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A FÁBULA CINEMATOGRÁFICA

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a fábula cinematográfica

Coleção Campo Imagético

Campos artísticos possuem uma dinâmica que extrapola tradições históricas. O Campo Imagético, assim pensado, parece convergir, impulsionado pela presença de tecnologias digitais. Mas, para além de uma linha evolutiva tecnológica, podemos reconhecer territórios bem demarcados, campos de expressão artística. Esta coleção pretende mostrar a pesquisa histórica e a análise da imagem e do som no cinema, no vídeo, na fotografia, na internet, na televisão.

Fernão Pessoa Ramos Coordenador da coleção

P A P I R U S E D I T O R A

a fábula cinematográfica

Jacques rancière

tradução christian Pierre Kasper

© Jacques Rancière / Editions du Seuil, 2001Coll. La librairie du XXIe siècle, sous la direction de Maurice Olender.

Tradução: Christian Pierre KasperCapa: Fernando Cornacchia

Imagem de capa: © Roma, cidade aberta (Roberto Rossellini). Col. Cahiers du Cinéma

Coordenação: Ana Carolina Freitas e Beatriz MarchesiniCopidesque: Lúcia Helena Lahoz Morelli

Diagramação: DPG EditoraRevisão: Daniele Débora de Souza,

Isabel Petronilha Costa e Maria Lúcia A. Maier

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rancière, Jacques A fábula cinematográfica/Jacques Rancière; tradução Christian Pierre Kasper – Campinas, SP: Papirus, 2013. – (Coleção Campo Imagético)

Título original: La fable cinématographique.Bibliografia.ISBN 978-85-308-0989-8

1. Cineastas 2. Cinema 3. Filmes cinematográficos 4. Narrativa I. Título. II. Série.

13-01480 CDD-791.43

Índice para catálogo sistemático:

1. Cinema: Arte 791.43

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: © M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. – Papirus Editora R. Dr. Gabriel Penteado, 253 – CEP 13041-305 – Vila João Jorge Fone/fax: (19) 3272-4500 – Campinas – São Paulo – Brasil E-mail: [email protected] – www.papirus.com.br

Proibida a reprodução total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada à Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos (ABDR).

Exceto no caso de citações, a grafia deste livro está atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009.

PRÓLOGO: UMA FÁBULA CONTRARIADA

AS FÁBULAS DO VISÍVEL ENTRE A ERA DO TEATRO E A DA TELEVISÃO

1. A LOUCURA EISENSTEIN

2. TARTUFO MUDO

3. DE UMA CAÇA AO HOMEM À OUTRA: FRITZ LANG ENTRE DUAS ERAS

4. A CRIANÇA DIRETORA

NARRATIVA CLÁSSICA, NARRATIVA ROMÂNTICA

5. ALGO A SER FEITO: POÉTICA DE ANTHONY MANN

6. O PLANO AUSENTE: POÉTICA DE NICHOLAS RAY

SE EXISTE UMA MODERNIDADE CINEMATOGRÁFICA

7. DE UMA IMAGEM À OUTRA? DELEUZE E AS ERAS DO CINEMA

8. A QUEDA DOS CORPOS: FÍSICA DE ROSSELLINI

9. O VERMELHO DE a cHineSa: POLÍTICA DE GODARD

Sumário

7

2735

5173

83101

113129147

FÁBULAS DO CINEMA, HISTÓRIAS DE UM SÉCULO

10. A FICÇÃO DOCUMENTÁRIA: MARKER E A FICÇÃO DA MEMÓRIA

11. UMA FÁBULA SEM MORAL: GODARD, O CINEMA, AS HISTÓRIAS

ÍNDICE DOS FILMES CITADOS

ORIGEM DOS CAPÍTULOS

159171

187

191

A fábula cinematográfica 7

Geralmente, o cinema representa mal a anedota. E “ação dramática” é nele um erro. O drama que age já está meio resolvido e segue o caminho curativo da crise. A verdadeira tragédia está em suspenso. Ameaça todos os rostos. Está na cortina da janela e no fecho da porta. Cada gota de tinta pode fazê-la florescer na ponta da caneta. Dissolve-se no copo d’água. O quarto todo satura-se de drama em todos os estágios. O charuto fuma como uma ameaça na garganta do cinzeiro. Poeira de traição. O tapete esparrama arabescos venenosos e os braços da poltrona tremem. Agora, o sofrimento está em sobrefusão. Espera. Ainda não se vê nada, mas o cristal trágico que vai criar o bloco do drama caiu em algum lugar. Sua onda avança. Círculos concêntricos. Ela rola de ponto em ponto. Segundos.O telefone toca. Tudo está perdido.Então, realmente, você não faz tanta questão de saber se casam no final. Mas NÃO HÁ filme que acabe mal, e entra-se na felicidade na hora prevista pelo horário.O cinema é verdadeiro. Uma história é uma mentira.1

Essas linhas de Jean Epstein põem a nu o problema colocado pela própria noção de fábula cinematográfica. Escritas em 1921 por um jovem de 24 anos, elas saúdam, com o título de Bonjour cinéma, a revolução artística trazida, segundo ele, pelo cinema. Ora, Jean Epstein resume, da forma mais concisa, essa revolução, em termos que parecem invalidar o propósito mesmo deste livro: o cinema está para a arte das histórias assim como a verdade está para a mentira. O que ele dispensa não é apenas a expectativa infantil do fim do conto, com seu casamento e seus numerosos filhos. É a “fábula” no sentido aristotélico, o agenciamento de ações necessárias ou

1. Jean Epstein, Bonjour cinéma. Paris: Éditions de la Sirène, 1921; Écrits sur le cinéma. Paris: Seghers, 1974, p. 86.

PrÓlogo uma fábula contrariaDa

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verossímeis que, pela construção ordenada do nó da trama e do desfecho, faz passar os personagens da felicidade para a infelicidade ou da infelicidade para a felicidade. Essa lógica das ações agenciadas definia não somente o poema trágico, mas também a própria ideia de expressividade da arte. Ora, essa lógica é ilógica, nos diz o jovem. Ela contradiz a vida que pretende imitar. A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para fins, mas somente situações abertas em todas as direções. Ela não conhece progressões dramáticas, mas um movimento longo, contínuo, feito de uma infinidade de micromovimentos. Essa verdade da vida encontrou, enfim, a arte capaz de expressá-la: a arte em que a inteligência que inventa mudanças de sorte e conflitos de vontades se submete a outra inteligência, a inteligência da máquina que não quer nada nem constrói histórias; mas registra a infinidade dos movimentos que faz um drama cem vezes mais intenso que qualquer mudança dramática de sorte. No princípio do cinema, há um artista “escrupulosamente honesto”, um artista que não trapaceia, que não pode trapacear, pois se limita a registrar. Mas esse registro não é mais aquela reprodução idêntica das coisas em que Baudelaire via a negação da invenção artística. O automatismo cinematográfico encerra a querela da técnica e da arte, ao mudar o próprio estatuto do “real”. Ele não reproduz as coisas tais como elas se oferecem ao olhar. Registra-as tais como o olho humano não as vê, tais como vêm a ser, como ondas e vibrações, antes de sua qualificação como objetos, pessoas ou acontecimentos identificáveis por suas propriedades descritivas e narrativas.

Por isso a arte das imagens móveis pode inverter a velha hierarquia aristotélica que privilegiava o muthos – a racionalidade da intriga – e desvalorizava a opsis – o efeito sensível do espetáculo. Ela não é apenas a arte do visível que teria anexado, graças ao movimento, a capacidade da narrativa. Também não é uma técnica da visibilidade que teria substituído a arte de imitar as formas visíveis. Ela é o acesso aberto à verdade interior do sensível que encerra as querelas de prioridade entre as artes e os sentidos, porque encerra, primeiro, a grande querela do pensamento e do sensível. Se o cinema revoga a velha ordem mimética, é porque resolve a questão da mimese em sua raiz: a denúncia platônica das imagens, a oposição da cópia sensível e do modelo inteligível. O que o olho mecânico vê e transcreve, nos diz Epstein, é uma matéria igual à mente, uma matéria sensível imaterial, feita de ondas e de corpúsculos. Ela abole toda oposição entre as aparências enganadoras e a realidade substancial. O olho e a mão que se esforçavam para reproduzir o espetáculo do mundo, o drama que explorava as molas secretas da alma pertencem à velha arte porque pertencem à velha ciência. A escrita do movimento pela luz reduz a matéria ficcional à matéria sensível. Reduz a perfídia das traições, o veneno dos crimes, ou a angústia dos melodramas à suspensão de grãos de poeira, à fumaça de um charuto, ou aos arabescos de um tapete. E reduz esses aos movimentos íntimos de uma matéria imaterial. Tal é o drama novo que encontrou no cinema seu artista. O pensamento e as coisas, o interior e o exterior são nele presos na mesma textura,

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indistintamente sensível e inteligível. O pensamento imprime-se na testa em “toques de ampere” e o amor de tela “contém o que nenhum amor havia contido até agora: sua justa parte de ultravioleta”.2

Manifestamente, essa visão é de outro tempo. Mas existem várias maneiras de medir a distância. A primeira é nostálgica. Constata que, fora da fiel fortaleza do cinema experimental, a realidade do cinema traiu, há muito tempo, a bela esperança de uma escrita de luz, opondo a presença íntima das coisas às fábulas e aos personagens de antigamente. A jovem arte do cinema não somente reatou com a velha arte das histórias. Tornou-se sua mais fiel guardiã. Usou sua potência visual e seus meios experimentais não somente para ilustrar velhas histórias de conflitos de interesses e de provações amorosas. Colocou-os a serviço da restauração de toda a ordem representativa que a literatura, a pintura e o teatro haviam solapado. Restaurou as intrigas e os personagens típicos, os códigos expressivos e as velhas forças do páthos, e até a estrita divisão em gêneros. A nostalgia acusa, então, a involução do cinema, atribuída a dois fenômenos: o corte do cinema falado, que anulou as tentativas da língua das imagens; a indústria hollywoodiana, que reduziu os criadores cinegrafistas ao papel de ilustradores de roteiros baseados, para fins de rentabilidade comercial, na padronização das intrigas e na identificação com os personagens.

A segunda maneira é condescendente. Sem dúvida, diz, estamos hoje longe desse sonho. Mas é simplesmente porque ele não passava de uma utopia inconsistente. Estava em sincronia com a grande utopia daquele tempo, com o sonho estético, científico e político de um mundo novo, onde todos os pesos materiais e históricos seriam dissolvidos no reino da energia luminosa. Dos anos de 1890 aos anos de 1920, essa utopia paracientífica da matéria dissolvida em energia inspirou tanto os devaneios simbolistas do poema imaterial quanto o empreendimento soviético de construção de um novo mundo social. Com o pretexto de definir a essência da arte com base em seu dispositivo técnico, Jean Epstein nos teria dado apenas uma versão particular do grande poema da energia que sua época cantou e ilustrou de mil maneiras: nos manifestos simbolistas à la Canudo e nos manifestos futuristas à la Marinetti; nos poemas simultaneístas de Apollinaire e de Cendrars, glorificando a luz fluorescente e a TSF, ou nos poemas da língua transmental de Khlébnikov; nos dinamismos dos bailes populares à la Severini e nos dinamismos de círculos cromáticos à la Delaunay; no cine-olho de Vertov, na cenografia de Appia, ou na dança luminosa de Loie Fuller... Foi sob o império dessa utopia do novo mundo elétrico que Epstein teria escrito esse poema do pensamento gravado em toques de ampere e do amor dotado de sua justa parte de ultravioleta. Ele teria saudado uma arte que não existe mais, pelo simples motivo de que nunca existiu. Não é a nossa,

2. Ibid., p. 91.

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mas não era, tampouco, a sua: não aquela que apresentavam as salas de seu tempo, nem mesmo aquela que ele mesmo fazia – na qual contava, ele também, histórias de amor infelizes e outras dilacerações de coração à moda antiga. Saudou uma arte que só existia em sua cabeça, um cinema que era apenas uma ideia nas cabeças.

Não é certo que a condescendência nos instrua melhor que a nostalgia. O que é, exatamente, a simples realidade da arte cinematográfica à qual ela nos remete? Como se estabelece nela a relação entre um dispositivo técnico de produção de imagens visíveis e uma maneira de contar histórias? Não faltaram teóricos que quiseram estabelecer a arte das imagens móveis sobre as bases sólidas de seus meios próprios. Mas os meios próprios da máquina analógica de ontem e da máquina digital de hoje mostraram-se igualmente próprios a filmar as provações amorosas, ou a dança de formas abstratas. É somente em nome de uma ideia da arte que se pode estabelecer a relação de um dispositivo técnico com tal ou tal tipo de fábula. Cinema, como pintura ou literatura, não é apenas o nome de uma arte cujos procedimentos se deduziriam de sua matéria e de seu dispositivo técnico próprios. É, como eles, um nome da arte, cujo significado atravessa as fronteiras das artes. Talvez, para entendê-lo, seja preciso um novo olhar sobre aquelas linhas de Bonjour cinéma, e sobre a ideia da arte que elas implicam. À velha “ação dramática”, Epstein opõe a “verdadeira tragédia”, que é a “tragédia em suspenso”. Ora, esse tema da tragédia em suspenso não se reduz à ideia da máquina automática inscrevendo na película o rosto íntimo das coisas. Ele identifica ao poder do automatismo maquínico uma outra coisa: uma dialética ativa em que a tragédia se ganha de uma outra: a ameaça do charuto, a traição da poeira ou o poder venenoso do tapete, dos encadeamentos narrativos e expressivos tradicionais da espera, da violência ou do receio. O texto de Epstein opera, em suma, um trabalho de desfiguração. Ele compõe um filme com os elementos de outro. E, de fato, o que ele nos descreve não é um filme experimental – real ou imaginário – feito propositalmente para atestar a potência do cinema. É, na realidade – conforme entenderemos depois –, um filme extraído de um outro, de um melodrama de Thomas Harper Ince intitulado The honor of his house e interpretado por um ator fetiche da época, Sessue Hayakawa. A fábula – teórica e poética – que nos conta a potência originária do cinema é extraída do corpo de uma outra fábula, da qual Epstein apagou os aspectos narrativos tradicionais para compor uma outra dramaturgia, um outro sistema de expectativas, de ações e de estados.

Assim, a unidade-cinema desdobra-se exemplarmente. Jean Epstein saúda uma arte que reconduz a uma unidade de princípio a dualidade da vida e das ficções, da arte e da ciência, do sensível e do inteligível. Mas essa essência pura do cinema não se constrói senão extraindo do melodrama filmado a obra de um “puro” cinema. Ora, essa maneira de fazer uma fábula com outra não é uma ideia de época. Ela é um dado constitutivo do cinema como experiência, como arte e como ideia da arte. Mas também é um dado que inscreve o cinema numa continuidade

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contraditória com todo um regime da arte. Fazer um filme sobre o corpo de outro é o que não cessaram de fazer, de Jean Epstein até nós, os três personagens que o cinema reúne: os cineastas “encenando” roteiros, nos quais podem não ter tido nenhuma participação; os espectadores, cujo cinema é feito de lembranças misturadas; os críticos e os cinéfilos que compõem uma obra de formas plásticas puras, sobre o corpo de uma ficção comercial. É também o que fazem os autores das duas grandes sumas que tentaram resumir a potência do cinema: os dois volumes de Cinéma, de Deleuze, e os oito episódios das História(s) do cinema, de Godard. Constituem uma ontologia do cinema, argumentada por amostras retiradas do conjunto do corpus da arte cinematográfica. Godard defende uma teoria da imagem-ícone e argumenta extraindo puros planos plásticos das imagens ficcionais que sustentam os enigmas e os afetos das ficções hitchcockianas. Deleuze apresenta uma ontologia em que as imagens do cinema são duas coisas em uma: são as próprias coisas, os acontecimentos íntimos do devir universal, e são as operações de uma arte que restitui aos acontecimentos do mundo a potência da qual foram privados no anteparo opaco do cérebro humano. Mas a dramaturgia dessa restituição ontológica opera-se, como a dramaturgia da origem em Epstein ou Godard, por extração dos dados da ficção. A perna paralisada de Jeff em Janela indiscreta (Rear window), ou a vertigem de Scottie em Um corpo que cai (Vertigo) encarnam a “ruptura do esquema sensório-motor” pela qual a imagem-tempo arranca-se da imagem-movimento. Em Deleuze, como em Godard, opera a mesma dramaturgia que marca a análise de Jean Epstein: a essência originária da arte cinematográfica é extraída, a posteriori, dos dados ficcionais que ela compartilha com a velha arte das histórias. Mas se essa dramaturgia é comum ao pioneiro entusiasta do cinema e ao seu historiógrafo desencantado, ao filósofo sofisticado como aos teóricos amadores, é porque é consubstancial à história do cinema como arte e como objeto de pensamento. A fábula pela qual o cinema diz sua verdade extrai-se das histórias que suas telas contam.

A substituição operada pela análise de Jean Epstein é, portanto, outra coisa além de uma ilusão de juventude. Essa fábula do cinema é consubstancial à arte do cinematógrafo. Mas isso não quer dizer que ela tenha nascido com ele. Se a dramaturgia enxertada por Jean Epstein na máquina cinematográfica chegou até nós, é porque ela é tanto uma dramaturgia da arte em geral quanto do cinema em particular; é porque ela é própria do momento estético do cinema mais do que da especificidade de seus meios técnicos. O cinema como ideia da arte preexistiu ao cinema como meio técnico e como arte particular. A oposição da “tragédia em suspenso”, que revela a textura íntima das coisas às convenções da “ação dramática”, serviu para opor a jovem arte cinematográfica à velharia teatral. No entanto, é do teatro que o cinema a recebeu. Foi no seio do teatro que essa oposição foi inicialmente colocada, na época de Maeterlinck e de Gordon Craig, de Appia e de Meyerhold.

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Foram dramaturgos e diretores de teatro que opuseram o suspense íntimo do mundo às peripécias aristotélicas. Foram eles também que ensinaram a extrair essa tragédia do corpo das velhas intrigas. E seria tentador derivar a “tragédia em suspenso” de Jean Epstein da “tragédia imóvel” que, 30 anos antes dele, Maeterlinck quis extrair das histórias shakespearianas de amor e de violência:

O que se escuta sob o rei Lear, sob Macbeth, sob Hamlet, por exemplo, o canto misterioso do infinito, o silêncio ameaçador das almas ou dos Deuses, a eternidade que troa no horizonte, a sina ou a fatalidade que se enxerga interiormente sem que se possa dizer através de qual sinal ela é reconhecida, não poderíamos, por não sei qual inversão dos papéis, aproximá-las de nós enquanto afastaríamos delas os atores? (...) já acreditei que um velho sentado em sua poltrona, esperando simplesmente debaixo da lâmpada, ouvindo sem o saber todas as leis eternas que reinam em volta de sua casa, interpretando sem entendê-lo o que tem no silêncio das portas e das janelas e na voz tênue da luz, sofrendo a presença de sua alma e de seu destino, inclinando um pouco a cabeça, sem desconfiar de que todas as potências do mundo intervêm e velam em seu quarto, como criadas atentas (...) e que não há um astro no céu, nem uma força da alma que sejam indiferentes ao movimento de uma pálpebra que se fecha, ou de um pensamento que se eleva – já acreditei que esse velho imóvel vivia, em realidade, uma vida profunda, mais humana e mais geral que o homem que estrangula sua amante, o capitão que consegue uma vitória ou “o marido que vinga sua honra”.3

O olho automático da câmera celebrado por Bonjour cinéma não faz algo diferente do poeta da “vida imóvel”, sonhado por Maeterlinck. E a metáfora do cristal, que Gilles Deleuze retomará de Jean Epstein, já está presente no teórico do drama simbolista:

Um químico deixa cair algumas gotas misteriosas num vaso que parece conter apenas água clara: imediatamente um mundo de cristais eleva-se até as bordas e nos revela o que havia em suspenso nesse vaso, onde nossos olhos incompletos não haviam percebido nada.4

Maeterlinck acrescentava que esse poema novo, fazendo surgir de um líquido em suspensão cristais fabulosos, precisava de um intérprete inédito: não mais o velho ator, com seus sentimentos e seus meios de expressão à moda antiga, mas um ser não humano que se pareceria com as figuras de cera dos museus. Esse androide conheceu, no teatro, um sucesso notório, da supermarionete de Edward

3. Maurice Maeterlinck, “Le tragique quotidien”. Le trésor des humbles (1896). Bruxelas: Éditions Labor, 1998, pp. 101-105.

4. Ibid., pp. 106-107.

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Gordon Craig ao teatro da morte de Tadeusz Kantor. Mas uma de suas encarnações possíveis é o ser de celuloide, cuja materialidade química “morta” contradiz a mímica viva do ator. E é mesmo um plano de cinema que nos descreve a evocação daquele personagem imóvel debaixo da lâmpada, ao qual os cineastas, narrativos ou contemplativos, saberão dar as mais diversas encarnações.

Mas o importante não é a dívida particular da fábula cinematográfica para com a poética simbolista. O trabalho de extração de uma fábula de outra, que Jean Epstein pratica depois de Maeterlinck e antes de Deleuze ou Godard, não é uma questão de influência; não é uma questão de pertencimento a um universo lexical particular. É toda lógica de um regime da arte que está implicado. Esse trabalho de desfiguração já era praticado pelos críticos de arte do século XIX – Goncourt ou outros – quando extraíam das cenas religiosas de Rubens, das cenas burguesas de Rembrandt, ou das naturezas-mortas de Chardin, a mesma dramaturgia, em que o gesto da pintura e a aventura da matéria pictórica eram postos no primeiro plano, relegando para o plano de fundo o conteúdo figurativo dos quadros. É o que propunham, no início do mesmo século, os textos do Athenäum, dos irmãos Schlegel, em nome da fragmentação romântica que desfaz os antigos poemas, para fazer deles os germes de novos poemas. É toda a lógica do regime estético da arte que se instala naquela época.5 Essa lógica opõe ao modelo representativo das ações encadeadas e dos códigos expressivos apropriados aos temas e às situações uma potência originária da arte, inicialmente dividida entre dois extremos: entre a pura atividade de uma criação agora sem regras nem modelos e a pura passividade de uma potência expressiva inscrita nas próprias coisas, independentemente de toda vontade de significação e de qual obra seja. Ela opõe ao velho princípio da forma que trabalha a matéria, a identidade do puro poder da ideia e da radical impotência da presença sensível e da escrita muda das coisas. Mas essa unidade dos contrários, que faz coincidir o trabalho da ideia artística com a potência do originário, alcança-se, de fato, apenas no longo trabalho da desfiguração que, na obra nova, contradiz as expectativas das quais o tema ou a história são portadores, ou, na obra antiga, revê, relê e redispõe os elementos. É esse trabalho que desfaz as construções da ficção, ou da pintura representativa. Ele faz aparecer o gesto da pintura e a aventura da matéria sob os temas da figuração. Faz brilhar, atrás dos conflitos de vontade, dramáticos ou romanescos, o clarão da epifania, o esplendor puro do ser sem razão. Esvazia ou exacerba a gestualidade dos corpos expressivos, diminui ou aumenta a velocidade dos encadeamentos narrativos, suspende ou sobrecarrega os significados. A arte da era estética pretende identificar seu poder incondicionado com seu contrário: a passividade do ser sem razão, a poeira das

5. Permito-me sobre isso remeter a meus livros Le partage du sensible, Paris: La Fabrique, 2000 [em português, A partilha do sensível, São Paulo: Ed. 34, 2005. (N.T.)] e L’inconscident esthétique, Paris: Galilée, 2001 [em português, O inconsciente estético, São Paulo: Ed. 34, 2009. (N.T.)].

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partículas elementares, o surgimento originário das coisas. Flaubert sonhava, como se sabe, com uma obra sem tema nem matéria, repousando sobre nada além do “estilo” do escritor. Mas esse estilo soberano, expressão pura da vontade de arte, só podia se realizar em seu contrário: a obra livre de qualquer vestígio da intervenção do escritor, tendo a indiferença dos grãos de poeira revoluteando, a passividade das coisas sem vontade, nem significado. E esse esplendor do insignificante realizava-se, por sua vez, no intervalo ínfimo escavado na lógica representativa: histórias de indivíduos perseguindo objetivos que se entrecruzam e se contrariam; objetivos, no fundo, dos mais comuns: seduzir uma mulher, conquistar uma posição social, ganhar dinheiro... O trabalho do estilo consistia em aparentar a passividade do olhar vazio das coisas sem razão, ao expor essas ações comuns. E atingia essa meta apenas se tornando, ele próprio, passivo, invisível, anulando tendencialmente sua diferença com a prosa comum do mundo.

Tal é a arte da era estética: uma arte que vem depois e desfaz os encadeamentos da arte representativa: ao contrariar a lógica das ações encadeadas pelo devir passivo da escrita; ou, então, refigurando os poemas e os quadros antigos. Esse trabalho supõe que toda arte do passado esteja, doravante, à disposição, podendo ser relida, revista, repintada ou reescrita; mas, também, que qualquer coisa do mundo – objeto banal, manchas em um muro, ilustração comercial, ou outro – esteja disponível para a arte como duplo recurso: como hieróglifo criptografando uma época, uma sociedade, uma história e, ao inverso, como pura presença, realidade nua, ornada com o novo esplendor do insignificante. As propriedades que Jean Epstein atribui ao cinema são as propriedades desse regime da arte: identidade do ativo e do passivo, promoção de tudo à dignidade da arte, trabalho da desfiguração que extrai o suspense trágico da ação dramática. A identidade do consciente e do inconsciente, estabelecida por Schelling e Hegel como princípio mesmo da arte, encontra sua encarnação exemplar no duplo poder do olho consciente do cineasta e do olho inconsciente da câmera. É tentador concluir disso, com Epstein e alguns outros, que o cinema é o sonho realizado desse regime. Eram efetivamente, em certo sentido, “planos de cinema” que enquadravam as micronarrações flaubertianas ao apresentar-nos Emma na sua janela, absorvida pela contemplação de seus pés de feijão derrubados pela chuva, ou Charles, apoiado nos cotovelos, numa outra janela, o olhar perdido na preguiça de uma noite de verão, nas rocas dos tintureiros e na água suja de um braço de rio industrial. O cinema parece realizar naturalmente essa escrita da opsis que inverte o privilégio aristotélico do muthos. No entanto, a conclusão está errada, por uma simples razão: sendo por natureza aquilo que as artes da era estética se esforçavam para ser, o cinema inverte seu movimento. Os enquadramentos flaubertianos resultavam de um trabalho da escrita que contradizia, pela fixidez devaneadora do quadro, as expectativas e as verossimilhanças narrativas. O pintor ou o romancista tornavam-

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se instrumentos de seu devir passivo. O dispositivo maquínico, por sua vez, suprime o trabalho ativo desse devir passivo. A câmera não pode se tornar passiva; ela já é passiva. Está necessariamente a serviço da inteligência que a manipula. No início de O homem da câmera (Chelovek s kino-apparatom), de Dziga Vertov, uma câmera-olho, encarregada da exploração do rosto desconhecido das coisas, parece, primeiro, ilustrar o propósito de Jean Epstein. Mas, sobre essa câmera, um operador vem logo instalar o tripé de uma segunda câmera, instrumento de uma vontade que, de antemão, dispõe das descobertas da primeira e faz delas pedaços de celuloide próprios para qualquer uso. O olho da máquina, de fato, presta-se a tudo: à tragédia em suspenso e ao trabalho dos kinoks soviéticos, como à ilustração antiquada das histórias de interesse, de amor e de morte. Quem pode fazer tudo é geralmente destinado a servir. A “passividade” da máquina, que devia supostamente cumprir o programa do regime estético da arte, presta-se, igualmente, a restaurar a velha potência representativa da forma ativa comandando a matéria passiva que um século de pintura e de literatura esforçara-se por subverter. E, com ela, por contágio, é a lógica toda da arte representativa que acaba sendo restaurada. Mas, também, o artista que comanda soberanamente a máquina passiva está, mais do que qualquer outro, destinado a transformar seu domínio em servidão, a colocar sua arte a serviço das empresas de gestão e de rentabilização do imaginário coletivo. Na era de Joyce e de Virginia Woolf, de Malevitch, ou de Schönberg, o cinema parece chegar de propósito para contrariar uma simples teologia da modernidade artística, opondo a autonomia estética da arte à sua antiga submissão representativa.

No entanto, essa contrariedade não se reduz à oposição entre o princípio da arte e o do entretenimento popular, submetido à industrialização dos lazeres e dos prazeres das massas. Pois a arte da era estética abole as fronteiras e transforma qualquer coisa em arte. Seu romance cresceu com o folhetim, sua poesia adotou o ritmo das multidões e sua pintura instalou-se nas guinguettes e nos music-halls. No tempo de Jean Epstein, a nova arte da direção invoca os desfiles dos saltimbancos e a performance do atleta. E, na mesma época, os refugos do consumo começam a aparecer nas paredes das galerias e a ilustrar os poemas. Sem dúvida, a imposição industrial transformou logo o cineasta em “artesão”, esforçando-se em imprimir sua marca própria num roteiro a ser ilustrado com atores impostos. Mas chegar depois, enxertar sua arte numa arte já existente, tornar sua operação quase indiscernível da prosa das histórias e das imagens comuns é uma lei do regime estético da arte, à qual a indústria cinematográfica, em certo sentido, oferece somente sua forma mais radical. E nossa época é facilmente propensa a reabilitar o cinema dos artesãos em face dos impasses de uma “política dos autores” que encontra sua conclusão no esteticismo publicitário. Ela assume, assim, o diagnóstico hegeliano: a obra do artista que faz o que quer acaba mostrando apenas a imagem do artista em geral. Ela acrescenta que esta se confunde, finalmente, com a imagem de marca da

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mercadoria.6 Se a arte do cinema teve de aceitar vir depois dos produtores e dos roteiristas, mesmo que contrariando, com sua lógica própria, o programa que lhe davam para ilustrar, não é somente por conta da dura lei do mercado. É também em virtude da indecidibilidade que está no âmago de sua natureza artística. O cinema é, ao mesmo tempo, a literalização de uma ideia secular da arte e sua refutação em ato. Ele é a arte do a posteriori, oriundo da desfiguração romântica das histórias, e ele é aquele que reconduz essa desfiguração à imitação clássica. Sua continuidade com a revolução estética que o tornou possível é necessariamente paradoxal. Se encontra, em seu equipamento técnico inicial, a identidade do passivo e do ativo, que constitui o princípio dessa revolução, ele só pode ser-lhe fiel reconduzindo sua dialética secular. A arte do cinema não foi apenas empiricamente obrigada a afirmar sua arte contra as tarefas que a indústria lhe propunha. Essa contrariedade manifesta esconde outra, mais íntima. Para contrariar sua servidão, o cinema teve primeiro de contrariar seu domínio. Seus procedimentos artísticos devem construir dramaturgias que contrariam seus poderes naturais. De sua natureza técnica até sua vocação artística, a linha não é reta. A fábula cinematográfica é uma fábula contrariada.

É preciso, então, contestar a tese de uma continuidade entre a natureza técnica da máquina de visão e as formas da arte cinematográfica. Cineastas e teóricos postularam facilmente que a arte do cinema atingia sua perfeição lá onde suas fábulas e suas formas expressavam a essência do veículo cinematográfico. Algumas proposições e figuras exemplares marcam a história dessa identificação: o autômato burlesco – chapliniano ou keatoniano – que fascinou a geração de Delluc, Epstein ou Eisenstein, antes de estar no âmago da teoria de André Bazin e de ainda inspirar as sistematizações contemporâneas;7 o olhar da câmera rosselliniana sobre as “coisas não manipuladas”; a teoria e a prática bressonianas do “modelo”, opondo a verdade do automatismo cinematográfico ao artifício da expressão teatral. Poderíamos mostrar, no entanto, que nenhuma dessas dramaturgias pertence exclusivamente ao cinema, ou, antes, que se elas lhe pertencem, é pela aplicação de uma lógica da contrariedade. André Bazin empenhou-se com brilho em mostrar que a gestualidade de Carlitos era a encarnação do ser cinematográfico, da forma fixada pelos sais de prata na fita de celuloide.8 Mas o autômato burlesco já era, antes do cinema, uma

6. Foi Serge Daney quem formulou mais vigorosamente essa dialética da arte e do comércio. Ver L’ exercice a été profitable, Monsieur (Paris: POL, 1993) e La maison cinéma et le monde (Paris: POL, 2001). Sobre isso, ver Jacques Rancière, “Celui qui vient après. Les antinomies de la pensée critique”. Trafic, n. 37, Printemps, 2001.

7. Cf., por exemplo, o livro de Thérèse Giraud, Cinéma et technologie (Paris: PUF, 2001), que defende a tese oposta àquela defendida aqui.

8. “Antes de ter um ‘caráter’ (...) Carlitos simplesmente existe. Ele é uma forma branca e preta impressa nos sais de prata do ortocromático” (André Bazin, “Le mythe de M. Verdoux”. In: André Bazin e Eric Rohmer, Charlie Chaplin. Paris: Éditions du Cerf, 1972, p. 38). A análise de André Bazin, é claro, não se limita a essa identificação ontotecnológica do personagem chaplinesco com o ser cinematográfico, mas é

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figura estética constituída, um herói de espetáculo puro, recusando a psicologia tradicional. E não é como encarnação do autômato técnico que funcionou no cinema, mas antes como instrumento de um desregulamento fundamental de toda fábula; um equivalente, na arte das imagens móveis, do devir passivo próprio à escrita romanesca moderna. O corpo burlesco é aquele cujas ações e reações estão sempre em excesso, ou em falta, que não cessa de passar da extrema impotência ao extremo poder. Exemplarmente, o herói keatoniano divide-se entre um olhar sempre já vencido e um movimento irresistível. Ele é aquele que vê constantemente as coisas lhe escaparem. E ele é, ao contrário, o móvel que vai sempre adiante, sem resistência, como naquele episódio de Sherlock Jr. em que ele transpõe todos os obstáculos em linha reta, sobre o guidão de uma moto cujo condutor já caiu há muito tempo. O corpo burlesco desfaz os encadeamentos da causa e do efeito, da ação e da reação, porque ele põe em contradição os próprios elementos da imagem móvel. Daí que não cessou de funcionar, ao longo da história toda do cinema, como uma máquina dramatúrgica própria a transformar uma fábula em uma outra. Comprovam-no, hoje ainda, os filmes de Kitano, em que a mecânica burlesca serve para inverter a lógica do filme de ação. O confronto violento das vontades é neles reduzido, por aceleração, a uma pura mecânica das ações e das reações, livre de qualquer expressividade. Esse movimento automático é depois afetado por um princípio inverso de distensão, de desvio crescente entre a ação e a reação, até o ponto em que se anula em pura contemplação. No final de Fogos de artifício (Hana-Bi), policiais que se tornaram puros espectadores contemplam o suicídio de seu antigo colega – suicídio ele mesmo percebido apenas como um som ressoando, na indiferença das areias e das águas. O automatismo burlesco leva a lógica da fábula para aquilo que poderíamos chamar, seguindo Deleuze, de situações sonoras e óticas puras. Mas essas situações “puras” não são a essência reencontrada da imagem; são produtos de operações em que a arte cinematográfica organiza a contrariedade de seus poderes.

A situação “pura” é sempre resultado de um conjunto de operações, eis o que nos revela também a dramaturgia rosselliniana, ao preço, talvez, de uma divergência com as leituras de André Bazin e de Gilles Deleuze. O primeiro vê realizada, naquelas grandes fábulas de errância, a vocação fundamental da máquina automática, a seguir pacientemente os sinais ínfimos que deixam entrever o segredo espiritual dos seres. Para o segundo, Rossellini é o cineasta das situações óticas e sonoras puras por excelência, traduzindo a realidade da Europa em ruínas, logo depois da guerra, onde indivíduos desamparados enfrentavam situações para as quais não havia mais respostas. Mas as situações de rarefação narrativa que Rossellini encena não são situações de “impossibilidade de reagir”, de incapacidade de suportar espetáculos

fortemente marcada por ela, daí sua oposição à “ideologia” dos Tempos modernos (Modern times) ou de O grande ditador (The great dictator) que destrói a natureza “ontológica” de Carlitos, ao deixar aparecer demais a mão e o pensamento de Charlie Chaplin.

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intoleráveis e de coordenar o olhar e a ação. São, antes, situações experimentais em que o cineasta sobrepõe ao movimento normal do encadeamento narrativo um outro movimento, comandado por uma fábula da vocação. Quando Pina, em Roma, cidade aberta (Roma, cittá aperta), escapa de uma fileira de soldados, que a deveriam ter detido, para se precipitar atrás do caminhão que leva seu noivo, numa corrida que começa à maneira do movimento burlesco, para terminar em queda mortal, esse movimento excede, ao mesmo tempo, o visível da situação narrativa e a expressão do amor. Assim como a queda no vazio que encerra a corrida errante de Edmund, em Alemanha, ano zero (Germania anno zero), excede qualquer (não) reação à ruína material e moral da Alemanha de 1945. Esse movimento faz coincidir uma dramaturgia ficcional e uma dramaturgia plástica. Mas essa unidade da forma e do conteúdo não resulta de uma essência do veículo cinematográfico, produzindo uma visão “não manipulada” das coisas. Ela é o produto de uma dramaturgia que relaciona a extrema liberdade do personagem com sua absoluta sujeição a um comando. A lógica da “ruptura do esquema sensório-motor” é uma dialética da impotência e do excesso de poder.

Essa é a dialética que se encontra também em ação na “cinematografia” bressoniana. Bresson gostaria de resumi-la na dupla do “modelo” passivo, que reproduz mecanicamente gestos e entonações comandados, e do cineasta-pintor-montador, usando a tela de cinema como uma tela virgem e juntando os “pedaços de natureza” fornecidos pelo modelo. Mas é necessária uma dramaturgia mais complexa para separar a arte do cinematógrafo das histórias que conta. De fato, um filme de Bresson é sempre a encenação de uma armadilha e de uma perseguição. O caçador furtivo (Mouchette, a virgem possuída [Mouchette]), o malandro (A grande testemunha [Au hasard, Balthasard]), a namorada dispensada (As damas do Bois de Boulogne [Les dames du Bois de Boulogne]), o marido ciumento (Uma mulher delicada [Une femme douce]), o ladrão e o delegado (O batedor de carteiras [Pickpocket]) estendem suas redes para que a vítima venha prender-se nelas. A fábula cinematográfica deve realizar sua essência de arte contrariando esses enredos da vontade atuante. Mas essa contradição não pode resultar somente das opções de fragmentação visual e de passividade do modelo. Essas desenham, de fato, uma linha de indiscernibilidade entre a perseguição do caçador que espera sua presa e aquela do cineasta que quer surpreender a verdade do “modelo”. A essa cumplicidade visível dos caçadores, deve opor-se uma contralógica. É, primeiro, um movimento de fuga – de queda no vazio – que retira a presa do caçador e a fábula cinematográfica da história ilustrada: uma porta que bateu porque uma janela se abriu e uma echarpe de seda que flutua (Uma mulher delicada), ou ainda as cambalhotas de uma menina até a lagoa onde se afoga (Mouchette, a virgem possuída) marcam o contramovimento, inicial ou final, pelo qual as presas escapam aos caçadores. A beleza dessas sequências vem da contradição que o visível traz ao significado narrativo: um véu que se eleva ao vento

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esconde um corpo que cai por decisão de deixar a vida; uma brincadeira de criança que se deixa rolar numa ladeira realiza e denega o suicídio de uma adolescente. O fato de que os autores, contrariados por essas sequências acrescidas, não sejam obscuros roteiristas, mas Dostoievski e Bernanos, permite ver melhor o contramovimento que afasta o cinema de qualquer mera efetuação de sua essência visual. É na lógica desse contraefeito que se deve pensar o papel da voz. A voz dita “branca” dos filmes de Bresson não é a expressão da verdade arrancada ao modelo. Ela é, de modo mais radical, a maneira pela qual o cinema realiza, invertendo-o, o projeto da literatura. Esta fazia penetrar em si mesma, para contrariar os agenciamentos de ação e os conflitos de vontades, a grande passividade do visível. A adição literária da imagem era uma subtração de sentido. O cinema pode recuperar a potência apenas invertendo o jogo, escavando ao inverso o visível por meio da fala. É o que faz aquela “voz branca”, na qual vêm se fundir, em Bresson, as entonações diversas que respondem à clássica expressão dos caracteres. Mais do que o enquadramento do pintor e a construção do montador, é essa invenção sonora que define, paradoxalmente, a arte do representante exemplar do “cinema puro”. À imagem que corta a narrativa romanesca responde essa voz que, ao mesmo tempo, dá e retira corpo à imagem. Esta é como uma palavra literária contradita: neutralidade da voz narrativa atribuída a corpos que ela desapropria e que eles, em compensação, desnaturam. Ironicamente, essa voz que caracteriza a arte cinematográfica de Bresson foi imaginada, primeiro, no teatro, como voz do “terceiro personagem” – o Desconhecido, o Inumano – que, segundo Maeterlinck, habitava os diálogos de Ibsen.

Assim, as grandes figuras de um cinema puro, cujas fábulas e formas se deduziriam de sua essência, apresentam-nos apenas versões exemplares da fábula desdobrada e contrariada: encenação de uma encenação, contramovimento afetando o encadeamento das ações e dos planos, automatismo separando a imagem do movimento, vozes escavando o visível. E esses jogos do cinema com seus recursos só podem ser entendidos num jogo de troca e de inversão com a fábula literária, a forma plástica, ou a voz teatral. É pela multiplicidade desses jogos que gostariam de testemunhar os textos aqui reunidos, sem nenhuma pretensão de cobrir o campo dos possíveis da arte cinematográfica. Alguns apresentam o paradoxo da fábula cinematográfica em toda sua radicalidade: assim a tentativa eisensteiniana de um cinema que opõe às fábulas de antigamente a tradução direta de uma ideia – a do comunismo – em signos-imagens portadores de afetos novos; ou, ainda, a transposição, por Murnau, do Tartufo de Molière, em filme mudo. O velho e o novo (A linha geral) (Staroye i novoye) pretende realizar o primeiro programa e identificar a demonstração da nova arte com a oposição política do novo mundo kolkhoziano e mecanizado ao antigo mundo camponês. Mas ela só consegue isso acompanhando a oposição de uma cumplicidade estética mais secreta, entre as figuras dionisíacas da arte nova e os transes e superstições antigos. O Tartufo (Herr

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Tartüff) mudo de Murnau realiza, por sua vez, sua “transposição”, transformando o intrigante de Molière em sombra e sua operação de conquista em conflito das visibilidades, conduzido por Elmire para dissipar a sombra que amedronta seu esposo. Mas é, então, o próprio poder da sombra cinematográfica que deve ser afastado pela confusão do impostor. É mais discretamente que o cinema contraria o texto que põe em imagens em Amarga esperança (They live by night), de Nicholas Ray. Nele, a fragmentação visual usa dos poderes poéticos da metonímia para desfazer o contínuo perceptivo da “corrente de consciência”, com a qual o romance dos anos de 1930 pretendia, ao contrário, apropriar-se da sensorialidade da imagem móvel. Mas até as formas cinematográficas mais clássicas, mais fiéis à tradição representativa das ações bem encadeadas, dos caracteres bem destacados e das imagens bem compostas são marcadas pelo intervalo que assinala o pertencimento da fábula cinematográfica ao regime estético da arte. Comprovam-no os westerns de Anthony Mann, representantes exemplares do gênero cinematográfico mais codificado, obedecendo a todas as necessidades ficcionais de um cinema narrativo e popular, porém habitado por um intervalo essencial. Pois as ações do herói, pela própria minúcia do encadeamento das percepções e dos gestos, escapam àquilo que normalmente dá sentido à ação: à estabilidade dos valores éticos, como também ao frenesi dos desejos e dos sonhos que os transgridem. É então, ironicamente, a perfeição do “esquema sensório-motor” da ação e da reação que cria o embaraço na narrativa dos conflitos do desejo e da lei, substituindo-lhe o afrontamento de dois espaços perceptivos. Trata-se de um princípio constante do que se chama encenação no cinema: suplementar – e contrariar – a conduta da ação e a racionalidade das metas, pelo não ajustamento de duas visibilidades, ou de duas relações do visível com o movimento, pelos reenquadramentos visuais e os movimentos aberrantes impostos por um personagem que, ao mesmo tempo, se ajusta ao roteiro da perseguição dos fins e o perverte.

Não é de admirar encontrar aqui duas encarnações clássicas dessa figura: a criança (O tesouro do Barba Rubra [Moonfleet]) e o psicopata (M, o vampiro de Düsseldorf [M, Eine Stadt sucht einen Mörder], No silêncio de uma cidade [While the city sleeps]). A criança do cinema oscila entre duas posições: no seu uso convencional, encarna a vítima de um mundo violento, ou o observador malicioso de um mundo que se leva a sério. Opõe-se, exemplarmente, a essas figuras representativas banais, em O tesouro do Barba Rubra, a figura estética da criança diretora, obstinada em impor seu próprio roteiro e em desmentir visualmente o jogo narrativo das intrigas e o jogo visual das aparências que a destinam à situação de vítima ingênua. A obstinação que excede qualquer perseguição racional dos fins é também o traço pelo qual o psicopata no cinema perturba os enredos de caça, em que o criminoso é, ao mesmo tempo, caçador e caçado. Ela duplica, com sua aberração, a equivalência da ação e da paixão, em que o cinema se metaforiza. Assim, o assassino de M, o vampiro

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de Düsseldorf escapa visualmente, pelo automatismo de seu movimento próprio, ao jogo da dupla caça – dos policiais e dos bandidos – que o cerca e que o vencerá. Pois, diferentemente de seus caçadores, que traçam círculos em mapas e colocam observadores nas esquinas, ele não persegue um objetivo racional e não pode fazer outra coisa senão aquilo que faz: passar, pelo encontro com um olhar de criança refletido numa vitrine, da despreocupação do flâneur anônimo, para a mecânica do caçador, mesmo que retome, por um instante, perto de outra menina, a figura do contemplador feliz. O plano em que o assassino e sua vítima prometida olham, numa felicidade compartilhada, a vitrine de uma loja de brinquedos pertence à mesma lógica do contraefeito do véu flutuando de Uma mulher delicada, ou das escorregadas de Mouchette, a virgem possuída mas também da corrida retilínea de Sherlock Jr., dos gestos minuciosos e indiferentes de James Stewart, nos westerns de Mann, ou da alegria mitológica das bodas do touro, em O velho e o novo.

É também essa mesma lógica que abole as fronteiras entre o documento e a ficção, a obra engajada e a obra pura. Assim, a loucura plástica do filme comunista de Eisenstein participa do mesmo sonho que a indiferença do “plano” de Emma Bovary na sua janela, e essa indiferença se comunica eventualmente com as imagens de um documentário engajado. É o caso quando Humphrey Jennings, em Listen to Britain, instala sua câmera em contraluz atrás de dois personagens, assistindo tranquilamente a um pôr de sol sobre as águas, antes que um deslocamento do quadro nos desvele sua função e sua identidade: são dois guardas costeiros vigiando a possível chegada do inimigo. Esse filme apresenta um uso-limite do contraefeito próprio da fábula cinematográfica. Destinado a solicitar o apoio à Inglaterra em luta, no ano de 1941, ele nos mostra, de fato, o contrário de um país sitiado e mobilizado militarmente para sua defesa. Os soldados aparecem nele apenas em seus momentos de lazer – num compartimento de trem, cantando uma canção sobre países distantes, numa sala de baile, ou de concerto, ou então na ocasião de um desfile numa aldeia –, e a câmera desliza de imagem furtiva em imagem furtiva: uma janela de noite atrás da qual um homem segura uma luz e puxa uma cortina, um pátio de escola, onde crianças dançam numa roda, ou aqueles dois espectadores do sol poente. A escolha política paradoxal – mostrar um país em paz para pedir apoio à sua guerra – é servida por um uso exemplar do paradoxo próprio da fábula cinematográfica. Pois os momentos de paz que o filme encadeia – um rosto e uma luz entrevistos atrás de uma janela, dois homens conversando no sol poente, uma canção num trem, um rodopio de dançarinos – não são nada além daqueles momentos de suspense que pontuam os filmes de ficção, acrescentando à verossimilhança construída das ações e dos fatos a verdade simples, a verdade sem sentido da vida. Esses momentos de suspense/momentos de realidade, a fábula os faz normalmente alternarem com as sequências de ação. Ao isolá-los assim, esse estranho “documentário” acusa a costumeira ambivalência desse jogo de trocas entre a ação verossímil, própria da

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arte representativa, e a vida sem razão, emblemática da arte estética.9 O comum, o grau zero da ficção cinematográfica, é a complementaridade dos dois, a dupla atestação da lógica da ação e do efeito de realidade. O trabalho artístico da fábula consiste, ao contrário, em fazer variar seus valores, em aumentar ou reduzir sua divergência, em inverter seus papéis. O privilégio do filme dito documentário é que, não tendo a obrigação de produzir o sentimento do real, ele pode tratar esse real como problema e experimentar mais livremente os jogos variáveis da ação e da vida, da significância e da insignificância. Se esse jogo está ele mesmo em seu grau zero no documentário de Jennings, ele adquire outra complexidade quando Chris Marker compõe Elegia a Alexandre (Le tombeau d’Alexandre), entrecruzando as imagens do presente pós-soviético com vários tipos de “documentos”: as imagens da família imperial desfilando, em 1913, e aquelas do sósia de Stalin “socorrendo” os tratoristas em apuros; os filmes-reportagens enterrados do kino-trem de Alexandre Medvedkine, suas comédias censuradas e seus filmes dedicados, por obrigação, aos grandes desfiles de ginastas stalinistas; as entrevistas das testemunhas da vida de Medvedkine, o fuzilamento de O encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin) e a deploração do Inocente, no palco do Bolshoi. Ao fazê-los dialogar com as seis “cartas” a Alexandre Medvedkine que compõem o filme, o cineasta pode desdobrar, melhor do que qualquer ilustrador de histórias inventadas, a polivalência das imagens e dos signos, as diferenças de potencial entre os valores de expressão – entre a imagem que fala e aquela que se cala, entre a fala que gera uma imagem e aquela que gera um enigma – que constituem, de fato, em face das peripécias de antigamente, as formas novas da ficção, na era estética.

Mas, com isso também, a ficção documentária, que inventa intrigas novas com os documentos da história, afirma sua comunidade com o trabalho da fábula cinematográfica, que junta e disjunta, na relação da história com o personagem, do quadro com o encadeamento, as potências do visível, da fala e do movimento. O trabalho de Marker, repassando, na sombra das imagens coloridas do aparato ortodoxo restaurado, as imagens “falsificadas” do massacre das escadas de Odessa, ou os filmes de propaganda stalinista, entra em ressonância com o de Godard, encenando, na era pop, a teatralização maoista do marxismo e juntando, na era “pós-moderna”, os fragmentos da história enlaçada do cinema e do século. Mas encontra também o de Fritz Lang, reencenando a mesma fábula da caça ao assassino psicopata, em duas eras diferentes do visível: a primeira vez em M, o vampiro de Düsseldorf, em que mapas e lupas, inventários e quadrículas servem para caçar o assassino e levá-lo diante de um tribunal de teatro; uma segunda vez em que todos esses acessórios desapareceram, em proveito de uma única máquina de visão: a televisão em que

9. Para uma análise mais detalhada, remeto a meu capítulo “L’inoubliable”. In: Jean-Louis Comolli e Jacques Rancière. Arrêt sur histoire. Paris: Centre Georges Pompidou, 1997.

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o jornalista Mobley instala-se “em face” do assassino, para transformar a simples captura imaginária em arma da captura real. A caixa televisual não é o instrumento do “consumo de massa”, assinando a sentença de morte da Grande Arte. É, mais profundamente, mais ironicamente, a máquina de visão que suprime o intervalo mimético e que realiza, à sua maneira, o projeto panestético da nova arte da presença sensível imediata. Essa máquina anula o trabalho de contrariedade, que não cessou de animar suas fábulas. E o trabalho do diretor é de virar novamente esse jogo, pelo qual a televisão “leva” o cinema “à culminação”. Uma longa deploração contemporânea nos pede para atestar a morte programada das imagens na máquina da informação e da publicidade. Escolhemos aqui o ponto de vista inverso: mostrar como a arte das imagens e seu pensamento não cessam de se alimentar daquilo que os contraria.