depend.ncia de drogas como um problema de identidade
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ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA
A dependência de drogas como um problema de Identidade:
Possibilidades de apresentação do ‘Eu’ por meio da Oficina
Terapêutica de Teatro
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
- 2005 -
ALUÍSIO FERREIRA DE LIMA
A dependência de drogas como um problema de Identidade:
Possibilidades de apresentação do ‘Eu’ por meio da Oficina
Terapêutica de Teatro.
Dissertação apresentada à banca examinadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Psicologia Social sob orientação do Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
- 2005 -
Comissão julgadora ______________________________ ______________________________ ______________________________
“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o
inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem
duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas:
aceitar o inferno e tornar-se parte dele, até o ponto de deixar de percebê-lo. A
segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber
reconhecer, de dentro do inferno, o que não é inferno, e preservá-lo, e abrir
espaço.”
Ítalo Calvino
DEDICATÓRIA
In memoriam Ao meu pai, Luís C. Lima e avô Raimundo C. Lima, com quem aprendi a importância da superação das adversidades e o valor das histórias de vida.
A minha filha Stephanie Caroline, por lembrar-me a todo instante que um mundo melhor é algo pelo qual vale a pena lutar. A Kelli de Fátima Teixeira, por ter me mostrado que é possível uma metamorfose miraculosa. A todos aqueles que olhando para a criação, superação ou transgressão, conseguem enxergar os fragmentos de emancipação.
RESUMO LIMA, A. F. (2005). A dependência de drogas como um problema de
Identidade: Possibilidades de apresentação do ‘Eu’ por meio da Oficina Terapêutica de Teatro. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Palavras Chave: Uso de Drogas, Oficinas Terapêuticas, Identidade, Psicologia
Social, Sintagma Identidade-Metamorfose-Emancipação.
Esta dissertação propõe investigar o sentido da oficina terapêutica de teatro para uma
pessoa que passou por ambulatório de tratamento da dependência química do
município de Diadema - SP. Para isso partimos da Psicologia Social e do conceito de
Identidade como categoria central de análise, propondo entender o fenômeno não
apenas no seu aspecto instrumental, mas sim, todo o contexto no qual o indivíduo
que usa substâncias psicoativas está inserido, nos conflitos da tradição vs.
modernidade, do mercado de consumo, dos diagnósticos e tratamentos; com a
proposta de apresentar uma contribuição tanto teórica, quanto política. A pesquisa foi
realizada a partir da narrativa da história de vida do participante, que foi gravada e
transcrita com o consentimento do entrevistado. Ao analisar a narrativa da história de
vida, procuramos focar os acontecimentos imediatamente antes, durante e após a
participação na oficina terapêutica de teatro, pedindo que o participante nos contasse
diversos aspectos de sua vida e não apenas aquele que levou o indivíduo a procurar
tratamento da dependência de drogas. O que mudou na sua vida familiar, social,
profissional e individual, observando como este processo se desenvolveu. A
dissertação é dividida em cinco capítulos, que abordam os diversos aspectos no qual
os indivíduos que utilizam substâncias psicoativas estão inseridos. Desse modo, o
presente trabalho tece algumas reflexões sobre a questão das drogas e da
possibilidade de mudança por meio da oficina terapêutica de teatro, assim como
oferece subsídios para discutir as Identidades Pós-Convencionais (Habermas), e as
possibilidades de emancipação na Modernidade.
ABSTRACT
LIMA, A. F. (2005). The drugs dependency how an Identity problem: Possibilities of presentation of “Self” through Therapeutic workshop of Theater. Masters Dissertation. Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.
Key words: Drug usage, therapeutic workshop of theater, Identity, Social
Psychology, Sintagma Identity-Metamorphose-Emancipation.
This dissertation aims to investigate the mean of the therapeutic workshop of theater
to the person who has been treated by the ambulatory of drug dependency in the city
of Diadema – SP. To do so, we start from the Social Psychology and the concept of
Identity as the central category of analysis, considering to understand not only the
phenomenon in its instrumental aspect, but, all the context in which the individual
that uses psychoactive substances is inserted, in the tradition vs. modernity conflicts,
of the market of consumption, of the diagnostic and treatments; with the proposal to
present a contribution in such a way theoretical as political. The research was carried
through from the narrative of the participant life history, which was recorded and
transcript with the consent of the interviewed. While analyzing the life history
narrative, we focused on happenings immediately before, during and after the
participation on the therapeutic workshop of theater, asking the participant to tell
several aspects of his life and not only the one who made the person search for drug
dependency treatment. What has changed in his family, social, professional and
individual life, observing how has this process developed. The dissertation is divided
in five chapters that approach several aspects in which the individuals who use
psychoactive substances are inserted. In this way, this work weaves some reflections
on the question of drug usage and the possibility of change through the therapeutic
workshop of theater, as well as it offers subsidy to discuss the Post Conventional
Identities (Habermas) and the possibilities of emancipation in Modernity.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho não teria sido possível sem muita paixão, apoio e amizades.
Muitas pessoas ajudaram, incentivaram e me suportaram durante este período e, é
certo que não conseguirei agradecer a todos os envolvidos neste pequeno espaço,
pois isso iria requerer uma centena de páginas; correndo o risco de parecer injusto ou
ingrato para alguns. Entretanto, não poderia deixar de agradecer algumas pessoas que
contribuíram de forma direta neste percurso, às outras agradecerei pessoalmente ao
encontrá-las.
Meu especial agradecimento dirige-se ao Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa
por apresentar novas perspectivas de leitura sobre a Identidade, pelas orientações
preciosas, pela amizade e confiança que foram essenciais para a realização desse
trabalho. Termino a dissertação sentindo que é apenas o começo de uma longa
jornada, desejando que nos próximos anos possa continuar contando com seu apoio.
A Meire Silva de Lima, grande companheira e incentivadora, pelas palavras
que disse antes da inscrição no mestrado e no decorrer de sua elaboração, à você
desejo toda a felicidade do mundo.
A minha filha Stephanie Caroline Ferreira de Lima, que de tão pequena talvez
não saiba o quanto significa para mim, obrigado pelas horas ao meu lado no
computador e por não desistir nunca de chamar-me para brincar contigo, a você meu
eterno amor.
Ao meu pai Luiz Cardoso de Lima (in memorian) que sonhou este momento
muito antes de eu ter nascido, minha gratidão.
A minha mãe Aparecida e a meus irmãos: Alexandre, Paulo, Thiago, Elisa,
João Victor; ao Raimundo (Ceará), Natália, Vitória e João Paulo, que acreditaram
em mim nos momentos mais difíceis.
Ao Mestre Kaor Okada pelos ensinamentos do Bushidô, pela paciência de
todos esses anos, espero um dia poder mostrar o quanto aprendi do caminho.
Ao Emerson da Costa Andrade, que me honra com sua amizade, confiança e
incentivo.
A Bianca Mendes, pelas longas horas que passou ao meu lado na leitura e
revisão final do texto, que no futuro possa retribuir sua ajuda.
As amigas Ana Paula de Carvalho e Brendali Dias, pelas discussões
produtivas no Espaço Psiquê.
Aos amigos que conheci durante o Mestrado, Tiago Lopes, Cláudio, Eliete,
Juliana, Renato Ferreira, Nilson Netto, Nadir Lara Jr. e Geison, por sua ajuda e
amizade na jornada acadêmica e aos amigos do NEPIM-PUCSP por seus excelentes
conselhos, críticas e sugestões, em especial à Juracy de Almeida, Helena Kolyniak,
Sueli Satow, Alessandro Campos, Patrícia e Shirley Lima.
Aos professores (as): Dr. Leon Crochik, Dra. Mary Jane Spink, Dr. Raul
Albino Pacheco Filho, Dr. Salvador Sandoval, Dra. Ana Luiza Garcia, por seus
livros, textos e aulas; principalmente a Dra. Maria do Carmo Guedes que
acompanhou grande parte deste processo, ensinando a importância do pensamento
crítico, das perguntas e respostas pensadas, estando sempre presente nos momentos
que precisei.
Aos amigos do EFRS: Vilmar E. Santos, Mirian Aranda, Celso Augusto
Azevedo, Silvana Rosa, Myrna Coelho, Elaine Zingari, Sandra Maia e todos os
pacientes do Espaço Fernando Ramos da Silva que possibilitaram um novo capítulo
na minha vida pessoal e profissional.
Aos professores do Centro Universitário de Santo André, principalmente ao
Prof. Dr. Jorge Maalouf, pelas supervisões e orientações na época da graduação.
Aos professores: Dr. Odair Sass e Dr. Cláudio Bastidas pelas excelentes
colocações e sugestões na banca de qualificação e por aceitarem prontamente a
participação na banca de defesa.
Ao CNPQ , pois não seria possível realizar esta dissertação sem a obtenção de
uma bolsa de estudos.
A todas as pessoas envolvidas direta ou indiretamente na minha vida e na
pesquisa; aos que concederam o seu tempo e seus discursos para realização deste
trabalho, em especial a Lou-Lou sem a qual esta dissertação seria muito diferente.
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 3
A DEPENDÊNCIA DE DROGAS COMO UM PROBLEMA DE IDENTIDADE............ 4 O ENVOLVIMENTO DO PESQUISADOR COM O MUNDO DAS DROGAS ............................. 13
CAPÍTULO I ............................................................................................. 24
1.1 – AS METAMORFOSES DO PHÁRMAKON ............................................................... 25 TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO “DEPENDÊNCIA DE DROGAS” ................................... 33 O USO DE DROGAS NO BRASIL ................................................................................................... 39
1.2 – AS METAMORFOSES DO “TRATAMENTO”........................................................ 42 OS MODELOS DE TRATAMENTO DA ATUALIDADE............................................................... 51
CAPÍTULO II............................................................................................ 67
2.1 – O ESPAÇO FERNANDO RAMOS DA SILVA ......................................................... 68 AS METAMORFOSES NO PROJETO TERAPÊUTICO DO EFRS................................................ 71 OS GRUPOS DE ACOLHIMENTO .................................................................................................. 77 AS OFICINAS TERAPÊUTICAS NO ESPAÇO FERNANDO RAMOS DA SILVA...................... 78
CAPÍTULO III .......................................................................................... 82
1 - OFICINA TERAPÊUTICA: QUE OFICINA É ESSA?................................................ 83 A ARTE COMO POSSIBILIDADE TERAPÊUTICA ...................................................................... 90 A DIFERENÇA ENTRE ARTE E FAZER CRIATIVO .................................................................... 99
CAPÍTULO IV......................................................................................... 106
4.1 – A CONCEPÇÃO TEÓRICA DE IDENTIDADE DE ANTONIO C. CIAMPA.... 107 IDENTIDADE COMO METAMORFOSE HUMANA ................................................................... 110 POLÍTICAS DE IDENTIDADE E IDENTIDADES POLÍTICAS .................................................. 113
4.2 – SIMULTANEIDADE DA SOCIALIZAÇÃO E INDIVIDUAÇÃO DA IDENTIDADE EM G. H. MEAD........................................................................................ 119
O EU E O MIM ................................................................................................................................ 123 O OUTRO GENERALIZADO......................................................................................................... 127 A MATERIALIDADE EM MEAD.................................................................................................. 129
4.3 – A APROPRIAÇÃO DOS CONCEITOS DE MEAD POR J. HABERMAS.......... 132 A GUINADA LINGUISTICA E O PENSAMENTO PÓS-METAFÍSICO ..................................... 135 A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO ...................................................................................... 136 O MUNDO DA VIDA...................................................................................................................... 142 A CONCEPÇÃO DA IDENTIDADE EM HABERMAS ................................................................ 146 AS PATOLOGIAS DA MODERNIDADE PARA HABERMAS ................................................... 153
CAPÍTULO V .......................................................................................... 158
5.1 – A HISTÓRIA DE LOU-LOU ..................................................................................... 159 ONDE APRESENTAMOS LOU-LOU E ESSA NOS CONTA SUA HISTÓRIA.......................... 162 LOU-LOU CONTA COMO A GAROTA-MORNA PASSA A SER VISTA COMO GAROTA-PERDIDA QUANDO SE TRANSFORMA NA ANARCOPUNK .................................................... 168
2
A ANARCOPUNK CONTA COMO SURGE A ADOLESCENTE-EXPERIMENTADORA QUE POSSIBILITARÁ SUAS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS COM A PERCEPÇÃO......................... 171 QUANDO A EX-GAROTA-MORNA, QUE TINHA SE TRANSFORMADO NA ANARCOPUNK-ADOLESCENTE-EXPERIMENTADORA COMEÇA A NAMORAR E TRANSFORMA-SE NA ALUNA-REBELDE ........................................................................................................................... 179 QUANDO SURGE A VENDEDORA-DE-CACHORRO-QUENTE NA VIDA DE LOU-LOU ...... 180 O MOMENTO EM QUE A GAROTA-ISOLADA COMEÇA A ENCONTRAR OUTRA PERSONAGEM ............................................................................................................................... 183 A ANARCOFEMINISTA É SURPREENDIDA PELO RETORNO DA ADOLESCENTE-EXPERIMENTADORA ..................................................................................................................... 187 APARECE A BRUXA-DA-ILHA-DA-MAGIA NA ESTEIRA DA ANARCOFEMINISTA-QUE-NÃO-ERA-MAIS-ATIVISTA DEPOIS DO RISCO DE SE TORNAR A DEPRESSIVA-DEPENDNTE-DE-DROGAS........................................................................................................................................... 196 QUANDO APARECE MAIS UMA PERSONAGEM NA HISTÓRIA DE LOU-LOU.................. 201 O RETORNO DA DEPRESSIVA-DEPENDENTE-DE-DROGAS QUE AGORA TAMBÉM ERA LOUCA-SUICIDA ............................................................................................................................ 203 INESPERADAMENTE SURGE UM NOVO PROBLEMA E LOU-LOU MOSTRA QUE JÁ NÃO É MAIS A MESMA LOU-LOU QUE PROCUROU TRATAMENTO........................................... 213 O MOMENTO EM QUE LOU-LOU SE TORNA MÃE E MUDA SUA FORMA DE ENCARAR O MUNDO ........................................................................................................................................... 219 QUANDO LOU-LOU NOS ENSINA QUE A MELHOR VIDA É AQUELA QUE PODE SER VIVIDA ............................................................................................................................................ 220 NEM ADICTA, NEM EX-DROGADA, LOU-LOU ESÁ APENS SENDO A LOU-LOU-DE-HOJE, RENOVADA A CADA NOVO DIA ............................................................................................... 223 A LOU-LOU-DE-HOJE FALA DE PLANOS PARA O FUTURO................................................. 225
5.2 - QUANDO RESGATAMOS A HISTÓRIA DE LOU-LOU MAIS UMA VEZ, AGORA PARA INTRODUZIRMOS NOSSAS CONSIDERAÇÕES FINAIS .............. 227 5.3 – QUE POSSIBILITA DISCUTIRMOS A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO IDENTIDADE-METAMORFOSE PARA O SINTAGMA IDENTIDADE-METAMORFOSE- EMANCIPAÇÃO.................................................................................. 232
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................. 237
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 238
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: .................................................. 245
SUMÁRIO DAS TABELAS:
Tabela 1 – Mudança referente a Faixa Etária atendida pelo EFRS............................................ 73 Tabela 2 – Mudança do Perfil dos usuários matriculados no EFRS........................................... 74 Tabela 3 – Mudança de Gênero dos usuários atendidos no EFRS.............................................. 75 Tabela 4 – Distribuição Local de usuários de drogas por sexo e substância.............................. 76 Tabela 5 – Diferenciação entre Fazer Artístico e Fazer Criativo. ............................................ 103 Tabela 6 – Tipos de Ação........................................................................................................... 140 Tabela 7 – Consciência Moral e Competência de Papel ........................................................... 151 Tabela 8 – Distorções sistemáticas da comunicação................................................................. 155
INTRODUÇÃO
A DEPENDÊNCIA DE DROGAS COMO UM PROBLEMA DE
IDENTIDADE
Os caminhos que levam ao conhecimento científico nem sempre se
apresentam prontos ou acabados. A trajetória do conhecimento precisa ser
construída; muitas vezes ao pensar que se está na via certa, descobre-se que
se tem de abandoná-la e recomeçar; este é o caminho da construção do
conhecimento, é o interesse de nossa razão. Esse interesse é a “identidade
da prática e da teoria; o interesse pela libertação da coerção; interesse
(prático) pela transformação do sistema social, interesse (teórico) pela
clarificação da situação que se constitui nas condições sob as quais
vivemos”1, ou seja, um questionamento crítico e criativo, mais a
intervenção prática inovadora.2
Freud entende que o indivíduo é um ser constituído a partir da sua
relação com outros indivíduos, sendo que o contraste entre a psicologia
individual e a psicologia social perde sentido quando examinada mais de
perto; isso faz com que o autor infira que toda Psicologia é Social3. Foi com
essa primeira verdade que o pesquisador entrou no Mestrado; uma verdade
que se transformou na medida em que se deparou com uma Psicologia
Social Crítica diferente das outras Psicologias; e que por sua vez era
diferente de uma Psicologia Social não crítica. Esse contato com as
diferentes ‘Psicologias’ fez com que imaginássemos que talvez hoje Freud
1 Antonio da C. CIAMPA, A História da Severina, p. 216. (grifos do autor) 2 Pedro DEMO, Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica no caminho de
Habermas. 3 Sigmund FREUD, Psicologia de Grupo e Análise do Ego, p. 91.
5
pensaria antes de sua afirmação e diria que toda Psicologia ‘deveria’ ser
social. Visto que é difícil entender a “relação entre o universal e o
particular, entre a totalidade social e a totalidade individual, e o erro é
cometido, mesmo pelos chamados marxistas, porque eles estão com o
pensamento viciado pela tradição ocidental, que é no fundo aristotélica, em
que uma coisa existe separadamente da outra”4, sem contar que as
discussões com os problemas sociais não são fáceis de serem feitas, seja
porque são desanimadoras, seja porque apontam para nossos maiores
medos, ou ainda, porque apresentam um desafio a nossa força de vontade e
imaginação no que se refere à busca de saídas na Modernidade.
Aqui você tem que entender que o universal é o particular – e não é
também – porque ele passa a ser a negação desse universal, porque se
individualizou. Por isso que a Psicologia tem um papel para
desempenhar, porque se todo mundo fosse igual, a Psicologia não faria
sentido algum.5
Da mesma forma, o mestrado possibilitou uma maior aproximação
com a filosofia e com as ciências sociais, fazendo com que sentisse a
importância da interdisciplinariedade, fortalecendo a lição apresentada por
Merleau-Ponty: “Não haverá diferença entre psicologia e filosofia; a
psicologia é sempre filosofia implícita, iniciante; a filosofia não terminou
nunca de tomar contato com os fatos”.6 É importante colocarmos que não
4 Iraí CARONE, Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa, p.
13. 5 Ibid., p. 13. 6 Maurice MERLEAU-PONTY, Merleau-Ponty na Sourbone: resumo dos cursos: 1949-1952:
filosofia e linguagem, p. 22.
6
queremos defender aqui a idéia que a filosofia pode se tornar psicologia,
pois isso não teria sentido, por outro lado, entendemos que esta será uma
importante aliada no trabalho que faremos adiante.
A filosofia, transformada na modernidade em especialidade, nos
parece bem equipada para responder às necessidades dos indivíduos em sua
busca particular de sentido, mas que já não pode mais preencher essas
expectativas em um mundo cada vez mais pluralista sem recorrer a um
suporte metafísico; nas condições do pensamento pós-metafísico, ela não
pode mais “contentar os filho e filhas da modernidade, que necessitam de
orientação, com o sucedâneo de visão de mundo que substituiria as certezas
perdidas pela fé religiosa ou as definições que o homem ocupa no cosmo.”7
No entanto, no que se refere às questões de identidade – quem somos e
quem gostaríamos de ser –, sabemos que “ela pode, enquanto ética, mostrar
o caminho rumo a autoclarificação racional”8, assim como na medida em
que “entretém uma intima relação tanto com as ciências como com o senso
comum e compreende a linguagem ordinária enraizada na práxis, ela pode,
por exemplo, criticar a colonização do mundo da vida que é esvaziado pelas
intervenções da ciência e da técnica, do mercado e do capital, do direito e
da burocracia.”9
O pesquisador aprendeu que pesquisar Identidade é pesquisar algo
em constante mudança; que ser pesquisador de Identidade é procurar
entender a história daquilo que se estuda e estar preparado para apreender o
7 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação, p. 323. 8 Ibid., p. 323. 9 Ibid., p. 324.
7
que ainda está por vir. É identificar a opressão no que está estabelecido e
observar os fragmentos de emancipação nos lugares em que aparentemente
não existem saídas. Também aprendeu a compreender a história como algo
essencial para discutir Identidade; e que isso não significa dizer que seja
uma tarefa fácil, pois sabemos que desde “o fim do século XVIII, a história
é concebida como um processo mundial que gera problemas. Nele, o tempo
é entendido como um recurso escasso para a superação prospectiva dos
problemas que o passado nos legou. Passados exemplares nos quais o
presente pudesse confiantemente orientar-se esvaneceram-se.”10 O
pensamento histórico saturado de experiência parece destinado a criticar os
projetos utópicos, ocorrendo uma desvalorização daquilo que foi feito no
passado e uma supervalorização do que é feito no presente, não levando em
conta, muitas vezes, as contradições históricas, os progressos e as
regressões vividas pelos indivíduos; assim como essas mudanças estão
ligadas a interesses econômicos e políticos.
Considerando algo mais, “num certo sentido, talvez simplificando ou
falando de forma esquemática, cabe lembrar que o mercado sempre fez
parte da chamada ordem sistêmica, cuja existência se justifica (ou deveria
se justificar) pelo atendimento às necessidades do mundo da vida, ou seja, o
sistema precisa existir para servir ao mundo da vida e não o contrário como
vem cada vez mais acontecendo, em que a própria vida é posta a serviço
dos interesses sistêmicos.”11 Portanto, o problema não estaria na “evolução,
no desenvolvimento da racionalidade, mas exatamente na falta da mesma,
10 Jürgen HABERMAS, A Nova Intransparência: A crise do Estado de Bem-Estar Social e o
esgotamento das Energias Utópicas, Novos Estudos CEBRAP, 18, p. 103. 11 Antonio da C. CIAMPA, Fundamentalismo: A Recusa do Fundamental, p. 02.
8
que decorre da inversão de meios que se tornam fins (ordem sistêmica) e de
fins que se tornam meios (mundo da vida)”12, tendo uma íntima relação na
construção/manutenção das identidades. O pesquisador volta a afirmar aqui
a importância da Psicologia e da análise das Identidades. “A Psicologia vai
apanhar esse processo de singularização e a biografia é a grande forma de
você recuperar o processo de individuação: como eu internalizei minha
classe, como reproduzo minha classe..., a tal ponto que sou diferente de
outro burguês.”13
Ao adotar a Identidade como categoria central de análise, é
necessário também que se descreva como esta é entendida. Por enquanto
basta dizer que partimos da concepção de Identidade desenvolvida por
Ciampa, que entende toda identidade como pressuposta, “uma identidade
que é re-posta a cada momento, sob pena de esses objetivos sociais, filho,
pais, família etc., deixarem de existir”14 e que isso introduz uma
complexidade ao passo que ao ser re-posta a identidade “é vista como dada
e não como se dando, num continuo processo de identificação. É como se,
uma vez identificado o indivíduo, a produção de sua identidade se esgotasse
com o produto15”, dando a impressão que a identidade continua a mesma,
quando na realidade esta presa num movimento de mesmice. E como esses
processos não podem ser entendidos de maneira simplificada, é lícito inferir
que a auto compreensão do homem é intra-subjetiva, dele com ele mesmo,
12 Antonio da C. CIAMPA, Fundamentalismo: A Recusa do Fundamental, p. 02. 13 Iraí CARONE, Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa, p.
13. 14 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 163. 15 Ibid., p. 163.
9
e, ao mesmo tempo intersubjetiva ou social; dele com outras pessoas da
comunidade real ilimitada. E que a ‘comunicação’ está na raiz dessa tarefa.
É aquilo que pressupõe um discurso irrestrito, a vontade/liberdade de cada
um se colocar na posição do outro, a disciplina de engajar-se numa
justificação racional e a vontade de afastar a razão interesseira de modo que
o ‘melhor argumento’ vença. Seguindo a tradição da teoria crítica da
sociedade, em contraste com o pensamento tradicional, incorpora o
interesse emancipatório no conhecimento para além de sua mera aplicação
prática e utiliza a reflexividade para decidir de que modo cada interesse
promove autonomia.
Tendo apresentado essas primeiras lições aprendidas pelo
pesquisador, voltamos ao tema desta introdução: a dependência de drogas
como um problema de Identidade. Já apontando que esse não é um
problema recente; ao longo da história ocorreram diversas tentativas de
caracterizar a identidade do dependente de drogas, com o intuito de
desenvolver tecnologias que pudessem dar conta do fenômeno. No entanto
nenhuma dessas tentativas tiveram êxito, dada a pluralidade de formas de
vida na qual está inserida a pessoa que utiliza substâncias psicoativas.
De acordo com a literatura, parece existir um consenso entre os
diferentes autores no que se refere a impossibilidade de traçar uma
identidade típica para o dependente de drogas, mas isso não significa que
não existam ainda teorias que defendam a idéia da ‘identidade adicta’,
pressupondo um indivíduo com tendência inata a dependência, como é o
caso do Alcoólicos Anônimos – AA, não levando em consideração que a
identidade é metamorfose humana em busca de emancipação. Partindo da
10
idéia de uma identidade sempre igual a si mesma, independente da
temporalidade e da historicidade e, deixando de ser a articulação entre a
diferença e igualdade. Ao ignorar essa unidade , a identidade se torna
abstrata. Isso não quer dizer que não existiram/existem teorias interessantes
à respeito da dependência de drogas, ou ainda, de seu uso como contestação
social.
Para Freud, por exemplo, as drogas têm um lugar permanente na
economia de libido. Sendo assim “devemos a tais veículos não só a
produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de
independência do mundo externo, pois sabe-se que, com auxilio desse
‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se
da pressão da realidade e encontrar um refúgio num mundo próprio, com
melhores condições de sensibilidade”16. Se seguirmos o raciocínio de Freud
podemos tomar como hipótese que quanto mais repressão existir na
sociedade, maior será o uso/abuso de drogas por parte das pessoas. Se isso
for verdadeiro, encontraremos um aparente paradoxo, pois o usuário de
drogas seria então uma denúncia do sistema, na medida em que tem de
buscar a satisfação humana em outras formas não institucionalizadas,
negando inclusive o principio de desempenho.
Alguns autores da atualidade vão defender que foram frustadas as
tentativas de caracterização da personalidade típica do dependente de
drogas. Para Olivenstein17 a problemática passaria pelo surgimento de uma
falha estrutural inscrita por razões ainda não esclarecidas no psiquismo do 16 Sigmund FREUD, Mal estar na Civilização, p. 27. 17 Claude OLIVENSTEIN, Destino do Toxicômano.
11
indivíduo. Utilizando o referencial psicanalítico vai defender que essa falha
seria gerada por uma falta arcaica, responsável por uma vivência de
incompletude que precederia a falta imediata da droga.
Em Birman verificamos uma diferenciação entre os indivíduos que
utilizam substâncias psicoativas pela dimensão compulsiva dos mesmos;
nas palavras deste autor: “os usuários de droga podem se valer da droga
para seu deleite e em momentos de angústia, mas esta nunca se transforma
na razão maior de sua existência. Os toxicômanos, porém, são compelidos à
sua ingestão por forças físicas e psíquicas poderosas. As drogas passam a
representar, para esse grupo, o valor soberano na regulação de sua
existência.”18 Logo, não haveria uma dependência física, se não fosse a
presença da dependência psíquica. Sendo que nas toxicomanias ocorreriam
ambas as formas de dependência, tendo no caso da dependência física um
aumento crescente da dose inicialmente administrada, com possíveis
substituições por drogas mais potentes.
Também é insuficiente abordar o fenômeno das drogas sem levar em
consideração o contexto sócio-histórico no qual o indivíduo está inserido.
Seguindo essa linha de argumentação encontraremos em Bucher uma
importante contribuição. Este autor defende que a identidade do usuário de
drogas “não se deixa reduzir a uma ‘personalidade social’, enquanto
assimilação de influências externas (e normativas) culminando na
confecção de papéis sociais estáveis e integradores.”19
18 Joel BIRMAN, O mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação, p.
223. 19 Richard BUCHER, Drogas e drogadição no Brasil, p.176.
12
Se utilizarmos o conceito de Identidade-Metamorfose para discutir o
problema da dependência de drogas, podemos partir de, no mínimo, dois
pontos de discussão. O primeiro se refere as questões intersubjetivas que
conotam um fetiche no uso de drogas e que atribuem a essas um poder de
dominação inevitável sobre os indivíduos; ao reconhecimento e redução dos
indivíduos que utilizam essas substâncias psicoativas a um único
personagem: o dependente; sendo que aqui encontramos outras
complexidades, na medida em que o fato dos indivíduos deixarem de re-por
esta personagem (dependente), muitas vezes não é uma garantia da
recuperação dos outros personagens perdidos/negados (pai, filho, irmão,
trabalhador etc.), aprisionando muitas vezes os indivíduos na personagem
do ‘Ex’ (ex-dependente, ex-drogado etc.), não ocorrendo portanto uma
metamorfose, enquanto mesmidade de pensar e ser. O segundo ponto de
discussão refere-se às formas de utilização das drogas, que podem conter
tanto um sentido reacionário (no fortalecimento das indústrias de bebidas,
farmacêuticas, tabagistas, ilegais etc), quanto emancipatório, na medida em
que entendemos que nem toda forma de contravenção seja algo negativo,
mas que podem apontar para necessidade de mudança na realidade vigente
e que muitas vezes desvelam as desigualdades sociais e as impossibilidades
de existência na sociedade administrada. Sendo assim, a dependência de
drogas pode, contraditóriamente, ser uma reivindicação de independência
da dependência da realidade vivida.
13
O ENVOLVIMENTO DO PESQUISADOR COM O MUNDO DAS
DROGAS
O tema das drogas têm sido abordado sob diversos pontos de vista:
Psicofarmacologia, Epidemiologia, Psicopatologia, Ciências Sociais etc.,
tendendo algumas vezes a um reducionismo que descreve o ser humano
impotente perante às influências das substâncias psicoativas. Com isso, os
estudos partem sempre da influência da droga no comportamento humano,
ou ainda, da influência do mercado no consumo das drogas, porém pouca
atenção tem sido dada ao indivíduo que utiliza as substâncias e, quando esse
é visto já se têm pressupostos teóricos que lhe negam a condição de sujeito;
quando muito o encaram como alguém quase totalmente determinado por
políticas de identidade heteronomamente estabelecidas.
Ao partir da Psicologia Social para entender o sentido da oficina
terapêutica de teatro para pessoa que passou por tratamento da dependência
de drogas, o que se propõe é entender o fenômeno não apenas no seu
aspecto instrumental, mas sim, compreender o contexto no qual o indivíduo
que usa substâncias psicoativas está inserido, nos conflitos da tradição vs.
modernidade, do mercado de consumo, dos diagnósticos e tratamentos. Para
tanto, utilizaremos o conceito de identidade como categoria central de
análise, com a proposta de apresentar uma contribuição tanto teórica,
quanto política.
Sabemos que as drogas são, antes de tudo, substâncias consumidas
pelos indivíduos para alterar a consciência. Mas essas drogas são,
igualmente, mercadorias. E assim, como a “relação do homem com ele
14
mesmo só é real, objetiva, por meio da sua relação com outros homens”20,
o uso de drogas sendo um objeto estranho para o indivíduo, entra em total
coerência com a lógica do capitalismo, na medida em que os indivíduos se
relacionam com o uso de drogas como algo estranho a eles, quanto mais
consomem essas substâncias, mais são consumidos por elas; logo, não é por
um acaso que a questão do uso abusivo das drogas aparece na Modernidade
como um dos maiores problemas da Saúde Pública no Mundo e
contraditóriamente é um dos negócios mais rentáveis da atualidade,
fortalecendo tanto o mercado legal quanto o ilegal. Assim, entendemos que
se as drogas, enquanto mercadorias, são usadas, consumidas, para marcar
diferenças sociais e, com isso transmitir mensagens, que moldam as
identidades, essa condição de catástrofe de proporções epidêmicas tem uma
íntima ligação com as condições do capitalismo.
Quando utilizamos o termo ‘usuário de drogas’, queremos apontar
uma categoria na qual estamos todos incluídos direta e indiretamente, mas
que por conta das questões morais acabam sendo diferenciadas entre si. Nos
referimos tanto a pessoa que fuma seu ‘baseado’ (maconha) com os amigos,
participa da ‘cervejada’ do final de semana, que usa drogas para dormir,
para lidar com a depressão, que toma o ‘cafezinho’ para agüentar mais um
turno da exploração no mundo trabalhista, enfim, falamos de nós mesmos e
ao mesmo tempo falamos daqueles que são estigmatizados pelo uso abusivo
de qualquer uma dessas substâncias.
Ao estigmatizar o usuário de drogas, a sociedade cumpre a função
divergente a que explicitamente se propõe, ou seja, ao invés de
20 Karl MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, p. 119. (Grifos do autor).
15
desestimular o uso da droga, reforça-o por meio do rebaixamento
contínuo da auto-estima desses indivíduos, negando-lhes o acolhimento e
a aceitação social estimulando-os a integrar-se com outros indivíduos
marginalizados por diferentes desvios e/ou estigmas, encontrando em
outros toxicômanos a sua identidade grupal.21
Embora a comparação dos dados obtidos no Brasil com os estudos
americanos demonstre que o uso na vida de qualquer droga pelo brasileiro é
em média, duas a quatro vezes menor que nos EUA22, preocupa-nos a
existência da crença de maior periculosidade das drogas ilegais, o que é
questionável dada a facilidade de acesso das drogas legalizadas; por
exemplo, em 2001 foram emitidas “121.901 AIHs (Autorização de
Internação Hospitalar) para as internações relacionadas ao alcoolismo.
Como a média de permanência em internação foi de 27,3 dias para o
período selecionado, estas internações tiveram um custo anual para o SUS23
de mais de 60 milhões de reais”24. Esse dado nos leva a imaginar que a
indústria de álcool causaria muito prejuízo ao Estado, entretanto,
considerando o arrecadamento de impostos das indústrias de bebidas, esse
prejuízo não parece ser tão grande assim; basta olharmos para o
faturamento trimestral da indústria de bebidas para entender que é um
negócio muito lucrativo. No relatório divulgado para acionistas da
21 Isabel S. AMARAL, A sociedade de consumo e a produção da toxicomania, p. 46. 22 CARLINI, E. A. et al., I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas no Brasil: estudo
envolvendo as 107 maiores cidades do país: 2001, p. 328. 23 Sistema Único de Saúde. 24 BRASIL, A Política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras
drogas, p. 17.
16
Companhia de Bebidas das Américas – AMBEV25; do segundo trimestre de
2003 foi relatado que a empresa atingiu um lucro de R$ 468,2 milhões com
a venda de cerveja., apresentando inclusive metas para o aumento das
vendas, e é claro do consumo, para os próximos semestres.
De acordo com o “I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas no
Brasil”, realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
psicotrópicas (CEBRID) e Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP);
coordenado pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), que pesquisou
107 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes: 19,4% da
população brasileira já fez uso na vida de drogas (fora álcool e tabaco);
sendo que entre essas drogas o maior índice encontrado foi do uso de
maconha (6,9%), seguido dos solventes (5,8%), dos anorexígenos
(estimulantes do apetite - 4,3%), dos benzodiazepínicos (3,3%) e da cocaína
(2,3%). Já o uso na vida de álcool foi de 68,7% e o de tabaco de 41,1%. Em
termos de dependência, a pesquisa constatou que o álcool atinge 11,2% da
população brasileira e o tabaco 9,0 %. A dependência de outras drogas
girou em torno de 1% da população, como é o caso dos benzodiazepínicos –
neste caso devemos levar em consideração que os usuários deste tipo de
substância muitas vezes não a consideram como droga –, da maconha e dos
solventes.26
Mas antes de apresentar a pesquisa propriamente dita, falaremos
sobre o envolvimento com o tema e o interesse pela pesquisa. Vale dizer
25 Resultados divulgados para acionistas da BOVESPA em São Paulo, 11 de agosto de 2003. 26 CARLINI, E. A., et al., I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas no Brasil: estudo
envolvendo as 107 maiores cidades do país: 2001.
17
que o interesse do pesquisador pelos estudos sobre a identidade das pessoas
que usam substâncias psicoativas surgiu durante o período em que foi
estagiário na equipe do ambulatório de tratamento aos usuários de drogas
do município de Diadema – SP, Espaço Fernando Ramos da Silva –
EFRS27. O estágio ocorreu no período de 15 de fevereiro de 2002 a 31 de
dezembro de 2003, tendo sido executadas as seguintes tarefas na instituição:
atendimentos individuais, grupais, familiares, trabalhos de prevenção e
capacitação na temática das drogas e monitoria em oficinas terapêuticas.
Observamos neste período que os usuários28 envolvidos no
tratamento tinham uma participação constante nas oficinas terapêuticas,
sendo na maioria das vezes o único espaço frequentado por esses. Sendo
que durante os atendimentos do grupo de familiares, a mudança de
personagens destes usuários era constantemente trazidas pelos componentes
da família; pudemos verificar inclusive, que alguns familiares vinham ao
grupo informar o “abandono do paciente”, justificando que este tinha
“mudado de vida”, arrumado emprego, namorada, reconstruído
relacionamentos etc.
Observamos também, utilizando uma expressão habermasiana, a
presença de “fragmentos de emancipação” nas mudanças de vida desses
usuários; citaremos aqui como exemplo a oficina terapêutica de teatro do
EFRS, na qual, após a apresentação de uma peça teatral em um Encontro
27 O histórico e funcionamento do EFRS será apresentado no Capitulo II. 28 Termo utilizado pela saúde pública para designar a pessoa que procura e/ou faz tratamento em
unidades de saúde, para substituir o antigo termo ‘paciente’.
18
Internacional29, na participação em um coquetel ao término do evento, os
usuários foram acolhidos e parabenizados como “artistas” pelos
representantes europeus e latino americanos; esses pacientes retornam na
semana seguinte propondo a mudança do nome oficina de teatro do EFRS –
“Os Recuperandos”, para “Cia. Re-Visão”, sendo também proposto para os
técnicos a apresentação de peças em outros eventos e espaços.
Esses ‘fragmentos de emancipação’ fizeram com que surgisse o
interesse em pesquisar o sentido da oficina de teatro para a pessoa que
passou por tratamento da dependência de drogas no EFRS, constatando uma
metamorfose identitária significativa depois dela e verificando que esta
pessoa reorganizou sua vida e resignificou / transformou as personagens
vividas.
A escolha do Espaço Fernando Ramos da Silva como locus de
localização de possíveis participantes para a pesquisa se deu pela forma de
tratamento da instituição, em que a permanência do indivíduo depende de
sua disposição ao tratamento proposto, diferentemente de instituições totais,
29 1º. Encontro Internacional do Programa URB-AL em Diadema – Intercâmbio de Experiências
entre países da Europa e América Latina. URB-AL – É um programa de cooperação descentralizado
da Comissão Européia, cujo objetivo envolve as políticas públicas. Baseia-se em intercâmbio de
experiências entre a União Européia e América-Latina. Os participantes deste programa se agrupam
livremente, segundo suas afinidades, ao redor de um ou vários temas relacionados com a cidade. A
cidade de Diadema, assim como outras cidades do ABC Paulista, participaram da primeira fase deste
programa. Que consiste em desenvolvimento de projetos de diagnósticos de problemas sociais, de
saúde e educação, principalmente na luta contra pobreza e desequilíbrios sociais; promoção e
proteção dos diretos humanos. Diadema, nesta ocasião, apresentou o Diagnóstico Social e
programático realizado na cidade e os primeiros resultados do projeto Educar é Prevenir, que
capacitou todos os coordenadores das escolas municipais nas temáticas: drogas e sexualidade.
19
que utilizam a internação e a abstinência, como forma ideal para o
tratamento da dependência de drogas, em que é necessário que o indivíduo
abra mão de seu desejo e autonomia, passando por um período de
internação, tendo além dos atendimentos das especialidades a participação
“obrigatória” em oficinas terapêuticas.
Outro fator que fortaleceu a escolha do EFRS dentre outras
instituições de tratamento do ABC foi o fato desta instituição ter seu projeto
de criação e intervenção utilizado como objeto de pesquisa em uma
Dissertação de Mestrado em Psicologia Social da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUCSP.30
A direção do EFRS mostrou-se bastante interessada em colaborar
com a pesquisa, tendo possibilitado acesso aos prontuários, indicado
informantes e participantes potenciais para entrevista. Entre os 2494
prontuários de usuários matriculados31, levantamos os prontuários de ex-
pacientes que apresentavam em seu histórico alguma participação na oficina
terapêutica de teatro durante seu tratamento na instituição. Este processo foi
iniciado no dia 20 de dezembro de 2003 e encerrado em 15 de janeiro de
2004.
Após o levantamento de 57 prontuários de pessoas que participaram
da oficina terapêutica de teatro, faziam uso de drogas psicoativas e
obtiveram alta do ambulatório, ou abandonaram em momento de maior
30 Sérgio S. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao
uso de drogas em Diadema. 31 Total de pacientes matriculados em 22/12/2003.
20
organização pessoal; da escuta de ‘informantes’ sobre o possível
participante (os informantes foram antigos usuários, familiares de usuários e
técnicos da instituição), escolhemos um usuário que apresentasse o histórico
que apontasse para uma identidade pós-convencional.32
A escolha da oficina terapêutica de teatro entre as outras da
instituição ocorreu devido a alguns fatores; 1) ao fato desta ter sido a
primeira oficina da instituição; 2) ser a oficina na qual o usuário expõe seu
trabalho por meio do corpo, para um público que pode reconhecer ou não
sua atuação; 3) pelo seu efeito peculiar de possibilitar a mudança nas
interpretações publicamente reconhecidas, referentes ao indivíduo
estigmatizado. Este último item é defendido por Habermas que infere que
quando “uma companhia de teatro, os membros de uma universidade ou de
uma organização eclesial conseguem impor reivindicações de cogestão,
esse fato tem também, certamente, um aspecto político.”33
A pesquisa foi realizada coletando a narrativa da história de vida, que
foi gravada e transcrita com o consentimento da entrevistada – por meio de
um termo de autorização devidamente esclarecido sobre os objetivos da
pesquisa e garantido o sigilo. Estes relatos procuraram focar acontecimentos
imediatamente antes, durante e após sua participação da oficina terapêutica,
buscando que o participante nos contasse diversos aspectos de sua vida, não
apenas aquele que levou o indivíduo a procurar tratamento no EFRS. A
escolha da narrativa de história de vida como instrumento principal de
32 Esse termo será explicado no capítulo IV no qual tratamos do referencial teórico adotado na
pesquisa. 33 Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 99.
21
análise, ocorreu devido ao fato do método utilizado na pesquisa ter como
requisito básico estudar históricamente o que está sendo investigado, isto é,
no processo de mudança.
O interesse da pesquisa foi registrar a memória viva do participante e
compreender, outrossim, os processos de metamorfose que foram
acontecendo nos diversos setores de sua vida, novos significados que
passou a atribuir aos fatos de sua vida; como se percebe e percebe que é
visto pelos membros dos grupos que freqüenta. O que mudou na sua vida
familiar, social e profissional, observando como este processo se
desenvolveu. Ou seja, entender seu projeto de vida, o que é e o que quer ser.
Procurando desenvolver fundamentos que contribuam na elaboração de uma
proposta teórica sobre a questão da identidade como metamorfose,
utilizando como referencial teórico metodológico a concepção de Antonio
da Costa Ciampa que se expressa como o sintagma Identidade-
Metamorfose-Emancipação.34
Sabemos no entanto que mesmo com todo o esforço desprendido
nesta dissertação não será possível explorar todos os aspectos relacionados
à identidade da pessoa que utiliza substâncias psicoativas. Contudo,
acreditamos – utilizando aqui a linguagem artística – que conseguiremos
apresentar ao longo destas páginas algo que se pareça com um esboço.
Lembrando que os esboços não são quadros nem desenhos, pois estes
últimos são completos; integram todos os seus componentes e projetam-nos
para além da obra. Já os esboços são sempre incompletos, contornos
34 Ciampa propõe a ampliação da concepção identidade-metamorfose, para o sintagma: identidade-
metamorfose-emancipação no Encontro Nacional da ABRAPSO – 1999.
22
parcialmente visíveis de conteúdo indeterminado. Não ditam para o artista
como este deve empregar os contrastes de tons, cores e sombras de uma
pintura. Estão abertos para serem utilizados de diferentes maneiras, a serem
redesenhados ou abandonados.
Mas isso não significa que um esboço não conte com uma lógica
interna; um esboço bem feito oferece entendimentos construtivos sobre os
problemas internos de uma tarefa artística e também quais condições são
necessárias para resolver seus propósitos. Assim, contraditóriamente, essa
indeterminação do esboço dá ao trabalho futuro uma determinação; lhe
confere um sentido de direção. Da mesma forma, a história de Lou-Lou nos
oferece elementos para pensar como um esboço pode ser a expressão de
um quadro futuro, e, como mesmo existindo em um mundo da vida
colonizado pela lógica sistêmica, as condições não estão abertas a um
sentido a priori de determinação, deixando nosso futuro em permanente
construção.
A dissertação divide-se em cinco capítulos, procurando englobar os
principais aspectos envolvidos no uso de drogas. O capítulo I aborda o
fenômeno das drogas, procurando apresentar um histórico referente ao uso
de substâncias que alteram a consciência e, como essas mudanças,
influenciadas pelas questões econômicas, trouxeram os primeiros
diagnóstico e o estigma do ‘drogado’, situando como essa problemática se
desenvolveu no Brasil. Busca-se discutir a evolução do tratamento e sua
relação com orgãos da saúde, judiciário e igreja, assim como os ‘atuais’
modelos de tratamento, apresentando a Redução de Danos e a atual Política
Pública brasileira em relação ao tratamento de drogas.
23
O capítulo II apresenta o Espaço Fernando Ramos da Silva, seu
histórico desde a fundação em 1996 e as metamorfoses ocorridas na
instituição até os dias de hoje, seu modo de funcionamento e as oficinas
terapêuticas alí desenvolvidas.
No capítulo III, falaremos sobre o uso das oficinas em saúde mental
desde sua criação após a reforma de Pinel, com a Laborterapia, do declínio
desta e da ascenção da oficina artística, em que é discutida sua
caracterização e possibilidades terapêuticas.
O capítulo IV apresenta nosso referencial teórico metodológico de
análise, que com bases no Materialismo Histórico e na Psicologia Social
Crítica, traz as contribuições de Antonio C. Ciampa, George H. Mead e
Jürgen Habermas.
O capítulo V faz a apresentação de Lou-Lou, uma personagem real,
embora de nome fictício, que por meio da sua História de Vida, trará
conteúdos dos quais faremos análise, correlacionando todas as questões
apresentadas nos capítulos anteriores e discutindo a possibilidade de
entender a identidade a partir do sintagma Identidade-Metamorfose-
Emancipação.
Após este capítulo faremos nossas considerações finais que,
utilizando o que foi pesquisado, discutirá as possibilidades de prevenção e
intervenção na questão do uso de drogas na modernidade e algumas
implicações para a teoria da identidade.
CAPÍTULO I
MAS QUE DROGA É ESSA? BREVE HISTÓRICO SOBRE O USO
DE DROGAS
I
Na origem, (...) qualquer instituição é sempre uma solução
para um problema humano. À medida que se consolida, que
se institucionaliza, deve garantir sua própria
autoconservação. É o interesse de sua “razão”. Se,
historicamente, esse interesse não convergir com o interesse
da razão humana, torna-se, para a humanidade, irracional.
A. C. Ciampa
1.1 – AS METAMORFOSES DO PHÁRMAKON35
Fazendo uma revisão da história da humanidade, pode-se observar
que a droga se fez presente na vida cotidiana, desde as primeiras notícias de
sua existência. O homem sempre teve uma relação muito próxima com a
natureza, principalmente com as plantas que beneficiam nosso corpo, mente
e espírito.
Na Ilíada, Morfeu confere um sono agradável aos guerreiros ao tocá-los
com o caule e a cápsula de uma papoula. Alexandre, o Grande, no século
IV a.C., levou o ópio ao conhecimento dos povos do noroeste do
continente indiano.36
35 Recorremos à palavra grega Phármakon por acreditar que esta represente melhor nosso olhar
sobre as substâncias psicoativas. Phármakon é qualquer substância com que se altera a natureza de
um corpo, droga salutar ou prejudicial, pode ser tanto remédio quanto veneno. Cf. José P.
MACHADO, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, V.III. 36 Alain LABROUSSE, As drogas e os conflitos, Drogas: a hegemonia do cinismo. p. 47.
26
“A história da humanidade nos ensina que o uso de drogas é apenas
um modo de vida”37; encontramos a presença de substâncias psicoativas em
toda história do ser humano, em vários contextos: social, religioso,
medicinal e até mesmo econômico; logo, sua utilização é um fenômeno que
não se limita à época atual e ao contexto sócio-cultural em que vivemos.
Tanto nas civilizações antigas quanto nas indígenas contemporâneas
as plantas psicoativas como a papoula, a maconha, a coca, a cana-de-açucar
eram/são bastante utilizados e estavam/estão ligados a rituais religiosos,
culturais, sociais, estratégicos militares, entre outros.
O chá de ópio (antecessor da heroína e da morfina) foi a bebida
símbolo nacional da China, como o café é hoje para o Brasil. O álcool nas
civilizações grega e romana era utilizado como valor alimentício e também
nas festividades, fato que ocorre até a atualidade. A folha de coca é
mastigada há séculos pelos índios da América do Sul, fazendo parte da
cultura desses povos e com grande valor terapêutico para os estados de
fadiga e cansaço.
Assim, nos primórdios da história da humanidade encontramos um
uso de drogas ligado ao contexto religioso, no qual a substância era
utilizada para atingir estados psíquicos considerados superiores, em que o
xamã, monge, sacerdote, entre outros representantes da espiritualidade
tribal, acreditavam perceber a divindade e, inclusive, atingir um estado de
alma de comunhão com ela.
37 Alfredo TOSCANO JR. & Sérgio D. SEIBEL, Dependência de drogas, p. 01.
27
Toscano Jr e Seibel apontam que na Idade Média, por exemplo,
inicia-se a proibição do uso de substâncias psicoativas. Uma proibição
baseada na crença da aceitação do sofrimento como provação divina e a
transformação da droga em um produto imoral e do pecado. Da mesma
maneira:
A cafeína foi considerada intoxicante e seu uso condenado por
muçulmanos árabes. Apesar desta resistência, o uso do café difundiu-se
amplamente entre as nações árabes; passando a ser cultivado e usado
como bebida nacional. Com o café, ocorreu na Europa a mesma
resistência que com o tabaco. Em algumas áreas houve repressão contra
seu uso e foram lançados inúmeros avisos médicos sobre seus efeitos
maléficos.38
A partir do século XVIII deixa de parecer evidente que a dor
agradasse a Deus (devido ao enfraquecimento da igreja e à ascensão do
Estado) e o uso de drogas, médico e lúdico recobra sua legitimidade.
“O poder negativo do soberano, o direito de imprimir morte, é suplantado
por outro, dotado de positividade, quando o Estado governamentalizado
se dispõe a proporcionar bem-estar à coletividade. Do poder de causar a
morte, passa-se para o poder de permitir a vida. O indivíduo, percebido
pelo Estado até o século XVII como um ‘corpo-máquina’ que deveria ser
disciplinado para trabalhar sem contestar, surge aos olhos do poder
governamental do século XVIII como parte de um ‘corpo-espécie’, parte
de uma população com especificidades a serem esquadrinhadas.”39
38 Manuel M. REZENDE, Uso, abuso e dependência de drogas: delimitações sociais e científicas,
Psicologia & Sociedade, 12 (1/2), p. 146. 39 Alfredo TOSCANO JR. & Sérgio D. SEIBEL, Dependência de drogas, p. 24.
28
É importante observar que o uso de drogas esteve muitas vezes ligado
(como é evidente nos dias de hoje) a interesses sócio-econômicos.
Naquela época, as drogas tinham livre circulação e eram fundamentais
para a expansão e a consolidação do capitalismo no Oriente. Sua
liberação era positiva para o Estado e o colonialismo. No século
seguinte, a coisa mudou de figura. As drogas passaram a ser proibidas,
gerenciadas, controladas pelos países por meio de legislação de saúde
pública, imigração, polícia, segurança nacional, continental e
internacional. O proibicionismo passou a ser positivo para o Estado
intervencionista.40
Um exemplo disso é a chamada “Guerra do Ópio”, que ocorre após a
substância ter se tornado a principal mercadoria de exportação das potências
européias para o povo chinês.
Com a crise econômica da China, a produção doméstica do ópio
passa a abastecer 85% do mercado interno a ponto de dominar o comércio
do ópio em toda a Ásia; O parlamento britânico resolve, então, considerar o
tráfico de ópio moralmente injustificável, fato que acabou resultando nas
duas guerras entre esses países e, na proibição do uso de ópio pelo governo
chinês, que perdendo a guerra é obrigado a pagar pesadas indenizações aos
britânicos.
A política antiópio foi, na verdade, parte fundamental da estratégia de
atuação norte-americana na Ásia: na ocupação das Filipinas, após a
guerra hispano-americana (1898), os interventores estadunidenses
40 Edson PASSETTI, A arte de lidar com as drogas e o Estado, Política e drogas nas Américas, p.
10.
29
consolidaram a posse do arquipélago em grande medida através do
esforço para acabar com o comércio de ópio estabelecido pelo anterior
monopólio colonial espanhol. A falta de interesse econômico dos Estados
Unidos no comércio do ópio facilitava a defesa oficial de combate ao
tráfico, fato que, ademais, ia ao encontro do ímpeto proibicionista dos
grupos de temperança e das sociedades de supressão do vício em geral.41
O interesse econômico e político fez com que os conceitos sobre as
drogas sofressem metamorfoses ao longo do tempo, enquanto em um
primeiro momento as substâncias psicoativas tinham uma livre circulação e
eram fundamentais para a consolidação do capitalismo no Ocidente, a
liberação era positiva para o Estado. No século seguinte, essas substâncias
passam a ser proibidas, controladas pelo Estado, por meio das legislações
de saúde pública e justiça. “Aquele consumo que era mais localizado em
certos grupos culturais, em certas minorias, em certas faixas da sociedade,
passa a ser ditado não mais pela lógica dessas tradições ou pela lógica
desses grupos, mas pela lógica de mercado, do capital.”42
Na Europa do século XIX, observou-se um elevado uso do ópio sob a
forma medicinal. Portanto, as drogas que a princípio se apresentavam na
forma de produto advindo da natureza, são levadas para laboratórios e
passam por transformações, surgindo outras drogas artificialmente
produzidas, as drogas sintéticas.
41 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 47. 42 Gilberto VELHO, Drogas, Níveis de Realidade e Diversidade Cultural, Drogas: a hegemonia do
cinismo, p. 67.
30
No final da década de 1920, a produção e administração das drogas
sintéticas é legitimada pelo FDA43, que emite relatórios favoráveis à ação
dessas substâncias.
A ênfase no caráter milagroso das substâncias sintéticas, que tratavam
depressões e ‘hábitos nocivos com drogas ilegais’, eram o cerne das
campanhas publicitárias. A metadona, por exemplo, foi anunciada, no
fim da década de 1930, como a droga mais indicada para o tratamento de
opiômanos (principalmente ‘heroinômanos’); contudo, pouco tempo
depois, percebeu-se que ela não eliminava a dependência impunemente:
uma nova adição era induzida aos habituados à heroina. Era a troca de
um opiáceo com fórmula e modo de produção de ‘domínio público’ por
outro sintético e patenteado. A excitação das anfetaminas, muitas vezes
superior à cocaína, interessou aos órgãos de defesa norte-americanos e
europeus, que procuravam drogas que despertassem coragem e
disposição nos soldados.44
Na década de 1960, temos um novo período de consumo, desta vez
associada a um novo contexto (experimentação com sentido existencial e de
contestação ética, estética e política), criando um ambiente favorável para
exploração dos valores conservadores. Foram realizadas “Reuniões de
milhares de hippies em concertos de rock ou em protestos contra a Guerra
do Vietnã, mais a existência de grupos defensores das drogas psicodélicas,
como Eternal Love Brotherhood, foram assimiladas pela opinião pública
através de um filtro midiático-estatal que apresentava tais manifestações
43 FDA – Food and Drug Administration, a principal estância reguladora de drogas dos Estados
Unidos, fundada em 1909. 44 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 64-65.
31
como contestações perigosas à ordem social.”45 Esses movimentos sociais
começaram a ameaçar a ordem estabelecida, fazendo com que os
significados atribuídos a essas drogas fossem novamente questionados. O
Estado volta sua atenção para o ‘potencial revolucionário’ que essas
substâncias traziam para os indivíduos, principalmente os associados ao
crescimento individual e questionamento social. “O perigo, portanto, residia
na transformação pessoal, e na conturbação real que a contestação pontual
poderia representar. A ameaça coletiva, cristalizada em grupos
guerrilheiros-psicodélicos, como a Eternal Love Broterhood ou os
Wethearmen, era irrelevante enquanto afronta à segurança nacional, mas
poderosa como instrumento de (des)informação.”46
Estes ‘fragmentos’ referentes história do uso de drogas mostra que ao
discutir o uso de substâncias psicoativas se deve considerar três aspectos: o
indivíduo (com suas características de personalidade e história de vida), a
própria substância (com seus efeitos farmacológicos) e o contexto sócio-
cultural onde esse encontro se realiza. Pois como vimos, certas convenções
sociais, jurídicas e também interesses econômicos passaram a distinguir
entre drogas lícitas e ilícitas.
Uma divisão que levou em conta prioritariamente questões políticas e
morais, lembrando que do ponto de vista da saúde essa distinção não
procede, pois tanto as drogas lícitas quanto as ilícitas podem causar
prejuízos para a saúde e dependência.
45 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 80. 46 Ibid., p. 80.
32
Berger & Luckman vão dizer que as instituições surgem para tipificar
os indivíduos e que, “pelo simples fato de existirem, controlam a conduta
humana estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a
canalizam em uma direção por oposição às muitas outras direções que
seriam teoricamente possíveis"47, transformando todo aquele que sair da
‘norma’ no marginal.
A proibição às drogas adiciona ao elenco de anormais, herdado do século
XIX, a figura do ‘viciado’. Ele, contudo, não é identificado pelo poder
como alvo independente; antes, o usuário de drogas proibidas é
enxergado pelos corpos sãos da sociedade justamente entre os
insuportáveis anômalos de sempre. Imigrantes e minorias vêem seus
hábitos de intoxicação potencializarem-se em ‘grandes afrontas à
sociedade sadia.48
Isso vai ocorrer devido a necessidade da manutenção do universo
simbólico que, tentando legitimar a definição oficial de realidade,
desenvolverá formas de controle dos desviantes; utilizando seus guardiães
que invariavelmente empregam procedimentos repressivos. Ciampa
comentando sobre esse fenômeno coloca:
Os seus guardiães empregam normalmente certos procedimentos repressivos, já
que o desafio desses grupos heréticos não é apenas uma ameaça teórica, mas
também uma ameaça prática para a ordem institucional legitimada pelo
universo teórico em questão. Como essa repressão precisa ser legitimada, vários
47 Peter L. BERGER & Thomas LUCKMANN, Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a
orientação do homem moderno, p. 80. 48 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 35.
33
mecanismos conceituais são acionados para preservação do universo oficial, o
qual nessa nova legitimação também é modificado.49
Com isso, a partir do século XIX, a regulação do uso de drogas
psicoativas se encaixa no quadro maior representado pelo agir estratégico
que o Estado desenvolve, da excessiva intervenção saneadora da sociedade,
que priorizava o controle do regime urbanístico, os espaços de trabalho, os
hábitos de higiene e os costumes sociais referentes aos cuidados de si.
TRANSFORMAÇÕES DO CONCEITO “DEPENDÊNCIA DE
DROGAS”
Segundo Toscano Jr e Seibel, “o conceito de adição como doença ou
transtorno só veio a se desenvolver ao longo dos últimos 200 anos, num
contexto de mudança gradativa dos construtos da medicina clínica, da
psiquiatria e da saúde pública”50, porém, essas mudanças seguiram o
caminho da lógica instrumental. Desde 1950, a Organização Mundial de
Saúde – OMS havia sugerido uma definição da Toxicomania, que implicava
nos seguintes termos: 1) desejo ou necessidade incontrolável de continuar
consumindo a droga ou de buscá-la por todos os meios; 2) tendência a
aumentar as doses (tolerância); 3) dependência psíquica e, geralmente,
física em relação aos efeitos da droga; 4) efeitos nocivos ao indivíduo e à
sociedade.
Com o decorrer dos anos, os peritos da OMS perceberam que estas
diferentes definições não se aplicavam a todas as drogas e, em 1963, as
49 Antonio da C. CIAMPA, Identidade Social e suas relações com a ideologia, p. 31. 50 Alfredo TOSCANO JR & Sérgio D. SEIBEL, Dependência de drogas, p.19.
34
categorias de adição e hábito foram substituídas pelas ainda mais genéricas
dependências física e psicológica.
Isso contudo, não possibilitou que o conhecimento se libertasse do
interesse, esse fato fica mais claro na medida em que não existia uma
distinção farmacológica que sustentasse o proibicionismo; de que ‘não
tinham sido toxicólogos, químicos ou sequer médicos que haviam posto em
marcha a legislação proibicionista da OMS51(através de Comitê); e que as
drogas legalizadas foram àquelas produzidas nos países desenvolvidos.
O Comitê da OMS teve o papel de formular de um repertório
terapêutico que guiasse as medidas legais internacionais da ONU, na
criação de material ‘cientifico’ que associasse o uso de drogas à doença
física e psicológica.
Ainda, segundo os autores, é fácil constatar o caráter vago de tal
definição, que traduz bem a incapacidade dos peritos da OMS em
determinar as razões, não necessariamente médicas, que levam as
sociedades a colocar certos produtos sob controle. O termo
farmacodependência, definido pela OMS em 1969, veio, então, com a
pretensão de ser mais preciso: Estado psíquico e, algumas vezes, também
físico, resultante da interação entre um organismo vivo e um medicamento,
caracterizando-se por modificações do comportamento e outras reações, que
incluem tomar o medicamento de maneira contínua ou periódica, com o fim
de reencontrar seus efeitos psíquicos e, algumas vezes, evitar o mal-estar
ocasionado pela abstinência. Este estado pode acompanhar-se, ou não, de
51 Organização Mundial da Saúde.
35
tolerância. Um mesmo indivíduo pode ser dependente de vários
medicamentos.
Podemos ver claramente a contradição resultante da cultura de
especialistas que, ao possibilitar um maior cuidado à determinada ‘doença’,
impede os indivíduos de assumirem um auto-cuidado responsável sobre a
própria vida, ou seja, “a transposição, sem mediação, do saber especializado
para as esferas privadas e públicas do cotidiano pode, por um lado, pôr a
autonomia e o sentido próprio dos sistemas de saber em perigo e, por outro
lado, ferir a integridade dos contextos do mundo da vida.”52
O campo de conhecimento referente a ortopedia social, da correção
da saúde corporal e moral transfere-se do edifício do direito para o
conhecimento clínico. A chamada medicina social começa a ditar os
parâmetros de normalidade, criando a linha tênue que separa o indivíduo
saudável, do doente, do que é correto e o que é desviante.
Uma vez estabelecidas as normas, o Estado, garantia da saúde social,
identifica os indivíduos insubmissos aos ditames normalizadores e põe
em movimento, através dos dispositivos de segurança, a estratégia da
prevenção geral, ou seja, perseguição, eliminação ou confinamento do
inimigo social interno, que vem a ser os pobres, os criminosos, os
desviados e os anormais; numa palavra, os instabilizadores da ordem..53
52 Jürgen HABERMAS, Discurso filosófico da Modernidade, p. 312. 53 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 25. (grifos do autor)
36
Em 1974, o comitê de especialistas da OMS em dependência de
drogas, acrescenta à definição de farmacodependência a conceituação de
dependência física e psíquica.
A dependência física é caracterizada pela adaptação do organismo à
droga e se manifesta por alterações físicas quando o uso desta é
interrompido. Assim, a retirada da droga ocasiona síndrome de
abstinência, um quadro de sinais e sintomas que podem ser aliviados com
a administração da droga. Já a dependência psíquica decorre da sensação
de prazer e bem-estar ou da necessidade de evitar o mal-estar provocado
pela falta da droga, requerendo, assim, o uso periódico ou contínuo.54
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Perturbações Mentais – DSM-
IV55 estabelece critérios para o diagnóstico de dependência de substâncias,
abuso de substâncias, intoxicação por substância e abstinência por
substância. O diagnóstico de dependência de substâncias baseia-se na
presença de, no mínimo, três dos seguintes critérios: 1) a substância é
tomada em quantidades maiores ou por mais tempo do que a pessoa
pretendia; 2) desejo persistente, uma ou mais tentativas fracassadas de
cessar ou controlar o uso da substância; 3) muito tempo gasto em atividades
necessárias para obter a substância, usá-la ou recuperar-se dos efeitos
desta; 4) intoxicações freqüentes ou sintomas de abstinência, competindo
com as obrigações da pessoa, também quando o uso da substância é
fisicamente perigoso; 5) atividades sociais, ocupacionais ou recreativas
importantes são deixadas de lado ou diminuídas, devido ao uso da
substância; 6) uso contínuo da substância, apesar do reconhecimento de 54 Manuel M. REZENDE, Uso, abuso e dependência de drogas: delimitações sociais e científicas,
Psicologia & Sociedade, 12 (1/2), p. 144-155.
37
haver problemas ocupacionais, sociais, psicológicos ou físicos, de maneira
persistente ou recorrente, causados ou exacerbados pela substância; 7) clara
tolerância; 8) sintomas característicos de abstinência; 9) uso da substância
para aliviar ou evitar sintomas de abstinência.
Entre os transtornos causados por substância, o DSM-IV relaciona
desde aqueles ligados ao abuso de uma droga, inclusive o álcool, até os
efeitos colaterais de um medicamento, bem como a exposição à toxinas. As
substâncias que fazem parte desta classificação são agrupadas em 11
classes: Álcool; Anfetaminas ou Simpaticomiméticos de ação similar;
Cafeína; Canabinóides; Cocaína; Alucinógenos; Inalantes; Nicotina;
Opióides; Fenciclidina (PCP) ou arilciclohexilaminas de ação similar;
Sedativos (hipnóticos ou ansiolíticos).
Rezende comenta que o DSM-IV considera como característica
essencial da dependência, a presença de um conjunto de sintomas
cognitivos, comportamentais e fisiológicos indicando que o indivíduo
continua utilizando uma substância, apesar de problemas significativos
relacionados a ela, considerando que:
(...) se para os farmacologistas, as drogas psicoativas podem ser
categorizadas de acordo com seu potencial farmacológico (leves e
pesadas), do ponto de vista psicológico, podemos estabelecer como
critério classificatório de dependência o significado e a intensidade da
relação do indivíduo com a droga. Deve-se considerar, principalmente, a
55 DSM-IV: Manual diagnóstico e estatístico de perturbações mentais.
38
vivência psicológica que o usuário configura diante da falta da ação
psicofarmacológica da droga.56
Uma publicação da United Nations Educational, Scientific and
Cultural Organization – UNESCO57, distingue quatro tipos de usuários de
drogas: 1)Usuário Experimentador: limita-se a experimentar uma ou várias
drogas, por diversos motivos, como por exemplo, curiosidade ou desejo de
ter novas experiências. Na grande maioria dos casos, o contato com a droga
não passa das primeiras experiências; 2)Usuário Ocasional: utiliza um ou
vários produtos de vez em quando, se o ambiente for favorável e a droga
disponível. Não há dependência nem ruptura das relações afetivas,
profissionais e sociais; 3)Usuário Habitual: faz uso freqüente de drogas.
Em suas relações já se observam sinais de rupturas. Mesmo assim, ainda
“funciona” socialmente, embora de forma precária e correndo riscos de
dependência; 4)Usuário Dependente (Toxicômano): vive pela droga e para
a droga quase que exclusivamente. Como conseqüências, rompem-se os
seus vínculos sociais, o que provoca isolamento e marginalização,
acompanhados eventualmente de decadência física e moral.
Como já foi visto anteriormente, as mudanças referentes ao
fenômeno das drogas são acompanhadas de uma produção acentuada dessas
substâncias, desde o aperfeiçoamento da indústria farmacêutica, cujo
consumo, venda e produção contavam, até então, com pouco ou nenhum
controle por parte do Estado. Entretanto, Rodrigues vai dizer que as
questões referentes ao uso de drogas:
56 Manuel M. REZENDE, Uso, abuso e dependência de drogas: delimitações sociais e científicas,
Psicologia & Sociedade, 12 (1/2): 144-155, p. 154. 57 Ibid., p. 154.
39
(...) foram rapidamente incorporadas ao campo do direito, primeiro com
a formalização da mediação médica entre indivíduos e drogas, em
seguida, com banimento do uso de produtos amplamente desejados. Na
América, os Estados Unidos tomam a dianteira na perseguição do uso
hedonista de drogas psicoativas, construindo arcabouços legais que
vedavam o livre acesso a substâncias, como a cocaína e o ópio, e
incentivando a elaboração de regras do direito internacional público que
produzissem um consenso global quanto à proibição das drogas. Nos
países latino-americanos, dinâmicas locais conduziram a ritmo próprio
medidas proibitivas e incriminadoras do uso inúmeras substâncias.58
Surgindo então, o proibicionismo latino americano gerado pelo
modelo burocrático e administrativo do Estado que começa a ganhar corpo
nas primeiras décadas do século XX, “não mais aquele liberal, que
preconiza mínima ou nenhuma intervenção estatal na sociedade e nos
assuntos econômicos, mas o que passa a perseguir com constância uma
formula de atuação mais presente e reguladora”59, expande para os países
da América-Latina, promovendo o modelo burocrático-sanitário.
O USO DE DROGAS NO BRASIL
Em 1890 os Estados Unidos desenvolve sua própria dinâmica
regulatória, instaurando mecanismos normatizadores. O Brasil, neste
momento, reflete a semelhança dessa natureza normativa, do cotidiano
econômico e social, ancorada nas leis sanitárias escritas nesse período. A
preocupação com as substâncias psicoativas se materializava em lei,
58 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 33. 59 Ibid., p. 93.
40
fazendo com que seja instituída a polícia sanitária. Assim, o “Regulamento
Imperial de 1851, que instituía a polícia sanitária e disciplinava a venda de
remédios. Não há referência explícita à proibição da fabricação ou do
consumo de drogas, mas sim recomendações legais que encontram
ressonância nas antigas Ordenações Filipinas.”60
A economia brasileira, impulsionada pela produção de um
estimulante (cafeína), criava no Sudeste, principalmente em São Paulo, um
pólo de desenvolvimento dinâmico e cosmopólita.
Neste ambiente, não tardou a chegada do hábitos sofisticados europeus,
tanto na moda quanto no comportamento social. A inauguração do Teatro
Municipal de São Paulo, em 1911, é o marco desse espírito progressista
que tomava conta das elites cafeicultoras brasileiras naquele momento.
Os costumes chics, que são consumidos com avidez pelos ricos oligarcas,
envolvem o uso de substancias alteradoras do comportamento, os
chamados ‘venenos elegantes’. No principio da década de 1910, o uso
desses venenos, principalmente éter, lança-perfumes, ópio e cocaína, era
restrito a alguns círculos de intelectuais, médicos, dentistas,
farmacêuticos (que lidavam diretamente com tais substâncias) e
prostitutas, sem maiores impactos sociais.61
Um ambiente criado pela disciplina capitalista que priorizava a
maximização da capacidade produtiva e da força de trabalho, buscando o
enfraquecimento da capacidade política dos trabalhadores, que tinham suas
movimentações vistas como “caso de polícia” pelo Estado.
60 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 126-127. 61 Ibid., p. 128.
41
Nas primeiras décadas do século XX, há o gradativo processo de
institucionalização do saber médico, que se dá pela promulgação dos
códigos sanitários, através dos quais o Estado torna-se receptáculo
legítimo do saber médico cientifico e, portanto, único ente autorizado a
regulamentar a venda de drogas e as políticas de saúde públicas. Institui a
vacinação obrigatória contra a varíola, em 1904, exemplo de prática
governamental inédita sobre a população, geradora da revolta da vacina,
que pode ser interpretada como a resistência difusa do saber local (das
práticas de auto higiene e medicina popular) à imposição sanitadora do
governo. O Estado impunha sua visão de saúde pública e individual
contra as práticas locais em nome da salubridade geral da nação.62
Até o final da primeira Guerra Mundial a utilização de drogas
controladas no Brasil se restringia aos prostíbulos finos e às fumeries
sofisticadas, sendo acessíveis apenas à burguesia. Essa restrição pode nos
levar a pensar que tendencialmente o consumo dessas substâncias tenderiam
a redução, contudo, veremos que isso não aconteceu.
A venda livre de drogas psicoativas é proibida, mas o acesso pelo
receituário médico se transforma em via fácil para obtenção das drogas
desejadas. O tráfico propriamente dito fica restrito a profissionais da área
da saúde, que falsificavam receitas ou desviavam medicamentos sob sua
responsabilidade. Não há, portanto, fabricação clandestina de drogas; da
morfina à cocaína, as substâncias têm origem nos grandes laboratórios
farmacêuticos europeus e norte-americanos. Essas indústrias inundam o
mercado legal e ilegal das substâncias psicoativas, valorizando o valor de
troca em detrimento do valor de uso: na prática, o desejo que demandava
tais drogas dinamizava de tal maneira o setor farmacêutico que as
grandes empresas pouco se preocupavam com a questão do uso não
médico. Na realidade, investiam na pesquisa e no lançamento de novos 62 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 129.
42
produtos, panacéias indicadas para a conquista de vitalidade, energia e
felicidade.63
Com o término da primeira Guerra Mundial, em 1918, surgem
campanhas lançadas pelos jornais, destacando o uso de droga não mais
como mero acessório exótico em casos policiais, mas como indutores de
condutas psicopatológicas, passando a tratar os usuários de substâncias
psicoativas como degenerados morais e sociopatas potenciais.
Atualmente para a Organização Mundial da Saúde – OMS droga é
qualquer substância natural ou sintética que, administrada por qualquer via
no organismo, atua no cérebro, modificando seu funcionamento e alterando
as sensações, o grau de consciência ou o estado emocional.
1.2 – AS METAMORFOSES DO “TRATAMENTO”
Da mesma forma que a história do uso de drogas é acompanhada de
mudanças quanto ao seu sentido e significado, as questões referentes as
formas de “tratamento” do uso, abuso e dependência, também sofreram e
sofrem mudanças significativas até os dias de hoje. A própria separação
entre ‘drogado’ e ‘louco’ nos tratamentos é algo recente, surgindo apenas na
segunda metade do século XX.
Ao discutirmos as metamorfoses do tratamento do uso de drogas,
cabe justificar para o leitor de que não se trata de apresentar aqui uma
‘evolução’ linear das formas de cuidado, mas sim uma reflexão à respeito
da tensão existente entre as formas de tratamento ‘tradicionais’ e atuais;
assim como esses métodos são utilizados nos dias de hoje. Esse cuidado 63 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 130.
43
torna-se necessário devido ao fato que a “modernidade já não pode
emprestar seus padrões de orientação de modelos de outras épocas. Ela
encontra-se completamente abandonada a si mesma, tem de extrair de si
mesma sua normatividade.”64
Sendo assim, devemos tomar cuidado para não cair em ‘enganos’ que
geralmente nos levam a descreditar o que foi feito no passado e
reforçar/aprovar o que estamos fazendo na atualidade.
Recorrendo a literatura veremos em Foucault, que “antes do século
XVIII, a loucura não era sistematicamente internada; era essencialmente
considerada como uma forma do erro ou da ilusão”65, sendo que se entendia
como terapêutica para esses fenômenos o contato com o real, os “lugares
terapêuticos reconhecidos eram, em primeiro lugar, a natureza, já que era a
forma visível de verdade; tinha em si mesma o poder de dissipar o erro, de
fazer desaparecer as quimeras”66, as prescrições médicas restringiam-se ao
encaminhamento para passeios, viagens, retiros etc.
Também veremos que a partir da sociedade governamentalizada, que
emerge na passagem do século XVIII para o XIX, (e que desloca o
manancial dos repertórios articulados em discursos de verdade no campo do
direito, da lei e da regra, para o repertório da ciência médica), a loucura,
assim como toda forma de ‘desvio’ passa a ser entendida como processo
mórbido.
64 Jürgen HABERMAS, A Nova Intransparência: A crise do Estado de Bem-Estar Social e o
esgotamento das Energias Utópicas, Novos Estudos CEBRAP, 18, p. 103. 65 Michael FOUCAULT, Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982), p. 47. 66 Ibid., p. 47.
44
Circunstâncias que determinaram a emergência do ‘doentio’ e do
estigmatizado a condição de problema social, justificando as proposições de
criações de instituições para controlá-los e eventualmente ‘tratá-los’, esse
movimento foram semelhantes na Europa do século XVI e no Brasil do
século XIX. A partir de então, a prática do exame médico que identifica os
‘doentes’ e ‘sadios’ preceita tratamentos saneadores e passa a ser utilizada
pelo poder governamental como modelo a orientar as novas estratégias de
controle da população.
Transposto para a política da gestão dos corpos, o procedimento médico-
científico irrompe como poderoso vocabulário que se legitima na
racionalidade de suas técnicas. Além disso, os métodos de catalogação
das doenças, de ordenação do espaço, de combate às epidemias, de
pesquisa em busca de novas curas e de higienização da vida interessam
diretamente ao Estado como instrumentos para o governo dos homens. O
edifício jurídico da soberania não é destruído , tampouco abandonado; de
fato, ele é ocupado por um novo jogo de formulação de verdades
centrado na norma, baseado no modelo médico de afirmação do saudável
e do doentio.67
Dessa forma, a operacionalidade do acordo entre médicos e Estado se
processava na medida que a repressão ao uso não médico de substâncias
fosse gradativamente endurecida. Com relação ao uso de drogas; os
médicos passam a ter o monopólio para lidar com as substâncias
controladas e o Estado conquista dois espaços de intervenção social: um
sobre o mercado legal; outro sobre o mercado ilegal.
67 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 26.
45
Sobre o mercado legal, uma vez que a norma regula as substâncias
permitidas e a própria atividade médica em si; outro sobre o mercado
ilegal, que era instaurado pela lei. A proibição da venda livre inaugurava
um campo de ilegalidade extremamente fértil para a atuação estatal, já
que o consumo lúdico, que deveria ser perseguido, permanecia como
prática cotidiana.68
O campo jurídico, importante aliado nesse período, “proporcionava
ao Estado a capacidade ampliada de governamentalização do
comportamento individual, fornecendo instrumentos jurídicos para a
vigilância do mercado legalizado pela lei (o de uso médico) e o ilegalizado
por ela (o de uso lúdico).”69 Legitimando diagnósticos e formas de lidar
com os usuários de drogas.
Em 14 de julho de 1921, é promulgada pelo Congresso Nacional, a
Lei Federal n. 4.294, que apresentava grande mudança no que diz respeito a
burocratização da repressão e ao controle de drogas.
A lei investe na solução carcerária para o condenado por tráfico de
entorpecentes, diferenciando substâncias tóxicas comuns das drogas
psicoativas. (...) A inconsistência classificatória não consegue abalar o
princípio legitimador da nova lei, uma vez que o verdadeiro critério
aglutinador era a capacidade que essas drogas têm de modificar a
percepção da realidade. A punição requer, somente, que um termo com
revestimento técnico-científico abarque toda a gama de substâncias
controladas, ostentando todo o poder classificatório que têm os saberes
sanitário e jurídico estatais.70
68 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 131. 69 Ibid., p. 131. 70 Ibid., p. 136.
46
Neste momento a criminalização do vendedor ilegal não se reproduz
sobre o consumidor. A lei de 1921 considera o usuário vítima de seu
próprio vício.
O ato de se envenenar não é, portanto, considerado crime pela legislação
de 1921, mas tipifica um comportamento e uma situação (a de
‘envenenado’ ou ‘viciado’) que sobrecarrega o acusado de estigmas
sociais e o cataloga no âmbito do saber estatístico policial. O hospital,
local para a recuperação, é onde se registram estatisticamente os desvios
comportamentais perigosos à ordem social.71
Rodrigues comenta que, “o decreto-lei de 1921 condensa os juízos
morais sociais contra as drogas, transpondo o nível dessa condenação do
âmbito religioso para o universo técnico-ético e de segurança pública e
sanitária chancelado pelo Estado”72. Em 1932, surgem algumas alterações
do decreto-lei de 1921; embora alterasse muito pouco a lei de 1921, trazia
mudanças com relação ao tratamento do usuário. “Ficavam previstas penas
para quem instigasse o uso de qualquer uma das drogas controladas, bem
como era imposta a obrigatoriedade de notificação dos casos de
dependência para que os toxicômanos fossem tratados, em internações
determinadas pelo juiz responsável pelo processo73.”74
71 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 136-137. 72 Ibid., p. 137. 73 Surge pela primeira vez no texto jurídico a convocação do cidadão, pelo Estado, a notificar
qualquer caso de “toxicomania” a que venha a ter conhecimento. É, de fato, a instituição da delação
compulsória, já que o chamado estatal coloca a omissão à notificação como atentado ao bem da
saúde pública, condenável não a norma penal, mas eticamente (Capitulo IV, arts. 44 a 50). 74 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 138.
47
O Decreto-Lei n. 891, imposto pelo Poder Executivo em 25 de
novembro de 1938, traz novas modificações referentes ao consumo ilegal,
este em si não é mais criminalizado, porém a posse ou uso passa a ser
punido indiretamente já que o decreto de 1938:
(...) reserva seu terceiro capítulo especificamente às medidas de
internação e interdição civil da ‘toxicômanos’. Tanto a intoxicação
habitual quanto a efêmera de drogas controladas são classificadas como
‘toxicomania’, doenças físicas, psíquicas e sociais que devem ser
compulsóriamente notificadas (‘doença de notificação compulsória’ – art.
n. 27) às autoridades sanitárias e policiais. Os toxicômanos, sem exceção,
devem ser encaminhados para tratamento quando o corpo médico-
pericial do Ministério Público assim julgar conveniente.75
A lei de 1938 estava em perfeita adequação aos tratados
internacionais assinados pelo Brasil, principalmente a Convenção do ópio
(1932) e a Convenção sobre o tráfico ilícito (1936), ambas ocorridas em
Genebra, com o patrocínio da Liga das Nações. “Após essa lei, uma
sequência de outras modificará temas específicos do texto, mas nos seus
termos gerais ela vigora até as reformas da década de 1970, que conformam
o atual estatuto jurídico brasileiro sobre o tema.”76 Em 1971 ocorrem mais
mudanças na lei, surgindo o fim do nivelamento penal entre o dependente e
o traficante, regredindo no que se refere a questão da dosemetria penal
instituída em 1938. Rodrigues vai dizer que:
As novidades surgiram já no Capítulo II, que tratava da ‘recuperação de
infratores e viciados’. O termo ‘toxicômano’ é substituído por ‘viciado’,
75 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 144. 76 Ibid., p. 148-149.
48
que qualifica os ‘dependentes físicos e psíquicos’ em substâncias
entorpecentes. Esses ‘viciados’ podem ser condenados a crimes
praticados sob efeito de drogas, se o juiz, baseado em laudo pericial,
considerar o réu incapaz de discernir sobre a ilicitude de seu ato (art. n.
10). Se o acusado for considerado ‘semidependente’, sua pena pode ser
diminuída ou substituída por interação, até a recuperação total (categoria
do ‘condenado semi-imputável’, art. n. 11). Consolida-se a visão
epidemiológica sobre a questão das drogas, punindo o criminoso ‘viciado
não com a pena tradicional do encarceramento comum, mas com o
tratamento de desintoxicação compulsório. Continua valendo a lógica da
recuperação ou reabilitação do desviado, do marginal, mas as drogas
apresentam ao direito penal a oportunidade de se criar uma nova
categoria, a do ‘infrator doente’, cujo crime foi motivado ou incentivado
pelo seu vício; portanto, para que sua reinserção à sociedade seja
possível, ele deve ser curado do mal físico, psíquico e social que o
aflige.77
Em 21 de dezembro de 1976, é instituída a chamada Lei de Tóxicos
(Lei n. 6.368, Decreto n. 78.992), que “reunia num único documento todas
as disposições pertinentes à repressão ao tráfico e à prevenção ao uso de
drogas, estipulando com independência as sanções penais para os crimes
previstos”78, trazendo novas disposições sobre a repressão ao uso e ao
tráfico de drogas, novos termos da relação usuário, traficante, dependente.
Investindo também na manutenção de palestras e aulas inclusas no currículo
escolar, buscando convencer os alunos da periculosidade do uso das drogas
proibidas.
77 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 152. 78 Ibid., p. 156
49
A lei passa a determinar que os Estados criem clínicas e
ambulatórios, para dar contenção aos usuários de drogas, assim como
pediam que contratassem pessoal especializado no tratamento desses.
Existindo aqui a primeira diferenciação no tratamento daqueles
considerados ‘alienados’ e os ‘toxicômanos’.
Os dependentes não são considerados doentes mentais comuns, passíveis
de internação em manicômios judiciários, mas doentes de classe especial,
vítimas do mal moral, físico, psíquico e social representado pelas drogas.
O uso continua sem ser diretamente incriminado, só o sendo quando o
indivíduo é flagrado portando qualquer quantidade de droga controlada.
O uso não pode ser diretamente punido, porque tal medida criaria um
crime sem corpo de delito, ou seja, sem vítima. Moralmente o usuário é
considerado vítima de seu próprio hábito, ou, ainda mais abstratamente,
vítima das drogas; contudo, tal grau de abstração não poder tipificar um
crime em si. Daí o uso ser condenado indiretamente pela impossibilidade
de se consumir sem comprar, receber ou conservar consigo uma droga
controlada (todos estes atos com sanções previstas).79
Aqui mais uma vez vemos o Estado voltando sua atenção para o
gerenciamento dos corpos, a distinção entre aquilo que é público e aquilo
que é privado passa a ser indiferenciável, “no que se refere às drogas, o
indivíduo não detém a posse sobre seu próprio organismo,
independentemente se o seu hábito é praticado em solidão, sem afetar outro
cidadão ou a coletividade. Como, para lei, a demanda aciona parte da rede
ilegal de produção e tráfico, o consumo, ainda que solitário, ameaça a paz
coletiva.”80
79 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 158. 80 Ibid., p. 158-159.
50
O controle sobre os indivíduos que quisessem utilizar qualquer
substância tida como ilícita estava legitimado, fazendo uso dos verbos
“guardar”, “adquirir” e “trazer” consigo, a lei de 1976 continuava a
incriminar seus acusados.
Desta forma, a lei de 1976 consagra a existência de cinco sujeitos
envolvidos em prática ilegais relacionadas às drogas: a) o criminoso,
traficante ilegal ou aquele que pratica qualquer uma das ações previstas
no artigo. 12 da lei (reclusão pelo sistema carcerário); b) o doente,
indivíduo considerado pelo saber jurídico-sanitário como dependente
físico ou psíquico e, por isso, passível de tratamento (reclusão pelo
sistema médico-assistencialista); c) o profissional da saúde que receita
exageradamente ou trafica, rompendo o pacto médico-estatal (reclusão
carcerária e perda do registro profissional); d) o criminoso considerado
semi-imputável ou inimputável por ter praticado a infração sob efeito de
drogas (combinação das sanções carcerária e hospitalar); e) o
experimentador, indivíduo que não é criminoso nem dependente, mas
cujo comportamento é uma afronta, segundo a lei, para ele próprio e para
a sociedade (articula a sanção moral e cadastramento estatístico-
policial).81
Nas décadas de 1960 e 1970, o uso da internação daqueles que
ameaçavam a ordem social vigente passa a se tornar um negócio rentável.
Esse período será conhecido como o da ‘Industria da Loucura”, Resende,
explica que:
81 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 160. (grifo nosso)
51
A mudança política operada com a proposta liberal do governo militar, a
política de ampliação de números de leitos com o estabelecimento de
convênios entre hospitais especializados privados e o novo Sistema de
Saúde (INPS), e a introdução de novas tecnologias medicamentosas
(neurolépticos) foram alguns dos pilares sobre os quais, nessas décadas, a
psiquiatria se assentou, caracterizando-se por uma ação em massa.
Investindo no trabalho enquanto foco das políticas sociais, o setor
psiquiátrico recebeu do governo novos investimentos, sobretudo para a
contratação de leitos privados que duplicaram no quinquênio de 1965-70,
passando de 35 mil para noventa mil o número de internações no setor
privado.82
Considerando o aumento abusivo de internos e o interesse elevado no
lucro das internações por parte do setor privado; veremos que essa
estratégia já nasce falida, pois na medida em que o Estado pagava pela
quantidade de internos nos hospitais tornava vantajoso o prolongamento da
internação dos indivíduos e o diagnóstico desviante; já que os ‘desvios’
passam a ser uma mercadoria.
Desse modo, podemos dizer que traçar uma linha direta entre um
determinado regime político e a repressão às drogas não pode ser afirmada,
no entanto, podemos entender que a repressão às substâncias psicoativas vai
ser maior na medida que a repressão social for aumentada.
OS MODELOS DE TRATAMENTO DA ATUALIDADE
Enquanto que nas sociedades pré-capitalistas, aptidão e inaptidão
para o trabalho não era um critério importante na determinação do que era
82 Heitor RESENDE, Política de Saúde Mental no Brasil: uma visão histórica, Cidadania e Loucura:
políticas de saúde mental no Brasil, p. 60-62.
52
‘normal’ e ‘patológico’, mais tarde, com o crescimento do capitalismo, isso
passa a ser um determinante para o diagnóstico. Impulsionando o
surgimento de diversas instituições que se proporão à tratar o ‘drogado’ e
‘reintegrá-lo’ na sociedade. Essas instituições podem ser divididas,
atualmente, de acordo com sua abordagem de tratamento do usuário de
drogas, em cinco grandes eixos que serão melhor detalhados
posteriormente: 1) Tratamento não medicamentoso – com internação (este
muitas vezes feito em comunidades terapêuticas), tendo como princípio que
o indivíduo não consegue ficar nenhum minuto sem a droga e que é
necessário que este fique em regime de internato; 2) Tratamento não
medicamentoso – Sem internação, Grupos de ajuda mutua (A.A, N.A, entre
outros), psicanálise, cognitiva comportamental, alternativas, cura por meio
da fé; neste eixo, excluindo a psicanálise, todas as ofertas de tratamento são
baseadas na abstinência total, uma abstinência que muitas das vezes é
exigida como uma condição para a entrada no tratamento, constituindo por
si só uma contradição, pois se o sujeito consegue manter-se abstinente não
precisaria entrar em tratamento; 3) Tratamento medicamentoso – Com
internação em Hospital Psiquiátrico, Geral ou clínicas especializadas, um
tratamento com supervisão do médico e sujeito a alta concedida por este; 4)
Tratamento ambulatorial – sem internação, tendo como projeto inicial, a
busca da autonomia do indivíduo, levando em consideração que o mesmo
deve recuperar-se inserido em sua realidade; 5) Programa de Redução de
Danos – sem internação, tendo como objetivo a redução dos danos
causados pelo uso abusivo ou dependente de drogas (injetáveis ou não) e da
contaminação pelo HIV/AIDS e pelas doenças sexualmente transmissíveis –
DST’s; assim como, o reconhecimento da cidadania do usuário. Entretanto,
veremos a seguir que o reconhecimento da necessidade de tratamento do
53
uso abusivo e dependente de drogas não significou uma mudança
significativa no olhar sobre o problema.
A idéia de que as drogas eram um problema psico-sócio-patológico
legitima a intervenção terapêutica, sem, contudo, desautorizar a punitiva.
Dessa maneira, os Estados signatários encontram suporte para definir que
‘uso indevido’ ou ‘abuso’ era aquele uso não acompanhado/autorizado
pelo Estado; já ‘efeitos nocivos’ eram aquelas conseqüências do uso de
‘drogas perigosas’ que o governo ( com seus ‘órgãos competentes’)
especificava como tais. Drogas subversivas, como as visionárias, foram
classificadas dentre as mais perigosas, apesar de serem, dentre as
listadas, as que apresentavam menos perigo à saúde dos usuários. A
proibição de substâncias menos tóxicas, sob pretexto de não
apresentarem utilidade médica, deixou evidente que a situação de
proibição é que definia a natureza farmacológica de um determinado
composto, e não o contrário.83
Dos modelos não medicamentosos o ‘Alcoólicos Anônimos’ (AA), é
um dos mais antigos (desde 1935) e mais reconhecidos no mundo. Baseia-
se na participação dos usuários em grupos de auto-ajuda, que através do
compartilhamento das experiências de situações de uso abusivo de álcool e
de suas conseqüências sociais, familiares, laborais etc, perseguem a
abstinência como única meta possível, pautando-se na seqüência de seus
“12 passos”, no qual o tratamento moral (exposição das falhas e da culpa do
alcoolista), é a base de trabalho. Utiliza uma racionalidade moralista e
religiosa (a crença em um “poder superior”, independente do credo),
mesclada com uma racionalidade pretensamente científica da psiquiatria (a
concepção do alcoolismo com uma doença crônica e recorrente). Investem
83 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 83. (grifos do autor).
54
na certeza da incurabilidade e, portanto, seus membros têm de ser
considerados “usuários em recuperação”, posto a impossibilidade do ex-
usuário.
Da mesma forma, o ‘Amor Exigente’ segue o modelo dos grupos de
auto-ajuda, mas tem variações significativas em relação ao do AA. É uma
proposta de educação destinada a pais e orientadores, como forma de
prevenir e solucionar problemas com os jovens usuários de álcool e outras
drogas, entre outros problemas sociais. Sua atuação é voltada para as
famílias e não exatamente para os pacientes, aproximando-se aqui da
perspectiva sistêmica (que será apresentado a seguir). Traz como conceito
central a necessidade de um "Amor Responsável, que orienta e educa,
desvinculado da obtenção de vantagens e conveniências. Um amor que quer
e luta pelo bem-estar e felicidade do outro "para o outro" em primeiro
lugar!”.
Seus princípios também baseados nos 12 passos, levam em conta as
relações sociais, culturais das famílias e comunidades, como aspectos
constituintes dos comportamentos inadequados aos padrões da sociedade.
Seu horizonte de racionalidade é mitológico ou moralista, sendo que em seu
primeiro princípio é afirmado que “a integridade moral e ética são
imutáveis. O respeito, a compreensão e o Amor devem nortear nosso
relacionamento com o mundo”. Dessa forma, pregam uma moral menos
individualista (do que vemos no AA, por exemplo, de culpabilização do
usuário) e mais coletiva, baseada nos relacionamentos mútuos e na filosofia
do amor como intuição fundamental, mas ainda assim centrada na
perspectiva mítica e moralizadora.
55
A ‘Abordagem Sistêmica’ compreende que a problemática do uso
abusivo de drogas é indicativo de questões que se relacionam com o
funcionamento do sistema familiar na qual o usuário convive. Utilizam a
noção de “co-dependência”, realizando inclusive internamentos definidos
como domiciliares, em que o usuário em situação de um padrão de uso
nocivo, com riscos para a sua saúde, para seu trabalho e seus
relacionamentos, fica em casa, sob supervisão da família, que também é
trabalhada nesse momento, sendo que inclusive a própria casa passa por um
processo de desintoxicação de substâncias e hábitos nocivos, sob supervisão
da equipe técnica interdisciplinar. A mudança representativa nessa
perspectiva é não culpabilização do usuário e passando a intervir no sistema
social primário na qual ele está inserido.
Já o modelo ‘Médico-Psiquiátrico’ foi constituído por influência da
psiquiatria e neurologia, a partir do início do século XIX. Poderíamos
inferir que, juntamente com as concepções do AA, formam a hegemonia do
tratamento das dependências de álcool e outras drogas. A racionalidade
deste modelo é pautada em estudos e pesquisas científicas, postula a
dependência como um transtorno crônico e recorrente, com uma base
biológica e genética84. O objetivo do tratamento é também a abstinência
total, pois concebem o fenômeno da dependência como incurável, sendo a
internação um dos procedimentos técnicos preponderantes.85 No modelo
84 WHO. Neurociências: consumo e dependência de substâncias psicoativas. Relatório obtido no
site www.who.int em 05/04/2004, WHO Library Cataloguing-in-Publication Data. 85 Como visto anteriormente, do início do século XX até meados da década de 80 este foi o
dispositivo prioritariamente recomendado para o tratamento de qualquer situação de abuso ou
dependência de álcool e drogas. Com o questionamento da perspectiva hospitalocentrica, a partir dos
anos 1980 e 90, ocorrida pelo avanço da ciência psiquiátrica e psicológica, sendo a internação
56
médico são utilizadas como técnicas auxiliares as psicoterapias, tanto
individuais, quanto familiares e grupais, moldadas por diferentes
abordagens. Sendo a abordagem cognitivo-comportamental a tendência
teórico-metodológica mais preponderante nos tratamentos médico-
psiquiátricos, propondo a modificação de comportamentos por meio da
mudança no sistema de crenças e pensamentos automáticos dos pacientes.
A partir da abordagem cognitivo-comportamental também se utiliza a
técnica de prevenção à recaída. Essa técnica baseia-se nos seguintes
pressupostos: a recaída é parte do processo de recuperação;
comportamentos de adição são hábitos aprendidos que podem ser
analisados e modificados; no contato com certos ambientes e com certas
substâncias há ativação das crenças e dos pensamentos relacionados
especificamente à droga, constituindo-se situações de risco. O objetivo é
evitar a ocorrências de lapsos, seja no começo ou na manutenção do
tratamento, provocados por estas situações e que possam levar o paciente à
recaída. Dessa forma, deve-se ensinar o indivíduo a mudar seu estilo de
vida, adquirindo novos hábitos e comportamentos mais saudáveis, evitando
tais condições de risco e, assim, prevenindo a recaída nas drogas.86
O ‘Modelo Psicossocial’ mantém alguns pressupostos dos modelos
anteriores (a noção de doença recorrente e incurável, por exemplo), mas
concebe a dependência de álcool e outras drogas como um problema de
recomendada somente em casos de maior risco físico, social ou familiar e a perspectiva do tratamento
em ambulatórios, mais próximos da realidade cotidiana do usuário, passa a ser valorizada e
incentivada. 86 G. Allan MARLATT& J. GORDON, Prevenção de Recaída: estratégias de manutenção no
tratamento de comportamentos adictivos.
57
saúde mental coletiva, com ênfase nas determinantes sócio-psicológicas do
fenômeno da drogadição.
Enquanto que as Comunidades Terapêuticas surgem da experiência
de Maxwell Jones, na Inglaterra em 1959. Uma proposta baseada na
integração dos pacientes em sistemas grupais, em que seus problemas
poderiam ser compartilhados e debatidos socialmente, facilitando com isso
sua recuperação (ressocialização). As críticas a esse modelo “referem-se ao
seu afastamento do plano de realidade sobre o qual vive a sociedade, já que
cria condições ideais dentro de um espaço da instituição que não podem ser
reproduzidos fora dos seus muros.”87
As Comunidades Terapêuticas seguem o chamado modelo
psicossocial, segundo definição da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária – ANVISA e Secretaria Nacional Anti-drogas – SENAD88, como
aquele que concebe o uso do álcool e outras drogas como comportamento
humano complexo: considerando desde aspectos psicológicos, sociais,
culturais, ambientais e até familiares. Partindo dessa concepção, a
informação sobre a experiência do usuário de drogas não pode ser por ele
recebida passivamente, mas tem de estar relacionada com a sua mudança de
atitudes, de valores, de estilo de vida.
87 Paulo AMARANTE, Revisando os Paradigmas do saber psiquiátrico: tecendo o percurso do
movimento da reforma psiquiátrica, Loucos pela vida: A trajetória da Reforma Psiquiátrica no
Brasil, p. 32. 88 ANVISA & SENAD, Exigências Mínimas para o funcionamento de serviços de atenção a
pessoas com transtorno decorrentes do uso e abuso de substâncias psicoativas. (ANVISA – Agencia
Nacional de Vigilância Sanitária, SENAD – Secretaria Nacional Anti-Drogas)
58
Geralmente as Comunidades Terapêuticas são localizadas em
fazendas, ou em alguma residência urbana que possa abrigar um conjunto
de pessoas, mas com isolamento do convívio social cotidiano. As
comunidades terapêuticas se caracterizam pela internação, por um período
pré-estabelecido, de um grupo de usuários de álcool e/ou drogas, tendo no
aprendizado da vida comunitária e na ‘laborterapia’ (terapia pelo trabalho)
um dos seus principais métodos de intervenção.
A solução apresentada por esse método parece simples: ‘remoção’
dos elementos perturbadores da ordem social, em um primeiro momento; e
sua re-educação para o trabalho, pelo trabalho em um segundo momento, ou
seja, o tratamento da alienação pelo trabalho alienado.
Com relação às ‘Fazendas de Recuperação’, falta uma bibliografia à
respeito, com isso nossa discussão terá que ser feita por meio de materiais
de divulgação, que segundo os mesmos, funcionam desta maneira: regime
de espiritualidade e trabalho, disciplina, um período mínimo de 60 dias de
internação (trabalho baseado no modelo Pineliano), Grupos de ajuda mutua,
disciplina severa e paternal, religião, o medo e o trabalho, a família como
fator de mudança. A metodologia utilizada geralmente é a do Amor
Exigente, 12 passos ou ensinamentos bíblicos, tem como segunda fase do
tratamento um plano de 9 meses a seguir (simbolizando a gestação de uma
nova vida). Os indivíduos na instituição são vistos como membros, não
como pacientes.
59
De Leon89 vai nos alertar que nem toda Fazenda de Recuperação
pode ser considerada uma Comunidade Terapêutica, pois muitas não
seguem a concepção e o método por elas previstos. A própria Agência
Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA90, aponta que a “admissão de
pessoas não deve impor condições de crenças religiosas ou ideológicas”,
nem tampouco permitir a prática “de castigos físicos, psíquicos ou morais”.
Em alguns casos, nas fazendas de recuperação parece haver um
descumprimento dessas normas.
A proposta da Redução de Danos surge em 1926, na Inglaterra, em
um relatório médico que propunha o uso de opióides como a melhor forma
de tratamento de outras drogas91, a partir do final dos anos 1980 a Redução
de Danos passou a ser muito utilizada como forma de prevenir a expansão
da epidemia de HIV/Aids, principalmente entre os usuários de drogas
injetáveis, que têm no compartilhamento de agulhas e seringas um alto risco
de contaminação pelo vírus.
O Programa de Redução de Danos seguindo um modelo teórico mais
geral caracterizado como sócio-cultural, contradiz totalmente a concepção
da drogadição como doença crônica (típica do modelo médico), bem como
a concepção moralista e religiosa (típica do AA e das Comunidades
Terapêuticas). Opondo-se, também, à política repressiva, centrada no lema
da “guerra às drogas”, típica do Estado, bem como a chamada “pedagogia
89 George DE LEON, Comunidades Terapêuticas: teoria, modelo e método. 90 Cf. ANVISA & SENAD, Exigências Mínimas para o funcionamento de serviços de atenção a
pessoas com transtorno decorrentes do uso e abuso de substâncias psicoativas. 91 SENAD, Formação de Multiplicadores de Informações Preventivas sobre Drogas.
60
do terror”, que é referendada pela maioria das Comunidades Terapêuticas,
alguns ambulatórios, hospitais e grupos de ajuda-mútua.
Uma das suas estratégias mais utilizadas foi a proposta de “troca de
seringas”, oferecida por alguns serviços públicos de saúde e Organizações
Não Governamentais (ONGs), para que os usuários evitassem o
compartilhamento. A ênfase central é intervir com ações que minimizem os
riscos ou danos envolvidos no uso das substâncias psicoativas, tanto no que
se refere às suas formas de uso (injetável, cachimbo do crack etc), como no
padrão de uso nocivo, visando a prevenção de danos crônicos e a promoção
da saúde.
Considera, assim, o usuário responsável pela modificação de seu
comportamento, podendo contribuir na implementação de programas de
redução de danos junto a seus pares. Esse modelo não defende a abstinência
como meta, mas sim a minimização dos danos em situação de uso de
drogas, até mesmo por que compreende que sempre existiu o uso de
substâncias ativas na sociedade humana, o que certamente continuará a
ocorrer, como demonstram as questões em torno das drogas lícitas.
A redução de danos ainda encontra grandes dificuldades de aceitação
social, seja porque a distribuição de seringas ou a idéia de diminuição
gradual do uso de substâncias ainda é inaceitável por grande parte dos
indivíduos – afinal, como aceitar que um indivíduo que era visto como
‘anormal’ e incurável possa controlar o objeto que o controlava? – , seja por
que se tem uma crença que a distribuição de seringas incentive o consumo
de drogas injetáveis por parte daqueles que ainda não utilizam esse tipo de
drogas – como se os indivíduos de uma hora para outra fossem pegar uma
61
seringa e injetar cocaína nos braços, pelo simples fato de ter acesso a
seringas. É possível que na medida em que esse programa for implantado
observemos um aumento no número de usuários de drogas injetáveis nas
estatísticas – afinal o indivíduo que compartilhava seringas nos ‘mocós’ ou
embaixo de pontes, utilizando água do esgoto ou empoçadas, passará a
utilizar os serviços de saúde – mas é interessante apontar que isso não
significa que serão novos usuários.
Um olhar crítico sobre os modelos apresentados pode apontar uma
similaridade, ou ainda, uma proximidade entre as propostas de ‘tratamento’,
fundamentos, ideologia e visão de mundo, que tem o indivíduo como
incapaz de escolha e de mudanças, na dependência do outro, neste caso (um
técnico ou religioso). Com Foucault aprendemos que a “história do
‘cuidado’ e das ‘técnicas’ de si seria, portanto, uma maneira de fazer a
história da subjetividade; porém, não mais através da separação entre loucos
e não loucos, doentes e não doentes, delinqüentes e não delinqüentes, não
mais através da constituição de campos de objetividade científica, dando
lugar ao sujeito que vive, que fala e que trabalha.”92
Desse modo, esses tratamentos com o objetivo de domesticar o
indivíduo, reeducando-o moral e religiosamente, fortalecidos pelo controle
heterônomo da instituição ou do grupo, foram e ainda são, muito utilizados.
Contudo, atentemos a colocação de Passetti que lembra:
(...) o uso de drogas leva também a movimentos libertadores,
agenciamentos inevitáveis que ultrapassam o campo das resistências. São
movimentos que inventam formas de vida, expressam suas artes,
comportamentos, deslocamentos, instabilidades e suas preciosas éticas
92 Michael FOUCAULT, Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982), p. 111.
62
anunciadoras do inominável, o que é impossível conter. Por mais que as
forças repressivas militares, policiais, religiosas ou salutares procurem
aprisioná-los ou exterminá-los, os movimentos de libertação atuam de
maneira salutífera a cada existência, abalando não só a autoridade
central, mas também a que inventa novas políticas administrativas
descentralizadoras. Estes movimentos afirmam a impossibilidade da
domesticação, do controle definitivo.93
Atualmente, o Ministério da Saúde, diante da diversidade de
tratamentos ao uso de drogas, reconhece que estas práticas têm trazido
muito mais problemas para os indivíduos do que possibilidades de
autonomia – após anos de luta por parte dos usuários de drogas,
principalmente dos militantes do movimento de Redução de Danos –, e
propõe em 2004 a Política de Atenção Integral a Usuários de Álcool e
outras Drogas94.
O projeto apresentado propõe resgatar o compromisso ético nas
práticas de saúde; atualmente o Ministério da Saúde diz ‘assumir’ como
compromisso em sua política de atenção integral a usuários de álcool e
outras drogas, colocando-se na condição de acolhedora, tendo em vista que
cada paciente traz consigo sua história de vida, expressando uma maneira
singular, mas também a expressão da história de muitas vidas, de um
coletivo. Claro que não podemos esquecer que apenas a mudança de uma
política não resolve o problema, na medida em que não é garantia de
mudança intersubjetiva. “Não podemos nos afastar deste intrincado ponto
93 Edson PASSETTI, A arte de lidar com as drogas e o Estado, Política e drogas nas Américas, p.
08. 94 Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, BRASIL, A Política do Ministério da Saúde
para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas.
63
onde as vidas, em seu processo de expansão, muitas vezes sucumbem ao
aprisionamento, perdem-se de seu movimento de abertura e precisam, para
desviar do rumo muitas vezes visto como inexorável no uso de drogas, de
novos agenciamentos e outras construções.”95
A política de redução de danos preconizada pelo Ministério da Saúde,
compreende a droga como um problema social e o usuário de drogas como
um cidadão que tem direito de usar o que lhe convier, mas que deve se
conscientizar de sua situação de risco e as implicações para sua rede de
relações. Além disso, deve envolver-se em ações sociais que digam respeito
à sua vida, surge uma questão no ar:
Se esta conquista de Cidadania para o usuário de drogas existe,
(pensando que os modelos anteriores sofreram duras críticas, inclusive dos
órgãos reguladores – ANVISA, MS e OMS), por que será então, mesmo
após dois séculos da primeira reforma proposta por Pinel, esses
procedimentos continuam sendo valorizados? Rodrigues contribuindo com
nossa colocação, ensina que:
A governabilidade instrumentaliza o proibicionismo praticado nas
associações religiosas e de temperança, e incorpora a guerra às drogas
como uma estratégia política de controle social. As leis não suscitam
interesse por elas mesmas, mas sim como condensações do
proibicionismo, não mais aquele praticado de modo difuso na sociedade,
mas o institucionalizado estrategicamente pelo Estado. A condenação
moral fornece a legitimidade necessária para que o Estado se aproprie da
95 Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, BRASIL, A Política do Ministério da Saúde
para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, p. 10
64
função repressora a um problema que, todavia, não se extingue com esse
esforço da perseguição.96
Neste contexto o Estado se envolve e é envolvido, pois não existe
crime organizado sem a participação do Estado. Polícia, na ponta;
Judiciário, na retaguarda, e tantos outros sistemas institucionais a participar
ativamente da corrupção e da criminalidade.
A criminalização do desejo, da demanda inesgotável por substâncias que
alterem a percepção, é fundamental para que a engrenagem do controle
social se movimente. Colocados sob o manto da ilegalidade, a parcela da
população que consome fica passível de punição, assim com a parte que
provê as substâncias desejadas. Deste modo, ficam a mercê da
capacidade governamental de rastrear, perseguir, punir, classificar e
encarcerar um grande número de pessoas envolvidas com todo o leque de
drogas proibidas. As técnicas disciplinares empregadas para a
manutenção da Proibição capturam parcela considerável da população,
submetendo-as a diversos feixes de poder coercitivo. Essas técnicas as
manifestam na medicalização da relação entre médicos e indivíduos
(construção do monopólio médico chancelado pelo Estado sobre as
drogas legais) e na criminalização de um grande número de drogas
amplamente utilizadas, fato que aciona o aparato jurídico-penal-
carcerário, que incide sobre os setores estigmatizados, pobres e
marginalizados da população.97
Essa questão faz com pensemos a sobre legalização ou não das
drogas ilícitas, assim como, nos faz pensar sobre nossa posição. Basta dizer
que acreditamos que o problema não se encontra na legalização ou não das
96 Thiago RODRIGUES, Política e drogas nas Américas, p. 163. 97 Ibid., p. 163.
65
drogas, pois se esse problema for resolvido apenas de forma estratégica
somente será legitimado qual mercado lucrará mais; o ilícito que continuará
a explorar a mão de obra de crianças, transformando pais de família em
bandidos e financiando o poder paralelo, ou ainda, o lícito que passará a
contar com um arsenal ainda maior de substâncias, que ao utilizar
estratégias de marketing sofrerão um aumento considerável de consumo,
fortalecendo ainda mais a indústria das substâncias psicoativas
(laboratórios, indústria de bebidas e cigarros).
Dessa maneira, os usuários perderiam dos dois lados, na medida em
que ao manter determinadas drogas como substâncias ilícitas, aprisiona-se
indivíduos aos estigmas sociais – a personagem do marginal, do
irrecuperável, do dependente –, impedindo que estes tenham uma real
inclusão social; ao passo que ao transformar as substâncias ilegais em lícitas
provavelmente teríamos um aumento do consumo dos indivíduos que
estariam sujeitos a indústria da drogas, que como vimos, ao mesmo tempo
em que informa os malefícios do uso abusivo de determinada droga,
incentiva seu consumo abusivo utilizando-se da indústria cultural.
Poderíamos pensar também que a associação da droga com a
marginalidade/imoralidade seriam um dos motivos do estigma do uso de
drogas, mas não só o estigma, sobretudo o desvio de atenção social gerando
um falso problema: as drogas, quando o seu consumo abusivo está ligado às
condições precárias da existência e estas acionam as disposições culturais e
existenciais para o consumo.
Assim, vemos que problema surge “quando uma cultura
politicamente dominante da maioria impõe sua forma de vida às minorias e
assim nega uma efetiva igualdade de direitos a cidadãos de outra origem
66
cultural. Isso diz respeito a questões políticas que atingem a auto-
compreensão ética e a identidade dos cidadãos”98, ou seja, quando o
interesse da razão é invertida em uma razão interesseira e suas ações/idéias
servem apenas para justificar a desigualdade, não considerando as
contradições sociais e o fato de que a realidade é construção, descontrução e
reconstrução constantes. “No nível individual esse processo chama-se
racionalização; no nível da ação coletiva, denomina-se ideologia.”99
Até mesmo a pretensa ‘cura’ do indivíduo institucionalizado, é
passível da crítica, ao passo que de um lado “a pessoa deve obter maior
liberdade de escolha e autonomia, na medida de sua individuação; de outro
lado, essa ampliação dos graus de liberdade cai sob uma descrição
determinista: a própria emancipação em relação à coerção estereotipada de
expectativas de comportamento institucionalizadas é descrita como uma
nova expectativa normativa – como instituição.”100
Tendo apresentado alguns dos principais aspectos relativos ao
fenômeno das drogas, falaremos do Espaço Fernando Ramos da Silva,
instituição pioneira no ABC paulista no que se refere à atenção diferenciada
os usuários de substâncias psicoativas e na utilização de oficinas como
recurso terapêutico.
98 Jürgen HABERMAS, Inclusão: integrar ou incorporar?, Novos Estudos CEBRAP, 52, p. 111. 99 IDEM, Conhecimento e interesse, Coleção os Pensadores – História das grandes idéias do
mundo ocidental, p. 298. 100 IDEM, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 183.
CAPÍTULO II
O ESPAÇO FERNANDO RAMOS DA SILVA
II
Nosso teatro precisa estimular a avidez da inteligência
e instruir o povo no prazer de mudar a realidade.
Nossas platéias precisam não apenas saber que
Prometeu foi libertado, mas também precisam
familiarizar-se com o prazer de libertá-lo. Nosso
público precisa aprender a sentir no teatro toda a
satisfação e a alegria experimentadas pelo inventor e
pelo descobridor, todo triunfo vivido pelo libertador.
Bertolt Brecht
2.1 – O ESPAÇO FERNANDO RAMOS DA SILVA
A Região do ABC Paulista é constituída por sete cidades: Santo
André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Mauá, Ribeirão Pires,
Rio Grande da Serra e Diadema. De acordo com os dados apresentados pelo
Censo 2000/IBGE, Diadema conta com um total de 357.064 habitantes,
sendo 175.109 de homens (49%) e 181.955 (51%) de mulheres, 11,6 mil
habitantes por km², sendo a segunda maior densidade demográfica do
Brasil. 35% dos habitantes vivem com até 2 salários mínimos, sendo que
14% da população vive em situação de total miserabilidade, sem nenhum
rendimento. O município também conta com um índice de violência dos
mais altos do país, tendo como principal causa de mortalidade as causas
externas (assassinatos, acidentes de transito e outras).
Tradicionalmente Diadema é uma cidade na qual a esquerda política
brasileira tem vencido as eleições nos últimos 15 anos; O Partido dos
Trabalhadores – PT, administrou a cidade por 3 mandatos, tendo perdido a
69
eleição de 1996 para o Partido Socialista Brasileiro – PSB e vencido
novamente em 2001 e 2004.
É nessa realidade que o trabalho de Lima, se desenvolve. Em sua
dissertação de Mestrado intitulada: Espaço Fernando Ramos da Silva; um
projeto de tratamento e prevenção à dependência de drogas em Diadema,
desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Dr. José Leon Crochik e Prof. Dr. Odair Sass, busca
descrever e analisar a criação e o desenvolvimento de uma instituição de
atendimento a dependentes de drogas em Diadema, interesse que surge após
“um estudo realizado pela Secretaria de Saúde de Diadema – SP, nos meses
de abril e maio de 1996, sobre os atendimentos psiquiátricos do Pronto-
Socorro Central”101
O Espaço Fernando Ramos da Silva foi inaugurado dia 25 de outubro
de 1996, nascendo à partir do modelo de multidisciplinaridade do PROAD
– Programa de Atendimento e Orientação a Dependentes de Drogas da
Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP e de um histórico da
produção e consumo de arte de Diadema. O Espaço Fernando Ramos da
Silva surge homenageando um artista da cidade que teve um fim trágico
como tantos adolescentes dependentes de substâncias psicoativas de
Diadema e do mundo todo. Seu brilhantismo como ator no filme “Pixote –
A lei do mais fraco”, realizado em 1980, de Hector Babenco ficou
esquecido numa fusão entre o personagem e o ator, entre a pessoa e a droga,
101 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao
uso de drogas em Diadema, p. 12.
70
uma sobreposição de papéis que o levou ao seu fim trágico na morte por
assassinato de policiais, que caçavam o Pixote e não o Fernando Ramos.
Os policiais o caçavam pelas ruas da cidade como se ele fosse o
personagem do filme. Essa confusão talvez tenha se estabelecido porque,
numa tentativa de fazer um golpe publicitário, o diretor Hector Babenco
apresentou o ator, antes de iniciar o filme, como se o mesmo fosse um
'‘menino de rua'’ mostrou a sua moradia como sendo na favela que estava
ao fundo desse cena.102
A instituição se propôs a inovar, utilizando-se do tratamento
ambulatorial e de oficinas expressivas que denominou “oficinas
terapêuticas” como forma de intervenção na dependência de drogas, com a
proposta de oferecer um “espaço” no qual os indivíduos que tenham uma
relação problemática com substâncias psicoativas possam procurar. Com o
objetivo de trabalhar com a personagem do artista e não a personagem do
marginal difundida pela cidade.
O EFRS (Espaço Fernando Ramos da Silva) surgiu, assim, como uma
intervenção no problema da dependência de drogas no município de
Diadema, trazendo a idéia de proporcionar um atendimento digno e
capaz de proporcionar uma autonomia àqueles adolescentes e adultos que
sofrem de problemas ligados ao uso lícito e ilícito de substâncias
psicoativas.103
102 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao
uso de drogas em Diadema, p. 01. 103 Ibid.,p. 12.
71
Atualmente a instituição é o ambulatório de referência para o
desenvolvimento de ações de prevenção, tratamento, projetos e pesquisa
relacionados ao uso de substâncias psicotrópicas e redução de danos no
Município de Diadema, tornando-se um CAPSad (Centro de Atenção
Psicossocial ao uso de álcool e outras drogas) em dezembro de 2002. A
instituição procura manter sua proposta inicial; “conseguir mostrar que o
problema não está no uso de drogas, mas sim na maneira como ela é usada e
que este uso reflete positivamente, uma denúncia por parte do indivíduo, de
uma maneira peculiar de a sociedade atual tratá-lo.”104
AS METAMORFOSES NO PROJETO TERAPÊUTICO DO EFRS
No projeto de inauguração o EFRS atendia prioritariamente
adolescentes que utilizavam substâncias psicoativos de modo abusivo ou
dependente. No entanto, este perfil de usuários passou por metamorfoses
radicais desde a fundação da instituição.
No projeto inicial do EFRS não constava um limite de idade, apesar de
ter sido enfatizado que o atendimento seria para adolescentes. De inicio,
em reunião de equipe, estabeleceu-se que o limite para atendimento era a
idade de 18 anos. Posteriormente, esse limite ampliou-se para 21 anos e,
mesmo com esse limite, pacientes de idade superiores estavam sendo
atendidos. Alguns sob a alegação de serem familiares de pacientes e
outros sem uma justificativa aparente. Estes ficavam sendo pacientes de
104 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao
uso de drogas em Diadema, p. 65.
72
exceção, porém o número não era tão pequeno para ser considerado
como tal.105
No ano de 1997, com a nova administração da cidade, foi aceita a
proposta de mudança do modelo de atendimento do EFRS. Em abril deste
mesmo ano o EFRS passou a atender usuários de todas as faixas etárias,
adotando também, novas diretrizes no atendimento e regulamentos, sendo
instituído função de Técnico de Referência.106
Quanto aos regulamentos, já existiam três regras contratuais, discutidas
sempre que o paciente se inseria na instituição: a) Não se podia usar nem
portar droga dentro da Instituição; b) Não se podia passar ou traficar
droga dentro da instituição e c) Não se podia agredir física ou
verbalmente outro paciente ou profissional da equipe técnica.
Obviamente, não podíamos ter regras muito rígidas, mas precisávamos
de normas que preservassem a Instituição como um lugar de tratamento e
que não a reduzissem, nos seus imaginário, a apenas mais um local de
encontro para uso de drogas.107
Os atendimentos consistem em um acolhimento inicial no Grupo de
Acolhimento e posteriormente de uma triagem individual para traçar o
plano terapêutico, que pode contar com: médico, psiquiatra, psicólogo,
assistente social, grupos psicoterapêuticos, grupo de atendimento aos
105 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao
uso de drogas em Diadema, p. 14. 106 Profissional da equipe que acompanharia mais de perto o projeto terapêutico de determinado
paciente, sendo a pessoa procurada pelo usuário do serviço caso surgisse alguma questão. Esse
profissional também ficava responsável de apresentar o caso do paciente nas reuniões semanais de
equipe quando necessário. 107 Ibid., p. 16.
73
familiares e as oficinas terapêuticas, que servem, “como facilitador da
aderência do paciente à instituição e de elemento denunciador de possíveis
conflitos sociais escondidos sob esse problema social: a dependência de
drogas.”108
As mudanças da instituição foram e continuam constantes, a
demanda atendida atualmente é em sua grande maioria composta por
adultos, como aponta os levantamentos feitos pela equipe da instituição à
partir dos prontuários dos usuários desde a fundação do EFRS em 1996 até
junho de 2002.109
Tabela 1 – Mudança referente a Faixa Etária atendida pelo EFRS.
Idade 1996-98 2001-02
10 - 19 anos 39% 17,50%
20 - 29 anos 27% 17%
30 - 49 anos 27% 48%
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura Municipal de Diadema – Espaço “Fernando Ramos da
Silva” - período de outubro/96 a junho/2002
Como mostra a tabela 1, a faixa etária atendida no EFRS mudou
desde 1997, data em que a instituição passou a atender usuários de todas as
faixas etárias, aumentando em 21% o atendimento de adultos acima de 30
anos. Embora vejamos essa mudança no perfil ainda podemos observar que
as faixas entre 10-19 anos e 30-49 anos apresentam-se como mais 108 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao
uso de drogas em Diadema, p. 67. 109 Resultados obtidos após levantamento de prontuários dos pacientes ativos na instituição.
Apresentados no I Encontro do Programa URB-AL.
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vulneráveis à dependência de drogas, mantendo a representação conjunta de
66% em 1996 e 66,5% em 2002. Observamos também um aumento dos
usuários de álcool e uma diminuição dos usuários de cocaína, como mostra
a tabela 2.
Tabela 2 – Mudança do Perfil dos usuários matriculados no EFRS drogas de uso 1996-98 2001-02
álcool 37% 60,50%
cocaína 41% 4,50%
múltiplas 8,10% 22,50%
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura Municipal de Diadema – Espaço “Fernando Ramos da
Silva” - período de outubro/96 a junho/2002
Da mesma forma, a abertura ao atendimento a todas as faixas etárias
possibilitou uma maior aderencia dos usuários de álcool, principalmente
àqueles individuos que não conseguiam se ‘re-orgnizar’ após as internações,
ou ainda, não conseguiam manter a abstinência absoluta proposta pelos
programas que seguiam os 12 passos. Com relação a mudança no perfil dos
usuários de cocaína é preciso levar em conta duas considerações. A
primeira refere-se novamente amudança de perfil de atendimento, pois
quando o EFRS foi inaugurado e atendia adolescentes, a demanda que
chegava na instituição gealmente tinha envolvimento com o uso de alguma
droga iícita – a maioria dos pais achavam aceitável que o filho chegasse em
casa algumas vezes alcoolizado, da mesma forma que achavam imperdoável
que o mesmo chegasse com a consciência alterada por alguma substância
ilegal. A segunda refere-se ao novo perfil de atendimento, que contava em
sua grande maioria de adultos desempregados, afastados pelo INSS ou
75
aposentados, que traziam em suas histórias de vida o uso de álcool de forma
‘controlada’ até determinado momento de sua vida – muitos deles tendo
feito o primeiro abuso da substância ainda na adolescencia –; existe ainda
um último fator, que refere-se ao aumento dos usuários de multiplas drogas
– entendido como uso de mais de duas substâncias, de acordo como a OMS
– , contando com usuários que em sua maioria fazem o uso concomitante de
alcool e cocaína, entre outros. É importane destacar que este número seria
maior se fosse associado o uso de tabaco ou de antidepressivos como
segunda substância, haja visto, que é anotado no prontuário apenas a droga
que o indivíduo acredita necessitar de ‘tratamento’ e que muitas vezes esse
usuário faz uso das substâncias citadas anteriormente.
Tabela 3 – Mudança de Gênero dos usuários atendidos no EFRS
Sexo 1996-98 2001-02
Masculino 86% 75,50%
Feminino 14% 24,50% Fonte: Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura Municipal de Diadema – Espaço “Fernando Ramos da
Silva” - período de outubro/96 a junho/2002
A tabela 3 mostra a mudança no perfil de Gênero dos usuários que
procuraram o EFRS de 1996 a 2002; o aumento da porcentagem de
mulheres que procuraram tratamento deve-se principalmente ao
atendimento do uso de sedativos/hipnóticos e cocaína/crack, como fica
explicitado de maneira mais clara na tabela 4 que mostra o perfil atual dos
usuários matriculados no EFRS.
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Tabela 4 – Distribuição Local de usuários de drogas por sexo e substância.
Substância Masculino Feminino Total M&F
Álcool 64,60% 46,80% 60,00%
Maconha 6,10% 5,70% 5,90%
Sedativos/hipnóticos 1,70% 13,70% 4,70%
Cocaína / crack 3,60% 7,20% 4,50%
Estimulantes (cafeína) 0,50% 0% 0,40%
Alucinógenos 0,20% 0,70% 0,40%
Tabaco 0,70% 0,70% 0,80%
Solventes voláteis 0,70% 0,70% 0,80%
Múltiplas drogas 21,90% 24,50% 22,50%
100% 100% 100% Fonte: Secretaria Municipal de Saúde / Prefeitura Municipal de Diadema – Espaço “Fernando Ramos da
Silva” - junho/2002.
Os dados levantados no EFRS apontam para a necessidade de
investimento em políticas que incentivem a criação de mais serviços
substitutivos de atendimento ao uso de drogas. Da mesma forma, sabemos
que se os dados colhidos na instituição fossem mais precisos esses
resultados seriam ainda maiores – existe uma grande dificuldade em se
preencher os prontuários por completo por parte dos técnicos da equipe –, a
discussão sobre as dificuldades de registro nas instituições públicas não são
uma novidade (que infelizmente não teremos tempo de apresentar aqui).
Entretanto, os dados colhidos no EFRS apresentam uma visão geral sobre a
realidade na qual estava inserida nossa participante da pesquisa, assim
como, possibilita uma visão geral, mesmo que limitada do problema – pois
se trata apenas de Diadema – das drogas no nosso cotidiano. A seguir
apresentaremos os grupos de acolhimento e as oficinas terapêuticas
77
desenvolvidas no EFRS, atividades que fazem parte do repertório de
atendimento ao indivíduo que utiliza substâncias psicoativas e procura
‘tratamento’ na instituição.
OS GRUPOS DE ACOLHIMENTO
Os Grupos de Acolhimento do EFRS servem como porta de entrada
para usuários que procuram tratamento das dependências químicas. Um
grupo rotativo em que a permanência do usuário depende da sua vontade
em “tratar-se”, o grupo consiste em trocas de experiências tanto dos usos,
quanto das estratégias para conseguir reduzir ou parar o consumo de
substâncias.
Ao que parece, os Grupos de Acolhimento são um instrumentos
importantíssimos na busca de individuação do dependente de drogas, visto
que em muitos casos o indivíduo – que ao tornar-se o ‘dependente de
drogas’ tem sua identidade reduzida apenas a essa personagem– deixava a
personagem do drogado/alcoólatra, mas não conseguia vivenciar/recuperar
novamente as personagens perdidas: pai, irmão, filho, marido, mulher etc.,
restando muitas vezes como única alternativa a re-posição da personagem
anterior que representava e era reconhecida (dependente/alcoolista), ou
ainda, contentar-se em representar a personagem ex-dependente.
Nos Grupos de Acolhimento, os integrantes trazem fragmentos de
suas histórias de vida, seus períodos de internação, abstinência, recaída e
superação, sendo que nestes espaços são trabalhados outros aspectos da
vida dos pacientes que não estavam relacionados diretamente com o uso de
78
substâncias, buscando ampliar as possibilidades de troca na vida pública.
Partem da perspectiva do mundo da vida que se articula, ele mesmo, no
médium da linguagem e que “abre para seus membros um horizonte de
interpretação para tudo o que eles podem experienciar no mundo, tudo
aquilo a propósito do que se podem entender e com o que podem
aprender”110, podemos tomar como hipótese que as dinâmicas familiares e
as re-posições das personagens exercidas pelos seus membros – que
prendiam essas famílias a mesmice –, podem ser questionadas e superadas
por àqueles que conseguirem re-pensar suas histórias de vida. Isso ocorreria
na medida em que alguém ao relatar a maneira que encontrou para
modificar sua relação com alguma substância, é reconhecido pelo grupo –
que não é ‘direcionado’ para ver aquele membro como alguém ‘superior’ –
como um outro possível, no sentido meadiano do termo.
AS OFICINAS TERAPÊUTICAS NO ESPAÇO FERNANDO RAMOS
DA SILVA
É importante ressaltar que o nome e o projeto das oficinas
terapêuticas não resultam da experiência do EFRS, elas surgiram do
CAPSI111 – antigo ambulatório de Saúde Mental de Diadema – como
técnica utilizada na socialização de usuários psicóticos e neuróticos graves,
que, segundo Valero, era uma “possibilidade de flexibilizar essa identidade
do louco com a loucura: todo o caminho em oficinas trilhado a partir de
então vai passar por esse balizamento. Como ator, autor, pintor, cantor, etc.
o indivíduo pode deixar a unicidade de ser louco, para a qual parecem
110 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação: ensaios filosóficos, p. 127. 111 Centro de Atenção Psicossocial Integral
79
convergir todos os aspectos de sua vida a partir do diagnóstico, ocupando
outro lugar no mundo, que, como qualquer ‘lugar artístico’, pressupõe o
reconhecimento de um público.”112 E que segundo Galetti são, em grande
parte das vezes, “os dispositivos que operam esta relação com a
exterioridade, brecha pela qual os pacientes e os terapeutas encontram
‘saídas além da clínica’.”113
Lima escreve que, “a experiência em outras instituições de
tratamento desses tipos de pacientes era conhecida, pelos técnicos do
CAPSI. Mas, dentro do EFRS estas oficinas vinham com uma nova
proposta, diferente das oficinas terapêuticas do CAPSI, ocupam o lugar
central no projeto terapêutico, pois a todo paciente que lá chega, é proposta
a participação em alguma oficina terapêutica.”114
Ocorreram dificuldades em se instaurar essas oficinas terapêuticas no
EFRS na época de sua fundação devido as mudanças políticas no município
de Diadema, “porque os contratos dos professores de arte eram e são feitos
semestralmente e, a cada renovação, não havia segurança de que os mesmos
professores mantidos.”115 Lima, ainda atribui a falta de treinamento
profissional um dos fatores da dificuldade de trabalho com os usuários do
EFRS e, nos dá como exemplo um fato acontecido com a oficina de teatro:
112 Patrícia V. VALERO, É preciso levar o delírio à praça pública: Sofrimento psíquico, artes
plásticas e inclusão social, p. 78. 113 Maria C. GALLETTI, Oficina em saúde mental: instrumento terapêutico ou intercessor
clínico?, p. 124. (grifos da autora). 114 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao
uso de drogas em Diadema, p. 58. 115 Ibid., p. 59.
80
(...) foi programada uma enquete para ser apresentada numa das festas de
aniversário do EFRS. Os alunos, o professor e o monitor empenharam-se
intensamente fazendo vários ensaios, porém no dia da apresentação
nenhum dos pacientes apareceu, deixando frustrados o monitor e o
professor. O professor negou estar frustado com o não comparecimento
dos alunos, porém esta frustração ficou evidente, pois o mesmo não
retornou mais ao EFRS.116
Goffman ensina que: “se as pessoas estão presentes na situação, mas
não são reconhecidas como participantes do encontro, o nível sonoro e o
espaço físico deverão então ser regulados de maneira a testemunhar o
respeito – e não a suspeita – por essas pessoas imediatamente
acessíveis.”117
Durante a experiência de estágio do Pesquisador no EFRS se pôde
presenciar esse tipo de acontecimento algumas vezes. Uma questão que
surge e que pode ser tomada como hipótese para o ocorrido, seria a maneira
na qual é conduzida a oficina terapêutica e sua apresentação para o público.
Isso nos leva a um questionamento: será que ao invés da enquete ter sido
uma produção do consenso resultante de um agir comunicativo, esta não
estaria sendo trabalhada sob a lógica do agir estratégico voltado para
sucesso? Levando em consideração inclusive a coincidência do final da
contratação do professor? Utilizaremos outro exemplo que talvez possa
deixar mais claro nossa colocação.
116 Sérgio A. LIMA, Espaço Fernando Ramos da Silva: Um projeto de tratamento e prevenção ao
uso de drogas em Diadema, p. 59. 117 Ervin GOFFMAN, A situação negligênciada, Os momentos e os seus homens, p. 153.
81
Em julho de 2003, por exemplo, os pacientes resolveram fazer uma
Festa Julina118 um evento discutido e elaborado pelos usuários da
instituição, com o acompanhamento do monitor e da professora de teatro.
Esta festa diferenciava-se das anteriores, ocorrendo pela primeira vez fora
dos portões da instituição.
Os pacientes trouxeram para os técnicos da instituição o interesse de
envolver a comunidade na festa; isso em um primeiro momento assustou os
técnicos do EFRS pois imaginavam que talvez os usuários não aparecessem
nas apresentações no dia do evento, todavia, após duas reuniões de equipe
foi acordado que seria possível. Contrariando as expectativas da equipe
técnica, esses pacientes participaram semanalmente das reuniões
preparativas da festa, envolveram inclusive os usuários do CAPSI,
dividindo funções na organização do evento. Sendo acordado entre os
próprios pacientes que estes não fariam uso de nenhuma substância no dia
da festa.
Por outro lado, ocorreu também um evento em que estes foram
“convidados/convocados” pela prefeitura para uma apresentação; sem
nenhuma discussão sobre o interesse dos artistas. Neste episódio no dia da
apresentação todos os participantes faltaram, sendo que os participantes da
Cia. Re-Visão justificaram na semana seguinte que não estavam preparados
para este tipo de apresentação, pois não havia sido feito um ‘convite
antecipado’ e não tinha sido passado o objetivo da apresentação para os
mesmos.
118 Nome dado pelos pacientes por ser realizada em julho.
CAPÍTULO III
A ARTE COMO RECURSO TERAPÊUTICO AO USO DE DROGAS
III
1 - OFICINA TERAPÊUTICA: QUE OFICINA É ESSA?
Uma obra de arte não está obrigada a ser entendida e
aprovada em princípio – particularmente – por quem quer
que seja. A função da arte não é de passar por portas abertas,
mas de abrir portas fechadas.
E. FISCHER
No capítulo I procuramos mostrar como ocorreram as transformações
do significado atribuído às drogas desde seu uso pela tradição, até sua
inclusão no mercado e transformação em objeto de consumo, assim como,
apresentamos a ‘evolução’ das formas de tratamento dos problemas
decorrentes do uso e abuso dessas substâncias. No Capitulo II apresentamos
o EFRS, instituição que surge do questionamento aos tradicionais métodos
de tratamento do uso de drogas, utilizando as oficinas terapêuticas como um
diferencial no ‘tratamento’. Vimos que as ‘oficinas’ passaram a exercer um
papel de destaque, tanto como terapêutica quanto promotora da reinserção
social. No entanto ainda nos restam algumas questões: afinal o que é uma
oficina terapêutica? Como distinguir uma oficina terapêutica de uma oficina
de arte? O que se pode ‘trabalhar’ nessas oficinas? Tentando responder a
essas questões, neste capítulo propomos apresentar um breve histórico do
surgimento das oficinas terapêuticas em saúde mental, mas antes,
retomemos o significado dos termos oficina e terapêutica.
84
Oriundo do Latim, o termo officina tem significações diversas:
oficina, tenda, fábrica, manufatura, forja; oficina onde se cunham moedas'.
O dicionário Houaiss, por exemplo, apresenta várias acepções para o termo.
“s.f. (sXIV cf. FichIVPM) 1 lugar onde se elabora, fabrica ou conserta
algo 1.1 lugar onde se consertam automóveis 1.2 GRÁF JOR numa
gráfica ou empresa jornalística, local onde estão instalados os
equipamentos de composição, clicheria, paginação, impressão e
acabamento 2 m.q. laboratório ('atividade') 3 m.q. workshop ('curso') �
ETIM lat. officína,ae (opificína em Plauto) 'oficina, tenda, fábrica,
manufatura; donde acp. mais precisas em linguagem técnica: galinheiro,
aviário; forja; oficina onde se cunham moedas'; ver ofici- e faz-; f.hist.
sXV ofiçinas � noção de 'oficina', usar suf. –aria.”119
Já o termo terapêutica oriundo do Grego therapeutikê tem entre suas
significações: 'arte, ciência de cuidar e tratar de doentes ou de doenças, que
se refere ao cuidado e tratamento de doenças'; aparecendo no Houaiss
como:
“s.f. (1601 cf. RecCir) MED m.q. terapia ('tratamento', 'intervenção') �
ETIM substv. do gr. therapeutikê (subentendido tékhné)'arte, ciência de
cuidar e tratar de doentes ou de doenças', fem. do adj.gr.
therapeutikós,ê,ón 'que se refere ao cuidado e tratamento de doenças'; ver
terap-; f.hist. 1601 therapeutica ”120
Se no termo ‘oficina’ encontramos expressões que apontam para um
lugar onde se fabricam ou se consertam algo, ou ainda um espaço que serve
119 Antônio HOUAISS & Mauro de S. VILLAR, Dicionário da Língua Portuguesa, p. 2052. 120 Ibid., p. 2699.
85
como laboratório; e no termo ‘terapêutica’ uma expressão que aponta para a
idéia de tratamento, de intervenção; podemos pensar que oficina terapêutica
é o lugar onde se produz um tratamento; um laboratório de intervenção.
Entretando, algumas perguntas ainda insistem: de que ‘tratamento’ e de que
‘intervenção’ estamos falando?
Para tentar responder a mais estas questões voltaremos nosso olhar
para meados do século XVII, antes mesmo da instalação da psiquiatria no
campo médico, período no qual os “inadaptados” às regras sociais e
“desacreditados” eram reunidos nos grandes asilos, sob o cuidado não
médico no qual a utilização do trabalho e da atividade, revelaram sua
função, e a partir daí dividiremos historicamente o uso das oficinas no
campo da saúde mental em três lógicas que até hoje se sobrepõem, como
propõe Guerra.121
A lógica do desvio social: característica do século XVII, quando o
enclausuramento da loucura era visto como punição para os ‘desordeiros da
ordem social’, um “período de condenação burguesa à ociosidade, a loucura
e outras formas de improdutividade as quais tornaram-se caso de polícia.
Não era a intenção a cura, mas antes um imperativo de trabalho que fazia
surgir nesse cenário um grande contingente de casas correcionais de
internamento.”122
121Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de
uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 26. 122 Ibid., p. 26.
86
Podemos inferir aqui, que o uso da atividade e do trabalho não nasce,
portanto, no território psiquiátrico, e que sua função era a manutenção do
status quo da ordem social. A burguesia pretendia utilizar o trabalho
alienado, como terapêutica da alienação; no entanto, esse modelo fracassou
devido, “sobretudo, à instabilidade econômica e ao desemprego gerados nas
regiões circunvizinhas em virtude do trabalho gratuito e obrigatório
realizado nessas casas” 123; porém esse labor, sem utilidade nem proveito
será utilizado posteriormente enquanto recurso terapêutico pela psiquiatria.
Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, participante da
Revolução que derrubou Luis XVI, movido pelos movimentos libertários da
época, acreditava na idéia de “anormalidade” e “animalidade” do Louco,
separando os pobres dos loucos, vendo esses últimos como doentes. Pinel
promoveu a primeira mudança no tratamento dos transtornos mentais, sendo
o pioneiro ao soltá-los dos grilhões de La Salpêtrière e de La Bicêtre,
porém, contraditóriamente, com essa conquista colocou os “anormais” nos
Hospícios.
Neste período surge o tratamento moral – um nome dado ao
tratamento que tinha como foco central a formação de grupos que
encorajariam o sentimento de auto-respeito e dignidade. Pinel acreditava
que era preciso isolar o indivíduo numa instituição-especial, primeiro para
retirá-lo de suas percepções habituais, que teoricamente teriam gerado o
problema, para depois poder controlar suas condições de vida. “No
tratamento moral, o hospital era o centro organizador da terapêutica, e o
123 Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de
uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 27.
87
médico, a autoridade para o paciente”124, a idéia de isolar o ‘desviante’ e
‘ensinar-lhe’ como viver novamente na comunidade, é utilizado
posteriormente nas colônias terapêuticas (agrícolas), cujo objetivo era
produzir a vida de uma comunidade rural e a “forma terapêutica”, utilizada
era a praxiterapia (ou laborterapia), o trabalho como fator de cura. Isso faz
das colônias de tratamento atuais, anacrônicas, pois como seria possível
utilizar o trabalho alienado para ‘curar’ o alienado?
De acordo com Guerra, “se o século XVII foi marcado pelo grande
internamento e o século XIX pelos manicômios, o século XX surge como o
século da invenção no campo terapêutico da agora não mais psiquiatria, mas
saúde mental”125, sobretudo a partir da segunda metade do século, devido
“à ineficácia terapêutica somada à denúncia sociopolítica sobre o
desrespeito aos direitos básicos do interno (...)”126, no qual o modelo
psiquiátrico tradicional passa a ser visto como segregador e reforçador da
exclusão social, surgindo a tentativa de superação dos desvios da ortopedia
psiquiátrica clássica, culminando assim, no movimento da reforma
psiquiátrica, com a assistência reorganizada a partir de modelos abertos e
dispositivos reabilitadores de tratamento. Nesse novo modelo, as ‘oficinas’
aparecem como promotoras da individuação, da cidadania e da reinserção
social.
124 Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de
uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 28. 125 Ibid., p. 29. 126 Ibid., p. 29.
88
Contudo, a reformulação referente à reabilitação e ao trabalho
somente ocorreu concretamente na Itália com o movimento antimanicomial
da Psiquiatria Democrática Italiana. Essas mudanças culminaram no que
hoje se denomina 'reforma psiquiátrica', que tem como pressuposto,
questionar a normatização e o controle psiquiátrico. A reforma tem como
projeto a transformação do modelo clássico da psiquiatria e a reivindicação
da cidadania do estigmatizado. Sendo que essa transformação deve ser
obtida pela desinstitucionalização.
Desse modo, o que se procura é um trabalho prático de transformação
que pretende desmontar a lógica manicomial para remontar o problema,
modificando o modo como são 'tratadas' visando a transformação do
sofrimento.
Não interessava mais otimizá-lo (o manicômio) para torná-lo ‘terapêutico’, pois
evidenciava-se que sua própria lógica de funcionamento aprisiona, não apenas
fisicamente, mas subjetivamente, a expressão livre do homem. Nasce, então, a
idéia de superar com o manicômio, em sua forma material e simbólica,
substituindo-o por outros dispositivos abertos e socializantes.127
Não queremos fazer aqui uma leitura ‘romântica’ da reforma
psiquiátrica, pois sabemos que as coisas não funcionaram/funcionam de
uma forma tão contínua assim. Pois se de um lado tínhamos a reivindicação
do fechamento dos manicômios e da reinserção social do ‘anormal’ na
sociedade, de outro, encontramos uma grande resistência por parte dos
empresários médicos, o despreparo das famílias para acolher novamente o
127 Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de
uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 30-31.
89
ex-paciente e da sociedade que continua enxergando estes indivíduos como
não humanos.
Sem contar que a desconstrução do modelo asilar não ocorreu/ocorre
concomitantemente com a criação de serviços substitutivos, ficando os
estigmatizados muitas vezes abandonados à própria sorte, perambulando
pelas ruas. Sendo que mesmo a criação dos atuais serviços substitutivos,
gerenciados muitas vezes por profissionais que acreditavam/acreditam no
modelo asilar, acabam transformando os serviços de saúde mental em
manicômios à céu aberto, colaborando com a indústria da loucura, na
medida em que utilizam medidas paliativas de inserção social, como por
exemplo: vales transportes, cestas básicas etc., tornando o indivíduo
dependente da unidade de saúde mental, ou ainda, dependente dos remédios
(drogas), que utiliza para ser anestesiado e contido socialmente.
Neste contexto de criação e reconstrução de novos modos de atenção
aos indivíduos que necessitavam de cuidados; muito mais política do que
clínica, a ‘oficina’, enquanto fazer artístico, aparece com uma nova
proposta, que preconiza o aspecto criativo e inventivo, questiona a
iatrogênia do ambiente asilar-excludente (que utilizando a laborterapia,
estaria explorando a mão-de-obra dos indivíduos ou mantendo-os
ocupados). Assim como a própria noção de terapêutico também acaba
passando por metamorfoses ideológico-conceituais, “da idéia (pineliana)
originária de se ‘curar a doença mental’, passando pelo conceito de
‘promoção da saúde mental’ (psiquiatria comunitária), até chegar à noção
de ‘ampliação das possibilidades de trocas na vida pública’, associando o
90
caráter político ao clínico democrático”128, reconhecendo com isso, a
pluralidade das formas de vida.
A ARTE COMO POSSIBILIDADE TERAPÊUTICA
Com o intuito de apresentar um melhor entendimento das
metamorfoses teóricos-conceituais ocorridas no uso de técnicas artísticas
enquanto terapêutica na saúde mental, traremos algumas contribuições
importantes, como a encontrada em Valero, que nos traz em seu trabalho
que o uso da arte no âmbito da psiquiatria e psicologia, surge somente após
a segunda metade do século XIX, embora o interesse dos artistas pela saúde
mental existisse há muito mais tempo. A mesma autora coloca que as
primeiras pesquisas da relação entre Arte e Psiquiatria foram realizadas por
Max Simon, no final do Século XIX; posteriormente diversos autores, como
“Lombroso, Morselli, Dantas, Fursac, Ferri e mesmo Charcot se
interessaram pela produção ‘artística’ dos doentes mentais com objetivos
nosológicos e diagnósticos. Mohr, em 1906 fez um estudo comparativo das
produções de doentes mentais, pessoas ‘normais’ e grandes artistas, no qual
percebeu a manifestações de histórias de vida e conflitos pessoais, donde a
possibilidade de investigação da personalidade a partir de desenhos abrirá
campo para a formulação de diversos testes psicológicos (Rorscharch, TAT
etc).”129 Freud também trabalhou com o tema da arte, referindo-se a esta
128 Andréa M. C. GUERRA, Oficinas em saúde mental: percurso de uma história, fundamentos de
uma prática, Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania, p. 31. 129 Patrícia V. VALERO, É preciso levar o delírio à praça pública: Sofrimento psíquico, artes
plásticas e inclusão social, p. 60.
91
como satisfações substitutivas130, utilizando a Psicanálise para analisar
obras de arte.
No Brasil uma das pioneiras em trabalhos com oficinas artísticas no
campo da saúde Mental foi Nise da Silveira, que em 1946, as utiliza, “como
uma técnica a mais nos hospitais públicos sempre povoados, onde a
psicoterapia individualizada é impraticável, além de ser o menos
dispendioso para a economia hospitalar.”131
Introduziu no âmbito da saúde mental, a noção de atelier, retirada dos
domínios artísticos. Nesses ateliers eram desenvolvidos trabalhos de pintura
e modelagem, sendo privilegiada a criação espontânea, sem interferência de
qualquer tipo por parte de técnicos, sejam eles psicólogos, psiquiatras,
monitores, etc. Silveira, rejeitou a denominação “arteterapia” em seu
trabalho, dizendo que o terapeuta não pode esperar que seu paciente
produza obras de arte.
O atelier era lugar agradável, amplo espaço com janelas sempre abertas
deixando ver velhas árvores. O recinto do atelier foi muitas vezes
espontaneamente escolhido como motivo para pinturas, o que indica
quanto este lugar era significativo para os seus frequentadores.132
Silveira desenvolve seu trabalho, sob influência da teoria junguiana,
fundando o Museu de Imagens do Inconsciente, um lugar que se constituiu
como núcleo de estudos e pesquisa da esquizofrenia, com trabalhos que
130 Sigmund FREUD, O Mal estar na Civilização. 131 Nise da SILVEIRA, O mundo das imagens, p. 16. 132 Nise da SILVEIRA, Imagens do Inconsciente, p. 37.
92
interessaram muitos críticos e artistas brasileiros pela qualidade estética das
obras.
Outro trabalho significativo no âmbito do desenvolvimento do uso da
arte como método terapêutico é o de Andrade, que em sua tese intitulada:
Terapias Expressivas: uma Pesquisa de Referenciais Teórico-Práticos, traz
um histórico do surgimento e uma afirmação do que acredita ser a função
social e simbólica da arte, “criando substitutos da vida sem nunca ser uma
descrição do real. Permite ao homem expressar e ao mesmo tempo perceber
os significados atribuídos à sua vida. Na sua eterna busca de um tênue
equilíbrio com o meio circundante.”133
Valero critica em parte o trabalho de Andrade, dizendo que “a
conceituação da arteterapia parte, todavia, de uma concepção de arte mais
própria do classicismo, de narrativa, de obra de arte como efeito de uma
causa que é o autor e seu mundo psicológico. Parte ainda de uma
idealização, que é ao mesmo tempo um reducionismo, da obra como
salvação: esta seria o produto de um ensaio de resolução de conflitos,
experiência que instrumentalizaria o autor a lidar melhor com as
vicissitudes da vida.”134
A análise do fazer artístico também foi realizado pelos teóricos da
Escola de Frankfurt, dentre eles Adorno, Horkheimer e Marcuse; este
133 Liomar Q. ANDRADE, Terapias Expressivas: uma pesquisa de referenciais teóricos-práticos,
p. 06. 134 Patrícia V. VALERO, É preciso levar o delírio à praça pública: Sofrimento psíquico, artes
plásticas e inclusão social, p. 64.
93
último traz uma contribuição significativa com relação ao potencial político
da arte em seu trabalho sobre a Dimensão Estética:
(...) vejo o potencial político da arte na própria arte, na forma estética em
si. Além disso, defendo que, em virtude da sua forma estética, a arte é
absolutamente autónoma perante as relações sociais existentes. Na sua
autonomia, a arte não só contesta estas relações como, ao mesmo tempo,
as transcende. Deste modo, a arte subverte a consciência dominante, a
experiência ordinária.135
Fazendo uso da Psicanálise e da Teoria Crítica, Marcuse procura
demonstrar como a obra de arte pode ser revolucionária, se representar a
predominante ausência de liberdade, rompendo assim com a realidade
social mistificada e abrindo os horizontes da mudança. Isso seria possível
pelo fato da arte refletir o mundo tal qual aparece na própria obra.
Marcuse acredita que existe uma verdade na arte, e que esta “reside
no seu poder de cindir o monopólio da realidade estabelecida (i. e., dos que
estabeleceram) para definir o que é real. Nesta ruptura, que é a realização da
forma estética, o mundo fictício da arte aparece como verdadeira
realidade”136, porém uma realidade que contraditóriamente questiona a
realidade existente. “A ficção cria a sua própria realidade que permanece
válida mesmo quando negada pela realidade estabelecida. O bem e o mal
dos indivíduos confronta-se como bem e o mal social.”137
135 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 11. 136 Ibid., p. 22. 137 Ibid., p. 38.
94
Fala sobre o potencial emancipatório da arte, que mesmo como arte
burguesa desvela a opressão sofrida pelos indivíduos, ou seja, de forma
contraditória “a arte inevitavelmente parte do que existe e só como parte do
que existe fala contra o que existe.”138 Utilizando-se da Psicanálise irá dizer
que o Belo da arte reside no domínio de Eros, representando o ‘princípio da
prazer’, revoltando-se então contra o ‘princípio da realidade’ massacrante
na qual estamos inseridos. Sendo assim, a “obra de arte fala a linguagem
libertadora, invoca as imagens libertadoras da subordinação da morte e da
destruição da vontade de viver. Este é o elemento emancipatório na
afirmação estética.”139
Também encontramos em Bastidas140 uma análise refinada e
cuidadosa acerca dos limites da Psicanálise na análise da arte e do belo.
Este autor, fazendo a análise da obra literária japonesa “Sol e Aço” de
Yukio Mishima141, ensina que os conceitos psicanalíticos (desenvolvidos
sob influência do pensamento ocidental), não servem como modelo de
análise universal e que, se estes fossem utilizados, tais análises, seriam
leituras superficiais. Sua constatação nos interessa pelo fato de lembrar
sobre a importância da reflexão acerca dos limites interpretativos, visto que,
sempre partimos de nossos pressupostos para realizar análises dos objetos,
tendendo muitas vezes a um reducionismo dos fenômenos.
138 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 50. 139 Ibid., p. 70. 140 Cláudio BASTIDAS, A outra Beleza: o estudo da beleza para a Psicanálise. 141 Yukio Mishima, descendente de uma família de samurais, formado em Direito, que dedicou-se
as Artes (literatura e Artes marciais), sendo também ator de cinema e cantor. Cometeu o ‘seppuku’
(suícidio), após invadir um quartel das forças armadas japonesas e ler um texto que criticava a
ocidentalização.
95
Sua análise de Sol e Aço, trata da visão de um japonês, descendente
de samurais, frente à beleza; fazendo a seguinte pergunta: “como a
psicanálise pode tratar da Beleza das moscas no sangue de um soldado
ferido de morte, da obra de Mishima, sem apelar para suas teorias
psicopatológicas?”142 Bastidas vai dizer que essa análise tenderia a uma
psicopatologização da personagem, caso fosse realizada uma transposição,
sem as devidas adequações do método Psicanalítico e da contextualização
histórica a qual este indivíduo está inserido. Bastidas trás uma contribuição
que nos parece bastante importante para pensarmos o manejo das oficinas
terapêuticas, visto que encontramos nessas, uma pluralidade de formas de
vida, não podendo, nas atuais condições da modernidade, avaliar um
trabalho sem entender seu sentido para o indivíduo.
Com isso, Bastidas mostra que a apreensão de uma atividade artística,
só é possível para o pesquisador que entenda o sentido da obra para seu
autor, ou seja, do lugar da arte na história de vida do indivíduo, pois no
“processo de criação ocorreria (...), a transformação dos pré-objetos em
objetos, do pré-verbal no verbal.”143
Outra importante contribuição é encontrada em Moreno, que
analisando as possibilidades criativas do teatro, também apresenta
referenciais para pensarmos as oficinas terapêuticas, sobretudo aquela que
será nosso foco (oficina terapêutica de teatro). Moreno investe na
142 Cláudio BASTIDAS, A outra Beleza: o estudo da beleza para a Psicanálise, p. 68. 143 Ibid., p. 76.
96
importância da espontaneidade, um lugar em que segundo esse autor, “a
própria vida é testada.”144
Na concepção de Moreno, no teatro “todos os homens são
mobilizados e se deslocam do estado de consciência para o estado de
espontaneidade, do mundo dos feitos reais, dos pensamentos e sentimentos
reais, para um mundo de fantasia que inclui a realidade potencial.”145 Vai
dizer que o teatro terapêutico é aquele que emprega os pressupostos de um
teatro da espontaneidade para fins terapêutico, ou seja:
Os padrões que os atores envidam produzir ou são situações e papéis que
eles próprios desejam produzir e que poderão estar em seu interior
vivendo em certo grau de desenvolvimento, ou então situações e papéis
dos quais possuem pouca ou nenhuma experiência.146
Para Moreno, existem três relações possíveis entre um ator e seu
papel, que são compatíveis com a concepção de identidade desenvolvida
por Ciampa, que discutiremos adiante. “Na primeira, ele se trabalha dentro
do papel, passo a passo, como se tratasse de uma individualidade diferente.
Quanto mais o ator extinguir seu self particular, mais se capacita a ‘viver ‘o
papel (é identidade pressuposta, re-posta, como negação da totalidade –
AFL) Neste caso, o papel é como a personalidade de alguém que o ator
poderia desejar ter, ao invés da sua mesma. Sua atitude para com seu papel
é de identidade. Na Segunda relação, o ator faz uma média entre sua
concepção do papel e a veiculada pelo autor; neste segundo caso, sua
144 Jacob L. MORENO, O teatro da espontaneidade, p. 45. 145 Ibid., p. 45-46. 146 Ibid., p. 53.
97
atitude é de integração sintética. (mantendo a mesmice, a re-posição da
identidade pressuposta – AFL) Na terceira, desgostoso, o ator força o papel
específico sobre sua própria individualidade, e distorce as palavras descritas
pelo dramaturgo, criando um estilo pessoal de sua lavra (o ator se torna
também autor de sua história, busca emancipação – AFL).”147
Isso que Moreno ensina e que seria vivenciado pelos participantes do
teatro terapêutico, vai se aproximar daquilo que Glusberg denomina como
performance. Para esse último: “A performance é um questionamento do
natural e, ao mesmo tempo, uma proposta artística. Isso não deve causar
surpresa: é inerente ao processo artístico o colocar em crise os dogmas –
principalmente os dogmas comportamentais – seja isso mediante sua
simples manifestação ou através de ironia, de referências sarcásticas etc.”148
Parece que entender a performance na oficina terapêutica de teatro,
mostrará como os conteúdos criativos do indivíduo, por não ter tipificações
ou estereótipos, podem ser espontâneas e/ou verdadeiras. A performance, ao
que nos parece, possibilitaria a quebra da re-posição e da mesmice, na
medida que propõe uma nova realidade tanto para o ator, quanto para a
platéia.
Recentemente encontramos o trabalho desenvolvido por Vaisberg,
responsável pelo Ser e Fazer149, que é denominado: Oficinas
Psicoterapêuticas. Vaisberg vai partir de uma visão psicanalítica
147 Jacob L. MORENO, O teatro da espontaneidade, p. 56. 148 Jorge GLUSBERG, A Arte da Performance, p. 58. 149 Desenvolvido no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
98
winnicottiana, “segundo a qual a psicopatologia psicanalítica deve ser
considerada teoria do sofrimento humano”150, dizendo que aquilo
denominado como Psicanálise, não seria “um conjunto doutrinário que
engloba teorias sobre o aparelho psíquico, a angustia, o narcisismo, o
Édipo, as posições, as pulsões, o simbólico, o real e o imaginário – ou tantas
outras”151, mas sim, da recuperação da Psicanálise como método de
pesquisa do fenômeno humano. Vaisberg amarra o uso do método
psicanalítico winnicottiano com a filosofia Marxista de Politzer e procura
fazer uma análise Materialista das oficinas. A indagação de sua proposta
terapêutica é: “como facilitar, se é que existe realmente essa possibilidade,
que alguém, que sente existir apenas desde um ponto de vista exterior,
possa vir a transformar seu posicionamento existencial de modo a perceber-
se personalizado e integrado a partir de sua própria visão de si e do
mundo?”152
Desse modo, se a experiência estética é incorporada no contexto das
histórias de vida individuais, se são utilizadas para elucidar situações ou
esclarecer determinados problemas de vida, se são impulsos comunicativos
das formas de vida coletiva, então a arte entra no jogo de linguagem que
não se distancia da crítica estética, mas que são antes práticas
comunicativas da vida cotidiana.
150 Tânia A. VAISBERG, Ser e fazer: enquadres diferenciados na clínica winnicottiana, p. 09. 151 Ibid., p. 10. 152 Ibid., p. 51.
99
A DIFERENÇA ENTRE ARTE E FAZER CRIATIVO
Relacionando tudo o que foi exposto até agora, torna-se necessário
fazer uma distinção entre fazer artístico e fazer criativo, uma separação que
possibilita uma reflexão sobre o papel das oficinas terapêuticas no
tratamento do uso de drogas. Para tanto, buscamos motivos no trabalho
“interesse científico da psicanálise” escrito em 1913 por Freud. Neste
trabalho o pai da Psicanálise vai nos dizer que o “objetivo primário do
artista é libertar-se e, através da comunicação de sua obra a outras pessoas
que sofram dos mesmos desejos desenfreados, oferecer-lhes a mesma
libertação. Ele representa suas fantasias mais pessoais plenas de desejo
como realizadas;”153 e nos alerta ao fato que uma criação não é
automaticamente reconhecida como arte, pois somente “se tornam obra de
arte quando passaram por uma transformação que atenua o que nelas é
ofensivo, oculta sua origem pessoal e, obedecendo às leis da beleza, seduz
outras pessoas com gratificação prazerosa.”154
Isso nos leva a pensar em um primeiro momento que atribuir o termo
“arte” para designar atividades que envolvam o fazer criativo sejam
inadequadas, ao passo que o que é produzido pelos indivíduos envolvidos
neste processo nem sempre contará com o reconhecimento de sua obra.
Contudo, a idéia de ‘arte’ trazida por Fischer nos parece bastante apropriada
para falar do fenômeno que ocorre nas oficinas terapêuticas; a arte
entendida como ‘substituto da vida’, “concebida como o meio de colocar o
153 Sigmund FREUD, O interesse científico da psicanálise, Obras Psicológicas completas de
Sigmund Freud, p. 189. 154 Ibid., p. 189.
100
homem em estado de equilíbrio com o meio circundante – trata-se de uma
idéia que contém o reconhecimento parcial da natureza da arte e da sua
necessidade.”155
O trabalho de Fischer, assim como o de Glusberg, direciona a
trabalhar com as oficinas terapêuticas como Arte Performática, lembrando
que a performance é como uma arte de fronteira; “no seu contínuo
movimento de ruptura com o que se pode ser denominado ‘arte
estabelecida’, a performance acaba penetrando por caminhos e situações
antes não valorizadas como arte.
Da mesma forma, acaba tocando nos tênues limites que separam a
vida e arte.”156 A performance está ligada a um movimento que encara a
arte como live art. “A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É uma
forma de se ver a arte em que se procura uma aproximação direta com a
vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento do
elaborado, do ensaiado.”157
Isso nos aproxima do que entendemos por oficina terapêutica, que
para Lopes engloba “todos os dispositivos terapêuticos que usam de alguma
forma o trabalho como instrumento terapêutico”158, é um dispositivo quase
sempre experimental que “não segue uma fundamentação teórica rígida
nem um modelo padrão de funcionamento, um dispositivo que é
155 Ernst FISCHER, A necessidade da arte, p. 11. 156 Renato COHEN, Performance como linguagem, p. 38. 157 Ibid., Performance como linguagem, p. 38. 158 Márcia C. R. LOPES, A contribuição paulistana à Reforma em Saúde Mental brasileira, p.82.
101
essencialmente construído no quotidiano por seus pacientes e técnicos.”159
localizadas “num campo híbrido, móvel, instável, sem identidade, feito de
experimentações múltiplas e aberto à intersecção com vários campos e
saberes, o que pode garantir a elas um espaço menos restrito – como o de
especialidade em saúde mental – e mais efervescente quanto às
problematizações e descontinuidades produzidas, criando, assim, uma nova
cultura de intervenções, escavada por essas experiências que pouco se
intimidam com o discurso técnico vigente e que tentam escapar do modelo
terapêutico normatizador.”160
É um movimento dialético, na medida em que tira a arte da posição
‘sacra’, inatingível, de um lado e, vai buscar expressar a ‘ritualização’ dos
atos comuns da vida cotidiana, como comer, beber, movimentar, do outro; e
questiona os saberes da clínica e dos diagnósticos. Lembrando que ao
entender as oficinas terapêuticas como oficinas de performance
aproximamo-nos do que poderia ser caracterizado como expressão
anárquica que visa escapar de limites disciplinares. “Ideologicamente, a
performance incorpora idéias da Não-Arte e da chamada Arte de
Contestação.”161 É a experiência criativa e expontânea que dispensa
preparação, como a criaturgia apresentada por Moreno. O artista recriando
imagens, personagens e objetos continua sendo aquele “ser que não se
159 Márcia C. R. LOPES, A contribuição paulistana à Reforma em Saúde Mental brasileira, p.78. 160 Maria C. GALLETTI, Oficina em saúde mental: instrumento terapêutico ou intercessor
clínico?, p.36 161 Renato COHEN, Performance como linguagem, p. 59.
102
conforma com a realidade. Nunca a toma como definitiva. Visa, através do
processo alquímico de transformação, chegar a uma outra realidade (...).”162
Todavia, o fato de não adotar os pressupostos do fazer ‘artístico’, não
significa dizer que o que é feito na performance, no ato criativo, não tenha
uma objetividade, pois a “eliminação de um discurso mais racional e a
utilização mais elaborada de signos fazem com que o espetáculo de
performance tenha uma leitura que é antes de tudo uma leitura emocional.
Muitas vezes o espectador não ‘entende’ (porque a emissão é cifrada) mas
‘sente’ o que está acontecendo.”163 Isso pôde ser experiênciado pelo
pesquisador diversas vezes nas apresentações que fez com a Cia. Revisão
(principalmente nas performances de teatro mudo). Sendo assim, dado a
rotatividade de participantes das oficinas de teatro – pelo menos é o que se
espera de uma oficina em saúde mental –, a performance aparece como uma
prática interessante, na medida em que cada apresentação acaba sempre
sendo também uma despedida do usuário do grupo, e uma retomada de sua
vida pós instituição.
Desse modo, acreditamos que o conceito de performance permite que
façamos a diferenciação do fazer artístico e do fazer criativo, sabendo de
antemão que este último pode ou não ser reconhecido como ‘arte’ na
medida que está sujeito as regras estéticas. Assim como, aponta para uma
forma de manejo em oficinas terapêuticas que priorizem a ‘criação’ à ‘obra’
desenvolvida, fugindo assim de práticas que reproduzam a lógica do
desempenho, da produção, como é visto em algumas instituições que ainda
162 Renato COHEN, Performance como linguagem, p. 61. 163 Ibid., p. 66. (grifos do autor)
103
associam o trabalho desenvolvido nas oficinas terapêuticas com a venda
em espaços públicos. Antes de encerrarmos este capítulo, acreditamos que
seja válido apresentar um esquema sobre as diferenças que encontramos
entre o fazer artístico e o fazer criativo no teatro:
Tabela 5 – Diferenciação entre Fazer Artístico e Fazer Criativo.
Teatro
(modelo estético)
Teatro espontâneo
Performance
Elemento Ator Performer
Sustentação Representação Live Art
Construção Personagem Idiossincrasia
Técnica Lógica de Ação
hierarquização
Livre-associação
Indeterminação
Ênfase Dramaturgia
Crítica sócio-política
Terapêutico
Plástico, Poético
Contestativo
Local de apresentação Edificios
Teatro
Praças públicas,
Escolas,
Teatros etc.
Tempo da apresentação Temporada Evento
Como vimos nem todos os indivíduos que participam de experiências
expressivas podem produzir obras de arte. No entanto, podemos inferir que
todos os indivíduos podem desenvolver experiências que envolvam o fazer
criativo, seja utilizando o que apresentamos como performance, ou ainda, a
criaturgia apresentada por Moreno; sendo que a própria idéia de ‘criação’
implica desenvolvimento, crescimento e vida; consequentemente não
existindo lugar para metas estabelecidas a priori e alcances mecânicos. O
indivíduo envolvido no fazer criativo é impelido a agir. Um agir que pode
104
apontar uma tendência emancipatória, na medida em que questiona a si
mesmo e apresenta-se para um outro, não como uma personagem que
substitui a anterior, mas como ‘mais uma personagem’ que soma à sua
identidade e que ao mesmo tempo questiona sua identidade pressuposta,
que até então estava sendo re-posta.
Com isso retomamos o objetivo das oficinas terapêuticas. Utilizando
novamente as contribuições de Galletti; que vai defender que o objetivo das
oficinas terapêuticas é, “em primeiro lugar, a produção de sentido, isto é,
trata-se de encontrar modos de produção que singularizem existências,
permitam o surgimento de processos criativos e, fundamentalmente, que
legitimem a pluralidade da vida”164, assim, as oficinas não seriam apenas
instrumentos aplicáveis a serviço de um projeto, mas “um espaço que
mobiliza novas práticas e outras formas de organização.”165
Da mesma forma que o fato das oficinas terapêuticas não terem uma
teoria própria ou uma normatização de funcionamento, não significa que as
mesmas situam-se numa espécie de limbo, sem limite ético, onde tudo pode
acontecer. “Ao contrario, a precariedade constitutiva desses dispositivos –
construídos na conexão de diversos saberes – e o extravasamento das
fronteiras científicas pretendem elevar a experiência clínica a seu mais alto
164 Maria C. GALLETTI, Oficina em saúde mental: instrumento terapêutico ou intercessor
clínico?, p. 38. 165 Ibid., p. 91.
105
grau, quer dizer, romper a barreira que separa a clínica e o social, o
tratamento e a vida.”166
Desse modo, esperamos que essas páginas, longe de esgotar o
problema, tenham gerado provocações no leitor, possibilitando que as
oficinas terapêuticas possam ser objeto de estudo por outras pessoas no
futuro, pois como vimos o termos oficina e terapêutica têm sido utilizados
para descrever algumas atividades que acontecem nas estruturas de
atendimento preocupadas em romper com o modelo asilar, mas que seu
sentido, entretanto, tem sido o mais aberto possível. Também entendemos
que a interdisciplinariedade presente nessas oficinas propõem outras formas
de intervenção, que possibilitam a expressão da individualidade por meio
do fazer criativo. O sentido das oficinas terapêuticas será retomado no
Capítulo V, quando Lou-Lou nos contar sua experiência na oficina
terapêutica de teatro do EFRS, mas antes apresentaremos nosso referencial
teórico de analise que, assim como tudo o que foi mostrado até agora, será
utilizado para analisarmos a história de Lou-Lou.
166 Maria C. GALLETTI, Oficina em saúde mental: instrumento terapêutico ou intercessor
clínico?, p. 123.
CAPÍTULO IV
A IDENTIDADE COMO METAMORFOSE HUMANA EM BUSCA
DE EMANCIPAÇÃO
IV
De perto, talvez ninguém seja normal, por outro lado, de
perto, de muito perto, talvez o diabo não seja tão feio
como se pinta. O difícil é olhar de perto, afinal a
exclusão esconde o insuportável.
Tarcísio Matos de Andrade
4.1 – A CONCEPÇÃO TEÓRICA DE IDENTIDADE DE ANTONIO
C. CIAMPA
Como dito anteriormente, a concepção de identidade que utilizamos
resulta de um processo histórico que articula toda nossa vivência. Não
sendo definida como uma característica inata do indivíduo, ou ainda,
concluída nos primeiros anos de vida, mas sim, resultado da humanização
do indivíduo que em um primeiro momento seria apenas um organismo
biológico. Essa identidade “é construção, reconstrução e desconstrução
constantes, no dia-a-dia do convívio social, na multiplicidade das
experiências vividas.”167 É o que estou-sendo, uma identidade que me nega
naquilo que também-sou-sem-estar-sendo, na medida em que sempre
compareço como representante de mim mesmo perante o outro.
Essa concepção de Identidade foi apresentada por Ciampa em sua Tese
de Doutorado: A Estória do Severino e a História da Severina – um ensaio
de psicologia social. Ao introduzir o conceito de identidade, sob o ponto de
167 Helena M. KOLYNIAK & Antonio da C. CIAMPA, Corporeidade e Dramaturgia no cotidiano,
Discorpo, 2, p. 09.
108
vista da psicologia social, como uma questão teórica, Ciampa nos diz que
“cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma identidade
pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida. Uma vida que nem
sempre-é-vivida, no emaranhado das relações sociais.”168
Ciampa ensina que a identidade é a articulação tanto entre diferença
e igualdade (ou semelhança), como entre objetividade e subjetividade, pois
“sem essa unidade, a subjetividade é desejo que não se concretiza, e a
objetividade é finalidade sem realização”169, e nos diz que é impossível
falar de identidade sem falar em metamorfose, como um processo que se dá
desde o nascimento do indivíduo até sua morte, podendo ultrapassar esses
limites biológicos, buscando a superação do individualismo nos moldes da
sociedade de massa, que pode ser obtida pela criação ou transgressão, essa
última como uma possibilidade humana nem sempre tão negativa como se
apresenta.
Para o autor a identidade se expressa empiricamente através de
personagens, e a articulação dessas personagens é que vai compor a
identidade do indivíduo. E entendendo a metamorfose como
desenvolvimento do concreto, “podemos dizer que as personagens são
momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam
sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de
regressão.”170 Identidade é história, e como toda história (ao menos história
168 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 127. 169 Ibid., p. 145. 170 Ibid., p. 198.
109
humana), torna-se impossível sem personagens; “o ator é o eterno dar-se: é
o fazer e o dizer.”171
Como é óbvio, as personagens são vividas pelos autores que as encarnam
e que se transformam à medida que vivem suas personagens. Enquanto
atores, estamos sempre em busca de nossas personagens; quando novas
não são possíveis, repetimos as mesmas; quando se tornam impossíveis
tanto novas como velhas personagens, o ator caminha para a morte,
simbólica ou biológica.172
Logo, é impossível viver sem personagens pois sempre me apresento
como representante de mim mesmo perante os outros, sendo que a “cada
momento, é impossível expressar a totalidade de mim; posso falar por mim,
agir por mim, mas sempre estou sendo o representante de mim mesmo. O
mesmo pode ser dito do outro frente ao qual compareço (e que comparece
frente a mim).”173 Um jogo de interação que estabelece uma complexidade
que impede a possibilidade de estabelecer um fundamento originário para
cada personagem.
Ciampa também explica que existe a necessidade de normatização de
determinadas personagens, que por outro lado, servem para conservar as
identidades produzidas. Um fenômeno que funciona por meio da re-posição
que pode ser tanto positivo quanto negativo, na medida em que possibilitam
um sentido de direção para os indivíduos (primeiro caso), ou ainda, podem
reduzir o indivíduo a uma única personagem acabando assim com a
articulação da igualdade e da diferença.
171 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 155. 172 Ibid., p. 157. 173 Ibid., p. 170-171.
110
IDENTIDADE COMO METAMORFOSE HUMANA
É justamente esse trabalho de re-posição que cria a aparência de não
metamorfose e impede muitas vezes que vejamos as metamorfoses da
identidade; para nos ajudar a entender como ocorre esse processo, Ciampa
propõe dois movimentos na identidade, que caracteriza como mesmice e
mesmidade. A mesmice decorreria da re-posição da identidade que pode se
dar como consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à
repetição; é pré-suposta como dada permanentemente e não como re-
posição de uma identidade que um dia foi posta.
Outros são levados a essa situação, involuntariamente, quando seu
desenvolvimento é de alguma forma prejudicado, barrado, impedido; na
nossa sociedade, encontramos milhões de exemplos de pessoas
submetidas a condições sócio-econômicas desumanas, impedidas de se
transformar, são forçadas a se reproduzir como réplicas de si,
involuntariamente, a fim de preservar interesses estabelecidos, situações
convenientes, interesses e conveniências que são, se radicalmente
analisadas, interesses e conveniências do capital (e não do ser humano
que assim permanece um ator preso à mesmice imposta).174
Contudo, evitar a transformação é impossível, o que é possível, com
muito trabalho é a conservação da mesmice. Sendo que pode haver interesse
em que uma mesmice mude de forma para uma mais conveniente;
utilizando um exemplo na questão do uso de drogas – a substituição da
personagem drogado pela do adicto em recuperação – que pressupõe um
174 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 165.
111
indivíduo com predisposição à dependência e que para adequar-se deve
manter-se abstinente, o que por sua vez não significa uma mudança na
relação que o mesmo mantém com a substância.
O que sustenta a mesmice é o impedimento da emancipação; a plena
concretização da mesmice é aquilo que Ciampa chama de fetichismo da
personagem, que vai explicar “a quase impossibilidade de um indivíduo
atingir a condição de ser-para-si, ocultando a verdadeira natureza da
identidade como metamorfose e gerando o que será chamado identidade
mito”175, o mundo da mesmice (da não-mesmidade) e da má infinidade (a
não superação das contradições), em que a própria atividade que serve de
base para a personagem deixa de ser desempenhada: Severina é lavrador
mas já não lavra.
A idéia de ser-para-si é buscar uma autodeterminação (que não é a ilusão
de ausência de determinações exteriores; “tornar-se escrava de si
própria” (que de alguma forma é tentar tornar-se sujeito); procurar a
unidade da subjetividade e da objetividade, que faz agir uma atividade
finalizada, relacionando desejo e finalidade, pela prática transformadora
de si e do mundo.176
Todavia, o impedimento da emancipação e a manutenção da mesmice
não se constituem em algo inevitável, na medida em que a impossibilidade
de viver sem personagens e a idéia de ser-para-si possibilita a alterização da
175 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 140. 176 Ibid., p. 146.
112
identidade, que por sua vez se torna possível por meio da negação da
negação, nas palavras de Ciampa:
A negação da negação permite a expressão do outro outro que também
sou eu: isso consiste na alterização da minha identidade, na eliminação
de minha identidade pressuposta (que deixa de ser re-posta) e no
desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante,
em que toda a humanidade contida em mim se concretiza. Isso permite
me representar (1o sentido) sempre como diferente de mim mesmo
(deixar de presentificar uma representação de mim que foi cristalizada
em momentos anteriores, deixar de repor a identidade pressuposta).177
Ciampa nos alerta sobre o termo alterização, no qual se quer
expressar “a idéia de uma mudança significativa – um salto qualitativo –
que resulta de um acumulo de mudanças quantitativas, às vezes
insignificantes, invisíveis, mas graduais e não radicais.”178 Tudo isso indica
uma possibilidade e uma tendência, da conversão das mudanças
quantitativas em mudanças qualitativas. Sendo que sua realização se dá sob
condições históricas e materiais determinadas.
A alterização se expressa por meio da mesmidade, que se refere à
superação da personagem vivida pelo indivíduo; é a expressão do outro
outro que também sou eu. Que se torna possível a partir da possibilidade de
formular projetos de identidade, cujos conteúdos não estejam prévia e
autoritariamente definidos. “Identidades que se definam pela aprendizagem
de novos valores, novas normas, produzidas no próprio processo em que a
177 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 181. 178 Ibid., p. 184.
113
identidade está sendo produzida, como mesmidade de aprender (pensar) e
ser (agir).”179 Sabemos que a criação de novas normas, novos valores e
projetos na esfera universal encontram grandes dificuldades de
concretização e superação no nível coletivo, entretanto, no nível individual
essa transformação torna-se mais facilmente possível, ainda que, muitas
vezes, de forma parcial ou fragmentada.
POLÍTICAS DE IDENTIDADE E IDENTIDADES POLÍTICAS
Outra contribuição de Ciampa para a análise que faremos no nosso
trabalho refere-se à questões das Políticas de Identidade e das Identidades
Políticas; o autor nos alerta que mais do que simples trocadilho, essas duas
definições podem nos ajudar a discutir aspectos, tanto regulatórios como
emancipatórios, dadas as análises do poder presentes nas relações sociais.
A questão das políticas de identidade de grupos envolve a discussão
sobre a autonomia (ou não), que se transforma para indivíduos em
indagações sobre a autenticidade (ou não) de individualidades políticas,
talvez refletindo duas visões opostas, dependendo de se colocar a ênfase
na igualdade – uma sociedade centrada no Estado – ou na liberdade –
uma sociedade composta de indivíduos.180
Ciampa vai nos dizer que, “uma identidade coletiva é quase sempre
referida a uma personagem: nos exemplos, fala-se no singular de ‘negro’,
‘trabalhador’, ‘mulher’, ‘sem-terra’, ‘gay’ etc., cada um correspondendo a
179 Antonio da C. CIAMPA, Políticas de Identidade e Identidades Políticas, Uma Psicologia que se
interroga: ensaios, p. 241. 180 Ibid., p. 134.
114
um ou mais movimentos.”181 O ‘movimento anti-proibicionista` e o
´movimento de redução de danos`, são exemplos de movimentos sociais
que lutam pelos direitos de utilização de qualquer substância psicoativa e de
acesso a seringas e agulhas descartáveis para o uso de drogas, assim como,
o reconhecimento dos direitos dos usuários de drogas.
As Políticas de Identidade servem à formação e manutenção dessas
identidades, e podem ser tanto emancipatórias quanto regulatórias;
emancipatórias quando ampliam a possibilidade de existência na sociedade,
garantindo direitos para os indivíduos, ou regulatórias, quando criam regras
normativas que muitas vezes impedem que o indivíduo consiga sua
diferenciação e, “aparece na orientação feita ao estigmatizado no sentido de
que se ele adotar uma linha correta ele terá boas relações consigo e será um
homem completo, um adulto com dignidade e auto respeito”182. Aqui
aparece outra questão complicada quando pensamos nas políticas de
identidade que, ao trabalhar com a idéia de identidade coletiva, trabalham
com a heteronomia do indivíduo, negam a experiência individual e atribuem
um sentido a priori que, se este aceita, pode ser uma experiência “não eu”.
Tudo porque prevalece o interesse da desrazão, a razão interesseira – que
demonstra a irracionalidade em que vivemos, um mundo que não merece
ser vivido, pois ameaça a autoconservação da espécie, na medida em que
cada singular, em vez de devir homem – como a metamorfose é
inevitável –, devém não-homem, inverte-se em seu contrário; em vez de
proprietário das coisas, estas é que o têm como propriedade; em vez de
181 Antonio da C. CIAMPA, Políticas de Identidade e Identidades Políticas, Uma Psicologia que se
interroga: ensaios, p. 141. 182 Ervin GOFFMAN, Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada, p. 134.
115
fazer uso das coisas, estas é que o usam; em vez de trabalhar com
ferramentas, com seus instrumentos, estes é que trabalham com o homem
como ferramenta, instrumentalizando-o.183
As Identidades Políticas surgem quando os indivíduos criam uma
concepção de identidade para si mesmos, podendo em um primeiro
momento se valer das políticas de identidade para fazer valer seus direitos e
num segundo momento encontrando novas possibilidades de
reconhecimento.
Esperamos que essas Políticas de Identidade, referentes à questão do
uso de drogas tenham ficado claras ao longo do nosso trabalho; nesse
sentido, basta dizermos que vivemos sob políticas que não nos deixam
concretizar nossa autonomia e que “a relação real entre o homem e seu
mundo é invertida na consciência. O homem, o produtor de um mundo, é
apreendido como produto deste, e a atividade humana como um
epifenômeno de processos não humanos.”184
Se entendemos bem o pensamento de Ciampa podemos inferir que
somos animais humanizáveis; que na medida em que temos nossos
impulsos socializados, nos singularizamos, podendo ou não nos
individualizarmos. O autor também nos mostrou que esse processo não
ocorre sem conflitos; nas palavras de Ciampa:
183 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 227. (Grifos do
autor). 184 Peter L. BERGER & Thomas LUCKMAN, A Construção Social da Realidade: tratado de
sociologia do conhecimento, p. 123.
116
(...) a realidade, sendo sempre síntese do subjetivo e do objetivo,
determina que os conflitos sempre se expressem (e sempre sejam
decididos) sob formas históricamente dadas, levando-nos a recusar o
modelo biológico da filosofia da história (passando então a ser
importante explicitar o que queremos dizer quando falamos em
sociedade ou em cultura). A liberdade para virmos a ser humanos (não a
liberdade vazia de qualquer coisa), recusando a coerção (uma
objetividade em que subjetividade não se reconhece), cria o interesse de
garantir a autoconservação da espécie, o interesse pela libertação – um
interesse racional e não uma razão interesseira –, o interesse pela
progressiva humanização da espécie humana, que se elevou acima das
condições da existência animal. Esse interesse é que determina o que
merece ser vivido nas condições dadas.185
É importante destacar que esses conceitos têm sofrido metamorfoses
conceituais desde A Estória do Severino e a História da Severina. Sendo
que o marco dessas metamorfoses ocorreu no Encontro Nacional da
ABRAPSO de 1999, quando Ciampa propôs ampliar a concepção
identidade-metamorfose através do sintagma Identidade-Metamorfose-
Emancipação. Com isso fica claro que a identidade precisa ser entendida
como metamorfose humana em busca de emancipação, que pode ser
conquistada ou não, na medida em que está sujeita ao desenvolvimento da
identidade pós-convencional como possibilidade universal. Precisa ser
entendido também que uma emancipação total do indivíduo na sociedade
não se torna possível na atualidade, contudo, no nível individual os
“fragmentos de emancipação” apresentam-se como uma possibilidade a ser
observada. 185 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a história da Severina, p. 209-210. (Grifos do
autor).
117
A ampliação da concepção identidade-metamorfose-emancipação é
resultado da influência dos trabalhos de Habermas na concepção de
Identidade desenvolvida por Ciampa, que aparece ainda de forma modesta
na Tese de Doutorado devido ao fato de Ciampa entrar em contato com a
filosofia habermasiana no término do seu doutoramento. Habermas ao fazer
a releitura do Materialismo Histórico e da teoria de George Mead amplia a
possibilidade de estudo da identidade desenvolvido por Ciampa,
principalmente no que se refere à teoria de sociedade, a importância da
simultaneidade da socialização e da individualização e a diferenciação entre
interiorização e internalização; aspectos pouco explorados nos estudos de
Berger & Luckmann e Sarbin & Scheibe, teóricos utilizados na dissertação
de Mestrado do autor.
Na dissertação de Mestrado, Ciampa afirma que “compreender a
identidade é compreender a relação indivíduo-sociedade”186, e para discutir
essa relação utiliza o trabalho: Construção social da realidade de Berger &
Luckmann, assim como as leituras que esses teóricos trazem da realidade
social, tomando como base os processos de exteriorização, objetivação e
interiorização. Berger & Luckmann utilizam a psicologia Social de Mead
para explicar a formação da realidade subjetiva a partir de sua socialização.
Ciampa também apresenta a influência do pensamento ‘meadiano’ nos
trabalhos de Scheibe, apontando a diferença na noção feita por Berger &
Luckmann, que estaria na importância dada por Scheibe ao
desenvolvimento de ‘valores’ na socialização.
186 Antonio da C. CIAMPA, Identidade Social e suas relações com a ideologia, p. 19.
118
A escolha dos autores ocorreu devido ao fato destes fazerem na época
uma releitura da teoria de George Mead que possibilitava pensar a questão
da Identidade Social e sua relação com a ideologia para a Psicologia Social.
Isso acontece também em sua Tese de Doutoramento, desta vez
Ciampa utiliza os conceitos desenvolvidos por Habermas para trabalhar
algumas deficiências que encontrava nos autores utilizados anteriormente,
que no caso de Berger & Luckmann foi à alternativa encontrada para a
concepção fenomenológica da sociedade que atribuía um caráter ontológico
para a mesma e para Scheibe uma nova leitura de Mead que diferenciava da
leitura metafísica da identidade que permitia atrelar a teoria de Mead com a
teoria analítica de Jung. É importante destacar que alguns conceitos destes
autores, principalmente Berger & Luckmann, continuam sendo utilizados
por Ciampa para estudar o sintagma identidade-metamorfose-emancipação.
Entendendo a importância e a riqueza do pensamento de George
Mead na concepção de identidade-metamorfose-emancipação desenvolvida
por Ciampa, apresentaremos uma visão acerca de suas idéias principais, que
serão retomadas a seguir, quando apresentarmos a teoria de Habermas, que
por sua vez, trará contribuições importantes para o estudo do sintagma
identidade-metamorfose-emancipação; no que se refere às re-leituras do
Materialismo Histórico, da socialização e individuação, assim como, o
paradigma da linguagem e o pensamento pós-metafísico.
119
4.2 – SIMULTANEIDADE DA SOCIALIZAÇÃO E INDIVIDUAÇÃO
DA IDENTIDADE EM G. H. MEAD
George Mead conseguiu desenvolver múltiplos conceitos a fim de
assegurar uma melhor compreensão da relação entre o indivíduo e a
sociedade. Sua teoria envolvendo a compreensão do processo de interação
social, da importância da linguagem e dos objetos físicos do mundo
material tornaram-se elementos centrais no processo de entendimento da
formação do self e da construção das identidades sociais. Assim como o
conceito de Outro generalizado, que caracteriza a teia coletiva, também
propicia saber como o indivíduo internaliza as regras sociais, garantindo sua
inserção na comunidade.
Para Mead o comportamento encontra sentido dentro do indivíduo;
quando se exterioriza, torna-se disposição para conduta. Para o autor, o
duplo caráter da experiência individual é o ato completo, que culmina com
a manifestação exterior da ação – o comportamento e sua extensão.
Somente ao adotar as condutas dos “outros” o indivíduo se socializa e pode
conseqüentemente se individualizar.
A consciência para Mead é social, sendo uma função e não uma
substância desenvolvida no cérebro. No início da socialização, o sujeito
compartilha um mesmo conceito dos objetos e isso possibilita a ação na
sociedade. Entende-se o enunciado de um objeto, porque existe uma
convenção de que o objeto é aquilo mesmo e isso faz com que as ações
dentro da sociedade sejam coerentes e organizem a vida social.
120
Sass, descrevendo esse processo, nos ensina que a diferença entre
uma criança e um cão no processo de condicionamento é que a criança
participa, atua no processo.187 Ao receber um estímulo, ela o utiliza
emitindo um som vocal e provocando reações em si mesma.
Em outras palavras, o cão pode responder ao estímulo verbal "cadeira"
mas não pode ele mesmo participar, por assim dizer, do condicionamento
de seus próprios reflexos; seus reflexos podem ser condicionados por
outro, mas não pode fazê-lo por si mesmo.188
Se entendemos a proposta do autor, em Mead o gesto estimula uma
reação em cadeia, pois a ação de um sujeito provoca a reação de outro que,
ao agir, provoca a ação de outro e assim sucessivamente. Desse modo, a
pessoa, somente ao criar e adotar uma certa atitude comportamental em seu
meio social, é capaz de gerar mudanças.
A linguagem e os gestos tem um lugar de destaque na obra de Mead,
pois criam um campo comunicacional que gera as informações necessárias
para o sujeito viver em sociedade e, assim, formar sua consciência.
Portanto, a comunicação entre sujeitos não aconteceria numa esfera mental,
mas nesse campo comunicacional, resultante da complexidade dos
processos sociais em que os indivíduos estão imersos.
Para Mead, a linguagem é algo que faz parte da conduta social.
Basicamente, ele procura mostrar como, a partir dos gestos, surgem os
187 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead 188 Ibid., p. 136.
121
sinais e os símbolos e, posteriormente, as convenções semânticas válidas
intersubjetivamente.189
Dentro desse processo de compartilhamento de "convenções
semânticas válidas intersubjetivamente", o sujeito vai se constituindo como
tal e, certamente, a apropriação dos significados das palavras se dá na
relação com o outro generalizado e na adoção das atitudes do outro.
Mead também traz a sua contribuição para que possamos entender
os papéis sociais; ao nos referirmos ao termo "papel social", é válido
respeitar as ressalvas feitas por Sass ao uso dessa expressão, pois se pode
cair em outras interpretações diferentes daquela proposta por Mead.
A referência de Mead ao papel (role) como uma atitude do ator, portanto,
como uma representação, não é casual. O termo não descreve
corretamente o que o autor quer dizer porque a representação de um
papel supõe um sujeito oculto que 'controla' o papel a ser representado;
quando a posição, ao contrário, é a de que o desempenho do papel é
constitutivo do sujeito, não há um sujeito oculto.
Evidentemente, em suas brincadeiras, a criança que desempenha
os papéis de mãe, pai, professor, médico, bandido ou mocinho, encarna
tais papéis em sentidos muito distintos daqueles adotados pelo adulto ou
pelo ator.190
Para Mead, é nos jogos infantis que a criança cria seus personagens
imaginários. Ao olhar para um pano e fazer uma boneca ou um gato, utiliza-
189 Rodrigo M. FERREIRA, O modelo do EU produzido socialmente em G.H. Mead, Psique, 9,
(15), p. 78. 190 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 202.
122
se de suas próprias reações aos estímulos para formar seu self, assim como
nos momentos em que a criança fala consigo mesma, imita os pais, os
parentes, os professores e os amigos. É por meio dos jogos que a criança
internaliza os papéis e organiza suas experiências numa seqüência temporal.
Essas breves observações são suficientes para introduzirmos a tese
central formulada por Mead acerca da adoção da atitude do outro pela
criança: as formas distinguíveis de apropriação do outro pela criança
decorrem da organização das suas atividades sociais e não por um
suposto material amadurecido biológico e intelectivo.191
Mead divide em duas etapas esse amadurecimento da criança, na
primeira fase, a criança entra em relação e se apropria do outro através de
suas próprias atitudes, não entrando em contato com o outro generalizado,
posteriormente a criança desenvolveria o jogo com regras, fase que é
marcada pela introdução dos regulamentos nos jogos da criança.
Essa etapa é conhecida por games justamente pela inclusão das
regras que determinam os padrões de comportamento dos participantes do
jogo. A regra, ao ser internalizada, faz com que o indivíduo funcione por si
só e que os participantes consigam atingir seus objetivos em conjunto e não
mais individualmente, não sendo mais necessária a regra coletiva para que
ela se estabeleça, pois é criada e mudada pelo próprio indivíduo.
Identificado também nas crianças de idade mais avançada, o jogo, tal
como é realizado no esporte, exige um nível mais complexo de
organização do self do que aquele exigível nas brincadeiras infantis
(play).
191 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 213.
123
Este é o segundo ardil que o homem aplica à natureza, porque não
mais se relaciona com seu outro 'fantasiado', um doublé, mas com um
seu outro organizado e generalizado.192
Dessa maneira, a atividade de interpretar os vários personagens
decorrentes de um jogo cumpre a função de organizar e estruturar o meio
exterior através de suas próprias reações e de ajustar a partir de si as
interpretações construídas, as quais não estão necessariamente ligadas à
representação do papel vivido por um adulto. Nessa etapa (game), a criança
organiza e estrutura o outro como um outro generalizado.
O EU E O MIM
Como apresentado anteriormente, o processo de socialização obteve
considerável destaque na obra de George Mead, que se dedicou
sobremaneira à compreensão das tramas sociais e da inserção do sujeito na
comunidade da qual faz parte.
O indivíduo socializado, integrado à realidade social, possui um self,
cuja manifestação se dá na afirmação de si ou na identificação do indivíduo
com o contexto coletivo. O self, desse modo, assegura a incorporação das
atitudes sociais, o que possibilita a socialização do indivíduo e a
constituição da sociedade.
Entendemos com o autor que para pertencer a um grupo social, todo
indivíduo reproduz gestos, símbolos e valores compartilhados socialmente.
192 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 205.
124
Essa capacidade de responder as condições sociais somente torna-se
possível a partir do desenvolvimento do self. Para Mead:
O self a que nos temos referido surge quando a conversão de gestos é
incorporada à conduta da forma individual. Quando essa conversão de
gestos pode ser incorporada à conduta do indivíduo, de modo que a
atitude das outras formas possa replicar com seu gesto correspondente e
de tal maneira provocar a atitude do outro em seu próprio processo, então
nasce um self.193
Sendo assim, definitivamente o self é a internalização das
experiências sociais – incorporação das regras sociais – moldando nosso
comportamento; e ao mesmo tempo, é ligado à consciência, sendo seu
caráter essencialmente cognitivo.
Mead entende que o self possui dois componentes que são
indissociáveis, o “eu” e o “mim”. O “mim” refere-se a internalização das
normas sociais, enquanto que o “eu” refere-se ao espontâneo, criativo. E seu
desenvolvimento ocorre na media em que tomamos a consciência de si e
temos o reconhecimento do outro. Então, “quando a reação do outro se
converte em parte essencial da experiencia ou conduta do indivíduo; quando
193 George H. Mead, Mind, Self and Society, p. 167. Tradução nossa: "The self to which we have
been referring arises when the convrsation of gestures is taken over into the conduct of the individual
form. When this conversation of gesture can be taken over into the individual´s conduct so that the
attitude of the other forms can effect the organism, and the organism can reply with its corresponding
gesture and thus arouse the attitude of the other in its own process, then self arises."
125
adotar a atitude do outro se torna parte essencial de sua conduta, então o
indivíduo aparece em sua experiencia como o self.”194
O “eu” é a reação espontânea frente a novas situações “é portanto
graças ao “eu” que dizemos nunca ter consciência plena do que somos , que
nos surpreendemos com a própria ação.”195 Sass vai dizer que o “eu” é a
fase: “que se exterioriza, reagindo à atitude dos outros”, enquanto que o
“mim” é a fase “que internaliza àquelas atitudes.”196 Enquanto o "mim"
exprime a convencionalidade, a tradição e a adaptação, o "Eu" indica a
novidade, a transgressão e a originalidade. “o ‘mim’ é o conjunto
organizado das atitudes dos outros que o indivíduo adota para si mesmo. As
atitudes dos outros constituem o mim organizado e então o indivíduo reage
a elas como um ‘eu’.”197
O self de Mead articula o passado, o presente e o futuro. “A sua fase
expressa pelo ‘mim’ está voltada ao passado; o ‘eu’ é a expressão presente
do que o sujeito projeta como futuro.”198 Sendo assim, o indivíduo não se
194 George H. Mead, Mind, Self and Society, p. 195, tradução nossa: "When the response of the
other becomes na essencial part in the experience or conduct of the individual; when taking the
attitude of the other becomes an essencial part in his behavior – then individual apperars in this own
experience as a self.” 195 Ibid., p. 174. Tradução nossa: "It is because of the "I" that we say that we are never fully aware
of what we are, that we surprise ourselves by our own action." 196 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 231. 197 George H. MEAD, Mind, Self and Society, p. 175. Tradução nossa: ""me" is the organized set of
the attitudes of the others which one himself assumes. The attitudes of the others constitute the
organized "me", and then one reacts toward that as an "I"." 198 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead. p. 234.
126
encontra completamente preso às determinações sociais, nas palavras de
Mead:
Em uma sociedade, deve encontrar-se em todos uma série de hábitos de
reações comuns, de qualquer maneira, pois a forma em que os indivíduos
atuam é o que origina todas as diferenças individuais que caracterizam as
diferentes pessoas. O fato de que tenham que atuar de certa maneira
comum, não as priva de originalidade.199
Mead também escreveu sobre as patologias do comportamento. Para
o autor, na medida em que o movimento do self é produzido pelo confronto
do “Eu” com o “Mim” – que ‘deveria’ ocorrer de forma que produza uma
unidade – , e que essa unidade nem sempre é possível – devido tanto às
condições externas, quanto as do próprio indivíduo – , sempre há o risco de
ocorrer dissociações da personalidade.
A razão não pode se tornar impessoal a menos que adote uma atitude
objetiva, uma atitude não afetiva para si; do contrário, nós temos
comente consciência e não consciência de si. É necessário a conduta
racional para que o indivíduo adote uma atitude objetiva e impessoal para
si mesmo, que se converta em objeto para si. Para o organismo individual
é obviamente um fato importante e essencial ou um elemento constituinte
da situação empírica em que ele atua; e sem adotar uma perspectiva
199 George H. MEAD, Mind, Self and Society, p. 198. Tradução nossa: “In a society there must be a
set of common organized habits of response found in all, but the way in which individuals act under
especific circumstances gives rise to all of individual differences which characterize the different
persons. The fact that they have to act in a certain common fashion does not deprive them
originality."
127
objetiva de si mesmo como tal, não pode agir inteligentemente ou
racionalmente.200
Sass vai inferir que os chamados “‘comportamentos desviantes’
podem ser analisados da óptica da história social”201, do modelo social do
self, contrariando a redução explicativa preponderante dos impulsos
sexuais.
O OUTRO GENERALIZADO
O conceito de outro generalizado desenvolvido por Mead, diz
respeito a influência da sociedade no desenvolvimento do self, essa
exercendo um controle sobre as condutas dos indivíduos e da introjeção
dessa influência nos indivíduos, sendo um movimento tanto externo,
quando interno. Dessa forma, é no pensamento abstrato que o indivíduo
adota a atitude do outro generalizado.
Portanto, é através da atividade abstrata do pensar que o indivíduo
estabelece uma conversação interna consigo mesmo, e relaciona-se
200 George H. MEAD, Mind,Self and Society, p. 138. Grifos do autor. Tradução nossa: "Reason
cannot become impersonal unless it takes an objective, non-affective, impersonal attitude toward
itself; other-wise we have just consciousness, not self-consciouness. And it is necessary to rational
conduct that the individual should thus he ism is obviously an essential and important fact or
constituent element of the impirical situation in which it acts; and without taking objective account of
itself as such, it cannot act intelligently, or racionally." 201 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 243.
128
diretamente com o ponto de vista do outro generalizado (que serve como
uma espécie de referencial de interlocução).202
Assim sendo, a criança reproduz comportamentos de grupos
organizados, internaliza atitudes particulares de indivíduos que participam
do ato social assim como, propiciando o pleno desenvolvimento do self,
incorpora e organiza a atitude do outro generalizado. Pelo fato de a criança
interpretar os papéis sociais e repeti-los para si mesma, ela forma o seu self.
Acrescente-se, agora, que o pai somente se realiza enquanto tal, na
particularidade do filho ou dos filhos; não há pai sem filho. Mas o filho
particular é concretamente um filho generalizado, posto que ele é
refletido pelo pai como um ser único na sua unidade é comparável a
todos os outros filhos, a começar por ele mesmo, pai, que outrora foi
filho.203
Para Mead as atividades lingüísticas seriam a última atividade na
organização do self, se referindo às construções simbólicas elaboradas pelo
sujeito através do gesto vocal e implicando a formação do pensamento. Nas
palavras de Sass:
Este é o terceiro ardil humano, que incorpora os anteriores e permite ao
homem internalizar conscientemente o mundo exterior, e suplantar a si
mesmo, convertendo a si mesmo, como consciência de si, no seu outro. É
o que Mead, e outros autores denominam de diálogo interiorizado.204
202 Rodrigo M. FERREIRA, O modelo do EU produzido socialmente em G.H. Mead, “Psique” 9
(15), p. 83. 203 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 245. 204 Ibid., p. 205.
129
Quanto à sua natureza, o outro generalizado pode ser: 1) um
indivíduo que encene uma função da sociedade, 2) um agrupamento social e
até mesmo, 3) objetos físicos205, os dois primeiros casos foram explicitados
nas páginas anteriores, este último refere-se a materialidade.
A MATERIALIDADE EM MEAD
Para Mead, a resistência do corpo humano assemelha-se à
resistência da coisa material. O homem interioriza o objeto concreto,
tornando o “eu” um ser físico, um “self-coisa”, materializado. Ele só
consegue perceber-se como provável “coisa” física, quando age sobre os
objetos e experimenta a resposta que eles dão no momento em que são
pressionados.
A capacidade do ser humano ver-se a si mesmo como objeto no campo
de sua própria experiência, assim como sua habilidade para raciocinar ou
pensar se dá inelutavelmente na intersecção que se estabelece entre três
sistemas os estratos de realidade: o inorgânico, o orgânico e o sistema
social humano. Os objetos são relevantes porque permitem a definição de
um self encarnado ou corporificado dentro de um ambiente concreto.206
205 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 246. 206 Miquel DOMÉNECH, Lupicinio IÑGUEZ & Francisco TIRADO, George Herbert Mead y la
Psicologia Social de los objetos, “Psicologia & Sociedade”,15, (1), p: 22. Tradução nossa: “la
capacidad del ser humano para verse a sí mismo como objeto en el campo de su propia experiencia,
así como su habilidad para razonar o pensar se da ineluctablemente en la intersección que se
estabelece entre tres sistemas o estratos de realidade; lo inorganico, lo organico y el sistema social
humano. Los objetos son relevantes porque permiten la definición de un ‘self’encarnado o
corporeizado dentro de um ambiente concreto.”
130
É a ação que incide sobre o objeto que o traz à existência. Ele se
torna real nos atos sociais, visto que nessas circunstâncias é percebido e
manipulado. Ele só existe quando é tocado pelas mãos humanas. O ato
coletivo o materializa, caracterizando, dessa forma, uma experiência
imediata. No entanto, mesmo o objeto que não se faz presente, que se
encontra distante fisicamente, sendo inacessível à manipulação física, pode
entrar em contato com o sujeito por meio da ação reflexiva, baseada na
percepção que resulta do ato presente. O corpo distante é convertido num
corpo próximo e presente. O indivíduo pode, portanto, viabilizar uma
experiência de contato com um objeto fisicamente distante, quando assume
uma atitude reflexiva, que torna a matéria real.
Na experiência de contato, o objeto é alcançado pelo ato, mesmo que
esteja localizado num passado longínquo e num lugar inacessível. O
indivíduo pode se aproximar dele, porque a temporalidade e a espacialidade
não constituem obstáculos ao contato com o objeto. É desse encontro
possibilitado pelo ato humano que a coisa adquire materialidade, passando a
existir. A constituição do self e a formação das identidades sociais, por sua
vez, são decorrência do agir material mediado pela linguagem, que fornece
contornos físicos ao corpo humano e ao self.
A possibilidade de consciência individual de si mesmo como entidade
separada e localizada em um tempo e um espaço emerge quando esta se
confronta com o mundo dos ‘outros’ e o mundo das coisas.207
207 Miquel DOMÉNECH, Lupicinio IÑGUEZ & Francisco TIRADO, George Herbert Mead y la
Psicologia Social de los objetos, “Psicologia & Sociedade”,15, (1), p. 23. Tradução nossa: “La
131
Com isso, apresentamos as principais idéias de Mead acerca da
socialização e individuação. Mas antes de prosseguir nosso trabalho –
trazendo inclusive as contribuições de Habermas a respeito da obra de
Mead –, vale a pena trazer as considerações feitas por Sass referentes à
teoria social desenvolvida por Mead. Segundo Sass, a teoria de Mead torna-
se “sugestiva porque torna indissociável o desenvolvimento do indivíduo e
a organização democrática da sociedade. A liberdade e o pleno
desenvolvimento do indivíduo pressupõem instituições sociais democráticas
que impulsionaram e favorecem a perseguição àquelas utopias do
homem.”208 Sendo assim, o autor vai concluir que “a dimensão psicológica
do homem é constitutiva da ordem social e não um simples atributo
opcional ou algo exterior às análises sobre a sociedade.”209
Tendo apresentado, mesmo que de forma não aprofundada, algumas
das principais idéias da teoria de Mead, traremos as contribuições de Jürgen
Habermas. Segundo este autor, “a única tentativa promissora de apreender
conceitualmente o conteúdo pleno do significado da individualização social
encontra-se na psicologia social de G. H. Mead”210 e observa que “no
campo da moral, se Dewey tivesse levado em conta as considerações de seu
amigo George Herbert Mead sobre a assunção de perspectivas nas
possibilidad de conciencia individual del mismo como entidad separada y localizada en un tiempo y
un espacio emerge cuando ésta se confronta com el mundo de los ‘otros’ y el mundo de las cosas.” 208 Odair SASS, Crítica da razão solitária: a psicologia social de George Herbert Mead, p. 255-
256. 209 Ibid., 256. 210 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 185
132
interações sociais, teria podido ir mais longe.”211 Contudo, mesmo
entendendo a importância das contribuições de Mead, Habermas apresenta
algumas ressalvas à teoria, que serão colocadas a seguir.
4.3 – A APROPRIAÇÃO DOS CONCEITOS DE MEAD POR J.
HABERMAS
Antes de continuarmos é importante explicitar que as críticas feitas
por Jürgen Habermas ao trabalho de Mead, não têm o intuito de ‘superar’ a
teoria, mas sim ‘atualizá-la’, para que possa ser introduzido na teoria da
ação comunicativa, desenvolvida pelo autor e que será apresentada ainda
neste capitulo.
Primeiramente a ressalva feita por Habermas é direcionada para o
termo “behaviorismo social”, dado pelo próprio Mead. Habermas diz que o
modelo pelo qual Mead desenvolve sua teoria não é do comportamento de
um organismo que reage a estímulos a sua volta, mas sim o da interação
entre dois organismos reagindo um ao outro, tornando inadequada essa
denominação. Em segundo lugar, quando Mead refere grande importância
ao efeito de conduta do grupo social, na identidade e conduta do indivíduo,
Habermas comenta que Mead deixa transparecer um certo condutivismo
social em seu pensamento, dando ênfase no peso que o social teria na
constituição do self; obviamente Mead percebeu também a importância das
atitudes individuais e os reflexos na sociedade, mas para Habermas, este
não teria explorado muito este viés, correndo o risco de trazer a metafísica
pela porta de trás. 211 Jürgen HABERMAS, Era das transições, p. 181.
133
Habermas, diferente de Mead, nos mostra que existe um “equilíbrio”
no desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, inovando quando
apresenta a simultaneidade desse processo, por meio do médium da
linguagem.
Outra ressalva dirigida ao trabalho de Mead feita por Habermas,
dirige-se ao modo como o autor considera a comunicação lingüística. Nesse
ponto, Habermas diz que Mead privilegia os aspectos da coordenação da
ação e de socialização dos indivíduos, se esquecendo do “consenso”
apresentado pela linguagem.
Desta maneira, a diferença entre Habermas e Mead sobre a teoria da
comunicação lingüística aconteceria na medida em que este último
considera a comunicação sob dois aspectos (interação social e socialização
individualizada), enquanto Habermas, além desses aspectos, considera o
“consenso” como mantenedor e renovador do saber cultural.
Para Habermas, Mead consegue apresentar uma alternativa para a
individuação, que em Hegel dependeria da subjetivação crescente do
espírito, caindo assim na metafísica; quando propõe que o indivíduo seria
resultado da socialização e individuação e que esse processo aconteceria
mediado pela linguagem, através de abstrações, expectativas múltiplas e
contraditórias, dando uma diferenciação do indivíduo, pois “a linguagem
presta-se tanto à comunicação quanto a representação; e o proferimento
lingüístico é, ele mesmo, uma forma de agir que serve ao estabelecimento
134
de relações interpessoais.”212 Assim, ao aprender a seguir normas de ação e
ao adotar cada vez mais papéis, adquire a capacidade generalizada de
participar em interações normativamente reguladas.
Habermas diz ainda que Mead tem outro mérito, o de ter acolhido
certos motivos encontrados em Humboldt e Kierkegaard, que “a
individuação não é representada como a auto-realização de um sujeito auto-
ativo na liberdade e na solidão, mas como um processo lingüisticamente
mediado da socialização e, ao mesmo tempo, da constituição de uma
história de vida consciente de si mesma.”213 Possibilitando entender a
Identidade como resultante da simultaneidade socialização e individuação
desenvolvida por meio lingüístico com outros e no meio do entendimento
intra-subjetivo-histórico-vital consigo mesmo. Portanto, uma
individualidade que “forma-se em condições de reconhecimento
intersubjetivo e de auto-entendimento mediado intersubjetivamente.”214
A concepção de self, assim como, as noções de ‘mim’ e de ‘eu’
desenvolvida por Mead também contribuíram para compreensão de
desenvolvimento individual da Identidade feita por Habermas. “Por via da
internalização dos papéis sociais se forma uma estrutura de super-ego cada
vez mais integrada, que permite ao agente orientar-se por pretensões
normativas de validez. Ao tempo este super-ego – o mim – se forma o Eu –
o eu –, o mundo subjetivo das vivências com que cada um tem acesso
212 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação: ensaios filosóficos, p. 09. 213 IDEM, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 186. 214 Ibid., p. 187.
135
privilegiado.”215 Essa tensão entre o ‘mim’ e o ‘eu’ faz com que seja
impossível pensarmos em identidade estática, ou idêntica a si mesma.
Apresentada a importância dos conceitos desenvolvidos por Mead na
teoria de Habermas, falaremos sobre a guinada lingüística, a teoria do agir
comunicativo e o pensamento pós-metafísico, dentro da perspectiva
habermasiana.
A GUINADA LINGUISTICA E O PENSAMENTO PÓS-
METAFÍSICO
A guinada lingüística trazida por Habermas refere-se a substituição
do paradigma da consciência, pela linguagem como critério de
racionalidade por excelência. No trabalho “Técnica e ciência enquanto
ideologia”216, aponta o lugar central que a linguagem viria a ocupar em sua
teoria. O motivo dessa mudança teria sido pelo fato do autor buscar outra
forma de racionalidade que fugisse da unilateralidade da dimensão
cognitiva e permitisse estabelecer um conceito mais amplo de razão. Uma
razão que, por ser comunicativa, somente poderia se apresentar como uma
pluralidade de funções e apresentando pretensões de validade diversas.
215 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo II, p. 62-63. Tradução nossa:
“Por vía de internalización de roles sociales se forma una estructura de super-ego cada vez más
integrada, que permite al agente orientarse por pretensiones normativas de validez. El tiempo que
este super-ego – el Me – , se forma el yo – el I – , el mundo subjetivo de las vivencias a las que cada
uno tiene acceso privilegiado.” 216 Jürgen HABERMAS, Técnica e ciência enquanto ideologia, Coleção os Pensadores – História
das grandes idéias do mundo ocidental. (publicado originalmente em 1968)
136
Para a realização desse projeto Habermas assume um “conceito de
razão cético e pós-metafísico, mas não derrotista”, “(...) em continuidade
com a tradição kantiana e um nível filosófico lingüístico”217, buscando uma
posição intermediária entre o fundamentalismo metafísico e o relativismo
contextualista. A racionalidade para Habermas não é uma obrigação.
“Mesmo à vista da conduta moral ou legal, a suposição de racionalidade
não tem o sentido de cumprimento das normas a que a outra se sente
obrigada; lhe é imputado apenas um saber do que significa agir
autonomamente.”218 Por metafísica, Habermas entende o pensamento desde
Platão que trabalha com a “doutrina da unidade do todo; a teoria tem como
alvo o uno na condição de origem e fundamento do todo.”219, base das
filosofias do sujeito e da consciência. O aspecto pós-metafísico da filosofia
de Habermas deriva principalmente de sua disposição em empregar uma
estrutura intersubjetiva, tendo o ‘mundo da vida’ como referente onde se
fazem as normas e é gerada a verdade.
A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO
O processo de modernização, segundo Weber, havia se caracterizado
pela dominância da razão instrumental da ciência e tecnologia sobre as
outras esferas sociais. Habermas, buscando uma saída para esse pessimismo
demonstra como o potencial racional implícito na fala, a partir das
condições formais de entendimento, foi reprimido sistematicamente pelos
imperativos sistêmicos. Propondo a utilização do paradigma da linguagem
217 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 152. 218 IDEM, Agir comunicativo e razão destrancendentalizada, p. 50. 219 IDEM, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 151.
137
em substituição ao paradigma da consciência, utilizado até então pelos
teóricos da Escola de Frankfurt. Essa tomada de decisão foi fundamental
para que o autor pudesse constituir sua teoria de sociedade que é
apresentada, principalmente, em sua obra: Teoria da Ação Comunicativa de
1981. Neste trabalho Habermas discute, entre outros aspectos, os quatro
modos de ação: 1) teleológico, 2) regulado por normas, 3) dramatúrgico e
4) comunicativo.
1) Ação Teleológica é desenvolvida quando um ator realiza um fim
ou faz que se produza o estado de coisas utilizando meios racionais e
aplicando-os de maneira adequada. “O conceito central é o de uma decisão
entre alternativas de ação, endereçada a realização de um propósito, dirigida
por máximas e apoiadas em uma interpretação da situação.”220 O agir
teleológico se amplia e se converte em agir estratégico quando o cálculo de
um agente faz com que seu êxito intervenha nas expectativas de decisões de
ao menos outro agente, ou seja, quando a ação passa a ser voltada a fins. 2)
Ação regulada por normas não se refere ao comportamento de um ator
solitário, mas sim, de um ator com membros de um grupo social que
orientam sua ação por valores comuns. “O ator particular observa uma
norma (ou a viola) tão pronto como uma situações dada se dão as condições
a que a norma se aplica.”221 3) A Ação Dramaturgica, “não faz referencia
primariamente nem a um ator solitário nem ao membro de um grupo social,
senão a participantes em uma interação que constituem de uns para os
220 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 122. Tradução nossa: “El
concepto central es el de una decisión entre alternativas de acción, enderezada a la realización de un
propósito, dirigida por máximas y apoyada en una interpretación de la situación.” 221 Ibid., p. 123. Tradução nossa: “El ator particular observa una norma (o la viola) tan pronto como
en una situación dada se dan las condiciones a que la norma se aplica.”
138
outros um público ante ao qual se põe a si mesmos em cena.”222 O ator
suscita uma determinada imagem para o público, uma determinada
impressão de si mesmo, tentando desvelar o propósito de sua subjetividade.
4) Ação Comunicativa que se refere a “interação dos mesmos dois sujeitos
capazes de linguagem e de ação que (seja com meios verbais ou com meios
extra verbais) enquadram uma relação interpessoal.”223 Os atores buscam
entender-se sobre uma situação de ação para poder assim coordenar de
comum acordo seus planos de ação e com ele suas ações.
Com isso Habermas nos mostra que além da razão instrumental
apontada por Weber, haveria uma razão comunicativa, fundada na
linguagem, que se expressaria na busca do consenso entre os indivíduos,
por intermédio do diálogo.
Com Max Weber, podemos de modo geral definir as ações sociais pelo
fato de agentes, na perseguição de seus próprios planos de ação, também
se orientarem pelo agir esperado de outras pessoas. Falamos então de agir
comunicativo quando agentes coordenam seus planos de ação mediante o
entendimento mútuo lingüístico, ou seja, quando eles os coordenam de
tal modo que lançam mão das forças de ligação ilocucionárias próprias
dos atos de fala. No agir estratégico esse potencial de racionalidade
222 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 123. Tradução nossa: “no
hace referencia primariamente ni a un actor solitario ni al miembro de un grupo social, sino a
participantes en una interacción que constituyen los unos para los otros un público ante el cual se
ponen a si mesmo en escena.” 223 Ibid., p. 124. Tradução nossa: “interacción de a lo menos dos sujetos capaces de lengueje y de
acción que (ya sea com medios verbales o com medios extra-verbales) entablan una relación
interpesonal.”
139
comunicativa permanece inutilizado, mesmo quando as interações são
lingüisticamente medidas.224
Mesmo no agir comunicativo podemos encontrar dois sentidos, um
sentido fraco e um sentido forte. Por agir comunicativo no sentido fraco,
Habermas entende que ocorre quando “o entendimento mútuo se estende a
fatos e razões dos agentes para suas expressões de vontade unilaterais”225, e
refere-se ao agir comunicativo no sentido forte “tão logo o entendimento
mútuo se estende às próprias razões normativas que baseiam a escolha dos
fins.”226
Na base do agir comunicativo em sentido fraco está a suposição de um
mundo objetivo que é o mesmo para todos; no agir comunicativo em
sentido forte, os envolvidos contam ademais com um mundo social
intersubjetivamente partilhado por eles.227
No agir comunicativo no sentido fraco, os agentes são orientados
apenas pelas pretensões de verdade e veracidade, ao passo que, no agir
comunicativo de sentido forte, é atribuído a esses elementos as pretensões
de correção intersubjetivamente reconhecidas. “Nesse caso, pressupõe-se
não só livre-arbítrio, mas também autonomia no sentido de liberdade e de
determinar a vontade própria com base em discernimentos normativos.”228
224 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação: ensaios filosóficos, p. 118. 225 Ibid., p. 118. 226 Ibid., p. 118. 227 Ibid., p. 120 228 Ibid., p. 118
140
O contraste entre a forma de racionalidade cognitivo-instrumental e
uma racionalidade comunicativa só aparece quando alguém se apega ao
aspecto puramente descritivo do conhecimento, sem levar em conta todo o
trabalho interpretativo que pode revelar a maior ou menor racionalidade das
expressões.
Os indivíduos agindo comunicativamente se tratam literalmente
como falantes e destinatários, nos papéis da primeira e segunda pessoa, no
mesmo nível de olhar. “Contraem uma relação interpessoal, na qual se
entendem sobre algo no mundo objetivo e admitem os mesmos referentes
mundanos. Nessa posição performativa, diante do pano de fundo de um
mundo da vida intersubjetivamente compartilhado, fazem simultaneamente,
uns para os outros, experiências comunicativas entre si.”229
Os modos de ação se distinguem segundo orientações básicas que
correspondem à coordenação por interesses e por acordos normativos.
Esquematicamente, Habermas os apresenta da seguinte maneira:
Tabela 6 – Tipos de Ação230
Orientação da ação Situação da ação
Ação orientada ao êxito
Ação orientada ao entendimento
Não-Social
Ação Instrumental
____________
Social
Ação estratégica
Ação Comunicativa
229 Jürgen HABERMAS, Agir comunicativo e razão destrancendentalizada, p. 53. 230 Figura 14 apresentada em Jürgen Habermas, Teoria de la Acción Comunicativa, p. 366.
141
Sendo explicado da seguinte forma: 1) Ação orientada ao êxito que é
chamada instrumental ocorre quando é observado o baixo aspecto das
regras de ação técnica e avaliamos o grau de eficácia dessa intervenção nos
diferentes estados e coisas; se esta ação for direcionada para o êxito com
uma baixa observância de regras e avaliamos que seu grau de influência nas
decisões sobre outros indivíduos é alta, negando muitas vezes, ou ainda
manipulado a vontade desses, essa forma de ação passa a ser entendida
como estratégica. Já as ações comunicativas são desenvolvidas quando
planos de ação dos atores implicados são coordenados entre si mediante o
entendimento. 2) Orientação voltada para o êxito vs. Orientação voltada
para o entendimento: ao definir ação estratégica e ação comunicativa como
dois tipos de ação distintos, não se pretende designar somente “dois
aspectos analíticos de uma mesma ação que podem explicar como um
processo de recíproca influência por parte de oponentes que atuam
estrategicamente, de um lado, e como processo de entendimento entre
membros de um mesmo mundo da vida, de outro.”231 Mas sim, que são as
ações concretas que podem distinguir-se segundo as perspectivas que os
participantes adotem, “ou bem uma atitude orientada ao êxito, ou bem uma
atitude orientada ao entendimento; devendo estas atitudes, nas
circunstancias apropriadas, poderem ser identificadas à base do saber
intuitivo dos participantes.”232
231 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 367. Tradução nossa: “no solamente pretendo designar dos aspectos analíticos bajo los qe ma misma acción pudiera descrebirse como um processo de recíproca influencia or parte de oponentes que actúan estratégicamente, de un lado, y como proceso de entendimiento entre miembros de uns mismos mundo de la vida, de outro.”
232 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 367-368. Tradução
nossa: “o bien una actitud orientada al éxito, o bien una actitud orientada al entendimiento; debiendo
142
Ao propor a Razão Comunicativa, Habermas pressupõe um mundo da
vida compartilhado, evidente ou preconcebido, e que implica um certo grau
de entendimento. A reificação ou a ‘colonização do mundo da vida’
ocorrerá na medida em que o espaço da experiência seja reduzido e, mais
ainda, quando existir uma menor capacidade de questionar o consenso
adquirido.
O MUNDO DA VIDA
A condição de existência do entendimento e a fonte de racionalização
comunicativa são desenvolvidas em um mundo intersubjetivo,
implicitamente consciente em cada indivíduo. Esse mundo é denominado
por Habermas como "mundo da vida"; que é constituído pelos elementos da
cultura, sociedade e personalidade. A Cultura como reserva do
conhecimento alimentada pelas interpretações lingüísticas e pela tensão
entre os conteúdos da tradição e da modernidade; a Sociedade233 composta
de ordens legítimas, as quais os participantes de processos comunicativos
regulam seu pertencimento a grupos sociais e Personalidade como um
conjunto de motivações que inspiram o indivíduo à ação e produz
Identidade.
estas actitudes, en las circunstancias apropiadas, poder ser identificadas a base del saer intuitivo de
los participantes mismos.” 233 Utilizada por Habermas tanto para designar a formação social como um todo, quanto para se
referir a parcela que esta ocupa na produção da solidariedade.
143
O mundo da vida apresentado por Habermas é uma espécie de pano
de fundo compartilhado intersubjetivamente. Estruturado através das
tradições, instituições, identidades surgidas a partir dos processos de
socialização e individualização e mediadas pela linguagem.
Habermas também vai dizer que o mundo da vida sofre uma forte
influência de uma razão instrumental que predominaria no "sistema", isto é,
nas esferas da economia e da política (Estado) que, no processo de
modernização capitalista, acabou dominando e "colonizando" o mundo da
vida. Os termos ‘pano de fundo’ , ‘primeiro plano’ e ‘recorte do mundo da
vida relevante para a situação’, só fazem sentido se adotarmos a perspectiva
de um falante que deseja entender-se com outro sobre algo no mundo e que
pode apoiar a plausibilidade da oferta de seu ato de fala sobre uma massa de
saber não temático, partilhado intersubjetivamente.
Os componentes do mundo da vida resultam da continuidade do saber
válido, da estabilização de solidariedades grupais, da formação de atores
responsáveis e se mantém através deles. A rede da prática comunicativa
cotidiana espalha-se sobre o campo semântico dos conteúdos simbólicos,
sobre as dimensões do espaço social e sobre o tempo histórico,
constituindo o meio através do qual se forma e se produz a cultura, a
sociedade e as estruturas da personalidade.234
Isso não quer dizer que interações estratégicas não possam surgir no
interior do mundo da vida, principalmente quando se tratam de ações
comunicativas fracassadas.
234 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 96.
144
Quando isso ocorre o mundo da vida que serve como pano de fundo é
neutralizado, principalmente “quando se trata de vencer situações que
caíram sob imperativos do agir orientado pelo sucesso; o mundo da vida
perde sua força coordenadora em relação à ação, deixando de ser fonte
garantidora do consenso.”235
Tendo clareza dessas dificuldades, o projeto filosófico de Habermas é
tentar resgatar o potencial emancipatório da Razão. Defende que a
Modernidade é um projeto inacabado236 e recusa a redução da idéia de
racionalidade à racionalidade instrumental-cognitiva da ciência que
dominaria as esferas da racionalidade prático-moral (direito) e da
racionalidade estético-expressiva (arte). Para ele, é necessário fazer cessar a
"reificação" e a "colonização", exercida pelo "sistema" sobre o "mundo da
vida", mediante a lógica dialogal da ação comunicativa.
Para isso Habermas, apresenta uma síntese sobre a eticidade que as
instituições devem apresentar, quando pretendem ter uma
representatividade pública, “a eticidade substancial das instituições pretende
ter autoridade superior à das simples idéias e interpretações das pessoas
morais individuais. E a forma pior de hipocrisia se dá, quando um sujeito
obnubilado, apelando para uma ‘vontade que é somente para si mesma’,
luta contra o bem objetivamente existente.”237
Visualizar a sociedade enquanto esfera simultaneamente pública e
política, na qual a explicação da ação social se articularia com o movimento
235 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos, p. 97. 236 IDEM, Modernidade um projeto inacabado, Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen
Habermas: Arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. 237 IDEM, Era das transições, p. 83.
145
político de defesa da sociedade contra a penetração dos subsistemas nas
formas comunicativas de ação, faz o autor inferir que:
(...) a questão consiste, precisamente, em saber como as formas de
representação e as práticas de instituições contemporâneas afetam os
ânimos: se as encenações simbólicas conseguem criar obrigatoriedades
através de suas ficções normativas, ou se elas apenas reforçam pretensões
de validade normativas, ou seja, contribuem para que certas idéias
obtidas de modo racional lancem raízes nos motivos e na consciência dos
participantes.238
Essa preocupação torna-se necessária para Habermas na medida em
que “o poder comunicativo somente é formado nos espaços públicos que
estabelecem relações comunicativas sobre a base de um reconhecimento
recíproco e que possibilitam o uso de liberdades comunicativas, quer dizer,
posicionamentos espontâneos de tipo positivo/negativo, respeito aos temas,
razões e informações a tratar.”239 Assim, quando as relações comunicativas
são impossibilitadas e as formas individualizadoras de uma subjetividade
são diminuídas “surgem massas de indivíduos isolados, ‘abandonados uns
dos outros’ que, precisamente então, tornam-se susceptíveis de ser
doutrinados e postos em movimento por chefes plebicitários e ser movidos
a ações de massa.”240
238 Jürgen HABERMAS Era das transições, p. 86. 239 IDEM, Más allá del Estado Nacional, p.160. Tradução nossa: El poder comunicativo sólo se
forma en espacios que estabelecen relaciones comunicativas sobre la base de un reconocimiento
recíproco y que possibilitan el uso de libertades comunicativas, es decir, posicionamentos
espontáneos de tipo positivo/negativo, respecto a los temas, razones e informaciones atratar. 240 Jürgen HABERMAS, Más allá del Estado Nacional, p. 161. Tradução nossa: surgen massas de
individuos aislados, “abandonados unos de otros que, precisamente entonces, resultan susceptibles de
146
A CONCEPÇÃO DA IDENTIDADE EM HABERMAS
Sendo um pensador com origens na Escola de Frankfurt, Habermas
apresenta um grande interesse no indivíduo. Apropriando-se das críticas
feitas por Adorno à Psicanálise e de Marcuse no que se refere ao conceito
freudiano no qual os controles sociais provinham da tensão entre
carecimentos pulsionais e os carecimentos sociais, ou seja, “as pulsões
como motor da história”; “teria esquecido que acabamos de adquirir
privativamente o conceito de impulso pulsional, única e exclusivamente, a
partir da deformação da linguagem e da patologia do comportamento.”241
Habermas vai dizer que foi “precisamente essa batalha intrapsíquica que se
tornou obsoleta na sociedade totalmente socializada, que – por assim – evita
a família e imprime diretamente na criança os ideais coletivos do Eu.”242
O autor infere que de modo semelhante Adorno já havia argumentado
que a “psicologia não é de modo algum uma reserva do particular protegida
contra o universal. Quanto mais crescem os antagonismos sociais, tanto
mais perde evidentemente sentido o próprio conceito – inteiramente
individualista e liberal – da psicologia. O mundo pré-burguês ainda não
conhece a psicologia; o mundo totalmente socializado não a conhece mais.
(...) O poder social não tem praticamente mais necessidade das mediações
do eu e da individualidade. Isso se manifesta precisamente na forma de um
ser adoctrinados y puestos en movimiento por cadillos plebiscitarios y ser movidos a acciones de
masas. 241 Jürgen HABERMAS, Para reconstrução do Materialismo Histórico, p. 207. 242 Ibid., p. 51.
147
incremento da chamada psicologia do Eu, enquanto, na realidade, a
dinâmica psicológica individual é substituída pela adaptação, em parte
consciente, em parte regressiva, do indivíduo à sociedade.”243 Não iremos
discutir aqui a tese do fim do indivíduo, o interesse em trazer as
contribuições de Adorno acerca da identidade e Psicanálise devem-se a
retomada desses conceitos por Habermas na sua concepção de Identidade.
Diferente de seus antecessores Adorno e Horkheimer, que segundo
Habermas: “se deixaram seduzir – levados por uma percepção
excessivamente rica e por uma interpretação excessivamente simplificadora
de certas tendências – pela tentativa de desenvolver um pendant da
esquerda à teoria (popular na época deles) do poder totalitário”244; investe
seus estudos na emancipação social, na autonomia do Eu e apontando a
importância da psicanálise como uma análise da linguagem que
possibilitaria compreender a intersubjetividade dos atos.
Habermas entende que o conceito de Identidade do Eu não tem um
sentido descritivo, indicando uma organização simbólica do Eu, que, por
um lado, reclama uma normatividade que possibilite soluções dos
problemas, mas que por outro, não se instaura de modo regular, dificultando
um ‘equilíbrio’ no desenvolvimento.
243 Theodor W. ADORNO, Acerca de la relación entre sociologia y psicologia, Teoria Crítica del
Sujeto, p. 73. Tradução nossa: “La psicologia no es ninguna reserva de lo particular resguardada de lo
general. Cuanto más crecen los antagonismos sociales, tanto más evidentemente pierde sentido el
concepto individualista y liberal de punta a cabo de la misma psicologia. El mundo preburgés no
conocía aún la psicologia; el totalmente socializado no la conoce ya. (...) El poder social ya casi no
necesita las agencias mediadoras del yo y la individualidad, lo cual se manifesta precisamente en el
crecimiento de la llamada psicologia del yo, mientras, en realidad, la dinâmica psicológica individual
es sustituida por la adaptacíon, en parte consciente y en parte regressiva, del individuo a la sociedad.” 244 Jürgen HABERMAS, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 51.
148
Ou seja, “o transito desde a interação mediada simbolicamente a
interação regulada por normas não só possibilita passar a um entendimento
modalmente diferenciado. Não só significa a construção de um mundo
social, mas também a reconstrução simbólica dos motivos de ação. Desde o
ponto de vista da socialização da criança, este processo de socialização
(Vergesellschaftung) se apresenta como formação de uma identidade.”245
Habermas vai explorar o conceito de Identidade em Para
Reconstrução do Materialismo Histórico, texto que também pode ser visto
como uma ‘releitura’ do Materialismo Histórico, ao apontar a evolução da
ação simbólica ou das estruturas de comunicação que agora
complementariam o desenvolvimento dos modos de produção ou das
esferas instrumentais de ação; neste trabalho vai desenvolver sua leitura
acerca da identidade do Eu, após estudar três diferentes tradições teóricas:
“psicologia analítica do Eu (H. S. Sullivan, Erikson); na psicologia
cognoscitiva do desenvolvimento (Piaget, Kohlberg); e na teoria da ação
definida pelo interacionismo simbólico (Mead, Blumer, Goffman etc)”,
concluindo que apesar dessas concepções de base convergentes tentarem
demonstrar uma teoria do desenvolvimento, nenhuma dessas apresentou-a
de modo convincente, de modo que permitisse definir de modo exato e
empiricamente a identidade do Eu. Habermas também vai afirmar que as
patologias da modernidade seriam resultantes das distorções lingüísticas.
245 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo II, p. 62. Tradução nossa: “El
tránsito desde la interacción mediada simbólicamente a la interacción reguilada por normas no sólo
posibilita el paso a un entendimiento modalmente diferenciado. No sólo significa la construcción de
un mundo social, sino también la reestructuración simbólica de los motivos de la acción. Desde el
punto de vista de la socialización del niño, este lado del proceso de socialización
(Vergesellschaftung) se presenta como formación de una identidad.”
149
Neste sentido aponta a importância da Psicanálise como análise da
linguagem, que por sua vez possibilita compreender a intersubjetividade dos
atos. presenta então, o modelo de desenvolvimento moral desenvolvido por
Kohlberg246, cujas noções segundo Habermas “satisfazem as condições
formais de uma lógica do desenvolvimento”247, nos dizendo que “o
discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas,
mas para o exame de validade de normas consideradas hipotéticamente.”248
Para Kohlberg o desenvolvimento moral ocorreria em três níveis, passíveis
de verificação, são eles: 1) Nível Pré-Convencional: no qual o ‘correto’ é a
obediência literal às regras e à autoridade, evitar o castigo e não fazer mal
físico; 2) Nível Convencional: no qual o ‘correto’ é desempenhar o papel de
uma pessoa boa (amável), é preocupar-se com as outras pessoas e seus
sentimentos, manter-se leal e conservar a confiança dos parceiros e estar
motivado a seguir regras e expectativas e 3) Nível Pós-Convencional: onde
as decisões morais são geradas a partir de direitos, valores ou princípios
com que concordam (ou podem concordar) todos os integrantes compondo
ou criando uma sociedade destinada a ter práticas leais e benéficas.
Habermas também apresenta o desenvolvimento da identidade Eu;
que passaria por três momentos distintos: identidade natural, identidade de
papel e identidade do Eu. A identidade natural seria referente ao primeiro
estágio do desenvolvimento; a “criança, abandonando a fase simbiótica e
tornando-se (num primeiro momento, na perspectiva da penalidade e da
246 Um detalhamento dos níveis de desenvolvimento moral pode ser encontrado em Jürgen
HABERMAS, Consciência Moral e Agir Comunicativo, p. 152-154. 247 Jürgen HABERMAS, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 55. 248 IDEM, Consciência Moral e Agir Comunicativo, p.148.
150
obediência) sensível a pontos de vistas morais, aprendeu nesse momento a
distinguir entre si e seu corpo e o ambiente, embora não seja ainda capaz de
separar rigorosamente, nesse ambiente, os objetos físicos dos objetos
sociais”249, nesse primeiro nível os atores ainda não estariam inseridos no
universo simbólico, sendo que suas ações podem ser imputadas.
Habermas diz que na medida que a criança é socializada, e incorpora
o universo simbólico intersubjetivo, de papéis fundamentais de seu
ambiente natural (filho, irmão, neto, etc), e mais tarde grupos mais amplos
(vizinho, amigo, aluno), superpõe-se a sua Identidade Natural a Identidade
de Papel. Embora esse nível já aponte uma diferenciação frente aos outros
indivíduos, “os atores revelam-se como pessoas de referência dependentes
de papéis e, mais tarde, também como anônimos portadores de papéis.”250
Ao buscar a independência da Identidade de Papel, o sujeito desenvolve a
Identidade do Eu, que se expressa deforma paradoxal na medida que “o Eu,
como pessoa em geral, é igual a todas as pessoas, ao passo que – enquanto
indivíduo – é diverso de todos os demais indivíduos.”251
Habermas entende que somente neste terceiro nível “os portadores de
papéis se transformam em pessoas, que podem afirmar a própria identidade
independente dos papéis concretos e de sistemas particulares de normas”252,
transformando-se de fato em autores de sua história de vida, podendo dizer
‘eu’ de si mesmas.
Ao Articular estas duas concepções de desenvolvimento individual,
Habermas apresenta um esquema no qual adiciona mais um nível de
249 Jürgen HABERMAS, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 62. 250 Ibid., p. 64. 251 IDEM, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 69. 252 Ibid., p. 64.
151
desenvolvimento na teoria do desenvolvimento moral, pois acredita que o
mesmo é incompleto ao não diferenciar o que pode ser “verdadeiros”
interesses.
Tabela 7 – Consciência Moral e Competência de Papel253
níveis de idade nível de comunicação
exigência de reciprocidad
e
níveis de consciência
moral idéia de vida boa esfera de
validade reconstruções
filosóficas
níveis de
idade
reciprocidade incompleta
1 maximizar o
prazer/evitar a dor através da
obediência
I ações e
conseqüências de ações
prazer/desprazer
generalizados reciprocidad
e completa 2
idem, através de trocas
equivalentes
ambiente natural e
social hedonismo ingênuo
IIa
papéis 3 eticidade
concreta de grupos primários
grupo de pessoas de referência primário
II
sistemas de normas
necessidades culturalment
e interpretadas
(deveres concretos)
reciprocidade incompleta
4 eticidade
concreta de grupos
secundários
pertencentes ao grupo público
pensamento concreto e de
ordem
IIb
prazer/desprazer
generalizados (utilidade)
deveres universais
5 liberdade civis,
beneficência pública
todos os associados jurídicos
direito natural racional
6 liberdade moral
todos os homens
enquanto pessoas privadas
ética formalista III Princípios
interpretações
universalizadas dos
carecimentos
reciprocidade completa
7 liberdade moral e pública
todos enquanto
membros de uma fictícia sociedade mundial
ética universal da linguagem
III
Para Habermas uma identidade bem-sucedida do ‘Eu’ seria aquela
que conseguisse manter sua autenticidade perante as mudanças sociais.
Sendo assim:
253 Esquema 4. apresentado em Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo
Histórico, p. 68.
152
Quando criança (o indivíduo) incorpora as universalidades simbólicas
dos papéis menos fundamentais de seu ambiente familiar e, mais tarde, as
normas de ação de grupos mais amplos, a identidade natural acoplada a
seu organismo é substituída por uma identidade constituída por papéis e
mediatizada simbólicamente. A continuidade devida à identidade baseada
em papéis apóia-se, então, na estabilidade das expectativas
comportamentais que, através do ideal do Eu, terminam por se fixar na
própria pessoa.254
Este estágio de consciência de si, no qual o indivíduo pode referir a si
mesmo por meio da reflexão sofre forte influência da construção hegeliana
de identidade. Que por sua vez diferencia essa em duas instâncias; a
singularidade e a individualidade. Enquanto singularidade o indivíduo é
indiferença de todas as determinidades, de modo que se exibe enquanto
totalidade. Ao passo que enquanto individualidade, esse é a diferença de
todas as determinidades, é um vivente formal e reconhece-se como tal. Nas
palavras de Hegel:
(...) o indivíduo como tal é pura e simplesmente um com a vida, não
apenas em relação com ela, (...) o indivíduo não é um tal indivíduo, mas
sim um sistema absoltamente total, por conseguinte, a sua singularidade e
a vida são postas como uma coisa, como algo particular. (...) a vida é a
mais alta indiferença do singular, mas ao mesmo tempo é pura e
simplesmente algo de formal, porquanto é a unidade vazia das
determinidades singulares, e não se põe assim nenhuma totalidade e
nenhuma integridade reconstruindo-se a partir da diferença. Enquanto é
254 Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 79.
153
o absolutamente formal, a vida é também justamente por isso a
subjetividade absoluta, é a pessoa.255
A singularidade nos diferencia enquanto sujeitos, ao mesmo tempo
nos iguala nas expectativas em relação a sociedade, enquanto que a
individualidade sendo a negação de todas as determinidades nos dá acesso a
subjetividade e possibilita uma reconstrução do Eu a partir das diferenças.
O Eu portanto, está além da linha constituída por todas as normas e
papéis sociais; tendo de estabilizar-se na capacidade de representar a si
mesmo, em qualquer situação, inclusive diante de expectativas de papel
contraditórias. “No adulto, a identidade do Eu se confirma na capacidade de
construir novas identidades, integrando nelas as identidades superadas e
organizando a si mesmo e às próprias interações numa biografia
inconfundível.”256
AS PATOLOGIAS DA MODERNIDADE PARA HABERMAS
No entanto, Habermas entende que o desenvolvimento da Identidade
do Eu está sujeita as imposições da sociedade que, por sua vez podem ser
conflituosas e, que em certas circunstâncias tais conflitos podem representar
uma carga demasiada forte para o indivíduo, resultando no que ele
denomina uma identidade danificada, identidade integrada coercitivamente
ou identidade cindida. Isso sem contar que a colonização (subordinação à
lógica sistêmica) do mundo da vida traz uma série de distúrbios igualmente
255 Georg W. F. HEGEL, O sistema da vida ética, p. 34-35. (grifos nosso). 256 Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 80.
154
indesejáveis neste nível. Isso faz com que o autor aponte algumas
patologias sociais; a perda de sentido das tradições culturais (na reprodução
social), anomia (interação social) e psicopatologias e distúrbios de formação
da identidade (socialização e individuação). Esses fenômenos são
entendidos por Habermas como distorções sistemáticas de comunicação,
sendo que “tais patologias da comunicação podem entender-se, com efeito,
como resultado de uma confusão entre ações orientadas para o êxito e
ações orientadas para o entendimento.”257
A manipulação dos atos comunicativos, ao contrário do tipo de
solução inconsciente de conflitos que a Psicanálise explica por meio dos
mecanismos de defesa, acabam produzindo perturbações na comunicação,
simultaneamente no plano intrapsíquico e no plano interpessoal. “Em tais
casos, ao menos um dos participantes se engana a si mesmo ao não dar-se
conta que está atuando em atitude orientada ao êxito e mantendo uma
aparência de ação comunicativa.”258 Esquematicamente a comunicação
sistematicamente distorcida é apresentada por Habermas da seguinte
maneira:
257 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 425. Tradução nossa:
“Tales patologias de la comunicación pueden entenderse, en efecto, como resultado de una confusión
entre acciones aorientadas al éxito y acciones orientadas al entendimiento.” 258 Jürgen HABERMAS, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 425. Tradução nossa: “En
tales casos, al menos uno de los participantes se engaña a si mesmo al no darse cueta de que está
actuando en actitud orientada al éxito y manteniendo solo una aparencia de acción comunicativa.”
155
Tabela 8 – Distorções sistemáticas da comunicação259
Ações sociais
Ação comunicativa Ação estratégica
Ação estratégica Ação
abertamente
encoberta estratégica
Engano inconsciente Engano consciente
(comunicação sistematicamente (manipulação)
distorcida)
Habermas acredita que da mesma forma que a “crítica das auto-
ilusões e dos sintomas de uma forma de vida forçada ou alienada mede-se
na idéia de uma vida vivida de modo consciente e coerente”260, as
patologias da modernidade podem ser medidas pela impossibilidade de
viver um vida ‘boa’261, de se separar do grande número, de viver uma vida
autentica. “Aqui, a autenticidade de um projeto de vida, analogamente a
pretensão de veracidade de atos expressivos de linguagem, pode ser
compreendida como uma pretensão de validade de grau mais elevado.”262
Partindo da Psicanálise Social de Alexander Mitscherlich, vai dizer que
“cada vez mais as relações se transformam em mercadorias ou em objetos
das administrações e dos especialistas. Um exemplo disso é a interferência
259 Figura 18 apresentada em Jürgen Habermas, Teoria de la Acción Comunicativa. Tomo I, p. 426. 260 Jürgen HABERMAS, A Inclusão do Outro: estudos de teoria política, p. 41. 261 O conceito de ‘vida boa’ refere-se a forma de vida escolhida de forma não coercitiva. 262 Jürgen HABERMAS, A Inclusão do Outro: estudos de teoria política, p. 41.
156
que se produz entre os imperativos econômicos e as necessidades de um
entorno urbano.”263
Da mesma forma encontra em Mitscherlich uma substituição do
conceito tradicional de razão pela capacidade de autocrítica do eu e uma
identidade flexível do eu que possibilita imaginar alternativas para os
indivíduos. “Esta se constitui em comunicações articuladas de sorte que os
participantes, seja na infância, seja na enfermidade, seja na pratica da vida,
aprendam a não desejar-se fazer prisioneiros pelas encontradas pretensões
da natureza interna e da sociedade, senão posicionar-se frente a elas sem
prejuízos com sim ou com um não.”264
Habermas mostra como a Psicanálise – que tenha como foco as
questões semânticas – pode auxiliar na desconstrução das distorções de
comunicativas, pois na medida que esta “é um processo de ampliação da
percepção e de correção da percepção. Ela comporta novas experiências de
comunicação que libera passo a passo seu paciente da escrava dependência
de um jogo de repertório previamente dado, mas não para que possa dispor-
se à vingança, mas para que possa se obrigar a ideais mais ilustrados como
263 IDEM, Textos y Contextos, p. 200-201. tradução nossa: “cada vez más relaiones se transforman
em mercancías o em objetos de las administraciones y de los expertos. Um ejemplo de ello es la
interferencia que se produce entre los imperativos económicos y las necessidades de um entorno
urbano.” 264 Alexander MITSCHERLICH apud Jürgen HABERMAS, Textos y Contextos, p. 196. Tradução
nossa: “Ésta se constituye em comunicaciones articuladas de suerte que los participantes, sea em la
niñez, sea em la enfermedad, sea em la prática de la vida, aprendan a no dejarse hacer prisioneros por
las encontradas pretenciones de la natureza interna y de la sociedad, sino a posicionarse frente a ellas
sin prejuicios com um si o com um no.”
157
são a consideração e o respeito, o colocar-se no lugar do outro e a
compreensão.”265
Desse modo, se entendermos que a economia de mercado capitalista e
a burocracia são formas ‘normais’ da Modernidade; somente poderemos
falar em ‘patologias’ quando existir uma transgressão da racionalidade
instrumental nas fronteiras do sistema e ocorrer uma penetração nas esferas
simbólicas do mundo da vida, ou seja, na compreensão mútua entre os
indivíduos. Da mesma forma, essas distorções de comunicação
poderiam/deveriam ser desfeitas ao passo que fossem desveladas as
influências da lógica sistêmica na conduta de vida dos indivíduos e que
estes pudessem atribuir outro sentido a realidade vivida.
265 Ibid., p. 194. tradução nossa: “es um processo de ampliación de la percepción y de corrección de
la percepción. Ello comporta nuevas experiencias de la comunicación, em especial de la
comunicación entre médico y paciente... El esfuerzo del psicoanalista se endereza a estabelecer uma
comunicación que libere paso a paso su paciente de esclava dependencia de um juego de rol
previamente dado, pero no para que pueda disponerse a la venganza, sino para que pueda obligarse a
ideales más ilustrados como son la consideración y el respecto, el ponerse em lugar del outro y la
comprensión.”
CAPÍTULO V
A HISTÓRIA DE LOU-LOU
V
5.1 – A HISTÓRIA DE LOU-LOU
“A História de Vida torna-se o principio da individuação, mas
para que isso aconteça, precisa ser transladada, através de
tal ato de auto-escolha, para uma forma de existência auto-
responsável.” J. HABERMAS
Até aqui apresentamos o referencial teórico no qual nos apoiamos e o
contexto no qual está inserido nossa participante da pesquisa; agora
apresentaremos nosso problema: Qual o sentido da oficina terapêutica de
teatro na metamorfose da identidade da pessoa que passou por tratamento
da dependência química em ambulatório de atendimento a usuários de
drogas?
Para responder essa pergunta apresentaremos Lou-Lou, uma
personagem real, embora de nome fictício, que fará um relato
autobiográfico que será analisado à luz do referencial teórico apresentado
ao logo dessa dissertação. Dessa maneira, a narrativa da história de vida de
Lou-Lou será analisada na tentativa de apreender o sentido que esta atribui
a sua participação na oficina terapêutica de teatro, buscando verificar se o
processo de metamorfose ocorrido nas diversas personagens de sua vida
evidencia a presença de fragmentos de emancipação, bem como discutir se
essa identidade pode ser considerada Pós-Convencional.
160
A escolha da narrativa da história de vida de Lou-Lou como material
empírico da pesquisa se deu observando o método utilizado por Ciampa na
pesquisa de Identidade, a qual se entende que:
O singular materializa o universal na unidade do particular. Se tudo isso
é verdadeiro, e não mero filosofema, a análise do desenvolvimento
histórico – tanto a ontogênese quanto a filogênese – deve revelar, seja no
caso do individual, seja no caso do social, um nexo entre si, além de,
consequentemente, um nexo também entre seus estágios de
desenvolvimento.266
Assim, a utilização da narrativa de história de vida deve possibilitar
que observemos as metamorfoses do indivíduo, como é apresentado por.
Canetti, no discurso proferido em Munique, em 1976, no qual esse diz que:
“Só pela metamorfose (no sentido extremo em que essa palavra é usada
aqui) seria possível sentir o que um homem é por trás de suas palavras: não
haveria outra forma de apreender a verdadeira consistência daquilo que nele
vive”.267
Vale lembrar que para Ciampa, “a realidade é movimento, é
transformação”. Assim como, “quando um momento biográfico é
focalizado não é para afirmar que só aí a metamorfose está se dando; é
apenas um recurso para lançar mais luz no episódio onde é mais visível o
que se está afirmando”268 e que dado nosso referencial teórico, entendemos
que a identidade se expressa empiricamente por meio de personagens, da
266 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a História da Severina, p. 213-214. 267 Elias CANETTI, O ofício do poeta, A consciência das palavras, p. 282. 268 Antonio da C. CIAMPA, A estória do Severino e a História da Severina, p. 41.
161
articulação das personagens que vai compor a identidade da pessoa
estudada nos diversos momentos de sua vida.
Ao analisar as personagens encarnadas dentro da narrativa a seguir,
verificaremos a articulação dessas personagens entre si, como realidade
subjetiva, constituída a partir da internalização e da interiorização, assim
como, com outros atores sociais, como realidade objetiva, que envolve a
normatividade e a intersubjetividade. A articulação dessas personagens
desvelará como ocorrem a re-posição, como a superação de personagens
corporificadas pelo indivíduo.
Vamos, portanto, analisar pela dialética. Temos que partir do empírico,
mas a reflexão teórica vai ser fundamental para acompanhar o concreto,
do contrário, não se sai do empírico. O empírico tem que se converter em
concreto e o concreto em múltiplas determinações, determinações não
casuais, mas categorias. Eu só posso apanhar o concreto se eu apanho
cada uma das suas determinações ou categorias – é uma propriedade
essencial desse concreto.269
A entrevista foi realizada com os devidos cuidados, na residência da
participante. Com a transcrição da entrevista passamos a identificar as falas
que se referem aos eixos temáticos da investigação: A socialização e a
individuação, a relação com as drogas, o tratamento no ambulatório de
atenção ao uso de drogas: Espaço Fernando Ramos da Silva – EFRS, o
sentido da oficina terapêutica de teatro e a Identidade (verificando se esta se
expressa como uma Identidade Pré-Convencional, Convencional ou Pós-
269 Iraí CARONE, Análise epistemológica da tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa, p.
09.
162
Convencional). A questão do sigilo e a privacidade tiveram grande ênfase e
importância, evitando a possibilidade de perda de anonimato do
participante, sendo que isso estende-se às pessoas citadas por Lou-Lou
durante a entrevista (psicólogos, médicos, enfermeiros etc).
ONDE APRESENTAMOS LOU-LOU E ESSA NOS CONTA SUA
HISTÓRIA
Nesta parte da dissertação Lou-Lou conta sua história de vida, uma
história que assim como a de Fernando Ramos da Silva é a de uma luta
constante contra o estigma do marginal, do drogado, do louco, do
desacreditado. Para nos dizer quem é, Lou-Lou inicia pelo relato da
infância-que-não-teve em Diadema, essa resultante das limitações sócio-
econômicas de sua família. Conta que era a sexta filha de uma família de
sete irmãos, sendo quatro mulheres e três homens. Seu pai trabalhava em
uma fábrica da cidade e sua mãe era dona de casa. Para Lou-Lou a classe
social na qual estava inserida era muito desfavorável. Ao descrever seu pai
tenta explicar a carência matérial e afetiva na qual este estava inserido:
Era um assalariado, trabalhava em fábrica, então já vivia naquele
cotidiano de ir pruma fábrica, acordar todo dia muito cedo, voltar sempre
tarde, chegar em casa ter muitas crianças. Acho que era um tanto quanto
maçante pra ele (...) muitos problemas pouca grana, (...) é uma vida de
casais assim, já era cada vez mais restrita, eu nunca via muito mais meu
pai e minha mãe juntos abraçados, nunca consegui enxergar essa questão
de carinho enquanto casal, sabe, foi uma coisa que... eu posso dizer que
tudo que aprendi na vida e tudo que eu sou, eu fui de uma forma muito
autodidata, porque eu não tive muitos exemplos a seguir (...)
163
Sua mãe trabalhava desde muito jovem, “...uma pessoa que sempre
foi muito oprimida pelo pai (...) não poder sair. (...) primeiro namorado que
teve já se casou, (...) aquelas gerações mais antigas...”, sendo que a única
educação que teve foi para ser dona de casa.
O pai era o provedor da família, sendo que a exploração sofrida na
fábrica em que trabalhava fazia com que este não conseguisse ser um pai
presente. É neste ambiente que Lou-Lou foi socializada. E como se pode
ver, seu primeiro contato com as drogas ocorrerá na própria esfera privada,
entendendo seu uso como um anestésico para uma realidade opressora; isso
aparece na justificativa que faz do uso de álcool pelo pai.
Meu pai sempre bebeu, ele bebia muito (...) é um ambiente já um pouco
complicado que... claro! Pra ele de uma certa forma a vida devia ser
muito fudida então tinha que se entorpecer mesmo porque viver naquele
contingente de São Paulo...
Para localizar o lugar de Lou-Lou na família vamos seguir as
explicações da mesma, que começa dizendo que seus irmãos nasceram com
um intervalo médio de dois anos, sendo que após o nascimento do quarto
filho ocorre um intervalo de sete anos, nascendo os outros três.
Eu estou nesta daí, a penúltima (...) das meninas eu sou a caçula e daí era
muito fogo porque era bem assim. (...) dessa última minha irmã que
depois teve este prazo de sete pra mim já são dez anos de diferença,
então quando eu estava nascendo minha irmã já estava com dez anos,
outra já tava com treze, outra já tava com quinze e eu estava com três,
então eram muitos universos vivendo dentro de um espaço físico comum,
com toda essa relação do cotidiano.
164
Quando Lou-Lou nasceu, sua mãe, que tinha quarenta e dois anos
sofre uma depressão após o parto. Nessa época a mãe de Lou-Lou ainda
amamentava o irmão que nascera anteriormente, fato que se repete com o
último filho que, ao nascer tem que dividir o peito com Lou-Lou. Esse
episódio sempre foi algo que marcou muito Lou-Lou, nas suas palavras:
Não sei, pode ser que eu até seja mimada, mas falar pôxa nem uma teta
eu tive só para mim, você tá me entendendo? Não querendo justificar
muito o que não tive, mas assim pôxa tudo eu tive que dividir todo o
tempo quando eu fui pequena, tudo, tudo... Então assim era tudo muito
controlado até mesmo por causa que a realidade... imagina uma família
com sete filhos é uma família que consome muitas coisas (...) básicos (...)
então acabava (...) tendo uma vida bem restrita às vezes (...) era tudo
meio que controlado pra se ter pra todo mundo, não faltar nada pra
ninguém (...) eu não podia querer ter. Ah! Vou querer ter aquele negócio,
vou querer ter aquele outro, então vamos improvisar, vamos criar, vamos
fazer, vamos, então desde pequena sou assim (...).
Lou-Lou não lembra ter presenciado momentos de lazer com os pais
durante a infância, “...meu pai então já não podia fazer coisas de lazer pras
crianças... Ah! Vou te levar no parque, vou te levar no zoológico ou vem
aqui vamos brincar... difícil, não tinha tempo pra isso, meus irmãos estavam
num corre de estudar, trabalhar...” Por conta disso sempre brincava na rua,
o único lazer possível na realidade em que estava inserida; lembrando
dessas brincadeiras conta mais uma de suas lembranças:
Lembro que tinha um circo em frente da casa da minha mãe que ele era
tudo pra mim. Era minha maior diversão, ser amiga da dona do circo, a
filhinha do circo (...) e daí a gente descia (...) tinha muito essa coisa de
165
brincar na rua, de andar de skate, descer ladeira com carrinho de rolemã,
empinar pipa, andar de bicicleta. Ah! Não tem uma bicicleta então deixa
eu dar uma volta na sua... era muito feliz sabe.
Criava alternativas para lidar com a falta de lazer que não vivenciava
na família. Sendo que essa possibilidade de brincar com outras crianças é
vista por Lou-Lou como elemento essencial na constituição de sua
identidade, algo que, segundo a mesma, ainda utiliza nos dias de hoje.
Eu preservei acho que pela minha vida toda isso daí, de querer de falar
com qualquer pessoa e não ter medo esse lado meio destemido da
criança, de falar com qualquer pessoa (...) estar em qualquer lugar, estar
comigo do jeito que eu sou e foda-se! Se eu não tenho isso, eu não sou
aquilo. (...) Isso era muito importante pra mim e ainda é, então eu
preservando isso me abriu muitas portas sabe (...).
Vivendo em uma família formada com diversos integrantes fez com
que as possibilidades identificatórias de Lou-Lou fossem ampliadas, isso
fica mais claro quando a mesma conta a diversidade cultural presente em
sua casa.
Tinha um irmão mais velho que já gostava de disco e ouvia ABA e ouvia
esses sons QUEEN (...) como eu tinha minhas irmãs que já ouviam
samba tal, meu pai ouvindo moda de viola, que ele já tinha cantado em
rádio tudo, tinha cultura de folia de reis que já era uma coisa dos avós,
que todo ano até hoje vai na casa da minha mãe, então eu tinha uma
cultura folclórica além pra acrescentar aquele tumulto diário ali, pra
deixar mais divertido (...) tenho os meus irmãos que são fruto dessa
eloquência, porque eles aprenderam tocar instrumentos com o
cavaquinho da folia de reis, tenho um irmão que ele era Punk nos anos
166
oitenta né, e que todo esse pessoal Punk vinha e freqüentava a casa da
minha mãe (...) já era um negócio assim de ver alfinetes na cara, de ver
tatuagem, cabelo colorido, cabelo espetado (...) era uma coisa muito
radical, então conviver com o diferente, de uma certa forma, era minha
realidade normal (...).
A realidade “normal” era o pluralismo existente em sua casa. Isso
fica evidente dada a diversidade de ritmos musicais presentes na família,
que por sua vez atribuía uma identidade para cada um de seus membros.
Essa questão será melhor explicada adiante, momento em que Lou-Lou irá
contar sobre suas primeiras identificações.
O fato de pertencer a uma família de baixa renda trouxe
responsabilidades ainda muito cedo para Lou-Lou. Aos 10 anos já começa a
trabalhar; passa a cuidar do sobrinho para a irmã poder trabalhar, passa
então a ter que administrar o brincar, o estudo e o trabalho.
Eu não tinha muita opção, podia até brincar e tudo mais eu tinha uma
responsabilidade de uma certa forma. Porque olhava e me sentia
angustiada de ver minha mãe sem nunca poder ter tempo, às vezes eu
queria sentar e conversar com ela, às vezes eu só queria que ela pegasse
na minha mão e me levasse pra dar uma volta sabe e... não rolava.
Até então Lou-Lou vivia a personagem da Garota-Morna que, presa
ainda em um hedonismo ingênuo, procurava minimizar as possibilidades de
punição sendo a boa-moça. Essa personagem também é representada na
escola que era vista como um lugar de liberdade neste período. Não
freqüentou a pré-escola indo direto para a primeira série, não encontrando
dificuldades na adaptação ao meio escolar. Diz que o fato de representar a
167
Garota-Morna na escola, não causando problemas, possibilitou, segundo a
mesma, “assimilar e conseguir um amor, conforto às vezes, uma
tranquilidade, um silêncio que me faltava na minha casa. Eu tava
aprendendo coisas e aquilo pra mim eu intrigante...”, em outras palavras, ao
re-por a Garota-Morna significava ter ganhos secundários, evitava a
possibilidade de lidar com o confronto.
Eu queria sempre fazer alguma coisa que chamasse a atenção, tá
entendendo? pra eu ser elogiada, pra poder ter uma atenção um carinho
extra sei lá.. uma vontade de ter alguém assim te protegendo... então
sempre ia bem, ia bem em tudo, me dava bem, me desempenhava legal
nas matérias, tirava notas boas e ai aquilo era assim... como eu não tinha
problema na escola, os outros que tinham era o maior problema.
Abria mão da sua espontaneidade para ser amada, aceita, na escola.
Após os 11 anos, a Garota-Morna sente necessidade em saber mais sobre
questões da sexualidade, dada as mudanças que estavam ocorrendo em seu
corpo provocadas pelos hormônios da adolescência. No entanto, não
encontrava quem satisfizesse seu interesse em sua família:
Nunca ninguém falava de sexualidade (...) ninguém nunca chegava
falava mesmo. Eu tendo as irmãs maiores elas não estavam pensando no
que que a gente ia viver.. elas já tavam aprendendo lá fora isso, de uma
certa forma.
Na escola a Garota-Morna também não encontrava ninguém que
discutisse esse tema, até que “veio uma professora maravilhosa, uma
física... que ela falava tudo.. tudo.. tudo o que a gente não aprendia em casa,
a gente aprendia com ela na escola. É ótima! Tudo ela falava... tudo, tudo,
168
tudo e aí sempre tinha uma ou outra menina que já tinha feito sexo e daí
sabia e falava alguma coisa e tal (...) Mas o que eu aprendi nessa área de
sexualidade era aquilo que eu lia em revista e lia livros.” Assim, a Garota-
Morna estava se transformando na Garota-Adolescente, que contava agora
com uma ampliação daquilo que entendia sobre sexualidade.
LOU-LOU CONTA COMO A GAROTA-MORNA PASSA A SER
VISTA COMO GAROTA-PERDIDA QUANDO SE TRANSFORMA
NA ANARCOPUNK
A Garota-Morna estava se tornando a Garota-Adolescente, ocorre a
diferenciação da identidade de papel atribuída pelos pais e encontra uma
outra personagem possível no irmão Punk. Identificando-se com seu irmão,
começa a delinear-se uma nova personagem para sua identidade, a Irmã-
Punk.
Ouvir músicas mais rápidas e Hard Core era uma coisa pra mim natural
do mesmo jeito que meu pai ouvia um breganejo dele, o sertanejo dele,
eu ouvia hard core (...) é... era, era um lance natural eu ia em show Hard
Core (...).
Mas até esse momento a Garota-Adolescente que queria ser Punk não
saía com essas pessoas – não era reconhecida como a Irmã-Punk – fato que
tornava seu envolvimento ‘tolerável’ perante a família. Contudo, a Garota-
Morna gosta do movimento Punk e começa a frequentá-lo. Essa atitude vai
trazer algumas conseqüências; na medida em que assume perante a família
sua escolha passa a ser estigmatizada por ela. Lou-Lou dando um exemplo
dessa situação comenta: “aí eu comecei a sair com aquelas pessoas, e aquilo
169
pra minha mãe era um absurdo, terrível (...) mal... tinha um filho perdido e
agora tinha uma filha perdida.”
Aqui Lou-Lou aponta uma questão importante, o fato de escolher ser
diferente da personagem que representava (Garota-Morna), faz com lhe
seja atribuída a personagem: Filha-Perdida, que era vista agora por sua
família como a totalidade de sua identidade. Sendo que ao vivenciar essa
nova personagem passa a ser vista como alguém que cumprirá um script a
priori já elaborado, que tem dentro de suas premissas o uso de drogas. Lou-
Lou justifica esse fenômeno da seguinte maneira:
É muito fogo esse lance de se associar, tá andando com um grupo mais
marginalizado logo vai usar droga, não é bem assim. Porque antes disso
eu já fumei cigarro quando estava no colégio, quando estava com minhas
amigas de escola, via uma mulher vamos comprar uma carteira de cigarro
e dividir.. Ah! Então vamo... aí comprava dividia.
Lou-Lou lembra então que sempre conviveu com Punks, não sendo
dessa forma novidade, porém o fato de assumir-se participante do
movimento lhe conferia outras possibilidades até então não vivenciadas.
Vamos voltar a Lou-Lou e deixar que esta conte isso com suas palavras:
Sempre convivi com o pessoal Punk desde de pequena (...) não era muito
absurdo, só que eu fui viver a minha história (...) não as histórias que eu
via.. fui viver a minha história... então eu sempre ia em show... meu
irmão tinha banda também, (...) sempre quando ele tocava eu ia assim,
sempre ele tocava naqueles manifestos da CUT lá em São Bernardo
assim aqueles... nossa milhares de anos antes do Lula se eleger agora no
que é, que ele ficava lá sempre fez comícios.
170
Ser Punk era transformar-se em outra, era ser diferente, era poder
vivenciar coisas até então não permitidas. Assim, quanto mais internalizava
o movimento Punk como um outro generalizado, mais incorporava as
atitudes particulares de indivíduos que participavam desse movimento,
desenvolvia seu self e diferenciava-se cada vez mais dos membros de sua
família. Agora a Adolescente-Punk, buscava reconhecimento em um outro
lugar.
Você se apaixona por alguém, difícil né? Você se simpatiza com alguma
pessoa, cria outros amigos, se põe numa condição de ver, de tá lá, vendo
todo mundo fudido junto proletário. (...) gosta de andar diferente, se
assimila em termos culturais (...) e em termos sociais, culturais, e era
massa... ia pra festa de rock pra se libertar era bem isso mesmo (...) era
uma coisa muito legal e eu não usava drogas de imediato.
O que Lou-Lou procura alertar é o fato que sua aproximação com as
drogas não foi concomitante à sua participação no movimento Punk; até
então o uso de substâncias psicoativas não tinha sentido algum para a
mesma, visto que seu maior interesse era a relação com as pessoas do
movimento em que estava inserida.
Com o passar do tempo toma conhecimento de um novo tipo de
discurso, conhece o Anarquismo. A ideologia anarquista começa a fazer
muito mais sentido para Lou-Lou do que a vivenciada no movimento Punk.
Consegue aderir a esse movimento sem a necessidade de deixar a antiga
personagem, transforma-se na Anarcopunk. Ao justificar sua escolha, tenta
explicar a proposta do novo grupo que passa a freqüentar:
171
Diferente dos outros Punk, de gangue tudo, eles estavam aleatórios
daqueles lance, por isso que eu me identificava, porque eu também não
queria ficar naquele negócio de gangue, eu queria saber de futuro, eu
queria... gostava, já tinha um gosto bem peculiar, sobre arte, sobre
cultura (...) eu queria estar com aquelas pessoas e ai pô anarquismo, isso
tem a ver comigo, acho a idéia uma idéia legal sabe... então fui procurar
saber de anarquismo, e aí o pessoal: Ah! Vamos fazer uma manifestação!
Porra isso tem a ver comigo, querer mudar as coisas, querer lutar por um
dia melhor, (...) fui assimilando aquilo como uma essência minha, por
que talvez isso sempre esteve dentro de mim, (...) Mais eu fui
assimilando, pôxa isso tem a ver comigo, então logo fui atrás de pessoas,
me identificava, elas se identificava comigo.
Pensava no futuro, identificava-se com o anarquismo e era
reconhecida por estes, ao ponto do movimento passar a ser parte da sua
Identidade, que até então era vista pela mesma como essência, como algo
que a priori já estava dentro de si, esperando para ser libertada.
A ANARCOPUNK CONTA COMO SURGE A ADOLESCENTE-
EXPERIMENTADORA QUE POSSIBILITARÁ SUAS PRIMEIRAS
EXPERIÊNCIAS COM A PERCEPÇÃO
Lou-Lou já havia falado anteriormente que o início do seu uso de
drogas não se deu no movimento Punk; aqui ela irá contar como
inesperadamente surgirá uma nova personagem, que possibilitará suas
primeiras experiências com as drogas. E ao contrário do que se podia
imaginar, as primeiras experiências com substâncias psicoativas feitas por
172
Lou-Lou ocorreram junto às amigas da escola, com substâncias lícitas e em
ambientes públicos. Lou-Lou vai dizer agora como esse processo ocorreu:
Eu fui beber bem maior, (...) tava eu e umas amigas e a gente foi numa
casa tal que morava uma galera. Claro, quando junta juventude, não
importa de grupo que você tá, essas coisas elas vão estar interligadas,
sexo, droga, isso vai ser uma coisa que faz parte da diversão (...).
Lou-Lou está lembrando do fato que em nossa sociedade, na qual o
mercado tem uma forte influência na socialização e individuação das
pessoas, o consumo de mercadorias, de substâncias, de corpos e de si
mesmo, estão intimamente ligados com a “indústria do entretenimento”,
sendo difícil diferenciar consumo de diversão. Nesta festa fez uso de algo
que jamais havia imaginado que alteraria sua percepção pela primeira vez:
Aí tinha um menino cheirando spray... aí eu falei: meu, isso daí não é pra
pintar faixa? Ah! tá mais é, mais isso aqui serve pra dá uma luz. Ah!
mais como assim? Ah! Não sei prova.. qué provar tal? Ah! Não sei (...)
se acha engraçado como que pode um negócio tal... Ah! tá bom então,
comecei lá cheirando spray quando vi não tinha nada do spray, minha
calça estava toda suja de vermelho, minha calça (...) pô e agora minha
calça toda manchada... mais aí descobri né meu, aí cheguei em casa tinha
thinner, tinha milhares de outras coisas (...) aí minha amiga que tava
comigo na casa dela também tinha cola, ela tinha outras coisas aí foi os
inalantes (...) aí começamos.
A personagem Adolescente-Experimentadora entra em cena. Ao ser
apresentada aos inalantes conhece aquelas que serão as primeiras (das
muitas) drogas que utilizará junto com as amigas.
173
Aí eu me lembro, pôxa preciso tirar essa marca de spray que eu larguei
na minha calça, com que que eu tiro? Com thinner, peraí com thinner
também tal... e aí foi benzina eu lembro que a gente usava, lembro que aí
depois tal.. aí começamos.
Com as vizinhas passa a experimentar diversas substâncias que
alteram sua consciência e comportamento. Assim, “a descoberta de drogas,
(que Lou-Lou passa a fazer nessa época), no grupo das minhas amigas que
tinha na época, eu descobri muito mais com elas, que eu era a única Punk
(...) do que com os próprios Punks, porque com eles eu tinha outras coisas
pra tratar além de querer consumir drogas.” Novamente, Lou-Lou lembra
que procurava outras coisas no movimento Punk, algo que lhe trazia muito
mais prazer do que qualquer substância utilizada até então:
Preferia ir encontrar as pessoas pra conversar com elas, trocar idéias de
política, conversar sobre cultura, falar de música, ouvir música, pintar,
fazer alguma coisa ou fazer um visual, (...) Fazer uma tela, ir atrás de
banda, divulgar show, do que ficar pensando nisso (...).
Entretanto, o fato de conviver nesses dois grupos, as amigas de um
lado e os anarcopunks do outro, trazia grandes conflitos para Lou-Lou.
Nesse último, ao representar a Anarcopunk podia vivenciar outras
realidades e possibilidades de ser, com as amigas podia vivenciar a
Adolescente-Experimentadora, que compartilhava as descobertas da
puberdade. Contudo, diferente da relação que tinha com as amigas, ser a
Anarcopunk possibilitava conhecer outras formas de existência, que por sua
174
vez deixava a questão da sua Identidade, de quem gostaria de ser, ainda
mais complexa:
Dentro desse grupo existiam pessoas de todas as idades, até podia ter eu
que era a nova com quinze, dezesseis anos, (...) e tinham pessoas que
tinham trinta... então assim, até pessoas hoje que poxa, que tão aí no
CCS, pessoas que são do Centro de Cultura Social que são dos
anarquistas eu conheci (...), eu tive um contato com pessoas que foram
muito importantes pra minha vida, (...) então enquanto estava um
prestando vestibular, um outro tendo uma relação diferente (...) daquela
que estava costumado a viver.. enquanto tinha uma menina que já tinha
filho (...) eu tinha quinze anos, então já era um monte de coisa lá fora.. se
tá entendendo? Eu tava convivendo com pessoas com idades diferentes,
realidades diferentes e que viviam de forma alternativa, se agrupavam
pra morar junto, tinham abandonado a família, e que então viviam
independente e a vida era muito foda. E eu quando me juntava com
minhas outras amigas ia pra outro lugar ia pro Retrô, ia pro Urbânia (...).
Vivenciava duas personagens conflitantes, quando estava com os
anarquistas envolvia-se com os problemas político-sociais, queria mudar o
mundo; quando estava com as amigas ia consumir drogas nas boates,
participava do ritual mercadológico. Podemos pensar que talvez o fato de
ser a Anarcopunk-que-Dependia-dos-Pais neste período tenha sido um dos
fatores (mas não o único, como se verá adiante) responsáveis por não
conseguir se reconhecer totalmente como Anarcopunk; nas palavras de
Goffman, 'não era um ator sincero', era uma Anarcopunk-Não-Verdadeira,
nas palavras de Lou-Lou:
Tava na casa dos meus pais... não era como eles ali... vivendo sozinhas.
Então eu tava protegida de uma certa forma (...) não que eu estava
175
protegida, mas estava cheia de limites, eu tinha horários, eu tinha
comida, eu tinha roupa, eu tinha escola, (...)de uma certa forma eu estava
protegida, (...) não estava tão jogada assim, não que aquelas pessoas
estivessem.. não estava precisando cobrir tudo sozinha... eu tinha
respaldo.
A questão que carregava nesta ocasião era: Como ser Anarcopunk se
não podia encarnar corretamente a personagem? Essa era uma resposta que
Lou-Lou não tinha e enquanto não a encontrava, continuava vivendo as
duas personagens.
Aos 17 anos já freqüentava outros lugares (tanto com os anarquistas,
quanto com as amigas), conhecendo, concomitantemente, outras
substâncias:
Cheirava cola às vezes... eu lembro que a gente ia num lugar que era um
lugar muito louco que ficava uma galera cheirando cola e eu me lembro
que várias vezes antes eu ia e os outros usavam e eu ficava olhando, eu
ficava rindo de ver a galera alucinada (...) Eu ficava na minha, não usava
nada, bebia (...) ou às vezes nem usava nada ficava comendo chocolate,
vendo a galera, conversando, ficando junto, o legal era tá junto, um grupo
de identidade (...) ficava ali... e eu tinha vários amigos que passavam
mal, com problemas de stress quando bebia caíam tinha o baque e era
muito foda, às vezes bêbado já e aí aquela pessoa quando caía e tal todo
mundo se move em torno daquilo e levam pro hospital.
Na companhia das amigas, a Adolescente-Experimentadora
encontrava maneiras de utilizar tudo que pudesse alterar a consciência,
tendo na casa das mães dessas amigas o ponto de encontro para as
176
experiências com a consciência. Lou-Lou, explicando como isso ocorria
conta que se encontravam na casa de uma das amigas cuja mãe trabalhava:
Era tipo num corticinho assim um lance meio assim, tinham várias casa
no quintal, então assim a menina ficava lá e aí como ela não tinha mãe
nem nada ela que era como tipo dona da casa, já criança assim que nem
doze, onze anos sei lá por aí e a gente ia pra lá eu e mais uma outra que
também a mãe nunca tava em casa super religiosa, a gente ia se
encontrava na casa dessa e comprava uma carteira e passava a tarde
fumando vinte cigarros. Numa tarde.. o que a gente se encontrava pra
fazer era fumar cigarro.. (...) ficava fumando um cigarro atrás do outro,
ascendendo cigarro, tentando fazer bolinha, tudo isso (...) e às vezes
comprava o pior que existia (...) porque não tinha dinheiro, (...) cê é uma
criança vai comprar cigarro (...) e aí ia sempre a maior, que ela tinha o
corpo mais formado... Vai lá compra pra gente!
Fumar cigarro nessa época significava liberdade, contravenção etc,
no entanto, as reuniões na casa das mães das amigas possibilitaram acesso
aos medicamentos, tornando as experiências muito mais sofisticadas:
Aí me lembro uma vez quando uma figura me falou pra tomar Benflogin
com bebida e aí começa, claro se vai sair o pessoal se une pra beber, o
pessoal vai conversar vamos tomar uma cerveja. (...) aí a gente começou
entra nessa onda do Benflogin misturado com bebida... então ia em
boate... Ah! vamo toma o gildo. A gente zoava, comprava uma cartela de
Benflogin dividia com as amigas. Os remédios a gente sempre acha que
os remédios tão ali é pra salvar, só que eles são muito mais acesso pra
você se enlouquecer... porque quase toda mãe usa um calmante, quase na
casa de toda pessoa tem remédio pra alguma coisa, tarja preta, ou até esse
Benflogin que até hoje eu não sei direito pra que que serve isso, tá
entendendo?
177
Aqui aparece uma primeira dica para pensarmos a dependência de
drogas, a alienação do uso de drogas, da utilização de uma substância, que
também é uma mercadoria, a qual não se sabe o verdadeiro sentido de uso e
que justamente por essa ausência de sentido pode levar o indivíduo à
repetição e à compulsão. Assim, Lou-Lou mostra como o acesso aos
medicamentos das mães das amigas e a descoberta de seu potencial de
alucinação, possibilitaram ao mesmo tempo integração e desintegração
social.
Diazepan (...) ou então que nem essa minha amiga era gordinha (...) ela
tomava Eribex, cê tá entendendo? Então Eribex já tinha um câmbio (...)
Ah! já ouvi dizer que porra... se soubesse que alguém tinha Eribex...
aquilo lá pra mim era ouro né meu, Artamia também é ouro, então era
uma busca atrás dessas psicotrópicos (...) ficá tomando remédios (...) é
uma loucura que é muito de... se sair total do ar.
Lou-Lou conta que, junto das amigas, vai viver sua adolescência
acompanhada pelas drogas. Entretanto, isso não significa que as coisas
saiam sempre como o esperado; sua primeira “má viagem” com as drogas
ocorre no banheiro de uma danceteria. Vamos deixar explicar como foi essa
experiência:
Era muito rústico o chão, tudo de cimento chapiscado e o banheiro era
muito rústico. E eu entrei no banheiro todo chapiscado, (...) eu encostei
na parede, aquela parede era um pouco (...) e fica muito mal. Seu
estômago.. acaba com seu estômago fica horrível... aí eu com a mão (...)
quando olhei parecia que eu estava numa parede de inseto. Aquele
cimento se juntava com o outro, era um monte, e eu já tum... parecia que
178
ia cair... eu ia fazer xixi, parecia que tava trasbordando assim.. eu parava,
abria e fechava o olho (...) muito foda esse dia... muito, muito mesmo, as
luzes (...) o cigarro fazendo orbital verde eu me lembro (...) que era uma
coisa de louco assim... olhava pra todo mundo e era incrível porque
muitas pessoas tavam ali (...) nessas mesmas condições totalmente
entorpecidas não importa do que.
Nessa época a Anarcopunk-Adolescente-Experimentadora se
apaixona e começa a namorar. É interessante notar que a descoberta da sua
sexualidade vai ocorrer concomitantemente com a descoberta das drogas
ilícitas (maconha e cocaína). Também se pode notar que até esse momento
o uso de drogas era sempre realizado junto com um outro, sendo que a
motivação para estes usos estavam diretamente ligados a essa relação. O
uso de drogas era voltado para uma melhor relação com as amigas ou, neste
caso, com o namorado. Vamos deixar Lou-Lou contar como foi esse novo
período de sua vida:
Quando eu comecei a ficar com essa figura que eu namorei durante anos,
tive algumas experiências de drogas. (...) comecei a fumar mais maconha
(...) mesmo assim eu fumava mais no final de semana. E porque era
quando eu estava mais com essa pessoa, (...) que também morava em São
Paulo era longe da minha casa e durante a semana eu já ia pro colégio e
pra estudar, no que eu estudava era tão incrível tinha um pé de maconha
plantado dentro da escola.. era incrível.
Começava a tomar contato com as drogas ilícitas até dentro da escola.
Contudo, o uso de drogas ficava restrito apenas aos momentos em que
estava com o namorado e, embora essas mudanças possam parecer
179
pequenas ou irrelevantes, irão refletir de forma significativa na sua
identidade.
QUANDO A EX-GAROTA-MORNA, QUE TINHA SE
TRANSFORMADO NA ANARCOPUNK-ADOLESCENTE-
EXPERIMENTADORA COMEÇA A NAMORAR E TRANSFORMA-
SE NA ALUNA-REBELDE
Lou-Lou que na escola sempre se apresentava como Garota-Morna,
começa a colocar em questionamento essa personagem, passa a representar
a Anarcopunk; que na escola passa a ser reconhecida como Aluna-Rebelde.
Sempre tive nota, eu não vou ficar reprovando, reprovando, então até que
eu queria fazer faculdade, (...) eu não vou ficar me matando a vida
inteira.. porque eu tenho que poupar meu pai e minha mãe que me
educaram a vida inteira, vai pra isso, faz isso, faz aquilo... deixa eu fazer
logo... e... me destacar, não sei... sair bem, ter inteligência de... sabe ,
empregar minha mente, ter conhecimento. Aquilo pra mim era o mais
importante, ter conhecimento. Então eu saia e sempre retornava em casa.
Ah! Eu nem posso ler um livro aqui porque já tem criança sempre, ou
então cada um fazendo... não pode fazer... e pedir é não! Estava no
colégio, tinha biblioteca, então tinha que estudar lá. Isso pra mim era
muito massa, levava muito a sério, eu gostava muito (...) não tinha
problema de nota.. só que daí já começou a entrar essa história.
Lou-Lou passa a re-presentar a Aluna-Rebelde, começa a cabular
aulas, apresentando uma questão: como não cabular aulas se o barzinho em
frente à escola podia ser um lugar mais prazeroso para os alunos?
180
Beber, porque na frente do colégio tinha um bar e a gente ia lá e ficava
falando um monte de coisas. Também que estavam ligadas naquilo que
estávamos aprendendo, só que daí já tava envolvida com bebida, (...) aí
bebia, às vezes a gente saía (...).
Nessa época a Adolescente-Experimentadora ainda se reunia com as
amigas para fazer uso de drogas. Até que um dia, enquanto bebiam vinho na
casa de sua amiga de “beque” (maconha), algo inesperado aconteceu: “a
mãe dela chegou, ficando todo mundo duro, estático e aí a gente saiu assim
e a mãe dela puxou ela e abriu uma bolsinha que ela tinha maconha... e deu
o maior reboliço aquele dia, porque daí eles ligaram pra mãe de uma outra
amiga deu o maior blá, blá, blá...”
Tinham sido descobertas e, devido à pressão dos familiares, o grupo
de amigas não teve outra alternativa senão o afastamento. Lou-Lou que já
era vista como a Garota-Perdida pela família não foi punida; seu pai,
inclusive, não a recriminou. Acredita que isso tenha ocorrido devido ao fato
da própria condição do pai, pois este último “chegava bêbado (...) tinha sido
um cara da boêmia, tocava, bebia, tipo um cara que bebia e se ligava nas
paradas e ele jogava futebol, (...) e no campo de futebol baseado é mato”,
sendo assim, podia entender melhor o envolvimento da filha com a
maconha.
QUANDO SURGE A VENDEDORA-DE-CACHORRO-QUENTE NA
VIDA DE LOU-LOU
Como a personagem Adolescente-Experimentadora fora descoberta –
e impedida de ser re-posta, restou para Lou-Lou a re-presentação da
181
Anarcopunk; resolve buscar uma maior autonomia, queria ser uma
Anarcopunk-Verdadeira. Pensa em trabalhar no mercado formal mas
começa a entender que este solicitava uma Identidade que ela não estaria
disposta a vivenciar. Não queria ser explorada, nem ser massificada, então
pensa como ser o que gostaria e decide tornar-se Vendedora-de-Cachorro-
Quente.
Ah! Eu não quero trampar pra ninguém quero ser do meu jeito.. quero ter
tatuagem, (...) pra eu ser do meu jeito eu tinha que ter autonomia de ter
meu trabalho. Porque como vou conseguir emprego sendo tão diferente?
(...) Eu quero ter cabelo rosa, quero ter um moicano, quero ter tatuagem,
quero ter piercing, então vou trabalhar pra mim.. o que vou fazer? Vou
ter um cachorro quente!
Foi a Vendedora-de-Cachorro-Quente durante três anos, namorava,
mantinha suas amizades e utilizava maconha nos finais de semana. Assim,
“ganhava dinheiro, era legal e era aquilo (...) chegava no final de semana e
fumava mais beque, de noite encontrava essa minha amiga e a gente ia... era
muito legal! A gente fumava um beque e comia um pote de sorvete junto,
(...) ficava lá em casa... coisa de menina, não tinha nada de mal e eu ia
fazendo milhares de outras coisas (...) aí... fiquei com essa pessoa (o
namorado) quase cinco anos da minha vida e com ela eu fumava mais.”
Nessa época não fez uso das substâncias que utilizava anteriormente, porém
passa a utilizar maconha com maior intensidade, associando com cigarro e
bebida.
Eu já fumava mais maconha. Eu comecei a fumar cigarro e comprar
cigarro (...) virar fumante. Já fumava maconha, bebia... mas nunca
deixava de fazer outras coisas, eu fazia tudo que queira (...) era uma coisa
182
que eu controlava, ou não tinha tanto valor assim... e era bem legal,
porque eu tinha uma autonomia, vivia do meu jeito... tinha
responsabilidade.
Ou seja, fazia uso de múltiplas substâncias mas não sentia-se
impedida de realizar suas atividades. Logo, ser a Vendedora-de-Cachorro-
Quente trazia uma sensação de independência para Lou-Lou. Entretanto,
contraditóriamente representar essa personagem lhe trazia a sensação de
solidão, pois:
Corria atrás só que era sozinha... (...) era uma batalha já fudida. De fazer uma
parada sozinha (...) de comprar, de trazer, de levar, trabalhar todo dia... mas eu
vivia... continuava tendo uma vida, estudava, trabalhava, namorava, só que eu
fiquei com medo... social.
Tinha medo de se assumir completamente independente, o que
implicaria na profunda transformação na sua Identidade, que se mantinha na
mesmice por conta do contexto na qual estava inserida. Entretanto, essa
condição não é sustentada por muito tempo, pois é surpreendida pelo
namorado que resolve mudar de Estado, uma decisão que abala Lou-Lou,
que não achava-se preparada para mudar para outro lugar. O namorado por
outro lado, tinha planos diferentes, essa pessoa:
Foi viver a vida dela e ai nessa nova vida dela, tanto eu não estava
incluída, como eu não queria me incluir dentro de uma coisa, que era
uma pessoa indo pra outro lugar, tendo que começar a vida dentro de um
outro lugar de uma forma autônoma.
183
A separação do namorado vai fazer Lou-Lou recusar boa parte da
realidade que estava envolvida, a ponto de ficar um ano sem sair de casa.
Ele quis viver outra história da vida dele, eu quis viver a minha e ele
mudou de Estado... eu fiquei, depois que eu terminei com ele... eu fiquei
um ano sem namorar ninguém. Um ano sem olhar pra ninguém. Um ano
sem ter vontade nenhuma, só ficava em casa, não tinha vontade de sair
(...) tipo assim, perdi o sabor dessa história.
A possibilidade de encarar a mudança para outro Estado a deixou
desesperada; tinha se dado conta que não era tão autônoma quanto
imaginava, tinha se transformado em uma Garota-Isolada, se recolhe para
recobrar as força e repensar sua vida.
O MOMENTO EM QUE A GAROTA-ISOLADA COMEÇA A
ENCONTRAR OUTRA PERSONAGEM
O rompimento com o namorado a tinha enfraquecido, fazendo com
que se transforme na Garota-Isolada. Foi então que Lou-Lou conhece o
Feminismo e entende que este movimento pode enriquecer à sua Identidade;
essa aproximação vai proporcionar o surgimento de uma nova personagem
na história de Lou-Lou: a Anarcofeminista.
Eu fiquei (..) meio que perdida... sem saber o que fazer da vida, porque
eu estava há anos com essa figura (o namorado), então fiquei meio que
abalada... continuei levando meus dias... continuei fazendo as minhas
coisas (...) também eu já tinha participado de alguns grupos de mulheres,
porque daí eu comecei a me envolver um pouco com o feminismo, me
envolvi bastante daí quando eu me envolvi com o feminismo, já tinha me
184
envolvido antes com o anarquismo (...) como já tava tendo uma vertente
muito grande desse movimento feminista (...) já existiam muitas pessoas
falando: Ah! Olha meu existem mulheres que foram anarcofeministas, aí
tá... isso aí que eu gosto... anarcofeminismo (...).
Participar do movimento anarcofeminista proporcionou para Lou-Lou
a possibilidade de discutir algo que desde o início de sua adolescência a
intrigava: sua sexualidade. Lou-Lou lembra como esse assunto era tratado
como tabu pelas irmãs, “eu fui crescendo e acho que ausência de tudo me
moveu tanto que eu fui tanto atrás disso que eu cheguei a dar palestras pra
pessoas falando sobre corpo feminino, anatomia feminina, sobre
sexualidade, sobre preservativos, com pessoas menos privilegiadas.”
Aqui Lou-Lou diz que o fato de não ter sido esclarecida sobre as
questões que envolvem a sexualidade fez com que buscasse nos livros algo
que suprisse essas lacunas. Queria representar a Anarcofeminista-
Orientadora-Sexual, pretendia participar de um projeto, ser reconhecida
como alguém que podia ensinar algo, ser vista além das tatuagens e dos
piercings; isso por si só já compensava o investimento.
Era uma coisa muito legal, (...) a gente chegava, ia no posto de saúde
explicava do nosso projeto, perguntava se eles não tinham como ceder
Diafragma, DIU, pra gente poder estar fazendo uma divulgação de
contraceptivo no colégio e aí a gente tinha um vinculo legal com o
pessoal (...) eles todos ficavam admirados. Como vocês tão jovens estão
interessados em fazer isso? Geralmente as pessoas que fazem isso já
viveram muitas coisas antes, (...) e vocês tão jovens fazendo... e a gente
pô... batalhava pra caramba, fizemos algumas palestras prum grupo de
mulheres e era uma força tão forte mesmo, que a gente que nem.. tinha
185
uns grupos, assim de... que iam em escola, igrejas, pra fazer... cortar
cabelo, dar alimentos, essas coisas pra comunidade, pras famílias
inscritas, iam homens, mulheres e crianças e a gente ficava. E agora é
hora da gente fazer um grupo com as mulheres, venham... e aquilo era
maior intriga, porque o marido perguntava.. o que é que vocês vão fazer
com a minha mulher, vocês vão envenenar minha mulher, e ali a gente
chegava, falava uma palestra sobre todos os anticonceptivos, mostrava,
distribuía... podia ter meninas de quinze a sessenta e cinco, setenta,
noventa (...) a gente tinha camisinha feminina e pra uma mulher de
setenta anos aquilo, nossa (...) era muito gratificante... porque a gente
tinha uma vida social.. sem estar participando... sem estar participando de
nada, por uma necessidade nossa de estar podendo proporcionar... é... um
bem estar pra alguém, porque a gente tinha um conhecimento e não
precisava resguardar só pra gente (...).
Podia viver sua história, ser ela mesma e ter o reconhecimento do
outro, isso sem contar que o fato de participar do movimento
anarcofeminista a aproximou de outras mulheres, minimizando o
sentimento de estar perdida que sentia em momentos anteriores.
Eu não estou perdida, existem várias! (...) eu tinha contato com as
pessoas do México, pessoas da Espanha, pessoas de muitos lugares...
com realidades diferentes, com grupos de mulheres que viviam coisas
muito loucas, tá entendendo? então o que a gente foi fazendo cada vez
é... fazendo um desenvolvimento melhor desses conceitos que a gente
tinha enquanto mulher e organizando, fazendo grupo, fazendo encontro
nacional, (...) fizemos muitas coisas legais, muitas coisas, muito boas
mesmo.
186
Relacionar-se com outras mulheres, envolver-se com o
anarcofeminismo, identificar-se com os ideais do grupo, distanciou cada
vez mais Lou-Lou de sua família; não queria mais se subordinar à
dominação masculina em sua casa.
Eu passava cada vez menos tempo ali já... era... tedioso já. Tenho um
irmão assim que é meio violento (...). rolou muitas histórias meio que
foda (...). aquilo era muito, machista, muito prepotente, então esses
valores me incomodavam sabe, de você não poder resistir. Você tá num
lugar, se você der sua opinião, sua mãe vira e fala: fica quieta pra não dar
confusão, isso eu já não agüentava mais ouvir: fica quieta! fica quieta!
Não queria mais ser tratada como a Garota-Perdida-Rebelde-
Dominada-pelos-Irmãos, então, começa a ficar mais tempo na comuna.
Vamos dar a voz novamente para Lou-Lou e deixar que ela conte mais
sobre isso:
Fui vivendo um monte de coisas legais, toquei em banda, participei
desses grupos. Existia um racha muito grande dentro do grupo que a
gente convivia (...) porque eu vivia mais fora de casa ainda, do que
dentro, já podia tá lá tipo uma semana, sem parecer em casa... quinze
dias, um mês... já saia, vou viajar pra tal lugar e já ficava um mês fora de
casa e quando eu tava distanciada neste um mês, a diversão da maioria da
galera.
Lou-Lou se apresentava como a Anarcofeminista, lutava pelos
direitos das mulheres, participava de movimentos sociais; conta que neste
momento seu uso tinha a ver com o prazer e a contestação social.
187
Quando eu fui pra marcha dos cem mil era incrível a quantidade de gente
usando drogas (...) o que tinha de gente fumando maconha, bebendo e
usando droga... era muito meu, era muito mesmo. Dentro do busão, todo
mundo (...) Vamo fumando... tudo é legal, tá entendendo? (...) você
encontra o que as pessoas dizem.. Ah! Não pode? Então vamos fumar, tá
entendendo? Então era assim, você encontra a galera todo mundo fumava
maconha.. Você acostumava com os maconheiros também, era legal!
Então vamos fumar, vamos enlouquecer, vamos dar risada.
Até aqui o uso de drogas é descrito como algo que acompanha os
movimentos sociais de que Lou-Lou participa, sendo que da mesma
maneira que é utilizada para anestesiar o corpo e transcender, também era
utilizada para encorajar os embates contra o Estado.
Você é contra essas paradas de Governo e você vai pra cima. Uma vez
nos fomos contra a Bolsa de Valores de São Paulo, em prol do Jamal, (...)
mas sempre existe umas figuras como em qualquer lugar. Tem black
blocking, um pessoal que quebra tudo, tem um pessoal que gosta de
incendiar mesmo, tem gente que é kamikaze, (...) não é só por que é
kamikaze, alguém tem que fazer as coisas, achar também que tudo tá
ruim. Que nós vamos pra uma manifestação, que as pessoas vão ouvir,
nem sempre as pessoas te ouvem... te escutam. Ah! vamos ouvir, vamos
reivindicar. Não! Eu tenho que quebrar o pau e isso não é de hoje.
A ANARCOFEMINISTA É SURPREENDIDA PELO RETORNO DA
ADOLESCENTE-EXPERIMENTADORA
Estar inserida no movimento anarcofeminista não distanciou Lou-Lou
do uso de drogas, como ocorria quando era Anarcopunk, pelo contrário, os
momentos de prazer só faziam sentido com o uso dessas é neste momento
188
que reaparece a personagem Adolescente-Experimentadora; retoma o uso
dos remédios e conhece novas substâncias que até então não tinha
experimentado.
Depois eu voltei essa onda usar comprimidos, porque daí eu já conseguia
outros comprimidos que até então eu não tinha usado Diazepan... eu tinha
um amigo que trabalhava numa farmácia, na parte do estoque, imagina
ele tinha caixas e caixas de Diazepan, tinha Prozac, tinha Eribex, tinha
Ciclopérgico, colírio Ciclopérgico, ele tinha muitas coisas... Artâmia...
não é qualquer um que chega na farmácia e consegue comprar um
Artâmia... eu tinha vidros de Artâmia.
Lou-Lou conta que nesta época começa a utilizar drogas para tudo o
que ia fazer. Podemos perceber que, a partir de então, a relação com as
substâncias começa a se inverter; se em um primeiro momento Lou-Lou
usava drogas para viver, agora vivia para usar as drogas.
Às vezes a gente bebia cem cervejas, tá entendendo? Era a maior galera,
(...) só que nunca era aquelas cem cervejas. Ah! Vamos tomar uma
caipirinha, vamos tomar, vai misturando, vai misturando, daí a pouco...
Ah! Vamos fumar um beque... (...) tá muito chapado? Vamos dar um teco
pra melhorar.. Então começa, a hora que você tá bem, você já vê que
você já usou quatro, cinco, três, quatro, cinco substâncias na mesma
noite, você já fumou você já tomou coisa, já tomou outra pra reparar, já
bebeu mais, já voltou, melhorou, bebeu de novo, fumou de novo, (...) até
acabar a noite às vezes você já usou muita coisa, (...) daí vai indo, vai
indo, e vai indo (...)
189
E vai indo até conhecer os ácidos e junto a esses passa por
experiências até então não vividas. Para Lou-Lou essa foi a substância que
ampliou sua percepção.
Você descobre que... sabe, aquelas coisas que você tinha de usar antes
quando você descobre outras, elas começam a ser cada vez mais
irrisórias, então.. quando eu.. depois eu.. comecei a usar microponto,
microponto, star point, aí eu me alucinei, eu tomei ácido e me alucinei.
(...) é uma droga que a gente usa muito em festa... que é caro (...) quando
você toma assim, você alucina, você muda... a diferença da droga... é
uma droga de percepção, (...) ela vai ampliar sua percepção.
O que Lou-Lou está dizendo é que diferente dos remédios, do álcool,
do cigarro, da maconha; os ácidos vão entrar em sua vida ocupando um
lugar que nenhuma das anteriores tinham tocado: sua percepção. E para
tentar explicar essa nova experiencia com os ácidos recorre ao livro: “As
portas da Percepção”, de Huxley:
As portas da percepção” é um livro que todo mundo devia ler, quem usa
drogas (...) do mesmo jeito que você tá no céu primeiro, você vai
começar a descer no inferno. E a hora que você tá vendo o céu... nossa. É
lindo! As cores nossa, ficam um deslumbre de cor, um deslumbre de
sabor. (...) fica vivo né, e você se sente... não sei, dá um negócio por
dentro e você se sente bem... você fica acordado, você fica com seu
pensamento a mil por hora, com a percepção aguçada (...).
Lou-Lou-de-hoje esta se referindo a algo que a Anarcofeminista que
tembém era a Adolescente-Experimentadora começa a descobrir e que, até
então, ninguém havia lhe contado: “você vai guardando, guardando,
190
guardando, guardando nos seus arquivos até uma hora que no computador
não cabe mais arquivos. Você vai precisar de um outro computador, só que
cérebro você só tem um.” Neste momento, Lou-Lou descobre que o
problema das drogas que utiliza reside no tipo de uso que faz destas. Assim
como descobre que existe uma linha tênue entre o uso “integrador” e o
“desintegrador” dessas substâncias. Do uso “integrador” realizado de forma
compartilhada pelos grupos que participava e que tinha como significado
um uso lúdico, de descontração e socialização; para um uso “desintegrador”
decorrente do uso continuado e abusivo das substâncias, que por sua vez
passa a excluir o indivíduo cada vez mais da cena social e possibilita que
lhe seja atribuída personagens como: dependente, drogadito, adicto etc.
Chega inclusive a procurar tratamento nessa época; tenta encontrar
saídas para seu problema e procura um Médico. Entretanto, ao passar com o
médico se surpreende com o diagnóstico, pois esse último atribui uma
personagem que Lou-Lou não queria assumir: a Depressiva-Dependente-
de-Drogas, que agora lhe aparecia como uma identidade pressuposta, a ser
constantemente reposta.
O psiquiatra me falou: você sofre de depressão e você consome drogas
(...) isso que o psiquiatra sempre me dizia... Ah! Seu problema é
depressão e a primeira coisa que você vai fazer é usar droga (...).
Ao procurar o médico buscava tornar-se “normal”, tentava se adequar
novamente; no entanto, o diagnóstico feito pelo mesmo causa conflitos em
Lou-Lou, pois, como iria se curar se quem a tratava acreditava que seu
problema não tinha solução? Se a tristeza que sentia em alguns momentos
era depressão e se as primeiras coisas que faria era usar drogas, então não
191
tinha saída. Neste sentido, a palavra do 'especialista' aprisionava Lou-Lou
na personagem que não desejava encarnar.
Infelizmente o diagnóstico médico que recebeu não é uma “falha”,
uma exceção, pois esse tipo de diagnóstico tem uma utilidade na
manutenção da realidade. Berger & Luckmann vão dizer que as teorias do
desvio, da patologia, serve para apontar as tentativas de mudança da
realidade objetiva; logo, ao preocupar-se “com os desvios das definições
‘oficiais’ de realidade, deve criar um mecanismo (o especialista) conceitual
para explicar esses desvios e conservar as realidades assim ameaçadas.”270
Contudo, Lou-Lou não conseguia internalizar esse diagnóstico; algo
mais a intrigava:
Quer dizer, porque você tanto aumenta meu remédio em vez de
diminuir? Ele nunca me explicava. Só aumenta por quê? A Fluoxetina
pra ela diminuir tem que aumentar total, pra depois diminuir, nunca
ninguém me disse isso. Então o que eu fiz? Eu parei de tomar meu
remédio. Eu não quis o tratamento. De repente eu estaria tomando até
hoje (...).
A Lou-Lou-de-hoje comenta a decisão da Lou-Lou-de-ontem dizendo
que não teria sentido se tratar do uso de drogas, substituindo-as por outras
que já havia utilizado quando incorporava a personagem Adolescente-
Experimentadora; isso fica mais claro na colocação a seguir, na qual
justifica sua decisão:
270 Peter L. BERGER, & Thomas LUCKMANN, A Construção Social da Realidade: tratado de
Sociologia do Conhecimento, p. 153.
192
Eu não queria me dopar de remédio (...) porque já tinha tomado muito
remédio pra me dopar e a maioria dos remédios que eu tinha que tomar
pra me acalmar era remédio que antes eu tomava, tá entendendo? Então
claro, me acalmava... só que eu ia nos hospitais eles me mandavam
morder Diazepan. Eu chegava tendo crise de ansiedade, tremendo,
desesperada... pra mim eu tava morrendo.
Sentia-se morrendo por causa das drogas, ficava deprimida e ainda
lidava com o fato de ter que utilizar drogas para curar a depressão; nesse
momento decide procurar um sentido próprio para sua doença.
Então a depressão é uma questão física, mental, psicológica? sim, tá! É a
falta de serotonina? É a falta... é a falta de você ter amor? É a falta de
você ter amor, sabe. É falta, das coisas dando errado pra você é a falta de
não ter conhecimento. Porque algumas pessoas são mais alegre e outras
mais tristes (...) Porque às vezes as pessoas podem ser trastes e continuar
a levar a vida numa boa e porque outras não conseguem? Então assim,
antes eu olhava pra mim e me achava legal, uma vez eu fui olhar algumas
coisas e que eu observei assim... tiveram dias que eu escrevia: hoje não
foi legal, ontem não foi legal. Porque? (...) eu nunca tinha observado isso
aqui, demorei tanto tempo, (...) Acho desde pequena já fui melancólica,
mesmo, meio depressiva (...).
Nessa época começou a se dar conta que mesmo quando viva a
personagem Garota-Morna não era tão feliz, pois tinha que abrir mão do
que queria para ser amada, estava presa a uma orientação de busca do
prazer através da obediência, que possivelmente estaria entre os níveis 1 ou
3 do esquema 4 apresentado por Habermas271.
271 Tabela 7 apresentada no capitulo 4 da dissertação.
193
Hoje, no entanto, discute a influência da sociedade em seus sintomas,
assim como as questões econômicas ajudam ou impedem novas
personagens.
Se sua vida tá boa você consome drogas, se seu dinheiro não falta, não
tem muitos problemas, você pode continuar a vivendo num ritmo meio
assim, porque até sua memória estimula, você tá entendendo? Agora, se
você tá sem trabalho, (...) se você tem que comprar comida, se você,
sabe... está vivendo numa vida mais precária, mais ainda você consome
drogas, consome mais, não deixa faltar (...) depois que cai sua
consciência numa realidade, (...) eu tenho que comer, pô (...).
Lou-Lou mostra que o consumo de drogas quando perde seu
significado cultural tradicional e passa a ser determinado pelo mercado de
consumo, favorece que os indivíduos a utilizem forma desintegradora.
Também diz que se tivesse feito suas experimentações dentro de um
contexto, em que o sentido fosse dado pelo xamanismo, talvez sua história
com as drogas fosse outra.
Só que a gente não tem o Xamã, a gente não tá no meio de uma tribo
indígena, na onde tem cogumelo que deixam as mulheres levitar. Eu não
tô no meio de um ritual que vai me levar tanto, porque, porque vai ter um
desgaste físico, porque vai ter uma energia e alguém pra te ajudar a
caminhar, pra você não se perder. Não! cê tá viajando e o outro fica ali!
Aqui Lou-Lou expõe uma das dificuldades encontradas pelo usuário
de drogas na Modernidade; ao utilizar substâncias fora de um contexto
trancendental, elas são consumidas como se fossem mercadorias estranhas,
passando então a utilizá-las para negar/denunciar uma realidade em que não
194
se reconhece. No caso de Lou-Lou, esta utilizava as drogas para sair da
realidade objetiva/opressiva na qual estava inserida; claro que nem sempre
esse uso saía como planejado e nesses momentos tinha que lidar com seus
sentimentos frente ao inesperado, ao mistério do auto-desconhecimento.
A mente humana é uma incógnita pra qualquer pessoa. Ninguém
conhece, porque não dá pra você abrir sua cabeça quando você tá
pensando e tá vendo tudo que tá acontecendo, porque tem coisa que não
tão ligada, tem coisas que são ligadas com sentimento, aquilo que você
viveu, (...) e ninguém é igual, todo mundo é diferente. Se existe a melhor
forma de você consumir isso, se existe uma forma ideal, seria através de
um Xamã.
As colocações de Lou-Lou nos fazem refletir sobre a falibilidade dos
programas de prevenção ao uso de drogas, que baseados no agir estratégico,
acreditam que a disseminação de informações, proibição e repressão do uso
possam fazer com que os indivíduos não experimentem, ou ainda, não
continuem o uso de determinada substância.
Você um dia tem muitas coisas pra ler, só ler, só saber não adianta,
porque não é uma questão de você ter só o conhecimento, é uma questão
muito mais forte, porque daí por mais cético que você seja, vai despertar
sua espiritualidade. Porque? Porque você sente saindo do seu corpo, você
sente seu corpo inteiro... uma explosão de sentimento, você consegue
sentir cada partícula do seu corpo... você consegue tocar no seu rosto e
sentir todo o formato do seu crânio, você consegue quase enxergar quase
todas as microparticulas que é feito, então é uma coisa que é muito
ritualística (...).
195
Aqui Lou-Lou aponta mais uma outra questão sobre o uso de drogas
e que contradiz o que é vinculado pelos agentes institucionais mais
conservadores que pretendem impedir o consumo uso de drogas. Como
fazer com que um jovem que experimenta as sensações descritas por Lou-
Lou acredite no discurso de que as drogas não são boas, ou ainda que estas
matam? Lou-Lou, tentando descrever esse sentimento de onipotência
experienciado pelo usuário de substâncias psicoativas, explica que:
Ao mesmo tempo que você vê tudo lindo, você vê a natureza e sente-se
parte dessa natureza, (...) você consegue enxergar isso... uma coisa tão...
sabe... muito bom, dentro desse lado humano, dentro desse lado foda pra
caralho de existência, (...) eu sou como uma flor, um bicho, sabe... você
quase que vira um Deus, meu... você vira um Deus dentro daquele sonho
encantado.
Fazendo novamente referencia ao livro de Huxley, descreve dois
universos simbólicos vivenciados pelo uso de drogas: Céu e Inferno. Assim,
conta que quando estava no Céu, teve experiências maravilhosas com as
drogas, tendo vivênciado aquilo que descreve como elevação espiritual.
Para tentar explicar essa elevação espiritual recorre a mais um episódio:
Eu tomei ácido e saí no centro de São Paulo andando pra ver como era a
experiência (...) como era o olhar das pessoas, como era isso, com era
aquilo. Como era eu olhando o mundo daquele jeito e tudo isso
acompanhada de muita leitura, da mais diversa possível... lendo muitos
poetas, vendo muitos filmes.
196
APARECE A BRUXA-DA-ILHA-DA-MAGIA NA ESTEIRA DA
ANARCOFEMINISTA-QUE-NÃO-ERA-MAIS-ATIVISTA DEPOIS DO
RISCO DE SE TORNAR A DEPRESSIVA-DEPENDNTE-DE-
DROGAS
A busca de sentido para a vida, como usuária de drogas, faz com que
Lou-Lou queira cada vez mais encontrar um Xamã para orientar sua
elevação espiritual. Essa busca pelo Xamã vai fazer Lou-Lou mudar-se para
Florianópolis, para a Ilha do Bob272. Lou-Lou busca uma vida fora dos
padrões de São Paulo, pretendia viver em contato com a natureza, porém
mais uma vez Lou-Lou verá que a questão não se limita apenas ao lugar
onde estava vivendo, mas sim a maneira que está vivendo em determinado
lugar. Lou-Lou-de-hoje descrevendo seu modo de vida na Ilha da Magia
fala que:
Não sei, tem umas coisas aqui que não é como em outros lugares, a
natureza é muito forte. As próprias plantas, você convive numa realidade
de relação com a natureza, então assim... tá chato? você pega um ônibus,
você dá um rolê. Só de você ver, só que se você não tem pra pegar o
ônibus, a praia pode estar do seu lado e às vezes não vai ter o mesmo
efeito. Porque você está procurando um trampo, você esta andando a pé,
você é descriminado, a cidade é pra quem tem carro... você vai querer
ganhar dinheiro no cambio negro é tudo uma máfia fudida. Todo mundo
sabe quem é todo mundo... é uma certa maneira pequeno, (...) O que você
272 Fazendo referencia a Bob Marley e da associação da ilha com o uso de maconha, também
conhecida como Ilha da Magia.
197
faz, se você tem grana, se você não tem (...) dependendo você é tratado
de um jeito ou de outro.
Está dizendo que as condições objetivas dadas na Ilha do Bob não
possibilitavam que essa pudesse viver-a-vida-que-queria. Novamente se
depara com dificuldades concretas; as regras do jogo eram outras e Lou-
Lou ainda não as conhecia.
Todo mundo fala que ama a gente, tá entendendo? Só que esse mais lento
faz você ter um jogo mais de cintura, você tem que andar como se
estivesse dançando regaee na história, porquê é livre. Você tem que ser
bem maleável, muito maleável. No inverno fica todo mundo que nem
urso, porque, porque vive de turismo, no inverno o inverso do verão, faz
muito frio... como é uma ilha, muita água, sabe... vai ter muita umidade...
(...) tem aquele frio muito úmido e não consegue secar nada, as coisas
emboloram, você vive um processo de natureza, você tá entendendo?
Que faz você ficar de uma outra forma.
As dificuldades fossem apenas o processo da natureza, seria apenas
uma questão de adaptação ao eco-sistema. Entretanto, as coisas não eram
apenas uma questão de adaptação ao meio, como vai ser apontado por Lou-
Lou ao apresentar sua a crítica à política de Florianópolis, que priorizando o
desenvolvimento turístico desenvolve uma política de exclusão que,
segundo a mesma, contribui para o desenvolvimento da miséria nas
periferias.
Ah! vem muito maluco de todo de tudo quanto é lado, cola muito
mochileiro, artesão, cola gente louca de tudo quanto é lado, (...) vamos
pegar e limpar a cidade... porque? Porque, é uma cidade que vive do
198
turismo, a gente não quer esse turismo, queremos o turismo dos
argentinos, o turismo dos espanhóis, dos americanos, a gente quer o
turista que renda muita grana (...) as pessoas tem que poder andar com
essas câmeras de ultima geração penduradas no pescoço... só que nem
tudo se controla... porque do mesmo tempo que está crescendo isso que
eles querem, do outro lado tá crescendo o que? A miséria
descontroladamente (...).
Lou-Lou está se referindo a lógica sistêmica, na qual uma minoria
dominante impinge às minorias suas formas ideais de vida, negando a
efetiva igualdade de direitos. Entretanto, a privação das condições de
desenvolvimento econômico não impedia Lou-Lou de se relacionar com
outros indivíduos – com suas diversidades culturais –; esse fato ocorreu
devido ao caráter predominantemente turístico de Florianópolis, que
também facilitou que conhecesse outros tipos de substâncias.
Eu tomei êxtase (...) Haxixe marroquino de Canabis Seap, (...) o que rola
na Europa, rola aqui. (...) você conhece pessoas, você conhece gente que
fornece, gente que viaja, cheio de turista, tem gente do mundo inteiro,
você quer usar droga boa aparece na praia mole, vai num campeonato de
surfe, todo mundo vai tá fumando... vai na festa todo mundo vai fumar,
só Haxixe... sempre tem.. esses caras do circuito internacional tudo usa
Skank, só fuma do melhor.
Viver na Ilha da Magia aproximou Lou-Lou daquilo que há muito
vinha buscando: o lado místico da droga.
Se existe um lado que é dessa realidade? Eu não nego, porque o meio
cósmico é (...) que não é regido por ninguém branco, por essa história
que eu vejo de religião, alias eu não consigo me identificar com religião,
199
porque a partir do momento que eu começo me aprofundar um pouco
mais na religião, aquilo em vez de me encher, me dá mais desilusão, me
dá tristeza... eu não consigo, eu começo... esse negócio de ficar adorando,
esse negocio não é pra mim. (...) isso não é o que eu venha buscar. Eu
posso achar uma divindade bonita, algumas coisas legais, por isso que eu
começo a me encontrar mais pro lado dos orientais, negócio meio que de
meditação, negócio.
Agora a Anarcofeminista-Que-Não-Era-Mais-Ativista, na busca de
um sentido de vida mais integrador, começa a investir no lado místico e
ritualístico das drogas; transforma-se na Bruxa-da-Ilha-da-Magia e com
essa nova personagem busca novamente sentido para o uso de drogas, que
agora estava ligado aos rituais de elevação espiritual. Fez uso de drogas
ligado a rituais por algum tempo; porém, certo dia esse equilíbrio é
quebrado, após ingerir uma grande quantidade de ‘chá de cogumelo’ em
uma festa. Esse fato faz com que Lou-Lou encontre àquilo que descreve
como o inferno das drogas. Lou-Lou descreve assim esse episódio em sua
história de vida:
Teve uma vez que a gente cheirou cocaína, fumou maconha e chegamos
numa festa e já tava travados por que já tinha andado quatro
quilômetros... e travado. A hora que cheguei, lembro que um menino me
deu um chá e tinha chá de erva cidreira, era uma festa junina, pensei: é
chá de erva cidreira, tomei um golão meu, muito nervoso.. e era um
cogumelo com cidreira... e aí foi muitas coisas, a gente tinha usado
muitas coisas num dia só. Cada uma um efeito diferente, aí depois já
comecei ficar meio estranha, (...) e daí que foi o único cogumelo que eu
não gosto muito de ter tomado, porque ele me causou... porque ele não
foi feito por nenhuma pessoa que a gente sempre fazia, porque querendo
200
ou não a gente tinha o nosso ritual e a energia que a gente usava, era a
energia daquelas pessoas que sempre eram amigas.
Havia tomado ‘chá de cogumelo’ fora do contexto ritualístico, em um
lugar estranho, longe dos amigos; isso era algo que Lou-Lou não conseguia
“absorver” adequadamente; a partir de então sua relação com as drogas
toma outro rumo; vivenciaria o Inferno.
Assim, após esse episódio a Bruxa-da-Ilha-da-Magia perde seus
poderes; tinha se intoxicado e não podia mais confiar nas pessoas. Todavia,
diferente das outras vezes – em que se isolava para se recuperar – descobre
um outro significativo em quem poderia apoiar.
Eu tinha um amigo muito mágico, lembro que sempre ele tirava meu I-
Ching, ele era uma pessoa de uma energia muito boa e aí ele ficava:
intoxicaram essa menina. Trouxe muitos chás de desintoxicação, pra
jogar pra fora alguma coisa porque eu tava intoxicada, mais não jogava
nada pra fora.. e eu fumava um beque e ficava muito mais delirando (...)
fiquei totalmente depressiva e todo mundo estava tudo bem, lindo,
maravilhoso, e eu estava muito mal, assim... muito mal... medo eu tinha
(...) todo mundo tem medo, só que você deixar aflorar todos os seus
medos, você começa a não viver mais nada, você só vai ter medo, medo,
medo, medo e insegurança.. você só vai ficar trancada dentro de casa,
você só vai... mais e quando você tem medo de você mesmo? (...) acho,
que a maior resposta vai tá aí.. e quando você começa a ter medo do que
você pode ser capaz de fazer.. quando você começa a ter medo de você,
do humano assim, quando você vê que você é capaz de fazer.. e o outro...
(...) a gente teve muita experiência de cogumelo, (...) mesmo entre
amigos, assim.. e teve viagens maravilhosas mas.. não.. não dá pra negar
do Huxley, que é a porta da percepção que é o céu e o inferno.
201
Estando no inferno não lhe restava outra alternativa senão conhecê-lo
e lidar com o que estava vivenciando; que era associado na mesma
intensidade àquilo que experienciou quando estava no Céu. Dessa maneira,
explica que: “do mesmo que você sobe, você desce sempre tem o inferno.. e
dentro desse meu inferno, eu dei corda pra esse inferno. Porque? Quis
buscar o inferno também, não só por querer buscar o inferno... porque ele
existe.” O inferno é onde somos consumidos pelo fogo sem morrer!
QUANDO APARECE MAIS UMA PERSONAGEM NA HISTÓRIA
DE LOU-LOU
Ao bater nas portas do inferno Lou-Lou depara-se com uma personagem
inesperada e embora não tivesse batido nessa porta por sua própria vontade
a mesma já estava aberta não tinha como voltar atrás. Lou-Lou aprendeu
que transcender a realidade tem um preço: bater em portas desconhecidas,
que podem tanto levar ao paraíso quanto ao inferno. Isso coloca mais uma
complexidade no uso de substancias psicoativas: a busca do prazer e da
transcendência também pode levar às portas do desprazer e da loucura e que
isso não tem com algo que possa ser evitado a priori.
Simplesmente ela existe... só que ela precisa ser despertada, não sei se é
bem isso, mas... Eu imagino que é um estado do seu cérebro, da sua
cabeça, que está adormecido, o lado psicótico também... se você for
entrar nessa porta, você bateu na porta errada, às vezes... da percepção
(...) se você bater na porta errada.. Ops! Desculpe! Não era aqui mas eu
queria entrar, você já abriu a porta (...).
(...) quando você chega perto do suicídio talvez você viva um pouco
desse inferno, que seria após a morte em vida. Eu acho que de uma certa
202
forma (...) chegou não só eu, como outros dessa experiência que
vivíamos algumas experiências juntos, a gente chamou muitas energias
sem ter o conhecimento... a gente brincou com coisa que a gente não
sabia... porque a gente era ingênuo.
Tendo adentrado às portas do inferno sofre uma nova transformação:
vivenciaria a Louca-Suicida que, no processo de vida-e-morte, sentia a
proximidade de chegar a Zero. Embora aparentasse estar saudável, estar
fisicamente linda, trabalhando, fazendo atividades físicas etc., o uso de
drogas neste momento da sua vida era de desintegração, de negação de si
mesma:
A gente dizia vamos usar mais um pouco... porque quando você chega
perto do suicídio, é uma coisa muito forte, você está querendo causar sua
própria morte, (...) se você quer buscar sua própria morte, você tem que
tá numa frieza, numa repugnância ou você mesmo, numa apatia, que
nada mais é importante... nada mais é importante, porque perdeu o brilho,
tudo perdeu o brilho... tudo fica cinza... (...) você não tende mais a querer
viver, sente só uma tristeza... que era tanta, tão dilacerante.. que nada vai
fazer contrapor... então eu vivi um momento que era muito delicado na
minha vida (...).
Foi então que, assim como a Severina pesquisada por Ciampa, Lou-
Lou tendo incorporado a personagem Louca-Suicida chegou ao zero e ardeu
em chamas.
Acabei metendo minha cabeça no fogo, porque não agüentava mais
pensar. Porque não conseguia mais controlar meu pensamento, porque
minha cabeça era tão acelerada que eu queria dormir e não dormia, eu
achava que o mundo inteiro conspirava contra mim, que a comida que
203
tavam me dando estava me envenenando, a pessoa que mais me amava,
eu desconfiava de todo mundo. Eu não conseguia confiar em ninguém..
eu me fechei, me fechei, me fechei.. tanto, tanto, tanto, que eu não
conseguia fazer nada, eu não conseguia ficar sozinha. Eu não conseguia
nem falar, eu não conseguia expressar nada, porque eu fiquei numa
viagem.. muito foda, (...) Eu recebi muitas coisas anarquistas e por muito
tempo me envolvi com isso, mas li muito niilismo e niilismo, claro você
tem uma proposta, mas assim... ele acaba com todas as propostas, não é
que ele acaba, mas esclarece na tora essas paradas. Então você esclarece
(...) fica muito descarado, você já tomou drogas de percepção que já
ajudou você a mexer com um lugar que tava meio que intocado e ajudou
com outras coisas em você (...).
O RETORNO DA DEPRESSIVA-DEPENDENTE-DE-DROGAS QUE
AGORA TAMBÉM ERA LOUCA-SUICIDA
Lou-Lou tinha chegado a zero, estava inutilizada. De acordo com o
diagnóstico médico dado anteriormente era uma Depressiva-Dependente-
de-Drogas; agora tinha incorporado à sua identidade também a personagem
Louca-Suicida. Se antes contava com algumas personagens para se
diferenciar em distintos espaços, agora não as tinha mais; não era a
Anarcofeminista, nem a Adolescente-Experimentadora, nem a Bruxa-da-
Ilha-da-Magia; tinha sido reduzida à personagem Dependente-de-Drogas-
Louca-Suicida, ou seja, era apenas uma doente que necessitava de
tratamento, de adequação novamente. Indefesa, é levada para a casa dos
pais e retoma o lugar da Garota-Morna. Esse período foi muito difícil para
Lou-Lou, como pode ser verificado abaixo:
204
Às vezes eu não podia expressar aquilo que estava sentindo, às vezes eu
queria berrar eu não podia com medo de incomodar alguém ou então
assim: porque você está chorando? A gente faz tudo pra você melhorar e
você não esta melhorando. Porque? (...) não queria estar chorando, mas
eu tava chorando naquele momento e eu não sei o que era e é muito foda.
A Lou-Lou-de-hoje reflete sobre o momento em que sua identidade
foi reduzida à personagem Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida.
Você está no auge da sua vida e estar vivendo uma vida sedentária,
precisando de uma mãe pra alimentar (...) precisando do meu pai porque
não conseguia andar sozinha. Tinha que tomar remédio pra anemia. Era
incrível, chegava nos lugares e perguntava, mas porque tenho que tomar
esse remédio? Estou anêmica? Vocês fizeram exame de sangue? Eu não
entendia porque eu tomava, porque falavam que eu estava anêmica, só
porque eu sou vegetariana.
Tinha perdido a possibilidade de escolha, era vista como incapaz, de
pensar e ser. De volta à casa dos pais, foi encaminhada para o CAPSI de
Diadema, que se recusa a tratá-la pois, segundo a instituição, Lou-Lou teria
surtado por conta do uso de drogas, logo, seu tratamento teria que ser
realizado no Espaço Fernando Ramos da Silva. Em outras palavras, como
tinha sido dependente de drogas antes de ser psicótica tinha que ser 'tratada'
em uma instituição para usuários de drogas. Sob essas circunstâncias as
cinzas da Louca-Suicida foram levadas para o EFRS, sendo que a ajuda da
mãe de Lou-Lou foi essencial nesse processo.
Minha mãe mais uma vez ela me renasceu, me deu vida de novo, porque
ela me abrigou nos braços e cuidou de mim que nem um bebê; eu
205
cheguei e não conheci ela (...) o que me fez bem, porque eu tava vivendo
aquele negocio de usar drogas.
É levada pela mãe para fazer 'tratamento' no EFRS. Entretanto, o fato
de ter vivenciado a rotina dos diagnósticos médicos durante toda sua vida,
ter lido sobre exclusão, sobre o desrespeito aos direitos dos ‘desviantes’, fez
com que tivesse medo do EFRS em um primeiro momento.
Eu tinha esse lado muito de.. radical dos lances. Você tá entendendo?
Então eu não tomava nada de remédio, de repente tive que tomar
remédio, aí porra... nem aqueles remédios eu queria mais tomar... E foi o
que eu fiz; parei de tomar aqueles remédios. Porque aquele remédio cria
inibição sexual, engorda, te dá um monte de contra indicação (...)
ninguém tá preocupado com essas outras coisas, só tá preocupado que
você tem que melhorar e tomar o remédio. E daí como eu já tinha tomado
um vidro de remédio e feito lavagem estomacal, conclusão era total
controlado na casa da minha mãe, só me dava um comprimido e pronto,
eu tive que enganar ela (...) não podia acreditar naquilo, eu quis acreditar
em outras coisas.
Queria acreditar em outras coisas mas ficava num impasse; queria se
tratar, mas todos os tratamentos pareciam ameaçadores. Só que desta vez
não tinha como se rebelar contra os remédios; estava nas 'mãos' de sua
família; então, teve que lidar com diversos conflitos durante seus primeiros
meses no EFRS.
A primeiro momento eu tinha medo de todo mundo e assim indiferente
se era homem ou mulher, de às vezes alguém se aproximar com segunda
intenção, sabe... e você tipo ali marcando, porque... por isso que rola
muito esse lance de estuprar pessoas loucas, né? Porque elas ficam que
206
nem criança (...) Eu não sei o que rola.. você fica desprendido desse
mundo, dessa maldade.
No EFRS teve contato com a oficina terapêutica de teatro de imediato
e, ao contrário do que podia imaginar, seu primeiro contato com essa
oficina não foi muito prazeroso para ela. Vamos deixar que Lou-Lou conte
como aconteceu:
Logo quando eu cheguei rolou uma parada lá na Câmara de Diadema, eu
fui pro Coral, eram muitas pessoas, muita coisas e a (Psicóloga) gritando:
Merda!, e eu aí... onde eu tô?, o que tá acontecendo? Porque foi muito
fogo, porque é desse jeito e em São Paulo é muito maior o ritmo. Quando
eu cheguei lá, aí mudou muito meu, tinha muita gente surtada... muita
polícia, muita polícia, muita polícia, muita, então eu ficava: meu que que
é isso? Eu já tava louca ainda naquele lugar, com a cabeça toda queimada
(...).
Contraditóriamente, esta vivência na instituição, em um primeiro
momento, possibilitou uma nova experiência para Lou-Lou.
Meu surto não é igual ao do outro, mas de repente tem uma coisa em
comum... aquela peça lá, aquela dança que era, como era mesmo o
nome.,. grupo da (Psicóloga), aquele pessoal do CAPSI, Mu-Dança..
aquilo é lindo meu! A forma que foi feito, aquelas pessoas que fizeram,
não estou querendo, designar que um trabalho é mais bonito que o outro,
porque o trabalho artístico, a dança, o teatro, envolve um sofrimento
fudido, então não tem como você ficar diante de uma coisa tão linda e
falar que não te causa um efeito emocional, é um bagulho muito forte (...)
E a forma como foi captada a mensagem é uma forma muito legal!
207
Após esse primeiro contato com as oficinas terapêuticas começou a
participar de diversas atividades no EFRS; até então, era levada pelos pais
que participavam ativamente do processo de recuperação. Lou-Lou passou
por atendimento psicológico, psiquiátrico, pelo Grupo de Acolhimento de
Mulheres e pelas oficinas terapêuticas de artes-plásticas e teatro. Esta traz
um pouco da experiência em cada um desses lugares; encontrando no
atendimento médico e psicológico algo que não presenciara em nenhum
outro lugar, que se diferenciava, das tentativas de 'tratamento' anteriores, no
qual o psiquiatra a priori já a via como a Dependente-de-Drogas-
Depressiva. Lou-Lou descreve essa outra relação com os técnicos do EFRS
da seguinte forma:
Como a (Psicóloga), (Médico) que era um psiquiatra de outro tipo. Uma
pessoa muito mais aberta, muito mais emocional.. como contato que eu
estou tendo com você.. estar interagindo. E esse lance de integridade,
todo mundo de uma forma horizontal é uma coisa que te faz crescer,
porque te faz lembrar como é aqui fora, não da pra você ficar ali dentro
sendo tratado como um doente (...) Ah! você é um doente, você é aquilo,
não! O que vão querer saber é o que você sabe pra você. Não quero que
uma pessoa carimbar: você e uma psicótica, você tentou se matar, não
preciso de alguém ficar toda hora me lembrando... Ah! Porque você é
uma burra, porque você tentou queimar seu cabelo? Porque você surtou?
Você é uma louca! (...) Eu já ouvi isso algumas vezes na vida e é foda.
Essa ‘relação terapêutica’ vivida por Lou-Lou proporcionou uma
quebra na re-posição da personagem Dependente-de-Drogas-Louca-
Suicida, ou seja, a quebra da perda de liberdade proporcionada pela doença
psíquica. Aproximando-se daquilo que Mitscherlich entende como objetivo
da terapia, que seria um autoconhecimento, que “frequentemente não passa
208
da transformação da doença em sofrimento, porém num sofrimento que
eleva o grau de Homo Sapiens, pois não aniquila sua liberdade.”273 Assim,
ser reconhecida como alguém que era outra que não a Dependente-de-
Drogas-Louca-Suicida que precisa buscar uma saída para seu sofrimento,
parece ter feito a diferença no tratamento de Lou-Lou, porém não só isso,
como será apresentado na continuidade de sua história. Essa relação será
reforçada no Grupo de Acolhimento de Mulheres, um local na qual pode
resgatar a Anarcofeminista.
O grupo de mulheres foi essencial enquanto mulher, porque? Porque
quando você está com outras mulheres que passam problemas parecidos
com você, em termos físicos, emocional (...) você se sente que num
grupo de amigas é uma boa forma de você se inserir novamente (...) Dá
uma segurança legal. Dentro disso no grupo de mulheres, a (Assistente
Social), a (Psicóloga) e a... esqueci o nome dela... branquinha de cabelo
preto.. (Enfermeira). Elas são mulheres muito fortes (...) Muito
interessantes, (...) ajudaram muito, foi uma coisa essencial e de você vê e
de estar desenvolvendo algum conhecimento seu, enquanto mulher, com
outras mulheres, dentro daquele período, (...) eu naquele momento.. de
tudo eu tinha medo, depois eu comecei. Não sei eu fui voltando.
A Anarcofeminista começa a se fortalecer novamente e resolve
investir no 'tratamento'. Neste as oficinas terapêuticas terão um papel
fundamental, pois, por meio da oficina terapêutica de teatro Lou-Lou
colocará em questão o papel de Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida e
como a Fênix pode ressuscitar das cinzas.
273 Alexander MITSCHERLICH apud Jürgen HABERMAS, O futuro da natureza humana: a
209
Teatro muito fudido, porque ele mexe com o corpo, ele mexe com a
emoção, faz resgatar de novo esse lance de auto-estima, te empurra,
teatro já tinha assim, um desenvolvimento legal! (...) teatro misturado
com uma fonoaudióloga é foda pra caramba (...) você enquanto pessoa
capaz de produzir.. isso te dá vida, isso te traz calor, isso é humano. A
(Oficineira): olha nós somos de uma companhia... vamos lá, vamos
ensaiar, vamos fazer, sabe... vamos se pintar, vamos por peruca, vamos
criar o absurdo.. e é isso.
O que Lou-Lou está querendo dizer é que ao fazer parte de uma
companhia de teatro já começava a questionar sua identidade pressuposta,
que estava sendo re-posta, como visto anteriormente. Essa possibilidade
parece ser devido ao próprio potencial da arte que “jamais é uma mera
descrição clínica do real. Sua função concerne sempre ao homem total,
capacita o “Eu” a identificar-se com a vida de outros, capacita-o a
incorporar a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser.”274
Assim, o fetiche da personagem vivenciado por Lou-Lou não pode ser re-
posto na apresentação da oficina terapêutica de teatro, pois como ensina
Glusberg:
(...) é impossível uma repetição tipo cópia-carbono de uma outra
performance; em primeiro lugar, porque as condições psicológicas
vinculadas com as representações subjetivas do performer, sempre
variam, não são imutáveis; em segundo lugar, porque o tempo real que
separa uma performance de outras vai incidir sobre sua produção
caminho de uma eugenia liberal?, p. 07-08. 274 Ernst FISCHER, A necessidade da arte, p. 19.
210
concreta, como que determinando o tempo psicológico da execução, o
tempo de colocação em cena.275
Sendo muitas vezes espontânea, a apresentação da oficina terapêutica
de teatro aproxima-se do conceito de Criaturgia276 proposto por Moreno e
seria a alternativa para uma criação própria do drama, não estando
preocupada com os eventos contidos nele, nem com as leis que possam ser
dele extraídas.
Moreno explica a diferença entre Criaturgia e Dramaturgia da
seguinte maneira:
Enquanto o drama se constitui, dentro da mente do autor, como único ato
unificado de criação, no caso do Improviso, aquilo que até então vinha
sendo apenas assumido cobra sua realidade; cada ator de Improviso é
verdadeiramente o criador de seu personagem dramático, e o produtor de
improviso (aliás, o autor) deve sintetizar dentro de um novo todo os
processos de cada personagem dramático.277
Então, ao resgatar a Anarcofeminista, Lou-Lou reúne forças para
ressuscitar das cinzas, surgindo uma nova Fênix capaz de criar novas
personagens; representar aquilo que a negava, aquilo que gostaria de ser e
apresentar para o mundo aquilo que realmente era.
É aqui que Lou-Lou conta um dos segredos da oficina terapêutica de
teatro:
275 Jorge GLUSBERG, A Arte da Performance, p. 68. 276 Nome dado por Moreno para contrapor 'Dramaturgia'. 277 Jacob L. MORENO, O teatro da espontaneidade, p. 62.
211
Ah! Mas é só um personagem! Mas aquilo é a gente, você é capaz de ser
a gente, é capaz de ser feliz, dar risada, de fazer as pessoas rirem e isso,
esse retorno é muito fudido (...) sentir perante as pessoas que convivem
com a gente, que a gente foi capaz de proporcionar uma emoção muito
forte nelas. Porque a gente tá vivo. Então a gente tem um respaldo
enquanto pessoa... de falar: Pô, você fez aquele teatro muito legal! (...)
aquilo é muito foda (....) aquilo foi a minha vida. (...) resgatou minha
vida de um jeito... e a forma de organizar um Sarau (...) eu gostava muito
de estar ali participando.
Por meio do teatro pôde questionar a personagem Dependente-de-
Drogas-Louca-Suicida e apresentar um novo “Eu” que podia ser re-
conhecida pelo outro. Utilizando novamente a contribuição de Moreno
podemos inferir que quando é “permitido a um ator uma espontaneidade
completa de sua própria autoria, seu próprio mundo particular, seus próprios
problemas, seus próprios conflitos, seus próprios fracassos e sonhos
passaram para o primeiro plano.” 278 Logo, na oficina terapêutica de teatro
Lou-Lou passa da condição de ator para a condição de autor da sua própria
história.
Sua vivência na oficina terapêutica de teatro demonstrou que esta
“pode elevar o homem de um estado de fragmentação a um estado de ser
integro, total” 279e, mais do que isso, “capacita o homem para compreender
a realidade e o ajuda não só a suportá-la como a transformá-la, aumentando-
278 Jacob L. MORENO, O teatro da espontaneidade, p. 120. 279 Ernst FISCHER, A necessidade da arte, p. 57.
212
lhe a determinação de torná-la mais humana e mais hospitaleira para a
humanidade.”280
Foi nesse momento que Lou-Lou, vivenciando a Fênix ressurgida das
cinzas, despediu-se do EFRS; entretanto, sua despedida não foi um simples
adeus; da mesma forma que sua mudança começou após um espetáculo
teatral, neste mesmo lugar pôde avaliar sua própria ‘mu-dança’.
Quando eu assisti pela primeira vez o Mu-Dança (...) muitas coisas vi
viajando total e a última vez que eu fui, foi pra poder sair e ir sozinha de
ônibus, me encontrar. Poder sair sozinha de novo, aquilo foi lá no
Mackenzie, aquilo me deu uma vida, eu entendi o negócio. Sabe... as
coisas que eu gosto, tenho que retomar as coisas que eu gosto, tenho que
retomar minhas coisas, cadê minhas musicas, cadê meus livros, cadê
meus discos (...).
O que Lou-Lou esta contando confirma algumas coisas que Mead já
havia nos mostrado: Só podemos desenvolver um self na medida em que
conseguimos expor nossa espontaneidade e somos reconhecidos pelos
outros; assim, na oficina de teatro “os artistas também revelam conteúdos
que representam uma expressão emocional mais ampla”281, não redutíveis
às análises externas.
Sendo a performance na oficina terapêutica de teatro um ato de
comunicação e, logo, sujeita às regras do agir comunicativo, sua recepção
será sempre a busca de um consenso sobre a validade ou não da
apresentação. Essa transformação é conseguida “através de uma
280 Ernst FISCHER, A necessidade da arte, p. 57. 281 George H. MEAD, Mind, Self and Society, p. 240.
213
remodelação da linguagem, da percepção e da compreensão, de modo a
revelarem a essência da realidade na sua aparência: as potencialidades
reprimidas do homem e da natureza.”282 Essa metamorfose da linguagem
busca uma racionalidade, que por sua vez, reivindica validade. Isso implica
em dizer que a racionalidade de um ato de fala: “aquilo que sabemos,
fazemos e dizemos só é racional quando sabemos ao menos implicitamente
por que nossas opiniões são verdadeiras, nossas ações corretas e nossas
expressões linguísticas válidas (ou ilocucionariamente promissoras ou
perlocucionalmente eficazes).”283
INESPERADAMENTE SURGE UM NOVO PROBLEMA E LOU-
LOU MOSTRA QUE JÁ NÃO É MAIS A MESMA LOU-LOU QUE
PROCUROU TRATAMENTO
Quando Lou-Lou estava prestes a deixar o EFRS é surpreendida pela
morte do namorado, que é vitima de um acidente rodoviário. Entretanto,
diferente das outras vezes, em que um problema fazia com que tentasse
fugir da realidade e/ou se isolasse do mundo, resolve encarar o problema.
Eu não pude acabar de certa maneira, eu tive que sair de minha
expectativa até quando estava me tratando porque, porque a pessoa com
quem me relacionava morreu (...) a pessoa que mais me ajudou de certa
forma, fora minha família, morreu... eu não pude dizer pra ela que eu
tava numa boa, que eu tava melhorando, ela morreu..(...) aí eu tive que
voltar a viver na marra (...) ganhar dinheiro, pagar conta, porque fiquei
sete meses sem precisar fazer nada.
282 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 21. 283 Jürgen HABERMAS, Verdade e Justificação, p. 100.
214
Tinha ficado sem fazer nada, ficava re-pondo a personagem
Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida que negava sua totalidade e agora
precisava vivenciar outras coisas, precisava ser outra. Talvez aqui possamos
considerar a “recaída” dos usuários de drogas como uma impossibilidade de
ser reconhecido em um outras personagens (pai, filho, irmão, trabalhador
etc), e um retorno à antiga personagem que era/é re-conhecida como a
verdadeira essência do indivíduo. Da mesma maneira, a oficina terapêutica
de teatro apresentou-se como um recurso no qual Lou-Lou pôde se
apropriar e apresentar uma outra que não ela mesma, negando sua
identidade pressuposta; tendo na sua performance o reconhecimento e
validação de um novo projeto de vida.
Desse modo, a autonomia se concretiza na inclusão do outro, no
reconhecimento das diferenças que o indivíduo pode apresentar, “os
participantes precisam criar suas formas de vida integradas socialmente
reconhecendo-se reciprocamente como sujeitos capazes de agir
autonomamente e, além disso, como sujeitos que são responsáveis pela
continuidade de sua vida, assumida de maneira responsável.” 284
Contudo, o fato de se apresentar por meio de uma nova personagem e
ser reconhecido como um outro outro não significa que não haverá
momentos em que antigas personagens serão solicitadas. Esse fenômeno é
descrito por Lou-Lou da seguinte maneira:
284 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico, p. 233.
215
Assim, abalou muito eles, né? Quando veio a história à tona, veio tudo à
tona (...) Então a sua imagem vira mosaico, né? (..) é fogo isso, porque as
pessoas, por mais que gostem de você, elas vão lembrar disso. Elas vão
lembrar de todas as outras coisas legais, elas vão lembrar disso também,
mais isso vem na tora. Minha mãe até hoje vem: Ah! Você tá usando
drogas? Como se isso sempre fosse... ela não conseguiu entender.
Tendo contado sua história, Lou-Lou descreve novamente quem é;
dessa vez começa dizendo: “Eu sou o que eu gosto”, e com isso explica que
o “eu é o que você faz, você é o que você come, e por ai vai, é todo esse
conjunto de coisas que te rodeia e que você faz pra viver, então não tem
tanta explicação pra gente o que é humano.” Ser o que pensa e faz. Aqui
Lou-Lou mostra como passa a ser a autora de sua própria história; diferente
das personagens anteriores quando atuava conforme o que era atribuído pela
sociedade e/ou grupos de que participava; começa a entender o espetáculo
que está encenando e conta algumas coisas que descobriu nesse processo.
Quando você decide viver e não ser só expectador, só personagem. Ou
então quando você pelo menos assume tudo o que você vive, mesmo que
seja o mais cabuloso e, pensa sobre aquilo, por mais que doa a ferida, que
você cave ela, pensa, é fogo meu (...) pensar é ótimo, pensar demais é
ruim, não pensar é ruim, então o caminho é pensar.
Assim como a Severina, “atinge o ponto que torna qualquer ator um
ator convincente e digno de admiração: espontaneidade. Já não representa
obedecendo ordens: age por sua própria vontade (sponte sua); é
espontânea!”285 Entretanto, Lou-Lou lembra que esse processo não foi
tranqüilo, sendo ‘passível de prova’ em um primeiro momento.
285 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 116.
216
Eu não vou dizer que depois que eu sai de lá eu nunca mais usei. Não!
Eu cheirei cocaína uma vez e comprovei, não é minha praia, não foi a
melhor viagem que já tive, não curti... tomei um acido uma vez tipo, só
mais uma vez e deu, e quando eu acostumei foi muito massa. Mas antes
de eu usar de novo eu tinha muito medo, eu fumei maconha várias vezes,
cânhamo, haxixe e agora não estou usando mais nada, e aí beber eu parei
de beber.
Entendendo agora que a concretização humana se dá no devir
humano, compreende que as mudanças que ainda virão são coisas que terá
que lidar, porém, assim como a Severina (que conhece as regras do jogo de
xadrez e sabe lidar com as pedras), ela passa a preparar projetos para o
futuro.
Minha vida de uma forma não muito centrada, eu não sou uma pessoa
que posso ser tida como exemplo de organização, de horário, sei lá,
amanhã vou entrar numa escola e me formar (...) não tenho muitas metas
especificas, eu vivo sempre em função de que a qualquer momento pode
mudar tudo. Claro, tenho alguns objetivos que sempre almejo (...) não
sou assim, também não sou oca, não sou vazia, mas só que assim.. eu já
me preparo antes que aquilo pode vir a não acontecer, pra não me frustrar
tanto se aquilo não acontecer.
Lou-Lou preparava seu retorno para a sociedade, já imaginando que
esta tarefa não seria fácil. Pois, se anteriormente, o fato de ter tatuagens e
piercings já tornava difícil sua inclusão no mercado de trabalho, agora tinha
certeza que não teria chances. Dessa vez, Lou-Lou conta como foi que
vivênciou essa questão:
217
É um lance muito fudido, você volta para o mercado competitivo, como
antes, quando você estava normal. Ninguém liga quem você é. O
Governo te assegura de você ter uma estabilidade quando você passa por
uma situação difícil? Ele quer que você se foda, ele quer que você morra,
sabe... então assim... foda-se! Você vai se reabilitar, você se reabilitou.
Lou-Lou aponta algo pouco levado em consideração pelas
instituições de ‘tratamento’, que baseiam a efetividade de seus tratamentos
na inclusão/adaptação do indivíduo no mundo capitalista. Em outras
palavras, tratar a dependência de drogas tornando o indivíduo novamente
apto para ser depende do mercado.
Aqui aparece mais um elemento para pensarmos as patologias da
Modernidade, na qual a racionalidade voltada para fins e voltada para o
princípio do desempenho apresenta os parâmetros de normalidade, ao passo
que não estar trabalhando e dependendo de outros para consumir, passa a
ser a medida para diagnosticar o ‘doente’ que precisa ser ‘tratado’, para ser
incluído novamente no mercado.
A imagem de inclusão, própria da teoria do sistema, nada mais é do que
o indivíduo isolado e solto, que se descobre em múltiplos papéis e se vê
confrontado com múltiplas possibilidades de escolha; e ele precisa tomar
essas decisões sob condições do sistema, das quais não pode dispor.
Como membro da organização, co-participante do sistema, o indivíduo
atingido pela inclusão subjaz a um outro tipo de dependência. O
(membro) incorporado precisa ajustar-se a meios de direção, tais como, o
dinheiro e o poder administrativo. Estes exercem um controle do
comportamento que individualiza, de um lado, por se adequar a escolha
218
do indivíduo singular, dirigido através de preferências; de outro, o
controle de comportamento também estandardiza porque só permite
possibilidades de escolha numa dimensão dada anteriormente (do ter ou
do não-ter, do mandar ou do obedecer).286
Como dito anteriormente, agora Lou-Lou tinha uma maior clareza de
como as coisas funcionavam, entendia a lógica do sistema. Sabia que não
podia depender somente da participação nos grupos para se diferenciar, que
mesmo entre os estigmatizados existem categorias que excluíam os
indivíduos que não representavam bem o papel do ‘desviante’. Começa,
então, a elaborar um outro projeto de vida, buscando uma descrição do que
seja bom para si mesma e retomando aquilo que fez a Fênix renascer, a
possibilidade ser reconhecida como um outro outro que não o
desacreditado; trazendo com isso mais uma das coisas que pode re-
significar no período em que esteve no EFRS.
Eu vivi outra realidade, vi uma energia muito boa e um trabalho muito
fudido e me recuperei de uma certa forma rápido (...) e tudo que eu
passei até chegar alí (...) acho que era pra eu tá viva. Existem coisas que
não tem muita explicação, ela precisa de lição. Era pra eu tá viva, era pra
eu passar por essa penúria, porque às vezes as pessoas que morrem
mesmo vê a loucura e eu não tô livre, se eu posso viver amanhã ou
depois (...) esse é um preliminar, que toda minha vida vou afastar e é uma
coisa que é emocional. E é uma coisa que a qualquer momento pode virar
(...) eu tive remédios, e ao mesmo tempo não quis. Porque eu achei que
não era aquilo que fazia curar, era outra coisa. Acreditei na psicoterapia
em vez dos remédios (...) porque eu vi o outro lado do remédio, eu inchei
quinze quilos meu, sabe o que é isso, quinze quilos. Tive uma vida total
286 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico, p. 230.
219
sedentária, eu fiquei sete meses trancada... minha mãe tinha que
caminhar de mão dada pra me levar, tinha que pegar ônibus com alguém
(...) então depois eu vi que... eu passei por tudo isso e agora estou no
mundo.
O MOMENTO EM QUE LOU-LOU SE TORNA MÃE E MUDA SUA
FORMA DE ENCARAR O MUNDO
Lou-Lou pós a alta do EFRS retorna para o mundo, resolve voltar
para Florianópolis para assumir as coisas que tinha deixado para trás. Após
algum tempo conhece uma pessoa, com quem passa a viver junto, decidindo
se tonar Mãe. Essa nova experiência vai mudar ainda mais sua forma de
entender a vida.
Agora me deu uma perspectiva melhor porque eu tive um filho, então
isso mudou muito assim, de uma certa forma. Tanto que meu filho fez eu
parar de fumar cigarro, que era um dos meus vícios mais peculiar, dez
anos fumando. Fiquei grávida parei de fumar (...) eu fiquei tanto tempo
me tratando tomei remédio e não parei de fumar cigarro, você tá vendo
como é o lance e daí um mês eu engravidei, eu parei de fumar cigarro,
então o negócio é falar, eu vou fazer tal coisa e faço.
Agora também era Mãe, preocupa-se com a educação de seu filho,
sabendo que não será uma tarefa fácil, pois não se considera uma mãe
convencional, nas suas palavras: “porque você é diferente de uma realidade
de uma certa forma e é a sua realidade, então como vou querer falar que é
errado? O que de repente é um controle de uma forma geral pra muitas
pessoas pra mim não é porque já fui contra aquele controle.”
220
Poderíamos tentar discutir sua preocupação; entretanto, qualquer
colocação sobre como será o resultado dessa educação seria mera
especulação, haja visto que isso somente seria possível empiricamente
acontecendo, mas aí já seria presente. No presente temos que valorizar a
formula de Lou-Lou: “tento educar ele da melhor forma possível”, e isso já
está de bom tamanho.
QUANDO LOU-LOU NOS ENSINA QUE A MELHOR VIDA É
AQUELA QUE PODE SER VIVIDA
Lou-Lou-de-hoje conta que agora entende a vida como um incessante
movimento de diversas personagens, o que significa conviver com o fato de
que essas podem/poderão surgir contra sua vontade, ou ainda, que poderão
ser escolhidas, possibilitando a discussão sobre a Identidade Pós-
Convencional.
Eu acho que não posso dizer hoje em dia, eu sou bem extremamente
feliz, eu estou bem, mas tem dia que uso uma maquiagem, tem dia que
tenho um dia bem neurótico, tem dia que eu tô muito mal, tem dias que
eu caio numa depressão fudida e aí o que eu penso? Se eu escolhi não
tomar remédio, então tenho que escolher o que? Tentar dar a volta
comigo mesma!
Demonstra que consegue refletir sobre o sentido do uso de drogas que
fazia: buscava saídas para suas angústias existenciais no êxtase das
substâncias que utilizava, sendo que ao entender o sentido desse uso não-
racional passa a saber como lidar com as angústias. E também passa a
entender que o consumo de drogas é um fenômeno que não se aplica
221
somente às substâncias, perpassando todas as relações humanas, na medida
em que os indivíduos consomem e também são consumidos.
Então assim, só que fico vendo o quanto é volátil isso, as pessoas estão
tristes vão lá e consomem.. só que este consumo é fugaz, porque se
consumiu, se gastou tudo e ai vem o arrependimento, vem a tristeza. E é
assim em tudo (...) e consumir as pessoas, o que a gente faz é isso, em
tudo, esse consumo é em tudo, então a gente consome tanto que se
esgota, tanto a si quanto ao outro (...) eu acho que a questão humana de
você viver bem (...) se tem um segredo? Tem! Mas qual é esse segredo?
O que faz isso, qual é uma proposta de uma vida realmente boa, o que
você tem que fazer pra realmente viver bem? Sabe, ter felicidade (...) é
um mistério, a gente não sabe tudo. Então é viver, é tentar ser harmônico,
o que não depende só de você, mas também do meio que você vive.
Podemos entender que Lou-Lou está falando que o desenvolvimento
de normas intersubjetivas válidas e a progressiva concretização da
identidade humana depende das possibilidades de acesso à liberdade de
escolha do que seja uma vida boa para cada um, logo, a concretização da
identidade será sempre uma questão política. Lou-Lou reflete a “liberdade
moral”, apontada por Habermas e explicada por Ciampa, na qual “o nível
mais elevado de desenvolvimento da consciência moral significa a máxima
valorização da liberdade (moral e política) e a máxima valorização da
igualdade (toda a humanidade)”287; isso abre espaço para a mesma falar
sobre a hegemonia do cinismo presente na questão das drogas:
Ninguém te fala: consuma drogas! Só que também elas existem, ninguém
combate o trafico de drogas, porque é uma lavagem de dinheiro fudida
287 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 218.
222
(...) não querem ter uma política antidroga, só que a maconha é uma
coisa natural? É, só que ninguém devia usar maconha pra tudo que vai
fazer. Ela também tem um ritual, ele também tem uma forma sagrada, ele
respeita a natureza, tá entendendo? Então não é pra usar de forma
desenfreada.
Lou-Lou-de-hoje sabe que mesmo conseguindo aquilo que desejava,
isso não significa sua plena liberdade, na medida em que ao fazer uma
escolha têm de abrir mão de outras coisas; uma felicidade completa é algo a
ser buscado, mas impossível de ser alcançado. O que se quer dizer com isso
é que a identidade humana, que é metamorfose, vai ser concretizada em um
movimento “progressivo” e “regressivo”. Vimos que quando Lou-Lou era
pequena, por exemplo, ela dizia: “era uma coisa que eu reclamava muito, de
viver num lugar que às vezes não pode ter seu espaço, ou que você não
pode ter suas decisões”; cresce, vive diversas personagens em busca de
autonomia, “só que eu queria ter um namorado, ter uma nova vida”, então
vai morar junto com essa pessoa, decide ter um filho, tem que dividir as
coisas novamente, sua autonomia utópica fica comprometida, porém, agora
sabe que “essa insatisfação também é do humano”, e nos oferece novamente
sua contribuição:
Por isso as pessoas buscam drogas.. pra sair da realidade mesmo. Porque
nada vai te satisfazer 100%, nem você, nem os outros nem uma droga,
nada.. porque uma hora você dá de cara e vê que não existe. Sabe, e não
adianta querer viver esse clima, então e por isso, ai está a questão: se
você viver sempre dopado, sempre, ai você não precisa também ter mais
vida, uma vida social, ninguém... porque nunca vai estar normal, vai estar
sempre dopado (...) Então assim, ou você vai passar dormindo.
223
NEM ADICTA, NEM EX-DROGADA, LOU-LOU ESÁ APENS
SENDO A LOU-LOU-DE-HOJE, RENOVADA A CADA NOVO DIA
Apresentamos a narrativa da História de Vida de Lou-Lou e vimos
como as diversas personagens apareceram como momentos de progressão e
regressão na formação de sua identidade, sendo influenciadas pelos fatores
tanto internos quanto externos. Vimos que essas personagens em alguns
momentos puderam ser escolhidas, porém sem que necessariamente
pudessem ser concretizadas, assim como, outras surgiram inesperadamente,
ou ainda atribuídas, como no caso da Dependente-de-Drogas-Louca-
Suicida. Também, presenciamos Lou-Lou apresentando-se como outro
outro por meio da oficina terapêutica de teatro, podendo questionar sua
identidade pressuposta e que isso foi possível pelas condições dadas no
EFRS, resultando no desenvolvimento de uma Identidade Pós-
Convencional. Essa mudança qualitativa na vida de Lou-Lou pode ser
explicada por Habermas da seguinte maneira:
Uma vez que agora se articula uma identidade-eu através de uma
pretensão incondicionada de singularidade e de insubstituibilidade, a qual
não se prende mais exclusivamente ao ‘tipo social’, sendo, pois, pós-
convencional, também desta vez entra em jogo um momento de
idealização. Esse momento não se refere somente ao círculo virtual que
abrange todos os destinatários, a comunidade ilimitada de comunicação,
mas à própria pretensão de individualidade; ele diz respeito à garantia
que eu assumo conscientemente em relação à continuidade de minha
história de vida, à luz de um projeto de vida individual e refletido.288
288 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico, p. 220.
224
Mas a história de Lou-Lou ainda não acaba por aqui, ainda falta um
pouco mais, falta Lou-Lou dizer como ela quer ser, como lida com o fato de
ter passado pelo ‘tratamento’. Novamente apontamos a importância de
discutir esse ponto, haja visto que muitos indivíduos ao deixarem as
instituições de tratamento do uso de drogas levam consigo a identidade do
‘ex-dependente’, adicto etc, mas vamos deixar Lou-Lou falar sobre isso:
Eu não sou uma ex-dependente química, hoje não digo desta água não
mais beberei. Então assim... não tô usando nada, tento combater minha
ansiedade às vezes eu vejo que tem gente que busca comida, busca
aquilo, outros pontos de ansiedade que é muito foda (...) Tem que buscar
atividades o tempo todo, assim.. acho que sobrevivente, guerreira... acho
que não era.. acho que tudo tem uma explicação ou pra tudo não precisa
explicação.
Não se reconhece como adicta ou Ex-Drogada, quer se ver, não em
termos convencionais, mas como Guerreira-Sobrevivente que a todo dia
tem que criar um novo projeto de vida para si mesma; Lou-Lou-de-hoje,
que no início de sua narrativa nos apresenta uma identidade que buscava
maximizar o prazer e evitar o sofrimento da re-posição através da
personagem Garota-Morna, experimenta diversas experiências até viver a
re-posição da Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida; evolui e após a
apresentação do seu outro outro na oficina-terapêutica de teatro, busca
assumir uma condição possível, por isso relativa, de liberdade moral e
política para todos, abandonando a orientação de um hedonismo ingênuo na
direção de uma ética universalista da linguagem, nas suas palavras:
Eu busco um mundo melhor, então se eu estou vendo que uma coisa não
tá me fazendo bem, eu tenho que deixar. Mas será que ela só não tá me
225
fazendo bem pelo ritmo que eu to levando? Também o ambiente que eu
to vivendo não tá me oprimindo ao fato de quando eu usar isso eu estar
me sentindo mal? Porque se eu der uma volta na praia, tiver um dia super
gostoso e de repente fumar um, posso me sentir muito melhor? Mas de
repente eu pensei: meu, porque há necessidade de eu estar usando? Se de
repente eu posso fazer um vasto de muitas coisas que eu também gosto,
que me dá prazer, sem eu precisar usar isso (..) todas as pessoas em geral,
acabam passando por essas condições difíceis de surtar, de depressão, de
se sentir muito mal, por isso... porque lhe faltam coisas que faziam elas
viver, faziam elas felizes, então, às vezes um cara surta porque trabalha
tanto, trabalha tanto, trabalha tanto, e nunca pode descansar, e nunca
pode fazer nada do que ele gosta, chega uma hora que ele pensa: o que eu
gosto?
A LOU-LOU-DE-HOJE FALA DE PLANOS PARA O FUTURO
Lou-Lou agora quer prestar o vestibular, mas ainda não sabe qual
profissão seguir; enquanto não se decide vai continuar pintando seus
quadros, vendendo seus livros e colocando piercing, vamos dar a voz a ela
mais uma vez:
Às vezes eu penso Psicologia, mas eu penso é uma coisa muito foda,
porque tem toda essa questão de gesto, de observação, vai me
enlouquecer muito mais, né? E artes-plásticas eu acho que me daria
muito bem.. é uma das coisas, só que daí.. há! mais não vai ter campo.
Pelo lado do campo... eu penso assim, eu gosto de fazer piercing, essa é
minha vida. Eu penso em fazer (a universidade) mais pelo prazer, daquilo
que eu gosto, do que eu gosto, do que aquilo que vai me sustentar.
Porque já não tá mais essas coisas... claro, você tem um diploma, você
tem uma estabilidade que talvez você possa vir a ter, não é uma coisa
garantida. Então assim, daqui a dois anos de repente, eu pensava em
226
fazer, né... mais agora, com o (filho) eu tenho que esperar um tempinho
mais (...) até porque eu não tenho uma pessoa pra cuidar dele.
Pensar a Lou-Lou-de-hoje como expressão de uma Identidade Pós-
Convencional fortalece a possibilidade apresentada por Ciampa desde a
estória do Severino e a História da Severina, de que essa seria possível
como uma “identidade não determinada previamente nos seus conteúdos e
independente de organizações específicas.” 289 Ao recusar se submeter a
uma política de identidade que lhe atribuiria uma identidade de ex-
dependente, Lou-Lou escolhe poder desenvolver sua identidade política, sua
própria identidade, como concretização do projeto de vida de uma
“guerreira”.
Foi tudo muito rápido quero um dia voltar lá (São Paulo) dar uma
gratificação, conversar com as pessoas. Eu gostaria de me envolver mais
nessa causa, tenho comigo minhas idéias, acho que a gente também as
vezes não pode mudar o mundo, mas a gente se revoluciona e que isso
faz da gente ser o que é (...) tudo isso aconteceu. Mais eu tive que existir
mais que tudo pra poder resistir a isso, tudo com muito esforço.
Se conseguiu em muitos aspectos a própria revolução, porque não
revolucionar um pouco o mundo? Se este projeto vai ser concretizado ou
não só veremos com o tempo. No momento, a única coisa que podemos
fazer é nos despedir da Lou-Lou-de-hoje e deixar que outras Lou-Lou-de-
hoje no futuro apareçam. Mas antes, vamos dar as últimas palavras para
Lou-Lou, que se despede, pedindo desculpas por aquilo que não pode
mostrar:
289 Jürgen HABERMAS, Para Reconstrução do Materialismo Histórico, p. 103. (grifos nosso)
227
Talvez eu possa estar esquecendo alguma coisa, resumindo coisas talvez,
esqueci algumas. Claro poderia ficar horas detalhando algumas coisas
que vivi, mas acho que de uma forma geral é isso. Existem coisas que são
só nossas, então assim, eu fico vendo de uma forma de quem já passou
por isso (...) Não de quem tá vivendo isso. Então quando a gente tá
vivendo a história é de um jeito.
5.2 - QUANDO RESGATAMOS A HISTÓRIA DE LOU-LOU MAIS
UMA VEZ, AGORA PARA INTRODUZIRMOS NOSSAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que a identidade é o que estou-sendo, uma identidade que me
nega naquilo que também-sou-sem-estar-sendo; na história de Lou-Lou essa
articulação da identidade ficou evidente a nosso ver, até o ponto que esta
chegou a zero (na incineração da fênix), sendo atribuída a ela a personagem
Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida, e depois quando por meio da
oficina terapêutica de teatro pôde apresentar-se como outro outro, e que isso
ocorreu porque sempre comparecemos como representante de nós mesmos
perante o outro, podendo negar assim nossa identidade pressuposta, que
deixa então de ser reposta.
Se entendermos que ao me representar (no 1º sentido – representante de
mim) transformo-me num desigual de mim por representar (no 2º sentido
– desempenho de papéis) um outro que sou eu mesmo (o que estou sendo
parcialmente, como desdobramento de minhas múltiplas determinações,
e que me determina e por isso me nega), veremos que ao representar (no
3º sentido – re(a)presentar, repor no presente) estou impedido de
expressar o outro outro que também sou eu (o que sou-sem-estar-sendo).
228
Ou seja, se deixasse de representar (no 3º sentido), expressaria o outro
outro que também sou eu, então negaria a negação de mim, (indicada
pelo representar no 2º sentido).290
Lou-Lou mostrou que hoje, com mais autonomia e individualidade,
vive outras personagens, e tem a clareza de que sua história seria diferente
se fosse contada em uma outra ocasião, pois não se vê (e não é vista) mais
como a mesma, (deixa de se re(a)presentar como Dependente-de-Drogas-
Louca-Suicida); podemos dizer que sua metamorfose inclui um salto
qualitativo no nível de consciência, bem como significativas mudanças de
suas ações.
Mas para não sermos injustos, vamos refazer seu caminho
esquematicamente. Quando criança Lou-Lou representava a garota-morna,
estava presa no hedonismo ingênuo e procurava a maximização do prazer
evitando a punição. Ao iniciar sua busca pessoal fica dividida entre as
personagens Adolescente-Experimentadora e a Punk, que se tornaria mais
tarde a Anarcopunk. Já no final da adolescência começa a namorar e
transforma-se na Aluna-Rebelde, que descobre que para poder trabalhar
tinha que ser autonoma; torna-se a Vendedora-de-Cachorro-Quente. Vai re-
por essa personagem durante três anos, até que se separa do namorado e
vivencia a Garota-Isolada ficando em casa durante um ano. Ao voltar para
o mundo, desorientada, retoma suas leituras e descobre o anarcofeminismo,
transformando-se então na Anacofeminista-Ativista, sem considerar que no
decorrer dessa atuação re-apareceria a Adolescente-Experimentadora que
começa a tomar parte cada vez maior nas suas atuações. Pela primeira vez
procura ajuda especializada, numa tentativa frustrada pois o psiquiatra
acaba fazendo um amalgama dessas personagens e atribuí para Lou-Lou a 290 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 180.
229
personagem Dependente-de-Drogas-Depressiva. Não aceita tomar drogas
(remédios) para se curar do uso de drogas e acaba se mudando para
Florianópolis, onde procura elevação espiritual e equilíbrio no uso das
substâncias, quando se transforma na Bruxa-da-Ilha-da-Magia; entretanto,
a sacralidade da bruxa é quebrada quando em uma festa faz a ingestão de
um chá mágico (cogumelo) que, fora dos rituais habituais, a deixa
desorientada outra vez. Sem conseguir controlar os pensamentos abre as
portas da percepção e encontra a Louca-Suicida; acaba ateando fogo em sua
cabeça. De volta a São Paulo, é levada para o CAPSI que lhe atribuí a
personagem de Dependente-de-Drogas-Louca-Suicida e a encaminha para o
EFRS. No EFRS pôde ser vista como um outro outro pelos técnicos da
instituição e pelo Grupo de Mulheres; essa condição de igualdade confere
uma ambiência favorável para resgatar a personagem Anarcofeminista, já
não mais militante ativista. Na oficina terapêutica de teatro pode
re(a)presentar outros papéis; começa a tomar consciência explícita das
contradições que vive e pode ser reconhecida como humana. Sai do EFRS e
retorna para Florianópolis (após a morte do namorado, que sofre um
acidente durante seu tratamento); retoma sua vida e com o passar do tempo
conhece uma pessoa com quem decide ter um filho. Deixa de usar as
substâncias psicoativas, não por imposição externa, não por se achar uma
Ex-Drogada, mas sim, porque essas perderam o sentido; percebeu que pode
viver sendo ela-mesma. Por fim, presenciamos uma Lou-Lou-de-hoje que
ao se propor normas éticas, com pretensões de validade universal,
apresenta-se com uma Identidade Pós-Convencional, que incluí em seu
projeto de vida o ingresso em uma universidade e o retorno para São Paulo
para se envolver na luta pelos direitos dos indivíduos que utilizam as
instituições de tratamento. Se no futuro só repetir o sucesso desta
230
personagem, cairá no que descrevemos como mesmice, re-pondo
personagens; mas isso não nos impede de valorizar no momento os
“fragmentos de emancipação” encontrados na história de vida de Lou-Lou.
Podemos dizer que esses “fragmentos de emancipação” apresentados
por Lou-Lou-de-hoje apontam para uma transformação profunda de sua
identidade. Sendo que se recorrermos a Habermas e Mead, veremos que
“uma identidade-eu, pós-convencional, não pode desenvolver-se sem
antecipar estruturas comunicativas modificadas; porém, a partir do
momento em que essa antecipação se torna realidade social, não deixará
intocadas as formas tradicionais de integração social”291; assim, se esta
colocação estiver correta, a história de Lou-Lou aponta uma tendência
surgindo no horizonte, que parece estar se concretizando, por exemplo, no
EFRS.
Quanto à oficina terapêutica de teatro, vimos que a produção estética
em si não foi o mais importante no tratamento de Lou-Lou, mas sim, o
processo criador de espontaneidade que, permitindo o acesso ao outro outro
de Lou-Lou, pôde possibilitar a apresentação do 'Eu'. Aprendemos que a
oficina terapeutica de teatro pode possibilitar a intensificação da percepção
até chegar ao ponto de “distorcer as coisas de modo que o indizível é dito, o
invisível se torna visível, e o insuportável explode. Assim, a transformação
estética transforma-se em denúncia – mas também em celebração do que
resiste à injustiça e ao terror, e do que ainda pode se salvar” 292,
291 Jürgen HABERMAS, Pensamento Pós-Metafísico, p. 234. 292 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 53.
231
compartilhando as colocações de Marcuse podemos inferir que a
experiencia estética:
(...) abre uma dimensão inacessível a outra experiência, uma dimensão
em que os seres humanos, a natureza e as coisas deixam de se submeter à
lei do princípio da realidade estabelecida. Sujeitos e objectos encontram
a aparência dessa autonomia que lhes é negada na sua sociedade. O
encontro com a verdade da arte acontece na linguagem e imagens
distanciadoras, que tornam perceptível, visível e audível o que já não é
ou ainda não é percebido, dito e ouvido na vida diária.293
Contribuindo com nossa reflexão, encontramos Habermas que,
partindo da concepção de arte de Jauss, vai discutir o potencial
emancipatório da experiência artístico sob um triplo regime: produção
(poesis), da percepção (aisthesis) e da comunicação (catharsis).
Como poesis a arte é a amancipação na qual o poder do artista é o criar
fora da representação – Idéia, natureza – um mundo onde compreender e
‘construir’ dependem da mesma operação; como aisthesis ela é
desconceitualização do mundo, visão autonôma livre do deja vu (da
anamnese), deve restituir a percepção sensível e ter um efeito crítico
sobre a linguagem, seus automatismos e funcionalidade social, mantendo
presente uma totalidade que a arte está em situação privilegiada de fazer
aparecer; como cattharsis – que é instância estética onde as duas outras
devem culminar – a arte deve restaurar sua função comunicativa, isto é, a
que se abre não apenas para a experiência de si, como também do outro;
esta deve encontrar a identificação espontânea e prazerosa, não se ater à
mera reflexividade (Adorno) e desembocar na ação simbólica orientada
293 Herbert MARCUSE, A Dimensão Estética, p. 78.
232
para a solidariedade; a arte pode agir sobre a sociedade e ter efeitos
criadores de normas.”294
Desse modo, o usuário de drogas, geralmente reconhecido/reduzido
apenas ao papel de dependente, pode, por meio da apresentação
performática na oficina terapêutica de teatro, ser visto e re-conhecido como
um outro outro pela platéia que o assiste, ou seja, pode acessar a um outro
outro que também é ele. “Dizendo de forma diferente: essa expressão do
outro outro que também sou eu (que) consiste na metamorfose da minha
identidade, na superação de minha identidade pressuposta”295, assim, a
narrativa de Lou-Lou nos mostra que a oficina terapêutica de teatro pode
gerar condições para o desenvolvimento do agir comunicativo, que pode ser
compreendido como “um processo circular no qual o ator é as duas coisas
ao mesmo tempo: ele é o iniciador, que domina as situações por meio de
ações imputáveis; ao mesmo tempo, ele é o produto das tradições nas quais
se encontra, dos grupos solidários aos quais pertence e dos processos de
socialização nos quais se cria.”296
5.3 – QUE POSSIBILITA DISCUTIRMOS A AMPLIAÇÃO DO
CONCEITO IDENTIDADE-METAMORFOSE PARA O SINTAGMA
IDENTIDADE-METAMORFOSE- EMANCIPAÇÃO
Como vimos, desde A estória do Severino e a história da Severina,
Ciampa tem nos mostrado que “só a ampla discussão e reflexão sobre o que
294 Claude AMEY, Experiência Estética e Agir Comunicativo, Novos Estudos CEBRAP, 29, p. 137. 295 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p.180. 296 Jürgen HABERMAS, Consciência Moral e Agir Comunicativo, p.166
233
merece ser vivido nos levará a formular projetos de identidade, cujos
conteúdos não estejam prévia e autoritariamente definidos. Identidades que
se definam pela aprendizagem de novos valores, novas normas, produzidas
no próprio processo em que a identidade está sendo produzida, como
mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir)”297. Assim, quando em 1999
propõe, no Encontro Nacional da ABRAPSO, a ampliação da concepção
identidade-metamorfose, para o sintagma: identidade-metamorfose-
emancipação, dá uma guinada no que se refere a metamorfose humana. A
partir de então, a identidade passa a ser entendida como metamorfose
humana em busca de emancipação, que pode ser conquistada ou não, na
medida em que está sujeita ao desenvolvimento das Identidades Pós-
Convencionais, que por sua vez estão sujeitas ao desenvolvimento da
sociedade.
Em sua tese de doutorado Ciampa nos fala de lições que são
mostradas pela história de Severina; da sociedade na qual vivemos como
um “Prometeu moderno que, depois de roubado o fogo dos céus, sofre a
condenação de ser devorado diariamente pela ave de rapinagem, sem
morrer; diariamente, sua vida, sua força de trabalho é reproduzida, para
alimentar a águia que o consome impiedosamente; mostrou-nos também
que o segredo dessa condenação é o de não nos deixarmos morrer, para
continuarmos sendo mastigados vivos.”298 Essas lições fizeram com que
fosse razoável aceitar uma lógica do desenvolvimento individual na qual,
297 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 241. 298 Ibid., p. 236.
234
(...) a partir de uma busca de maximizar o prazer e rejeitar a dor através
da obediência, evolui-se para uma busca de liberdade moral e política
para toda a humanidade, caminhando de um hedonismo ingênuo para
uma ética universalista da linguagem. Descobrimos também – e isso é
importante – que o nível mais elevado da consciência moral pressupõe
não um conteúdo normativo erigido em principio, e sim um
procedimento comunitário que permita interpretações universalistas dos
carecimentos.299
Vimos que essas lições foram novamente trazidas por Lou-Lou que
ao contar sua história de vida demonstra como se dá o castigo dos Deuses;
da ‘quebra’ na continuidade do existir humano decorrente de uma
imposição social, em que a identidade do indivíduo é confrontada com
exigências que estão em contradição com as expectativas; ao mesmo tempo
em que busca legitimação nas estruturas de expectativa experimentadas e
assumidas no passado. Dessa forma, Lou-Lou, assim como a Severina,
também ensina que nossas vivências não ocorrerem de forma simples e
independente às experiências, sendo que somente quando buscamos o
entendimento do sentido atribuído às metamorfoses identitárias que
sofremos durante nosso desenvolvimento é que poderemos analisar se as
mudanças foram qualitativas e não apenas quantitativas.
É nesse ponto que passamos a discutir a questão da emancipação, da
domesticação da ave de rapina para que esta trabalhe a nosso favor, a favor
daqueles “que acham que uma vida que merece ser vivida não é nem a da
carniça, nem a da caça que se esconde”300, mas sim, da autonomia, dos
299 Antonio da C. CIAMPA, A Estória do Severino e a História da Severina, p. 220. 300 Ibid., p. 237.
235
projetos de futuro, da criação. Ao nos referirmos à emancipação recorremos
a uma idéia de vontade de decisão sobre o próprio bem de uma maneira
cada vez mais autônoma, livre da intromissão de interesses externos.
Habermas, discutindo esse conceito, vai dizer que:
(...) é um tipo especial de auto-experiência porque nela os processos de
auto-entendimento se entrecruzam com um ganho de autonomia. Nela se
ligam idéias ‘éticas’ e ‘morais’. Se for verdade que nas questões ‘éticas’
só procuramos obter clareza sobre quem nós somos e quem gostaríamos
de ser, e que na questões ‘morais’ nós gostaríamos de saber o que é
igualmente bom para todos, então é possível afirmar que na
conscientização emancipatória as idéias morais estão conectadas a uma
nova autocompreensão ética.301
Desse modo, podemos inferir com base no que foi apresentado e nos
referenciais teóricos apresentados até o momento, que nas condições da
Modernidade e do Pensamento Pós-Metafísico, o movimento para a
emancipação se dá com o desenvolvimento de uma Identidade Pós-
Convencional. Uma identidade que antecipe uma forma de vida com
valores e normas ainda não estabelecidos, que “só pode estabilizar-se na
antecipação de relações simétricas de um reconhecimento reciproco isento
de coerção”.302 Também podemos inferir que essa Identidade Pós-
Convencional somente torna-se possível quando o indivíduo passa a atribuir
às suas vivências um sentido de auto-determinação e, por outro lado, possa
ser reconhecido como portador de direitos. Todavia, entendemos que o fato
de desenvolver uma Identidade Pós-Convencional não é garantia de uma
301 Jürgen HABERMAS, Passado como Futuro, p. 99. 302 Ibid., p. 222.
236
emancipação ‘completa’, ou definitiva do indivíduo; isso seria
‘convencionar’/predeterminar o que entendemos por emancipação humana;
ignorando a lógica sistêmica que a todo instante oferece saídas heterônoma
e ilusórias para os indivíduos. Logo, o que se pode observar com a história
de Lou-Lou é a possibilidade de viver-uma-vida-que-merece-ser-vivida,
sendo que isso se torna possível a partir do momento em que o indivíduo
pode afirmar 'Eu' de si mesmo e que pode ser reconhecido como um outro
que não se reduz a qualquer personagem, mas sim, que é a expressão de
uma pluralidade, que por sua vez precisa ser incorporada na comunidade
entendida por meio da construção, desconstrução e reconstrução,
entendendo as mudanças ocorridas com o indivíduo e sua atual condição, ou
seja, incorporando o outro com respeito às diferenças.
237
CONSIDERAÇÕES FINAIS
_____________________________________________________________
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Os participantes precisam criar suas formas de
vida integradas socialmente reconhecendo-se
reciprocamente como sujeitos capazes de agir
autonomamente e, além disso, como sujeitos que são
responsáveis pela continuidade de sua vida,
assumida de maneira responsável.”
J. Habermas
Vimos que na Modernidade, a intersubjetividade decorre de novas
coordenadas de produção, entre as quais o consumo desempenha um papel
crucial, principalmente pelo aspecto da acessibilidade aos produtos, bens e
serviços, no sentido de que o ato de consumir utilizado pela lógica sistêmica
se reveste da condição de possibilidade para processos de individuação,
principalmente no que tange à tradução de determinados valores do desejo,
articulando deste modo processos que redundam na identidade individual.
Entretanto, essa colonização do mundo da vida não ocorre sem efeitos
colaterais, na medida em que traz consigo a incerteza, insegurança e medo,
sentimentos comuns à maioria da população; diante da desestabilização do
trabalho, da ausência do primeiro emprego, do desemprego, ao mesmo
tempo em que a indústria cultural oferece o entretenimento, convocando
para a encenação da vida repleta de prazeres, na sociedade da
superabundância e de acesso restrito. As promessas da Modernidade jamais
se cumpriram, dentre elas a emancipação do indivíduo; é com esta realidade
que devemos contar; é nela que estamos e é contra ela que devemos agir.
239
Se entendermos que o uso de drogas, nos primórdios da história da
humanidade, sempre esteve relacionado com a transcendência do espírito
humano, ou ainda, com o anestesiamento do sofrimento corporal e mental,
podemos pensar, observando como o uso de drogas é feito na Modernidade,
que seu uso não mudou muito desde os primeiros relatos de experiências
com essas substâncias. Isso ocorre na medida em que observamos o uso de
drogas relacionado ao ‘ritual’ capitalista; no cafezinho antes do trabalho, na
cerveja do final de semana, nos medicamentos para dormir, para engordar
ou para emagrecer, nas drogas utilizadas nas danceterias, nas escolas etc,
seja para integrar esses grupos, seja para ter alto rendimento, ou ainda, para
fugir da realidade massacrante na qual o indivíduo está inserido.
Aprendemos que não existe uma causa objetiva, uma ou mais
variáveis com as quais se poderia relacionar o fenômeno do uso de drogas,
pois este fenômeno está no indivíduo, em seu sentido existencial, por outro
lado, esse uso também é incentivado pelo mundo concreto das condições
materiais de existência. Há consumidores de drogas em todas as classes
sociais; o que os diferencia, eventualmente, são a qualidade e os tipos de
drogas, em decorrência das capacidades aquisitivas e das distinções sociais.
As drogas são, portanto, combustível e veículo, fonte de energia e
móvel para a ação, voltadas para o lúdico, para a representação de si e do
grupo a que se pertence; também servem para o necessário devaneio, para a
leveza da alma que precisa flutuar e transgredir limites impostos pela ordem
sistêmica que tornam a realidade insuportável.
240
Nestas condições, as mercadorias – no caso aqui as drogas – são
usadas, consumidas, para marcar diferenças sociais e, assim transmitir
mensagens, que moldam a identidade; essas condições, que aparecem como
catástrofe de proporções epidêmicas têm uma íntima ligação com as
condições do capitalismo. Assim, o sentido atribuído ao uso de drogas
pertence a uma moral vacilante, que em um determinado momento faz com
que sejam incentivadas, liberadas, legalizadas etc. e noutro proibidas, por
serem consideradas perniciosas. O problema não estaria na legalização ou
não dessas substâncias, pois ambos os lados, o lícito e o ilícito,
movimentam um grande mercado – financiam exércitos, compram e
vendem armamentos, geram empregos, patrocinam políticos e sustentam a
existência de diversas organizações. Sendo assim, defende-se a importância
da descriminalização do uso de drogas, enquanto o maior incentivador do
consumo, direta ou indiretamente é o próprio Estado.
Outro aspecto que não podemos deixar de apontar, refere-se às
medidas de tratamento do uso prejudicial de drogas, tão necessárias e ao
mesmo tempo tão insuficientes. Vimos que os tratamentos do uso de drogas
ainda apresentam em sua maioria como indicativo de saúde/alta a
abstinência (evitação da substância) e a não recaída (retorno ao uso), com
isso esquece-se que muitas vezes os indivíduos podem continuar a desejar o
uso, evitando situações em que exista a substância. Nesse caso, vale retomar
Mead que alerta para o fato de que a mera organização do self não significa
necessariamente um self consciente.
Assim, podemos inferir que não se trata de fato de metamorfoses com
sentido emancipatório, pois, ainda que aparentemente vejamos uma
241
mudança, continua a haver a re-posição e não a superação de personagens
(ex-drogado, ex-alcoolista). Claro que isso não significa que essa superação
não poderá ocorrer a posteriori. A questão seria então, oferecer espaços que
possibilitassem a alterização do indivíduo; espaços em que o indivíduo
poderia ter experiências significativas e atribuir outro sentido para o uso das
substâncias que utiliza/utilizava, ou seja, um contexto no qual se possa
desenvolver a consciência de que existe uma relação entre as experiências e
que existe a possibilidade de se fazer outras escolhas até então nem mesmo
pensadas.
Nesses espaços, as oficinas terapêuticas aparecem como aliadas no
processo de alterização, ao possibilitarem a expressão do outro outro que
também é o indivíduo, logo, a apresentação do ‘Eu’ e a elaboração de novas
realidades possíveis. No caso do uso de drogas essas oficinas podem ajudar
a desvelar cada vez mais as desigualdades e a quase impossibilidade de
existência em um mundo cada vez mais dominado pela lógica sistêmica,
apontando para novas formas de experenciar a realidade – na medida em
que oferecem elementos que demonstram que os indivíduos podem ser
muito mais do que as personagens estigmatizantes que os aprisionam em
determinados momentos de sua vida – passando as patologias (capitalistas),
baseadas na nosologia (psiquiátrica), a serem vistas como patologias da
Modernidade, cuja causa, entre outras coisas, se deve à impossibilidade dos
indivíduos poderem, com autonomia, dizer ‘Eu’ de si mesmos.
Isso nos remete a pensar nas estratégias de prevenção e de
tratamento, na medida em que ao planejar intervenções especificas para
evitar o uso e abuso de drogas, também se deve considerar que a
242
dependência corresponde a um fenômeno que não se confunde apenas com
o consumo de drogas, mas sim que corresponde ao encontro de um
indivíduo consigo mesmo, com seus valores e crenças; é preciso ver o
produto, a droga, inserida na esfera capitalista, num contexto sociocultural,
que incentiva, carimba e aprisiona o indivíduo na personagem do viciado; é
preciso combater as Políticas de Identidade que servem para manutenção da
realidade do indivíduo, impossibilitando muitas vezes que ele consiga sua
diferenciação, impondo-lhe a heteronomia que nega a experiência e atribui
um sentido a priori para a vida do indivíduo.
Ao contrário das técnicas utilizadas atualmente que preconizam um
agir estratégico de combate e prevenção ao uso de drogas, com ações que
partem do Estado para os indivíduos, colocando a priori qual a “melhor
forma” de evitar o uso de drogas, a alternativa que nos parece mais acertada
seria evoluir de uma política ‘esclarecedora’, para uma política
‘comunicativa’. Ou seja, repensar o modelo de prevenção baseado na
informação, que procura ‘ensinar’ qual o melhor modo de lidar com as
drogas, evoluindo para um modelo que procure mediar o sentido do uso de
drogas, um sentido dado, não pelo sistema, mas pelos indivíduos a partir da
auto-reflexão. Assumir o pressuposto de que nem a atitude
“fundamentalista”, nem a “relativista”, são conciliáveis com a razão
prática. A “relativista” por ser inconsistente por si mesma e a
fundamentalista por ser a negação do fundamental, que é o fato de ninguém
poder dar a última palavra sobre algo.
Sabemos que esta não é uma tarefa fácil, nem tão pouco de uma
única pessoa, organização ou instituição. Contudo, acreditamos que novas
243
estratégias possam ser pensadas na medida em que entendermos o uso de
drogas como algo da condição humana e que sua importância fica evidente
quando passa a dar sentido à existência dos indivíduos na Modernidade.
Desse modo, a sociedade de massas e de consumo, que procura
moldar o indivíduo aos interesses do capitalismo, apaga as possibilidades de
emancipação.
Acreditamos ter deixado clara a alternativa que apoiamos: é aquela
que fuja de premissas falsas, como a que fetichiza a droga como um agente
– como se fosse um micróbio do qual a pessoa se torna um hospedeiro
passivo – ou ainda a que mistifica a droga quando a coloca como um objeto
a dominar o usuário, trazendo consigo o canto da sereia impossível de ser
recusado. Podemos então dizer que não cabe à Psicologia descobrir como
encontrar um ‘bem-estar’ como se o ‘mal-estar’ da sociedade apontado por
Freud fosse apenas acidental. Cabe à Psicologia resgatar as possibilidades
de realizações humanas que, na atualidade, enfrentem a crescente barbárie
de poderes hegemônicos que hoje ameaçam a humanidade inteira; que
transforme o ‘mal estar’ em ‘bom combate’!
Assim, entendemos que ainda existe a necessidade de buscar uma
psicologia que seja efetivamente social e que estude a questão do
desenvolvimento da Identidade Humana em toda sua abrangência e
complexidade (cognitivo, afetivo, estético, moral, sexual, corpóreo, motor
etc); que considere que o indivíduo, à medida que vai adquirindo a
capacidade de agir e de falar, vai também passando a se reconhecer e a ser
reconhecido pelo outro como alguém que pode afirmar ‘eu’ de si mesmo,
com uma identidade em constante formação e transformação, ou seja, uma
244
identidade entendida como metamorfose, que resulta tanto do processo de
socialização como do processo de individuação, em busca de um sentido
emancipatório. Nessa perspectiva, a subjetividade do indivíduo é vista
sempre articulada com a objetividade da natureza, a normatividade da
sociedade e a intersubjetividade da linguagem. O sintagma Identidade-
Metamorfose-Emancipação, assim, seria um conceito que permitiria e, ao
mesmo tempo, exigiria a integração de todos os aspectos do
desenvolvimento humano.
Lou-Lou nos ensinou muitas coisas com sua história de vida, dentre
todas elas fica implícito que talvez tenha chegado a hora de propormos uma
Clínica da Identidade, ou ainda, Clínica da Metamorfose, uma Clínica que
procure compreender a patologia (como expressão individual da opressão
da sociedade capitalista), para escapar da nosologia (como expresão
psiquiátrica de uma concepção cientificista que exclui o indivíduo como
sujeito), resgatando o duplo sentido da clínica: o de ‘inclinar-se’ (klinikós),
acolhendo o indivíduo com sua história e com seu projeto de vida, e o de
produzir um desvio (clinamem), não um desvio que exclua o indivíduo da
sociedade, mas sim para produzir outra história, outra possibilidade de
existência, partindo do pressuposto que nossa identidade não é apenas algo
que assumimos, mas também o projeto de nós mesmos.
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