidades” ou, ainda, com a tentativa de localizar algum tipo de “abuso de poder
discricionário”.
Em primeiro lugar, ilegalidade pressupõe que há apenas uma interpretação
cabível para cada norma jurídica, o que permitiria apontar como sendo ilegais as
decisões que se afastassem da “resposta interpretativa correta”. Ainda que todos os
membros de uma dada comunidade adotassem o mesmo método interpretativo, seria
praticamente impossível que todos chegassem a uma única resposta interpretativa
correta.
Mesmo os autores que procuram formular teorias argumentativas que facilitem
alcançar soluções jurídicas racionalmente fundamentáveis dentro das limitações
específicas impostas pelo direito, como Alexy65, ressalvam que tais parâmetros não
64 “Se o direito tem alguma utilidade para as sociedades contemporâneas, ela está em permitir que a disputa social ocorra para além da substância das diversas visões de mundo, as quais podem conviver sem se destruírem mutuamente. A naturalização do direito e das instituições do Estado frustra esse objetivo e pode vir a transformá-los, de fato, em mero instrumento de dominação. Afinal, quem vencer o conflito, nesse caso, seria capaz de impor sua visão do mundo sobre os demais grupos sociais e desenhar o direito e o Estado ao seu bel-prazer.” (RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes, p. 22). 65 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução de Zilda H. S. Silva; revisão técnica da tradução e introdução à edição brasileira de Claudia Toledo. 2. ed. São Paulo: Landy, 2005.
44
determinam, de maneira alguma, o resultado da argumentação em todos os casos, mas
excluem enunciados normativos discursivamente impossíveis. Esses parâmetros não
impedem que, por exemplo, diferentes atores sustentem posições divergentes sobre
um mesmo assunto e, ao mesmo tempo, atendam aos requisitos de um discurso
jurídico considerado racional. Isso porque o ponto de partida do discurso é formado
pelas convicções normativas, interesses e interpretações de necessidades dadas (isto é,
existentes faticamente), assim como pelas informações empíricas dos participantes.
As regras do discurso indicam como se pode chegar a enunciados normativos
fundamentados com base nesses pontos de partidas, mas sem determinar completa e
exatamente cada passo para isso.
Em suma, uma decisão, desde que atenda aos requisitos de validade
estipulados por um dado sistema jurídico, não pode ser contrária ao direito (ilegal),
pois, para tanto, seria necessário concluir pela possibilidade de alcançar apenas uma
única alternativa interpretativa “correta” para cada norma jurídica. Assim, muito
embora, por exemplo, seja unânime que determinada conduta ou norma
hierarquicamente inferior é i “legal”, essa conclusão só produzirá efeitos do ponto de
vista jurídico a partir do momento em que tiver esse status declarado por um órgão
competente para tanto66.
Quanto à discricionariedade, ela pode ser entendida, simplificadamente, como
a margem de liberdade conferida pela lei para que o aplicador faça cumprir a norma
jurídica diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, com o intuito
de satisfazer os objetivos consagrados no sistema jurídico67. Ela pode decorrer da
vagueza do texto legal, da ausência de previsão normativa específica para
determinado caso, ou ainda, do fato de a norma explicitamente facultar ao aplicador
mais de uma possibilidade interpretativa.
Apenas para fins de diferenciação, ressalte-se que o abuso de poder
discricionário, segundo a doutrina, é passível de questionamento pela via
jurisdicional. Isso porque discricionariedade não é sinônimo de liberdade absoluta.
Embora as categorias tradicionalmente descritas pela doutrina administrativista sejam
66 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, pp. 298-300. 67 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 1992.
45
passíveis de crítica68, elas não perdem a utilidade para realizar uma distinção com
relação às chamadas zonas de autarquia.
De acordo com o entendimento “tradicional”, o abuso do poder discricionário
pode se apresentar de dois modos diferentes. O primeiro é o excesso de poder, que
consiste na extrapolação, por parte do aplicador, da competência legalmente
demarcada. Já o desvio de finalidade seria caracterizado pela situação em que o
aplicador, dentro dos limites de sua competência, aplica a norma para atender a
motivos diversos daqueles pretendidos pelo sistema jurídico69.
Posto isso, as zonas de autarquia não se confundem com: (i) ilegalidade,
porque não pretendem apontar inadequação da decisão relativamente ao ordenamento
jurídico; ou (ii) abuso do poder discricionário, pois não possuem o escopo de apontar
extrapolação de competência ou desvio de finalidade. A zona de autarquia tampouco é
um standard argumentativo que procura estabelecer um modo mais “acertado” para se
tomar decisões limitadas pelas características específicas do direito.
Enfim, a identificação de zonas de autarquia em uma ordem jurídica cujo
discurso de legitimação seja marcado pelo conceito de Estado de Direito ajuda a
evidenciar setores em que tal discurso funciona como mero instrumento de
dominação. A zona de autarquia, portanto, pode ser compreendida como um
instrumento crítico que visa facilitar a localização de áreas do sistema jurídico onde o
ideal político do Estado de Direito é menos efetivo. Afinal, “sob a aparência de direito
(...) podem ser tomadas decisões meramente arbitrárias, ou seja, que não se podem
reconstruir racionalmente. Cabe à pesquisa vigiar as autoridades para que isto não
ocorra”70.
68 Para conhecer algumas destas críticas, ver: SUNDFELD, Carlos Ari. Direito Administrativo para Céticos. São Paulo: Malheiros, 2012. 69 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 70 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 70.
46
3. Percurso de pesquisa empírica tributária do Núcleo de Estudos Fiscais da
Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas: Direito &
Desenvolvimento, modificação da estratégia da reforma legislativa para a do
incremento do fluxo de informações entre Fisco e contribuinte, constatação do
déficit de informações tributárias no Brasil e a inutilização do conceito de sigilo
fiscal por meio da insólita interpretação de que ele tudo protege
Caminante,
no hay camino, se hace camino al andar
Antonio Machado e Manuel Machado71
A constatação teórica de que é preciso reconhecer a importância do processo
de concretização normativa vem norteando as investigações do Núcleo de Estudos
Fiscais da Direito GV. Na condição de pesquisador do NEF, o autor deste trabalho
participou da realização de pesquisas empíricas na área do direito tributário.72 O
desafio é utilizar a pesquisa empírica para pensar os efeitos sociais das normas
tributárias e sua relação com o desenvolvimento do país.73 Na verdade, tais ideias
marcam a linha de pesquisa central da Direito GV, cuja inscrição temática é o campo
intitulado “Direito e Desenvolvimento”, que procura analisar as interações entre o
sistema jurídico de um determinado Estado e seu estágio de desenvolvimento.74 75 76
71 MACHADO, Manuel; MACHADO, Antonio. Obras completas. 5. ed. Madrid: Plenitud, 1967, p. 836. 72 Para um aprofundamento sobre as linhas de pesquisa e pontos de vista do NEF, ver: SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Tributação e desenvolvimento. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). Fragmentos para um Dicionário Crítico de Direito e Desenvolvimento e; SANTI, Eurico Marcos Diniz de; TAGA, Nara Cristina Takeda; PACHECO, Mariana Pimentel Fischer. Transparência e o Processo de Positivação da Norma Tributária: repensando a segurança jurídica na Sociedade da Informação – sobre o percurso das pesquisas do Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. In: SANTI, Eurico M. D. de; ZUGMAN, Daniel Leib. et al. Transparência Fiscal e Desenvolvimento: homenagem ao Professor Isaias Coelho. São Paulo: Thomson Reuters, 2013. 73 RODRIGUEZ, José Rodrigo (Org.). O Novo Direito e Desenvolvimento: presente, passado e futuro: textos selecionados de David M. Trubek. São Paulo: Saraiva, 2009. (Série direito em debate. Direito, Desenvolvimento e Justiça). 74 Alguns autores ressalvam que direito e desenvolvimento não podem ser considerados um campo, pois lhe falta coerência interna. Nesse sentido, ver: TAMANAHA, Brian Z. O Primado da Sociedade e as Falhas do Direito e Desenvolvimento, Revista Direito GV, n. 11, pp. 175-212. 75 As pesquisas desenvolvidas nessa temática “devem ser pragmáticas e orientadas para a ação, sempre focadas na realidade do país e sincronizadas com as necessidades da nação. Com isso, será possível visualizar alternativas e fugir de utopias”. (TRUBEK, David. Direito, Desenvolvimento e Reforma Fiscal no Brasil Hoje. In: COELHO, Isaias; SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Reforma Tributária Viável: simplificação, transparência e eficiência. São Paulo: Quartier Latin, no prelo). 76 As concepções de desenvolvimento costumam variar entre crescimento econômico e desenvolvimento em um sentido mais amplo, que contempla a melhoria das condições de vida da
47
Não é fácil definir conceptualmente o que se entende por Direito e
Desenvolvimento, ou, mais especificamente, por Tributação e Desenvolvimento.
Críticas podem ser feitas à dificuldade de se recortar epistemologicamente o objeto de
estudo dessa forma de enxergar o direito, pouco tradicional no Brasil, e que pode
implicar confusão com os objetos das Ciências Sociais, Ciência Econômica e Ciência
Política. No entanto, a virtude do debate sobre as relações entre direito e
desenvolvimento está na possibilidade de desnaturalizar os arranjos institucionais
postos, em nome de uma demanda por desenvolvimento que implica,
necessariamente, a construção de projetos de mudança social, ou seja, a adoção de
novos arranjos institucionais. Isso permite encarar a pesquisa jurídica não apenas
como instrumento descritivo da realidade posta, mas como uma prática engajada no
aperfeiçoamento das instituições jurídicas.77
A presente pesquisa, além de pretender fazer uma descrição de como as
decisões envolvendo a norma do sigilo fiscal são tomadas, é uma prática engajada em
prol da transparência do processo de concretização das normas tributárias, como
instrumento capaz de promover alterações nas instituições fiscais brasileiras. Afinal,
há um consenso, que será tomado como pressuposto e não será demonstrado aqui, de
que o sistema tributário precisa ser reformado e de que as propostas de mudanças
legislativas não têm sido efetivas em promover modificações positivas no atual status
quo.78 Portanto, é preciso repensar o modo de intervenção do direito tributário na
realidade. Nessa senda, esta pesquisa deflagra o raciocínio de que a transparência do
processo de concretização das normas e o consequente debate público podem
contribuir para promover algumas das alterações que se fazem necessárias, conforme
será visto com maior detalhamento no último capítulo.
Em vista da dificuldade de se definir conceptualmente o que se entende por
direito e desenvolvimento, e de se fazer um recorte preciso do objeto de estudo, a
melhor estratégia a ser adotada é contar o histórico de pesquisas que culminaram na
população de modo a lhe garantir maior livre arbítrio. Isso envolveria o incremento no acesso a educação, saúde, debate político em sentido lato e a outros direitos básicos. 77 RODRIGUEZ, José Rodrigo (org.). Apresentação. Fragmentos para um Dicionário Crítico de Direito e Desenvolvimento. São Paulo: Saraiva, 2011. (Coleção: Direito, Desenvolvimento e Justiça. Série: produção científica). 78 Para um aprofundamento deste ponto, ver: VIEIRA, José Roberto. Direitos Fundamentais e Reforma Tributária: Esse Obscuro e Ardiloso Objeto do Desejo. In: SANTI, Eurico M. D. de. (coord.). Tributação e Desenvolvimento: Homenagem ao Professor Aires Barreto. São Paulo: Quartier Latin, 2011. (Tributação e Desenvolvimento).
48
elaboração deste trabalho, que acaba por se confundir com o próprio trajeto de
pesquisas do NEF/Direito GV.
Demonstrar-se-á que ao se tentar realizar estudos empíricos na área do direito
tributário no Brasil, esbarrou-se no óbice da falta de disponibilidade de informações e
documentos detidos por órgãos da Administração Tributária. Investigando as razões
dessa indisponibilidade dos atos de aplicação do direito tributário, deparou-se com a
figura do sigilo fiscal, defendida de modo bastante convicto por vários interlocutores,
como se houvesse inequívoca correspondência entre suas conclusões e o texto do art.
198 do CTN, a principal fonte legislativa da aludida hipótese de sigilo. Percebeu-se,
na sequência, que o art. 198 possui redação consideravelmente vaga, admitindo
múltiplas interpretações, o que é corroborado pela falta de homogeneidade entre as
práticas institucionais dos vários entes federativos a respeito do tema.
3.1. Primeiras pesquisas do Núcleo de Estudos Fiscais: constatação do déficit de
informações tributárias no Brasil
O NEF foi fundado em 2009 e sua primeira pesquisa pretendia propor um
redesenho institucional do processo administrativo fiscal federal. Para tanto, os
pesquisadores procuraram identificar gargalos nas diversas fases do processo
administrativo fiscal, principalmente nas decisões do CARF. A pesquisa, contudo,
não teve o êxito esperado. O principal obstáculo foi o acesso a informações: as
decisões das Delegacias Regionais de Julgamento são sigilosas, o que impediu a
coleta de dados sobre a primeira instância do processo e tornou impossível a
elaboração de uma descrição global do contencioso. Além disso, não foi possível
obter amostra suficiente do inteiro teor das decisões do CARF, o que contribuiu para
dificultar a pesquisa.
Em outro projeto, o NEF foi procurado pela Delegacia de Fiscalização da
Secretaria da Receita Federal para auxiliar na solução dos problemas relativos à
ineficácia das penalidades previstas na legislação para aqueles que praticam crimes
contra a ordem tributária. Foi constituída uma equipe interdisciplinar com o Núcleo
de Estudos sobre o Crime e a Pena da Direito GV, porém não foi possível alcançar
resultados concretos positivos, porque as representações fiscais para fins penais e
outros documentos que instruíam as investigações eram sigilosos. Ou seja, não havia
49
base empírica disponível para desenvolver a pesquisa solicitada pelo próprio poder
público.
Outro projeto, que procurou reaproximar direito tributário e direito financeiro,
pretendia investigar a destinação efetiva da CPMF e da CIDE combustíveis. Ao fim
da pesquisa, concluiu-se que as informações prestadas nos sites dos órgãos públicos
brasileiros não eram suficientes para identificar onde estavam sendo aplicados os
recursos arrecadados com aqueles tributos. A prestação de contas publicada na
internet era simbólica: não havia transparência efetiva do gasto público de tributos
que por sua própria natureza são constitucionalmente destinados.
Em 2010 e no início de 2011, o NEF dedicou-se ao tema da reforma tributária.
O diagnóstico formulado pelos pesquisadores demonstrou que a carência de confiança
entre os diversos entes federativos, agravada pela ausência de transparência das
decisões e contratos firmados pela Administração Fiscal, era o principal obstáculo a
mudanças. Faltavam, ainda, estatísticas sobre o sistema tributário; por isso, os atores
não sabiam ao certo quem seriam os beneficiados e prejudicados com as mudanças, o
que, evidentemente, apenas fazia crescer a atmosfera de desconfiança.
Após dois anos de investigações que não chegaram a produzir os resultados
esperados em razão, principalmente, da falta de informações, restou claro para o
grupo de pesquisadores que dificuldades no acesso a informações e documentos
fiscais no Brasil consistem não só no maior obstáculo para a pesquisa empírica, mas
são também a causa de alguns dos grandes gargalos da tributação.
Modificou-se, assim, o rumo das pesquisas: a transparência do processo de
concretização das normas tributárias pela Administração Fiscal passou a ser o centro
dos estudos empreendidos pelo NEF. Concluiu-se que, para que haja segurança
jurídica e igualdade de fato, não basta conhecer os textos legislativos gerais e
abstratos; é preciso ter acesso aos atos individuais e concretos de aplicação do direito.
3.2. Atual linha de pesquisa: transparência de informações tributárias como
estratégia para tornar o sistema tributário brasileiro mais seguro e previsível
No ano de 2012, o NEF adotou como linha de pesquisa a transparência do
sistema tributário brasileiro. Essa opção conduziu o Núcleo à formulação de índices
50
de transparência de órgãos da Administração Tributária79, cujo objetivo principal era
estimular maior transparência da arrecadação e, concomitantemente, fomentar o
debate público sobre questões tributárias, contribuindo para o incremento da
segurança jurídica e da legitimidade da tributação perante a sociedade.
Para tanto, foram solicitadas a administrações tributárias municipais, estaduais
e federal informações sobre gestão e legislação fiscal, contencioso administrativo
fiscal, além de bancos de documentos que consubstanciam atos administrativos de
aplicação das leis tributárias gerais e abstratas.
Em uma pesquisa com os Estados da Federação, os resultados foram
alarmantes: apenas dois Estados disponibilizam decisões de primeira instância
proferidas em processos administrativos fiscais. Apenas dez publicam decisões de
segunda instância, e nenhum disponibiliza autos de infração fiscal.
Em outra pesquisa, desta vez com alguns dos municípios que sediarão jogos
da Copa do Mundo da FIFA de 2014, constatou-se que apenas dois, dos 11 avaliados,
disponibilizam soluções de consulta sobre interpretação da legislação tributária.
Na esfera federal, foi constatado que decisões de segunda instância geralmente
são publicadas. No entanto, a mesma prática não ocorre relativamente a decisões de
primeira instância, tampouco a autos de infração fiscal. Quanto às soluções de
consulta sobre interpretação da legislação tributária, em geral apenas as ementas são
publicadas, as quais muitas vezes não são suficientes para estabelecer o nexo de
similaridade entre o caso analisado na consulta e o caso posterior de outro
contribuinte que se encontra com problema parecido, mas que não necessariamente se
encaixa nas premissas do caso paradigmático.
As referidas contradições e incoerências a respeito da disponibilização de atos
de concretização normativa pelos diversos entes federativos intrigaram a equipe de
pesquisadores do NEF/Direito GV. Foram realizados debates e encontros para
promover os índices de transparência, angariar apoio ao projeto e esclarecer as
questões que restaram obscuras durante o percurso de pesquisa acima narrado. Ocorre
79 Para mais informações sobre alguns desses índices e respectivas constatações, ver: <http://www.fiscosoft.com.br/a/5v5h/lei-da-transparencia-lc-13109-lei-de-acesso-a-informacao-lei-125272011-e-a-constituicao-federal-de-1988-proposta-formacao-e-fundamentacao-juridica-do-indice-de-transparencia-e-cidadania-fi>; <http://www.fiscosoft.com.br/a/5www/percepcao-da-transparencia-da-legalidade-concreta-fiscal-dos-municipios-da-copa-eurico-marcos-diniz-de-santi-isaias-coelho-mariana-pimentel-basile-georges-campos-christopoulos-daniel-le> e; <http://direitogv.fgv.br/sites/direitogv.fgv.br/files/arquivos/anexos/icat_versao_1_14_05_2013.pdf>.
51
que, sistematicamente, vários dos interlocutores com quem o Núcleo travou contato80
durante o processo de concepção dos índices questionaram a escolha dos critérios
realizada pela equipe de pesquisadores, porque, a seu ver, diversos documentos e
informações solicitados supostamente não poderiam ser publicados em razão de
serem protegidos por sigilo fiscal, cuja fonte legal seria o artigo 198 do CTN.
O que chamou a atenção é que o termo “sigilo fiscal” era utilizado,
frequentemente, de modo assaz convicto e transmitindo a impressão de que seria um
conceito dotado de contornos extremamente claros e precisos, como se houvesse
conexão automática entre as conclusões defendidas por esses interlocutores e o texto
do dispositivo legal, ou seja, um argumento que obstruiria qualquer tipo de discussão
aprofundada sobre o assunto.
3.3. Constatações específicas sobre o sigilo fiscal durante o trajeto de pesquisa: a
inversão da regra geral da transparência de informações públicas em nome de
insólita interpretação do conceito de sigilo
A convicção com que diversos atores defendiam o sigilo fiscal, como se fosse
dotado de amplos limites e abrangesse praticamente todos os atos de aplicação do
direito tributário, causou perplexidade, pois, durante o aprofundamento desses
debates, a equipe de pesquisa notou que a redação do art. 198 do CTN é
consideravelmente vaga: Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. § 1º Excetuam-se do disposto neste artigo, além dos casos previstos no art. 199, os seguintes: I – requisição de autoridade judiciária no interesse da justiça; II – solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa.
80 Além dos pesquisadores do NEF, participaram das reuniões integrantes da Comissão de Gestão Fazendária (COGEF), a saber: representantes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), membros do Grupo de Gestores das Finanças Estaduais (GEFIN), advogados especializados em matéria tributária, funcionários dos Fiscos e representantes de Organizações Não Governamentais, como o ETCO, o Transparência Brasil, o Tax Justice e o instituto ETHOS. Tais reuniões foram filmadas e os arquivos estão armazenados na biblioteca do NEF (Rua Itapeva, n. 26 − Conjunto 1.701 − Bela Vista − São Paulo − SP − CEP 01332-000).
52
§ 2º O intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, será realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo. § 3º Não é vedada a divulgação de informações relativas a: I – representações fiscais para fins penais; II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública; III – parcelamento ou moratória.
Pode-se considerar a regra do sigilo fiscal como sendo integrante do grupo de
disposições jurídicas de baixa densidade normativa.81 Sua leitura pode sugerir, em um
primeiro momento, que se trata de regra bastante específica e delimitada: qualquer
informação que possa sugerir indícios a respeito da situação econômico-financeira de
um contribuinte é sigilosa, salvo no caso das exceções estabelecidas em seus incisos.
Contudo, tal conclusão não se coaduna com o fato de que decisões de segunda
instância proferidas em processos administrativos fiscais geralmente são publicadas,
assim como decisões prolatadas em processos judiciais que envolvem matéria
tributária. Ademais, decisões administrativas de primeira instância são publicadas por
alguns dos Estados da Federação, assim como o inteiro teor das soluções de consulta,
sendo suprimidos destas últimas apenas dados que permitam identificar o consulente
específico. Ou seja, do cotejo entre a redação consideravelmente vaga do art. 198 do
CTN e algumas das práticas institucionais referentes à divulgação de documentos e
informações tributárias, resta evidente que os incisos e parágrafos do aludido
dispositivo não são suficientes para estabelecer os limites do sigilo, pois os
documentos mencionados contêm informações relativas a contribuintes específicos e,
não obstante, são disponibilizados a toda a sociedade.
Sobre existir contradições entre a interpretação abrangente do sigilo fiscal
alhures descrita e as práticas rotineiras de instituições fiscais quanto à publicidade de
informações e documentos tributários, é fácil notar a indeterminação dos conceitos de
“situação econômica ou financeira do sujeito passivo” e a “natureza ou estado de seus
negócios e atividades” contidos no caput do art. 198. Praticamente toda e qualquer
81 Sobre densidade normativa, Dimitri Dimoulis explica que: “O texto das normas jurídicas deve ser visto como filtro ou tecido, cuja textura é mais ou menos densa. O grau de porosidade (abertura, abstração) do texto normativo é indicado pelo número e pela diversidade das alternativas de interpretação que esse texto autoriza, isto é, das alternativas que podem passar pela ‘peneira’ do próprio texto”. A regra da densidade normativa pode ser formulada da seguinte maneira: “Quanto maior for o número de interpretações divergentes que podem ser sustentadas em relação a determinado texto normativo, menor será sua densidade normativa (e vice-versa)”. (DIMOULIS, Dimitri. Positivismo Jurídico..., p. 248).
53
informação utilizada pelos Fiscos para realizar suas atividades pode revelar indícios
da situação econômica do sujeito passivo ou de seus negócios. Se tal disposição for
aplicada sem maior acautelamento, não haveria sequer jurisprudência em matéria
tributária para ser consultada, pois toda decisão judicial ou administrativa nesse
contexto lida com informações deveras específicas: o fato jurídico tributário, o valor
devido/discutido/autuado, as provas juntadas ao processo (autos de infração, notas
fiscais, contratos, termos de penhora etc.). O próprio sistema jurídico se tornaria
impraticável.
Ademais, a solução geral oferecida pelo legislador não soluciona
satisfatoriamente casos que à época da redação da norma provavelmente receberiam
tratamento específico. Um exemplo é o das soluções de consulta sobre interpretação
da legislação tributária: (i) alguns entes federativos não as publicam por considerarem
que contêm informações sigilosas; (ii) outros publicam apenas as ementas, que
raramente são suficientes para estabelecer nexo de similaridade entre o caso analisado
na consulta e caso posterior de contribuinte diverso; (iii) outros, ainda, publicam o
inteiro teor, suprimindo apenas trechos específicos que permitam identificar o
contribuinte consulente. Provavelmente, se o legislador tivesse considerado a questão
da publicidade das soluções de consulta, teria estabelecido previsão legislativa
específica.82
A partir desse conjunto de incoerências percebe-se que o sigilo fiscal está
longe de ser um conceito com contornos precisos.83 Não bastasse o exposto, nem
doutrina, nem jurisprudência oferecem critérios precisos para a definição do sigilo
fiscal. Embora existam, no Brasil, livros e artigos jurídicos que se propõem a tratar do
tema84, poucos enfrentam a questão da delimitação de quais informações estão
82 Prova cabal da baixa densidade é que a própria Administração Tributária federal, até pouco tempo atrás, publicava apenas as ementas das soluções de consulta, sob o argumento de que a revelação do restante feriria o sigilo fiscal do contribuinte. No entanto, recentemente, por meio da Instrução Normativa 1.396, de 2013, criou a categoria da “solução de consulta com efeito vinculante”, a qual passará a ter o inteiro teor também publicado no sítio da RFB na internet, suprimindo-se apenas dados que permitam identificar o consulente. Ver: Receita Edita Novas Regras Sobre Processo de Consulta. Disponível em: <http://www.receita.fazenda.gov.br/AutomaticoSRFSinot/2013/09/17/2013_09_17_16_02_41_61101620.html> Acesso em 23/10/2013. 83 Vários textos tratam sigilo bancário e sigilo fiscal como sendo expressões sinônimas. Por exemplo: MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro: administrativo e judicial. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2003, pp. 246-256. 84 Citem-se como exemplos: PIZOLIO, Reinaldo; GAVALDÃO JR., Jayr Viégas (coords.). Sigilo Fiscal e Bancário. São Paulo: Quartier Latin, 2005; SARAIVA FILHO, Oswaldo O. de P.; GUIMARÃES, Vasco Branco (coords.). Sigilos Bancário e Fiscal: Homenagem ao Jurista José Carlos
54
acobertadas pelo sigilo fiscal. Geralmente, esses trabalhos se preocupam com a
possibilidade de o Fisco solicitar dados bancários a instituições financeiras sem a
necessidade de requerimento judicial, ou com as hipóteses em que o Fisco está
autorizado a fornecer dados sigilosos para outros órgãos públicos. Os mais recentes
também cuidam da troca internacional de informações entre administrações fiscais.
Ou seja, a maior parte dos trabalhos existentes omite-se da tarefa de distinguir aquilo
que deve ser mantido em sigilo daquilo que, por ter caráter público e ser de interesse
de toda a sociedade, deveria ser divulgado.
Um dos poucos trabalhos que enfrentam diretamente os limites do sigilo fiscal
conclui que há algo insólito com a interpretação predominante do art. 198 do CTN: Entre os vários mitos presentes no seio da Administração Tributária, assume peculiar relevo a forma de tratamento do sigilo fiscal. Invariavelmente, aponta-se como protegida pelo referido sigilo toda e qualquer informação manuseada pelo Fisco que diga respeito direta ou indiretamente a determinada pessoa natural ou jurídica. Tal posição decorre, aparentemente, de uma interpretação imperfeita, embora corrente, do disposto no art. 198 do Código Tributário Nacional. Não raro empresta-se ao dispositivo em questão uma extensão não condizente com seus próprios termos e com o conjunto da ordem jurídica em vigor. (...) É certo que o tema ‘sigilo fiscal’ não encontrou na doutrina e na jurisprudência uma delimitação mais precisa. Talvez por essa razão identifica-se aquela tendência interpretativa por parte dos diversos agentes integrantes dos órgãos da Administração Tributária.85
A regulamentação produzida pela Receita Federal a respeito do sigilo fiscal
também não é de grande auxílio. Ela não permite concluir o porquê de alguns atos de
aplicação serem considerados públicos, enquanto outros não. Na verdade, ela acaba
por criar restrições à publicidade que não estão previstas no art. 198, dificultando a
compreensão do dispositivo em tela.
Trata-se da Portaria RFB n. 2.344, de 24 de março de 2011, que disciplina o
acesso a informações protegidas por sigilo fiscal constantes de registros da Secretaria
da Receita Federal do Brasil. A Portaria é sucinta e há apenas um dispositivo que
merece destaque:
Moreira Alves. Belo Horizonte: Fórum, 2011; FOLMANN, Melissa. Sigilo Bancário e Fiscal. Curitiba: Juruá, 2001; TEIXEIRA, Eduardo Didonet; HABERLIN, Martin. A proteção da privacidade: sua aplicação na quebra do sigilo bancário e fiscal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005. 85 CASTRO, Aldemario Araújo. Considerações acerca dos sigilos bancário e fiscal, do direito fundamental de inviolabilidade da privacidade e do princípio fundamental da supremacia do interesse público sobre o privado. In: SARAIVA FILHO, Oswaldo O. de P.; GUIMARÃES, Vasco Branco (coords.). Sigilos Bancário e Fiscal: Homenagem ao Jurista José Carlos Moreira Alves. Ob. cit., p. 446.
55
Art. 2º São protegidas por sigilo fiscal as informações sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades, obtidas em razão do ofício para fins de arrecadação e fiscalização de tributos, inclusive aduaneiros, tais como: I − as relativas a rendas, rendimentos, patrimônio, débitos, créditos, dívidas e movimentação financeira ou patrimonial; II − as que revelem negócios, contratos, relacionamentos comerciais, fornecedores, clientes e volumes ou valores de compra e venda; III − as relativas a projetos, processos industriais, fórmulas, composição e fatores de produção. § 1º Não estão protegidas pelo sigilo fiscal as informações: I − cadastrais do sujeito passivo, assim entendidas as que permitam sua identificação e individualização, tais como nome, data de nascimento, endereço, filiação, qualificação e composição societária; II − cadastrais relativas à regularidade fiscal do sujeito passivo, desde que não revelem valores de débitos ou créditos; III − agregadas, que não identifiquem o sujeito passivo; e IV − previstas no § 3º do art. 198 da Lei n. 5.172, de 1966. § 2º A divulgação das informações referidas no § 1º caracteriza descumprimento do dever de sigilo funcional previsto no art. 116, inciso VIII, da Lei n. 8.112, de 1990.
O caput do dispositivo possui redação praticamente idêntica ao caput do art.
198 do CTN. Na sequência é apresentada uma lista de informações que seriam
protegidas pelo sigilo e, em seguida, são listadas as informações que não recebem
proteção e podem ser publicadas: dados cadastrais, informações agregadas e
estatísticas que não permitam identificar o sujeito passivo, informações sobre
regularidade fiscal do sujeito passivo, desde que não revelem valores, além daquelas
mencionados no § 3º do art. 198 (dados relativos a representações fiscais para fins
penais, inscrições na Dívida Ativa e parcelamentos ou moratórias).
O § 1º, II determina que a divulgação de dados sobre dívidas do contribuinte
em relação à Administração Tributária não pode implicar revelação de valores de
débitos ou créditos. Entretanto, destaque-se que o art. 198 não estabelece tal ressalva,
simplesmente autorizando a publicação de informações relativas a inscrições na
Dívida Ativa.
Em resumo, o § 1º prescreve que apenas informações cadastrais ou agregadas
de contribuintes não estão protegidas por sigilo fiscal. Nessa linha, qualquer
informação específica que não possua natureza cadastral sobre sujeitos passivos
estaria protegida pelo sigilo. Mesmo em relação às exceções previstas nos incisos do
art. 198 do CTN, os dados não protegidos por sigilo seriam apenas aqueles de
natureza cadastral. Registre-se, novamente, que tais restrições não estão previstas no
art. 198.
56
Em seguida, o § 2º estabelece que a divulgação das informações mencionadas
no parágrafo § 1º, as quais não estariam protegidas por sigilo fiscal, implicaria
violação do dever de sigilo funcional a que supostamente estão submetidos os
servidores públicos, conforme o art. 116 da Lei 8.112/1990. Ou seja, na prática, a
portaria proíbe a divulgação de praticamente qualquer informação, em frontal
contradição ao art. 198 do CTN e às próprias práticas da Administração Tributária,
que, como já visto anteriormente, publica decisões de segunda instância proferidas em
processos administrativos fiscais. Estas geralmente contêm vários detalhes sobre a
situação econômico-financeira dos contribuintes. E o mesmo se pode dizer
relativamente a decisões judiciais sobre matéria tributária.
Do percurso de pesquisa narrado, depreende-se que a simples leitura e
interpretação de textos legislativos não é suficiente para conhecer a legalidade,
reiterando os raciocínios teóricos articulados nos capítulos precedentes. Mister se faz
conhecer os atos individuais e concretos de aplicação da legislação tributária. Muito
embora o sigilo fiscal encontre fundamento legal no art. 198 do CTN, as práticas
institucionais dos vários entes federativos a respeito do assunto não são homogêneas.
Há múltiplas interpretações a respeito dos limites dessa figura jurídica, e isso implica
distintos comportamentos por parte das autoridades fiscais dos diversos entes
federativos. Ademais, algumas dessas práticas acabam por impossibilitar o acesso a
certos atos de concretização normativa, em aparente oposição ao texto do art. 198, o
que enseja a necessidade de se aprofundar a investigação sobre o tema.
57
4. Pesquisa empírica e análise argumentativa dos discursos e práticas
institucionais sobre o sigilo fiscal: contradições, incoerências e patologias da
interpretação predominante do “conceito” de sigilo fiscal
A popular Government, without popular information, or the means of acquiring it, is but a Prologue to a Farce or a Tragedy; or, perhaps both. Knowledge will forever govern ignorance: And a people who mean to be their own Governors, must arm themselves with the power which knowledge gives. James Madison86
Com base no conceito de zona de autarquia de José Rodrigo Rodriguez,
explicitado anteriormente, analisar-se-á a argumentação produzida em atos infralegais
e interpretativos que veiculam o(s) entendimentos(s) de órgãos ligados à
Administração Tributária federal a respeito do art. 198 do CTN, bem como respostas
a pedidos de acesso à informação que revelam detalhes da interpretação e do
raciocínio dessas autoridades sobre o sigilo fiscal. Ainda, serão analisadas decisões
proferidas em processos administrativos fiscais e processos judiciais envolvendo o
tema do sigilo fiscal e da publicidade de informações e documentos tributários.
Buscar-se-á analisar o inteiro teor das decisões e atos de aplicação de modo a
identificar se há um conceito de sigilo fiscal utilizado pelos órgãos responsáveis por
tomar decisões a respeito do assunto. Procurar-se-á identificar se há um padrão
argumentativo nestas decisões, isto é, se as autoridades utilizam um modelo de
racionalidade jurídica específico. Ademais, serão identificadas eventuais contradições
e incoerências nas decisões, procurando demonstrar em que situações o órgão
competente se portou de modo arbitrário, e em quais oportunidades foi proferida
decisão racional, desprovida de zonas de autarquia e compatível com o conceito de
Estado de Direito já explicitado.
Vale ressalvar que alguns dos suportes analisados não consistem em decisões
produzidas por órgãos jurisdicionais em processos, sejam judiciais ou administrativos.
São atos de aplicação do direito de natureza diversa, mas que não deixam de ser
“decisões jurídicas” em um sentido mais amplo. É o caso do Manual do Sigilo Fiscal
e do Parecer da PGFN. Mesmo não consistindo em decisões proferidas por órgãos
jurisdicionais, trata-se de atos produzidos por órgãos relevantes que, sem dúvida,
86 Carta para W. T. Barry datada de 4 de agosto de 1822. Disponível em: <http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/v1ch18s35.html> Acesso em 21/10/2013.
58
também contribuem para o processo de concretização da norma do sigilo fiscal e, por
tal motivo, demandam análise. Ademais, esses atos defendem suas próprias
interpretações a respeito do sigilo fiscal como sendo as corretas, o que impõe
asseverar que há uma decisão política ali implícita, muito embora isso não seja
expressamente admitido no corpo desses documentos. Enfim, parece razoável
concluir que não há óbice à utilização do conceito de zona de autarquia para avaliar a
fundamentação produzida nesses atos de aplicação/interpretação.87
O estudo das justificações consignadas em todos esses suportes permitirá
compreender quais modelos de racionalidade jurídica são utilizados pelos órgãos da
Administração Tributária e pelos tribunais superiores, se há racionalidade nas
decisões tomadas ou se há zonas de autarquia nos discursos e práticas institucionais
relativas ao sigilo fiscal. Também serão empregados como referenciais comparativos
alguns dos resultados de pesquisa expostos no capítulo três, em que se demonstrou a
falta de homogeneidade entre as práticas institucionais de diferentes entes federativos
no que diz respeito à disponibilização de atos de aplicação do direito tributário.
Serão investigadas as posições dos seguintes atores institucionais: RFB,
PGFN, CARF, STF e STJ. Por fim, serão expostas falas de interlocutores que
participaram de debates promovidos pelo NEF acerca do sigilo fiscal, mas que não
serão exploradas do ponto de vista argumentativo, prestando-se apenas a ilustrar as
conclusões obtidas a partir do estudo dos demais suportes.
87 Ao utilizar o conceito de "zona de autarquia" para pensar atos do Executivo e do Judiciário ao mesmo tempo, adentra-se os debates do direito administrativo. Como é sabido, naquela seara do direito, há quem defenda que devem haver campos de "discricionariedade" compreendidos como espaços de escolhas subjetivas, com controles quase inexistentes, de modo a viabilizar a governabilidade. Nesse registro, a regulamentação seria um empecilho para a ação eficiente, priviliegiando-se uma "discricionariedade sem direito", sob o argumento da necessidade de decidir rápido sobre alguns temas, sem muita deliberação ou entraves, especialmente no campo econômico e financeiro (cambial especialmente). Há autores mais moderados que procuram defender a criação de controles mais flexíveis, mas com algum grau de juridicização. Por exemplo por meio da regulação por regras ou por cláusulas gerais e, no último caso, com a criação de constrangimentos institucionais para controlar a ação do agente público ou político. Nesse sentido, cite-se como exemplo a chamada "accountability" a posteriori, em função do desempenho do agente de poder, demitindo-o do cargo se necessário. Enfim, o que se quer destacar é que ao ingressar no debate sobre os atos de aplicação no âmbito do direito administrativo, a discussão pode ganhar outros contornos e exigir uma análise mais sofisticada do que aquela proposta neste trabalho. Não obstante, embora a ação do Executivo exija um debate específico e feito sob medida para ela, vale ressaltar que os casos apresentados nesta pesquisa muito básicos e escandalosos, por assim dizer. Isto é, não se está tratando dos limites e requisitos para a atuação de órgãos do Executivo de um ponto de vista genérico, mas apenas apontando-se contradições, falta de coerência e arbitrariedade em casos pontuais, não significando que estamos realizando uma análise detalhada e comparativa entre a ação do Executivo e do Judiciário.
59
Ressalte-se que a escolha dos referidos atores não foi aleatória. A RFB é o
órgão que produz a maior parte dos atos de aplicação do direito tributário. É
responsável por administrar os tributos de competência federal, lavrar autuações
fiscais, julgar processos administrativos fiscais em primeira instância, responder a
consultas de contribuintes e, de modo geral, interpretar e aplicar a legislação tributária
federal.
A PGFN é o órgão responsável por representar a União Federal em causas
fiscais, cobrar judicial e administrativamente os créditos tributários e não tributários e
assessorar e prestar consultoria jurídica ao Ministério da Fazenda.
O CARF é órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da
Fazenda, que tem como finalidade julgar recursos que versem sobre a aplicação da
legislação referente a tributos administrados pela Receita Federal. Seus membros são
profissionais com alta expertise em matéria tributária, o que enseja a produção de
decisões quase sempre marcadas por grande qualidade técnica.
O STF é o órgão de cúpula do Poder Judiciário e a ele compete,
precipuamente, a guarda da Constituição Federal. O estudo de suas decisões permitirá
compreender que tipo de situações envolvendo o art. 198 do CTN e o sigilo fiscal
pode acarretar violação do texto constitucional.
O STJ, por fim, é a Corte responsável por uniformizar a interpretação da lei
federal em todo o Brasil. É a última instância da Justiça brasileira para as causas
infraconstitucionais, não relacionadas diretamente à Constituição. Estudar seus
acórdãos acerca do art. 198 do CTN significa conhecer os conflitos que surgem sobre
o tema em todo o Brasil, bem como as soluções jurisdicionais que lhes são
comumente oferecidas.
4.1. Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal do Brasil
O Manual do Sigilo Fiscal, aprovado pela Portaria RFB n. 3.541/2011, é ... instrumento de observância obrigatória para consulta e orientação dos servidores e unidades administrativas do órgão quando da elaboração de pareceres, notas, respostas e manifestações institucionais quanto a requisições, solicitações, judiciais e administrativas, consultas e demais procedimentos que tratem de informações fiscais, protegidas por sigilo fiscal ou funcional.88
88 BRASIL. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal do Brasil. Brasília: Secretaria da Receita Federal do Brasil, 2011.
60
Na prática, o Manual do Sigilo Fiscal é o principal ato interpretativo existente
no Brasil a respeito do sigilo fiscal. Ele orienta a atuação dos servidores da
Administração Tributária nos casos em que a questão do sigilo de informações fiscais
estiver em pauta. A portaria que o aprovou, no parágrafo único do seu art. 2º, não
admite interpretações contrárias àquelas dispostas no Manual: Art. 3º Os servidores da RFB, no desempenho de suas atribuições, deverão observar as orientações constantes do Manual. Parágrafo único. São inaplicáveis, no âmbito da RFB, eventuais interpretações que sejam contrárias ou incompatíveis com as do Manual.
Não obstante seja considerado pela própria Administração Tributária o
principal ato interpretativo a respeito do sigilo fiscal, o Manual não pode ser
encontrado por meio de pesquisas nos sítios eletrônicos da Receita Federal ou de
outros órgãos públicos. Tampouco a Portaria 3.541/2011, que o aprovou. No art. 2º da
aludida portaria, explicita-se que o Manual estará disponível apenas na intranet da
RFB.89
Portanto, o principal ato que orienta os servidores da Administração Tributária
a respeito do sigilo fiscal é “sigiloso”.90 Ele cria a peculiar figura do “sigilo do
sigilo”, tornando sigiloso o entendimento oficial da RFB a respeito do sigilo de
informações fiscais. Seria possível argumentar que os destinatários da norma são os
servidores da Administração Tributária e que, portanto, não há necessidade de
publicidade do documento. Entretanto, o Manual contém a interpretação oficial da
Receita Federal acerca de uma norma que impacta a vida de todos os cidadãos. Ainda
que se trate de “recomendação” direcionada unicamente a servidores públicos, o
documento trata do sigilo de informações manipuladas pela Administração
Tributária, tema que interessa a toda a sociedade e que envolve direitos e garantias
dos contribuintes.
Em termos de conteúdo, o Manual não apresenta posições específicas a
respeito da publicidade de decisões administrativas, soluções de consulta e outros atos
89 Art. 2º O Manual estará disponível na intranet da RFB. 90 Inicialmente, este manual chegou ao meu conhecimento por meio do Núcleo de Estudos Fiscais da Direito GV, onde sou pesquisador. Um funcionário da RFB disponibilizou-o ao NEF sob a condição de anonimato. Posteriormente, o NEF fez dois pedidos de informação para obtê-lo por meios oficiais. O pedido de n. 16853000742201367 foi negado com base na justificativa de que seria “desproporcional ou desarrazoado”. O pedido n. 16853001506201368 foi deferido e o Manual foi disponibilizado, sem nenhuma justificativa para a mudança de entendimento. Mas não é possível encontrá-lo em qualquer sítio eletrônico ou veículo oficial de órgãos públicos.
61
de aplicação do direito, problemas constatados no percurso de pesquisas do NEF.
Apresenta uma lista de informações protegidas pelo sigilo, citando expressamente a
Portaria RFB 2.344/2011, bem como a lista de exceções ao sigilo, previstas nos
incisos do art. 198 do CTN.
Além de reproduzir conceitos existentes em outros instrumentos normativos,
como a Portaria 2.344/2011 da RFB, o Manual também cria várias restrições,
interpretando extensivamente o sigilo fiscal. Cria, por exemplo, uma divisão
aparentemente inexistente na legislação, entre sigilo fiscal e sigilo funcional: ... as administrações tributárias trabalham com informações referentes a pessoas físicas e jurídicas, que não se enquadram na definição disposta no caput do art. 198, a exemplo das informações cadastrais de contribuintes. O fato de existirem dados não protegidos por sigilo fiscal não significa que podem ser fornecidos ou franqueados a qualquer pessoa. (...) Há, no ordenamento jurídico vigente, a figura do sigilo funcional, com matriz legal no art. 116 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe: Art. 116. São deveres do servidor: ............................................................................................................ VIII − guardar sigilo sobre assunto da repartição; .............................................................................................................. As informações não protegidas por sigilo fiscal, via de regra, terão sua divulgação disciplinada por ato de autoridade competente.91
O Manual traz ainda mais restrições em relação ao art. 198 do CTN. No que
diz respeito às exceções ao sigilo, elencadas nos incisos do art. 198, dispõe o seguinte: O dispositivo ora reproduzido permite que as Administrações Tributárias prestem informações referentes a representações fiscais para fins penais, inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública e parcelamento ou moratória. Contudo, não as autoriza a adotarem, indiscriminadamente, iniciativas de divulgação. A divulgação das informações referentes a representações fiscais para fins penais, inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública e parcelamento ou moratória deve observar as orientações, limites e procedimentos disciplinados em ato de autoridade competente. (...) Essas informações, apesar de excepcionadas do dever de sigilo fiscal, são protegidas por sigilo funcional.
O Manual determina que, apesar de o art. 198 excepcionar a divulgação de
informações sobre inscrição na Dívida Ativa, parcelamentos e representações fiscais
para fins penais, não é admitida a divulgação “indiscriminada” dessas informações: As informações que não se referem à situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e à natureza e o estado de seus negócios ou atividades não estão sob o pálio do sigilo fiscal.
91 BRASIL. Secretaria da Receita Federal do Brasil. Manual do Sigilo Fiscal da Secretaria da Receita Federal do Brasil. Brasília: Secretaria da Receita Federal do Brasil, 2011.
62
Atenção: As informações não protegidas por sigilo fiscal não podem ser divulgadas por iniciativa de servidor da RFB em razão do sigilo funcional.92
Sobre dados agregados, cuja divulgação é permitida pela Portaria 2.344/2011,
o Manual utiliza analogia para estabelecer ainda mais restrições, criando a
interpretação de que os dados agregados devem se referir a pelo menos quatro
contribuintes: No fornecimento de dados econômico-fiscais de forma agregada, para que não haja possibilidade de identificação de contribuintes, a RFB entende que as informações devem se referir, no mínimo, a quatro sujeitos passivos, a exemplo do que orienta o § 3º do art. 2º da Portaria SRF n. 306, de 22 de março de 2007, que dispõe sobre a divulgação de dados estatísticos de importações.
Da leitura de trechos do (sigiloso) Manual do Sigilo Fiscal, resta evidente que
a Receita Federal não segue modelo de racionalidade jurídica algum. No documento,
o órgão alcança conclusões a respeito do que deve ser considerado sigiloso ou não
como se fossem extraíveis facilmente por meio da leitura dos textos legislativos
citados. Não se identificou nenhum esforço argumentativo no sentido de explicitar os
critérios interpretativos empregados. Os fatos são subsumidos em normas gerais e
abstratas, como se não houvesse outra interpretação possível e não pudessem existir
divergências sobre a matéria.
Essa estratégia argumentativa consistente na simples citação de dispositivos
legais para sustentar conclusões como se não houvesse outras interpretações cabíveis
é curiosa e contraditória. Isso porque, nas situações em que o objetivo da Receita
Federal é restringir a divulgação de informações, disposições legais bastante
explícitas são solenemente ignoradas. Por exemplo, se um dos incisos do art. 198
autoriza a publicidade de débitos inscritos na Dívida Ativa, como exceção ao caput do
dispositivo, não prevendo nenhum tipo de condicionamento para tanto, não poderia a
Receita Federal criar restrições inexistentes na legislação, sobretudo sob o argumento
de que “isso está previsto na lei”. Se deve prevalecer uma interpretação “gramatical”,
de molde a evitar valorações pessoais por parte dos aplicadores, parece mais plausível
concluir no sentido de que o CTN autoriza a publicação de informações referentes a
inscrições na Dívida Ativa sem os temperamentos defendidos pelo Fisco.
92 Idem.
63
A Receita Federal, quando lhe é conveniente, simplesmente cita o art. 198
para sustentar posições que entende serem corretas e que não são explicitamente
extraíveis do texto legislativo. Já quando o dispositivo não lhe convém, cria restrições
ou temperamentos na interpretação como se fosse manobra óbvia e casual, e pior,
como se estivesse prevista em lei ou fosse depreendida de uma interpretação
teleológica do dispositivo.
O Manual, além de não estar disponível para acesso público e dificultar o
conhecimento, por parte dos cidadãos, da interpretação do Fisco a respeito do sigilo
fiscal, criando a peculiar figura do “sigilo do sigilo”, contém zonas de autarquia, pois
intenta esconder a indeterminação do ato de aplicação. Furta-se, portanto, a oferecer
justificativas plausíveis para sustentar suas posições, como se houvesse inequívoca
correspondência entre as conclusões dispostas no documento e o texto do art. 198 do
CTN.
4.2. Respostas da Administração Tributária Federal a Pedidos de Acesso a
Informações de Natureza Tributária
Com base na Lei de Acesso à Informação (12.527/2011), também foram
solicitados a órgãos da Administração Tributária federal, por meio do Sistema
Eletrônico do Serviço de Informação ao Cidadão93, documentos e informações que
permitem observar a concretização de normas tributárias gerais e abstratas: soluções
de consulta sobre interpretação da legislação tributária, decisões de primeira instância
proferidas em processos administrativos fiscais, informações sobre benefícios fiscais
usufruídos por contribuintes e autos de infração fiscal. Em todas as respostas a esses
pedidos, o acesso às informações solicitadas foi negado com base no argumento de
que seriam protegidas por sigilo fiscal:
Número de protocolo Informação solicitada Resposta resumida
1) 16853000631201351
Acesso às consultas tributárias dos contribuintes formuladas à Secretaria da Receita Federal e as respectivas respostas
Indeferido: sigilo fiscal
93 “E-sic”: <http://www.acessoainformacao.gov.br/sistema/site/index.html>.
64
2) 16853000648201316
Decisões de processos administrativos fiscais federais de 1ª instância do ano corrente
Indeferido: sigilo fiscal
3) 16853000637201328
Informações sobre benefícios fiscais, isenções, programas de parcelamento, anistias, regimes especiais, créditos presumidos e toda forma de desoneração fiscal concedidos, de maneira individualizada, contendo nome do beneficiado, CPF/CNPJ, total de valores renunciados pelo ente público, quais tributos foram renunciados e o prazo de duração (quando houver) da desoneração concedida no último exercício e no ano corrente
Indeferido: sigilo fiscal
4)16853000638201372
Informação sobre quem é o beneficiário da maior desoneração fiscal concedida no último exercício e no ano corrente (até o momento), com o respectivo valor e a discriminação dos tributos renunciados
Indeferido: sigilo fiscal
5)16853001023201363 Acesso a autos de infração lavrados contra alguns contribuintes específicos discriminados no pedido.
Indeferido: sigilo fiscal
4.2.1. Resposta para Pedido de Disponibilização de Inteiro Teor de Soluções de
Consulta sobre Interpretação da Legislação Tributária
No pedido 1, solicitou-se acesso a consultas de interpretação da legislação
tributária bem como às respectivas soluções, que foi negado com base no sigilo fiscal: 7. Diante do exposto, recomenda-se o indeferimento do pedido de acesso às consultas tributárias formuladas à RFB e suas respectivas respostas, considerando, em suma, que: a) a Lei n. 12.527, de 2011, teve por objetivo concretizar, no trato da Administração Pública com os administrados, o princípio da transparência; b) a própria lei, contudo, dispõe que aos órgãos públicos compete assegurar a proteção da informação sigilosa e de informação pessoal; c) as Soluções de Consulta são provocadas por sujeitos passivos de obrigações tributárias principais ou acessórias, envolvendo matéria protegida por sigilo, podendo ser tanto fiscal como comercial, bancário ou outra hipótese legal de sigilo (vide art. 22 da Lei n. 12.527, de 2011); d) no cotejo entre os princípios da transparência e do sigilo fiscal, a
65
publicação na Internet e no DOU apenas das ementas das Soluções de Consulta atingem a finalidade da lei, uma vez que atesta a posição da RFB sobre determinado assunto; e) o fornecimento da cópia de todo o teor das Soluções de Consulta formuladas à RFB, consoante consta do pedido sub examine, desrespeita o dever de preservação do sigilo fiscal.
É importante perceber que nesta resposta a autoridade empreende esforço
relativamente maior para justificar a decisão denegatória. Ainda assim, não é possível
atestar a racionalidade dos argumentos apresentados.
A autoridade afirma que as soluções de consulta podem conter informações
protegidas por sigilo fiscal, bancário, comercial, entre outras hipóteses legais, pois são
provocadas por sujeitos passivos de obrigações tributárias principais ou acessórias.
Porém não menciona exemplos concretos que ilustrem os riscos temidos. Ademais,
esse argumento soa incoerente diante do fato de que outros suportes que também
contêm informações de sujeitos passivos, como decisões proferidas em processos
administrativos fiscais e processos judiciais, são públicos. Seria preciso explicar
especificamente o porquê de as soluções de consulta serem especialmente
problemáticas e, desse modo, justificar sua proteção. Eis aí uma contradição entre a
resposta ao pedido de informação em tela e as práticas institucionais rotineiras da
Administração Tributária.
A autoridade também afirma que a publicidade da ementa já seria suficiente
para atender ao “princípio da transparência” e que a revelação de informações mais
detalhadas poderia violar o sigilo. Contudo, alcança tal conclusão de modo arbitrário.
É importante ressaltar que outros entes federativos, como o Estado de São Paulo,
publicam o inteiro teor das soluções de consulta sobre a interpretação da legislação
tributária, suprimindo apenas dados que possam identificar o consulente específico,
como nome e valores envolvidos. Assim sendo, não parece haver justificativas
plausíveis para que, em nível federal, apenas as ementas sejam publicadas.
Na sequência, a autoridade fiscal procura aplicar a denominada técnica do
sopesamento com relação aos “princípios da transparência e do sigilo fiscal”. Afirma
que a publicação apenas das ementas das soluções atingiria a finalidade da norma,
uma vez que atesta a posição da RFB sobre determinado assunto e que o fornecimento
da cópia do inteiro teor das soluções desrespeitaria o dever de preservação do sigilo
fiscal. Contudo, a autoridade não explicita o raciocínio que a conduziu a tal
conclusão, como se esta fosse evidente e não demandasse maiores justificativas.
66
Merece destaque o fato de que o sopesamento de princípios é uma construção teórica
que ganhou projeção com o autor alemão Robert Alexy, cuja pertinência é bastante
disputada no meio teórico, tendo adquirido diversas nuances e passado por vários
desenvolvimentos.94 Trata-se de uma noção extremamente complexa, que procura
oferecer ferramentas para solucionar colisões entre princípios constitucionais,
exigindo sofisticada argumentação por parte de seu usuário. Ou seja, a técnica do
sopesamento de princípios jamais seria satisfeita com a argumentação pueril
empreendida na resposta em comento. Enfim, não é possível compreender, a partir da
argumentação apresentada, como a autoridade fiscal chegou aos resultados
interpretativos esposados.
Impende mencionar, ainda, que, recentemente, a própria Secretaria da Receita
Federal, por meio da Instrução Normativa 1.396/2013, criou soluções de consulta com
efeito vinculante, cujo inteiro teor será publicado em seu sítio eletrônico, suprimindo-
se apenas os dados que permitam identificar o consulente. Ou seja, a própria Receita
Federal defende posições contraditórias em relação à publicidade das soluções de
consulta sobre interpretação da legislação tributária.
4.2.2. Resposta para Pedido de Disponibilização de Decisões de Primeira
Instância Proferidas em Processos Administrativos Fiscais
O pedido 2, referente às decisões de primeira instância proferidas em
processos administrativos fiscais, também foi negado sob o argumento de que as
referidas decisões estariam protegidas por sigilo fiscal: A Lei n. 12.527/2011 teve por objetivo concretizar o princípio da transparência no âmbito da Administração Pública; a própria lei, entretanto, dispõe que, aos órgãos públicos, compete assegurar a proteção da informação sigilosa, observada eventual restrição de acesso (art. 6º, III), assim como dispõe que “é dever do Estado controlar o acesso e a divulgação de informações sigilosas produzidas por seus órgãos e entidades, assegurando a sua proteção” (art. 25). As decisões das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento envolvem matéria protegida por sigilo fiscal, cuja proteção decorre do art. 198 do Código Tributário Nacional: “sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”. Eventualmente, referidas decisões podem conter também informações protegidas por sigilo
94 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
67
bancário ou comercial. Dessa forma, somente o respectivo contribuinte pode ter acesso, motivo pelo qual o fornecimento de acesso amplo e irrestrito desrespeita o dever de preservação do sigilo fiscal, devendo, portanto, o pedido sob análise ser indeferido.
Para justificar o sigilo de decisões de primeira instância proferidas em
processos administrativos fiscais, a Receita Federal novamente se restringe a citar o
art. 198 do CTN, como se existisse evidente correspondência entre a decisão tomada e
o texto do dispositivo legal.
Entretanto, essa justificativa não possui o condão de explicar por que decisões
de segunda instância são publicadas enquanto decisões de primeira instância são
consideradas sigilosas. Seria necessário explicitar de modo específico qual a diferença
entre esses dois “tipos” de decisões para que a justificativa pudesse ser considerada
válida. Porém, como visto, tal argumentação não consta da resposta ao pedido de
informação.
Além disso, cumpre informar que os Estados de São Paulo, Santa Catarina e
Bahia, por exemplo, disponibilizam decisões de DRJs sem nenhum tipo de restrição
ou supressão de informações. Tal prática institucional demonstra que o entendimento
da RFB sobre o assunto não é o único possível e que, portanto, seria necessário
formular argumentação clara e consistente, capaz de justificar essa distinção entre o
entendimento propugnado em âmbito federal e as práticas de alguns dos mais
importantes Estados da Federação.
Novamente, da análise da resposta ao pedido de informação, depreende-se que
a autoridade fiscal procurou ocultar a indeterminação do ato de aplicação, incorrendo
na estratégia argumentativa de naturalizar o “seu” conceito de sigilo fiscal. Este não é
facilmente apreensível a partir da leitura do art. 198 do CTN e está em evidente
contradição com a posição de outros entes federativos e com a sua própria, já que não
há diferença substancial que justifique tratamento distinto entre decisões
administrativas de primeira e de segunda instância.
4.2.3. Respostas Relativas a Pedidos de Informações sobre Benefícios Fiscais
Segundo a Receita Federal, informações detalhadas sobre benefícios fiscais
que permitam identificar seus respectivos beneficiários são protegidas por sigilo
fiscal, uma vez que se trata de “informações econômicas e financeiras” do
68
contribuinte. As conclusões são expostas nas respostas aos pedidos 3 e 4, negados sob
idênticos fundamentos: Preliminarmente, no que tange à identificação da situação econômica ou financeira de contribuintes, convém transcrever o disposto no art. 198 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966, do Código Tributário Nacional (CTN): (...) Deste modo, à luz das disposições legais precedentes, conclui-se ser vedado à Fazenda Pública e a seus servidores atender à requisição do interessado de modo a identificar expressamente os contribuintes que têm utilizado as prerrogativas legais correspondentes a renúncias tributárias, assim como os respectivos montantes, tendo em vista que norma específica, neste caso o CTN, alberga as informações econômicas e financeiras de que dispõe a Fazenda Pública sob o manto do sigilo fiscal, instituto previsto no art. 198 do referido diploma legal, conforme transcrição anterior. Adicionalmente, cumpre esclarecer que a administração de débitos do sujeito passivo para com a Fazenda Pública, quer decorram do parcelamento de créditos tributários constituídos ou confessados, quer decorram de acréscimos moratórios em relação aos quais se concedeu anistia, não se encontra compreendida na esfera de competência desta Coordenação-Geral. Por tal razão, esta Coordenação-Geral, primeiramente, abstém-se respeitosamente de responder especificamente a tais questionamentos (parcelamento e anistia), e, em segundo lugar, providenciará o encaminhamento das referidas questões à Coordenação- Geral competente. As demais requisições acerca de desonerações tributárias em sentido amplo, abrangendo, portanto, todas as formas requisitadas, poderão ser obtidas na tabela anexa à presente Nota...
Com relação ao objeto do pedido, assim dispõe o art. 198 da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966, do Código Tributário Nacional (CTN): (...) Deste modo, à luz das disposições precedentes, conclui-se ser vedado à Fazenda Pública e a seus servidores atender à requisição do interessado, nos termos em que se encontra formulada, tendo em vista que a hermenêutica das normas jurídicas abrange sua interpretação dentro do complexo jurídico de que fazem parte, encontrando a espécie da demanda formulada – identificação de contribuinte − óbice, não na Lei de Acesso à Informação, mas no sigilo fiscal contido na norma geral de legislação tributária, qual seja o CTN.
Nesta oportunidade, a RFB novamente sustenta a negativa aos pedidos com
base na simples citação do art. 198 do CTN, como se este fosse claramente delimitado
e permitisse concluir que informações sobre benefícios fiscais capazes de identificar
contribuintes específicos devem ser sigilosas.
Entretanto, como já visto anteriormente, o argumento de que uma dada
informação diz respeito a contribuinte específico não é suficiente para justificar o
sigilo, porquanto decisões proferidas em processos administrativos e judiciais também
fazem referência a sujeitos passivos específicos. Sustentar a posição de que as
informações em questão devem ser sigilosas com base no referido argumento implica
69
incorrer em contradição.
Ademais, como se verá adiante, a PGFN defende que informações sobre
parcelamentos tributários que digam respeito a contribuintes específicos devem ser
públicas, porque os parcelamentos têm natureza de benefício fiscal. Assim, para
usufruir dele, o contribuinte deve anuir com a publicidade dos atos administrativos
correspondentes. Diante disso, e os parcelamentos são benefícios e devem ser
públicos, não parece razoável defender entendimento divergente em relação aos
demais tipos de benefícios fiscais. Revela-se, novamente, contradição entre diferentes
órgãos ligados à Administração Tributária federal no que se refere à interpretação e
aos limites do sigilo fiscal.
4.2.4. Resposta para Pedido de Disponibilização de Autos de Infração Fiscal
A resposta ao pedido 5, em que se requisitou acesso a autos de infração
específicos, talvez seja a mais arbitrária de todas: ... as informações requeridas estão protegidas pelo sigilo fiscal de que trata o art. 198, do Código Tributário Nacional, Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966, com a redação dada pela Lei Complementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001, abaixo transcrito: Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.
Mais uma vez, a Receita Federal tomou sua decisão como se houvesse inciso
ou parágrafo do art. 198 que expressamente proíbe a divulgação de autos de infração,
quando na verdade não há. É impossível compreender, a partir dos argumentos
apresentados, as razões que levam a Administração Tributária a considerar autos de
infração sigilosos, enquanto outras informações e documentos são públicos.
Novamente, a autoridade fiscal procura naturalizar o “seu” conceito de sigilo
fiscal ocultando a indeterminação do ato de aplicação e deixando de oferecer
justificativas plausíveis para sustentar sua posição.
Na verdade, a autoridade nem sequer consegue demonstrar com clareza qual
seria o conceito de sigilo fiscal que utiliza. Não há uma racionalidade lógico-formal,
que constrói um conceito genérico e abstrato para, a partir dele, deduzir soluções para
casos concretos. A impressão que fica é a de que a interpretação representa
70
simplesmente a opinião da autoridade de plantão responsável por responder ao pedido
de informação.
Cumpre ressalvar que não se está, com isso, afirmando que não há motivos
para defender o sigilo de autos de infração fiscal. Provavelmente há argumentos
razoáveis e inteligentes, ao menos para evitar a publicidade integral dos autos, sem
nenhum tipo de tratamento do documento ou supressão de informações sensíveis. No
entanto, tais razões não foram expendidas na resposta à consulta em questão,
tampouco nas respostas analisadas anteriormente.
4.3. Parecer PGFN/CAT 2.458/2012: análise do entendimento consolidado da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional sobre o sigilo fiscal95
O Parecer 2.458/2012 da Coordenação-Geral de Assuntos Tributários da
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional orienta a atuação dos procuradores da
Fazenda Nacional a respeito do sigilo fiscal. Trata-se de conjunto de recortes de
vários pareceres, portarias e atos interpretativos anteriores do órgão sobre questões
relacionadas ao sigilo.
A maior parte do documento procura delimitar as situações em que
informações podem ser compartilhadas com administrações fiscais de outros países ou
com outros órgãos públicos brasileiros.96 Apenas o capítulo “C” traz maiores
95 Disponível em <http://dados.pgfn.fazenda.gov.br/dataset/pareceres/resource/24582012> Acesso em 9.5.2013. 96 O parecer divide-se nos seguintes capítulos: A – Do Sigilo Fiscal nos Atos Internacionais de Intercâmbio de Informações Fiscais; B – Do Sigilo Fiscal nas Requisições de Informações Fiscais por Diversas Autoridades, Órgãos e Organismos; a) Requisições de Informações pelo Ministério Público Federal: b) Requisições de Informações pelo Ministério Público Estadual c) Requisições de Informações pelo Departamento de Polícia Federal; d) Requisições de Informações pelas Casas do Congresso Nacional e por seus membros: e) Requisições de Informações pelo Tribunal de Contas da União: f) Requisições de Informações pela Defensoria Pública da União: g) Requisições de Informações pela Controladoria-Geral da União: h) Requisições de Informações pelo Mercado Comum do Sul – MERCOSUL e por outros organismos internacionais i) Requisições de Informações por Outros Órgãos, Organismos e Autoridades: C – Do Sigilo Fiscal quanto aos Débitos Inscritos em Dívida Ativa da União e Parcelados. D – Outros Aspectos Pertinentes ao Tema do Sigilo Fiscal. Os capítulos “A” e “B” destinam-se a explicar os procedimentos e condições em que a PGFN pode compartilhar informações com administrações fiscais de outros países e com outros órgãos públicos brasileiros, respectivamente. Pouco contribuem para esclarecer quais informações exatamente são protegidas por sigilo fiscal. O capítulo “D” também é de pouco auxílio, pois trata de situações bastante específicas, como a declaração de segredo de justiça para processos judiciais que contenham extratos de Declaração de Operações Imobiliárias e o momento em que se podem encaminhar representações fiscais para fins penais ao Ministério Público.
71
especificações de quais informações podem ser consideradas protegidas. Nessa linha,
dispõe o seguinte: c) O sigilo fiscal se estende à PGFN e estão sob o pálio do sigilo as informações pessoais e os dados relativos a operações e negócios dos contribuintes (patrimônio, rendimentos e atividades econômicas), quer pessoas físicas, quer jurídicas, fornecidos à Fazenda Publica, por força do disposto no art. 145, §1º, da Constituição Federal; (...) f) A emissão gratuita de certidão negativa ou positiva de débitos inscritos em dívida ativa da União é garantia que socorre apenas ao interessado para esclarecimento de situação individual sua, não se estendendo a terceiro; (...) l) A mera informação de que determinado contribuinte está regular ou não perante a dívida ativa da União é informação de interesse geral ou coletivo. (...) (Grifamos).
Observe-se que, segundo a PGFN, o sigilo fiscal serve para proteger
informações sobre operações e negócios dos contribuintes. Guarda relação, portanto,
com as hipóteses de sigilo bancário e segredo de negócios, não necessariamente
acobertando qualquer tipo de informação que identifique contribuintes específicos.
Mas não são apresentados mais argumentos de como a PGFN alcançou tal conclusão.
Sobre a Dívida Ativa, parcelamentos e moratória, o parecer dispõe o seguinte: e) no que tange aos débitos tributários, forte no indigitado art. 198, §3º, II, do Código Tributário Nacional, não estão acobertados pela garantia do sigilo fiscal os dados constantes do termo de inscrição em Dívida Ativa – art. 202 do Código Tributário Nacional. (Grifamos).
Mais adiante, conclui que: 41. O parcelamento constitui importante instrumento de política tributária. Tem por objetivo a regularização do contribuinte, bem como o aumento da arrecadação de créditos tributários. A par da essencialidade da receita tributária como fonte substancial de financiamento dos gastos governamentais, a divulgação dessas informações reveste-se de interesse coletivo ou geral. 42. Ademais, o parcelamento e a moratória constituem benefícios fiscais postos à disposição dos contribuintes em atraso com seus tributos. Sob tal perspectiva, a divulgação de informações sobre o parcelamento (art. 198, § 3º, III, do CTN) é uma das condições impostas ao sujeito passivo para que possa ser contemplado pelos benefícios fixados pelas leis concessivas do parcelamento, com previsão no próprio Código Tributário Nacional. (...) 45. Logo, poderão ser divulgadas informações coletadas e processadas de forma global, destinando-se a fins estatísticos, a exemplo do número total de parcelamentos deferidos e valores globais, arrecadação por modalidade de parcelamento, quantificação dos montantes arrecadados pela via do parcelamento, impacto dos programas de parcelamento sobre a arrecadação total, desistência de parcelamentos, migrações para novos parcelamentos, parcelamentos com, e sem, redução de juros e multas, contabilização das receitas arrecadadas que permita identificar o tributo correspondente ao débito objeto de parcelamento, valores recebidos a título de principal daqueles decorrentes da aplicação de multas e juros de mora,
72
valores relativos à dívida ativa, estoques de créditos a receber oriundos de parcelamentos de débitos, número de optantes (pessoas físicas e jurídicas) por unidade da federação ou município, natureza dos débitos parcelados – tributários e não tributários etc. 46. Poderá, ainda, se divulgar demonstrativo relacionando os parcelamentos deferidos, em que se faça constar os números de inscrição dos beneficiários no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) ou no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), valores parcelados, número de parcelas concedidas, beneficiários excluídos, tal como previsto na Portaria Conjunta PGFN-RFB n. 15, de 2009. Nesse caso, a divulgação de dados individualizados dos débitos parcelados, por sujeito passivo optante, não atingirá sua esfera de privacidade. Trata-se de dados meramente numéricos que, divorciados de um contexto contábil-fiscal mais amplo, em nada revelam a situação financeira ou econômica do sujeito passivo ou o estado de seus negócios e atividades. É uma informação isolada, da qual não se podem extrair senão ilações. Ademais, insista-se, a adesão ao parcelamento é uma faculdade posta à disposição do contribuinte. (...)
Portanto, em síntese, de acordo com a PGFN: i) informações sobre inscrição
na Dívida Ativa não são sigilosas, apenas o detalhamento destas, como a divulgação
dos valores devidos pelo contribuinte; ii) informações sobre parcelamento e
moratória, contendo, por exemplo, valores parcelados e número de parcelas
concedidas, não são protegidas, porque se trata de modalidade de benefícios
concedidos aos contribuintes irregulares perante o Fisco, cuja fruição depende da
anuência à divulgação desses dados.
O parecer da PGFN “cria” restrições não expressas no art. 198 do CTN, que
não excepciona o detalhamento dos valores inscritos na Dívida Ativa, furtando-se de
apresentar argumentos que permitam reconstruir os raciocínios dogmáticos que a
conduziram a tal conclusão. Essa posição também contradiz a conclusão anterior de
que o sigilo fiscal protege apenas informações sobre “operações e negócios” dos
contribuintes.
Em relação aos dados sobre parcelamento, a PGFN entende pela possibilidade
de ampla divulgação dessas informações, já que divorciadas de contexto contábil-
fiscal mais detalhado, pois afirma que não revelam a situação financeira ou
econômica do sujeito passivo ou o estado de seus negócios e atividades. A PGFN
também entende que a natureza do parcelamento é de “benefício fiscal”, e que, por
essa razão, a publicidade é condição com a qual o beneficiário deve anuir previamente
para dele usufruir. A despeito disso, não há argumentos claros sobre por que o débito
inscrito na Dívida Ativa não objeto de parcelamento é sigiloso, e o mesmo débito,
quando parcelado, pode ser divulgado. Há clara contradição entre a interpretação da
73
PGFN a respeito dos débitos inscritos na Dívida Ativa e aquela referente aos débitos
inscritos submetidos a parcelamento tributário.
Além disso, tal entendimento, conforme havia sido adiantado acima, é
contraditório com a posição da RFB a respeito da publicidade de informações
referentes a benefícios fiscais. Do exposto, observa-se que a PGFN também não
utiliza nenhum modelo de racionalidade jurídica específico. Embora o parecer seja
mais explicativo e detalhado do que o Manual do Sigilo e do que as respostas a
pedidos de informação acima analisadas, também foram identificadas zonas de
autarquia na argumentação da PGFN. Há contradições nas posições por ela adotadas,
além da criação de parâmetros para interpretação do sigilo sem a exposição de
argumentos consistentes, limitando-se a mencionar dispositivos legais como se
houvesse absoluta congruência entre o entendimento do órgão e os textos legislativos
citados.
4.4. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais: análise de decisões do órgão
administrativo envolvendo o tema do sigilo fiscal
Em pesquisa de jurisprudência realizada no sítio eletrônico do órgão
administrativo97 sobre sigilo fiscal, surgiram 73 resultados. Os acórdãos tratam do
sigilo fiscal de modo marginal ou, ainda, em contextos que não interessam para os
fins deste trabalho. As decisões podem ser divididas em três grandes grupos
temáticos: (i) sigilo bancário, cuja discussão central reside na (im)possibilidade de a
Receita Federal solicitar dados bancários a instituições financeiras sem a necessidade
de requerimento judicial98; (ii) utilização de dados obtidos com a Contribuição
Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) para fiscalização e cobrança de
outros tributos em contraposição com o sigilo bancário99; e (iii) sigilo fiscal de
pessoas que prestaram serviços a uma mesma empresa que, por sua vez, é responsável
solidária pelo recolhimento de contribuições previdenciárias. Neste último caso, o
sigilo fiscal foi invocado para apontar que o lançamento tributário padecia de vício
97 Pesquisa realizada no sítio eletrônico <www.conselhos.fazenda.gov.br>, em 15/4/2013, pelo termo “sigilo adj fiscal”97, abarcando decisões proferidas entre janeiro de 1988 e abril de 2013. 98 Por exemplo: processos administrativos fiscais n. 10980.004532/2004-15, n. 11060.000787/2003-72 e n. 18088.720163/2011-16. 99 Por exemplo: processos administrativos fiscais n. 10240.000393/2004-14, n. 11041.000124/2004-67 e n. 11065.005716/2003-16.
74
formal insanável, pois as informações fiscais de diversos prestadores eram incluídas
em único procedimento de cobrança, já que a empresa tomadora dos serviços era a
mesma e, portanto, responsável solidária de todos os envolvidos.100
Assim, não há – ou, pelo menos, não foi possível encontrar, de acordo com os
critérios de busca utilizados – no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
decisões que discutem a figura do sigilo fiscal e os limites para disponibilização de
informações e documentos detidos por instituições fiscais à sociedade.
4.5. Supremo Tribunal Federal: análise de decisões da Corte a respeito do sigilo
fiscal
As decisões que aparecem como resultados da pesquisa de jurisprudência no
STF101 também abordam o sigilo fiscal em contextos que fogem ao interesse desta
dissertação. Algumas delas cuidam de matéria penal e, nesse âmbito, geralmente a
discussão central reside na (i)legalidade das provas obtidas mediante quebra de sigilo
fiscal. Em outras palavras, envolvem processos criminais em que as provas que
permitem a caracterização do ilícito criminal dizem respeito a informações de
natureza fiscal obtidas mediante acesso a dados mantidos pela Receita Federal ou por
Fiscos Estaduais e Municipais.102
Há, ainda, acórdãos que tratam da questão do sigilo bancário, fazendo
referências pontuais ao sigilo fiscal, mas sem detalhamentos a respeito deste último.
Estas decisões se preocupam com a possibilidade de a Receita Federal solicitar dados
bancários a instituições financeiras sem a necessidade de requerimento judicial.103 A
fonte dessa controvérsia está na Lei Complementar 105/2001, que regulamenta a
figura do sigilo bancário, e no Decreto 3.724/2001, que regulamenta o art. 6º desta lei,
relativamente à requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal, de
100 Por exemplo: processos administrativos fiscais n. 11041.000124/2004-67, n. 11543.001093/2004-19 e n. 37318.002825/2004-37. 101 Pesquisa realizada no sítio eletrônico <www.stf.jus.br>, entre os meses de dezembro de 2012 e abril de 2013, pela expressão “sigilo adj1 fiscal” (36 resultados) e pela citação do art. 198 do Código Tributário Nacional, no campo “legislação” (19 resultados). Talvez isso já permita afirmar que nem todo acórdão que lida com o tema do sigilo fiscal faz referência à sua fonte legal. (“Adj1” significa que as palavras “sigilo” e “fiscal” devem aparecer nos julgados imediatamente uma após a outra, juntas, e não esparsamente ao longo do texto. Isso permite excluir da pesquisa as decisões que envolvam outras hipóteses de sigilo e em que, por algum outro motivo, a expressão “fiscal” também é mencionada.) 102 Por exemplo: Habeas Corpus 96.056/PE e Habeas Corpus 98.134/PA. 103 Por exemplo: Medida Cautelar na Ação Cautelar 33/PR.
75
informações pertinentes a operações e serviços das instituições financeiras e das
entidades a elas equiparadas. Há diversos processos já encerrados ou em trâmite no
STF em que se discute a constitucionalidade desses instrumentos normativos.
Basicamente, discute-se a constitucionalidade da prática de prestação de informações
bancárias à Receita Federal sem intervenção judicial. O sigilo fiscal é mencionado em
certas decisões porque há argumento em defesa da constitucionalidade da prática,
bastante difundido, no sentido de que a LC 105/2001 não possibilita a quebra do
sigilo bancário, mas promove a transferência desse sigilo para o Fisco; este, por sua
vez, não pode divulgar tais informações a outrem, tendo em vista a limitação que lhe é
imposta pelo sigilo fiscal.104
A matéria está pendente de julgamento em âmbito de controle concentrado de
constitucionalidade. Trata-se das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 2.386,
2.390, 2.397, que estão sob a relatoria do Ministro Dias Tofolli. Além disso, as ADIs
2.389 e 2.406 também discutiam a constitucionalidade da referida prática, mas foram
extintas em razão da perda do objeto, porque as fontes legais da discussão eram as
Leis 10.174/2001 e 9.311/1996, acerca da Contribuição Provisória sobre
Movimentação Financeira (CPMF) e cuja vigência já se exauriu105.
Por fim, há acórdãos que discutem os poderes das Comissões Parlamentares
de Inquérito para solicitar informações aos Fiscos sem necessidade de ordem
judicial106. Existem, ainda, decisões que não têm absolutamente nenhuma relação com
o tema do sigilo107 e, mesmo assim, por insabidos motivos, aparecem nos resultados
de pesquisa.
A única decisão que aparece como resultado de pesquisa e que poderia
auxiliar nesta investigação foi proferida no Agravo Regimental no Recurso Especial
61.439-1/SE, no qual se debateu a possibilidade de divulgação ao público da lista de
devedores inscritos na Dívida Ativa do Estado de Sergipe. No entanto, o acórdão
negou provimento ao recurso sob o argumento de que o agravante pretendia rever a
interpretação de norma infraconstitucional (art. 198 do CTN), que, no máximo, 104 SANTI, Eurico M. D. de. O sigilo e a lei tributária: transparência, controle da legalidade, direito à prova e a transferência do sigilo bancário na LC 105. In: BARRETO, Aires Fernandino (coord.). Direito Tributário Contemporâneo: estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 2011. 105 Em 31/12/2007. 106 Por exemplo: Agravo Regimental em Mandado de Segurança 23.466-1/DF e Mandado de Segurança 23.451/RJ. 107 Por exemplo: Recurso Extraordinário 55.666-4/RS, sobre prescrição e decadência em matéria tributária, e Mandado de Segurança 24.312/DF, sobre substituição tributária de ICMS.
76
implicaria violação indireta da Constituição. O STF, portanto, não chega a discutir o
assunto e a formar um corpo argumentativo, limitando-se a citar trechos da decisão
recorrida, oriunda do Tribunal de Justiça de Sergipe, e explicar por que não julgaria o
recurso especial no qual foi interposto o agravo regimental.
Portanto, não há – ou, pelo menos, não foi possível encontrar, de acordo com
os critérios de busca utilizados – no Supremo Tribunal Federal decisões que discutem
a figura do sigilo fiscal e os limites para disponibilização de informações e
documentos detidos por instituições fiscais à sociedade.
4.6. Superior Tribunal de Justiça: análise de decisões do STJ envolvendo os
temas do sigilo fiscal e da publicidade de informações tributárias
No STJ a grande maioria dos julgados trata do sigilo fiscal em contextos que
não dizem respeito à divulgação de informações à sociedade, não havendo avanços na
definição dessa figura jurídica.108 A maioria dos acórdãos diz respeito à discussão
sobre quebra de sigilo bancário e fiscal em inquéritos policiais e processos
criminais109; à (im)possibilidade de o Fisco requerer informações a instituições
financeiras sem necessidade de intervenção judicial110; e à (im)possibilidade de
requisitar informações sobre bens penhoráveis ao Banco Central, à Receita Federal ou
a terceiros antes do esgotamento de outras diligências extrajudiciais capazes de
localizar bens do devedor.111
A grande maioria dos acórdãos que envolvem discussão acerca da
possibilidade de requisição do juízo à Receita Federal ou a terceiros de informações
sobre o patrimônio do contribuinte devedor que permitam localizar bens penhoráveis,
notadamente sua declaração de bens, com apoio no § 1º, II, do art. 198 do CTN,
conclui que estas informações são protegidas por sigilo fiscal, garantia que pode ser
108 Pesquisa de jurisprudência realizada no sítio eletrônico <www.stj.jus.br>, pela citação do art. 198 do CTN em julgados da casa, realizada em 14.10.2013. Foram encontrados 56 resultados. 109 Por exemplo: Inq 780/CE, AgRg no RMS 19363 / MT, HC 65052 / RN, HC 73353 / RJ, RHC 20329 / PR, RHC 16414 / SP, RHC 15382 / RS, HC 42693 / PR, AgRg no Inq 333 / ES. 110 Por exemplo: REsp 1029058 / SP, REsp 691601 / SC. 111 Por exemplo: REsp 1120468 / SC, REsp 733911 / SP, REsp 892474 / SP, REsp 649535 / SP, REsp 725271 / SP, REsp 356033 / RN, AgRg no REsp 627669 / RS, MC 3060 / PR, REsp 529752 / PR, REsp 256156 / MG, REsp 546067 / SC, REsp 282717 / SP, EREsp 163408 / RS, REsp 204329 / MG, REsp 161296 / RS, REsp 206963 / ES, REsp 204350 / SE, REsp 163408 / RS, REsp 191961 / SP, REsp 184033 / AL, REsp 157846 / RS, REsp 159590 / PB, REsp 83803 / BA, REsp 30794 / PB, REsp 28067 / MG, REsp 16356 / SP, REsp 8795 / CE, REsp 19468 / CE, REsp 8806 / CE, REsp 11114 / ES, REsp 2777 / PA.
77
flexibilizada no interesse da justiça quando comprovado o esgotamento de medidas
extrajudiciais praticadas com o intuito de localizar os bens penhoráveis. Ou seja, a
sinalização do STJ é de que a declaração de bens e outras informações que permitam
aferir quais bens fazem parte do patrimônio do contribuinte, como movimentações
financeiras, são protegidas por sigilo fiscal.
O STJ já proferiu decisões que auxiliam de modo mais direto na definição do
sigilo fiscal. No recurso especial (“REsp”) representativo de controvérsia n.
1.349.363/SP, a Primeira Sessão do Tribunal, por unanimidade, deu parcial
provimento a recurso interposto pela Fazenda Nacional, para que, no caso de haver
juntada aos autos de execução fiscal de documentos protegidos por sigilo de qualquer
espécie, seja substituída a sistemática de arquivamento em “pasta própria” apartada
dos autos, que não tem previsão no Código de Processo Civil, pela decretação da
tramitação em segredo de justiça, a fim de preservar as informações sigilosas do
devedor. Conforme o acórdão: ... sob o manto do sigilo fiscal podem estar albergadas informações a respeito da situação financeira da pessoa (inclusive informações bancárias) e sob o manto do sigilo bancário podem estar albergadas informações também contidas na declaração de bens. Basta ver que as informações requisitadas pela Secretaria da Receita Federal junto às instituições financeiras deixam de estar protegidas pelo sigilo bancário (arts. 5º e 6º da LC n. 105/2001) e passam à proteção do sigilo fiscal (art. 198 do CTN). Sendo assim, o fato é que a mesma informação pode ser protegida por um ou outro sigilo, conforme órgão ou entidade que a manuseia. (...) É cediço que nem todas as informações prestadas pelo Fisco ou pelas instituições financeiras ao Poder Judiciário têm caráter sigiloso. Não são sigilosas, v.g., informações relativas ao nome e endereço dos envolvidos, à profissão que exercem, seu número no cadastro nacional de pessoas físicas ou jurídicas, a existência de contas e aplicações financeiras e a informação do saldo até o limite do débito. Por outro lado, tem-se o exemplo do § 3º do art. 5º da Lei Complementar n. 105/2001, que definiu serem sigilosos os dados relativos à “origem ou a natureza dos gastos” efetuados com as operações financeiras, e do art. 17, § 3º, do Regulamento do BACENJUD, que submeteu a sigilo as informações relativas a extratos bancários.
Do excerto se depreende que, para o STJ, a definição do sigilo fiscal,
geralmente, está vinculada à proteção de outras hipóteses de sigilo. Ou seja, a matéria
de natureza tributária, por si só, geralmente não é protegida por sigilo. O que o sigilo
fiscal visa proteger, na maior parte das vezes, são informações acobertadas por outras
categorias de sigilo, como o bancário, descrito no caso. Assim, são preservados
extratos bancários, informações sobre movimentações financeiras etc. Mas o STJ
exclui desse âmbito de proteção, por exemplo, a informação sobre o saldo bancário
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existente nas contas bancárias no limite do débito tributário. Significa dizer que o
débito de um contribuinte perante a Fazenda Pública não é protegido por sigilo.
Embora não seja possível identificar um modelo de racionalidade jurídica
específico, fica claro que o STJ empreende esforço maior para justificar sua posição,
situando o art. 198 do CTN no contexto do ordenamento jurídico e tentando,
aparentemente, realizar uma interpretação sistemática.
No Agravo Regimental (“AgRg”) nos Embargos de Declaração (“EDcl”) no
REsp 1190872/RJ, a Segunda Turma, por unanimidade, negou provimento a agravo
regimental interposto por contribuinte que defendia a ilegalidade do procedimento de
arrolamento para garantia do crédito fiscal antes do julgamento de todos os recursos
administrativos interpostos em face do lançamento, conforme previsto no art. 64 da
Lei 9.532 de 1997112, por afronta ao art. 198 do CTN. No acórdão, decidiu-se que:
112 “Art. 64. A autoridade fiscal competente procederá ao arrolamento de bens e direitos do sujeito passivo sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio conhecido. § 1º Se o crédito tributário for formalizado contra pessoa física, no arrolamento devem ser identificados, inclusive, os bens e direitos em nome do cônjuge, não gravados com a cláusula de incomunicabilidade. § 2º Na falta de outros elementos indicativos, considera-se patrimônio conhecido, o valor constante da última declaração de rendimentos apresentada. § 3º A partir da data da notificação do ato de arrolamento, mediante entrega de cópia do respectivo termo, o proprietário dos bens e direitos arrolados, ao transferi-los, aliená-los ou onerá-los, deve comunicar o fato à unidade do órgão fazendário que jurisdiciona o domicílio tributário do sujeito passivo. § 4º A alienação, oneração ou transferência, a qualquer título, dos bens e direitos arrolados, sem o cumprimento da formalidade prevista no parágrafo anterior, autoriza o requerimento de medida cautelar fiscal contra o sujeito passivo. § 5º O termo de arrolamento de que trata este artigo será registrado independentemente de pagamento de custas ou emolumentos: I − no competente registro imobiliário, relativamente aos bens imóveis; II − nos órgãos ou entidades, onde, por força de lei, os bens móveis ou direitos sejam registrados ou controlados; III − no Cartório de Títulos e Documentos e Registros Especiais do domicílio tributário do sujeito passivo, relativamente aos demais bens e direitos. § 6º As certidões de regularidade fiscal expedidas deverão conter informações quanto à existência de arrolamento. § 7º O disposto neste artigo só se aplica a soma de créditos de valor superior a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). (Vide Decreto n. 7.573, 2011) § 8º Liquidado, antes do seu encaminhamento para inscrição em Dívida Ativa, o crédito tributário que tenha motivado o arrolamento, a autoridade competente da Secretaria da Receita Federal comunicará o fato ao registro imobiliário, cartório, órgão ou entidade competente de registro e controle, em que o termo de arrolamento tenha sido registrado, nos termos do § 5º, para que sejam anulados os efeitos do arrolamento. § 9º Liquidado ou garantido, nos termos da Lei n. 6.830, de 22 de setembro de 1980, o crédito tributário que tenha motivado o arrolamento, após seu encaminhamento para inscrição em Dívida Ativa, a comunicação de que trata o parágrafo anterior será feita pela autoridade competente da Procuradoria da Fazenda Nacional. § 10. Fica o Poder Executivo autorizado a aumentar ou restabelecer o limite de que trata o § 7º deste artigo.”
79
Da exegese dos dispositivos legais, extrai-se que o arrolamento de bens disciplinado pelo art. 64 da Lei n. 9.532, de 1997, revela-se por meio de um procedimento administrativo, no qual o ente estatal efetua levantamento de bens dos contribuintes, arrolando-os sempre que o valor dos créditos tributários de sua responsabilidade for superior a trinta por cento do seu patrimônio conhecido e superar R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Finalizado o arrolamento, providencia-se o registro nos órgãos próprios para efeitos de dar publicidade. Ao contrário do alegado pela recorrente, incabível a suposta violação do art. 198 do CTN, pois o arrolamento em exame almeja, em última ratio, a execução do crédito fiscal, bem como a proteção de terceiros, inexistindo, portanto, suposta violação do direito de propriedade, do princípio da ampla defesa e do devido processo legal. Na verdade, o proprietário não sofre qualquer restrição no uso, fruição ou livre disposição dos bens arrolados, ficando apenas sujeito ao dever de comunicar ao Fisco qualquer transferência a terceiros, podendo, inclusive, demonstrar a existência de outros bens para substituição dos anteriormente arrolados; ou seja, o arrolamento de bens e direitos que ora se trata tem função instrumental e informativa para a propositura, se for o caso, de medida cautelar fiscal instituída pela Lei n. 8.397/92.
Da interpretação do STJ resulta que os incisos do art. 198 do CTN, que
veiculam exceções ao sigilo fiscal do contribuinte, não são suficientes para interpretar
aquele dispositivo. Há casos previstos em outras regras do ordenamento jurídico que
representam exceções ao sigilo. Um exemplo seria o do arrolamento de bens, como
defende o excerto acima colacionado, que implica publicidade da dívida do
contribuinte com o Fisco a terceiros (já que bens de sua propriedade são gravados em
registro público), bem como dá pistas sobre o patrimônio do contribuinte. O
arrolamento só pode ocorrer quando a dívida for maior que R$ 500.000,00 e
representar 30% do patrimônio do devedor.
No entanto, a razão que o STJ utiliza para sustentar a inexistência de violação
do art. 198 do CTN não se mostra cabível. Parece razoável dizer que o sigilo fiscal
tem como objetivo resguardar a privacidade dos contribuintes. Da leitura do trecho
transcrito, a alegação da parte que teve seus bens arrolados parece ter sido a de que o
arrolamento violaria sua privacidade, tendo em vista que seus imóveis foram gravados
em registro público. Para sustentar que não há óbice à privacidade, o STJ defende que
“o proprietário não sofra qualquer restrição no uso, fruição ou livre disposição dos
bens arrolados, ficando apenas sujeito ao dever de comunicar ao Fisco qualquer
transferência a terceiros...”. Ora, a justificativa faria sentido caso se tratasse
estritamente do direito de propriedade, que não é o caso. Está em jogo, também, a
privacidade, tema que não foi enfrentado pelo julgado.
80
No Recurso Ordinário em Mandado de Segurança (“RMS”) n. 33381/GO, a
Segunda Turma, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso ordinário
interposto pelo contribuinte para que seu nome fosse retirado de cadastro de proteção
de crédito. O STJ decidiu pela exclusão porque o débito já estava sendo objeto de
execução fiscal e se encontrava garantido por fiança bancária. No entanto, considerou
perfeitamente cabível a inclusão de devedores nesse tipo de cadastro antes de a dívida
ser garantida, inclusive com a identificação completa do nome do devedor e dos
valores devidos: No pertinente à alegada inconstitucionalidade e ilegalidade dos dispositivos legais que autorizaram a inscrição dos devedores tributários em cadastro de proteção ao crédito, notadamente em relação aos arts. 3º, III, do Decreto Estadual n. 6.583/05 e 1º da Lei Estadual n. 16.076/07, cumpre fazer algumas observações. O Código Tributário Nacional, em seu artigo 198, § 3º, inciso II, com redação dada pela Lei Complementar n. 104, de 10.1.2001, permite a divulgação de informações relativas a inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública, ao dispor: (...) § 3º Não é vedada a divulgação de informações relativas a: (...) II – inscrições na Dívida Ativa da Fazenda Pública; (...) O procedimento de inscrição dos devedores de dívida ativa nos cadastros de proteção ao crédito também encontra disposição expressa no Código Tributário do Estado de Goiás (Lei n. 11.651, de 26 de dezembro de 1991), que assim dispõe em seu art. 191-A (...): Art. 191-A. O Estado divulgará a relação dos devedores que tenham crédito tributário inscrito em dívida ativa, com menção dos valores devidos. Parágrafo único. A legislação tributária estabelecerá os critérios para exclusão dos créditos tributários cuja exigibilidade esteja suspensa, especialmente em razão de parcelamento, bem como a forma de atualização da relação de devedores a ser mantida, para fins de divulgação. Ademais, como bem ponderou o douto representante do Ministério Público Federal, “a informação sobre a existência de débito fiscal é de domínio público, franqueável à sociedade (setores comerciais e consumidores em geral, e não só à administração pública, ante as relações massificadas de crédito. Inclusive, como já deliberou o STF, a existência de bancos de dados pessoais é realidade reconhecida pela própria Constituição da República, em seu artigo 5º, in fine (ADI 1790 MC/DF, relator Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 23.4.98).
Conforme o STJ, portanto, não há óbice à divulgação, pela Fazenda Pública,
dos nomes dos sujeitos passivos com os respectivos montantes devidos inscritos em
dívida ativa, independentemente da cobrança mediante execução fiscal. Neste julgado
o STJ apresenta argumentação mais robusta. Em primeiro lugar, demonstra que o art.
198 do CTN expressamente autoriza a divulgação desse tipo de informação, assim
como o Código Tributário do Estado de Goiás. Ainda realiza interpretação
81
sistemática, alegando que a Constituição reconhece a realidade de bancos de dados
pessoais, cita precedente do STF favorável e, finalmente, articula uma espécie de
argumento histórico, defendendo que a informação sobre a existência de débito fiscal
é de domínio público ante as relações massificadas de crédito. A despeito disso, o STJ
não enfrenta, por exemplo, a Portaria RFB 2.344/2011, que veda a divulgação de
valores inscritos em dívida ativa. Ou seja, a Corte, embora apresente fundamentação
mais robusta, oculta a indeterminação do ato de aplicação, deixando de considerar
explicitamente os argumentos e instrumentos normativos contrários à sua posição,
especialmente a Portaria 2.344/2011.113 114
Em outra oportunidade, a Segunda Turma, por unanimidade, negou
provimento a recurso interposto pela Fazenda Nacional, que pretendia impossibilitar a
extração de fotocópia, por um terceiro, de processos administrativos fiscais em que
era parte outro contribuinte. Embora o STJ, nesse caso, não tenha contribuído para a
definição do sigilo fiscal, limitando-se a repetir afirmações genéricas como “é vedada
a divulgação por parte da Fazenda Pública (...) de informação obtida em razão do
ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo...”, houve uma
sinalização relevante: Com efeito, não verifico, no contexto apresentado nos autos, ofensa a essa disposição. Pelo delineamento fático consignado no acórdão recorrido, foi autorizada, na espécie, a reprodução de processos administrativos relacionados à utilização de área pública, documentos que, de regra, devem ser, de fato, de conhecimento de todos. Por outro lado, foi expressamente ressalvado, tal qual determina o art. 198 do CTN, que qualquer informação contida nesses documentos que dissesse respeito à situação econômica ou financeira da empresa requerente fosse excluída do pedido veiculado no writ. A toda evidência, a determinação contida no aresto impugnado não equivale à permissão de conhecimento de informações objeto de sigilo bancário e fiscal.
A mensagem que o STJ transmite é a de que sempre que a publicidade puder
ser garantida, assim deve ocorrer. A possibilidade de que existam documentos ou
informações sigilosos misturados a outros documentos e informações que devem ser
113 No mesmo sentido é o acórdão proferido no RMS n. 31859/GO, com argumentação bastante similar. 114 Na pesquisa de jurisprudência realizada de acordo com os critérios acima descritos, um dos resultados é o RMS 800/GO. No acórdão proferido nesse processo, em 1991, a Primeira Turma decidiu que “Não se admite, na forma da lei, a qualquer pretexto, a divulgação pública da situação econômica financeira dos sujeitos passivos em relação a Fazenda Pública. Tal ato, cometido pelo Poder público, tem conotação execrante ou de descrédito, não admitido pela lei”. Àquela época, o STJ ainda afirmou que “o sigilo fiscal é absoluto”. Ocorre que tal decisão foi proferida há mais de vinte anos, em 1991, antes da modificação do art. 198 pela Lei Complementar 104, de 2001, que autorizou, no § 3º, II, a divulgação de informações sobre inscrição em dívida ativa.
82
públicos não pode implicar a proteção dos dados integralmente, como se tivessem
idêntica natureza e não merecessem tratamento diferenciado115.
4.7. Avaliação dos resultados obtidos com a análise argumentativa:
arbitrariedade, “justiça opinativa” e ocultação da indeterminação dos atos de
aplicação do sigilo fiscal
Como já visto, o processo de concretização da norma do sigilo fiscal é
marcado por várias zonas de autarquia. Em primeiro lugar, o principal ato
interpretativo da Receita Federal acerca do tema, o Manual do Sigilo Fiscal, não é
disponibilizado ao público, o que impossibilita conhecer a interpretação oficial do
principal órgão da Administração Tributária.
Além disso, as decisões e interpretações de órgãos ligados à Administração
Tributária federal, geralmente, limitam-se a citar o art. 198 para sustentar suas
posições, como se houvesse inequívoca correspondência entre suas conclusões e o
texto legal citado. Raramente identifica-se esforço por parte desses órgãos no sentido
de justificar suas posições, de modo racional, fazendo-se entender por seus
interlocutores. Esse comportamento oculta a indeterminação dos atos de aplicação,
considerando o “conceito” de sigilo fiscal defendido pelas autoridades fiscais como o
único plausível e impossibilitando o desenvolvimento de um debate público
informado acerca do tema. Ressalve-se que há sérias dúvidas se é possível falar em
um “conceito” naturalizado, porque nem sequer se identificou um conceito geral e
abstrato que tivesse sido utilizado em todos os atos analisados. Não há uma
racionalidade lógico-formal, que procura deduzir de proposições gerais e abstratas,
soluções para casos concretos. Prova disso é que existem várias “decisões” e práticas
institucionais contraditórias entre si.
Ademais, nas poucas vezes em que as autoridades procuraram desenvolver
algum tipo de argumentação que não fosse restrita à citação de dispositivos legais,
fizeram-no de modo temerário, sem se preocupar em conduzir o leitor através das
razões que os levaram a decidir daquele modo. É o caso da frágil “ponderação” entre
115 Nesse sentido também determinar o art. 7º, § 2º, da Lei de Acesso à Informação (12.527/2011): “§ 2o Quando não for autorizado acesso integral à informação por ser ela parcialmente sigilosa, é assegurado o acesso à parte não sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo”..
83
os “princípios” da transparência e do sigilo fiscal, realizada em uma das respostas aos
pedidos de informação.
Além disso, nos trechos ou incisos nos quais o texto do art. 198 é
consideravelmente mais preciso, algumas autoridades criam restrições inexistentes na
lei, limitando-se a afirmar que aquilo que decidiram é o que melhor atende aos
princípios norteadores do ordenamento ou à finalidade da norma interpretada. É o
caso da publicidade de informações sobre débitos inscritos na Dívida Ativa e sobre
parcelamentos tributários, aparentemente permitida pelo art. 198 do CTN, porém
interpretada com temperamentos por certas autoridades. Ou seja, a argumentação
baseada simplesmente na citação de dispositivos legais é utilizada para sustentar até
mesmo posições aparentemente contrárias à respectiva norma geral e abstrata.
Tendo em vista a utilização de princípios em alguns atos de aplicação e a
tomada de posições que aparentemente contradizem o texto do art. 198 do CTN, resta
a impressão de que algumas autoridades utilizam elementos externos ao direito para
reforçar as posições que acreditam ser “corretas. Nesses casos, ao contrário do que
geralmente se diz a respeito da atividade interpretativa de órgãos fiscais (no sentido
de que ela se limitaria a “aplicar a lei sem valoração pessoal”116), parece que essas
autoridades recorrem a algum tipo de valor moral ou político externo para
desconsiderar o texto do art. 198 com o objetivo de fazer prevalecer sua visão pessoal.
Sem fazer nenhum juízo de valor a respeito da correção da importação desses
elementos externos, o fato é que, além de dissonar em relação ao “senso comum” a
respeito do que deveria ser a interpretação praticada por órgãos fiscais, não há
preocupação alguma em apresentar argumentos mais robustos e sistematizados que
justifiquem a utilização desses elementos externos para desconsiderar o texto do art.
198.
Não bastasse isso, como se pôde notar, há evidentes contradições entre as
posições defendidas pelos órgãos da Administração Tributária federal. Essas
contradições são de três tipos.
116 Faz parte do senso comum dos profissionais do direito tributário a noção de que os servidores fiscais “aplicam a lei de ofício” (esta expressão foi popularizada por Seabra Fagundes. Ver: SEABRA FAGUNDES, Miguel. O Controle do atos administrativos pelo poder judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1957). Ou seja, como os tributos são previstos por leis que procuram atender ao chamado princípio da tipicidade cerrada, não há margem para interpretação. A função dos servidores fiscais, nesse passo, seria simplesmente subsumir casos concretos em regras gerais e abstratas, sem nenhuma valoração pessoal (Para um aprofundamento sobre a tipicidade tributária, ver: XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: RT, 1978).
84
A primeira ocorre entre órgãos distintos da Administração Tributária federal,
em relação ao mesmo tipo de informação. É o que se dá, por exemplo, no caso em que
a PGFN defende a ampla publicidade de informações relativas a parcelamentos
tributários, enquanto o Manual do Sigilo fiscal afirma que esses dados não podem ser
revelados indiscriminadamente, divulgando-se valores ou outros detalhes da situação
financeira de sujeitos passivos.
A segunda verifica-se entre entes federativos distintos, sobre a mesma
informação. É o caso, por exemplo, das decisões de primeira instância, que são
publicadas pelos Estados de São Paulo, Santa Catarina e Bahia, sendo mantidas em
sigilo na esfera federal.
A terceira revela posições divergentes defendidas pelo mesmo órgão em
momentos diferentes. É o caso, por exemplo, das soluções de consulta. Em resposta a
pedido de acesso a informação, a Receita Federal afirma que apenas as ementas
devem ser publicadas, enquanto, contrariamente, adotou recente posição de que as
soluções de consulta com efeitos vinculantes terão seu inteiro teor publicado,
suprimindo-se apenas dados específicos que permitam identificar os sujeitos passivos.
Do exposto até aqui, depreende-se que as soluções e interpretações dos órgãos
da Administração Tributária foram naturalizadas ao longo do tempo, como se fossem
os únicos entendimentos cabíveis. Quanto aos atos de aplicação analisados,
pouquíssimos têm o cuidado de enfrentar interpretações ou práticas institucionais
divergentes. O exame detido do processo de concretização demonstrou uma série de
zonas de autarquia, formadas por contradições, incoerências, falta de fundamentação e
até sigilo de posições oficiais.
A naturalização de conceitos parece se refletir no silêncio do CARF e do STF
acerca do sigilo fiscal. O escasso debate público e a ausência de manifestações por
esses dois importantes tribunais não permitem concluir que se está diante de um
consenso social a respeito dos limites do sigilo fiscal. Parece mais razoável a
conclusão no sentido de que esses limites foram naturalizados de tal maneira na
cultura jurídica pátria que poucos atores refletem sobre eles. Afinal, como visto, tais
contornos estão longe de ser claros, precisos e coerentes.
Com relação ao STJ, no âmbito daquela instituição o debate parece ser um
pouco mais racional. Embora não seja possível apontar a predominância de um
modelo de racionalidade jurídica específico nas decisões daquela Corte, notou-se
preocupação maior em demonstrar as razões que justificam as decisões tomadas. Em
85
geral, as decisões baseiam-se em uma espécie de interpretação sistemática, cotejando-
se o art. 198 do CTN com outras regras do ordenamento, porém não necessariamente
são enfrentados todos os dispositivos que envolvem o tema do sigilo e da
transparência de informações. Novamente resta a impressão de que nos acórdãos são
citados dispositivos e realizadas manobras interpretativas apenas para sustentar
opiniões pessoais preexistentes.
Embora o debate no STJ possa ser considerado mais racional, uma conclusão
vale para todos os atos de aplicação analisados, produzidos por diversas instituições:
os órgãos competentes para tomar decisões em matéria tributária no Brasil, sejam eles
integrantes da estrutura do Judiciário ou do Executivo, seguem um modelo que
Rodriguez chama de “justiça opinativa”.117
Uma decisão opinativa não é capaz de se apresentar como sendo a melhor
solução para o caso concreto à luz do direito posto. Nota-se que os atos de aplicação
averiguados, não obstante sejam fundamentados em algum dispositivo legal,
expressam, na maior parte das vezes, opiniões pessoais isoladas. Entretanto, em um
Estado de Direito, é preciso que a opinião pessoal não seja pensada como um fato
isolado. “Ela se relaciona e disputa o espaço com outros pontos de vista.”118 Ao
interagir com as demais posições, especialmente nos tribunais, elas deveriam ser
contrapostas explicitamente, sendo possível entender por que uma deve prevalecer em
detrimento das demais.
A argumentação utilizada nos atos analisados está ligada, essencialmente, à
autoridade da lei, mesmo quando as soluções oferecidas aparentemente contradizem o
texto dos dispositivos citados. No entanto, a argumentação racional deve estar
preocupada com sua generalização possível em casos futuros e com a formação de
padrões decisórios: Por isso mesmo, a autoridade encara como seu dever individual, a despeito da assinatura que apõe à decisão, falar também em nome da instituição. Claro, é de um indivíduo que estamos tratando sempre, com seus limites e suas idiossincrasias. É ele quem vai reconstruir o sistema. No entanto, em argumentações racionais, esse indivíduo precisa atuar de forma descentrada e justificar seus argumentos de maneira impessoal. O elemento que descentra a autoridade é, justamente, o conjunto de ônus argumentativos com os quais ela deve arcar para proferir uma boa decisão, ou seja, o modelo de racionalidade judicial seguido por ela. No caso de argumentações por autoridade, a formação de padrões decisórios se dá a partir das razões subjetivas para decidir.119
117 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como Decidem as Cortes. 118 Idem, p. 74. 119 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 78.
86
Seria necessário, portanto, que os atos de aplicação acima estudados levassem
em conta as posições da doutrina, dos demais órgãos competentes e dos outros entes
federativos para justificar suas posições, e não simplesmente naturalizar as opiniões
isoladas do agente competente como se a lei fosse taxativa e não admitisse outras
interpretações. Por exemplo, a Receita Federal não poderia negar acesso a soluções de
consulta sem considerar que ela mesma optou por disponibilizar as soluções com
efeitos vinculantes. Também não deveria negar acesso a decisões administrativas de
primeira instância se a matéria nelas discutida é essencialmente a mesma debatida nas
decisões de segunda instância, e se, ademais, outros entes federativos as
disponibilizam. Uma decisão que se pretenda racional e legítima, não fundada
exclusivamente na competência da autoridade encarregada de tomar a decisão,
precisaria enfrentar essas incoerências e apresentar justificativas que explicassem os
tratamentos diferenciados.
Outro ponto que merece destaque é o de que não há, no Brasil, um sistema de
precedentes organizado. “A citação de casos, quando ocorre, não busca reconstruir
um padrão de argumentação relevante para o caso a ser decidido. Os casos são citados
em forma de acúmulo para reforçar a autoridade de quem está proferindo a
sentença.”120 É o que ocorreu, por exemplo, no RMS n. 33381/GO, acima verificado,
em que o STJ decidiu ser cabível a inclusão de devedores em cadastros de maus
pagadores, citando decisão isolada do STF apenas para reforçar sua posição, sem se
preocupar em reconstruir a fundamentação daquela decisão ou de enfrentar eventuais
argumentos contrários.
Quais são as vantagens e as desvantagens de nosso modelo “opinativo”? “Há
razões para criticá-lo e propor mudanças? Há um padrão ideal de jurisdição que possa
orientar eventual reforma?”121 São perguntas difíceis, mas é razoável dizer, diante de
tudo o que foi discutido até aqui, que a justiça opinativa é pouco previsível e
transparente, subtraindo força do Estado de Direito. Suas razões para decidir não são
claras nem explicitadas pela instituição que toma a decisão. Quem quiser descobrir
por que um órgão jurisdicional qualquer tomou esta ou aquela decisão, especialmente
em casos controversos, dificilmente chegará a fundamentos coerentes. Também se
pode perguntar por que a transparência é importante? Rodriguez sugere uma resposta: 120 Idem, p. 107. 121 Ibidem, p. 108.
87
A demanda por transparência está ligada à própria ideia de Estado de Direito: não deve haver decisão de autoridade alguma que não seja racionalmente motivada. Ao expor os fundamentos da decisão, os órgãos jurisdicionais permitem que as partes e a esfera pública como um todo possam controlar sua racionalidade à luz das normas positivas de um determinado ordenamento jurídico.122
Neste ponto, a transparência dos critérios utilizados para decidir casos
concretos nada mais é do que um instrumento para incrementar a previsibilidade,
característica essencial do Estado de Direito.
“No registro de um modelo centrado na fundamentação das decisões, a
participação da sociedade se dá pela via da fundamentação mesma.”123 Diante de uma
decisão em concreto, trata-se de saber se o órgão competente levou em consideração
todos os argumentos relevantes que se acham em debate naquele momento na esfera
pública e, portanto, que podem vir a afetar a decisão final. “A decisão deve ser
fundamentada de forma complexa e rica, sendo capaz de examinar, acatar ou refutar a
maior quantidade possível de interesses e argumentos”.124
Outro ponto importante é o da segurança jurídica. No modelo da justiça
opinativa, como se dá pouca relevância à fundamentação das decisões, a estabilidade
dos padrões decisórios depende mais da pessoa dos juízes envolvidos nos julgamentos
do que da racionalidade da argumentação: Para decidir em desconformidade ao padrão, não há ônus argumentativo algum, ou seja, o juiz não precisa vencer os argumentos que fundamentam o resultado, pois eles são irrelevantes. Um modelo de segurança jurídica que se assente não nas pessoas, mas nos fundamentos da decisão, evidentemente despersonaliza o processo decisório. Adotado um determinado argumento como fundamento da decisão, pouco importará a pessoa do juiz. Para vencê-lo, será necessário argumentar de maneira racional para convencer os demais juízes do tribunal de sua incorreção para o caso.125
Portanto, os órgãos competentes para julgar questões tributárias no Brasil,
pelo menos em relação à norma do sigilo fiscal, são pouco transparentes na sua forma
de decidir. Isto é, suas decisões e interpretações são permeadas por zonas de
autarquia, o que permite às autoridades tomar decisões com base em opiniões pessoais
isoladas, utilizando a lei para naturalizar soluções como se não existissem outras
interpretações plausíveis. Essas zonas de autarquia funcionam como canos de escape,
122 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 109. 123 Idem, p. 109. 124 Ibidem, p. 109. 125 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 110.
88
possibilitando que os órgãos competentes tomem decisões unilaterais sem efetivo
controle social e dificultando o desenvolvimento de um debate público informado.
Contudo, além disso, demonstrou-se, também, no tema específico do sigilo
fiscal, que as decisões tomadas acabam por contribuir para a criação de outras zonas
de autarquia, externas ao processo de concretização da norma do sigilo. A maior parte
das autoridades competentes interpreta o sigilo a ponto de inviabilizar o acesso a atos
de aplicação de outras normas, sob o argumento de que isso protegeria a privacidade
dos contribuintes. Percebeu-se que estas decisões não conseguem demonstrar o que
exatamente poderia violar a privacidade, limitando-se a citar disposições legais para
justificar decisões aparentemente opinativas, que não procuram enfrentar com
detalhamento a questão proposta.
Se a fundamentação das decisões é um espaço de lutas e participação social,
vedar o acesso às justificações formuladas pelas autoridades competentes para
solucionar conflitos tributários é inibir a participação da sociedade na gestão dessas
questões. Cria-se uma verdadeira rota de fuga para os poderes constituídos decidirem
de modo unilateral, uma válvula de escape para a tomada de decisões sem a
necessidade de levar em consideração as diversas opiniões que existem a respeito de
cada tema decidido.
É evidente, também, que pode haver críticas aos critérios de análise utilizados
nesta pesquisa empírica. O problema da “falsa justificação”, como o próprio
Rodriguez ressalva, carece de maior concretude126. Mas os tipos ideais de Max Weber
a respeito dos sistemas jurídicos anglo-saxão e alemão podem auxiliar na
compreensão do que ocorre com o modelo de justificação brasileiro.
Sabe-se que Weber teve dificuldades para classificar o sistema anglo-saxão,
chegando a afirmar que a Inglaterra se desenvolveu “apesar” de seu direito, cujo
padrão argumentativo não era sistemático. Isso porque não havia um conjunto de
códigos organizados e de normas gerais claras para regular os problemas sociais. A
previsibilidade, no entanto, era construída mediante a formação de uma tradição a
partir das razões de decidir dos casos julgados. E Weber, em sua última análise a
respeito do direito britânico, reconheceu que apesar de não possuir um sistema lógico-
126 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 22.
89
formal, a Inglaterra conseguia produzir calculabilidade e previsibilidade por meio da
reconstrução argumentativa de casos paradigmáticos que constituíam uma tradição.127
Quanto aos países de tradição jurídica romano-germânica, Weber identificava
em seu direito uma racionalidade lógico-formal. David Trubek explica: O que Weber quer dizer com “racionalidade lógico-formal?” E por que ela conduz a regras gerais, universalmente aplicáveis? O pensamento jurídico é racional, pois remete a alguma justificativa que transcende o caso concreto e se baseia em regras existentes e claramente definidas; formal, pois os critérios de decisão são intrínsecos ao sistema de direito; e lógico, pois as regras e os princípios são deliberadamente construídos por formas especializadas de pensamento jurídico, baseados em uma classificação altamente lógica; também porque as decisões de casos específicos são tomadas por meio de processos lógico-dedutivos especializados que partem de princípios ou regras previamente estabelecidos. Desde que, em um sistema como o descrito acima, as decisões jurídicas possam ser baseadas apenas em princípios legais previamente estabelecidos; e desde que o sistema exija que tais princípios sejam cuidadosamente elaborados, normalmente, pela criação de códigos, as decisões jurídicas serão baseadas em regras e tais regras serão gerais e derivadas de fontes jurídicas autônomas.128
Pôde-se constatar, a partir da análise argumentativa realizada e adotando-se o
paradigma weberiano como ponto de referência, que o direito brasileiro é uma
variante tanto em relação ao direito anglo-saxão quanto em relação ao direito alemão.
“Aqui, a presença de códigos, normas gerais, profissionais jurídicos especializados e
universidades dedicadas ao direito não produziu um pensamento jurídico conceitual e
sistemático, tampouco uma formalização a partir da argumentação que justifica a
decisão de casos exemplares”129.
Como visto, a argumentação jurídica sistemática no Brasil ocupa um segundo
plano; é de importância secundária o funcionamento de nossas instituições para a
legitimação de nosso direito. As posições defendidas pelos atores institucionais são
contraditórias, ao menos no que se refere ao sigilo fiscal, e se está longe de uma
racionalidade lógico-formal, pois, como restou demonstrado, não há um conceito
geral e abstrato de sigilo fiscal. Tampouco há preocupação de se reconstruir a
argumentação de casos paradigmáticos que tratem do assunto.
Vige a “justiça opinativa”.
127 Para uma análise aprofundada sobre a visão de Weber a respeito do direito, ver: TRUBEK, David. Max Weber sobre Direito e Ascensão do Capitalismo. Revista Direito GV, v. 3, 2007, pp. 151-186. 128 Idem, p. 160-161. 129 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes, p. 23.
90
4.8. Falas individuais de atores que participaram de debates promovidos pelo
NEF: confirmando a falta de coerência a respeito do “conceito” de sigilo fiscal
A falta de clareza generalizada a respeito dos limites do sigilo fiscal é
reforçada pela fala de interlocutores com quem o NEF travou contato130 durante suas
pesquisas. Um exemplo é a seguinte fala, de um ex-Ministro de Estado, que
demonstra bem o conflito entre acesso à informação e direito à privacidade acerca da
temática do sigilo fiscal: Na discussão do art. 198 (...), quando discute a questão do auto de infração, como sendo um evento, um ato da gestão pública e, portanto, passível de ser divulgado, como um ato da gestão, esse ato também tem outro lado, que é o lado do sujeito passivo, da pessoa jurídica ou física, que está sujeita àquele ato. E, nesse sentido, aquela informação é privada. Ela é de interesse daquela pessoa (...), e isso também é preservado pelo nosso sistema jurídico. Então aí nós temos, em tese, uma contradição. Se, de um lado, o mesmo fato, o mesmo evento, pode ser observado como um ato público, portanto sujeito à Lei de Transparência, de outro lado ele é um ato privado, ele é de interesse de uma pessoa física ou jurídica privada e, portanto, com interesse a ser preservado. Então aí nós temos uma contradição.131 (...) Nós temos aqui um desafio enorme da questão do sigilo fiscal, e penso que ele é realmente um atravancador da transparência e da capacidade da sociedade conhecer o que ocorre no campo da tributação.132
Outra fala interessante, de um auditor fiscal do Município de São Paulo, que
revela uma série de problemas com a delimitação do sigilo fiscal e o incômodo de
servidores públicos a respeito do assunto, é a seguinte: Sou auditor fiscal há 14 anos e minha acepção do sigilo fiscal (...) é da atividade econômica do contribuinte. É bem o que está no art. 198 do CTN, “situação econômica ou financeira do sujeito passivo e natureza e estado de seus negócios e atividades”. A gente, como auditor fiscal, tem muita preocupação de, de repente, até eu como julgador, de fazer um relatório detalhado do processo, de tascar lá uma informação econômica que possa (...) que tem aquela ligação imbricada com tributário, que vai chegar na base de cálculo, e consequentemente no lançamento. Então é
130 Além dos pesquisadores do NEF, participaram das reuniões integrantes da Comissão de Gestão Fazendária (COGEF) representantes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), membros do Grupo de Gestores das Finanças Estaduais (GEFIN), advogados especializados em matéria tributária, funcionários dos Fiscos e representantes de Organizações Não Governamentais, como o ETCO, o Transparência Brasil, o Tax Justice e o instituto ETHOS. Tais reuniões foram filmadas e os arquivos estão armazenados na biblioteca do NEF (Rua Itapeva, n. 26 − Conjunto 1.701 − Bela Vista − São Paulo − SP − CEP 01332-000). 131 Fala entre o minuto 7 e o minuto 9, do Vídeo 2 (“Análise dos Convidados”), no 8º Encontro com Estados-Piloto da Comissão de Gestão-Fazendária para elaboração do Índice de Transparência e Cidadania Fiscal, na Direito GV, em 13 e 14 de agosto de 2012. 132 Fala nos minutos 10 e 11, do Vídeo 2 (“Análise dos Convidados”), no 8º Encontro com Estados-Piloto da Comissão de Gestão-Fazendária para elaboração do Índice de Transparência e Cidadania Fiscal, na Direito GV, em 13 e 14 de agosto de 2012.
91
estar preocupado em não colocar ali uma situação econômica do contribuinte que possa, enfim, prejudicá-lo perante seus concorrentes no mercado, alguma informação que talvez ele não devesse revelar nesse aspecto. (...) [Algum outro participante pergunta: “Por exemplo?”] Por exemplo, então, exatamente, a gente não tem... dados detalhados da operação fiscal, da contabilidade que temos da empresa; o auditor fiscal vai verificar a contabilidade, contratos, aqueles números vão levar, no caso da tributação que eu vivo, que é do ISS principalmente, nesse aspecto, vão levar à receita, à base de cálculo, que vão ensejar a materialidade, o quanto da materialidade pode ser tributado. (...) Há uma preocupação de talvez não revelar detalhes, minúcias da operação. Assim, você coloca muito bem “exemplos”. A gente tem que sempre dar exemplo, mas a gente mesmo tem insegurança quanto a esses exemplos. Até onde estou, simplesmente, delineando a condição da operação fiscal ou estou indo além e estou falando demais sobre a característica econômica e financeira específica do contribuinte? A gente tem essa dúvida também. Nós não temos esses limites claros. Então a gente peca por excesso, para evitar uma responsabilização.133
Um procurador da Fazenda Nacional também reconhece que não há limites
claros sobre o que é sigiloso. Argumenta que, em matéria tributária, o sigilo é a regra
e a transparência é a exceção, ao contrário do que dispõe a Lei de Acesso à
Informação em seu artigo 3º, I. Mas defende a necessidade de alteração da
interpretação do artigo 198 do CTN: (...) Qual a dificuldade de você revelar uma autuação? É porque você consegue fazer um raciocínio e chegar nos dados econômicos e financeiros do contribuinte autuado. Esse é o grande receio da PGFN, inclusive. É que faça: “Qual é a base de cálculo? Qual é a alíquota?”, e com esse raciocínio vá se descobrindo dados econômico-financeiros das empresas. [Alguém faz comentário inaudível.] A dificuldade é saber até que ponto você vai revelar estratégias empresariais de preço, de negócio, quanto ela paga por determinada mercadoria, por exemplo. Esse é o temor, por exemplo da PGFN, e que ela tem se fiado na interpretação conservadora, até agora, dos tribunais, que tem sempre garantido, por exemplo, habeas corpus. (...) Então, como é que a gente agora vai alterar uma conduta que é respaldada pelo Judiciário? Então, independente de uma leitura acadêmica, ou científica ou teórica, o importante é saber o que os tribunais estão decidindo. Porque aí o risco é maior para quem diverge. (...) Aliás, nesse ponto, se fala muito que a Lei de Acesso à Informação inverteu a lógica. A regra é a publicidade, e o sigilo é a exceção. Isso só vale para determinadas informações. Não para matéria fiscal. Para matéria fiscal, a lógica continua sendo a mesma: a regra é o sigilo, a exceção é a publicidade dos dados fiscais. [Alguém faz comentário inaudível.] Parece que faço o discurso conservador, mas internamente sou o mais liberal. Eu quebro o pau na Procuradoria dizendo que há um fetichismo na interpretação do sigilo. Tornaram o sigilo algo inalcançável, quando, se você procurar em pareceres da Procuradoria, ela não se dá ao trabalho de dizer: “Isso está protegido por sigilo, isso não está”. Ela não enfrenta o caso concreto. Ela fala genericamente e aí cita o sigilo para qualquer coisa. Eu sou um defensor intransigente da mudança da interpretação do 198, eu acho que 198 é importantíssimo, ele só precisa ser melhor interpretado. (...) Esse é o
133 Fala entre o minuto 28 e o 41, do Vídeo 2 (“Análise dos Convidados”), no 8º Encontro com Estados-Piloto da Comissão de Gestão-Fazendária para elaboração do Índice de Transparência e Cidadania Fiscal, na Direito GV, em 13 e 14 de agosto de 2012.
92
meu discurso lá dentro. Nós estamos protegendo aqui o sonegador ou o Estado? E há um certo temor reverencial na Administração Pública: “Ah, mas eu posso ser processado pelo Ministério Público”. Essa é uma falácia absurda, porque o próprio Ministério Público quer acesso amplo aos dados que a gente alega sigilo. Como é que o Ministério Público pede acesso, a gente nega, e aí, quando a gente divulga, ele vai processar? Não faz sentido! (...) Se nós tivéssemos uma decisão judicial que nos desse conforto quanto a que isso não configuraria sigilo, que a gente tenha o inverso, certamente nós poderíamos fornecer. (...)134
Um auditor fiscal do Estado de São Paulo também manifesta entendimento de
que é necessário dar nova interpretação ao artigo 198 do CTN e também revela
desconforto em relação à questão do sigilo fiscal: (...) é imprescindível que haja (...) uma interpretação ou uma alteração do artigo 198 do CTN, que, para mim, ele está no sistema ainda. Moralmente, estou convencido de que você tem razão, mas juridicamente, não [refere-se à fala do Professor Eurico Marcos Diniz de Santi, que, poucos minutos antes, havia defendido a publicidade de autos de infração, consultas fiscais e, de modo geral, maior transparência da Administração Fiscal]. (...) Não se fala em sigilo fiscal nem em sigilo bancário na Constituição, mas se fala em sigilo de dados, em que cabe tudo. (...) Eu gostaria muito, como servidor, que eu tivesse um amparo no direito positivo para poder ter liberdade de agir (...) mas isso não é simples dentro da Administração.135
O diretor jurídico de uma grande multinacional atuante no ramo de alimentos
e bebidas faz um contraponto interessante, revelando, talvez, o principal fundamento
que justifique o sigilo fiscal: (...) Às empresas sérias, aquelas que recolhem tributo, também interessa ter um ambiente o mais transparente possível, para colocar todos os concorrentes no mesmo plano. Obviamente, para fazer prevalecer numa concorrência a melhor estratégia de negócio, o produto mais inovador, a inovação em si. Mas o acesso à informação ou essa transparência não pode chegar ao ponto de prejudicar justamente a inovação. De prejudicar, justamente, a capacidade de inovar da empresa e de proteger suas informações que são determinantes de sua estratégia de negócio. Hoje em dia, os dados que a Receita tem são tão minuciosos, que alguém, com os dados que possui, que podem vir num auto de infração, pode ter acesso a qualquer formulação de um novo produto inovador da empresa. Os arquivos magnéticos que hoje contêm tantos dados e, para citar um exemplo, o arquivo de IN 86, ele traz, de maneira pormenorizada, cada um dos ingredientes que compõe cada um dos produtos, sua proporção na formulação, a fórmula do produto. O acesso a esse tipo de informação é contrário à livre concorrência. Permite, na verdade, romper ou violar o direito à propriedade intelectual das empresas, que aplicam recursos altíssimos para inovar. E permite também acesso a suas estratégias
134 Fala entre o minuto 41 e 1h, do Vídeo 2 (“Análise dos Convidados”), no 8º Encontro com Estados-Piloto da Comissão de Gestão-Fazendária para elaboração do Índice de Transparência e Cidadania Fiscal, na Direito GV, em 13 e 14 de agosto de 2012. 135 Fala entre 2h e 2h10min, do Vídeo 2 (“Análise dos Convidados”), no 8º Encontro com Estados-Piloto da Comissão de Gestão-Fazendária para elaboração do Índice de Transparência e Cidadania Fiscal, na Direito GV, em 13 e 14 de agosto de 2012.
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inovadoras, igualmente, que caracterizam seu sucesso. E essas informações estão em muitos dos documentos... (...).136
A maior parte dos servidores públicos que participaram de reuniões
promovidas pelo NEF/Direito GV afirmam ser favoráveis à flexibilização do conceito
de sigilo fiscal. Contudo, dizem eles, na prática, sentem que pouco podem fazer, pois
se fornecerem acesso a dados que podem vir a ser considerados sigilosos, correm o
risco de demissão e, até mesmo, de responsabilização criminal. E, de fato, isso é o
que, respectivamente, prescrevem o artigo 6º da Portaria RFB 2.344/2011 e o artigo
325 do Código Penal.137 138 Compreendem-se, portanto, as razões pelas quais os
servidores evitam fornecer qualquer tipo de informação.
Mas essa realidade não justifica o sigilo de atos de concretização das normas
tributárias. Talvez em razão do receio de eventual penalização por parte de órgãos
fiscalizadores, as autoridades competentes para lidar com a norma do sigilo fiscal
acabam por superdimensionar os seus limites. Na interpretação veiculada nos
documentos acima analisados, bem como nas falas ilustrativas de diversos atores
relevantes acima colacionadas, percebe-se a ocorrência de patente erro lógico
qualificado pela falácia lógica do acidente, também chamada de generalização
absoluta ou dicto simpliciter. Falácias são erros de argumentação, ou, em um sentido
mais estrito, argumentos que dão, enganosamente, a impressão de ser válidos ou
mesmo corretos.
A falácia do acidente consiste em tomar uma afirmação geral como se não
possuísse exceções; em aplicar uma regra geral a um caso particular cujas
circunstâncias “acidentais” tornam a regra inaplicável. Isto é, significa aplicar
136 Fala entre 1h30min e 1h42min, do vídeo 3 (“Painel 2”), do IV Colóquio Internacional do NEF/Direito GV, realizado em 6 e 7 de dezembro de 2012, na sede da Direito GV. 137Art. 6º O servidor que divulgar ou revelar informação protegida por sigilo fiscal, constante de sistemas informatizados, com infração ao disposto no art. 198 da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 ( Código Tributário Nacional ), fica sujeito à penalidade de demissão prevista no art. 132, inciso IX, da Lei n. 8.112, de 1990. 138 Art. 325 − Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena − detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei n. 9.983, de 2000) I − permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; (Incluído pela Lei n. 9.983, de 2000) II − se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei n. 9.983, de 2000) § 2º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: (Incluído pela Lei n. 9.983, de 2000) Pena − reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei n. 9.983, de 2000)
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determinada consequência que, regra geral, vale para a essência de algo, como se
também fosse válida para seus desdobramentos ou propriedades acidentais. Exemplo:
“Exercício físico é bom; logo, todos devem se exercitar”. Embora a regra geral de que
“exercício é bom” seja verdadeira, há certamente circunstâncias especiais em que
alguém não deve se exercitar. Alguém que acaba de passar por uma cirurgia
complicada, por exemplo. Tratar a regra de que “exercício é bom” como se não
possuísse exceção alguma é cometer a falácia do acidente (generalização absoluta). É
muitas vezes cometida no afã de procurar decidir questões morais ou legais
complexas ao aplicar mecanicamente regras gerais simplificadoras.
Como visto anteriormente, é exatamente o que tem sido feito em relação art.
198 do CTN. Eis uma construção argumentativa exemplificativa: Informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades é protegida por sigilo fiscal. Decisões de primeira instância proferidas em processos administrativos fiscais dão pistas sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades. Logo, decisões de primeira instância proferidas em processos administrativos fiscais são protegidas por sigilo fiscal.
A falácia, nesse caso, consiste em assumir que quaisquer documentos que
contenham informações específicas sobre determinado contribuinte não podem ser
divulgados a terceiros. Ocorre que, interpretado dessa maneira, o dispositivo proibiria
a publicação de qualquer decisão administrativa e até mesmo judicial que envolva
matéria tributária. Mesmo decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior
Tribunal de Justiça não poderiam ser divulgadas.
A generalização é tamanha que, mesmo nas hipóteses expressamente
excepcionadas pelos incisos do art. 198, os órgãos da administração tributária federal
procuram impor restrições, como a da impossibilidade de revelar valores e
informações detalhadas sobre parcelamentos, inscrições na Dívida Ativa e
representações fiscais para fins penais.
A Administração Tributária não possui posição consistente sobre o sigilo
fiscal. Os atos normativos e interpretativos por ela expedidos são contraditórios entre
si, pois incorrem em entendimentos aparentemente contrários ao texto do art. 198 do
CTN e procuram abarcar uma gama muito ampla de informações. Desse modo,
ignoram os casos recalcitrantes em que ela mesma publica dados de contribuintes,
como decisões judiciais e administrativas de segunda instância, não apresentando
95
fundamentos que justifiquem a diferenciação entre esses atos recorrentemente
publicados e documentos de natureza similar que mantém sob sigilo.
Por esses motivos, torna-se necessário estabelecer parâmetros que permitam
distinguir com maior clareza informações e documentos que devem ser considerados
sigilosos daqueles que deveriam ser disponibilizados ao público.
96
5. Convite ao debate público: quais devem ser os limites do sigilo fiscal?
Restorative and responsive regulatory theory has evolved into a deliberative, circular theory of democratic accountability, as opposed to a hierarchical theory where the ultimate guardians of the guardians are part of the state (Braithwaite, 2002; Braithwaite & Roche, 2000). This ideal is for guardians of accountability to be organized in a circle where every guardian is holding everyone else in the circle accountable, where each organizational guardian holds itself internally accountable in deliberative circles of conversation and where such circles are widened when accountability fails. Circles of widening circles. Rules remain important under a restorative and responsive model of democratic accountability, but less important than under Dicey’s hierarchical accountability up to a sovereign parliament. Rules are just one of the things that emerge from the circled circles of deliberation. Another is the interpretation of rules − interpretation comes from circles of conversation in which courts might be particularly influential, but where the interpretations that matter mostly do not come down from a court or a canonical papal interpretation of God’s will.139
Foi visto que os atos de aplicação do direito possuem, ainda que
minimamente, conteúdo criativo e que, por isso, torna-se relevante conhecê-los, não
sendo suficiente o acesso a normas gerais e abstratas. O estudo do processo de
concretização da norma do sigilo fiscal deixa claro que, a partir de um mesmo texto
legal, numerosas interpretações podem ser construídas.
Essa análise também demonstrou que a concretização do sigilo fiscal está
repleta de zonas de autarquia, porque baseada em decisões assentadas em justificação
irracional, o que acaba por contribuir para a formação de zonas de autarquia externas,
implicando o sigilo de atos de aplicação de outras normas tributárias, como decisões
de DRJs, autos de infração, soluções de consulta, atos administrativos que concedem
benefícios fiscais e parcelamentos etc.
Neste capítulo, o escopo central é avançar na definição do sigilo fiscal, porém
sem assumir o compromisso de realizar uma interpretação suficientemente robusta e
sistematizada a ponto de construir uma proposta interpretativa definitiva ou um
conceito geral e abstrato do sigilo. Isso demandaria trabalho de maior fôlego, que fica
para outra oportunidade.
Vale ressaltar que o segundo capítulo já representou, em si, uma defesa dessa
publicidade. Apenas se retomam, rapidamente, as conclusões alcançadas no capítulo
139 BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation and Developing Economies. World Development Vol. 34, n. 5, pp. 884-898, 2006. Disponível: <http://regnet.anu.edu.au/sites/default/files/BraithwaiteJ_ResponsiveRegulation.pdf> Acesso em 18/2/2014.
97
dois. Sinteticamente, constatou-se que o ideal político do Estado de Direito é
caracterizado pela possibilidade de evitar o arbítrio, mediante previsibilidade das
consequências jurídicas de condutas adotadas por indivíduos; todos os atos de
aplicação contêm, ainda que minimamente, conteúdo criativo; e o poder tende a fugir
do direito para tomar decisões unilateralmente, sem controle social, mediante a
formação de zonas de autarquia. A partir disso, concluiu-se que cada auto de infração,
decisão proferida em processo administrativo fiscal, solução de consulta
interpretativa, entre outros atos de aplicação, criam um “pouco” de Direito “novo”; e
que a fundamentação dessas “decisões” deve ser racional e permitir a reconstrução,
por seus interlocutores, dos raciocínios dogmáticos que pautaram a tomada de
decisão, assegurando algum grau de previsibilidade e racionalidade, características
centrais do Estado de Direito.
Esses argumentos, em si, oferecem alguns indícios na direção de que as
decisões jurídicas, em sentido amplo, devem, em geral, ser públicas. Quanto menor a
margem para decisões arbitrárias, no sentido de que elas sejam previsíveis e
conformadas pelo sistema jurídico, maior sua adequação ao ideal político do Estado
de Direito. Assim, considerando que a publicidade das decisões tende a aumentar a
calculabilidade e a afastar o arbítrio, procurar-se-á evidenciar com mais detalhes que
o sigilo de decisões e informações produzidas por instituições públicas tende a criar
zonas de autarquia, tornando o ideal político do Estado de Direito menos efetivo.
Para desenvolver a ideia de que a publicidade pode incrementar a segurança
jurídica e reduzir a indeterminação no momento da aplicação das normas tributárias,
será utilizado, principalmente, o conceito de shared sensibilities, de John Braithwaite,
Distinguished Professor e fundador da Regulatory Institutions Network na Australian
National University. Suas teses orientaram reformas realizadas na Administração
Fiscal australiana na década de 2000, as quais se tornaram referência mundial,
seguidas por Reino Unido, Nova Zelândia, Pensilvânia (EUA) e Indonésia.
Alguns poderiam argumentar que a privacidade também é um “direito”
relevante, que poderia, em certos casos, se sobrepor à publicidade. Por esse motivo,
levando em consideração o texto do art. 198 do CTN, as decisões e práticas
institucionais já analisadas, bem como o referido argumento de oposição, o intuito
será demonstrar que a publicidade dos atos de aplicação das normas tributárias pode
ser conciliada com a privacidade, aumentando-se a conformidade ao Estado de
Direito, sem prejuízo àquele direito.
98
Por óbvio, a argumentação aqui expendida não é dotada de valor normativo. O
objetivo é tão somente apresentar uma visão de que a interpretação atualmente
predominante poderia ser diferente.140 É claro que se tem o intuito de defender nossa
escolha como sendo a mais adequada, mas admite-se que ela não passa de uma
escolha política entre várias outras possíveis. O propósito, portanto, é demonstrar que
é possível publicar a maior parte dos atos de aplicação das normas tributárias sem
incorrer em violação do sigilo e que, ademais, isso fortalece o Estado de Direito.
Em outras palavras, argumenta-se que a transparência pode auxiliar no
controle da indeterminação de decisões tomadas por autoridades fiscais. Essa virtude
moral da previsibilidade e do Estado de Direito, no sentido de minimizar os perigos
da arbitrariedade dando maior liberdade aos indivíduos para realizar suas escolhas e
programar suas vidas, é a finalidade intrínseca do Direito. Em última instância,
argumentar-se-á em favor do próprio Estado de Direito. A previsibilidade não
consiste apenas numa virtude moral. O Estado de Direito é valor inerente para o
direito assim como o gume afiado é qualidade fundamental para uma faca. A faca
pode ser utilizada para o bem ou para o mal, porém só terá utilidade como faca se
tiver alguma capacidade de cortar. Assim como o direito para ser direito precisa ter
alguma capacidade de guiar comportamentos, e é por isso que a conformidade ao
Estado de Direito é socialmente desejável.141
A possibilidade de defender uma interpretação em detrimento de outras no
âmbito da Ciência do Direito é controvertida. Tal opção não implica necessariamente
desnaturação do caráter científico do direito, desde que feita com clareza de
propósitos e explicitação de métodos142; assim, a qualificação como uma pesquisa
sociológica do direito não reduz o potencial crítico deste trabalho. Portanto, fica a
critério do leitor considerar se a pesquisa aqui explicitada funciona como uma crítica
sociológica do direito, pautada pelo ideal político do Estado do Direito, ou como um
140 Kelsen diria que estamos exercendo uma atividade política e não uma interpretação jurídico-científica, a qual deveria se limitar a descrever as interpretações cabíveis sem optar por uma específica. A par do louvável rigor metodológico e do belo amor à “pureza” da Ciência do Direito, não nos parece que essa posição tenha alguma outra justificativa plausível. É evidente que nossa opinião não cria direito, mas, desde que bem fundamentada, ela pode influenciar a produção e a interpretação do direito praticada pelos órgãos competentes. 141 RAZ, Joseph. The autority of Law: essays on law and morality. Oxford: Oxford University Press, 1979. 142 Segundo Kelsen, o cientista do direito deve se limitar a descrever as interpretações admitidas pelos textos legais, sem, contudo, indicar aquela que acredita ser a melhor ou mais adequada. Isso porque a escolha da melhor interpretação seria um ato político, não apreensível por métodos científicos e, portanto, alheio à Ciência do Direito. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito).
99
exercício interpretativo peculiar à própria Ciência Jurídica. De um modo ou de outro,
merece destaque a relevância crítica desta tarefa, conforme leciona Rodriguez: ... é sempre possível criticar as instituições existentes em nome de projetos de juridificação. Também no campo da doutrina é possível cumprir a tarefa crítica pela desnaturalização de conceitos e construções teóricas concebendo propostas alternativas de reconstrução do ordenamento jurídico que apontem para a emancipação da sociedade, ou seja, que ampliem o controle social (...). A doutrina também pode assumir um caráter normativo, propondo soluções novas para problemas jurídicos discutidos na prática, além de novas configurações institucionais e teóricas. A importância em desnaturalizar a teoria sobre os diversos setores da regulação está no fato de que seus conceitos e modos de pensar podem funcionar como obstáculo para pensar alternativas institucionais.143 A tarefa que se coloca diante dos juristas é descrever os procedimentos de tomada de decisões de natureza jurisdicional realmente existentes (...) para verificar qual seu padrão de funcionamento e, eventualmente, propor alterações em seus procedimentos em nome do controle social sobre a regulação.144
Ademais, para utilizar um argumento de ordem prática que justifique a leitura
das próximas páginas, a descrição empírica feita nos capítulos anteriores a respeito do
processo de concretização normativa do sigilo fiscal demonstrou graves incoerências
e contradições, tendentes a formar zonas de autarquia, o que, por si só, demanda
reflexão. E a pesquisa empírica provavelmente nos coloca em posição privilegiada
para debater o assunto e nos confere alguma credibilidade para sugerir parâmetros
interpretativos sobre o tema.
5.1. A questão da privacidade: reconhecendo sua natureza vaga e cambiante e
distinguindo informações desprovidas de potencial danoso à vida privada
Não é difícil perceber que o dever de sigilo imposto a servidores fiscais com
relação à situação econômico-financeira de sujeitos passivos é uma manifestação do
direito fundamental à privacidade. Trata-se de um direito garantido na maior parte das
sociedades democráticas e que, em nosso sistema, encontra guarida no art. 5º do texto
constitucional.
O inciso X do aludido dispositivo prescreve que “são invioláveis a intimidade,
a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. São titulares desse direito
143 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Fuga do Direito, pp. 156-157. 144 Idem, p. 162.
100
fundamental todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, conforme caput do
art. 5º.145 Embora seja direito exercido primordialmente por indivíduos em face do
Estado, podem existir casos em que é exercido em face de outros particulares.
Também é pacífico na doutrina que as pessoas jurídicas são titulares desse direito
fundamental.146
Os que defendem o sigilo dos atos de aplicação das normas tributárias
argumentam que sua publicação violaria a privacidade dos contribuintes, que teriam
dados sobre sua situação econômico-financeira divulgados a toda a sociedade.
Geralmente, esses autores entendem que o dever de publicação inerente aos atos
processuais deve ser interpretado como publicação interpartes. Ou seja, o dever de
publicidade estará cumprido se as partes envolvidas em determinado procedimento
administrativo forem notificadas do seu andamento e do conteúdo dos atos nele
produzidos147 148. Nesse caso, a conformidade ao Estado de Direito, traduzida pela
possibilidade de conhecer as decisões dos órgãos públicos, cederia a outro valor
também relevante: a privacidade dos particulares.
Essa opção não parece ser a mais adequada. Primeiro, porque, como visto
anteriormente, em um Estado de Direito toda decisão deve ser fundamentada e
racional, e o sigilo inviabiliza exercer esse controle de qualidade. Em segundo lugar,
145 Dimoulis e Martins problematizam a questão, criticando a opção política do constituinte de excluir os estrangeiros não residentes no país do âmbito de proteção dos direitos fundamentais listados no art. 5º do texto constitucional. Ver: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 71-77. 146 As pessoas jurídicas são titulares de direitos fundamentais “quando o exercício de um direito for compatível com as peculiaridades estruturais da pessoa jurídica e, principalmente, com a sua inexistência biológica ou caráter artificial”. (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, p. 83). 147 Nesse sentido: “Existindo, dentro do Procedimento Administrativo Fiscal dados, documentos ou fatos afetos à intimidade e à vida privada do contribuinte, o princípio da publicidade aplica-se única e exclusivamente entre as partes envolvidas no procedimento, não sendo dado a terceiros o conhecimento de tais informações sigilosas”. (GRUPENMACHER, Betina Treiger. O princípio da publicidade e a garantia do sigilo no processo administrativo. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Processo administrativo fiscal. Vol. 5. São Paulo: Dialética, 2000, p. 29). 148 Nesse sentido: “A publicidade, portanto, diz respeito ao modo como o ato administrativo é comunicado ao seu respectivo destinatário. No caso dos lançamentos administrativos fiscais federais, por exemplo, a referida exteriorização dá-se exclusivamente por meio de notificação ao respectivo contribuinte fiscalizado, nos termos dos arts. 8º e 9º do Decreto n. 70.235/72. Sendo assim, parece-nos que, aplicando-se tal conceito ao campo do direito tributário, a transparência deve ser entendida como a obrigação de a administração tornar pública a existência do ato, mas não o conteúdo do fato apurado no mesmo. A publicidade exige que se faça ciente o contribuinte fiscalizado sobre a existência e o alcance do seu ato de fiscalização (proporcionalidade em face da razoabilidade), mas não exige que se faça ciente terceiro, além do próprio contribuinte, sobre os fatos presuntivos de capacidade tributária que foram objeto do ato de fiscalização”. (LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. O princípio da publicidade e a garantia do sigilo. ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Processo administrativo fiscal. Vol. 5. São Paulo: Dialética, 2000, p. 94, pp. 127-128).
101
porque essa prática inviabilizaria, por exemplo, a interposição de recursos pelos
contribuintes para sanar divergências interpretativas quanto a decisões discrepantes
sobre casos similares. Tal recurso, a propósito, é previsto em lei específica do
processo administrativo fiscal, como se verá mais adiante. Em terceiro lugar, isso
impossibilitaria a fiscalização do tratamento igualitário dos cidadãos pelas instituições
fiscais. E, por último, é fato notório a complexidade da legislação tributária no país e,
nesse contexto, as decisões produzidas pelos órgãos fiscais são importantes fontes de
orientação dos contribuintes, exercendo função relevante na construção de um
ambiente de segurança jurídica.
Tendo em vista esses argumentos, há posição intermediária que procura
conciliar o direito à privacidade com o dever de publicidade. A solução seria publicar
os atos processuais e demais atos de aplicação das normas tributárias, suprimindo o
nome do contribuinte e demais informações que possam identificá-lo149 150. Porém, é
preciso desenvolver esse argumento para evidenciar que isso não implicaria violação
do direito à privacidade.
Embora existam variações sobre a definição desse direito, há consenso no
sentido de que, de modo geral, ele pretende evitar que terceiros possam interferir na
vida privada de um indivíduo ou empresa. Apenas para dar alguns exemplos, de
acordo com Tercio Sampaio Ferraz Junior, o conteúdo do direito à privacidade
consiste na faculdade de constranger os outros a respeitar aquilo que lhe é próprio,
que, por se referir exclusivamente a si mesmo, deseja manter longe do conhecimento
ou da influência de terceiros.151 Segundo René Ariel Dotti, “A vida privada abrange
todos os aspectos que por qualquer razão não gostaríamos de ver cair no domínio
público; é tudo aquilo que não deve ser objeto do direito à informação nem da
149 Nesse sentido: “A difusão dos julgados administrativos dos Conselhos de Contribuintes pode ser feita com omissão de nomes ou de quantias, de sorte que se conheçam as teses sem divulgação dos dados concretos da situação dos contribuintes”. (BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 1.002). 150 Nesse sentido: “O princípio da publicidade exige que o teor das decisões proferidas nos processos administrativos fiscais seja de pleno conhecimento público, através da divulgação pela imprensa oficial; mas a inviolabilidade do sigilo fiscal, por seu turno, pressupõe que não seja dado conhecimento do nome do contribuinte contra quem foi instaurado o processo administrativo fiscal”. (BIANCO, João Francisco. O princípio da publicidade e a garantia do sigilo. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Processo administrativo fiscal. Vol. 5. São Paulo: Dialética, 2000, p. 94). 151 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Sigilo de Dados: o direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. In: PIZOLIO, Reinaldo; GAVALDÃO JR., Jayr V. (coords.). Sigilo Fiscal e Bancário, Ob. cit., pp. 20-21.
102
curiosidade da sociedade moderna...152”. Para André Ramos Tavares, o direito à vida
privada significa “a proibição, dirigida tanto à sociedade quanto ao Poder Público, de
imiscuir-se na vida privada ou de divulgar esta ao público.”153
Enfim, não é nossa intenção realizar uma análise aprofundada do direito à
privacidade ou colacionar uma série de opiniões de especialistas para corroborar a
opinião aqui defendida. Pretende-se apenas demonstrar que, no caso da divulgação de
atos de aplicação das normas tributárias, para que possa existir violação do direito à
privacidade é necessário que sejam reveladas informações de um contribuinte
específico e identificável. Ou seja, uma vez excluídas as informações que permitam
identificar seu titular, não há possibilidade de a publicidade de determinado
documento transgredir o direito à privacidade.
Isso porque “vida privada” pressupõe que se está tratando de uma vida
específica e individualizável. Quando se utiliza como exemplo a situação de um
contribuinte sem revelar de quem se está tratando especificamente, não há
constrangimento. Como explica Norberto Bobbio, a privacidade está ligada à ideia de
que “Todo homem tem a possibilidade de diferenciar-se dos outros segundo sua
própria lei intrínseca, que é a própria liberdade e, portanto, de ser estimado em modo
correspondente à sua diferenciação.”154 Ou seja, privacidade pressupõe diferenciação
de um indivíduo em relação aos demais membros da sociedade. Essa diferenciação
nada mais é do que a imagem que um determinado cidadão, empresa ou qualquer
entidade legalmente reconhecida deseja transmitir aos demais membros de uma dada
sociedade. Por isso, poderia haver constrangimento se a revelação de uma informação
de algum modo interferisse nessa diferenciação, fazendo com que a imagem que a
sociedade tem a respeito de um indivíduo fosse modificada contra sua vontade.
Entretanto, quando simplesmente se tira o foco dessa diferenciação, tratando
as informações de modo genérico, não pode haver violação à vida privada, porque não
há interferência no modo como o indivíduo se diferencia em relação ao restante da
sociedade. Não há distúrbio algum na imagem que aquele contribuinte específico
deseja que seus semelhantes tenham a seu respeito.
152 DOTTI, René Ariel. Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 68. 153 TAVARES, André Ramos. Liberdade de expressão-comunicação em face do direito à privacidade. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; PEREIRA JR., Antonio Jorge (coords.). Direito à Privacidade. Aparecida/SP: Idéias & Letras/CEU, 2005, p. 234. 154 BOBBIO, Norberto; PAPPUZZI, Alberto. Diário de um século: autobiografia. Rio de Janeiro: Campus, 1998, pp.123-124.
103
O argumento ganha clareza se se pensar, por exemplo, na relação entre médico
e paciente. Todos sabem que as informações confiadas por um paciente ao seu médico
são sigilosas. Contudo, ninguém diria que um médico não poderia utilizar o caso de
determinado paciente, sem revelar sua identidade, para debatê-lo em um congresso
com outros médicos, a fim de compartilhar experiências exitosas ou receber opiniões
de colegas para melhorar o tratamento daquele paciente. Sem essa possibilidade o
avanço da medicina restaria bastante comprometido.
E o mesmo deve ocorrer com a proteção da privacidade na esfera fiscal. A
própria Administração Tributária admite a possibilidade de publicar documentos e
informações sem revelar a identidade de contribuintes. Assim evidenciam a Portaria
RFB n. 2.344/2011, quando autoriza a divulgação de “informações agregadas, que
não identifiquem o sujeito passivo”, e a prática já institucionalizada de publicar
soluções de consulta suprimindo apenas os dados que possibilitem identificar o
contribuinte a que dizem respeito.
Admitidamente, podem surgir situações muito específicas em que, mesmo
depois de suprimidas as informações que identifiquem o sujeito passivo ao qual o ato
de aplicação diz respeito, haverá algum tipo de violação a direitos fundamentais. É o
caso, por exemplo, da divulgação de segredos de negócio. O segredo de negócio
consiste num conhecimento utilizável na atividade empresarial, de caráter industrial
ou comercial, de acesso restrito, provido de certa originalidade, transmissível a
terceiros, não protegido por patente, cuja reserva representa valor econômico para seu
detentor, ou seja, que lhe oferece uma vantagem competitiva.155 Esse tipo de
informação possui valor intrínseco independentemente da possibilidade de identificar
seu titular. Seria o caso, por exemplo, de um auto de infração que discute a tributação
de insumo que compõe a fórmula de um produto. A eventual publicação desse auto
sem a supressão dessas informações comerciais poderia prejudicar o titular da
informação, que teria a fórmula de seu produto ou pelo menos parte dela divulgada.
155 João Marcos Silveira explica que: “O segredo de negócio pode consistir em conhecimentos técnicos, experiências, fórmulas, processos de fabricação métodos, listas e informações de clientes, técnicas de comercialização, marketing, custos, formação de preços e outras espécies de dados confidenciais relativos ao desempenho de atividades empresariais. Em todos os casos, tratar-se-á de um elemento incorpóreo sigiloso suscetível de aplicação prática que confere uma vantagem competitiva a seu detentor enquanto de conhecimento restrito, motivo pelo qual devem ser adotadas medidas protetivas rigorosas contra a sua revelação”. (SILVEIRA, João Marcos. A proteção jurídica dos segredos industriais e de negócio. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 40, n. 121, 2001, p. 151).
104
Nesse caso, fica claro que eventual divulgação da informação seria prejudicial ao seu
titular independentemente da possibilidade de conhecer sua identidade.
De todo modo, isso ocorrerá apenas em poucos casos específicos e não pode
servir como rota de fuga para determinar o sigilo de maneira prévia e impensada de
todos os atos de aplicação das normas tributárias, devendo tal controle ser realizado
caso a caso. Importa compreender o processo de concretização das normas tributárias,
e não necessariamente conhecer os sujeitos aos quais esses atos se referem ou ter
acesso a seus segredos comerciais. Assim, se o objetivo do sigilo é proteger a
privacidade, não há justificativa para negar a disponibilização de decisões e atos
interpretativos que não revelem nenhum sujeito passivo determinado. Solucionada a
questão da privacidade156, não se vislumbram outros argumentos consistentes para
defender o sigilo desses atos.
Portanto, a publicação dos atos de aplicação das normas tributárias após a
supressão de informações que permitam identificar o sujeito passivo e de eventuais
segredos comerciais não resulta em transgressão de direitos dos contribuintes. Essa
medida conciliatória possibilita a publicação de praticamente todos os atos de
aplicação da legislação tributária, ao mesmo tempo que preserva a vida privada e
outros direitos dos contribuintes. Sobre ser uma prática que preserva a privacidade
dos sujeitos passivos, a publicação dos atos decisórios e interpretativos após a
supressão das informações supramencionadas atende diretamente à Lei de Acesso à
Informação; esta determina a publicidade de documentos e informações de modo
parcial quando houver trechos considerados sigilosos, conforme se verá em detalhes a
seguir.
Ademais, não é possível ignorar o fato de que “privacidade” é um conceito
vago e cambiante, cuja definição depende do momento histórico e do contexto social
em que se vive. O mundo, hoje, é um lugar muito mais “público” do que era há alguns
anos. E isso tanto em relação àquilo que é exigido por lei em termos de publicidade,
quanto em relação àquilo que as pessoas voluntariamente revelam sobre si mesmas.157
156 A privacidade envolve outros valores correlatos, como a livre concorrência. Mas, se tomados os cuidados para que a imagem dos particulares não seja comprometida pela divulgação de informações, e mantidas em sigilo eventuais informações comerciais que possuam valor intrínseco, não parece haver risco algum à livre concorrência. 157 No mesmo sentido, ver: KORNHAUSER, Marjorie. Doing the Full Monty: will publicizing tax information increase compliance? Canadian Journal of Law and Jurisprudence, Vol. 18, n. 1, January 2005. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=712061> Acesso em 24/10/2013.
105
Do ponto de vista voluntário, a privacidade é uma norma social cada vez mais
em desuso. Os pensamentos mais íntimos são publicados em blogs, câmeras filmam e
fotografam todos os momentos das nossas vidas e o conteúdo é postado na internet.
Pessoas imploram pela oportunidade de viver com estranhos em uma casa com
câmeras ligadas 24 horas por dia, sete dias por semana, que transmitem seu cotidiano
na televisão para milhões de estranhos. Já outras competem pela chance de
experimentar os eventos mais particulares, como encontrar um namorado(a), casar ou
ser contratado em frente a uma plateia nacional. Indivíduos disponibilizam suas
informações em sorteios, concursos e promoções para obter produtos e serviços,
especialmente se isso lhes render um preço menor.
Legalmente, a privacidade também vem se retraindo. Não apenas o governo
tem mais instrumentos de acesso a informações sobre a população, mas também o
possui o público em geral. Mecanismos de spyware na internet – boa parte deles
lícitos – rastreiam hábitos de compra e preferências. Para viajar de avião, as bagagens
são revistadas por estranhos e, para viajar ao exterior, é preciso registrar dados
biométricos nos passaportes. Muitos dados financeiros também já são
disponibilizados ao público. Nos Estados Unidos, por exemplo, a remuneração dos
executivos de companhias negociadas em bolsa é aberta ao público. O mesmo já foi
exigido no Brasil pela Comissão de Valores Mobiliários, sendo o tema, atualmente,
objeto de discussão judicial158. A remuneração de servidores públicos também vem
sendo divulgada por meio de portais de órgãos públicos. Mesmo informações
tributárias são amplamente disseminadas. Companhias listadas em bolsa são
obrigadas a divulgar autuações fiscais que possam comprometer suas finanças,
conforme a Instrução da CVM n. 358, que dispõe sobre a divulgação e o uso de
informações sobre ato ou fato relevante relativo às companhias abertas.159
Por todos esses motivos, e retomando o fio da exposição, a publicação de
certas informações que, antes, seria considerada invasão de privacidade, hoje pode ser
vista como normal pela sociedade. É o caso de decisões judiciais sobre matéria
tributária e decisões definitivas proferidas em processos administrativos fiscais. Esses
158 Cf.: Justiça proíbe CVM de impor divulgação de remuneração dos executivos. Agência do Estado. Disponível em:<http://economia.ig.com.br/2013-05-23/justica-proibe-cvm-de-impor-divulgacao-de-remuneracao-dos-executivos.html> Acesso em 29/7/2013. 159 Ver exemplo de autuação fiscal divulgada pela Natura, disponível em: <http://natura.infoinvest.com.br/ptb/4178/20130107ComunicacaoAoMercado_PORT_ENG.pdf> Acesso em 29/7/2013.
106
documentos, atualmente, são publicados com a identificação dos sujeitos passivos a
que se referem. Alguns entes federativos, como se demonstrou anteriormente,
publicam, até mesmo, decisões administrativas de primeira instância, sem filtros com
relação à identificação dos sujeitos passivos.
Não se pretende aprofundar tal discussão, mas apenas demonstrar que os
limites e desdobramentos da privacidade e do sigilo fiscal não são estáticos. Eles
devem ser continuamente debatidos pela sociedade e, por isso, soluções e decisões
que procurem naturalizar esses conceitos devem ser combatidas. Por ora, resta
suficiente asseverar que inexistem óbices à publicidade de atos de concretização da
legislação fiscal se forem tomados cuidados para evitar a revelação da identidade dos
contribuintes partícipes.
5.2. O art. 198 do CTN no contexto do ordenamento jurídico brasileiro: quando
não for autorizado acesso integral à informação por ser ela parcialmente sigilosa,
é assegurado o acesso à parte não sigilosa com ocultação da parte sob sigilo
A publicidade dos atos de aplicação do direito não encontra amparo apenas em
conceitos abstratos como aqueles apresentados no capítulo dois (Estado de Direito,
processo de concretização normativa e zona de autarquia), ou nos benefícios que ela
pode produzir, como será argumentado mais adiante (mais segurança jurídica e maior
conformidade ao Estado de Direito). Há diversos dispositivos legais no ordenamento
jurídico brasileiro que determinam a publicidade de decisões e atos de aplicação do
direito.
Desde a Constituição de 1988 vige no Brasil o princípio de que, na esfera
pública, transparência é regra e sigilo é exceção. O art. 37 determina que a
administração pública deve obedecer ao princípio da publicidade. O inciso LX do art.
5º estabelece como regra a publicidade dos atos processuais, podendo ser restringida
apenas quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. O inciso XIV
assegura a todos o acesso à informação, resguardado o sigilo da fonte, quando
necessário ao exercício profissional. O inciso XXXIII garante que todos têm direito a
receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse
coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade,
ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado. O inciso IX do art. 93 também garante que todos os julgamentos dos órgãos
107
do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de
nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e
a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à
intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.
O art. 216, inciso V, § 6º, também determina que cabem à administração pública, na
forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para
franquear sua consulta a quantos dela necessitem.
Assim, regra geral, os atos praticados pela administração pública devem ser
públicos. O mesmo vale para os atos inerentes às relações jurídico-tributárias,
considerando que o direito tributário é um ramo das chamadas disciplinas do direito
público. Segundo Geraldo Ataliba160 e Paulo de Barros Carvalho161 os preceitos de
direito constitucional e de direito administrativo possuem considerável influência na
feição estrutural do direito tributário brasileiro.162
Isso não basta para indicar quais informações e documentos devem ser
publicados e quais devem ser sigilosos. Seguir por esse caminho seria incorrer no
mesmo equívoco daqueles que defendem o sigilo recorrendo exclusivamente ao
direito à privacidade. São direitos e argumentos vagos e genéricos, que pouco
contribuem para solucionar impasses concretos surgidos no mundo dos fatos.
Todavia, esse panorama permite chegar a uma conclusão: o sigilo é excepcional na
esfera pública e deve ser precisamente delimitado.
É por isso que, em nível infraconstitucional, o legislador cuidou de editar
regras mais densas, que permitem estabelecer limites mais claros. O Código de
Processo Civil (Lei n. 5.869/1973) determina que os atos processuais são públicos.
Correm em segredo de justiça apenas os processos: “I − em que o exigir o interesse
público; II − que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges,
conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores”. Por interesse público,
entendam-se casos de segurança nacional, em consonância com o disposto no texto
constitucional (art. 5º, XXXIII). Logo, os atos expedidos em processos em que se
160 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 41. 161 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 48. 162 Isso não significa que não há diferenças entre direito administrativo e direito tributário, ou que não devam existir diferenças no modo de controlar alguns setores do Executivo. Nesse sentido, ver nota de rodapé 86, acima.
108
discute matéria tributária, em princípio, não são sigilosos. Muito menos poderiam ser
considerados como “assuntos de família”, hipótese do inciso II.
A Lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo federal, determina em
seu art. 2º, inciso V, que nos processos administrativos será observado, entre outros, o
critério de “divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de
sigilo previstas na Constituição”.
O próprio Regimento Interno do Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais, aprovado pela Portaria n. 256, de 2009, do Ministério da Fazenda, também
determina que os acórdãos proferidos no âmbito daquele tribunal administrativo
devem ser públicos.163
Além de regra expressa autorizando o acesso geral a estas decisões
administrativas, tal necessidade decorre da própria sistemática idealizada pelo
Ministro da Fazenda para uniformizar a jurisprudência no âmbito do Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais. De acordo com o art. 67 do Regimento Interno
do órgão164, aprovado pela Portaria n. 256/2009, o sujeito passivo tem a possibilidade
de interpor recurso especial de divergência à Câmara Superior de Recursos Fiscais e,
para isso, precisa demonstrar divergência entre a decisão dos autos e a proferida pelo
Conselho. Não seria lógico, portanto, a administração franquear esta via recursal sem
permitir o exame do inteiro teor das decisões do Conselho.
O mesmo raciocínio deveria ser adotado para autorizar o acesso de
interessados às soluções de consultas formuladas sobre matéria tributária, haja vista a
existência de idêntica sistemática recursal no processo de consulta, conforme
Instrução Normativa n. 1.396/2013165. Até pouco tempo atrás, eram publicadas, na
imprensa oficial, apenas as ementas dos pareceres em processo de consulta166, sem
que fosse franqueado o acesso de interessados à íntegra da decisão. A interposição do
163 “Art. 22. Ao Serviço de Documentação e Informação (Sedoc) compete: (...) III − providenciar a publicação da íntegra dos acórdãos no sítio do CARF na Internet; (...)” 164 “Art. 67. Compete à CSRF, por suas turmas, julgar recurso especial interposto contra decisão que der à lei tributária interpretação divergente da que lhe tenha dado outra câmara, turma de câmara, turma especial ou a própria CSRF.” 165 “Art. 19. Havendo divergência de conclusões entre Soluções de Consulta relativas à mesma matéria, fundadas em idêntica norma jurídica, caberá recurso especial, sem efeito suspensivo, para a Cosit.” 166 Salvo na hipótese de solução de consulta com efeito vinculante, categoria recentemente introduzida no ordenamento pela Instrução Normativa 1.356/2013. Nesse caso, o teor da solução é publicado no sítio eletrônico da RFB, suprimindo-se apenas os dados que permitam identificar o contribuinte consulente.
109
recurso especial por divergência ficava, na prática, totalmente inviabilizada.
Recentemente, a Receita Federal criou o expediente da solução de consulta
vinculante, a qual passará a ser publicada integralmente, excluídos os dados que
identifiquem o consulente. No entanto, ainda não há notícias sobre alterações na
sistemática recursal após a introdução dessa novidade.167
Com relação a autos de infração fiscal, consistem em atos de lançamento
tributário que, regra geral, dão início a processos administrativos fiscais. Trata-se,
muitas vezes, do primeiro ato que empresta sentido à legislação tributária. Ainda que
esteja sujeito a revisão por instâncias superiores e, até mesmo, pelo Judiciário,
geralmente este é o ato que estabelecerá as bases da discussão sobre o sentido das
expressões contidas na legislação tributária.
Vale ressaltar que as decisões de primeira instância também são importantes
atos que compõem o processo de concretização das normas fiscais168, e que os fatos,
argumentos e informações constantes em decisões de segunda instância são
essencialmente os mesmos veiculados em autos de infração e decisões de primeira
instância, não havendo justificativa lógica para distingui-los.
Ou seja, há diversas regras específicas que expressamente determinam a
publicação de atos expedidos em processos administrativos. Nessa linha, não haveria
óbice à publicação de autos de infração, soluções de consulta sobre interpretação da
legislação tributária e decisões de primeira instância proferidas em processos
administrativos fiscais. E, como visto acima, para evitar conflitos com o direito à
privacidade, uma solução conciliatória plausível seria a de publicar esses documentos
suprimindo informações que permitam identificar o sujeito passivo ao qual se
referem. É importante ressaltar que tal solução também não é simplesmente fruto de
um capricho ou de mera preferência política.
A chamada Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), além de reiterar
que, na esfera pública, a publicidade é regra e o sigilo é exceção (art. 3º, I), 167 NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2004, pp. 57-59. No mesmo sentido: “Com efeito, em matéria de resposta a consulta sobre interpretação de legislação tributária ante a situação de fato, presente ou futura, não consigo vislumbrar situação que pudesse exigir sigilo; de onde, em relação a essa decisão, deve ter pleno curso o princípio da publicidade”. (ROCHA, Valdir de Oliveira. A Consulta Fiscal. São Paulo: Dialética, 1996, p. 108). 168 Nesse sentido: “Na mesma linha de raciocínio, também as decisões administrativas de primeira instância poderiam ser divulgadas, possibilitando o conhecimento geral do seu conteúdo e evitando o tratamento desigual no julgamento de processos por órgãos distintos da Administração”. (NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. Ob. cit., pp. 57-59).
110
prescreve, em seu art. 7º, § 2º, que: “Quando não for autorizado acesso integral à
informação por ser ela parcialmente sigilosa, é assegurado o acesso à parte não
sigilosa por meio de certidão, extrato ou cópia com ocultação da parte sob sigilo”.
Portanto, além de não haver obstáculo à publicidade dos atos de aplicação da
legislação tributária, desde que suprimidas as informações que possam oferecer algum
risco à privacidade do contribuinte, essa é a solução determinada pelo próprio
legislador.
Por fim, é preciso fazer uma distinção entre dois tipos de publicidade no
processo administrativo. O primeiro refere-se aos atos ocorridos no processo, tais
como decisões, votos, pedidos de diligências; e o segundo, aos autos do processo
administrativo, facultando-se a qualquer cidadão o acesso a eles, podendo compulsá-
los e verificar todos os documentos juntados. O acesso às informações do primeiro
grupo é permitido em razão do dever de publicidade inerente aos atos e decisões
expedidos em processos administrativos. Entretanto, em relação aos autos do processo
administrativo fiscal, deve haver limites à consulta. Permitir o acesso irrestrito de
pessoas aos autos poderá expor documentos e dados sigilosos do contribuinte, como a
declaração de bens169 170.
5.3. Benefícios fiscais para empresas: ausência de justificativas para considerar
as respectivas informações sigilosas e estabelecimento de uma pauta de pesquisa
para o futuro
169 Nesse sentido, ver: HOFFMANN, Susy Gomes. Princípio Constitucional da Publicidade Aplicado ao Processo Administrativo Fiscal e Garantia Constitucional do Sigilo de Dados. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Processo Administrativo Fiscal. Vol. 5. São Paulo: Dialética, 2000. 170 Não se está afirmando que a declaração de bens deve ser sigilosa. No atual contexto brasileiro, sabe-se que a divulgação das declarações de bens seria considerada grave afronta ao sigilo fiscal, corolário do direito à privacidade. No entanto, não se deve ignorar que este é um tema em disputa, principalmente nos Estados Unidos, onde os acadêmicos do Direito Tributário possuem profícua produção a respeito do assunto. Apenas para citar alguns exemplos, veja-se: AVI-YONAH, Reuven; SIMAN, Ariel. The One Percent Solution: corporate tax returns should be public (and how to get there). University of Michigan Public Law. Research Paper n. 379, 2014. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=2389956 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.2389956> Acesso em 22/2/2014; BLANK, Joshua. In Defense of Individual Tax Privacy. 61 Emory Law Journal 265, 2011. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1799505> Acesso em 24/10/2013; BITTKER, Boris. Federal Income Tax Returns: confidentiality vs. public disclosure. Yale Law School Legal Scholarship Repository. Faculty Scholarship Series. Paper n. 2.303, 1981. Disponível em: <http://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=3393&context=fss_papers> Acesso em 24/10/2013; KORNHAUSER, Marjorie. Doing the Full Monty: will publicizing tax information increase compliance? Canadian Journal of Law and Jurisprudence, Vol. 18, N. 1, January 2005. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=712061> Acesso em 24/10/2013.
111
Como visto anteriormente, o art. 198 do CTN possui textura
consideravelmente aberta. Sua leitura pode sugerir, em um primeiro momento, que se
trata de regra bastante específica e delimitada: qualquer informação que possa dar
pistas sobre a situação econômico-financeira de um contribuinte é sigilosa, salvo as
exceções descritas em seus parágrafos e incisos.
Não obstante, constatou-se que há diversos dispositivos legais conflitantes e
práticas institucionais consolidadas que revelam informações relativas a contribuintes
específicos, o que torna mais complexa a interpretação daquele dispositivo.
Uma das situações que parece não se enquadrar no dever do sigilo é a
referente aos atos que concedem benefícios fiscais para empresas.
Lança-se mão da terminologia de Luís Eduardo Schoueri para explicitar do
que se está tratando. Segundo o professor, a intervenção do Estado sobre o domínio
econômico pode ocorrer de duas formas: por indução ou por direção. A direção é
realizada por meio de normas imperativas, cogentes, normas que tornam a realização
de uma conduta obrigatória ou proibida. Nessa linha, o destinatário da norma deve
prestar obediência, sob pena de sofrer as sanções previstas na legislação171.
A indução, por sua vez, se dá mediante a utilização de normas dispositivas, ou
seja, que admitem a possibilidade de escolha por parte do destinatário. Desse modo,
os agentes econômicos podem abster-se de praticar a recomendação normativa sem
que haja uma sanção, ou podem se alinhar a ela e obter algum tipo de “benefício”:
geralmente a diminuição ou supressão da carga tributária.
Embora os benefícios fiscais possam trazer vantagens para toda a sociedade e
servir a propósitos inteiramente legítimos, sabe-se que sua utilização, por vezes, pode
descambar em relações espúrias, marcadas pela criação de estruturas que beneficiam
apenas seus destinatários específicos, trazendo pouco ou nenhum retorno para a
sociedade. Muitas vezes isso envolve trocas de favores bilaterais, isto é, determinada
empresa recebe algum tipo de benefício e, em troca, financia campanhas políticas ou
patrocina algum outro projeto pessoal daquele político ou servidor público que lhe
concedeu a vantagem competitiva. Não se pretende aprofundar esse debate, mas
171 SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
112
convém destacar que esse tipo de prática é amplamente denunciada pela literatura
estrangeira.172
O que se questiona é se os atos que concedem esse tipo de benefício deveriam
ser públicos ou se sua divulgação violaria a privacidade dos respectivos contribuintes.
Em princípio, acredita-se que não haveria óbices à publicidade. Porém será delineado
apenas um esboço do argumento, deixando a pauta aberta para futuras pesquisas que
procurem enfrentar o assunto mais detalhadamente.
O trecho “informação obtida em razão do ofício”, consignado no art. 198 do
CTN, pode sugerir alguns direcionamentos. O verbo obter tem os seguintes
significados: V. t. d. 1. Alcançar ou conseguir (o que se pede ou deseja): obter um cargo. 2. Ter ensejo ou ocasião de; lograr, conseguir: Com seus atos obteve convencer o outro. 3. Ganhar, granjear. 4. Conseguir, atingir, alcançar: Esforçado, obteve média de 9,8 durante todo o curso. T. d. e i. 5. Obter (1): Obtive-lhe um aumento com a chefia. 6. Conseguir; conquistar: Esforçou-se e obteve lucro para a empresa.173
Os sentidos possíveis do verbo obter permitem concluir que se está tratando de
informações obtidas, isto é, conseguidas, alcançadas, conquistadas pela Fazenda
Pública ou por seus servidores por meio de pedido, notificação ou fiscalização de
contribuintes. Ou seja, informações que estariam sob a posse do contribuinte e são
repassadas voluntária ou compulsoriamente ao Fisco por meio dos instrumentos
fiscalizatórios disponíveis. São informações privadas que, para serem acessadas pela
fiscalização, pressupõem uma transferência do contribuinte em direção à Fazenda
Pública. Enfim, trata-se exclusivamente de informações produzidas em relações de
convivência privada, das quais o Fisco toma conhecimento para viabilizar a correta
apuração dos tributos devidos pelo sujeito passivo e proceder ao lançamento
tributário. Podem-se citar como exemplos contratos, informações sobre relações
comerciais, notas fiscais, livros contábeis e fiscais, dados sobre faturamento,
rendimentos, lucros etc.
172 Nesse sentido, ver: BIRD, Richard. Transparency and taxation: some preliminary reflections; TANZI, Vito. Complexity in taxation: origin and consequences. Ambos em: SANTI, Eurico Marcos Diniz de; ZUGMAN, Daniel Leib; BASTOS, Frederico S.; CHRISTOPOULOS, Basile G. Transparência fiscal e desenvolvimento: homenagem ao Professor Isaias Coelho. São Paulo: Thomson Reuters, 2013. Ver também: BRAITHWAITE, John. A good century for tax? Globalisation, redistribution and tax avoidance, Public Policy Research, vol. 12, n. 2, 2005, pp. 85-92. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/fellows/jbraithwaite/_documents/Articles/Globalization_Redistribution_2005.pdf> Acesso em 20/1/2014. 173 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 1.429-1.430.
113
No entanto, não se incluiriam nessa categoria dados produzidos pela
Administração Pública que digam respeito a contribuintes, ou seja, informações
geradas no âmbito da relação de direito público entre Administração Pública e
contribuinte. Como exemplos, informações sobre benefícios fiscais, parcelamentos ou
moratórias, a interpretação da Administração Fiscal acerca da legislação tributária etc.
Note-se que tais dados e informações não foram transferidos do contribuinte para o
Fisco. Não dizem respeito a relações de convivência privada e, portanto, não gozam
de proteção pelo sigilo fiscal. Significa dizer que o critério de discrímen entre
informação sigilosa ou pública não reside no fato de ela estar relacionada a um
contribuinte específico ou não, mas ao fato de ela ter sido produzida em âmbito
privado e transferida ao Fisco para a realização de suas atividades de fiscalização e
arrecadação tributária.
Ressalte-se, ademais, que o benefício fiscal é um favor concedido a
determinados contribuintes geralmente por meio de redução ou supressão da carga
tributária, ou seja, mediante renúncia de arrecadação tributária. Por se tratar de
renúncia de dinheiro público, e em razão disso afetar as receitas que servem para
custear toda a máquina pública e os serviços por ela prestados, é razoável concluir que
é de interesse de toda a sociedade saber, com detalhes, quais são esses benefícios e
quem são seus destinatários. Até porque, por se tratar de norma dispositiva, que não é
imposta ao destinatário, não parece absurdo concluir que a publicidade seria condição
com a qual o beneficiário deve anuir previamente para usufruir da benesse.
Por fim, a divulgação dos valores renunciados com os respectivos
beneficiários, acompanhada da explicação sobre os objetivos “socioeconômicos” que
aquele favor fiscal pretende cumprir, permitiria a instalação de um contínuo e
informado debate público a respeito da necessidade ou adequação dos benefícios
concedidos e possibilitaria a cobrança de resultados tanto do poder público quanto do
particular beneficiado.
5.4. Transparência do processo de concretização normativa e segurança jurídica:
constrangimento institucional para coibir alterações interpretativas e
instrumento para incrementar shared sensibilities entre Fisco e contribuintes
Além de ser uma determinação constitucional e infraconstitucional, e de não
implicar necessariamente violação do direito à privacidade, a publicidade de atos de
114
aplicação da legislação tributária ainda pode trazer uma consequência bastante
positiva tanto para os contribuintes quanto para a Administração Tributária: o
fortalecimento do Estado de Direito mediante o incremento da segurança jurídico-
tributária.
Se fosse realizada uma pesquisa para constatar quais as críticas mais
recorrentes ao sistema tributário brasileiro, provavelmente entre os resultados estaria a
falta de segurança jurídica.174 Não é intenção deste trabalho identificar todas as causas
da insegurança em matéria tributária no Brasil. O que se pretende demonstrar é que a
publicidade das decisões e interpretações produzidas pelos órgãos da Administração
Tributária pode ser relevante para a construção de mais segurança jurídica.
Se a previsibilidade é a característica central do Estado de Direito, quanto
maior o conhecimento e a compreensão do modo como os órgãos competentes tomam
suas decisões, menor a probabilidade de arbitrariedades e maior a liberdade de
escolhas assegurada aos cidadãos. A ideia é relativamente simples: a transparência do
processo de concretização das normas tributárias pode: a) funcionar como
constrangimento institucional para inibir instabilidades interpretativas; b) contribuir
para o aumento de shared sensibilities, que se traduzirá livremente como expectativas
compartilhadas − entre instituições fiscais e contribuintes.
Como visto, a complexidade do direito contemporâneo implica a necessidade
de discutir o controle das decisões, afinal, num Estado de Direito, não há poder
autorizado a agir arbitrariamente. Conforme Rodriguez, esse controle pode ocorrer de
duas formas: via constrangimentos institucionais ou via modelos de racionalidade
jurídica.175
174 Esse dado depende de comprovação empírica, mas será tomado como pressuposto, pois é bastante familiar para quem lida com o direito tributário. Apenas para ilustrar, se o grau de “litigiosidade” puder indicar o nível de insegurança jurídica de um país, há dados que apontam para uma situação alarmante no Brasil. De acordo com a Receita Federal do Brasil, o valor do passivo tributário, apenas na esfera administrativa, totaliza US$ 230 bilhões. Somam-se a este montante cerca de US$ 100 bilhões relacionados a casos emblemáticos em discussão no Judiciário − como controladas e coligadas no exterior, PIS/COFINS sobre instituições financeiras, inclusão das prestadoras de serviços no sistema não cumulativo e ágio. Com efeito, estão em discussão quase US$ 330 bilhões, ou 15% do PIB brasileiro. Este número certamente é muito maior, uma vez que está sendo considerada apenas uma fração dos casos em tramitação hoje no Judiciário brasileiro. Nos Estados Unidos, segundo o Internal Revenue Service, o valor do passivo tributário alcançou cerca de US$ 40 bilhões em 2012, ou 0,2% do PIB daquele país. Esta diferença drástica também pode ser observada quando confrontado o grau de litigiosidade tributária no Brasil com aquele observado na África do Sul, país em estágio de desenvolvimento semelhante ao nosso. No país africano, o valor dos passivos em discussão, entre 2010 e 2011, era de US$ 14,3 bilhões (3,6% do PIB), segundo relatório do South African Revenue Services. 175 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Zonas de autarquia nas decisões jurisdicionais.
115
Os primeiros são limites impostos à atuação dos órgãos competentes que não
se dirigem à racionalidade da operação do ordenamento jurídico e corporificam-se em
desenhos institucionais cuja execução pretende ter algum efeito sobre a congruência
das decisões tomadas pelos órgãos decisórios. Já os modelos hermenêuticos, ou
modelos de racionalidade jurídica, consistem em conjuntos de regras, cânones ou
conceitos interpretativos cujo objetivo é formar padrões para a justificação por meio
da imposição de determinados ônus argumentativos aos órgãos competentes para
decidir conflitos. Trata-se de regras que procuram conferir racionalidade ao processo
decisório sem a pretensão de que isso possibilite obter uma única resposta correta.
A parte inicial do argumento aqui expendido diz respeito à publicidade do
processo de concretização da legislação tributária como constrangimento institucional
para evitar a prática de constantes modificações interpretativas por parte dos órgãos
fiscais. Não significa que tal medida seja suficiente para evitar modificações
interpretativas, tampouco que isso seja desejável em absolutamente todas as
circunstâncias. Todavia, o primeiro passo para construir padrões interpretativos e
decisórios que perdurem no tempo e não sejam alterados constantemente é dar
publicidade aos atos de aplicação das normas tributárias. Se esses atos não estiverem
sujeitos ao escrutínio público, os respectivos órgãos competentes sofrem pouquíssimo
constrangimento para perpetrar mudanças interpretativas. O processo interpretativo
torna-se vulnerável e mais suscetível a sofrer pressões em nome de interesses
obscuros, configurando caminho capaz de aumentar a arrecadação tributária sem a
necessidade de aprovar nova lei ou sem o ônus de justificar as mudanças
interpretativas. Ou, ainda, dá-se maior espaço para que interpretações não isonômicas
sejam praticadas, beneficiando atores política ou economicamente bem posicionados.
Um exemplo negativo que demonstra o potencial da publicidade dos atos de
aplicação da legislação tributária, especificamente dos autos de infração e das
decisões administrativas de primeira instância, é narrado por Eurico Marcos Diniz de
Santi. O professor explica que a Administração Tributária tem como hábito utilizar
“balões de ensaio” mediante a lavratura de autos de infração dos períodos que estão
no limite do prazo decadencial. Com isso, “aprende”, mediante análise da
impugnação, como o contribuinte fundamenta e interpreta a legislação tributária e,
116
somente a partir daí, firma sua subjetiva, mas nunca derradeira, “verdadeira
interpretação” que norteará as próximas autuações.176 177
Como exemplo, Santi cita o caso de um grupo empresarial brasileiro que
possui há mais de duas décadas suas atividades divididas entre empresa industrial,
responsável pela fabricação dos produtos, e empresa comercial, responsável por
estoque e comercialização.178 Tal estruturação societária é expressamente permitida
pela legislação que regulamenta a cobrança do imposto sobre produtos
industrializados, estabelecendo, como condição, um valor tributável mínimo (“VTM”)
a ser praticado entre as empresas interdependentes, ou seja, uma espécie de preço de
transferência interno.179 De acordo com a legislação da época (Decreto n. 4.544, de
2002, “RIPI/2002”), para efeito de cálculo da média ponderada que determinaria o
VTM, deveriam ser consideradas as vendas de produtos similares efetuadas na praça
comercial do remetente, ou seja, da empresa industrial. E, caso não houvesse produto
similar na praça, o valor deveria ser calculado de acordo com uma equação
matemática descrita no regulamento.
176 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Tributação dos lucros de controladas e coligadas no exterior legalidade precária proposta por regulamentação provisória via MP reeditada 35 vezes (há mais de dez anos), problema sistêmico que se confirma no placar de 5 x 5 no STF e nas decisões do STJ, expondo limites e conflitos entre direito e economia, e mobilizado pelo contencioso bilionário entre o Estado e as dez maiores empresas brasileiras de capital aberto. Fiscosoft, n. 3.129, 2012. Disponível em:<http://www.fiscosoft.com.br/a/5omh/tributacao-dos-lucros-de-controladas-e-coligadas-no-exterior-eurico-marcos-diniz-de-santi> Acesso em 17/1/2014. 177 A alteração de interpretação da legislação tributária com o objetivo de aumentar a arrecadação, independentemente de modificação do texto legislativo, é aparentemente comum no Brasil. Esse dado dependeria de comprovação empírica, que não será empreendida aqui, mas faz parte do senso comum dos profissionais do direito tributário. Um caso emblemático nesse sentido é o da cobrança de ICMS sobre a veiculação de material publicitário na internet. Historicamente, o Município de São Paulo sempre cobrou ISS sobre tais serviços. Entretanto, em 2011, o Estado de São Paulo, repentinamente, passou a autuar todas as empresas do ramo retroativamente, gerando autos de infração fiscal que alcançam somas bilionárias, sob o argumento de que a legislação do ICMS prevê a incidência do tributo sobre serviços de comunicação. Ou seja, sob nova interpretação de lei previamente existente, o Fisco estadual passou a cobrar tributos nunca antes cobrados, causando grave insegurança jurídica para contribuintes que jamais imaginaram ser devedores de ICMS, já que historicamente eram contribuintes do ISS. Para mais detalhes, ver reportagem de Bárbara Pombo no jornal Valor Econômico, intitulada “Estudo mostra falta de transparência em julgamento administrativo fiscal”, publicada em 16/7/2013, na edição n. 3.298. 178 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Kafka e a Tributação no Brasil: Não Basta Arrecadar! Desafios da Democracia e do Desenvolvimento. No prelo. 179 O termo “preço de transferência” tem sido utilizado para identificar os controles a que estão sujeitas as operações comerciais ou financeiras realizadas entre partes relacionadas, sediadas em diferentes jurisdições tributárias, ou quando uma das partes está sediada em paraíso fiscal. Em razão das circunstâncias peculiares existentes nas operações realizadas entre essas pessoas, o preço praticado nessas operações pode ser artificialmente estipulado e, consequentemente, divergir do preço de mercado negociado por empresas independentes, em condições análogas − preço com base no princípio arm’s length.
117
Ocorre que, havia aproximadamente trinta anos, a própria Administração
Tributária definira os limites geográficos para a delimitação de praça comercial e a
interpretação aplicável às operações entre partes interdependentes, entendendo que
praça comercial teria alcance limitado ao município em que se localizava a sede
industrial.180 Desse modo, considerando que, no caso concreto, no município sede da
industrial não havia produto similar ao que produzia, ela aplicava a fórmula contida
no regulamento para calcular o VTM. No entanto, o Fisco, utilizando-se da
flexibilidade interpretativa e da discricionariedade conferida aos fiscais, alterou
entendimento sedimentado pela Administração Tributária sobre a aplicabilidade do
“valor tributável mínimo” e o conceito de “praça comercial”, e autuou o contribuinte
sob o argumento de que a praça comercial abrangeria “todo o Estado” e não apenas o
município em que estava sediada a industrial. Na sequência, Fisco e contribuinte
travaram disputa administrativa em que, confirmando a decisão da DRJ, o CARF, por
unanimidade, reconheceu, em 2007, a licitude das operações do contribuinte e o
desvio de finalidade na interpretação do Fisco.
Não obstante, a fiscalização reeditou as autuações, em 2012, sobre a mesma
operação, relativa ao exercício fiscal de 2008 (ou seja, sempre no limite do prazo
decadencial e com referência a apenas um dos exercícios passíveis de autuação, com
o aparente objetivo de “testá-la”), cuja licitude já havia sido reconhecida pela lei, pelo
Fisco e pelo CARF, sob nova interpretação do conceito de “praça comercial”. Agora,
os limites geográficos do conceito abrangiam a “Região Metropolitana do
Município”, numa tentativa de convencer que o município que sediava a industrial,
por fazer parte da região metropolitana de outro município maior, deveria levar em
consideração o preço médio praticado na região metropolitana, e não apenas no
município específico em que estava situada, no qual não havia produto similar.
Nesse procedimento fiscal mais recente, ainda não solucionado
definitivamente, o Fisco lavrou dois autos de infração em face da empresa, ambos
assentados sobre os mesmos fatos e em relação às mesmas supostas ilicitudes, apenas
cobrando tributos e valores diferentes em cada um. Talvez, mais uma vez, numa
tentativa de evitar que o insucesso de um dos autos não prejudicasse necessariamente
o outro. Fato é que a DRJ competente, curiosamente a mesma que julgou a situação
anos antes, em 2007, proferiu duas decisões (sigilosas) contraditórias: um dos autos 180 Parecer Normativo – PN-CST n. 44/1981, Ato Declaratório Normativo – ADN-CST n. 5/1982 e Parecer da Coordenação do Sistema de Tributação – CST n. 3.313 /1982.
118
foi cancelado e o outro foi mantido. O caso ainda está pendente de definição no
CARF.
Note-se que o primeiro auto de infração, que alterou entendimento
historicamente construído a respeito do conceito de praça comercial, era sigiloso.
Também eram sigilosos os autos de infração mais recentes e as decisões de primeira
instância. Seria possível argumentar que a publicidade das decisões definitivas é
suficiente para orientar os contribuintes sobre a interpretação da legislação tributária,
mas percebe-se que as alterações interpretativas são praticadas com maior frequência
justamente naqueles atos que não são divulgados ao público. Além disso, os autos de
infração são os primeiros atos a emprestar sentido à legislação: eles estabelecem as
bases em que o litígio administrativo se fundará, ainda que estejam sujeitos a revisão
por outras instâncias.
Em outras palavras, a publicidade implicaria maior vigilância e controle
social, o que provavelmente inibiria mudanças interpretativas constantes. Ou, pelo
menos, possibilitaria a instalação de um debate público informado. É interessante
notar que a necessidade de ocultar as decisões e interpretações demonstra a força da
publicidade e do Estado de Direito. Ou seja, porque é preciso tratar como sigilosos
atos que veiculam as interpretações praticadas por órgãos fiscais, percebe-se o
potencial que a divulgação desses atos possui. No mínimo, a sociedade e
especialmente os experts em tributação poderiam discutir o assunto e cobrar coerência
e previsibilidade das instituições fiscais.181
Ademais, os atos de aplicação tornam-se relevantes fontes de calculabilidade,
porquanto são responsáveis por densificar o sentido de conceitos previstos em leis
gerais e abstratas com relação a casos concretos. É óbvio que a publicidade não é
suficiente para conferir segurança, mas ela permite que a sociedade e os profissionais
do direito identifiquem padrões interpretativos, apontem incoerências, tratamentos 181 Prova cabal do poder que a publicidade possui para modificar comportamentos foi dada pelo recente caso da cassação do ex-deputado federal Natan Donadon (cassado em 12/2/2014). Em agosto de 2013, havia sido realizada uma votação, mas apenas 233 deputados defenderam a perda de mandato do colega, 24 a menos do que o necessário para cassá-lo: 131 votaram pela absolvição e 41 deputados registraram abstenção. Em agosto de 2013, ainda existia regra que determinava que a votação de cassação de parlamentar fosse secreta. Em fevereiro de 2014, após a extinção da aludida regra, absolutamente nenhum parlamentar votou pela manutenção do mandato, tendo sido computada uma única abstenção. Ou seja, a simples transparência dos votos alterou radicalmente o resultado da votação. Não mudaram os critérios para cassação, não houve reforma política, nem alguma outra alteração legislativa relevante (além da extinção do voto secreto para casos como este) que justificassem diferença tão gritante no número de votos. Ver: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,na-estreia-do-voto-aberto-467-deputados-cassam-donadon-e-apenas-um-se-abstem,1129611,0.htm> Acesso em 22/2/2014.
119
não isonômicos e decisões arbitrárias. Ou seja, a transparência possibilita que a
sociedade fiscalize e cobre previsibilidade, discuta as justificações oferecidas pelos
órgãos jurisdicionais e reflita sobre novos procedimentos e desenhos institucionais,
contribuindo para incrementar a segurança jurídica. Sem transparência, a busca por
avanços e melhorias é comprometida, ficando a sociedade limitada a especular como
o direito acontece na prática, sem efetivamente entender de que modo as decisões são
tomadas e quais os pontos sensíveis a serem modificados ou repensados para
incrementar a segurança jurídico-tributária.
Quanto aos modelos de racionalidade jurídica, ainda que se optasse por um
que se considere socialmente desejável, não há garantias de que as autoridades
competentes o elejam. Ademais, mesmo se fosse aprovada, por exemplo, uma lei
obrigando que as autoridades competentes adotassem determinado modelo, isso
pouco adiantaria se não fosse possível fiscalizar o exercício de competências e de
direitos, isto é, se não fosse possível saber se a autoridade competente que alega
permanecer dentro dos limites de sua competência efetivamente o fez. Isso não
significa que os modelos normativos criados pela doutrina jurídica sejam inúteis. Eles
são úteis para influenciar os tomadores de decisão e para servir como guias na
fundamentação de decisões jurídicas, ou, ainda, para servir de ponto de referência
para que a doutrina e os formadores de opinião possam criticar as decisões tomadas.
Esses modelos, porém, têm seu potencial reduzido caso não se tenha acesso às
decisões jurídicas, para fiscalizá-las e criticá-las.
Além de ser um constrangimento institucional útil contra constantes alterações
interpretativas a respeito da legislação tributária, a publicidade do processo de
concretização normativa pode contribuir de outro modo para a segurança jurídica.
Em outras palavras, o aumento do fluxo de informações entre contribuintes e
órgãos fiscais, por meio da exposição de decisões jurídicas, em seus mais variados
sentidos (sejam autos de infração, decisões de primeira instância etc.), deve contribuir
para o aumento de shared sensibilities entre os diversos atores sociais envolvidos. É
que a transparência do processo de concretização das normas fiscais contribui com o
compartilhamento de expectativas entre os atores, realizando a derradeira função do
sistema do direito: filtrar e organizar expectativas, tornando previsíveis as conexões
intersubjetivas bem como a atuação estatal.
Embora Braithwaite utilize o conceito de shared sensibilities no contexto de
uma discussão sobre o papel das regras e dos princípios na construção de segurança
120
jurídica, debate que não será empreendido aqui, a ideia não perde sua utilidade para
esta dissertação. A ideia central é a de que conversações (regulatory conversations)
são necessárias para o estabelecimento das convenções interpretativas que tornam as
regras mais determinadas.182 As conversações comprometem os atores sociais
envolvidos a interpretar as regras de uma certa maneira. Enquanto as conversações
que se conectam a uma regra específica estiverem em pauta, a regra em questão pode
ser considerada determinada.
Um autor que formulou questões parecidas àquelas levantadas por Braithwaite
é Peter Häberle.183 Häberle destaca-se por uma visão republicana e democrática da
interpretação da Constituição, centrada na ideia de que uma sociedade aberta exige
uma interpretação igualmente aberta de sua lei fundamental: no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição.184
Nessa ordem de ideias, o autor alemão observa que a teoria da interpretação
constitucional, durante muito tempo, esteve vinculada a um modelo de interpretação
de uma sociedade fechada, concentrando-se primariamente na interpretação
constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados, do que resultou
empobrecido o seu âmbito de investigação. Por isso defende uma virada hermenêutica
radical para que a interpretação constitucional − que a todos interessa e a todos diz
respeito − seja levada a cabo pela e para a sociedade aberta, e não apenas pelos
operadores oficiais.
Em suma, como explica Inocêncio Mártires Coelho, no contexto de um Estado
de Direito que se pretende democrático e social, torna-se imperioso que a leitura da
Constituição se faça em voz alta e à luz do dia, no âmbito de um processo 182 Sobre as conversações regulatórias, Braithwaite cita estudos de Julia Black a respeito de regulação britânica de serviços financeiros. Para Black, a segurança na aplicação de uma regra só pode emergir de acordos sobre os seus termos dentro de uma comunidade interpretativa. A segurança não vem tanto de elementos objetivos como clareza e precisão das palavras que compõem as regras, mas de sensibilidades compartilhadas dentro de uma comunidade regulatória sobre a maneira de se interpretar determinada regra. Ver BLACK, Julia. Regulatory Conversations. Journal of Law and Society, Vol. 29, pp. 163-196, 2002. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=309215> Acesso em 29/1/2014. 183 Para um bom resumo sobre a obra de Häberle, ver: COELHO, Inocêncio Mártires. As idéias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, n. 137, 1998, pp. 157-164. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/343/r137-16.pdf?sequence=4> Acesso em 7/1/2014. 184 HÄBERLE, Peter. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1997, p. 13.
121
verdadeiramente público e republicano, pelos diversos atores da cena institucional −
agentes políticos ou não.185
Nessa perspectiva, a ampliação do número dos tradutores constitucionais
autorizados, ao mesmo tempo que promove a integração das diferentes perspectivas
hermenêuticas, opera como instrumento de prevenção e solução de conflitos. Noutras
palavras, à medida que asseguram o dissenso hermenêutico e racionalizam as
divergências de interpretação em torno da Constituição, ideias como as de Häberle
colaboram decisivamente para preservar a unidade política e manter a ordem jurídica,
que são os objetivos fundamentais de toda Constituição.
Não se está, com isso, a se aproximar do realismo jurídico, afirmando-se que
leis e precedentes não vinculam intérpretes. Ou que as opiniões de órgãos não
competentes ou de doutrinadores têm a capacidade de criar direito. Apenas busca-se
apoio em Häberle para afirmar que, no espaço de indeterminação intrínseco ao direito,
seja ele maior ou menor, a depender do caso, se a jurisdição constitucional, de forma
natural e continuada, conseguir preservar a sintonia entre a interpretação
constitucional e a realidade constitucional − tarefa que será tanto mais facilitada
quanto maior for a sua capacidade para auscultar e compreender os anseios sociais −,
as Cortes que exercem essa jurisdição política estarão legitimando os resultados da
sua atividade hermenêutica e contribuindo para tornar a aplicação das normas mais
determinada.
Quanto à crítica apontada com frequência de que a exegese constitucional
poderia dissolver-se num grande número de interpretações e de intérpretes,
instaurando-se uma babel hermenêutica, parece ser uma crítica de curto alcance.
Considerando que raramente é possível chegar a uma única resposta interpretativa
para cada norma, a argumentação deve ser capaz de demonstrar que a decisão tomada
é a melhor solução possível para o caso. As divergências interpretativas não são
prejudiciais, desde que resolvidas por meio de mecanismos jurídicos para dar
soluções a casos concretos. Entretanto, as decisões não impedem que o debate público
prossiga. Essa possibilidade é crucial: o debate de argumentos jurídicos fora dos
organismos jurisdicionais diferencia um sistema jurídico democrático de um
autoritário, voltado apenas à normalização e à pacificação social.
185 COELHO, Inocêncio Mártires. As idéias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no direito brasileiro.
122
Retomando o fio da exposição, é razoável dizer que Braithwaite traz a ideia de
comunidade interpretativa e seus conceitos subjacentes para o debate sobre segurança
jurídica nos mais diversos campos da regulação jurídica, inclusive no âmbito
tributário. Entende-se o mundo, incluindo textos como o Código Tributário, pela
sobreposição de paradigmas, por meio dos quais se confere sentido à experiência. Se
esses paradigmas são compartilhados com outros membros da comunidade
interpretativa, aumentam as chances de os textos legislativos terem o mesmo sentido
para todos os membros. Disso se depreende que quanto mais próximo o contexto
compartilhado daqueles que utilizam ou interpretam um dispositivo legal, menos
indeterminado o significado dessa disposição será, e o paradigma interpretativo
compartilhado pela comunidade terá sido mais eficaz em restringir os diversos
significados possíveis.186
Pesquisa comparativa entre diversos países a respeito do tema da regulação
bancária dá subsídios para sustentar que a criação de uma cultura regulatória
compartilhada é mais exitosa na construção de segurança jurídica do que sistemas
pautados exclusivamente por leis e regulamentos.
Edward Rubin relata que os regulamentos do Bundesbank (Banco Central)
alemão para garantir segurança bancária e solidez estão previstos em um panfleto de
menos de cem páginas. Já nos EUA, estatutos e normas operativas do Federal
Reserve Board preenchem várias pastas volumosas. Funcionários contratados pelo
Fed para trabalhar na regulação bancária, além de ter um diploma em direito ou
adquirirem uma boa nota em um concurso público, recebem algumas semanas de
treinamento em campo (on-the-job). O Bundesbank, por sua vez, matricula seus
“recrutas” em um “colégio” por três anos antes de entrarem em campo. Quando os
aspirantes a reguladores estão totalmente treinados e profissionalizados, todos se
dedicam a uma carreira no mesmo setor regulatório. Rubin nota que as autoridades
podem confiar neles para fazer julgamentos sensatos programaticamente e não
precisam limitar sua discricionariedade com regras detalhadas. Repetidamente,
funcionários de empresas multinacionais que foram entrevistados comentaram sobre a
186 Para um desenvolvimento da ideia de shared sensibilities, ver os seguintes textos de John Braihwaite: Making Tax Law More Certain: A theory. Australian Business Law Review, vol. 31, n. 2, pp. 72-80. Disponível em: <http://www.anu.edu.au/fellows/jbraithwaite/_documents/Articles/Making_Tax_2003.pdf> Acesso em 29/1/2014 e: Rules and Principles: A Theory of Legal Certainty. Australian Journal of Legal Philosophy, Vol. 27, pp. 47-82, 2002. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=329400 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.329400> Acesso em 29/1/2014.
123
maior dificuldade que tinham para fazer negócios com os reguladores das agências
norte-americanas – quando comparadas com as suas congêneres na Europa e no
Japão.187
Estudos de direito privado também apontam no mesmo sentido. Os insights
históricos e comparativos no texto Regulating Contracts de Hugh Collins apoiam o
argumento de que o direito contratual é mais calculável quando há um movimento em
direção a regras e princípios contratuais que fazem parte das conversas e da realidade
cotidiana das relações negociais de contratação.188 Collins também explicita a
possibilidade de que princípios podem ser interpretados com segurança por homens
de negócios que compreendem intuitivamente as relações comerciais em questão, mas
que, quando levados aos tribunais, não são interpretados com a mesma segurança,
pois os julgadores simplesmente não compartilham das mesmas “intuições” negociais.
Além disso, ele conclui que onde a resolução alternativa de litígios é conduzida por
árbitros e mediadores imbuídos dos usos e costumes do comércio, garante-se maior
consistência do que em Cortes tradicionais.
Enfim, embora esses exemplos estejam mais focados no debate entre
princípios e regras, eles demonstram que quanto maior for o compartilhamento de
expectativas, ou seja, a formação de uma cultura regulatória compartilhada entre
reguladores e atores regulados, maior a facilidade de se interpretar as leis e
regulamentos, sejam eles compostos por regras ou princípios. Isso porque as
convenções interpretativas a respeito das normas se tornam mais claras e precisas, o
que provavelmente traz efeitos benéficos para quaisquer tipos de normas, tenham elas
textura mais aberta ou mais fechada.
No âmbito tributário, embora se reconheça a carência de mais estudos
empíricos aprofundados que descrevam a realidade específica desse tema,
comparando diversos países, Marian Bette cita interessante exemplo de um projeto
piloto, iniciado em 2005, de compliance agreements celebrados entre autoridades
fiscais da Holanda e um grupo de vinte das maiores empresas do país. Foram
marcadas reuniões entre as mais altas autoridades fiscais e a diretoria dessas
187 KAGAN, Robert. The Consequences of Adversarial Legalism. In: KAGAN, R.; AXELRAD, L. (orgs.). Regulatory Encounters: Multinational Corporations and American Adversarial Legalism. Los Angeles e Londres: University of California Press, 2000. 188 COLLINS, Hugh. Regulating Contracts. Oxford: Oxford University Press, 1999.
124
empresas, durante as quais firmaram-se acordos chamados de compliance agreements
(acordos de conformidade).189
Acordos de conformidade são pactos sobre a forma e a intensidade da
fiscalização tributária. O fundamento dos acordos de conformidade repousa sobre
valores como confiança mútua, compreensão e transparência. Esta confiança tem de
ser justificada, e é por esse motivo que só foram chamadas empresas com sólidos
controles fiscais. As características fundamentais de um acordo de conformidade são:
(i) riscos fiscais significativos devem ser divulgados pela empresa em uma base de
dados em tempo real; (ii) a empresa apresenta os fatos e seu ponto de vista sobre as
consequências fiscais; (iii) a administração tributária, em troca, fornece em tempo
hábil seu ponto de vista sobre as consequências fiscais.
Isso resulta numa abordagem feita sob medida (tailor-made) para cada caso,
permitindo que ambas as partes adquiram certeza e segurança com antecedência,
possibilitando que as auditorias fiscais não precisem ocorrer com tanta frequência ou
de forma tão exaustiva quanto antes. É importante notar que o contato mais frequente
e em tempo real com as autoridades tributárias também diminui a necessidade de as
empresas procurarem consultoria tributária externa. O processo de elaboração dos
acordos incluiu também a solução de controvérsias fiscais que integravam a carteira
de contingências das empresas e que haviam ficado pendentes durante anos.
Destaque-se que os acordos não pretendem ignorar os limites da lei, da política
fiscal delineada pelo governo ou da jurisprudência, e tampouco criam direitos ou
obrigações adicionais para os contratantes. Um acordo de conformidade não é um
documento legal no sentido tradicional e não contém mais do que uma página e meia.
A primeira parte do projeto-piloto já foi avaliada. Ambas as partes, grandes
empresas e autoridades fiscais, afirmaram que esta nova forma de cooperação é mais
eficaz e eficiente do que o antigo modelo de relacionamento entre Fisco e
contribuintes, focado muito mais na detecção e punição de ilícitos tributários. Ambos
os contratantes listaram as seguintes vantagens: (i) lidar com questões concretas; (ii)
redução de incertezas; (iii) solução das questões em tempo razoável; (iv) as
autoridades fiscais acrescentaram ter notado um aumento da transparência e da
confiança mútua. Os acordos tornaram seus procedimentos internos mais rápidos, e a 189 Para mais informações, consultar: BETTE, Marian. Criteria for Orienting Examination on the Basis of Taxpayer Behavior. In: 43rd CIAT GENERAL ASSEMBLY – A modern vision of Tax Administration. Santo Domingo: CIAT, 2009. Disponível em: <http://migre.me/hE09h> Acesso em 29/1/2014.
125
gestão foi considerada de melhor qualidade. Também se notou que a comunicação
com as empresas havia aumentado e melhorado.
Além de reduzir incertezas e contribuir para o incremento da segurança
jurídico-tributária, aumentando a conformidade ao ideal político do Estado de Direito,
o aumento da troca de informações entre autoridades fiscais e contribuintes pode ter
outros efeitos colaterais saudáveis: provavelmente ocasiona aumento da confiança
entre ambos e, consequentemente, aumento da arrecadação tributária.
A transparência dos atos de aplicação das normas tributárias é um instrumento
útil para fomentar o debate público sobre questões relacionadas à tributação. Ela
possui o condão de estimular a deliberação pública sobre a melhor interpretação da
legislação tributária, tornando as instituições fiscais mais legítimas perante a
sociedade.
O debate de problemas dogmáticos fora das instituições especializadas pode
ter um efeito importante sobre a legitimidade do direito em face do cidadão comum.
O excesso de tecnicismo do debate jurídico pode torná-lo cerrado demais e passar a
impressão de motivar decisões de feição tecnocrática, completamente descoladas dos
interesses sociais e ininteligíveis para o cidadão comum.190
A discussão na esfera pública minimiza esse problema ao esclarecer as
questões tratadas pelo direito por formulá-las numa linguagem não especializada. É
importante para o cidadão comum compreender como funciona um processo
administrativo fiscal ou uma solução de consulta de interpretação da legislação
tributária, assim como, no campo econômico, é importante compreender as alterações
cambiais do real em face do dólar e os efeitos causados pelas oscilações dos juros
promovidas pelo Comitê de Política Monetária. É preciso promover uma aproximação
salutar entre cidadão, sistema tributário e instituições fiscais, e não se tornar refém das
críticas à complexidade do sistema e à relativa opacidade da Administração
Tributária.
Não bastasse o exposto, há dados empíricos de que o aumento da confiança,
por parte de uma dada população, nas instituições fiscais faz com que a sociedade
perceba a cobrança de tributos como sendo mais legítima, o que contribui para o
aumento da compliance voluntária e, consequentemente, para o incremento da
190 RODRIGUEZ, José Rodrigo. Dogmática é conflito: a racionalidade jurídica entre sistema e problema. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo; PÜSCHEL, Flavia Portella; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (orgs.). Dogmática é Conflito.
126
arrecadação.191 Ou seja, a longo prazo, o aumento do fluxo de informação entre Fisco
e contribuintes, causado pela publicidade do processo de concretização das normas
tributárias, tende a contribuir para o incremento da arrecadação tributária.
Desse modo, tomados os devidos cuidados quanto à proteção da privacidade
dos contribuintes – o que não impede o constante debate sobre os limites do que vem
a ser “vida privada” –, não há óbices à divulgação dos atos de aplicação da legislação
tributária. Pelo contrário, trata-se de medida que atende aos fundamentos do Estado
de Direito, uma vez que permite controlar a indeterminação das decisões produzidas
pelas instituições tributárias, aumentando a transparência e a previsibilidade, além de
atender à determinação de diversos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais.
Tem como consequências positivas a provável inibição de constantes alterações
interpretativas, bem como favorecer a formação de uma cultura regulatória
compartilhada entre instituições fiscais e contribuintes. Isso tudo é positivo para a
construção de um ambiente de maior segurança jurídica, aumenta a legitimidade do
Fisco perante a sociedade e, a longo prazo, contribui para o incremento da
arrecadação tributária.
191 Nesse sentido, ver: ALM, James; MARTINEZ-VAZQUEZ, Jorge. Tax Morale and Tax Evasion in Latin America. International Studies Program. Working Paper 07-04. Disponível em: <http://aysps.gsu.edu/isp/files/ispwp0704.pdf> Acesso em 26/5/2013. ALM, James; TORGLER, Benno. Do Ethics Matter? Tax Compliance and Morality. Journal of Business Ethics. 2011. Working Paper. Disponível em: <http://econ.tulane.edu/RePEc/pdf/tul1207.pdf> Acesso em 23/9/2013.
127
Conclusões
Depois de todos os meus esforços, aqui está o que acredito ser a verdade – não toda a verdade, mas uma verdade importante para mim e para os meus leitores, uma verdade que tentei justificar da melhor maneira possível e expressar com clareza suficiente para que eles encontrem em meu argumento bons motivos para concordar ou pelo menos reconsiderar aquilo em que acreditam. Wayne C. Booth, Gregory G. Colomb e Joseph M. Williams192
C1. A característica essencial do Estado de Direito consiste na previsibilidade
das consequências jurídicas das condutas praticadas por cada indivíduo, possibilitada
por regras e procedimentos estabelecidos de antemão. A previsibilidade coíbe o
arbítrio e assegura a liberdade dos cidadãos, que, com base naquele conhecimento,
podem realizar escolhas refletidas e programar suas vidas a longo prazo. O Estado de
Direito é a característica intrínseca de qualquer sistema jurídico, já que o objetivo do
direito é orientar comportamentos e estabelecer consequências jurídicas previamente.
No entanto, a conformidade àquele ideal político pode ocorrer em menor ou maior
grau em cada sistema: é preciso realizar pesquisas empíricas para investigar seus
limites e fronteiras e, eventualmente, propor reformas institucionais que impliquem
maior consistência com o Estado de Direito.
C2. O Estado de Direito não se faz apenas com regras gerais e abstratas. As
normas não são autoaplicáveis e dependem de instituições e pessoas que as apliquem,
complementando seu processo de concretização por meio de normas individuais e
concretas. Ainda que os aplicadores se atenham aos conteúdos normativos no
momento da aplicação, é preciso reconhecer que, em geral, as normas admitem
múltiplas interpretações. As normas gerais e abstratas estabelecem uma moldura na
qual se apresentam diversas possibilidades interpretativas para os aplicadores,
igualmente válidas. Ainda que modelos de racionalidade jurídica procurem criar
mecanismos e regras para diminuir o espaço de discricionariedade conferido por essa
moldura, é um consenso teórico o fato de que a aplicação das normas gerais e
abstratas envolve, ainda que minimamente, criação jurídica.
C3. Conhecer as normas gerais e abstratas não é suficiente para compreender o
direito positivo. Se não é possível estabelecer abstratamente os sentidos de todos os
192 A arte da pesquisa. Tradução de Henrique A. Rego Monteiro. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Ferramentas), p. 198.
128
conceitos contidos na legislação e tampouco prever todos os efeitos dela decorrentes,
abre-se um espaço de arbitrariedade e de instabilidade jurídica que torna o ideal de
segurança jurídica apenas aproximativo, porquanto se depende da interpretação de
diversos órgãos para conhecer o “derradeiro” sentido das normas gerais e abstratas.
Isso torna necessário conhecer as normas individuais e concretas introduzidas pelos
atos de aplicação para que se possa não apenas conhecer o direito positivo em toda
sua extensão, mas efetivamente garantir meios de controle do poder praticado pelos
órgãos competentes para aplicar as normas, assegurando a possibilidade de coibir
arbitrariedades e de ampliar a segurança jurídica também no momento da aplicação.
C4. O estudo dos atos de aplicação mostra-se essencial para a reconstrução da
dogmática do ordenamento jurídico. O exame das leis deve ser acompanhado do
estudo da jurisprudência e dos atos de aplicação isolados, também responsáveis pela
positivação do direito. Perdem força análises que vejam o direito positivo
estaticamente, apenas como texto normativo, sem levar em conta sua elaboração sob a
forma de normas e o processo de atribuição de sentido, levado a cabo pelas
autoridades aplicadoras.
C5. As decisões jurídicas, quando não for possível extrair uma única resposta
do texto legislativo, devem se apresentar exatamente como são: escolhas políticas. O
poder tende a fugir do direito, escondendo a indeterminação dos atos de aplicação
para naturalizar conceitos e tomar decisões arbitrárias como se fossem as únicas
possíveis. Isso permite tomar decisões imprevisíveis e irracionais, que não permitem
aos destinatários compreender os raciocínios que orientaram a tomada de decisão,
enfraquecendo o ideal político de Estado de Direito, cuja característica central é a
previsibilidade.
C6. Modelo de racionalidade jurídica consiste no conjunto de raciocínios
utilizados para resolver casos concretos a partir do direito posto, ou seja, do material
jurídico à disposição do juízo. Zona de autarquia é um espaço institucional em que as
decisões são tomadas sem que se possa identificar um modelo de racionalidade
jurídica específico, ou seja, em que as decisões são tomadas sem fundamentação
adequada. Dificilmente uma autoridade dirá “decido assim porque quero”, sendo
provável que esteja presente algum tipo de falsa justificação que pretenda conferir
forma aparentemente racional para decisões puramente arbitrárias. Uma zona de
autarquia, portanto, é composta por argumentos travestidos sob a forma de direito,
mas que, na prática, não permitem o controle pela sociedade, porque são irracionais.
129
C7. Zonas de autarquia constituem “áreas” do processo de concretização
normativa não transparentes e, portanto, imprevisíveis porque os argumentos são
irracionais e não seguem nenhum modelo de racionalidade jurídica específico. Elas
são utilizadas pelos detentores de posições de poder com o objetivo de congelar as
instituições postas, livrando-se da necessidade de justificar racionalmente suas
posições de domínio ao excluir determinados conceitos jurídicos e desenhos
institucionais do debate público.
C8. No percurso de pesquisas do NEF/Direito GV, constatou-se que o termo
“sigilo fiscal” é utilizado de modo deveras convicto, a transmitir a impressão de que
seria conceito dotado de contornos muito claros, como se houvesse conexão
automática entre as conclusões defendidas por interlocutores com quem o Núcleo
travou contato e o texto do dispositivo legal, ou seja, um argumento que obstruiria
qualquer tipo de discussão aprofundada sobre o assunto. Tal convicção não é
autorizada pelo art. 198 do CTN, cuja redação é consideravelmente vaga. A regra do
sigilo fiscal faz parte do grupo de disposições jurídicas de baixa densidade normativa.
C9. Conceitos como “situação econômica ou financeira do sujeito passivo” e
“natureza ou estado de seus negócios e atividades” são consideravelmente vagos e
não permitem chegar a conclusões definitivas a partir de sua simples leitura.
Praticamente toda e qualquer informação utilizada pelos Fiscos para realizar suas
atividades pode denotar indícios da situação econômica do sujeito passivo ou de seus
negócios. Ademais, a solução geral oferecida pelo legislador não soluciona
satisfatoriamente casos que, se considerados à época da redação da norma,
provavelmente receberiam tratamento específico. Se o legislador, no momento da
redação da norma, levasse em consideração a questão da publicidade dos atos de
aplicação da legislação tributária, certamente teria estabelecido previsão legislativa
específica para a questão.
C10. O processo de concretização da norma do sigilo fiscal é marcado por
várias zonas de autarquia. Em primeiro lugar, o Manual do Sigilo Fiscal, principal ato
interpretativo da Receita Federal acerca do tema, não é disponibilizado ao público, o
que impossibilita conhecer a interpretação oficial praticada pelo principal órgão da
Administração Tributária e cria a peculiar figura do “sigilo do sigilo”. Em geral, as
decisões analisadas limitam-se a citar o art. 198 para sustentar a posição interpretativa
tomada, como se houvesse inequívoca correspondência entre suas conclusões e o
texto legal citado. Não há esforço por parte desses órgãos no sentido de justificar suas
130
decisões, de modo racional, fazendo-se entender por todos os seus interlocutores. Esse
comportamento oculta a indeterminação dos atos de aplicação, procurando impor o
“conceito” de sigilo fiscal defendido pelas autoridades fiscais como se fosse o único
plausível e impossibilitando o desenvolvimento de um debate público informado
acerca do tema. Ressalve-se que há sérias dúvidas sobre a possibilidade de se chegar a
falar em um “conceito” naturalizado, porque não foi possível identificar um conceito
geral e abstrato que tenha sido utilizado em todos os atos analisados. Não se
identificou a utilização de uma racionalidade lógico-formal, que procura deduzir de
proposições gerais e abstratas, soluções para casos concretos.
C11. Nas poucas vezes em que as autoridades tributárias construíram algum
tipo de argumentação que não ficasse restrita à citação de dispositivos legais, fizeram-
no de modo temerário, sem se preocupar em esclarecer o leitor sobre as razões que os
levaram a decidir daquele modo. É o caso da frágil “ponderação” entre os
“princípios” da transparência e do sigilo fiscal, realizada em uma das respostas aos
pedidos de informação. A autoridade procura utilizar modelo de racionalidade jurídica
diverso apenas para justificar decisão que é essencialmente arbitrária. Nos trechos ou
incisos em que o texto do art. 198 é consideravelmente mais preciso, algumas
autoridades criam restrições inexistentes na lei, limitando-se a afirmar que aquilo que
decidiram é o que melhor atende aos princípios norteadores do ordenamento ou à
finalidade da norma interpretada. A argumentação baseada simplesmente na citação
de dispositivos legais é utilizada para sustentar até mesmo posições aparentemente
contrárias à respectiva norma geral e abstrata.
C12. Algumas autoridades utilizam elementos externos ao direito para reforçar
seu entendimento. Nesses casos, ao contrário do que geralmente se pensa a respeito da
atividade interpretativa de órgãos fiscais (no sentido de que ela se limitaria a “aplicar
a lei sem valoração pessoal”), essas autoridades recorrem a algum tipo de valor moral
ou político externo para desconsiderar o texto do art. 198 com o objetivo de fazer
prevalecer sua visão pessoal. Além de dissonar em relação ao “senso comum” a
respeito do que deveria ser a interpretação praticada por órgãos tributários, não há
preocupação alguma em apresentar argumentos mais robustos e sistematizados que
justifiquem a utilização desses elementos externos para desconsiderar o texto do art.
198. Ademais, há evidentes contradições entre as posições defendidas pelos órgãos da
Administração Tributária federal a respeito do sigilo fiscal, as quais são de três tipos:
(i) entre órgãos distintos da Administração Tributária federal, em relação ao mesmo
131
tipo de informação; (ii) entre entes federativos distintos, sobre a mesma informação;
(iii) posições divergentes defendidas pelo mesmo órgão em momentos diferentes.
C13. Os órgãos competentes para tomar decisões em matéria tributária no
Brasil, sejam eles integrantes da estrutura do Judiciário ou do Executivo, seguem um
modelo que Rodriguez chama de “justiça opinativa”. Uma decisão opinativa não é
capaz de se apresentar como sendo a melhor solução para o caso concreto à luz do
direito posto. Os atos de aplicação averiguados, não obstante sejam fundamentados
em algum dispositivo legal, expressam, na maior parte das vezes, opiniões pessoais
isoladas. Seria necessário que os atos de aplicação levassem em conta as posições da
doutrina, dos demais órgãos competentes e dos outros entes federativos para justificar
suas posições, e não simplesmente naturalizar suas opiniões isoladas como se a lei
fosse taxativa e não admitisse outras interpretações. Uma decisão racional precisaria
enfrentar as incoerências identificadas e apresentar justificativas que explicassem os
tratamentos diferenciados.
C14. A justiça opinativa é pouco previsível e transparente, subtraindo força do
Estado de Direito. Suas razões para decidir não são claras nem são explicitadas pela
instituição competente para tomar determinada decisão. Quem desejar descobrir por
que um órgão jurisdicional qualquer tomou esta ou aquela decisão, especialmente em
casos controversos, dificilmente chegará a fundamentos coerentes. Se o Estado de
Direito pressupõe decisões previsíveis e fundamentadas em normas gerais e abstratas,
a falta de transparência nos critérios interpretativos utilizados pelas autoridades
competentes é prejudicial para a conformidade àquele ideal político. Ao expor os
fundamentos das decisões, os órgãos jurisdicionais permitem que as partes e a esfera
pública como um todo possam controlar sua racionalidade à luz das normas positivas
de um determinado ordenamento jurídico.
C.15. Da análise do processo de concretização normativa do sigilo fiscal,
depreende-se que as decisões tomadas contêm zonas de autarquia que acabam por
contribuir para a formação de obscuridades no processo de concretização de outras
normas tributárias. A maior parte das autoridades competentes interpreta o sigilo a
ponto de inviabilizar o acesso a atos de aplicação de outras normas, sob o argumento
de que isso protegeria a privacidade dos contribuintes. Tais decisões, entretanto, não
conseguem demonstrar o que exatamente poderia violar a privacidade, limitando-se a
citar disposições legais para justificar decisões aparentemente opinativas, sem
enfrentar com detalhamento a questão proposta.
132
C16. Os autores que defendem o sigilo dos atos de aplicação das normas
tributárias argumentam que sua publicação violaria a privacidade dos contribuintes,
que teriam dados sobre sua situação econômico-financeira divulgados a toda a
sociedade. Nesse caso, a conformidade ao Estado de Direito, traduzida pela
possibilidade de conhecer as decisões dos órgãos públicos, cederia espaço ao direito à
privacidade dos particulares. Essa opção não é a mais adequada. Primeiro, porque, em
um Estado de Direito toda decisão deve ser fundamentada e relativamente previsível,
e o sigilo inviabiliza exercer tal controle de adequação do ato de aplicação às normas
gerais e abstratas. Em segundo lugar, porque essa prática inviabilizaria a interposição
de recursos pelos contribuintes para sanar divergências interpretativas quanto a
decisões discrepantes sobre casos similares. Em terceiro lugar, isso impossibilitaria a
fiscalização do tratamento igualitário dos cidadãos pelas instituições fiscais. E, por
último, é notória a complexidade da legislação tributária no país e, nesse contexto, as
decisões produzidas pelos órgãos fiscais são importantes fontes de orientação dos
contribuintes, exercendo função relevante na construção de um ambiente de segurança
jurídica.
C17. Solução que permitiria conciliar a conformidade ao Estado de Direito
com a privacidade de contribuintes seria a de publicar os atos processuais e demais
atos de aplicação das normas tributárias, suprimindo o nome do contribuinte e demais
informações que possam identificá-lo. “Vida privada” pressupõe que se está tratando
de uma vida específica e individualizável. Quando se utiliza como exemplo a situação
de um contribuinte sem revelar a quem se está referindo, não há constrangimento.
Privacidade pressupõe diferenciação de um indivíduo em relação aos demais
membros da sociedade. Essa diferenciação nada mais é do que a imagem que um
determinado cidadão ou empresa deseja transmitir aos demais membros de uma dada
comunidade. Por isso, poderia haver constrangimento se a revelação de certa
informação, de algum modo, interferisse nessa diferenciação, fazendo com que a
imagem que a sociedade possui a respeito de um indivíduo fosse modificada contra
sua vontade. Quando simplesmente se tira o foco dessa diferenciação, tratando as
informações de modo genérico, não pode haver violação à vida privada, porque não
há interferência no modo como o indivíduo se diferencia em relação ao restante da
sociedade. Não há distúrbio algum na imagem que aquele contribuinte específico
deseja que seus semelhantes tenham a seu respeito.
133
C18. Há diversas regras específicas que expressamente determinam a
publicação de atos e decisões produzidos por órgãos públicos. Não há óbice legal à
publicação de autos de infração, soluções de consulta sobre interpretação da
legislação tributária, decisões de primeira instância proferidas em processos
administrativos fiscais e demais atos de aplicação da legislação tributária, desde que
tomados cuidados para evitar violações à “vida privada” – o que não impede o
contínuo debate sobre os limites desse conceito, essencialmente vago e cambiante. Tal
solução é prevista pela Lei de Acesso à Informação (12.527/2011), a qual prescreve
que quando não for autorizado acesso integral à informação por ser ela parcialmente
sigilosa, é assegurado o acesso à parte não sigilosa com ocultação da parte sob sigilo.
C19. O primeiro passo para construir padrões interpretativos e decisórios que
perdurem no tempo e que não sejam alterados constantemente é dar publicidade aos
atos de aplicação das normas. Se esses atos não estiverem sujeitos ao escrutínio
público, os respectivos órgãos competentes sofrem pouquíssimo constrangimento para
perpetrar mudanças interpretativas. O processo interpretativo torna-se vulnerável e
mais suscetível a sofrer pressões em nome de interesses obscuros, configurando
caminho capaz de aumentar a arrecadação tributária sem a necessidade de aprovar
nova lei ou sem o ônus de justificar as mudanças interpretativas. Ou, ainda, abre-se
maior espaço para que interpretações não isonômicas sejam praticadas, beneficiando
atores política ou economicamente bem posicionados. Nesse sentido, a publicidade
funcionaria como constrangimento institucional contra modificações interpretativas
constantes. A necessidade de ocultar as decisões e interpretações demonstra a força da
publicidade e do Estado de Direito. Porque é preciso tratar como sigilosos atos que
veiculam as interpretações praticadas por órgãos fiscais, percebe-se o potencial que a
divulgação desses atos possui.
C20. O aumento do fluxo de informações entre contribuintes e órgãos fiscais,
por meio da exposição de decisões jurídicas em seus mais variados sentidos, deve
contribuir para o aumento de shared sensibilities entre os diversos atores sociais
envolvidos. A transparência do processo de concretização das normas tributárias
implica maior compartilhamento de expectativas entre os atores, realizando a
derradeira função do sistema do direito: filtrar e organizar expectativas, tornando
inteligíveis as conexões intersubjetivas bem como os limites e objetivos da atuação
estatal. Conversações (regulatory conversations) são necessárias para o
estabelecimento das convenções interpretativas que tornam as regras mais
134
determinadas, comprometendo os atores sociais envolvidos a interpretar as regras de
uma certa maneira. Entende-se o mundo, incluindo textos como o Código Tributário,
pela sobreposição de paradigmas, por meio dos quais se confere sentido à experiência.
Se esses paradigmas são compartilhados com outros membros da comunidade
interpretativa, aumentam as chances de o sentido dos textos legislativos ser o mesmo
para todos os membros. Em outras palavras, quanto mais próximo for o contexto
compartilhado por aqueles que utilizam ou interpretam um dispositivo legal, menos
indeterminado o significado dessa disposição será, e o paradigma interpretativo
compartilhado pela comunidade terá sido mais eficaz em restringir os diversos
significados possíveis.
135
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