1 a cultura como polÍtica?: histÓria oral, memÓria e a

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1 A CULTURA COMO POLÍTICA?: HISTÓRIA ORAL, MEMÓRIA E A GÊNESE DO CAMPO DA “POLÍTICA CULTURAL” EM CAMPOS DOS GOYTACAZES (1989-1992) GLAUBER RABELO MATIAS 1 1. Apresentação O contexto social e político dos anos de 1980 na cidade de Campos dos Goytacazes, situada na Região Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, oferece elementos importantes para a análise sobre as trajetórias sociais relativas a determinados personagens 2 que lograram, naquele certame, alcançar a condição de emergentes lideranças políticas no cenário municipal e estadual. 3 Especificamente, a cidade de Campos apresenta ao pesquisador interessado na observação sobre o lugar social de produção das ideias e da existência social, conforme aponta Karl Mannheim (1983), a possibilidade de compreender o sentido expresso na vitória de Anthony Matheus Garotinho 4 no 1 Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (PPGSP) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 2 Este texto é produto intelectual de minha pesquisa de tese de doutorado, em fase de desenvolvimento, de título provisório “Os Donos da Cultura: Os Grupos Campistas de Teatro Amador e a configuração de uma “Política Cultural” para Campos dos Goytacazes/RJ (1989-1992)”, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (PPGSP) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Realizo esta pesquisa sob a orientação da Profa. Dra. Luciane Soares da Silva (PPGSP/LESCE/UENF), com o auxílio de bolsa concedida pela CAPES. Minha tese de doutorado, a ser defendida no primeiro semestre do próximo ano, apresenta em seu estado atual da pesquisa, a análise da entrada de personagens ligados ao teatro amador campista na cena política em oposição ao “passado de elite”, e como estes elencaram a “cultura” como bandeira, significando a eleição de Anthony Garotinho em 1988 ao delimitar um tipo de “política cultural” de caráter “popular” para o município. Como vias de acesso metodológico ao problema de pesquisa aqui apresentado, trabalho simultaneamente a partir de três entradas, quais sejam: levantamento e revisão bibliográfica, entrevistas semiestruturadas sob o auxílio da História Oral, e pesquisa e análise documental. 3 Procurando analisar a constituição do que Maurice Halbwachs (2006) denominou por “trama sincrônica da existência social”, para a qual a combinação de diversos elementos como os personagens, suas histórias e seus contextos são fundamentais para o entendimento dos quadros sincrônicos da memória sobre o tempo passado, irei apresentar brevemente uma caracterização das personagens componentes do campo de pesquisa daqui por diante, quando estas forem citadas pela primeira vez. 4 Anthony William Matheus de Oliveira, conhecido como “Anthony Garotinho”. Foi eleito aos 28 anos para a Prefeitura de Campos, pelo PDT. Garotinho emergiu na cena política a partir de sua experiência no Rádio e no Teatro Amador Campista, sendo ator e diretor do Grupo de Teatro Abertura nos anos de 1980. Alcançou o cargo de vice-presidente da Associação Regional de Teatro Amador, a ARTA em 1983. Não eleito para a Câmara de Vereadores de Campos, em 1982, pelo PT, elegeu-se Deputado Estadual em 1986, já pelo PDT antes de se candidatar ao Executivo Municipal em 1988. Foi Prefeito também de 1997 a 1998 pelo PDT, quando sai para disputar o cargo de Governador do Estado do Rio de Janeiro, que exerce de 1999 a 2002, pelo PSB. Foi Deputado Federal de 2001 a 2015, pelo PR. (Ver Soffiati, 2003; Alvarenga, 1993).

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A CULTURA COMO POLÍTICA?: HISTÓRIA ORAL, MEMÓRIA E A GÊNESE DO

CAMPO DA “POLÍTICA CULTURAL” EM CAMPOS DOS GOYTACAZES (1989-1992)

GLAUBER RABELO MATIAS1

1. Apresentação

O contexto social e político dos anos de 1980 na cidade de Campos dos Goytacazes, situada

na Região Norte Fluminense do Estado do Rio de Janeiro, oferece elementos importantes para a

análise sobre as trajetórias sociais relativas a determinados personagens2 que lograram, naquele

certame, alcançar a condição de emergentes lideranças políticas no cenário municipal e estadual.3

Especificamente, a cidade de Campos apresenta ao pesquisador interessado na observação sobre o

lugar social de produção das ideias e da existência social, conforme aponta Karl Mannheim (1983),

a possibilidade de compreender o sentido expresso na vitória de Anthony Matheus Garotinho4 no

1 Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (PPGSP) da Universidade Estadual do

Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected].

2 Este texto é produto intelectual de minha pesquisa de tese de doutorado, em fase de desenvolvimento, de título

provisório “Os Donos da Cultura: Os Grupos Campistas de Teatro Amador e a configuração de uma “Política

Cultural” para Campos dos Goytacazes/RJ (1989-1992)”, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia

Política (PPGSP) da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Realizo esta pesquisa sob

a orientação da Profa. Dra. Luciane Soares da Silva (PPGSP/LESCE/UENF), com o auxílio de bolsa concedida pela

CAPES. Minha tese de doutorado, a ser defendida no primeiro semestre do próximo ano, apresenta em seu estado

atual da pesquisa, a análise da entrada de personagens ligados ao teatro amador campista na cena política em

oposição ao “passado de elite”, e como estes elencaram a “cultura” como bandeira, significando a eleição de

Anthony Garotinho em 1988 ao delimitar um tipo de “política cultural” de caráter “popular” para o município.

Como vias de acesso metodológico ao problema de pesquisa aqui apresentado, trabalho simultaneamente a partir de

três entradas, quais sejam: levantamento e revisão bibliográfica, entrevistas semiestruturadas sob o auxílio da

História Oral, e pesquisa e análise documental.

3 Procurando analisar a constituição do que Maurice Halbwachs (2006) denominou por “trama sincrônica da

existência social”, para a qual a combinação de diversos elementos como os personagens, suas histórias e seus

contextos são fundamentais para o entendimento dos quadros sincrônicos da memória sobre o tempo passado, irei

apresentar brevemente uma caracterização das personagens componentes do campo de pesquisa daqui por diante,

quando estas forem citadas pela primeira vez.

4 Anthony William Matheus de Oliveira, conhecido como “Anthony Garotinho”. Foi eleito aos 28 anos para a

Prefeitura de Campos, pelo PDT. Garotinho emergiu na cena política a partir de sua experiência no Rádio e no

Teatro Amador Campista, sendo ator e diretor do Grupo de Teatro Abertura nos anos de 1980. Alcançou o cargo de

vice-presidente da Associação Regional de Teatro Amador, a ARTA em 1983. Não eleito para a Câmara de

Vereadores de Campos, em 1982, pelo PT, elegeu-se Deputado Estadual em 1986, já pelo PDT antes de se

candidatar ao Executivo Municipal em 1988. Foi Prefeito também de 1997 a 1998 pelo PDT, quando sai para

disputar o cargo de Governador do Estado do Rio de Janeiro, que exerce de 1999 a 2002, pelo PSB. Foi Deputado

Federal de 2001 a 2015, pelo PR. (Ver Soffiati, 2003; Alvarenga, 1993).

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pleito municipal de 1988. A partir disto, é interessante notar o modo pelo qual a sua candidatura

pelo PDT ao Executivo Municipal chamou para si a condição de oposição política em relação a

grupos associados a uma imagem de “elite”, de “oligarquia”, de forças políticas representadas pela

figura do então Prefeito José Carlos Vieira Barbosa5, conhecido como “Zezé Barbosa”.

Os conteúdos ideológicos mobilizados nos anos de 1980, por tais grupos políticos em

Campos, e que estiveram presentes fundamentalmente na eleição de Anthony Garotinho para a

Prefeitura Municipal no final daquele decênio, oscilavam entre o espectro do “atraso” e do

“anacronismo” imputado pela figura de Garotinho ao seu inimigo político Zezé Barbosa, e a defesa

de um tempo mais “moderno” e “democrático”, este a ser simbolizado pela campanha do então

candidato pedetista. Sociologicamente, o problema a ser investigado reside nas formas pelas quais a

emergência da figura pública de Anthony Garotinho, não se dando num vazio de relações sociais e

políticas, esteve significada por um “discurso de ruptura” com o passado, como visto em Soffiati

(2003), fomentado pela participação de variados personagens oriundos do teatro amador campista

nos anos de 1970 e 1980, dentre os quais o próprio Anthony Garotinho.

Sendo assim, o objetivo delimitado para este texto é o de tecer breves apontamentos no

sentido de refletir sobre a ascensão política de personagens vinculados à área da “Cultura” na

cidade de Campos dos anos de 1980, e sobre os contextos sociais produtores destas lideranças

municipais e estaduais a partir da mobilização da “Cultura” como bandeira política estratégica para

a realização de tal intento. Proponho trazer à baila alguma discussão, sob o auxílio da História Oral6

e da literatura atenta ao tema da “memória”, sobre a compreensão das trajetórias sociais dos

personagens ligados ao teatro amador campista no que tange os lugares sociais ocupadas por estes

5 José Carlos Vieira Barbosa (o “Zezé Barbosa”) foi Prefeito de Campos dos Goytacazes por três mandatos: 1967-

1970, 1972-1976, 1982-1988, este último pelo PMDB. Zezé Barbosa era Prefeito de Campos quando da demolição

do Cine-Teatro Trianon em 1975 para a construção de uma agência bancária, fortemente associado por Garotinho

nos anos de 1980 ao episódio de demolição do Trianon, encontrando eco no dizer de Alvarenga (1993), “(...) um

crime cumpliciado pela insensibilidade politica e cultural do Prefeito José Carlos Vieira Barbosa que não se interpôs

na negociação entre a diretoria do Banco e a família Esperança, proprietária do Teatro, no sentido de impedir que

aquele patrimônio fosse destruído.” (Alvarenga, 1993, p. 107).

6 A incorporação dos debates concernentes ao campo de pesquisa da História Oral, com base em Ferreira & Amado

(1996), se deu pelo entendimento de que o contato com as versões orais dos personagens participantes do âmbito da

“Política Cultural” em Campos necessita seguir relativo grau de profundidade no acesso às diferentes visões dos

agentes em campo, ao mesmo tempo em que nos oferece maior clareza sobre o processo de construção e

reconstrução das narrativas pelos personagens sobre o tempo passado. Tenho ciência também de que os modos pelos

quais os personagens criam e recriam suas versões sobre os acontecimentos vividos devem ser compreendidos

também como estratégias de disputa pela memória acerca do passado.

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na configuração do que denomino por “campo” da “política cultural” a partir do primeiro Governo

Garotinho (1989-1992).

Há no nível do envolvimento dos personagens intimamente vinculados aos grupos amadores

de teatro campista (atores, diretores de teatro, teatrólogos, etc.) com a campanha de Anthony

Garotinho, e sobretudo com a construção pública da liderança municipal do então candidato, a

iniciativa deliberada de lutar em nome do que deveria ser, na visão daqueles personagens, a cidade

de Campos, a sua “história”, a sua “tradição”, os seus “lugares de memória”. Passo a questionar em

que medida a vitória de Anthony Garotinho em 1988 representou historicamente a configuração de

um “campo”7 com base na acepção trabalhada por Pierre Bourdieu (1998), onde a área da “política

cultural” seria pensada por determinados agentes sociais, que no nível do poder público municipal

reclamaram o monopólio de delimitação do que deveria ser a “cultura campista”, potencializando

suas biografias vinculadas a expressão teatral para a luta pela definição de um perfil para a “política

cultural” da cidade de Campos de fins dos anos de 1980.

2. Os Anos de 1980 e a “Cultura” como Bandeira Política em Campos dos Goytacazes

A cidade de Campos dos Goytacazes vivenciou, ao longo dos anos de 1980, a constituição

de um panorama de embates políticos simbolizados por distintas forças locais, o qual deitaria raízes

fundas na realidade social e política posterior daquele município. Devo sublinhar que a Campos dos

anos de 1980 trazia a imagem de uma cidade ainda vinculada ao símbolo do açúcar como traço

característico de sua economia, fundada a partir da dinâmica produtiva dos engenhos e das usinas

desde o século XIX, como frisa Alves (2009).

A economia local movida pela produção e comercialização do açúcar, no final do século

XIX e por todo o percurso histórico do século XX, fomentou a construção de uma auto-imagem da

cidade de Campos responsável por potencializar uma posição política e cultural através da busca

7 Utilizo, a partir daqui, o conceito de “campo” elaborado por Pierre Bourdieu significando um “espaço de forças e de

lutas”. (Bourdieu, 1998). Tenho ciência de que a abordagem bourdiesiana para a definição de “campo” (2003, 2008)

está situada ao centro da discussão acerca de sua “sociologia relacional”, ao tentar desvendar os pares de

“homologias estruturais” que reúnem numa mesma estrutura, as “disposições”, relativas aos agentes sociais em seus

esquemas de interpretação do mundo social, herdados e propensos a potencialização em suas vidas, e as “posições”,

entendidas como os lugares sociais de atuação dos personagens, que ao relegar a dinâmica de suas ações ao plano de

uma estrutura social, definida e definidora (no vocabulário bourdiesiano, “estruturas estruturadas” e “estruturas

estruturantes”) (Bourdieu, 1998). Estas dimensões circunscrevem e fomentam, simultaneamente, a leitura do social

por cada agente, legitimando suas práticas de toda ordem.

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por centralidade no cenário da Região Norte Fluminense e também no âmbito do Estado do Rio de

Janeiro.8 (Alves 2009; 2013).

Fato é que a economia açucareira sustentou, sobremaneira, durante o século XX, a

formação dos estilos de vida e dos “gostos” relativos a “elite campista”, como pontua Alves (2009),

composta por comerciantes e fazendeiros envolvidos politicamente com a definição de uma

“identidade campista”, simbolizada pelos passeios na Praça São Salvador, pelas tardes na

Confeitaria Americana, ou pela ida ao Teatro Orion para assistir ao que se apresentava de mais atual

em matéria de ópera e canto lírico. Assim como se destacava a frequência ao então recém-criado,

em 1921, Cine-Theatro Trianon, custeado pelo Capitão Francisco de Paula Carneiro (conhecido

como “Capitão Carneirinho”), considerado um dos grandes espaços culturais do País até os anos de

1970, quando foi demolido para a construção de uma agência bancária. (Alvarenga, 1993).

A partir deste momento de pujança econômica é que foram construídos o Teatro São

Salvador que, já em fins do século XIX, significou um lugar social e político de divulgação do

projeto de capitalidade de Campos em relação ao Estado, levada à cena pela Cia. Theatral de

Campos, a revista “Campos-Capital” em março de 1893, conforme Alves (2009). Também se

destacavam o Teatro Orion de fins do século XIX e o aclamado Cine-Theatro Trianon, tendo sua

obra iniciada em 08 de agosto de 1919 e entregue na primeira quinzena de outubro de 1920. Neste

prisma, o São Salvador, o Orion e o Trianon consituiriam-se enquanto espaços sociais de uma

“elite”, intimamente vinculada aos proventos originados em virtude do sucesso do açúcar9,

representando a expressão pública da riqueza daquele tempo, vista intensamente através dos modos

de pensar e agir, socialmente e politicamente, dos grupos mais abastados do município.

8 Alves (2009) aponta que os comerciantes e fazendeiros do açúcar de Campos representaram a constituição da “elite

política campista”, fomentando, até os anos de 1930, o objetivo de estabelecer Campos como “capital” do Estado do

Rio de Janeiro, sob a liderança de forças políticas como o Barão de Miracema e de Nilo Peçanha. Basicamente nos

anos de 1910 e 1920, a posição política ocupada por Nilo Peçanha, Presidente da República entre 1909 e 1910,

mostrou-se fundamental para a projeção regional e estadual campista. Para uma análise do “nilismo” como

influência deste personagem na vida política campista, ver Alves (2013).

9 A opulência econômica impulsionada pelo açúcar verificou o seu auge nos anos de 1920, donde, segundo Alves

(2009): “Pelo recenseamento de 1920, Campos possuía 97 estabelecimentos rurais e 27 usinas e engenhos centrais,

somando 124 unidades produtoras.” (Alves, 2009, p. 119). O apogeu da economia açurareira se fazia ver na

configuração do espaço urbano pela chamada “elite campista”, como ainda retrata Alves (2009): “Os anos 1910/20

foram de euforia. Anos de dinheiro farto, trazido pelo açúcar, que jorrou das turbinas e pelo vaivém dos negócios

empreendidos no Café High Life, a bolsa de negócios, onde circulavam as cocotes francesas. Do largo da imprensa e

do Boulevard do Comércio saíam as novidades.” (Alves, 2009, p.119).

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Interessante perceber como o Teatro (na sua expressão artística e cultural mas também em

sua configuração espacial) constituiu-se, ao longo do século XX, como símbolo da “identidade

campista” reclamada pelos grupos sociais e políticos associados ao “high society”. Na dinâmica de

configuração dos espaços sociais de “distinção”, conforme ideia trabalhada por Bourdieu (2008), da

“elite campista”, o lugar social ocupado pelo Teatro tornou-se fórum privilegiado do fluir das

classes mais abastadas da cidade. Dito isto, afirmo que, não por outro motivo, Campos dos

Goytacazes verificou, nos anos de 1980, a mobilização de personagens vinculados ao Teatro

campista como forma de influir nos destinos políticos do referido município, ao recorrer ao

imaginário produzido na história da cidade sobre o símbolo cultural do “teatro”, procurando

também “superar” este passado atribuído à figura da “elite campista”, em nome de um “outro

tempo” para Campos, como o que seria encampado pelo discurso de campanha de Anthony

Garotinho em 1988.

O cenário político e econômico de Campos nos anos de 1980 já se distanciava dos tempos

áureos do açúcar do início do século XX, transformação para a qual a gradativa falência das usinas

campistas10 representou um símbolo fundamental para a reorientação dos padrões de consumo

cultural e dos estilos de vida da “elite campista”. Evento marcante e ilustrativo dos impactos socio-

econômicos na conformação da “identidade campista” ainda nos anos de 197011 fora o episódio da

demolição do Cine-Teatro Trianon no ano de 1975, quando da sua compra pelo Banco Bradesco

para que em seu espaço situado no Boulevard do Comércio, no Centro da cidade, fosse construída

uma agencia bancária. (Alvarenga, 1993).

A demolição do antigo Teatro Trianon passou a representar um acontecimento decisivo para

a compreensão sobre o lugar daquele espaço social para a cidade de Campos, e da sua mobilização

nos discursos e ações políticas empreendidas pelas forças políticas que emergiriam no bojo da

década posterior. Para se ter maior clareza sobre tal evento, Alvarenga (1993) delimita a

envergadura história e política do referido evento acontecimento do dia 26 de junho de 1975: “Um

10 Alves (2009) faz questão de destacar que já em 1922: “A queda desenfreada do preço do açúcar – em 1922, o açúcar

caía para 190 dólares a tonelada – e a especulação desenfreada dos anos anteriores cedeu lugar a falências e

concordatas de bancas e casas comissárias.” (Alves, 2009, p.131).

11 Francisco (2009) mostra que até a década de 1970, havia um total de 24 usinas no Estado do Rio de Janeiro, das

quais 15 estavam localizadas em Campos. No final de 2008, havia apenas 7 em funcionamento em todo o Estado,

sendo que desse total, 4 encontravam-se localizadas em Campos. (Francisco, 2009).

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crime cumpliciado pela insensibilidade politica e cultural do Prefeito José Carlos Vieira Barbosa

que não se interpôs na negociação entre a diretoria do Banco e a família Esperança, proprietária do

Teatro, no sentido de impedir que aquele patrimônio fosse destruído.” (Alvarenga, 1993, p.107).

A figura política de Zezé Barbosa, em seu segundo mandato para o Executivo Municipal em

1975, fora diretamente associada a partir daquele momento ao ato de demolição do Trianon

entendido ali pelos grupos políticos de oposição a ele, na cidade de Campos, como marca de

relativo descaso do então Prefeito com a “cultura campista”. Zezé, nos anos de 1980, verificando o

seu terceiro mandato como Prefeito de Campos (1982-1988), teve na figura política de Anthony

Garotinho, o principal emblema de oposição naquele contexto, com vistas a disputa no pleito

municipal de 1988.

É necessário compreender, deste modo, o lugar social de fala e ação do personagem Anthony

Garotinho, entendendo a sua emergência enquanto liderança política naquele tempo histórico,

delimitando uma determinada “onipresença da cultura”, como pontua Soffiati (2003) em suas

propostas e programa de governo pelo PDT, em contraposição a construção política elaborada como

estratégia de campanha da imagem de seu opositor Zezé Barbosa, como representante do poder

oligárquico dos usineiros campistas, da “elite”, “anacrônico” posto que responsável pela demolição

de um símbolo notório dos campistas, o Trianon.

Precisamente, a campanha de Anthony Garotinho para as eleições de 1988 tem no elemento

da “cultura” um ponto decisivo para a compreensão histórico-sociológica da sua vitória naquele

pleito, assim como faz ressaltar o sentido atribuído pelos campistas àquele personagem como um

“lider” emergente naquele cenário político. Digo isto porque, não somente Anthony Garotinho, mas,

também outros personagens que estavam ao seu lado na plataforma de oposição à Zezé Barbosa

apresentavam suas origens sociais e políticas vinculadas à área do Teatro Amador campista.

Para se ter ciência deste debate, devo enfatizar que, segundo Alvarenga (1993), as

experiências do teatro amador em Campos datavam já dos anos de 1960,12 notabilizando-se por tons

12 Notabilizam-se a partir dos anos de 1960, o teatro amadorístico ligado aos chamados “grêmios” e também o teatro

estudantil, como por exemplo o Grêmio Amadorístico “Múcio da Paixão”, ligado ao Serviço Social do Comércio,

criado em fins da década de 60 e o Grêmio “Casimiro Cunha” da Escola Jesus Cristo, fundado em 1957.

Gradualmente, o Teatro Amador vai se configurando enquanto fórum importante para a tomada de consciência e

posição, políticas, também através de tons mais conservadores, como as experiências do “Grupo Chacrinha”, do

Grêmio “Casimiro Cunha”, ou Núcleo Amadorístico de Teatro Escola, todos nos anos de 1960. (Alvarenga, 1993).

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mais “conservadores” como as experiências do Grupo de Teatro Chacrinha, ou, aquelas mais

“combativas” como as do Teatro Escola de Cultura Dramática (TECD), numa perspectiva crítica em

relação ao regime militar, já nos anos de 1970.13

Historicamente, os Grupos campistas de Teatro Amador se destacaram por fazer emergir

lideranças artísticas em suas estruturas internas, dentre os quais os principais seriam: o “Grupo

Persona”, nos anos de 1960, representado por Winston Churchill Rangel, dramaturgo campista,

como “(...) um dos poucos a se posicionar frente ao momento político de então, propondo debates e

discussão na tentativa de romper o silêncio imposto pela Ditadura Militar (...)” (Alvarenga, 1993, p.

42), e o já citado “Teatro Escola de Cultura Dramática” simbolizado pelas figuras de Orávio de

Campos Soares14, teatrólogo campista, e de João Vicente Gomes de Alvarenga15, naquele momento

jovem ator e diretor, responsáveis por construir uma vertente ligada à formação teatral de jovens

atores e diretores.

Posteriormente, já no ano de 1980, a fundação do “Grupo Abertura” redimensiona o estado

da produção teatral amadora campista, revelando personagens como Fernando Leite Fernandes16,

Rosângela Barros17, posteriormente conhecida como “Rosinha Garotinho”, Sérgio Mendes18, e

13 De certa forma, seguia-se um caminho bastante encontrado no Brasil dos anos de 1960 e 1970: a articulação do

Teatro de caráter popular e crítico-propositivo com o engajamento político, sobretudo numa ação de combate ao

regime militar, como encarnado pela propostas dos CPC (Centros Populares de Cultura) da UNE (União Nacional

dos Estudantes) e do Teatro do Oprimido desenvolvido por Augusto Boal. Sobre isto, Alvarenga (1993) nos diz que:

“(...) o teatro é a grande tribuna onde a cultura brasileira consegue disseminar ideias, conserva a liberdade de se

exprimir e manter uma trincheira contra a censura e a violência ditatorial.” (Alvarenga, 1993, p.12).

14 Orávio de Campos Soares é ator, diretor de teatro e teatrólogo, também é Professor da Faculdade de Filosofia de

Campos (FAFIC). Esteve vinculado nos anos de 1970, em Campos, à construção do chamado “Teatro Escola de

Cultura Dramática”, de caráter popular e levado a cabo por jovens atores. Foi Secretário Municipal de Cultura de

2009 até 2013. Atualmente ocupa o cargo de Superintendente de Cultura do município, subordinado à Fundação

Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL), instância que concentra as ações de cultura do poder público municipal.

15 João Vicente Gomes de Alvarenga é Professor, Ator e Diretor de Teatro. Esteve presente no Departamento de

Difusão Cultural em 1976 da Prefeitura Municipal, com Amaro Prata Tavares, importante escritor campista, até o

ano de 1983-84, ocupando o cargo de Assessoria de Cultura. Foi Diretor do Teatro de Bolso entre os anos de 1980 e

1982. Retorna ao âmbito do Poder Público Municipal com a escrita da obra “Três atos da história do teatro em

Campos” publicada em 1993 (Alvarenga, 1993), financiada pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima

(FCJOL). Foi presidente da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima entre 1997 e 1999. Presidente da Fundação

Municipal Teatro Trianon e superintendente do Teatro Municipal Trianon em 2013.

16 Fernando Leite Fernandes é escritor, jornalista, ator e diretor de teatro. Formado em Comunicação Social pela

Faculdade de Filosofia de Campos (FAFIC). Filia-se ao PDT nos anos de 1980, elegendo-se Deputado Estadual em

1990 pelo partido. Foi Presidente da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL) nos anos de 1990.

17 Rosângela Barros Assed Matheus de Oliveira, conhecida como “Rosinha Garotinho”, nos anos de 1970, jovem atriz

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Anthony Garotinho, um dos fundadores e líderes daquele grupo. O anseio do Grupo Abertura ficaria

expresso em texto da peça produzida em 1983 chamada “Precisa Acontecer Alguma Coisa”, de

autoria de Fernando Leite Fernandes e Anthony Garotinho, que reafirmou a projeção do teatro

amador campista no sentido de sua emergência enquanto repertório cultural e político, consolidando

as “posições” (no sentido boudiesiano) no “campo cultural” municipal. O personagem Anthony

Garotinho afirma sobre tal espetáculo nos anos de 1980 que: “Precisa (...) é a vida sem cortinas, o

palco com todas as suas luzes acesas, pronto para um grande espetáculo, o amanhã.” (Alvarenga,

2003, p. 171).

Grosso modo, o que significaria a eleição de um Prefeito como personagem egresso das

fileiras do teatro amador campista? Em que medida o discurso de “ruptura” ou de “oposição”

encampado por Garotinho em 1988 toma a cultura, e mais especificamente, o teatro como “bandeira

política” estratégica com vistas a pontencializar a luta por poder no pleito daquele ano? E, sendo

assim, ao se considerar o teatro como símbolo cultural histórico da “identidade campista” de

outrora, em que medida logrou-se produzir ali, a partir dos anos de 1980, um “novo” contexto social

de produção do que seria a “memória campista”, como posso inferir com base em Halbwachs

(2006)? Tais questões podem ser matizadas, com nível de análise mais apurado, se observo os

acontecimentos que significaram o pleito de 1988, o primeiro Governo Garotinho (1989-1992) e a

configuração de uma “política cultural” para Campos naquele tempo histórico.

3. A Eleição de Anthony Garotinho em 1988 e a Gênese do “Campo” da Política Cultural em

Campos (1989-1992): Refletindo sobre acontecimentos e trajetórias

campista, iniciante no Teatro do Colégio Estadual Nilo Peçanha, onde era estudante. Integra o movimento teatral

campista, com experiências no Grupo de teatro do SESC, e posteriormente no Grupo Abertura nos anos de 1980.

Casada com Anthony Garotinho em 1981, filia-se ao PDT em 1985. Em 2002, é eleita para o Governo do Estado do

Rio de Janeiro. Em 2008, é eleita Prefeita de Campos (2009 – 2012), e reeleita para o mandato atual (2013-2016).

18 Sérgio Mendes era jovem ator de teatro nos anos de 1980, ligado ao Grupo Abertura. Ex-presidente do Partido da

Juventude (RJ) em 1988. Foi Secretário de Comunicação no primeiro Governo Municipal de Anthony Garotinho

(1989-1992) e presidente da Empresa Municipal de Transportes (EMUT). Candidata-se ao cargo de Prefeito por

indicação de Garotinho em 1992, pelo PDT. Foi eleito para o mandato ao Executivo Municipal no período de 1993 a

1996.

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Anthony Garotinho foi eleito Prefeito de Campos pelo PDT, aos 28 anos, em 03 de outubro

de 1988, com pouco mais de 30% dos votos válidos.19 Amparado por uma defesa da “cultura” como

bandeira política, teve a seu favor, segundo Soffiati (2003), os “votos de protesto” da população

campista em relação ao seu opositor, Zezé Barbosa, que naquele pleito apoiaria, Jorge Renato

Pereira Pinto, pelo PMDB. Conforme visto na seção anterior, a mobilização da candidatura de

Garotinho acionaria o tema da “culpa” histórica de 1975 imputada a Zezé Barbosa, isto é, “(...)

quando o Trianon foi estupidamente demolido, com a complacência do prefeito José Carlos Barbosa

(...)” (Pessanha, 1999: 182-183 Apud Soffiati, 2003, p. 135), logrando êxito político na luta por

poder na caminhada em direção ao Executivo Municipal.

Mas, questiono com base em Paul Ricoeur (2008, p. 190): “do que estamos falando quando

dizemos que algo aconteceu?”. Noutras palavras, qual o sentido histórico atribuído a candidatura e a

vitória de Garotinho em 1988? Quais foram os acontecimentos que propiciaram a ascensão

temporalmente meteórica daquele personagem no âmbito da política local? E, como aqueles

“acontecimentos”, enquanto testemunhos produzidos por determinados grupos a respeito dos fatos

históricos vividos, lograram oficializar versões sobre a “história” e a “cultura” de Campos,

germinadas pela campanha do então candidato, como a associação da demolição do Trianon à figura

de Zezé Barbosa?

Garotinho, que já havia disputado o pleito de 1983 para a Câmara de Vereadores, pelo PT,

sem obter sucesso, se filia ao PDT em 1985, com vistas a disputa da eleições de 1986, para

Deputado Estadual, da qual sai vencedor. Noto que o acontecimento da filiação ao PDT aparece

significado pela adesão à plataforma pedetista por vários nomes oriundos dos grupos teatrais já

citados, sobretudo do Grupo Abertura, a partir dos anos de 1985 e 1986, operando ali como critério

decisivo de aproximação entre o “campo cultural” (tanto no que tange à “posição” privilegiada

neste sub-campo do “teatro” quanto a potencialização de seus níveis de “capital cultural” trazidos

19 Os candidatos participantes das eleições municipais para Prefeito em 1988 foram: Jorge Pereira Pinto – indicado por

Zezé (PMDB – Secretário de Planejamento de Zezé Barbosa até 1988), Rockfeller Felisberto de Lima (PFL – já

eleito em 1970), Barbosa Lemos (PTB – tendo como candidato a vice-prefeito Paulo Albernaz), Amaro Gimenes

(PL – era identificado com membros da categoria empresarial e de usinas), Anthony Garotinho (PDT – eleito aos 28

anos, com vida pública no rádio e no teatro). (Soffiati, 2003, p.3).

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em suas experiências como atores, atrizes, diretores, teatrólogos) e o “campo político” (no que se

refere a pertença ao partido e a dinâmica de luta por poder inerente à maquina estatal). Personagens

como Anthony Matheus Garotinho, Rosângela Barros Assed, Fernando Leite, Sérgio Mendes,

dentre outros, se vinculariam ao PDT, encontrando na chancela do partido o aval necessário para

realizar a superação do “passado”, da “oligarquia”, enfim, das forças políticas de Zezé Barbosa

mediante o símbolo da “cultura” enquanto bandeira política estratégica.

Tal intento já estava expresso desde a fundação do Grupo Abertura em 1980, quando em 27

de junho, o “Manifesto à População e à Artistas” liderado pela Associação Norte Fluminense de

Arte Independente (ANFAI), simbolizada por ato público no Centro de Campos, projeta ideais

ambiciosos no sentido da participação dos grupos teatrais nas agendas políticas e culturais da cidade

e da Região Norte Fluminense, como exposto em parágrafo abaixo:

Nós, os profissionais e amadores técnicos, artistas, intelectuais, educadores e auto-didatas

do Norte Fluminense reunidos em Campos-RJ, inconformados que estamos com a situação

sufocante e de deterioração em que se encontra a nossa cultura e o aparelho cultural da

nossa região, sentimos a necessidade urgente de unir a classe através de uma associação

que possa lutar pelos direitos e pelos ideais da cultura regional (...) (Alvarenga, 1993, p.

167).

O nível dos debates em torno da escolha de Garotinho pelo PDT para as eleições de 1988, se

acentua, passo a passo, a incorporação de setores organizados cada vez mais amplos da “sociedade

campista”, incluindo além dos personagens oriundos do teatro amador, professores, intelectuais,

estratos da classe média campista, todos estes empenhados com as propostas do jovem candidato à

Prefeitura. O discurso e a bagagem de Anthony Garotinho em relação às suas experiências teatrais

no Grupo Abertura, assim como a sua trajetória ligada ao Rádio campista (tendo vivenciado nos

anos de 1980 o papel de locutor esportivo na Rádio Cultura, na qual passou a ter um programa

diário) não podem ser dissociadas mesmo do escopo das propostas político-partidárias do PDT dos

anos de 1980.

Neste sentido, a aproximação política entre personagens como Garotinho, Leonel Brizola

(tendo sido governador do Estado do Rio de Janeiro de 1983 a 1986) e o educador e antropólogo

Darcy Ribeiro (tendo sido vice-governador de Brizola e responsável por implantar os CIEPs)

fomentou também uma “afinidade eletiva” entre as “posições” ocupadas por Garotinho e pelos

personagens do teatro campista e a centralidade do setor da “política cultural” dispendida já no

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primeiro Governo Brizola, como a construção do Sambódromo em 1984, para a manifestação

cultural das tradicionais escolas de sambas cariocas, ou mesmo o entendimento dos CIEPs enquanto

“casas culturais”, como informa Damasceno (2013), baseado na indissociação entre “educação” e

“cultura”.

Garotinho estava à frente, já no segundo semestre de 1987, já como pré-candidato à

Prefeitura pelo PDT, de um “Seminário sobre Problemas Municipais” no Sindicato dos

Trabalhadores Rurais, onde já ali o projeto partidário pedetista representa apenas uma rubrica para

uma constelação de forças afinadas numa oposição a Zezé Barbosa, que foram constituidas por

partidos de centro-esquerda até o PCB (Partido Comunista Brasileiro) campista, por entidades

comunitárias, culturais e estudantis. Em outubro de 1987, é lançado o movimento denominado

“Frente Campos” (com adesões do PCB, PV, dentre outros partidos associados à esquerda), lá

estavam, além de Garotinho, Fernando Leite, Avelino Ferreira, dentre outros personagens afinados,

historicamente, à cena teatral amadora campista. O movimento “Frente Campos” passa a se

denominar “Muda Campos” em março de 1988, quando o PDT homologa as candidaturas de

Anthony Garotinho para Prefeito, e Adilson Sarmet Moreira, médico campista filiado ao PSB

(Partido Socialista Brasileiro) como Vice-prefeito. (Gomes, 2000).

“Um Governo Popular, Moderno e Democrático”: com estes dizeres impressos na capa de

seu Programa de Governo de 1988, Anthony Garotinho enquanto liderança a representar uma

constelação de forças políticas opositoras a Zezé Barbosa, pretendeu já nas linhas da sua plataforma

de campanha fornecer centralidade a área da “Cultura” de Campos, donde as primeiras medidas

seriam com o futuro governo: “Reativar o carnaval campista (...) Promover grandes bailes para o

povo (...) Transformar a festa de São Salvador em atração turística (...)” (Garotinho, 1988 Apud

Soffiati, 2003, p.112). A “praça”, o “carnaval”, o “povo”: tais elementos mais afinados a uma ideia

de “cultura popular” pretendiam, não à toa, romper com um determinado “passado” que teria na

visão dos personagens ligados ao “Muda Campos”, “abandonado” a dimensão da Cultura campista.

A perspectiva simbolizada pelas propostas do Grupo Garotinho para a área da “Cultura” a

partir de 1989, além de demarcar um viés “popular” (em contraposição a um passado de “elite”

vivenciado pela cidade) através da delimitação dos espaços sociais a serem frequentados pela

população campista, também logrou, estrategicamente, “resgatar as tradições campistas” (o termo é

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exatamente este), dentre as quais, a memória e a imagem do Teatro Trianon ocupariam lugar de

destaque. Fazia-se necessário, segundo a plataforma de campanha do pedetista, construir um novo

teatro de igual imponência, esta simbolizada pelo imaginário campista por aquele antigo Cine-

Teatro. Tal diagnóstico do pedetista assim decreta:

O teatro também vai mal em Campos, sustentado apenas pelo idealismo de alguns

membros, sem qualquer ajuda dos poderes municipais. Artistas do teatro campista passam

dificuldades financeiras, perdidos na falta de um movimento teatral em Campos, onde a

única casa de espetáculos digna – o Trianon – foi criminosamente demolida, com a

conivência inclusive, dos poderes municipais. (Garotinho, 1988 Apud Soffiati, 2003, Anexo

I).

O movimento político-cultural em torno do Trianon tem em 1989 seu ano decisivo, uma vez

que Garotinho, em seu primeiro ano de mandato, consegue junto à Direção do Banco, o depósito de

um milhão de dólares na conta da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima (FCJOL), o principal

órgão gestor da “política cultural” de seu governo. O projeto do “Novo Trianon”, como seria

denominado, recebe novos contornos com o lançamento da pedra fundamental em 1991 a ser

inaugurada em novo terreno situado entre a Rua Saldanha Marinho e a Rua Marechal Floriano, no

centro da cidade. As palavras expressas no convite emitido à população campista para inauguração

do marco para a construção do novo espaço teatral para Campos, publicado no Jornal municipal

“Folha da Manhã” em 13 de novembro de 1991, é elucidativa dos anseios do governo em questão

para a definição oficial daquele “bem cultural”:

A Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes convida a classe artística, a imprensa e

a comunidade de um modo geral para o lançamento da pedra fundamental do Novo

Trianon, maior projeto cultural do interior do Estado, marco do resgate da cultura do povo

campista. (Folha da Manhã, 13/11/91 Apud Alvarenga, 1993, p.131)

No referido acontecimento, estavam lá, ao lado do Prefeito Garotinho, Cristina Lima,

primeira presidenta da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, Avelino Ferreira, então

presidente da Associação Regional de Teatro Amador (ARTA), e Hervé Salgado Rodrigues, escritor

campista e personagem historicamente envolvido com a causa teatral, todos estes autorizando, no

sentido de potencializar suas “disposições” a um projeto político oficial, a definição da reinvenção

do Trianon como causa histórica dos campistas.

4. Considerações Preliminares

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De acordo com as considerações tecidas no decorrer do presente texto, propus compreender

o panorama político vivenciado pela cidade de Campos dos Goytacazes nos anos de 1980, com o

objetivo de deslindar os fatores promotores da emergência da figura pública de Anthony Garotinho

enquanto Prefeito, a chamar para si, mediante o seu envolvimento com a área teatral amadora de

perspectiva crítica naquele tempo histórico, o monopólio de dizer e de poder dizer sobre a “cultura

campista”. Sociologicamente, é fundamental ter em mente que a possibilidade de ascensão política

de Garotinho naquela tela só se efetivou a partir de um cenário de acontecimentos e encontros de

trajetórias de variados personagens, os quais procurei caracterizar de forma breve ao longo do

trabalho.

A análise sobre as distintas trajetórias que preenchem de significado a empreitada do fazer

amadorístico em teatro na cidade, o movimento “Muda Campos” e a vitória de Garotinho em 1988,

assim como a sua primeira gestão como Prefeito de 1989 a 1992, deve ser buscada no mapeamento

dos diversos agentes sociais que ocupam uma série de “posições” no campo, “cultural” e “político”

(quando transitam de um a outro segundo os seus volumes de “capital” adquirido), fazendo-me

recusar aqui, com Bourdieu (2006), uma análise estritamente biográfica do problema em questão.

Fez-se preciso atentar para os mecanismos sociais que favoreceram a tomada de posição dos

distintos personagens, especificamente da entrada destes no “campo político” na campanha do

candidato pedetista, assim como de suas estratégias elaboradas, como o “discurso de ruptura” em

relação a forças políticas entendidas como “antigas” ou “arcaicas”, para as quais a figura de Zezé

Barbosa seria o símbolo mais ilustrativo.

Ao mesmo tempo, flagrei o processo de apropriação de um “tempo passado” e de seus

símbolos como o Teatro Trianon segundo as versões defendidas por Garotinho em seu Programa de

Governo de 1988. A ideia de “resgatar as tradições campistas”, dentre as quais a expressão artístico-

cultural do Teatro parecia ser proeminente nos discursos de campanha do pedetista, operou ali como

tentativa de vislumbrar um “tempo futuro” sob os ideais de “democracia” e “progresso”, ao

incorporar os elementos que constituiam na visão daqueles a “identidade campista”, como a

representação do antigo Cine-Teatro Trianon na história cultural, num processo de luta pela

definição da “nova Campos”. Ou seria a delimitação de um “habitus” campista associado à

possibilidade concreta de manutenção do poder político num tempo longínquo?

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