redalyc.direito, ambiente e emancipação social · 2016-04-04 · revista direito e práxis...
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Revista Direito e Práxis
E-ISSN: 2179-8966
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
Brasil
de Carvalho, Lidiane Eluizete
Direito, ambiente e emancipação social
Revista Direito e Práxis, vol. 6, núm. 10, 2015, pp. 645-676
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil
Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=350944513018
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Rio de Janeiro, Vol. 06, N. 10, 2015, p. 645.676 Lidiane Eluizete de Carvalho DOI: 10.12957/dep.2015.15429 | ISSN: 2179-‐8966
Direito, ambiente e emancipação social Law, environment and social emancipation
Lidiane Eluizete de Carvalho
Doutoranda do Programa de Doutoramento em Democracia no Século XXI do Centro de Estudos Sociais (CES), laboratório associado à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC); Mestre em Ciencias Ambientales pela Universidad Complutense de Madrid (UCM); Especializada em Direito Ambiental e Licenciada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-‐Rio).
Artigo recebido e aceito em fevereiro de 2015.
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Resumo
“Direito, ambiente e emancipação social” busca analisar a questão de como o
direito ambiental se adequaria a um uso contra-‐hegemônico, destacando-‐se
sua formação histórica no âmbito internacional e sua emergência,
constitucionalização, consolidação e aplicação no caso brasileiro, bem como as
capacidades que nele residem para gerar emancipação social no âmbito dos
cachos de legalidade cosmopolita. Apresentar-‐se-‐á um possível panorama
constitutivo de um ambientalismo cosmopolita pelo qual os diversos
movimentos sociais que compõe a luta anticapitalista podem tornar o direito
ambiental um instrumento de emancipação.
Palavras-‐chave: Direito; Ambiente; Emancipação.
Abstract
“Law, environment and social emancipation” aims to analyze the question
about how the environmental law would conform a counter-‐hegemonic use,
highlighting its historical development in the international arena and its
emergence, constitucionalization, consolidation and implementation in the
Brazilian case. As well as its possibilities to promote social emancipation, under
the cosmopolitan legality branches. We present a possible panorama of a
cosmopolitan environmentalism by which various social movements that
compose the anti-‐capitalist struggle can make the environmental law a tool for
social emancipation.
Keywords: Law; Environment; Emancipation.
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Introdução
Poderá o direito ambiental ser emancipatório? A questão parece relevante na
medida em que o direito ambiental nasce, a partir dos anos 70 do século
passado, justamente como reação a incapacidade do arcabouço jurídico
“tradicional” em dar cabo de questões e conflitos originados a partir de um
bem jurídico cujas características não se coadunam com os bens jurídicos até
então tutelados pelo Direito.
A definição jurídica de ambiente é refere “a interação do conjunto de
elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento
equilibrado da vida em todas as suas formas (Silva, 2004).” Trata-‐se de um
bem jurídico complexo, incorpóreo e imaterial. Nesse sentido, se poderia falar
em um macrobem jurídico (Mirra, 2002) composto pela relação sinérgica entre
os diversos microbens socioambientais que o compõe e cuja tutela se dá na
sua integralidade necessária.
Trata-‐se, portanto, de um bem jurídico difuso cujo tratamento prescinde
de efetiva transdisciplinaridade e cujos conflitos se dão das mais variadas
formas entre interesses individuais e coletivos, se permeando com questões
econômicas, políticas, sociais e ambientais strictu sensu e que se inserem
constantemente no contexto do uso político do primado do conhecimento
científico.
Estas características peculiares e complexas do bem jurídico ambiente
justificaram o surgimento de um ramo especializado denominado direito
ambiental, o qual é um ramo do direito público, autônomo e dotado de
princípios próprios, que se relaciona com vários outros ramos do direito sem
com eles se confundir, e com outras áreas de conhecimento, cujo objeto é a
ordenação da qualidade do meio ambiente com vista a uma boa qualidade de
vida.
A formação e desenvolvimento deste novo ramo do direito estatal
tornam extremamente complexa a compatibilidade dos institutos e princípios
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próprios do direito ambiental com os demais ramos públicos e privados do
direito positivo, desde a produção legislativa fragmentária e economicista
antes da emergência da chamada crise ambiental, até o tratamento
internacional universalista da matéria como reação a referida crise. Esta
incompatibilidade aparente acabou por gerar a ineficácia relativa de seus
instrumentos progressistas e inovadores, bem como grande descrédito social
em suas formulações.
Os chamados movimentos ambientalistas se utilizaram de diversas
estratégias para a consagração de normas protetoras do meio ambiente que
culminaram na reivindicação da consagração do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado como um direito fundamental. Estes movimentos
também atuaram pela democratização das agências públicas responsáveis pela
regulação técnica da matéria, pela execução e fiscalização das normas
ambientais e, principalmente, lançaram mão do judiciário para fazer cumprir
os ditames legais, em especial com o apoio do Ministério Público, no caso
brasileiro.
Mais recentemente nota-‐se a articulação dos referidos movimentos
ambientalistas (aos quais se integram tanto as ONGs quanto a comunidade
científica) com diversos outros movimentos sociais que se relacionam com as
demais lutas no contexto do cosmopolitismo subalterno (movimentos de
gênero, lutas pelo acesso a terra, justiça urbana, minoria étnicas etc.). Neste
sentido, e tendo em vista a abrangência trans-‐escalar, transfronteiriça e
transdisciplinar da matéria ambiental, os movimentos e lutas ambientalistas
demonstram grande capacidade de articulação com as demandas por inclusão
da sociedade civil, com um todo, no contrato social ambiental através do uso
contra-‐hegemônico do Estado de Direito. Trata-‐se de uma luta que se centra
no alcance de uma efetiva cidadania ambiental.
Por um lado, os princípios e proposições do direito ambiental poderiam
ser compreendidos como uma vitória de âmbito formal das lutas
ambientalistas travadas desde a emergência da crise ambiental internacional,
ou poder-‐se-‐ia concluir que se tratou da aplicação da estratégia demoliberal de
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tornar a luta ambientalista mera regulação jurídica, através da instituição de
concessões legais (de baixa eficácia).
Os instrumentos democráticos de diálogo entre o conhecimento
científico e outros saberes, de ampla informação, educação e participação
social, de determinação de responsabilidades compartilhadas, de defesa dos
interesses das gerações futuras, entre outros, se coadunam com as propostas
defendidas no âmbito das zonas de contatos -‐ em todos os casos, bem como
no direito como produção não capitalista e, com especial destaque, no Estado
como o mais recente dos movimentos sociais.
Os princípios, instrumentos e a abertura normativa para criação de
instituições híbridas participativas experimentais, contudo, encontram muitas
dificuldades de realização na prática, conformando diversos contextos de
atuação ilegal dos movimentos ambientalista e forte judicialização das
demandas por justiça ambiental.
No presente artigo destacaremos na primeira parte o processo de
formação histórica do direito ambiental no âmbito internacional e o caso
brasileiro buscando evidenciar que a própria emergência da proteção jurídica
ambiental se consubstanciou como um uso contra-‐hegemônico do Direito. Na
segunda parte deste trabalho, se analisará os usos hegemônicos do Direito
Ambiental e as capacidades que nele residem no âmbito dos cachos de
legalidade cosmopolitas. Por fim, se apresentará um possível panorama
constitutivo de um ambientalismo cosmopolita pelo qual os diversos
movimentos sociais que compõe a luta anticapitalista podem tornar o Direito e
o direito ambiental um instrumento de emancipação.
2. Direito internacional do Ambiente – surgimento e desenvolvimento
Há certo consenso na doutrina especializada1 de que o Direito Ambiental
emerge em meados do século XX em âmbito internacional como reação a
1 Entre outros: Édis Milaré (2007), Guido Fernando Silva Soares (2001), Paulo Affonso Leme Machado (2004), Antônio Herman Benjamin (2007).
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chamada crise ecológica que se evidenciou a partir da ocorrência de
determinados incidentes paradigmáticos2 de contaminação ambiental que
eram gerados no território de um país e cujos efeitos negativos eram
suportados por outro(s) -‐ poluição transfronteiriça.
Neste contexto, e a raiz da massificação dos meios de comunicação e da
tomada de consciência da importância e gravidade da questão, a partir dos
anos 60 assistiu-‐se a proliferação de associações nacionais e a emergência de
diversas organizações da sociedade civil para a defesa do meio ambiente cuja
articulação transestatal pode ser vista como a geração de um movimento
ambientalista global. A atuação dos movimentos ambientalistas é
frequentemente festejada como motivadora do surgimento de uma opinião
pública internacional favorável as causas ambientais e como o ator cuja
pressão foi a razão última da mobilização das instituições internacionais sobre
a questão.
Frente à constatação de que a utilização irracional dos recursos naturais
poderia gerar efeitos negativos de enormes proporções, algumas vezes
irreversíveis, e que não havia forma de responsabilizar os agentes poluidores
(coletivos ou individuais e por vezes cumulativos) evidenciada pela publicação
do relatório intitulado “os limites do Crescimento” (Meadows, 1972),
determina-‐se a realização da primeira Conferencia Internacional de Meio
Ambiente Humano de 1972 na cidade de Estocolmo.
O tratamento do tema na Conferência de Estocolmo demonstrou, por
um lado, a emergência e importância do tratamento da questão em âmbito
planetário, por outro, ilustrou as dificuldades da realização de um projeto
global de proteção ambiental no contexto dos Estados-‐nação soberanos e de
suas diferentes posições no Sistema Mundo.
Os países chamados “desenvolvidos” apresentaram propostas tendentes
à adoção de medidas que reduzissem o crescimento econômico em escala
2 No contexto europeu utiliza-‐se com frequência o caso das chuvas ácidas na Escandinávia, provocadas pela poluição atmosférica transportadas pelos ventos desde os parques industriais da Inglaterra e Alemanha.
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global, culminando no encaminhamento de uma proposta de “crescimento
zero”. Já os países “em desenvolvimento” apresentaram propostas que
pretendiam a responsabilização dos poluidores históricos -‐ “primeiro mundo”,
tendo em vista que a crise ambiental adivinha do desenvolvimento acelerado
dos países centrais desde a Revolução Industrial. Opuseram-‐se frontalmente a
que eventuais políticas preservacionistas adotadas pudessem servir de
instrumentos de interferência nos assuntos domésticos (Soares, 2001).
Tratou-‐se de um debate sobre os limites da soberania nacional no
âmbito das parcerias necessárias entre Estados para o tratamento global da
matéria ambiental que evidenciou posições diversas sobre o conceito de
desenvolvimento. A primeira Cimeira da Terra foi, portanto, um palco para as
disputas entre as concepções do sul e do norte global.
O resultado da Conferência, a Declaração de Estocolmo consubstanciou-‐
se um documento composto por um preâmbulo de sete pontos e vinte e seis
princípios que, funcionam, como de costume no Sistema de Direito
Internacional Público, como recomendações aos países, portanto, sem força
normativa (soft law). Contudo, esta Declaração, sem sombra de dúvidas,
inspirou a internalização de normas de proteção ambiental em diversas nações
do globo.
Nesta carta de princípios se denota o caráter extremamente amplo das
demandas, conflitos e questões relativas ao meio ambiente e a necessidade de
um tratamento trans-‐escalar e transfronteiriço do tema. Tratar-‐se-‐ia de uma
temática que potencialmente inspirava a constituição de uma efetiva cidadania
global, tendo em vista a dependência do futuro comum da humanidade e a
não possibilidade de conter os riscos ambientais no tempo-‐espaço do Estado
Nação.
Desde então, um vastíssimo número de conferências e tratados
internacionais se realizaram no campo da proteção ambiental. Destaca-‐se a
realização em 1992 da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
realizada no Rio de Janeiro (Eco-‐92), que mais de vinte anos depois de
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Estocolmo, procedeu à revisão do desenvolvimento do Direito Ambiental
Internacional e consagração do princípio do desenvolvimento sustentável.
Já naquela ocasião se constatava a internalização e constitucionalização
da proteção ao meio ambiente, em especial nos países que experimentarão
processos de redemocratização no período, porém a ocorrência de diversos e
graves acidentes ambientais e os relatórios científicos apontando para o
agravamento da situação dos recursos ambientais planetários obrigou a
constatação de que houve pouco avanço no tange as práticas de proteção em
âmbito global e local.
Não poderia ser de outra maneira, tendo em vista que a concretização
dos ditames internacionais de proteção ambiental colide frontalmente com o
desenvolvimento do capitalismo neoliberal que experimentou acelerado
desenvolvimento no mesmo período. Praticar um desenvolvimento
sustentável significa menos produção e produtos mais duráveis; produção mais
limpa e emprego de novas tecnologias; reverter à cultura de consumo
exacerbado, internalização dos custos ambientais nos processos produtivos e a
mais justa distribuição do acesso aos bens ambientais; medidas de
recuperação de áreas degradadas; não utilização livre do território urbano e
rural etc. Todas estas medidas importam custos e limitações que não
interessam à livre e irrestrita circulação dos bens de consumo e do capital.
Contudo, a escassez e a degradação desmedida dos recursos, que em
última instância constituem as matérias-‐primas necessárias ao
desenvolvimento do capitalismo, bem como os níveis de poluição drásticos,
tão pouco são interessantes ao neoliberalismo, por esta razão, houve consenso
na articulação de medidas de proteção mínimas em consonância com a lógica
de mercado e com a menor intervenção possível do Estado. São exemplos
paradigmáticos destas medidas articuladas as proposições no sentido da
constituição de um mercado de carbono, no âmbito do Protocolo de Kyoto, o
surgimento dos chamados seguros ambientais, motivados pela normatização
internacional, os mecanismos de certificação ambiental através das ISO
14.000, entre outras.
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Durante todo o processo de emergência e desenvolvimento do direito
internacional do meio ambiente a atuação dos movimentos ambientalistas
locais e globais se fez presente apesar de sua participação oficial ser
extremamente limitada. Sua atuação se dá em diversas frentes, desde a
utilização das Mídias para a denúncia de atos e posturas atentatórios ao meio
ambiente ou do descumprimento das normas internacionais, manifestações
públicas para gerar conscientização social, realização de conferências paralelas
as conferências oficiais (conferências selvagens) a produção de relatórios
científicos alternativos ou mesmo de contrarrelatórios e sua ampla divulgação,
influindo diretamente na formulação das políticas ambientais.
Simultaneamente, a poderosa parcela de sujeitos privados detentores
do poder econômico procedeu a cooptação, instrumentalização dos referidos
movimentos e promoveu campanhas de desmoralização dos organismos e
movimentos de defesa ambiental, por algumas vezes, utilizando-‐se das
mesmas estratégias. Outro fenômeno de reação cooptativa relevante foi a
apropriação pelo mercado da bandeira ambiental, através da adoção de
campanhas de marketing verde e a utilização de slogans ambientalmente
corretos.
O Direito ambiental emerge, portanto de maneira articulada e
indissociável aos fenômenos igualmente globais de democratização, de
expansão neoliberal e da luta anticapitalista. Trata-‐se, pois de um instrumento
hegemônico de regulação que foi e é utilizado pelos movimentos sociais
globais e locais de forma contra-‐hegemônica, articulando-‐se cada vez mais
com outras demandas cosmopolitas que encontram na questão ambiental um
meio de interligação de lutas pela dignidade humana, pela inclusão no
contrato social ambiental, pela constituição de um Estado de Direito
Ambiental, pelo reconhecimento identitário e pelo pluralismo.
3. O direito ambiental brasileiro
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3.1. Direito emergente
No Brasil, a pré-‐história do direito ambiental caracterizou-‐se pelo tratamento
disperso e esparso da matéria através da edição de normas de caráter reativo,
após a ocorrência de acidentes ou desastres ambientais pontuais (controle da
poluição industrial) ou para a proteção e controle de um recurso de interesse
econômico estratégico.
A primeira norma jurídica que buscou dar um tratamento sistêmico e
unificado a matéria foi editada em 1981 sob a influência direta dos ecos da
Conferência de Estocolmo. A Lei da Política Nacional de Meio Ambiente
(PNMA) foi uma lei extremamente avançada e progressiva para o seu tempo,
especialmente levando-‐se em consideração o momento político de sua
aprovação, já que o país se encontrava sob o controle de um regime militar.
Através da PNMA, determinou-‐se a constituição de um Sistema Nacional
de Meio Ambiente (SISNAMA) constituído pelos órgãos e instituições públicas
responsáveis pela gestão ambiental em todos os níveis da federação. No
contexto das proposições republicanas, priorizou-‐se a constituição de: órgãos
de governos, responsáveis pela política ambiental; órgãos normativos,
responsáveis pela regulamentação infralegal da matéria e; órgãos técnicos,
responsáveis pela execução e fiscalização da política e das normas.
3.2. A constitucionalização democrática do ambiente
Foi contudo a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988,
editada após a abertura democrática e celebrada no país com a constituição
cidadã, o primeiro texto constitucional a trazer previsões expressas de tutela
do Meio Ambiente no país. O constituinte inseriu um capítulo próprio no título
VI, sobre os direitos sociais e consagrou o direito de todos ao meio ambiente
equilibrado, inclusive das gerações futuras, bem como determinou as
atribuições do Estado para a tutela deste Direito (art. 225).
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Houve a previsão expressa da realização de estudos prévios de impacto
ambiental para projetos de significativo impacto ambiental, consagrando-‐se o
princípio da precaução, da criação de unidades de conservação para a proteção
da biodiversidade, a responsabilização (civil, administrativa e penal) pela
ocorrência de dano ao meio ambiente. Este tratamento detalhando em sede
constitucional foi considerado como grande vitória para os ambientalistas no
plano da regulação ambiental.
O texto constitucional também se refere expressamente à matéria
ambiental em diversos outros dispositivos ao longo do texto. No que se refere
à repartição de competências entres os entes federados, determinou-‐se a
competência compartilhada entre a União Federal, os Estados Federados e os
Municípios, tanto para a produção legislativa quanto para a execução das
normas. Determinou-‐se a aplicação do princípio da subsidiariedade
(preponderância do interesse nacional, regional ou local) e a obrigação de
cooperação entre os entes políticos que compõe a federação brasileira.
As previsões mais relevantes para o fim deste trabalho são aquelas que
incluem a variável ambiental no âmbito da função social da propriedade rural e
urbana3 na implantação da ordem econômica (art. 170, II, III e VI) e na política
de saúde (art. 200, VIII), demonstrando-‐se a relação indissociável entre o meio
ambiente e os demais setores da vida social. Promoveu-‐se, assim, uma
verdadeira revolução no âmbito tradicional do direito, obrigando o legislador
infraconstitucional e os intérpretes a rever institutos clássicos privatísticos e
conservadores do Direito. Materializaram-‐se, deste modo, inúmeras
possibilidades de uso contra hegemônico e cosmopolita do direito ambiental.
Outra previsão importante foi a relativa aos procedimentos judiciais que
possibilitam a qualquer indivíduo ou organizações sociais ingressar em juízo
para fazer valer as determinações legais no âmbito dos direitos difusos (Ação
Popular, Mandado de Segurança e Ação Civil Pública), assim como as
atribuições concedidas ao Ministério Público (MP) para agir na defesa do Meio
3 Interpretação conforme a Constituição a partir da combinação dos seguintes dispositivos: art. 5º, XXII e XXIII; art. 186, I e II e; art. 182, §2º, CRFB, 1988.
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Ambiente. Estas previsões acabaram por tornar-‐se o modo central de atuação
contra-‐hegemônica dos ambientalistas através do Judiciário, como se verá
mais adiante.
Estas amplas referências a questão ambiental podem ser consideradas
como um processo de “ecologização do texto constitucional [que] traz certo
sabor herético ao propor a receita solidarista – temporal e materialmente
ampliada (e, por isso mesmo prisioneira de traços utópicos) do nós-‐todos-‐em-‐
favor-‐do-‐planeta” (Benjamin, 2007).4
O contexto de redemocratização no país, associado ao amplo debate
internacional sobre a matéria e as insurgências de diversos setores sociais em
defesa do meio ambiente foram oportunos a edição de uma carta fundamental
com amplas e progressivas previsões no tange a matéria, o que acabou por
contribuir ao desenvolvimento positivo de um direito ambiental brasileiro.
3.3. Direito constituído
A constitucionalização do ambiente ocorreu em pleno processo de formação
do Direito Ambiental e, por isso mesmo, se converteu em um processo de
ampla experimentação jurídico-‐ecológica procedido, simultaneamente, pelo
legislador infraconstitucional e o constitucional (Benjamin, 2007).
Foi também a ecologização da constituição o motor da luta subsequente
para a afirmação de um direito fundamental ao meio ambiente equilibrado.
Apesar da não previsão expressa no texto constitucional, logrou-‐se esta
consagração por via jurisprudencial através de interpretações sistêmicas da
norma fundamental (STF, 1995).
Após a previsão constitucional formularam-‐se diversas normas, tanto de
caráter geral quanto para o tratamento de um determinado microbem
ambiental, emanadas por todos os entes federados. Também se constituíram
4 Segundo o autor, o complexo quadro de aspirações individuais e sociais que caracterizam a chamada sociedade de risco, fazem emergir categorias novas de expectativas (e a partir daí, de direitos), cujos contornos estão em divergência com a fórmula clássica eu-‐contra-‐o-‐Estado e da sua versão welfarista, nós-‐contra-‐o-‐Estado.
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diversos órgãos ambientais e conselhos de meio ambiente em todos os
Estados federados e em parte expressiva dos Municípios do país.
Costuma-‐se referir que o Brasil possui um avançado e bem elaborado
Direito Ambiental, talvez um dos melhores sistemas jurídicos formais sobre a
matéria. Na mesma medida em que talvez seja o país com maior índice de
descumprimento e mais baixa eficácia das normas ambientais em vigor. O que
se pode averiguar pelo amplo processo de judicialização das demandas
ambientais.
3.4. Direito aplicado (?)
A proliferação sem precedentes de normas ambientais e de arranjos
institucionais para regular a matéria, contudo, não correspondeu à melhoria
do quadro de degradação ambiental no país, muito ao contrário, a situação
vem se agravando em alta velocidade, em que pese alguns avanços pontuais
em determinados setores ou localidades do país. Este contexto de ampla
regulação progressista e democratizante de baixa efetividade gerou intenso
processo de judicialização dos conflitos ambientais e esta vem sendo a
estratégia principal dos movimentos ambientalistas para tentar fazer valer os
preceitos legais.
Podemos afirmar que a regulação da matéria ambiental no Brasil pode
ser considerada, ao menos até os anos 90, um uso contra-‐hegemônico do
Direito, dentro dos limites internos da democracia representativa. É inegável
que tantos os representantes eleitos que defendiam a bandeira ambiental
quanto à pressão social nacional e internacional conseguiram influir na edição
de normas de caráter progressista, democrático participativo que
efetivamente fizeram avançar a proteção do meio ambiente no país e,
principalmente, inserir o tema na questão política.
De toda sorte, a atuação dos órgãos ambientais e a aplicação dos
instrumentos jurídicos e técnicos de proteção ambiental, não se desenvolveu
no mesmo sentido da normatização. Apresentou-‐se, de fato, descumprimento
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maciço das determinações legais e o esvaziamento das atribuições dos órgãos
públicos envolvidos. Para este quadro contribuiu sensivelmente os conflitos
negativos ou positivos de competência entre os entes federados e o discurso
político desenvolvimentista.
Como visto, a consolidação da globalização neoliberal colide
frontalmente com a aplicação de normas restritivas ao lucro e a produção. Na
defesa de seus interesses imediatos, os setores produtivos passam a
pressionar o Estado no sentido de que ditas normas travam o desenvolvimento
e levam a ingovernabilidade.
Poder-‐se-‐ia afirmar que a prática do Direito ambiental brasileiro vem
sofrendo um processo de esvaziamento dos avanços normativos e até mesmo
uma desconstitucionalização de fato da matéria ambiental.
4. Para um uso contra-‐hegemônico do direito ambiental
A pergunta que intitula o presente artigo foi proposta por Santos,
alternativamente, nos seguintes termos: “será que existe uma relação entre o
direito [ambiental] e a demanda pro uma sociedade boa?” O autor responde a
sua própria pergunta com um “sim bastante relativado” e passa a especificar
algumas áreas em que a relação entre o direito e a emancipação social se
afiguram mais necessárias e possíveis.
A partir da contextualização da questão no âmbito da formação dos
Estados de Direito e da exclusão do contrato social de diversos grupos sociais,
suas prática e saberes e, principalmente se centrado na tensão entre regulação
social e emancipação social, o autor afirma que estamos em um período de
transição em que enfrentamos problemas modernos para os quais não existem
soluções modernas, onde se realiza um fosso entre as experiências e as
expectativas sociais.
O processo de globalização hegemônica neoliberal resultou em um forte
conservadorismo que se baseia em um consenso hegemônico composto por o
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consenso econômico neoliberal, o consenso do Estado fraco, o consenso
democrático-‐liberal e o consenso do Estado de direito de reformismo judicial.
Na contramão deste processo, contudo, criaram-‐se as condições para
emergência de forças, organizações e movimentos contra-‐hegemônicos
localizados em todo mundo se articulassem através de seus interesses comuns,
apesar de e para além de suas diferenças, convergindo em movimentos
contra-‐hegemônicos com projetos sociais emancipatórios distintos, mas
relacionados entre si, consubstanciando-‐se em um cosmopolitismo subalterno.
Com respeito ao papel do direito no âmbito do cosmopolitismo
subalterno o autor afirma que apenas existem manifestações embrionárias e
que, portanto, a constituição de uma legalidade cosmopolita subalterna deve
ser empreendida em um espírito prospectivo e prescritivo. Neste ponto,
Santos incita uma agenda de investigação sobre a teoria e a prática jurídica do
cosmopolitismo subalterno. E é neste sentido que se pretende iniciar a
formulação de uma investigação no campo jurídico ambiental.
Em diálogo com as condições ou pressupostos da legalidade cosmopolita
subalterna propostas pelo autor, passamos a propor um conjunto de teses que
visam ajudar a compreender se o direito ambiental pode ser emancipatório.
4.1. Diálogo com as condições para a legalidade cosmopolita
As assertivas de caráter embrionário abaixo relacionadas se inserem nas
propostas de construção de uma sociologia das emergências (Santos, 2001).
Pretende-‐se, portanto, dar um passo inicial no processo de ampliação e de
tornar visível o potencial emancipatório implícito nas práticas do
cosmopolitismo subalterno que se utilizam do direito ambiental como um
instrumento contra-‐hegemónico.
O direito ambiental, enquanto parte do direito estatal, é um instrumento hegemônico. O Direito Ambiental foi e é utilizado de maneira contra-‐hegemónica.
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O uso contra-‐hegemônico do direito ambiental se deu de variadas
formas como estratégia de luta tanto dos movimentos ambientalistas como de
outros movimentos sociais no contexto do cosmopolitismo subalterno vem
sinalizando sua importância enquanto mais uma ferramenta com potencial
emancipatório da globalização contra-‐hegemônica.
O surgimento do direito ambiental trouxe como principal fator tendente a ampliação do contrato social ambiental a sua consagração como um direito difuso.
A positivação do direito ambiental realizou uma ampliação subjetiva
estranha ao direito moderno até aquele momento, na medida em que, para
além de integrar as dimensões individual e coletiva, incluiu a tutela das
gerações futuras e determinou o reconhecimento de formas “tradicionais” de
vida e de relacionar-‐se com a natureza de diversos grupos humanos.
O direito ambiental emerge intrinsecamente relacionado com as práticas democráticas participativas e determina a criação alargada de espaços públicos deliberativos de natureza híbrida.
Em razão mesmo da afirmativa anterior, não é possível imaginar uma
política de direitos do ambiente que não dialogue com os diversos atores e
vozes que compõe a conflituosidade ambiental contemporânea. Nesta medida,
há intenso potencial democratizante na própria emergência e positivação do
direito ambiental.
O Direito ambiental é um instrumento capaz de tornar o Estado o mais novo movimento social.
Por sua dimensão subjetiva alargada ou difusa e pela sua capacidade de
gerar intensa ampliação da participação de indivíduos e grupos
tradicionalmente excluídos dos espaços públicos de tomada de decisão, o
direito ambiental é potencialmente um instrumento de permeabilização do
Estado às demandas do cosmopolitismo subalterno.
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A aplicação do direito ambiental vem sendo realizada em paralelo as acções ilegais por parte dos interesses hegemônicos.
A estratégia dos interesses da globalização hegemônica contrariados
com a regulação e as decisões judiciais que aplicam o direito ambiental vem
sendo a não observância das normas e as práticas ilegais, inclusive com a
participação do Estado.
O direito ambiental favorece a ideia de que a escala a privilegiar (local, nacional, global) deve ser determinada pelos objetivos concretos e contextuais de sua aplicação.
Tendo em vista que o bem jurídico ambiente não conhece fronteiras
geopolíticas artificialmente determinadas e que a conflituosidade ambiental se
dá na esfera das relações individuais e coletivas de natureza trans-‐escalar, o
desenvolvimento de seus instrumentos e instituições ocorre, necessariamente,
nas mais diversas escalas espaciais que devem ser privilegiadas conforme o
caso, seguidos determinados critérios.
O direito ambiental, enquanto instrumento contra-‐hegemônico, aponta à sociedade civil incivil e a sociedade civil estranha.
Os princípios, objetivos, instrumentos e arranjos institucionais propostos
pelo direito ambiental visam essencialmente a inclusão da sociedade civil
como todo no contrato social ambiental através da distribuição mais justa dos
benefícios, malefícios e riscos inerentes a matéria ambiental.
O Direito ambiental, enquanto legalidade subalterna, funciona como facilitador de uma hermenêutica de suspeição no que tange aos princípios modernos da regulação.
O direito ambiental, na medida em que pretende alcançar o
desenvolvimento sustentável, apregoa e determina outra forma de produção e
consumo, bem como o respeito as diferentes concepções de sustentabilidade.
Neste sentido, fomenta a criação e desenvolvimento de mercados subalternos
(mercados comunitários, mercados verdes e mercados justos) e pretende a
viabilização e inclusão dos atores e vozes que compõe as comunidades
subalternas.
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O fosso entre o excesso de sentido e o défice de desempenho é o principal limite dos usos contra-‐hegemônicos do direito ambiental.
A expansão simbólica das promessas abstratas por trás dos preceitos do
direito ambiental encontra um fosso particularmente alargado com relação ao
seu desempenho. Por tratar-‐se de um ramo do direito estatal que pretende
reformular tanto o sistema de direitos modernos como conhecemos, como
também redirecionar as práticas estatais, individuais e coletivas, tornam a
contabilização de seus resultados práticos quase irrisória. Esta debilidade vem
sendo utilizada pelos interesses hegemônicos para desacreditar e esvaziar seu
potencial emancipatório.
O Direito Ambiental consubstancia em si mesmo a relação dinâmica e complexa entre a legalidade demoliberal e a legalidade cosmopolita.
Assertiva que se exemplifica com a recente consagração do direito
fundamental ao meio ambiente equilibrado, tanto nas normas internacionais
quanto em determinados ordenamentos jurídicos nacionais ou mesmo, como
no caso brasileiro, através de jurisprudência consolidada.
5. O direito ambiental e o cosmopolitismo subalterno
Como visto a emergência do direito ambiental internacional e sua posterior
positivação e constitucionalização em diversos Estados-‐nação, como no caso
brasileiro, demonstra que houve um uso contra-‐hegemônico tendente a
emancipação socioambiental, através da regulação jurídica ambiental. Esta
afirmação baseia-‐se no fato de que dita emergência se realizou através da
articulação de diversos movimentos ambientalistas em escala transestatal,
promoveu intenso debate sobre diferentes concepções ambientais entre o Sul
e o Norte global, e gerou avanços tanto na tomada de consciência global com
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relação à matéria quanto na criação de espaços de governança e de debate
global.
Contudo, o direito ambiental aplicado vem demonstrando que ditos
usos contra hegemônicos do direito ambiental no âmbito da regulação jurídica
e nos limites da democracia liberal representativa foram necessárias, mas
insuficientes para que o direito ambiental seja considerado um instrumento
para promover a emancipação social. É dizer que a constituição de um direito
ambiental tendente a emancipação não faz do seu uso contra-‐hegemônico
necessariamente, todo o contrário.
Concordamos com o autor que para que o direito seja considerado
emancipatório é importante determinar o uso e prática jurídica o exercício
mesmo do direito e o seu potencial de incluir a chamada sociedade civil incivil
no contrato social ambiental e nas políticas do Estado de Direito Ambiental.
Não entraremos aqui na problemática sobre o próprio conceito de
emancipação social, que no âmbito do pluralismo, enseja diferentes
concepções. Limitar-‐nos-‐emos a afirmação, conforme o autor, de que se trata
de um processo emancipatório cujo conteúdo deve ser determinado
contextualmente.
Para tanto trataremos de determinados pontos centrais propostos por
Santos na tentativa de observar os potenciais emancipatórios do Direito
ambiental relacionando-‐se os cachos de legalidade cosmopolita por ele
desenvolvidos com sua tendência a descolonizar, democratizar e
desmercantilizar a realidade social.
5.1. Potencial para descolonizar
Para que o direito ambiental possa ser utilizado de modo a promover a
descolonização externa e interna das sociedades contemporâneas entra em
questão o próprio conceito de natureza ou ambiente que em cada espaço-‐
tempo cultural possui determinado conteúdo e acepção. Importante referir
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que para alguns povos sequer existe um conceito determinado de natureza,
dada que a mesma é parte constitutiva e constituidora da própria sociedade.
Com relação ao direito ambiental descolonizar significa enfrentar a
questão da primazia do conhecimento científico e promover uma efetiva
ecologia de saberes5 (Santos, 2010) que começaria:
Assumindo-‐se que todas as práticas e relações entre os seres humanos, assim como entre os seres humanos e a natureza, implicam mais de uma forma de conhecimento e, por isso mesmo, de ignorância. Etimologicamente, a moderna sociedade capitalista se caracteriza pelo fato de que favorece práticas nas quais predominam o conhecimento científico. [...] Qualquer crise ou catástrofe que possa resultar destas práticas é socialmente aceitável e vistas com custo social inevitável que pode ser superado mediante novas práticas cientificas. O conhecimento científico não está socialmente distribuídos de modo proporcional e tendem a favorecer os grupos sociais que lhe têm acesso. A injustiça social também é uma injustiça cognitiva. Este conhecimento é intrinsecamente limitado com relação aos tipos de intervenção no mundo real que podem alcançar.
A interligação necessária entre o conhecimento científico, o
desenvolvimento tecnológico e a atuação técnica com a matéria ambiental é
outro ponto de grande relevância na análise da questão. Trata-‐se de consenso
que para o alcance do desenvolvimento sustentável devem-‐se adotar as
melhores e menos poluentes tecnologias disponíveis, bem como se deve
investir maciçamente na investigação científica para o desenvolvimento de
tecnologias limpas ou ambientalmente mais adequadas.
As normas jurídicas ambientais, por seu turno, devem prever os limites e
os indicadores técnicos científicos que limitem o exercício das atividades que
geram contaminantes, bem como os modos de despejo e tratamento dos
resíduos poluentes lançados no meio ambiente.
Esta relação necessária e intrínseca entre ciência e meio ambiente vem
sendo objeto de disputas acirradas entre a comunidade científica, com especial
5 Significa fazer um uso contra-‐hegêmonico do conhecimento científico, conferir legitimidade a outras formas de saberes e promover um diálogo entre eles em termos de igualdade. (Santos, 2010).
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destaque para a questão do risco e da incomensurabilidade. É dizer, do
reconhecimento dos limites do conhecimento científico e das consequências
da adoção de determinada tecnologia a médio e longo prazo. A partir das
célebres contribuições de URICH BECK sobre o que chamou a sociedade de risco,
vem se desenvolvendo inúmeros estudos críticos sobre o papel da ciência na
sociedade contemporânea. Dita discussão se relaciona diretamente com o
conteúdo do princípio da precaução.
As polêmicas científicas sobre a matéria são constantemente alvo de
denúncia no sentido de que boa parte da produção dita científica é financiada
por grandes corporações que possuem interesses diretos na realização de
determinada atividade degradadora e acaba por justificar o uso político das
divergências científicas sobre a matéria, tanto para o não cumprimento das
normas e como através de amplas discussões judiciais sobre o seu conteúdo.
Para além da crise da ciência moderna, no que tange a matéria
ambiental, há de se ressaltar a questão da exclusão de outros saberes. Ora,
como é sabido as populações que tradicionalmente vivem em um meio detém
grande e valioso conhecimento sobre os recursos naturais em seu entorno.
Ditos conhecimentos foram historicamente subalternizados no processo de
desenvolvimento e primazia do conhecimento científico e, mas recentemente,
apesar de seguirem recebendo a denominação de conhecimentos tradicionais,
passaram a ser apropriados, “cientificizados”, patenteados e utilizados ao
sabor das corporações no novíssimo setor econômico da biotecnologia.
Em outros campos, onde os conhecimentos ditos tradicionais não
possuem, ao menos por agora, interesse econômico direto, estes continuam
sendo sumariamente excluídos dos debates sócio-‐jurídico-‐políticos o que
determina a geração de inúmeras injustiças ambientais.
5.1.1. O direito ambiental nas zonas de contato
Segundo o autor, as zonas de contato são campos sociais em que diferentes
mundos da vida normativos se encontram e se defrontam. Neste cacho de
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legalidade cosmopolita o Direito Ambiental brasileiro encontra vasto campo de
investigação.
Por sua natureza transversal, as normas de direito ambiental inferem
diretamente nas normas que regulam os estatutos dos povos indígenas, dos
remanescentes quilombolas, das populações caiçaras, tanto no que tange a
demarcação e possibilidade de uso de seus territórios quanto no que diz
respeito à proteção identitária e a sua autonomia.
Desde a formação deste ramo do direito, realizou-‐se um contexto de
conflito entre estes grupos e os movimentos ambientalistas, conflitos também
fomentados pelos entes políticos interessados, na medida em que se
encaravam as normas protetivas do meio ambiente como uma limitação ao
modo de vida tradicional daqueles e se realizava verdadeira competição entre
seus territórios e as chamadas áreas de proteção ambiental (sociabilidade
violenta).
Dadas as frustrações em termos de uso do direito tanto no âmbito da
regulação com através do poder judiciário, e através dos processos de diálogo
e tradução intercultural entre os movimentos implicados, observa-‐se a reunião
dos mesmos nas lutas por reconhecimento e preservação ambiental
(sociabilidade de coexistência e reconciliação). Evidenciando-‐se a
potencialidade da matéria ambiental para agrupar e articular ações
cosmopolitas (tendência a formação de uma sociabilidade de convivialidade).
A afirmação do direito fundamental ao meio ambiente, apesar das
limitações de sua aplicabilidade, possui a potencialidade de agregar,
necessariamente, uma concepção não universalista, multicultural e articulada
com os demais direitos fundamentais reconhecidos. Relaciona-‐se em particular
com o direito a saúde, a viver e trabalhar em um ambiente digno, com os
direitos dos povos e os direitos coletivos e com a proteção da biodiversidade
em âmbito translocal.
No contexto da dicotomia tradicional/moderno, a tutela jurídica do meio
ambiente encerra em si mesma a dificuldade de relacionar e a necessidade de
aplicar as melhores práticas de proteção e recuperação ambiental, utilizando-‐
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se das novas tecnologias mais limpas e do moderno conhecimento científico
com o conhecimento tradicional das comunidades que historicamente se
relacionam com o seu meio de maneira sustentável.
Neste sentido, a tutela dos conhecimentos dos povos e suas concepções
de meio ambiente deve, necessariamente ser ponderada com a aplicação do
conhecimento científico na aplicação das políticas ambientais. Para tanto, a
inter-‐relação entre os movimentos de defesa do meio ambiente com as
organizações dos povos tradicionais podem utilizar-‐se da estratégia de
fomentar a participação democrática ativa destes e daqueles nas tomadas de
decisões públicas no campo ambiental.
Poder-‐se-‐ia afirmar que uma das principais estratégias a ser adotada
pelo cosmopolitismo subalterno através do uso contra-‐hegemônico do direito
ambiental deve ser no sentido de realizar a democratização radical e a
realização efetiva de uma ecologia dos saberes, para a constituição de uma
cidadania ambiental, tanto no âmbito do Estado como global, através da
promoção de diálogo intercultural. Nas palavras e Santos, tratar-‐se-‐ia da
construção de zonas de contato de tipo não imperial de natureza horizontal.
5.2. Potencial para democratizar
Aqui reside o principal potencial emancipatório do Direito Ambiental. Através
do uso contra-‐hegemônico dos seus princípios e instrumentos se poderia gerar
ampla democratização do estado de direito de modo a promover maior e
melhor inclusão dos grupos sociais subalternizados.
Conforme determina Santos, o potencial anti-‐sistêmico de qualquer
movimento social reside na sua capacidade de articulação com outros
movimentos, com suas formas de organização e seus objetivos. Para tanto
propõe um processo de tradução intercultural, procedimento que permitiria
criar inteligibilidade recíproca entre as experiências e saberes do mundo, tanto
as disponíveis como as possíveis.
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A tradução intercultural entre práticas sociais e seus agentes torna
possível a ecologia dos saberes e consiste em um trabalho de interpretação
entre dois ou mais culturas com o objetivo de identificar preocupações
isomórficas entre elas e as diferentes respostas que proporcionam.
Já a tradução intercultural entre os diferentes saberes tende a realizar o
que o autor denomina por hermenêutica diatópica, que visa criar
inteligibilidade recíproca entre formas de organização e entre objetivos de
ação. Incide sobre os saberes aplicados (materialidade). Particularmente
importantes entre práticas não hegemônicas como condição para sua
articulação recíproca para que ser convertam em política contra-‐hegemônica.
O trabalho de tradução tende a esclarecer o que une e o que separa os
diferentes movimentos sociais de modo a determinar as possibilidades e os
limites da articulação ou agregação entre os mesmos potencializando a
formação de uma verdadeira globalização alternativa através da formação de
redes transnacionais de movimentos locais, cada vez com maior visibilidade e
diversidade.
Neste sentido o direito ambiental pode e dever ser utilizado pelos
movimentos sociais como um instrumento de articulação que se realizariam,
em especial, no âmbito dos cachos de legalidade cosmopolitas definidas pelo
autor como o direito Ambiental para os não-‐cidadãos e o Direito Ambiental
estatal como mais recente movimento social.
5.2.1. O direito ambiental para os não-‐cidadãos
Neste ponto vale referir o potencial de articulação entre os movimentos
ambientalistas e os movimentos de lutas pela terra, pela moradia digna e por
justiça ambiental no Brasil.
A luta pela reforma agrária no Brasil possui vários pontos em comum
com a luta pela preservação do meio ambiente rural e contra a monocultura
nos super latifúndios brasileiros. Outrora em franco processo de conflito,
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ambos os movimentos vem encontrando meios de diálogo e unindo
estratégias contra o poderoso setor de agronegócios no país.
Do mesmo modo, as lutas por moradia digna e pela sustentabilidade das
cidades possuem vários pontos de contacto com as proposições do direito
ambiental urbano. Em especial no contexto das áreas ocupadas por
comunidades carentes e as denominadas áreas de risco das grandes cidades.
Um exemplo paradigmático deste tipo de diálogo entre movimentos
sociais e demandas emancipatórias é o desenvolvimento do movimento global
por justiça ambiental, pelo qual, mulheres, populações rurais, grupos étnicos e
ambientalistas utilizam-‐se do direito ambiental como estratégia para alcançar
a inclusão da variável social na implementação de políticas e obras públicas.
O fundamento último do movimento por justiça ambiental se baseia na
constatação de que o modelo de desenvolvimento vigente determina que os
custos de recuperação e as demandas por bens ambientais recaiam de
maneira desproporcionada sobre as comunidades mais vulneráveis e propõe
uma distribuição mais igualitária dos benefícios, riscos e danos ambientais
entre os membros da comunidade política.
Neste sentido, os grupos tradicionalmente subalternizados estão unidos,
de fato, enquanto “vítimas” preferenciais das catástrofes ambientais, das
consequências da poluição e da escassez de recursos naturais.
Por esta mesma razão, reside aqui um extraordinário potencial de
articulação entre as demandas dos diversos movimentos sociais por
emancipação social através do direito ambiental.
5.2.2. O Estado de Direito Ambiental como o mais recente movimento social
Neste cacho e legalidade cosmopolita nota-‐se mais claramente o potencial do
uso contra-‐hegemônico do Direito Ambiental na medida em que se pretende a
reconstituição do Estado como um “conjunto híbrido de fluxos, redes e
organizações em que se combinam e interpenetram elementos estatais e não-‐
estatais, nacionais e globais” (Santos, 2003).
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O Direito Ambiental não pode ser analisado fora do contexto da luta
pela democratização de alta intensidade do Estado e da sociedade e neste
sentido na construção de esferas públicas (estatais e não-‐estatais) de tomada
de decisão política que, para além de inserir a variável ambiental de modo
transversal e trans-‐escalar, possibilite a inclusão dos saberes e valores
subalternos.
Com respeito mais especificamente ao experimentalismo democrático
participativo, a regulação da matéria ambiental no Brasil possibilitou a criação
formal de diversos fóruns híbridos com especial destaque para os Conselhos de
Meio Ambiente (nacional, estaduais e municipais) cujas competências dizem
respeito a normatização técnica e a resolução de conflitos na esfera
administrativa. No que se refere à gestão setorial dos recursos ambientais
também foram criados diversos fóruns cuja composição conta com a
participação da sociedade civil organizada como são exemplos os Comitês de
Bacias Hidrográficas (nacionais e estudais) e os Conselhos gestores de
Unidades de conservação (federais, estaduais e municipais).
Os referidos espaços públicos abertos a participação social vem
enfrentando, por um lado, problemas relativos aos conflitos positivos e
negativos de competência, típicos do modelo federalista, e por outro a
competição com demais agências públicas, técnicas ou políticas que detém
atribuições semelhantes.
Com respeito às atribuições dos Estados de fomentaram a instituição de
diversos instrumentos econômicos para obtenção de fundos que viabilizassem
a recuperação e proteção do meio ambiente, tais como os tributos ambientais
e as penalidades administrativas aplicáveis aos infratores das normas de
proteção. Ditas medidas vêm se configurando, contudo, como a outorga do
direito de poluir via pagamento.
Em matéria ambiental o atuar do Estado demonstra sua fragilidade ao
lidar com temas complexos e conflitivos, na medida em que se evidencia sua
incapacidade fiscalizatória. Além disso, o próprio Estado é muitas vezes ator
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direito de degradações ambientais (por ação ou por omissão) e possui estreita
relação de dependência com os detentores do poder econômico.
Outra especificidade da matéria ambiental igualmente relevante e
reconhecida é a grande dificuldade de responsabilização dos agentes que
geram atos de degradação ambiental. Isto decorre de que várias situações
críticas de poluição são geradas por ações cumulativas no tempo e no espaço
cujos atores são coletivos ou individuais, públicos ou privados e cuja
recuperação, nem sempre possível no sentido da reversibilidade, enseja
altíssimos custos e largo termo.
Para tanto se desenvolveram uma série de institutos e instrumentos de
responsabilização compartilhada entre Estado, sociedade civil e mercado. Este
reconhecimento justifica as medidas tomadas no sentido de que a governança
ambiental deve realizar-‐se de modo compartilhado entre os diversos atores,
cujos interesses, muitas vezes, indicam sentidos divergentes se não mesmo
opostos.
Aqui se observa com extrema clareza a necessidade e centralidade do
tema da participação democrática e do direito no tratamento da questão
ambiental. Assim como se explicita as dificuldades de sua realização.
5.3. Potencial para desmencantilizar
5.3.1. O direito ambiental e a redescoberta democrática do trabalho
Afirma o autor que a redescoberta democrática do mundo do trabalho é um
fator crucial para a construção das sociabilidades cosmopolitas. Neste ponto,
as áreas de interface com o Direito Ambiental dizem respeito à regulação do
meio ambiente do trabalho, que, na contramão das tendências neoliberais de
tornar a relação de trabalho em mero contrato privado, determinam a
responsabilidade do empregador pela saúde integral e a constituição de
ambiente digno para os seus funcionários, configurando-‐se como mais uma
estratégia possível nas lutas dos trabalhadores.
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Vale enfatizar que, no contexto do fenômeno de internacionalização das
normas ambientais, as normas protetivas do meio ambiente do trabalho são
ditadas tanto no nível global (padrões internacionais e códigos de conduta
para empresas transnacionais) como local, asseverando-‐se como potencial de
fazer frente as tendências do capital globalizado de enfraquecimento
(flexibilização) do direito do trabalho, ao menos enquanto motor de
articulação entre os movimentos de defesa dos trabalhadores nacionais e
locais. Esta articulação já se evidencia na utilização do direito ao meio
ambiente do trabalho como estratégia dos movimentos anti-‐sweatshops.
Além disso, há diversas propostas dos movimentos ambientalistas no
sentido da construção de alternativas ao trabalho (poliformismo) bem como a
formação de diversos outros e novos âmbitos (cooperativismo), áreas
(interdisciplinares) e postos de trabalho especializados na matéria ambiental.
5.3.2. O Direito Ambiental e a produção não-‐capitalista
Neste cacho de legalidade cosmopolita o Direito Ambiental possui o potencial
de combater a privatização desenfreada dos bens e serviços ambientais, seja
através do estabelecimento de normas que determinam garantias mínimas de
acesso a todos a estes bens serviços seja através da determinação de uma
gestão participativa dos mesmos.
Outro potencial bastante conhecido é no sentido da promoção de
mercados não-‐capitalistas subalternos nos quais se busca agregar valor aos
produtos e serviços em virtude de critérios tais como a sustentabilidade e a
inclusão social. São exemplos deste tipo de proposta o comércio justo e o
mercado verde.
O potencial de uso contra-‐hegemônico do Direito Ambiental neste ponto
reside no reconhecimento e tratamento diferenciado (regimes jurídicos
especiais) das referidos propostas, como, por exemplo, através do
estabelecimento de isenções tributárias ou incentivos fiscais.
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Ditas estratégias, apesar dos limites evidentes de realização em âmbito
competitivo, sem se articulando em rede de práticas e projetos locais em nível
global e se consubstanciam com importante alternativa a articulação entre
diferentes demandas por emancipação.
6. Considerações finais
O presente artigo foi escrito a partir das proposições de Boaventura de Sousa
Santos sobre o papel do Direito na reconstrução da tensão entre regulação
social e emancipação social sob a luz de sua aspiração e projeto de construção
de uma sociologia das ausências e das emergências.
Aceitando-‐se o desafio de trilhar uma agenda de investigação visando
reconhecer os sinais presentes nas experiências das lutas por emancipação
(teoria de retaguarda), buscou-‐se delinear, embrionariamente, o campo de
investigação sobre as possibilidades e limites do uso contra-‐hegemônico do
Direito ambiental no âmbito da legalidade cosmopolita subalterna. É dizer, as
potencialidades de sua utilização para fins emancipatórios por movimentos e
organizações, quer de âmbito local quer de âmbito nacional ou global.
A resposta do autor a pergunta inicialmente proposta elucida que “o
direito não pode ser nem emancipatório, nem não-‐emancipatório, porque
emancipatórios e não-‐emancipatórios são os movimentos, as organizações e
os grupos cosmopolitas subalternos que recorrem à lei para levar as suas lutas
por diante”.
Como se buscou demonstrar, o direito ambiental possui uma série de
possibilidades enquanto recurso a ser utilizados pelos movimentos sociais no
sentido da construção de um cosmopolitismo subalterno. Estas
potencialidades residem na capacidade deste novo ramo do direito em ser
utilizado como instrumento para descolonizar, democratizar e desmercantilizar
as sociedades contemporâneas.
Mais especificamente, o direito ambiental, cuja emergência em si
consubstanciou-‐se como um uso contra-‐hegemônico do Direito no âmbito da
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regulação jurídica, desde o âmbito internacional até o local, possui
potencialidades de funcionar como ferramenta de tradução intercultural entre
diferentes movimentos sociais nas zonas de contato. Neste cacho de
legalidade cosmopolita o direito ambiental pode ser utilizado pelos grupos
sociais para gerar maior inteligibilidade recíproca tanto no âmbito dos
diferentes saberes e concepções de bem da vida, como das diversas
estratégias e experiências de luta emancipatória.
O Direito a viver em um meio ambiente ecologicamente equilibrado
também pode e deve funcionar como um mecanismo que, ao gerar mais
ampla democratização interna dos movimentos e também das agências
gestoras dos recursos ambientais, tem grande potencial de gerar maior
inclusão de grupos e setores sociais tradicionalmente subalternizados no
contrato social ambiental. Deste modo. Trata-‐se da luta pela consolidação de
uma cidadania ambiental, pautada na ecologia dos saberes.
No que se refere ao Estado como novíssimo movimento social, o direito
ambiental demonstra elástica capacidade de gerar mais ampla democratização
das democracias representativas. Ao criar e fomentar espaços de governança e
diálogo social dentro da estrutura administrativa do Estado, condição
necessária para sua efetivação, o direito do ambiente gera inclusão de grupos
e saberes no âmbito do político.
Por fim, e igualmente com grande potencial emancipatório, as normas
de direito ambiental podem ser instrumento constituição de mercados mais
justos e sustentáveis, de criação de novas categorias de trabalhos e
organização dos trabalhadores e de um novo padrão de consumo e produção.
As potencialidades de usos contra-‐hegemônicos do direito ambiental
aqui sinalizadas apontam para constituição de um verdadeiro ambientalismo
cosmopolita cujo desenvolvimento dependerá (e se retroalimentará) da
articulação e entre as lutas por emancipação social.
Referências Bibliográficas
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