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#05 | setembro 2014 distribuição on-line gratuita

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#05 | setembro 2014distribuição on-line gratuita

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Luca Argel

5

Editorial 3

Créditos e contato 64

Barbara Mastrobuono

15Julianna Motter

10

Déa Paulino

27Fabrício

Corsaletti

21

Vanessa Rodrigues

45Julio

Perestrelo

53Daniel

Francoy

41

Tao Lin em tradução de

Bruna Beber

31

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das esperas e intervalos da vida.

Gestamos essa edição por um tempo

maior que as filhas anteriores, nossas

desculpas. Mas é que a Parênteses é fei-

ta por amigos nos intervalos da vida (que

é quando a vida acontece de verdade). E

como bravos amadores tivemos de fazer

um alongamento, sarar alguma lesão, re-

visar o trajeto. Foi um tempo bem apro-

veitado. E aqui estamos, apaixonados

amadores, tênis calçados, felizes por cor-

rer mais um trecho.

Sem muito barulho, a revista comple-

tou, esses dias atrás, um ano. Seguimos

aprendendo a editar, conhecendo ami-

gos e admirando belezas pelo caminho.

É verdade que por aí a coisa anda brava,

mas não percamos a ternura jamás. Siga-

mos semeando gentilezas.

Vai ver é porque estamos meio senti-

mentais, mas olhando bem parênteses

são palavras entre abraços. Obrigado.

os editores

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Luca Argel

Gosto muito mais dos supermercados desde que dei-

xei a casa dos meus pais. Lembro da minha mãe dizendo que

eles sempre colocam os produtos que estão quase vencendo na

frente, e os mais novos atrás. Sempre achei que essa era uma

verdade universal: “Todo supermercado tem a política de guar-

dar os produtos mais novos no fundo, e deixar sempre os mais

velhos na frente, para as pessoas pegarem.” Mas nem sempre

isso é verdade. Hoje, por exemplo, as ervilhas do fundo da prate-

leira tinham exatamente a mesma data de validade das que es-

tavam na frente. Geralmente na seção de alimentos enlatados

essa regra não se aplica. Na de pães sim. Na de pães é infalível.

É preciso procurar sempre os produtos mais novos, os que vão

durar mais. Quando chegávamos em casa, meu pai também ar-

rumava as compras assim. As comidas recém compradas iam

para o fundo do armário, e tudo o que já estava lá dentro há

mais tempo vinha para a frente. Durante um período na mi-

nha infância eu cheguei a desconfiar que meus pais haviam se

conhecido num supermercado. Um dia ela estava procurando

os palmitos mais novos, e ele no corredor de trás, procurando a

maionese mais nova, e quando chegam ao fundo da prateleira,

a prateleira não tinha fundo, e eles dão de cara um com o outro.

Teoria dos afectos

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Não se trata de uma gripe mal-curada

(para uma canção de Gyorgy Kurtág)

o que você está sentindo agora é só o pico

de uma febre constante

e quando eu digo constante

eu quero dizer que não se trata de uma gripe

mal-curada

que não se trata sequer de uma enfermidade

o que você está sentindo agora

é só a outra metade

(o verso da folha,

se quiser)

do contrato

que assim como a vigília

das abelhas operárias no inverno

ninguém vê

e assim como o cometa halley

talvez passe uma vida inteira

sem ver

Jean Jacques (5 anos) tenta voar e se enforca na corda da cortinaAlain disse que não odeia a vida

Alain disse que odeia o que há dentro da vida

Eu olho para você sentada no colchão lendo

um manual de urinoterapia e penso que

Quando Alain disse isso ele só podia estar pensando

Na vinheta de algum programa de televisão de domingo

Ou comendo guarda-chuvinhas de chocolate

antes deles terem ganhado a forma de guarda-chuvinhas.

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Brinquedos(para uma foto de Antanas Sutkus)

“você tem estudado mais sobre a quantidade de objetos que consegue carregar ao mesmo tempo, hoje estamos com sorte

vamos, arranje um barbante e uma moeda e teremos um novo recorde

se você me acomodasse em qualquer um desses degraus e fosse

parafuso, ramo de urtigas

eu ainda me recuso a comer o que você tem comido ou o que quer que você venha me oferecer, de qualquer um desses degraus,

mesmo o mais estreito, você sabe que eu sequer me esforçaria para mantê-la no meu campo de visão

hoje estamos com sorte, calendários velhos, uma rodela de chouriço, lápis muito pequenos por terem sido afiados muitas vezes”

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Falso monólogo de Nileu, que dizia ser filho do Nilo, da embocadura de sete braços, e que no escudo fizera até cinzelar sete canais, parte em prata, parte em ouro

(para um poema de Ovídio)

Dormir em pé é o de menos. O maior problema é a boca aberta,

por onde já entrou todo tipo de porcarias que cinco milênios são capazes de imaginar.

Claro, há também esta pose ridícula, e a tonalidade mineral

que em nada valoriza as minhas antigas feições.

Se ao menos eu não tivesse sido interrompido na metade da frase

(ou se ao menos alguém aqui tivesse tido a preocupação de escrever uma tabela

informativa ao pé de mim)

a humanidade poderia tirar uma lição também da minha história:

“Meninos, sempre que vocês resolverem passar a eternidade brincando de estátua

entre o macaco rhesus empalhado e a coleção de salamandras

de um museu de província que ninguém mais visita,

tenham pelo menos a sabedoria

de escolher uma posição confortável.”

Luca Argel (1988) nasceu

no Rio de Janeiro. É forma-

do em música pela UNIRIO.

Em 2012 publicou o livro de

poemas esqueci de fixar o

grafite (7letras), e em 2014

o Livro de Reclamações

(Escalpo de Mársias). Vive e

trabalha em Portugal atual-

mente, onde está cursando

um mestrado em Literatura

pela Universidade do Porto.

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Julianna Motter

III.a vidanada mais é

que ir

do parto

à partida

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II.e depois de tudo

do nascer do sol

do teu corpo se pondo

sobre o meu

da tua presença nascendo

em mim

dos teus olhos

sonolentos em meus braços

e depois de tudo

dos dias das horas da pressa

das flores depois das pétalas

dos minutos das tardes da praia

dos brotos dos beijos dos surtos

desejar tuas mãos teus joelhos teus lábios

teus erros teus acertos acertar teus ponteiros

desejar teus buracos

me enfiar em teus descaminhos

desejar teus furos e tuas falhas

desejar teu começo teu meio teu fim tuas sobras

tuas beiras e tuas beiradas

tua língua e tuas palavras afiadas

e depois do nada

quando além do vinho das uvas da água

do amor do amor sem fim do amor sem fundo

do amor sem trégua

quando nos restar nada mais que uma estrada

e uma bifurcação

e depois de tudo

dos abraços das transas dos transes dos cheques

das contas dos filhos

te desejar de novo

depois de tudo

e desejar que volte

quando ainda estiver indo

quando perceber

que todo buraco

que é fundo é findo

desejar

acima de tudo

que a tua ausência não seja aquilo que me falta

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V.desejar teus dedos

teus dados

te calcular

e encontrar um número

uma unidade

um erro

ignorar o erro

e ainda por cima

te somar comigo

e te multiplicar em mim

elevada ao infinito

ignorar a esgotabilidade do tempo

desejar tuas horas

e cada um dos teus dias

desejar teus filhos teus acertos teus próprios erros

teus lábios tuas coxas teus óvulos

desejar teu futuro e te conjugar como fôssemos sempre nós

te amarrar bem forte comigo

não te soltar nunca

ao menos desejar que não

te pedir que fique

e um dia

quem sabe

apesar de tudo

te assistir ir embora

e desejar mais nada

IX.em brasília,nem ciclo-vias

já que não enxergavas

nada

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VII.a saudade se derramou no meio da noite

caindo da cama

escorrendo pelo piso do quarto

a saudade veio e me mordeu

onde você

um dia

me apertava

a saudade me pegou pela cintura

e disse:

sinto muito

mas por você

não sinto mais nada Julianna Motter tem 22 anos, é graduanda em

Filosofia pela Universidade de Brasília e Jornalismo

pelo Centro Universitário de Brasília. É blogueira

desde 2007. Em maio de 2014 lançou seu primeiro

livro, De carne e concreto, do gênero poesia, pela

Editora Patuá. Participa do coletivo de poetas Ex-

estranhos, mas não tem certeza se é mesmo poeta

ou se na hora de pegar um desvio, foi parar na li-

nha certa.

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Barbara Mastrobuono

FragmentosDe não querer sair do carro

Não estou com vontade de sair do carro. Posso criar meu

universo aqui. A escola será em baixo do banco de passageiros, e

o banco será no porta-luvas. As luvas serão dentro do rádio, e a

noite vai entrar pelo teto solar, arrancar a minha pele e o vento

dos meus olhos, e me engolir total e completamente, seus den-

tes estrelados se tornando o meu eterno coração.

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De ver uma pessoa conhecida no metrô

Acho que vi um rosto conhecido e

acho que o rosto me viu. Passado passado

bem me quer ou mal me quer? Não con-

sigo expressar meus poemas de jardim

de infância na gramática nova.

estava sentada diretamente em cima do

banco, sem a proteção de uma cadeirinha

de crianças. Peguei-a no colo e a deitei so-

bre os meus joelhos durante a viagem. De

repente estávamos no campo, em uma

estrada de terra. Paramos ao lado de uma

pequena colina coberta de grama verde

e descemos. O dia estava lindo. Ao me

despedir do homem, agradeci sua ajuda

e dei-lhe uma sugestão: que comprasse

uma cadeira de bebê para a menina, que

ela realmente não deveria estar andan-

do sem proteção. O homem arregalou os

olhos e riu de mim: “Você achou que era

uma bebê de verdade? É uma boneca!”.

Continuou rindo de mim. Olhei para o

banco de trás, e, de fato, era uma boneca.

Senti a vergonha ocupando o meu peito,

e o homem continuou rindo de mim.

De sonhar com a Rússia e um homem rindo de mim

Sonhei que estava na Rússia com

V. e C. Por alguma razão fomos passar a

noite em uma casa de família, com mãe,

avô e vários filhos meninos. Havia uma

mulher que não falava nada, mas me se-

guia, repreendendo tudo que eu fazia. V.

e C. precisavam se desculpar por mim.

Tudo que eu fazia era errado. Fomos dor-

mir em um sofá em uma sala junto com

todos os outros.

Eu estava em frente a um velho e feio

teatro, ainda era na Rússia, mas parecia

São Paulo. De repente surgiram homens

armados, e todos saíram correndo. Tenho

a impressão que era um atentado contra

um tipo de pessoa específica, e eu como

mulher corria perigo. Corri pela lateral

do prédio (que parecia um dos prédios do

centro de São Paulo – como a São Fran-

cisco) e na parte de trás eu e uma mulher

conseguimos entrar no carro de um ho-

mem de meia idade e pedir para ele nos

tirar de lá. Ele nos ajudou, e nos levou

para o campo. Ela sentou na frente, e eu

sentei no banco de trás. Quando sentei, vi

que havia uma bebê ao meu lado, mas ela

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De olhar para os dois lados ao atravessar a rua

Quando A. se encontrou no mo-

mento presente da vida, viu que todo rumo

e resolução haviam abandonado o seu cor-

po – vazia, vazia, ela se orgulhava de ter

escondido a sua humanidade em um to-

ca-discos portátil que guardava no céu da

boca. Quando a solidão lhe batia à porta,

ela tocava Simon e Garfunkel no mais alto

volume para não ouvir as batidas.

Toc toc toc

Toc toc toc

Às vezes confundia o som da batida de seu

coração com o som da solidão batendo.

Toc toc toc

Toc toc toc

Aumentava o volume e fingia não ouvir.

Como A. sempre andava com dois homens cantando alto em sua cabeça e não ouvia nada ao seu redor, se viu

um dia atropelada, atropeladíssima, por um ônibus de quatro rodas e um andar.

A., ele havia buzinado, mas você não conseguiu ouvir! E no fim não importa o volume da música que ouvia,

se ao menos tivesse olhado para os dois lados antes de atravessar a rua, nada disso teria acontecido.

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De cansar de ser

B. cansou e quis sair da cidade. “Cansei de ser gato pingado” disse. “Agora quero

ser gato transado.”

Pegou seus óculos escuros e jaqueta de couro e foi ser transada longe de São Paulo.

Fumou cigarros Camel e contou aos pássaros a diferença entre Jack Kerouac e Allan

Guinsberg. É difícil ser transada quando não tem ninguém por perto para te ver transe-

ando. Tentou pegar carona de volta para a cidade, mas na hora ficou com medo e com-

prou uma passagem de ônibus.

Em São Paulo, guardou a jaqueta de couro no armário e os óculos escuros na gaveta.

“Cansei de ser gato transado” disse. “Agora quero mesmo é ser gato pardo.”

Com isso, vestiu seu suéter de gola rulê preto e suas calças pretas. Queria sair de casa

para rodar uns becos, mas na hora ficou com medo e em vez disso foi deitar.

“Cansei de ser gato pardo.”

E então, silêncio.

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De uma noite na praia

Deitamos sob as estrelas. Milhões de rasguinhos no tecido do céu, deixando

entrar a luz do que quer que esteja por fora desse universo. Na escuridão, quanto mais

você olha para as estrelas, mais consegue ver suas profundidades, que algumas estão à

frente e algumas estão atrás. Elas se tornam reluzentes e, (“pai, achei mais uma” grita

uma menina agora da praia) como se mergulhadas em formol, ondulam perante a

minha visão. Fico triste quando percebo que além dessas há milhões de estrelas que

eu não estou enxergando. A areia mancha a minha perna e fico feliz que logo estarei

vendo esse céu de vários lugares diferentes pelo Brasil. As estrelas serão as mesmas,

mas não serão as mesmas, e eu já terei morrido e uma nova eu, alimentada por todas

essas experiências, engordada, sua barriga saliente de vida, consciência escorrendo de

sua boca aberta, estará no meu lugar. Agora estou faminta, esquelética, meus braços e

pernas enfraquecidos de tanto sentar, meus olhos cegados pela luminosidade de meu

computador, minha barriga seca, seca, curvando para dentro, exibindo fileiras de cos-

telas que como uma mandíbula dentada esperam algo para destroçar e guardar em

si. Tenho fome, tenho tanta fome, mas meu coma induzido faz com que ela emudeça,

mantenha-se registrada no fundo de minha mente, abafando meus sentidos e minhas

necessidades e meu eu. As estrelas desceram pelas minhas veias como se inseridas por

um cateter, entraram nos meus olhos rasgados e me alimentaram. Senti o gosto metá-

lico de seus gases, e percebi como éramos gigantes, deitados, observando calmamente

o espetáculo violento que é o autoconsumo dessas bolas, pegando fogo, sozinhas na

escuridão e no silencio do espaço. Embora no vácuo não se ouça ruídos, ouvi seus gri-

tos por socorro e por piedade ecoando nos túneis de meus ouvidos, milhões e milhões

de corpos queimando e morrendo sozinhos, sozinhos, como eu o farei um dia. Éramos

quatro, deitados, assistindo esses cadáveres em formação, comentando daqueles que

caiam, fazendo desejos, e nos mantendo impassíveis perante sua lenta, lenta, lentíssi-

ma aniquilação.

Barbara Wagner Mastrobuono

é formada em Russo e Português

pela Universidade de São Paulo.

Trabalha como assistente editorial

na Cosac Naify.

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Fabrício Corsaletti

sou fã

dos seus sapatos classudos

das luvas brancas no inverno

dos guarda-chuvas exóticos

dizem que nos fins de semana

traz garotos de programa

para casa

sabe-se que matou a amante

do ex-marido

alguns anos atrás

tem um único amigo no prédio

infelizmente não sou eu

Vizinhaé uma senhora simpática

sem netos

sem cachorro

sem queixas contra

o horário de retirada do lixo

a data da dedetização

não conversa sobre o tempo

no elevador

não reclama do trânsito

anda a pé

é claustrofóbica

às vezes sobe de escada

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Lígia e os idiotasnaquela época eu vivia cercado de idiotas

para onde olhasse enxergava idiotas

no espelho flagrava um perfeito idiota

a multidão do colégio era um desfile de idiotas

Lígia não era idiota

nunca fui seu amigo porque acabei me aproximando de idiotas

e fiquei mais idiota

e Lígia não gostava de idiotas

hoje sei que existem muitas Lígias no mundo

mas sei também que existem idiotas

e por mais que eu tente me dizer que essas coisas andam juntas

que dentro de cada um existe uma Lígia e um idiota

aprendi que é preciso ficar perto de Lígia

e longe dos idiotas

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Pleno agostomeus óculos de sol

minha cara de lua

— tem gente que tem uma máscara

tem gente que tem duas

minha avó usava blush

por cima da verruga

eu tive uma namorada

que tirava a roupa

e não ficava nua

o bigode cresce

ao contrário da peruca

minha amiga Beth Vargas

só gosta de carne crua

a poesia impede a vida

de virar literatura

o mal nasce com a pessoa

ou se aprende na rua

o mal nasce com a pessoa

a bondade custa

— meus óculos de sol guardados

e minha cara de chuva

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Aventuraquem não tem uma chaleira

ovos na geladeira

e um único dia verdadeiro

diante de seus olhos?

quem não usa um lençol

como cortina?

quem

não prega um haicai

de Bashô

na parede?

quem não ama cada ruga de seu

rosto?

quem não escreve um poema

porque viu

demais

ou para ver?

quem depois de ter visto

não anda pela casa

com uma caneca

cheia de fumaça?

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Feliz com as minhas orelhascomo sou feliz

com as minhas orelhas

saber que depois de tudo

elas não me abandonaram

não me maltrataram

não me julgaram mal

pelo contrário

me esperaram esse tempo todo

de braços abertos

e nunca botaram outro malandro

no meu lugar

como sou feliz

com as minhas orelhas

Fabrício Corsaletti nasceu em

1978 e publicou mais de dez

livros, entre eles Esquimó

(Companhia das Letras, 2010),

que recebeu o prêmio Bravo!. É

colunista da revista sãopaulo,

do jornal Folha de S.Paulo.

Foto

: Ren

ato

Para

da.

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Déa Paulino

dar a cara

a tapa

fugir do

mapa

e tatear

com passos

firmes

o mundo

que desaba

sob meus pés

“não alimente os animais

mortos”

diz o aviso cravado sobre o sonho

que agoniza rente ao muro da razão

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Decúbito dorsalnão há asfalto

quente

que queime

os calos

nos pés

descalços

da alegre menina

morta

ser marítimaà deriva

desconhecer

grandezas oceânicas

sob o peso do céu aberto

ser vítima

da própria seca

acometida pela falta

de doçura

ser tão

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penso que nossos

três pontos

reticentes

um dia colocarão

os pingos

nos is

Sou bailarina, coreografo [entre]linhas em publicações digi-

tais há mais de dez anos e guardo em mim a visão dos cor-

pos de baile dispostos nas estantes de inúmeras visitas a bi-

bliotecas públicas nas quais ensaiei os primeiros elevés, que

traziam os livros para o alcance das minhas mãos. Alguns

dos meus textos em prosa foram publicados em antologias

impressas. Retiro das coxias os poemas que pretendo aban-

donar no palco, para que finalmente deixem de ser meus.

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Tao Lintradução de Bruna Beber

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hoje é terça; me escreva sábadoo segredo da vida é saber escolher

e para descrevê-lo

eu escolho a distância e vou de encontro a ela

agora estou realmente sozinho

daqui percebo que um hamster é uma embreagem solitária

que meus poemas existem para dissipar fúrias irracionais

que eu quero segurar a sua cara

com a minha cara

como mãos

o segredo da vida é que eu sinto a sua falta, e isso resume a vida

hoje meu coração está sereno e fúlgido como uma estrela-do-mar

digo tudo isso à distância, depois fujo

today is tuesday; email me on saturdaythe secret of life is decisiveness

and to describe something

i see the distance and move immediately into it

now i am really alone

from here i know these things: that a hamster is a lonely fist

that my poems exist to dispel irrational angers, that i want to hold your face

with my face

like a hand

the secret of life is that i miss you, and this describes life

tonight my heart feels shiny and calm as a soft wet star

i describe it from a distance, then move quickly away

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eu vou aprender a amar e vou te ensinar e nós vamos conseguirde muito longe eu não posso ser visto

e acho que isso difere completamente

de me sentir pequeno; o bom das crianças

é que elas são afirmativas e olham bem na sua cara

com uma expressão de ‘você é incapaz

de fazer o mesmo pelas pessoas que ama’, eu sinto o universo se

expandindo

e parece que ninguém está se esforçando o bastante

a consequência disso é uma sensação de vazio extremo

de ser a única pessoa viva no mundo; estou sozinho

faz tempo

e vai demorar muito até alguém consega mudar isso

o bom de estar sozinho durante muito tempo

é que tenho lido e pensado bastante sobre

vida, morte

solidão, pessoas, coletividade, e amor; temo apenas

a lentidão desse aprendizado; eu posso sentir o universo

se expandindo

i will learn how to love a person and then i will teach you and then we will knowseen from a great enough distance i cannot be seen

i feel this as an extremely distinct sensation

of feeling like shit; the effect of small children

is that they use declarative sentences and then look at your face

with an expression that says, ‘you will never do enough

for the people you love’; i can feel the universe expanding

and it feels like no one is trying hard enough

the effect of this is an extremely shitty sensation

of being the only person alive; i have been alone for a very long

time

it will take an extreme person to make me feel less alone

the effect of being alone for a very long time

is that i have been thinking very hard and learning about

existence, mortality

loneliness, people, society, and love; i am afraid

that I am not learning fast enough; i can feel the universe

expanding

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e parece que ninguém nunca se esforçou o bastante; quando

chorei

na porta da sua casa

tive uma sensação que difere completamente de “eu sou

a única pessoa

viva’, ‘eu não aprendi quase nada’, e ‘eu posso sentir o universo

se expandindo e separando tudo

e isso parece afirmar

que devemos nos esforçar mais’

and it feels like no one has ever tried hard enough; when i cried in

your room

it was the effect of an extremely distinct sensation that ‘i am the

only person

alive,’ ‘i have not learned enough,’ and i can feel the universe

expanding and making things be further apart

and it feels like a declarative sentence

whose message is that we must try harder’

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poema de onze páginas, página cincominhas situações favoritas incluem ‘pessoas que falam & fazem’

‘pessoas pensando, de fato,’ e ‘pessoas chorando sozinhas na cama’

eu não sei consertar um discman

sem apelar pra filosofia

sou incapaz de me mover tão rápido como nos filmes de ninja

os grandes sentimentos de realização um dia se tornam insignificantes

sentimentos de dependência; eu fui embora

de todas as casas que você morou

esperando encontrar você

no ponto de ônibuseleven page poem, page fivemy favorite situations include ‘people doing what the say’

‘people thinking factually,’ and ‘people crying alone in bed’

i don`t know how to fix this mini-disc player

without a meaningful philosophy of life

i feel severely unable to move as fast as they do in martial art movies

strong feelings of achievement later become barely perceptible

feelings of immense helplessness; I moved my body outside your house

past seven other houses

to meet you at the bus stop

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poema de onze páginas, página trêsminhas emoções favoritas incluem ‘calma momentânea

em tempo firme’ e ‘eu sou a única pessoa viva no mundo’

com alguma certeza me sinto desesperadamente sozinho e louco

mas tenho passado longe da insignificância, muito além do sentido

para algo maior, que afirme a vida, e seja potencialmente vendável

tenho canalizado toda a minha fúria para construir e sustentar

‘minha indignação’

eu peguei um copo médio de café

e usei de um jeito convencional

porque eu sou convencional em todas as situações, volto já

eleven page poem, page threemy favorite emotions include ‘brief calmness

in good weather’ and ‘i am the only person alive’

without constant reassurance i feel terribly lonely and insane

i have moved beyond meaninglessness, far beyond meaninglessness

to something positive, life-affirming, and potentially best-selling

i have channeled most of my anger into creating and sustaining an

‘angry face’

i have picked up a medium-size glass of coffee

and used in the conventional way

because i’m conventional in all situations, i’ll be right back

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vacilei, foi malpara impedir que você fique catatônica

eu vou manter uma expressão serena

os olhos abatidos mas uma aparência amigável

eu acredito nas pessoas que não são tristes

eu sei que quando você está trabalhando eu não devo brincar

ou ficar triste – por que estou sempre brincando ou triste ou

sem fazer nada?

hoje de manhã eu aspirei a casa inteira

limpei a cozinha, o quartinho do computador

e fiz um capacete com o papel da impressora pra você

a chance de mudar existe em cada momento, todos os

momentos

são únicos

e separados uns dos outros, e há um número limitado

de momentos

e a ideia de mudança é uma ilusão que varia de acordo com o

pensamento

quando simulo um golpe de karatê

você cobre o rosto com as mãos

e fica parecendo uma estátua

ah se eu pudesse fazer você chorar de alegria novamente

that was bad; I shouldn’t have done thatto prevent you from entering a catatonic state

i am going to maintain a calm facial expression

with crinkly eyes and an overall friendly demeanor

i believe in a human that is not upset

i believe if you are working I should not be insane

or upset – why am i ever insane or upset and not working?

i vacuumed the entire house this morning

i cleaned the kitchen and the computer room

and i made you a meat helmet with computer paper

the opportunity for change exists in each moment, all moments are

alone

and separate from other moments, and there are limited number of

moments

and the idea of change is a delusion of positive or negative thinking

your hands are covering your face

and your body moves like a statue

when i try to manipulate an appendage

if i could just get you cry tears of joy one more time

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tudo bem?eu não acho que dizer ‘não fique triste’ sirva de consolo

você deve fazer o que pode para melhorar a situação

mesmo que suas ações provem o contrário

e não desista até conseguir

leia meu sms e pense um pouco

você nunca foi muito feliz comigo

embora eu te faça rir

eu sei que a cagada é irreversível

estou ilhado em merda

não consigo me mexer

cadê você

eu sonhei que ia pra NY sem avisar e pegava

o metrô

pro seu apartamento e esperava seu roommate sair

pra eu entrar

então eu ia pro seu quarto e entrava embaixo dos lençóis

e ia me arrastando até em cima

e te cheirava e te apertava e te beijava e te abraçava forte

e nós dormimos

feliz aniversário

desenhei um peixe feioso pra você

você vai me visitar hoje?

eu quero te abraçar

e te beijar

eu sinto falta de andar com você por aí

are you ok?i don’t think telling someone ‘don’t feel sad’ will console them

you need to do whatever you can to make them feel better

whenever your actions make them feel sad

and not stop until they feel better

read my text message and think about it

you just never seem happy with me anymore

even if I make you laugh

i think the damage I’ve done has become irreversible

i’m surrounded by endless shit

i can’t move

where are you

i just had a dream where I came to nyc but I didn’t tell you and I took

the subway

to your apartment and waited for your roommate to come out so I

could sneak in

then I went into your room and crawled under your sheets from the

end of your bed

and crawled to your face and kissed you then pet and hugged you

and we fell asleep

happy birthday

i drew you an ugly fish comic

will you visit me today

i want to hold you

and kiss your face

i miss walking with you at night

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Bruna Beber nasceu em 1984, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, e vive em

São Paulo desde 2007. Estreou em livro com a fila sem fim dos demônios des-

contentes (7Letras, 2006), e também é autora de balés (Língua Geral, 2009),

rapapés & apupos (7Letras, 2012) e Rua da Padaria (Record, 2013). Seus poemas

já foram publicados em antologias e sites na Alemanha, Argentina, Espanha,

Itália, México e Portugal.

Tao Lin nasceu na Virginia (EUA) em 1982, filho de pais taiwaneses. É poe-

ta e romancista. É autor dos livros de poemas you are a little bit happier

than i am (2006) e cognitive-behavioral therapy (2008). Da novela Eeeee

Eee Eeee e do livro de narrativas curtas bed, ambos de 2007. É autor de três

romances Shoplifting from American Apparel (2009), Richard Yates (2010)

e Taipei (2013). Criou a Muumuu House, editora independente localizada em

Manhattan (NY), e publica poetas e prosadores iniciantes. Para mais: www.

taolin.info

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Daniel Francoy

Não é queda, apenas

uma lenta deriva a que chamo

permanecer. O meu rosto

fraturado, em silêncio,

oscilante sobre a face

das águas que também é a sua –

raízes de névoas, de espuma,

ou talvez não mais do que olhos

vitórias régias que boiam

sobre o pântano dos dias.

Sou um sonâmbulo

em mim mesmo e o que naufraga

é uma casa que percorro

cômodo a cômodo.

A cozinha, as flores cultivadas

(a primeira delas foi um girassol)

Não é queda. Não é medo.

Trago a felicidade

como uma noite de tempestade.

Deitamo-nos na cama, as luzes

apagadas, as janelas escancaradas,

a contemplar os estrondosos clarões

no para-raios do prédio vizinho

e nós imóveis, eu a escutando

arquejar dentro da chuva

e tudo vindo ao mesmo tempo:

portas que batem na escuridão,

o cheiro de terra molhada,

o forte vento, o branco véu

as cortinas em louca agitação

como uma revoada de gaivotas

ou uma invasão de pétalas de jasmim

ou um sudário desfraldado

na noite ou mesmo o fantasma

do amor em lençóis sujos de sangue.

o ano passado“O que sucede não tem explicação. A colina estava desabitada.” -Bioy Casares, A Invenção de Morel

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acostuma-seAcostuma-se, todos os dias,

a vestir um terno salpicado de lama.

Paga-se o preço, apenas:

deita-se ao fim da jornada, a cabeça

sobre o travesseiro e o esforço inútil

de escolher o sonho vindouro –

a memória de algum dia fora daqui,

tatear, sobre a epiderme do espírito,

a superfície da cicatriz que não sabemos

quando se abriu. Existiam estas chagas

na infância? Já antigas

as mutilações e deformações?

Desde quando a luz crua da manhã

machuca? E, no entanto,

ama-se ainda: por hábito, por fome,

talvez por ambos.

Acostuma-se, diante do espelho,

a ter palavras ulceradas presas na garganta.

Diante do mármore branco, acostuma-se

a cuspir o sangue do que não foi

um poema de raiva, um poema de ódio,

do que não foi, sobretudo,

um poema de amor – e, no entanto,

ama-se ainda, ainda se ama,

mas tão longo é janeiro e cada dia

de sol vem com o instinto canino

de revolver a terra, de dispersar

as sementes, de atiçar os cheiros

de mortos que ninguém lembra

ou que ninguém esquece – são dias

em que já não há diferenças entre eles.

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Tornou-se o poema de amanhã

uma conta a se pagar quando se tem

os bolsos vazios – uma dívida

mas não como a que a terra

tem para com as suas sementes,

não como a que os homens têm

perante uma violada sacralidade.

Se tenho irmãos, se caminhamos

juntos ignoro:

tornou-se o poeta de amanhã

mais solitário do que os assassinos.

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a chuvaA chuva distorce o claro e o escuro

e quase apaga os rostos

do homem e da mulher que estão parados

na esquina, sob a marquise.

Talvez seja melhor assim:

pensar que os rostos ainda existem

porque a esquina ainda existe

e porque chove como antes.

Talvez seja melhor esquecer

que os rostos se desmancharam

como se fossem feitos de cera

ou de qualquer outra matéria pálida.

contemplaçõesMais de uma vez tenho olhado

para além da transparência vítrea

de uma vidraça cerrada, com alguns

vasos de flores sobre o peitoril.

Então a vida, o mundo construído

sob a luz mais suja assemelha-se

a um indevassável jardim de inverno

e os meses, todos eles, são

abril e maio prolongados -

esse outono de luz e de brisas

que me repete a descoberta

da cidade e as suas árvores.

Apenas assim, apartado

da fuligem que me turva os olhos,

reencontro um verso

que dure ainda, com a pureza

de um milagre efêmero:

habitar a branda claridade,

estar a ela entrelaçado

igual ao vento que sobe em espirais

ou o ramo que se retorce

em florações de cores grávidas.

Ainda há um instante: inteiro, intacto.

Daniel Francoy, 1979, em Ribeirão Preto.

Arrisca versos desde o final dos anos 90.

Apesar de brasileiro, estreou em Portugal

com Em Cidade Estranha (Editora

Artefacto, 2010). Também participou das

coletâneas 4 Poetas da Net (Editora Sete

Sílabas, 2002), Revista Agio, Número 1

(Editora Artefacto, 2011), Mixtape (dola-

doesquerdo, 2013) e recente do Caderno

2 (Fyodor Books, 2014), todas editadas em

Portugal. No Brasil, gasta o seu dia como

burocrata nos corredores do Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo.

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Vanessa Rodrigues

Autoterapia grafológica

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Se pela análise da caligrafia é pos-

sível analisar o caráter de alguém, então,

pensando no caminho inverso, é possível

mudar o caráter mudando a caligrafia. É

nisso que consiste a terapia, sugerida por

um amigo louco, que o protagonista de El

discurso vacío, de Mario Levrero, impõe-

-se por um tempo. Esse romance, incrível

em sua estrutura, apresenta a vida des-

se personagem através desses exercícios

grafológicos. Sabemos de seus desejos e

das questões comezinhas e de suas an-

gústias não só por aquilo que ele escreve

nos exercícios, mas, principalmente, por

aquilo que ele não diz. E por tudo isso, foi

(tem sido, é) uma leitura muito impac-

tante para mim.

Não me lembro como cheguei até ele,

mas considerei um quase milagre encon-

trar uma edição espanhola desse roman-

ce na livraria preferida da cidade. En-

quanto lia, senti uma vontade enorme de

ver esses exercícios, não transpostos em

letras impressas, mas em seus manuscri-

tos, os textos rasurados. Queria, porque

de certa maneira tudo aquilo me chegou

como verdade, acompanhar a mudança

da letra, a mudança de seus aspectos psi-

cológicos. E esse desejo transfigurou-se

num desejo mais ousado de eu mesma

imitar, ou traduzir, esse processo, replicá-

-lo ao mundo.

Isso veio ao encontro de outra convic-

ção que é cada vez mais forte em mim:

escrevemos com o corpo, lemos com o

corpo, o processo mental de decodificar

esses símbolos (impressos ou manus-

critos) depende não só do movimento

dos olhos, mas do sangue percorrendo o

corpo inteiro, e da respiração, é um cor-

po pulsante que lê e escreve a partir de

memórias, entre as quais, a memória do

movimento dos dedos (segurando uma

caneta ou sobre um teclado padrão). Paul

Zumthor diz que entre a leitura e a dança

só há uma diferença de intensidade, pois

o corpo inteiro responde, assim como à

música, às percepções daquilo que lê. Da

mesma forma, escrever é um ato físico,

há um movimento gigantesco e ances-

tral de esforço físico (talhar poemas em

pedras duras) em todo ato de escrita. Eu

quis apresentar um corpo escrevendo

nesses vídeos.

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Vanessa C. Rodrigues é formada em Letras pela Universidade

Federal do Paraná. Publicou alguns contos em revis-

tas, como a  Arte e Letra: Estórias, participou da antolo-

gia  Fantasma Civil, parte da programação literária da

XX Bienal Internacional de Curitiba, e publicou ensaios

no Jornal Rascunho. Atualmente vive em São Paulo, onde

trabalha como preparadora de texto.  Mantém o blog:

vanrodrigues.wordpress.com

nota dos editores:

Visite grafologica.tumblr.com para acompanhar o projeto.

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Julio Perestrelo

Julio descobriu a fotografia quando mais precisa-

va e desde então não sabe fazer outra coisa. Usa

a imagem como espelho para autodescoberta e

reinvenção de si mesmo, desenvolvendo um traba-

lho autobiográfico e de ficções possíveis. Gosta de

explorar os limites da foto como suporte e como

síntese visual de narrativas.

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A Parênteses tem distribuição livre e gratuita, sinta-se à vontade para compartilhar.

Não encorajamos, porém, nenhum tipo de adaptação e/ou de uso comercial dos materiais. Nesses casos, os autores devem ser consultados.

Todos os textos e imagens aqui reunidos são, e sempre serão, de propriedade de seus autores, cuja gentileza agradecemos.

Novas contribuições são sempre bem-vindas, fale conosco!

Edição Bruno Palma e Silva

Lubi Prates Stephanie Borges

Fotos Mariana Caldas

cargocollective.com/maricaldas

Projeto gráfico Bruno Palma e Silva

palmaesilva.com.br

revistaparenteses.com.br

facebook.com/revistaparenteses

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Lista de autores já publicadosAna Guadalupe, Ana Martins Marques, Ana Rüsche, Bruno Palma e Silva, Deborah Prates, Dimitri br, Edu Suppion, Fabiano Calixto, Grazi Shimizu, Guilherme Damasceno, J.F. de Souza, Juliana Amato, Juliana Krapp, Luana Vignon, Ismar Tirelli Neto, Jeanne Callegari, Leandro Lyn Hejinian, Jardim, Leo Ventura, Lilian Aquino, Lubi Prates, Luci Collin, Maíra Ferreira, Maíra Matthes, Marília Garcia, Mirella Carnicelli , Múcio Góes, Nathalie Lourenço, Pierre Masato, Raimundo Neto, Rodrigo Garcia Lopes, Sergio Mello, Stephanie Borges, Vanessa Rodrigues, Victor Heringer, Virna Teixeira

FotógrafosAdelaide Ivánova, Alexandre Santos, Carol de Andrade, Camila Lordelo, Edu Suppion, Rodrigo Sommer, Thany Sanches

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