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banda mirim #2 | 1 # 2 | NOTAS DE UMA PESQUISA BUDA | TEATRO PARA INFÂNCIA E JUVENTUDE | ÁFRICA | PETER BROOK | GRIOTS | POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA | FRANCESCA DELLA MONICA | MÚSICA | CENTROS DE ACOLHIDA | JULIANA JARDIM | AULAS | INSTITUIÇÕES DE LONGA PERMANÊNCIA | SHOWS | ÍNDIA | OSVALDO BORGEZ | REFUGIADOS E IMIGRANTES | YOGA DAS VOGAIS | VELHICE E ABANDONO | CLAUDIA VIDIGAL | SEMINÁRIOS | ANDERSON MARTINIANO | CASAS DE PASSAGEM | DOCUMENTÁRIO | CONTAÇÃO DE HISTÓRIA | EXPERIMENTOS CÊNICOS

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banda mirim #2 | 1

# 2 | NOTAS DE UMA PESQUISA

BUDA | TEATRO PARA INFÂNCIA E JUVENTUDE | ÁFRICA | PETER BROOK | GRIOTS | POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA | FRANCESCA DELLA MONICA | MÚSICA | CENTROS DE ACOLHIDA | JULIANA JARDIM | AULAS | INSTITUIÇÕES DE LONGA PERMANÊNCIA | SHOWS | ÍNDIA | OSVALDO BORGEZ | REFUGIADOS E IMIGRANTES | YOGA DAS VOGAIS | VELHICE E ABANDONO | CLAUDIA VIDIGAL | SEMINÁRIOS | ANDERSON MARTINIANO | CASAS DE PASSAGEM | DOCUMENTÁRIO | CONTAÇÃO DE HISTÓRIA | EXPERIMENTOS CÊNICOS

banda mirim #2 | 0302 | banda mirim #2

04 DESAFIO E LUZ DE UM PROCESSO por Marcelo Romagnoli

12 FAMÍLIA, LUGAR IDEAL DE ACOLHIMENTO E CUIDADO por Claudia Vidigal

13 SOBRE BUDDHAS por Foquinha

14 O QUE VEM ANTES DO SOM? Uma conversa com Francesca Della Monica

16 VAI ENCARAR? por Tata Fernandes

18 NÚMEROS DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA

20 SALVE JORGE por Lelena Anhaia

21 ESCOVAçãO CORPORAL E YOGA DO SOM - UMA VIVêNCIA MEDITATIVA COM OZ por Osvaldo Borgez

22 PERGUNTAS SOBRE A (POSSIBILIDADE DA) PRESENçA DO CORPO EM CENA por Juliana Jardim

26 DALVINHA por Cláudia Missura

28 ENVELHECER É UM ATO DE LIBERDADE E NãO DE DEPENDêNCIA por Anderson Martiniano

30 ILPI Canindé| 06.07.2015 por Nô Stopa

31 AGRADECIMENTOS

ANO II | NUM. 2 | MAIO 2016

Esta publicação integra o projeto “Buda – Cadernos de pesquisa”, contemplado na 26ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo.

Coordenação Editoral Marcelo Romagnoli

Colaboradores Anderson Martiniano, Cláudia Missura, Claudia Vidigal, Francesca Della Monica, Foquinha, Juliana Jardim, Lelena Anhaia, Marcelo Romagnoli, Nina Blauth, Nô Stopa, Osvaldo Borgez e Tata Fernandes

Revisão Pedro R. Almeida

Fotos Georgia Branco e Andrea Pedro

Desenhos Crianças e adolescentes dos Centros de Acolhimento visitados e Nina Blauth

Projeto Gráfico Andrea Pedro e Adriana Lazarini

Assistente de Produção Bianca Muniz

Produção Executiva Andrea Pedro

BANDA MIRIM éMarcelo Romagnoli [dramaturgia e direção]Alexandre Faria, Cláudia Missura, Edu Mantovani, Foquinha, Lelena Anhaia, Nina Blauth, Nô Stopa, Olívio Filho, Simone Julian e Tata Fernandes [elenco]Marisa Bentivegna [cenografia e iluminação]Andrea Pedro [produção]

Projeto realizado de maio de 2015 a junho de 2016

www.bandamirim.com.br

BANDA MIRIM #2 NOTAS DE UMA PESQUISA

04 | banda mirim #2

Esta revista traz um pouco da experiência vivida pelo grupo neste período.

SiddharthaGautama,oBuda,nasceurico,filhodeumrei. Ainda bebê, um vidente predisse que o menino estava destinado a um império, político ou espiritual. Sua infância e juventude foram de deleite e prazeres. Entretanto,viviaconfinadoentreosmurosdopalácio,umaforma que seu pai encontrou de preservá-lo da crueldade do mundo. Aos 29 anos deu início a uma exploração física e inte-lectual do seu ambiente. Este período está simbolizado pelo episódio das “quatro visões”, experiências que o adolescente viveu quando viajava em sua carruagem, fora dos limites do reino. Encontrou um velho à beira da estrada, o que fez com que Siddhartha conhecesse a dor do Envelhecimento. Depois seguiram encontros equivalentes com a Doença e a Morte.

BUDA Abalado pelas “visões” do abandono e da perda da dignidadehumana,suavidadeprivilégiosficouperturbada. Pensou que poderia existir uma alternativa ao sofrimento e à decadência. Saiu de casa. Deixou a família e a riqueza. Raspou os cabelos. Vestiu-se com as roupas de mendigo e deu início a sua procura pela verdade e libertação. Vagou durante anos. Encontrou muitos. E um dia sentou-se debaixo de uma árvore para meditar até encontrar a Verdade. Depois de meses, alcançou uma profunda intuição da natureza da nossa condição. Esta foi a sua iluminação, razão pela qual é chamado de Buda, “aquele que despertou”.

DESPERTAR PARA O OUTRO

A aventura de Siddartha pode ser lida como um despertar para o outro. Abandonar a vivência terrena e seus apegos e deixar a mente vazia são lições de Buda. O conceito de abandono e vazio pode ter diferentes entendimentos e o que mais nos interessou na pesquisa foi o sentimento de abandono social.

Crianças, jovens, idosos, doentes, imigrantes que vivem àmargemdaesferasocial,sejaporlimitaçõesfinanceirasou por razões ainda mais profundas, como desarticulações familiares, foram nosso foco. Promover o resgate de suas histórias de vida, compartilhar um pouco com eles da música e da presença, ouvir, ver e estar, tudo isso fez parte das visitas artísticas que a Banda fez em 12 abrigos ou casas de acolhimento na cidade de São Paulo.

Desafio e Luz de um ProcessoPor Marcelo Romagnoli

A BANDA MIRIM VEM SE DESTACANDO HÁ 12 ANOS NA CENA NACIONAL,

PESQUISANDO, CRIANDO E DIFUNDINDO UM PENSAMENTO

VOLTADO à VALORIZAÇÃO E APROFUNDAMENTO TéCNICO E

CRIATIVO DO TEATRO E DA MÚSICA PARA CRIANÇAS E JOVENS.

Com 14 integrantes, tem em seu repertório oito musicais, que acumularam mais de 20 prêmios, com quatro CD´S (dois indicados ao Prêmio da Música Brasileira em 2015), três livros (um deles com todas as peças do grupo), seis DVD´S, viagens e trocas artísticas com grupos de váriosEstadosatravésdeoficinasedebatespormaisde70cidades do Brasil, incluindo 12 capitais. Tudo isto atingiu um público de mais de 200 mil pessoas, a maioria crianças, e certamente potencializou a discussão sobre o teatro e a música contemporânea voltados ao jovem.

Em 2015 foi contemplada na 26ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo e recebeu recursos para pesquisar durante um ano o Projeto BUDA – CADERNOS DE PESQUISA. O alicerce do projeto foi investigar e colher histórias reais de abandono através de visitas, vivências e trocas artísticas com populações e grupos em situação de vulnerabilidade e risco social no município de São Paulo, coletando material sensível para futura montagem de um novo espetáculo musical jovem, mesclando realidade e ficção, baseado naaventura da iluminação de Buda.

banda mirim #2 | 0706 | banda mirim #2

Ao trocar e participar destas histórias, a Banda Mirim pretendeu tatuar em si a realidade de uma sociedade marcada pela incompreensão e pela injustiça. Isso foi combustível para alimentar a indignação contra as várias omissões frente ao ser humano. Além disso o grupo estudou, trocou informações entre si através de seminários, fez aulas e criou relações entre Buda, o teatro vazio de Peter Brook, o ator-narrador e os griots da África. Porque a história de Buda é só um parte do processo.

OS CRUZAMENTOS DA PESQUISA O uso do termo Ator-Narrador muitas vezes é entendido como uma forma dramática onde os atores distanciam-se dos personagens para contar passagens da história encenada. Mas esta técnica tem muito mais elementos do que pode parecer, assumindo uma busca pela verdade em cena. Esta verdade da cena, incorporada à verdade de uma história real, é o eixo mais importante da busca e da pesquisa para compor a encenação do futuro musical da Banda Mirim.

Ao propor aos atores-músicos o desenvolvimento de um estado cênico, um estado de verdade narrativa, com características híbridas entre contar e ser, queremos aproximar nossa realidade – crua, injusta, débil – da história budista de revelação e sabedoria atemporal. A antiga arte de contar histórias, eternamente remodelada, ainda mantém-se viva, nos fundamentos do próprio teatro. Mas adquiriu recentemente formas autônomas de entretenimento. O estudo desta técnica – a contação de história – é importante impulso para a busca de um estado de corpo presente para o ator.

Como inspiração estética, que norteará não só a visualidade do espetáculo, mas sobretudo sua essência, podemos citar o pensamento teatral desenvolvido pelo encenador inglês Peter Brook, principalmente suas relações e descobertas com a África. A África de chão batido, aparente deserto humano, imprime-se como fonte grandiosa de relíquias. Uma delas é a verdade de suas relações com o passado, mantendo ainda figuras como as dosGriots, que será nosso farol rumo a uma forma de interpretar. OGriotéumafigura importantenaestruturasocialdamaioria dos países da África Ocidental. Podemos descrevê-los como senhores de histórias, cuja função primordial é a de informar, educar e entreter.

Considerado mais do que um artista, é antes de tudo o guardião da tradição oral de seu povo, de seus costumes e lendas, um especialista em genealogia e na história de seus antepassados. Entre os griots mais conhecidos no Ocidente está Sotigui Kouyaté. Nascido no Mali, mas radicado em Burkina Fasso, Sotigui,alémdeGriot,ficouconhecidomundialmenteporseustrabalhos como ator tanto no teatro, quanto no cinema em parcerias com diretores como Bernardo Bertolucci e o próprio Peter Brook, com quem trabalhou por mais de 20 anos. As parcerias com Brook se solidificaram ao longo dosanos, exatamente no momento em que o diretor procurava caminhosemseufazerteatralecinematográfico.Apósanosde pesquisa e temporadas de improvisações pela África, Brook se aproximou do conceito de espaço vazio. O vazio da filosofia budista, do desapego e abandono,encontra, para nós, algum paralelo com este teatro.

Nolivro“Aportaaberta”,Brookfazaseguintereflexão:

“Tudo que diz respeito ao conteúdo, significado, expressão, linguagem e música só pode existir se a experiência for nova e original. Mas nenhuma experiência é possível se não houver um espaço puro, vazio, pronto para recebê-la”.

EBudanosdiz:

“Um espírito vazio de vontades tem a força para chegar à Verdade.”

Oficina de Contação de Histórias com Ana Luisa Lacombe

Seminário sobre música africana

Seminário sobre o Teatro de Peter Brook Aula prática de música africana

ESTA REVISTA PRETENDE SER PARTE DE NOSSA CONTRIBUIÇÃO PARA O APRIMORAMENTO DE UM FAZER ARTÍSTICO QUE PASSA, SOBRETUDO, PELA CONSCIÊNCIA CRÍTICA DE UMA SOCIEDADE DESIGUAL E INJUSTA, FORTALECENDO O TEATRO JOVEM COMO FERRAMENTA CAPAZ DE ILUMINAR UM CAMINHO RUMO à LIBERDADE.

banda mirim #2 | 0908 | banda mirim #2

ABRIGOS VISITADOS

Durante a pesquisa, a Banda Mirim visitou locais de acolhimento da cidade de São Paulo geridos pela Secretaria MunicipaldeDireitosHumanoseCidadania(SMDHC),afimde realizar trocas artísticas com pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social. Os locais foram escolhidos juntamente com a equipe da SMDHC, privilegiando o atendimento a pessoas em situação de rua; imigrantes e refugiados; adultos que habitaram logradouros públicos em processo de passagem para vida independente fora das ruas e do abrigo; idosos em instituições de longa permanência; crianças vítimas de violência e em situação de abrigamento; e adolescentes e jovens em abrigos permanentes ou em casas de passagem. As visitas foram separadas em três núcleos de acordo com a faixa etária e característica de cada instituição: Oficina “MEMória E DiGniDaDE” para adultos e idosos, Oficina “fUTUrO E DiGniDaDE” para infância e juventude e Oficina “abanDOnO E DiGniDaDE” para população em situação de rua e refugiados.

CRIANÇAS E JOVENS

• SAICA Santana (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes) • Casas Taiguara• Associação Vida Carrapicho I • Associação Vida Carrapicho II

ADULTOS E IDOSOS

• Casa de Apoio Maria Maria (Centro de Acolhida Especial para Mulheres em Situação de Rua)• ILPI Canindé (Instituição de Longa Permanência para Idosos)• Sítio das Alamedas (Centro de Acolhida Especial para Idosos)• Centro POP Barra Funda (Centro de Referência Especializado de Assistência Social)

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E REFUGIADOS

• Centro Comunitário São Martinho de Lima - Povo de Rua • Centro POP Vila Maria (Centro de Referência Especializado de Assistência Social para População em Situação de Rua)• CRAI (Centro de Referência e Acolhida para Imigrantes)• Centro POP Barra Funda (Centro de Referência Especializado de Assistência Social para População em Situação de Rua)

banda mirim #2 | 1110 | banda mirim #2

SEMINÁRIOS• Música da Índia• Música da África • O teatro de Peter Brook• A arte da contação de histórias e os Griots• A filosofia de Buda• Grupos vulneráveis e crianças em situação de risco

AULAS• Antropologia da Voz, com Francesca Della Monica• Escovação corporal e vivência meditativa, com Osvaldo Borgez• Presença do corpo em cena, com Juliana Jardim• Contação de histórias, com Ana Luisa Lacombe

SHOWS EXPERIMENTOS-CÊNICOS• Centro Cultural Monte Azul• Espaço de Leitura - Parque da Água Branca• Praça Victor Civita• 3º Festival de Direitos Humanos • Parque Villa Lobos

PRODUÇÃO DE DOCUMENTÁRIO COM O REGISTRO ARTÍSTICO DO PROCESSO DE PESQUISA Captação de imagens e edição: Georgia Branco

VISITA GUIADA AO TEMPLO ZU LAI,

EM SÃO PAULO

banda mirim #2 | 1312 | banda mirim #2

Sabe-se que a primeira infância é etapa fundamental e que marcas deixadas neste período podem ter conse-quências importantes no desenvolvimento infantil, bem como por toda a vida adulta. Pensemos sobre um bebê que é separado de sua mãe logo ao nascer ou em seus primeiros meses. Este pequeno sujeito corre alto risco de ter seu desenvolvimento comprometido e exige cuidados ainda mais atentos e afetivos, certo? Seria isso possível em um ambiente institucional? Estima-se que cerca de 10 mil crianças menores do que 5 anos estejam hoje acolhidas no Brasil. Educadores ainda pouco preparados, precisam lançar mão de todo seu arcabouço pessoal e familiar para acolher esse pequeno ser da melhor forma possível. A falta de continuidade na presença de um mesmo educador é uma realidade no ambiente institucional, apesar dos esforços das equipes em busca da qualidade. Um bebê exige paciência ao seu tempo singular e respeito às suas demandas, ainda mais permeado pelo sofrimento da separação. Hámaisde70anososprimeirosestu-dos trouxeram dados sobre os atrasos no desenvolvimento de crianças separadas de suas famílias e acolhidos em diversas instituições por todo o mundo; abrigos grandes e de pouca qualidade, é verdade. Os númeroseramestarrecedores:ascriançasque cresciam em instituições, não só eram menos desenvolvidas cognitivamente, como tinham dificuldades importantes derelacionamento e, mais terrível, apresen-tavam índice de mortalidade muito maior quando comparado ao grupo de crianças em famílias. Amparada por esses dados, a ONU, na Convenção dos Direitos das

FAMÍLIA, LUGAR IDEAL DE ACOLHIMENTO E CUIDADO

Crianças (1989), determinou o direito de cada criança a crescer em ambiente familiar, com cuidados individualizados. Mais de 25 anos se passaram, com o Estatuto da Criança e do Adolescente em vigor, e ainda temos cerca de 36 mil crianças e adolescentes acolhidos no Brasil, com aproximadamente 96% em instituições. Apesar de termos serviços de acolhimento de qualidade, precisamos criar e desenvolver alternativas de cuidado familiares. Os programas de famílias acolhedoras, por exemplo, prioritários pelo ECA, são muito poucos. O processo de desinstitucionalização passa por di-versas estratégias, dentre elas programas de prevenção que ofereçam aos pais atenção integral, suporte real e a possibilidade de permanecerem com seus filhos. Quandoacolhemos, caímos no paradoxo de proteger a criança da violência e negligência praticada pela família, ao mesmo tempo em que negamos o seu direito fundamental à convivência familiar. O caminho é a manutenção das

SOBRE BUDDHASDias de pesquisas e estudos. Um despertar.

Processamentos, organização, valor da informação, compartilhamentos, significados, estímulos, percepção do indivíduo. Organização para uma modificação: novos significados para a arte e para a música. Tudo neste um ano de estudos.

Crescimento no conhecimento do sistema humano.

Nas visitas com os idosos e população de rua, foi na comunhão que se descobriu o processo de um novo trabalho. O contato com o abandono trouxe a música como a memória de quem nem se lembra mais de quem se é, e de onde se está.

Com os adolescentes nas casas de passagem, a troca às vezes foi fácil, outras nem tanto. Quando um adolescente de 16 anos disse “me adota”, senti o coração apertar e aquele adotar se revelou nas horas em que passamos ali, conversando, cantando, desenhando ou num abraço. Naquela troca o mais que humano se fez presente. Não somos um, somos um todo.

Pudemos despertar para a verdadeira natureza das histórias das pessoas com quem conversamos e interagimos. Iluminamos para uma nova consciência de grupo e individual. Foi para cada membro da Banda um trabalho único e podemos dizer espiritual para uma realização de uma maior compreensão. Aprendi nos seminários, nas oficinas e na criação de novas canções durante todo o processo.

Este fomento para o teatro possibilitou conquistas, pequenos Nirvanas particulares que somatizaram para o grupo.

“Sua tarefa é descobrir o seu trabalho e, então, com todo o coração, dedicar-se a ele.” Buddha

crianças em seus núcleos familiares, fortalecendo-os para queajudemseusfilhosasedesenvolveremplenamente.Ocorre que por vezes a família falha e a separação é necessária. E o momento da separação é de um sofrimento gigantesco para pais e filhos. O acolhimento deve serexcepcional e provisório e, quando ocorre, é preciso oferecer o melhor cuidado para aquele que, sem qualquer responsabilidade, é quem mais sofre: a criança e, emespecial, a criança pequena. Um movimento liderado pela Unicef em toda América Latina tem a meta de não termos crianças abaixo de 3 anos sendo encaminhadas para instituições. O Instituto Fazendo História, ONG que oferece estratégias e formação para os serviços de acolhimento, participa desta campanha e iniciou, em 2015, um serviço de acolhimento familiar na cidade de São Paulo. Crianças entre 0 e 2 anos são acolhidas temporariamente nas casas de famílias voluntárias, amorosas e corajosas, enquanto aguardam uma decisão judicial sobre seudestino: retornoà família deorigemouadoção. Nesse período, precisam de um ambiente seguro e afetivo que garanta seu desenvolvimento saudável. Estamos todos certos de que investir na primeira infância é prioridade. Seja nas famílias de origem, adotivas ou acolhedoras.Efiquemoscomalembrançadequeolharparao bebê, falar com ele e nomear o mundo para ele não é só necessário, mas fundamental para seu desenvolvimento!

Claudia Vidigal - Psicóloga e presidente do Instituto Fazendo Históriawww.fazendohistoria.org.br

FOQUINHA

banda mirim #2 | 1514 | banda mirim #2

UMA CONVERSA COM FRANCESCA DELLA MONICA

O que vem antes do som?

1. O ESPAÇO VISÍVEL E O ESPAÇO FÍSICO

Ver um espaço e “senti-lo” são duas ações que têm significados muito diferentes. Perceber o espaço apenascom os olhos limita o meu corpo a uma ressonância prevalentemente frontal, enquanto sentir o espaço e, portanto, relacionar-se com a globalidade das dimensões, estende a ação ressonante do corpo a toda a sua superfície. Trata-se de disponibilizar todas as cavidades de ressonância do corpo para a sua ação amplificadora, emvirtude de uma reação ao espaço. E não apenas. De fato, a exposição a espaços de grandes dimensões e a horizontes remotos determina uma reação de abaixamento da laringe, já no momento do ataque, como se o corpo aumentasse a própria disponibilidade e a própria receptividade, respeito a uma dimensão que alarga os próprios limites, além do visível.

Francesca Della Monica - Artista e pedagoga italiana.Conduz um importante estudo sobre as diversas possibilidades da voz e

da musicalidade, em especial no âmbito do teatro contemporâneo. Participa do trabalho de importantes companhias, como a Fondazione Pontedera Teatro.

Na pesquisa vocal, é uma das mais importantes referências na Europa, com um sólido conhecimento das técnicas tradicionais e de vanguarda.

BM - “Seu trabalho com a Banda Mirim reverberou profundamente. Principalmente quando se pensa na criação sonora do ator-músico-cantor em cena. Pareceu importante o exercício da visualização do movimento da voz: expansões corporais, especialmente dos braços, das costas e dos olhos em busca de um interlocutor. Você pode nos falar um pouco sobre sua pesquisa do espaço sonoro – ou “paisagem sonora” - que, ao que parece, vai além da simples emissão vocal? Como tudo isso pode contribuir para que a voz se torne um instrumento de comunicação mais poderoso?”

2. O ESPAÇO DE RELAÇÃO

Um espaço, além daquele físico, inexoravelmente experimentado por nós, é aquele da relação, que é designado e estabelecido no âmbito de uma ação que se colega ao próximo, ao interlocutor ou aos interlocutores. Esse espaço relacional pode ser simples ou de extrema complexidade, precisamente em função da quantidade e da qualidade da interlocução. Em um espaço físico age também um espaço relacional no qual podem agir, simultaneamente, dinâmicas comunicativas diferentes. O espaço físico, então, torna-se repleto de pessoas presentes em estado de escuta e a palavra, o som, o gesto, começam a sair de um recinto solipsístico para alcançar uma dimensão de compartilhamento. A voz, como gesto de relação, deverá distanciar-se da margemnaqualmerefiroe falocomigomesmo,ecomummovimento“fluvial”,aportarnaquelanaqualacomunicoaosoutros. Já antes de começar a dizer, a dar, a cantar, a gritar, a sussurrar..., o meu corpo mede a distância, engloba as alteridades, estabelece a trajetória e a condução do gesto.

Isso é tudo aquilo que deve acontecer antes do ataque vocal e é por isso que cada emissão nos fala de alturas, de intensidades, de timbres, mas também de espaços, de proxêmicas, de inclusões ou de exclusões.

3. O ESPAÇO LÓGICO-PROJETIVO

Outro espaço fundamental na dinâmica vocal e gestual é, sem dúvida, aquele que se denomina lógico-projetivo, ou “poiético”, ou seja, aquele determinado pela construção do discursoverbal,musicaloucoreográfico. Não é por acaso que, quem não tem o hábito de articular o próprio raciocínio e, portanto, o próprio discurso verbal de forma hipotética ou condicional, encontre, frequentemente, dificuldade de manter a voz direcionada para frente e emmovimentoatéofinaldafrase.Écomoseocorposefechasseantes do fim do discurso, porque não está acostumado aperceber a importância e a amplitude da tradução espacial que a lógica do elóquio comporta. A mesmafaltadehábitoimplicaainsuficiênciadefôlego para se sustentar a emissão. A pobreza do discurso verbal se traduz não apenas na impossibilidade do nosso pensamento de atravessar extratos profundos designificado,mastambémemumaestreitezaespacial que, inconscientemente, o nosso corpo passa a sofrer.

4. O ESPAÇO DA HISTÓRIA E O ESPAÇO DO MITO

Entende-se por espaço da história aquele em que palavra, considerada sobretudo na sua peculiaridade verbal, age em uma dimensão do logos, não perturbada pelos afetos e emoções; quando nos movemos em um âmbito de narração, de argumentação, mas também da cotidianidade tranquila e de “bom tom”, a nossa gestualidade vocal e a nossa gestualidade tout court se mantêm em um recinto muito restrito e cada fuga deste é estigmatizada, desde a infância, em termos de “incivilidade”. Outra coisa ocorre quando o elóquio submete-se ao terremoto das emoções, das paixões e quando a verbalidade cede o primado à extraverbalidade, isto é, quando o “como se diz” é mais importante que “o que se diz”. A cada vez que nos aproximamos das Colunas de Hércules, entre o espaço da “história” e o espaço do “mito”, sente-se o perigo de se atravessar do primeiro para o segundo, frequentemente de forma assustadora. O dono segura apertada a coleira do cão, que deve frear a sua vontade e a sua necessidade de correr livremente. A voz, então, freia a sua corrida na terra insegura do paradoxo e, o grito,

o lamento, o sussurro, estrangulam-se na garganta. Mas se tornamos possível o acesso àquela área vocal de “perigo” – assim como acontece e deve acontecer no Teatro –, graças ao ampliar-se do gesto, o corpo alarga os próprios limites, aumenta a sua extensão e a sua capacidade de vibração.

5. A PAISAGEM VOCAL

Enfim, ainda compondo a complexidade e a convivênciade todos os espaços até agora ilustrados, coloca-se aquele que gosto muito de chamar, em obséquio e em referimento à Soundscape de Murray Schafer, de paisagem vocal, ou seja, o grande espaço que declina, de modo pessoal e subjetivo, as peculiaridades do nosso modo de perceber e conceber a fisicidadedomundo, a relação, a lógica, omito, o pleno, ovazio, o tempo. Um espaço feito dos nossos “curtos circuitos” mentais, das nossas associações imaginativas, da nossa

memória, das nossas reveries, da nossa “literatura” e da nossa “poesia”.Éarealidadedesseúltimoespaço,quecompreendee compõe todos os outros, sem, porém, homogeneizá-los, que determina a possibilidade e a verdade do nosso gesto vocal, sua amplitude, sua velocidade, a sua qualidade energética. Deve, de fato, ser o espaço aquele que funda o gesto vocal, e não o contrário, assim como o espaço deve subsistir e sobreviver à vida de cada gesto singular e permitir o nascimento de outros. Tudo isso torna-se evidente aos atores e cantores experientes, os quais, à semelhança da questão do tempo de execução vocal e musical, o gesto vocal pode percorrer espaços de diferentes dimensões, exatamente como um dançarino sabe como aumentar ou diminuir a trajetória do próprio gesto em um mesmo lapso temporal.

Tradução Ernani Maletta

banda mirim #2 | 1716 | banda mirim #2

banda mirim #2 | 1918 | banda mirim #2

Números da população em situação de rua

DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE A FOME TENTOU

MOSTRAR UM POUCO O PERFIL DESTE GRUPO.

O OLHAR ATENTO SOBRE A REALIDADE DESSE PÚBLICO

PERMITE CONCLUIR QUE SOFREM TODAS AS FORMAS

DE VIOLAÇÃO DE SEUS DIREITOS HUMANOS.

82%da população em situação de rua é masculina

39,1% Declararam-se pardas

têm entre 25 e 44 anos53%

compram a comida com o seu próprio dinheiro

já estiveram na FEBEM ou instituição

equivalente

exercem alguma atividade remunerada

afirmaram estar trabalhando atualmente

com carteira assinada

conseguem fazer ao menos uma refeição ao dia

27,1%

afirmaram ter algum problema de saúde

não possuem quaisquer documentos de identificação

29,7%

24,8%

52,6%recebem entre R$ 20,00 e R$ 80,00 semanais

69,6%

27%

16,7%

22,1%

17%

15%costumam dormir na rua

já estiveram em algum abrigo institucional

afirmaram já ter passado por hospital psiquiátrico

costumam dormir em albergues ou outras instituições

admitiram já ter passado por alguma casa de detenção

já estiveram em orfanato

não estudam atualmente

apenas assinam o próprio nome

não sabem escrever

sabem ler e escrever

95%8,3%17,1%74%afirmaram estar

fazendo algum curso

não concluíram o primeiro grau

3,8%48,4%

12,2% 70,9% 1,9% 79,6%

passaram a viver e morar na rua

por problemas de alcoolismo e/ou

drogas

passaram a viver e morar na rua pelo desemprego

afirmaram já ter passado por casa de recuperação de dependentes químicos

passaram a viver e morar na rua por desavenças com familiares

35,5% 28,1%

29,1%

29,8%

banda mirim #2 | 2120 | banda mirim #2

UMA VIVÊNCIA MEDITATIVA COM OZ

Escovação Corporal e Yoga do Som

Sou conhecido entre os amigos como OZ. Sou também com-positor e cantor, sendo afeto da Banda Mirim desde os seus primeiros espetáculos, por isso aceitei o convite e topei o desafiodapreparaçãocorporal,desenvolvendooWorkshop“Vivência Se Toca – escovação corporal a partir dos princípios da Coordenação Motora”.Esta vivência associa técnicas de meditação e Yoga do Som, com o propósito de, para além dos inúmeros benefícios do estímulo da pele – individual e na troca, em duplas e em grupo -, chamar a atenção do grupo para a importância da “presença no aqui e agora” – segundo o Budismo, o estado meditativo ideal; o “lugar do observador”.

Osvaldo borgeZ (OZ) - Terapeuta Corporal e Consultor Ayurvédico, formado na Escola de Reeducação do Movimento, onde entrou em contato

com o método da Escovação Corporal sistematizado por Ivaldo Bertazzo.Trabalhou com Madhavi Mudgal (Índia), Aynur Dogan (Istambul), Ceumar, Grupo Corpo, Balé

Real da Dinamarca, José Limón (New York), Teatro Oficina Uzyna Uzona, entre outros

Com esse trabalho, com o qual espero travar novos encontroscomaBandaparaaprimoramentoerefinamento, propus-me, sobretudo, a promover a ancoragem, trazendo cada um “para dentro do seu próprio contorno”, reconhe-cendo em si o próprio Buddha em potencial, preparando-os, indivíduo e grupo, não somente física e mentalmente para a cena teatral, mas antes, para o “impacto” emocional do contato com as populações e grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade e risco social a que se lançaram durante o processo de pesquisa e desenvolvimento deste projeto.

SALVE JORGE

Jorge, felizão, voltando da rua cantando ‘Sal da Terra’ do Beto Guedes:

“Anda,quero te dizer nenhum segredoFalo desse chão, da nossa casaVem que ta na hora de arrumar ”

Disse que estava cantarolando essa música, pensando na letra, quando chegou ao POP Vila Maria e encontrou a Banda Mirim tocando.

Ele achou que “rolou uma sintonia”. Eu também. Agora fico por ai, cantarolando a música e pensando na letra. LELENA ANHAIA

banda mirim #2 | 2322 | banda mirim #2

perguntas sobre a (possibilidade da) presença do corpo em cena

Juliana Jardim - Professora, pesquisadora e atriz. Doutora em teatro pela ECA-USP, com a pesquisa

“Vestígios do dizer de uma escuta (repouso e deriva na palavra)”. Seus principais estudos em longa duração foram

com Sotigui Kouyaté – um dos principais atores de Peter Brook - , Hassane Kouyaté , Cristiane Paoli-Quito e Antonio Januzelli.

Viajou para o oeste da África (Mali e Burkina Faso) em 2003/04 e 2007/08 a convite de Sotigui e sua ação atual dialoga diretamente com essas experiências.

Uma das maiores ocupações dos atores em cena, de maneira geral, é com o futuro. Mas que diabo viver-se de futuro numa arte que é a do aqui e agora! Pois, paradoxal-mente, ainda que estejamos em cena sempre ali, nem sempre é ali que está nosso pensamento e, portanto, o corpo. Corpo, aqui, conectado a alguma inteireza do ser, é singelamente delimitado pelo homem da cena que está ali (aqui) junto com os outros (parceiros e público) reali-zando suas ações enquanto elas são realizadas, sem an-tecipações. Sim, estamos sempre diante de um imenso desafio: entrar em cena, estar presente todo o tempo,disponíveis e vivos para o que venha a acontecer nesse espaço-tempo entre cena e público, e, ao mesmo tempo, lidar com aquilo que já sabíamos sobre a trajetória a ser traçada naquele tempo previsto para uma apresentação. O homem da cena é esse equilibrista entre presente e fu-turo. Não. Não é isso. Ele ensaiou esse futuro antes. Ele en-saiou esse presente antes. Ele é, portanto, um equilibrista entre o passado e o futuro, realizando suas ações no pre-sente.Seficarmosnaetimologiadapalavratemos:opre-

MAS AQUELE QUE ESTÁ EM CENA NÃO ESTÁ SEMPRE PRESENTE? é POSSÍVEL ESTAR ALI SEM ESTAR MESMO ALI?

“Não queremos, porém, ir a lugar

nenhum. Queremos,ao menos uma vez, chegar no lugar em

que já estamos.” Martin Heidegger,

A caminho da linguagem

Quatroencontros,aoredordepráticas,conversasetextos,foramrealizados entre mim e os integrantes da Banda Mirim, quando fui convidada a planejar ações em torno de temas que transitassem en-tre presença, alguns aspectos de trabalho do ator-narrador e possíveis relações de intimidade entre cena e público. De minha trajetória como orientadora de atores, atriz e pesquisadora, interessava tam-bém ao grupo que eu partilhasse algum vento da aliança vivida por 8 anos, entre 2002 e 2010, com o griot e ator, nascido e criado no oeste africano, Sotigui Kouyaté. O grupo movia-se em torno de ten-tar contar e cantar alguns episódios da vida de um Buda em espaços bastantedesafiadoresparaseusintegrantes(músicoseatores),pelohibridismo dos públicos neles envolvidos e pelas situações um tanto ousadas em que se metiam, quando sua maior experiência era, até então, apresentar-se em edifícios teatrais para públicos formados por crianças com pais. O presente texto é resultado do desejo de seguirpensandoalgunsdostemassurgidosnoquefizemosjuntos,aBanda Mirim e eu, naqueles encontros de trabalho prático, somado à expectativa de que eles também interessem a quem nos lê.

fixopre - do latim prae -, que dá tanto a ideia de anterioridade como a ideia de lugar, localização, e o radical sença, do latim sentia (o que está sendo), que implica o verbo esse, ser, estar. Outros latinos ainda encontrados em praeesse são proteger, guardar, defender, ser instigador de, incitar e ferir. Estar presente seria, então, nesta experimentação com as etimologias, antever-se sendo (gerúndio do verbo ser), a partir de um guardar, de alguma reserva, e, de certo modo, antecipar a percepção do estar ali em reserva que, enquanto instiga, fere. Todo ator com uma escuta mais calma já deve ter vivido isso. Para Heidegger, “poesia é na maior parte do tempo escuta”. Éessapossibilidadedeestarpresente(aomesmotempoem um antes e em um agora) que nos permite mudar o rumo de uma ação, de uma situação, de uma experiência, como guias de nós mesmos e de tudo o que rodeia a cena. Numa experiência coletiva, se todos pudermos escutar com a máxima profundidade a partir dessa quietude e vigor, a presença pode solicitar, desde ela mesma, a chegada do público. Em minhas vivências com grupos tenho insistido na teatralidade experimentada neste exato lugar. Lugar que tem me parecido muito mais teatral do que qualquer construção, excesso, máscara. E convido-nos a perguntar se são as exacerbações que nos bombardeiam no cotidiano que pedem ao teatro um alto nível de despojamento e limpeza que possam, ambos, oferecer a máxima teatralidade para nossa sensibilidade afogada pelos excessos. Com Denis Guénoun, em “O teatro é necessário?”, poderíamos pensar o assunto da presença também como parte dos resultados ditos ‘espetaculares’ da cena, quando ele fala dela como existência cênica, existência física:“essedeslocamento da normatividade cênica em direção à seca apresentação, à precisão de um existir remetido a si mesmo e, contudo, oferecido ao olhar (ou ao ouvido), afeta todas as exigências da cena: a profundidade ou levezada voz (mas que rejeita a voz encorpada, sempre plena, causa da dicção ‘redonda’ dos cantores); a disponibilidade aos parceiros de cena; a aceitação dos imprevistos e, sobretudo, a graça da não-afetação, o ser jubiloso, digno, aberto, livremente tenso. Mas o fato concerne, talvez ainda mais, à exibição das palavras. Porque o representado não é mais a verdade do texto. A verdade do texto teatral é desde então, intempestivamente, poética. E isto já há muito tempo:mas,hojeemdia,tambémelaseoferecenua”. O ator, para poder dar-a-ouvir essa verdade poética do dizer em cena, deve estar intensamente conectado aos espaços de abertura que nos propomos tocar, quando elegemos nossas práticas com os atores. A palavra escuta soma-se, então, ao tema presença, ampliando-o.

NO TEATRO ESTAMOS SEMPRE TRABALHANDO SOBRE O TEMA DA PRESENÇA? ISSO é INEVITÁVEL?

banda mirim #2 | 2524 | banda mirim #2

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguémmais fia e tece enquantoouve a história. Quando mais o ouvinte se esquece desi mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido”. Resta-nos continuar a agir na direção de eleger, inventar e repetir práticas que nos permitam exercitar a artesania, desses lugares, em nossos corpos. As perguntas que trago aqui para nos provocar, assim como as práticas delas nascidas, estão em pre-sença constante com meu encontro com temas advindos da aliança com o griot e ator Sotigui Kouyaté.

“O ferreiro forja a Palavra, o tecelão a tece, o sapateiro a amacia, curtindo-a.”

Amadou Hambate Bâ, A tradição viva

Para insistir em um modo de aproximação da palavra que nos abra para um corpo escutante, proponho pensar algo que nomeio como o estado do narrador. Para isso, recor-remosaocélebre texto “Onarrador”,deWalterBenjamin. Em 1936, Benjamin lamenta, nostalgicamente, o desapareci-mento do narrador, em função do baixo valor da experiên-cia: “As ações da experiência estão embaixa (...), como seestivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segurae inalienável:a faculdadede intercambiarexperiên-cias.” As condições de realização da transmissão de uma experiência em sentido pleno não existem mais, afirmaBenjamin: “não há mais interesse pelo velho, nem pelashistórias que ele contava; não se tem mais tempo nem es-paço para o gesto de contar, pois o trabalho industrial pede pressa, rapidez”. Mas a mais desoladora das razões para o desaparecimento do narrador está no silêncio com que os combatentes “tinham voltado do campo de batalha” após uma das “mais terríveis experiências da história”, a I Guerra Mundial:“Maispobresemexperiênciascomunicáveis,enãomais ricos.” Finda o desejo de narrar o vivido. Por que a “ex-periência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que re-correram todos os narradores”. Não mais se quer transmitir nada a ninguém e, por isso, “são cada vez mais raras as pes-soas que sabem narrar devidamente”. Benjamin leva-me a pensar sobre tempo e espaço. Os dois representantes arcaicos da narração que desa-pareceram são o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O sedentário traz-nos a distância temporal, as histórias que são contadas de pai para filho, de avô paraneto. O marinheiro oferece-nos suas histórias a partir da narração do que ele viveu em terras distantes, em espaços que desconhecemos. Junto dos tipos arcaicos, Benjamin ainda nos lembra que narrar é também aconselhar: “O senso prático é uma das características de muitos narradores natos.” E aconselhar não é dar respostas, informar, explicar. “Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história (sem contar que um homem só é receptivo a um conselho na medida em que verbaliza a sua situação). O conselho tecido nasubstânciavivadaexistênciatemumnome:sabedoria”,diz Benjamin.

“Boca-orelhas” foi o que ouvi de alguns griots: umasó existe pela existência da outra, uma é absolutamente necessária à outra, e há duas orelhas e uma boca, somos fei-tos mais para escutar do que para falar. Porém, diz Benjamin, esse encontro entre narrador e ouvinte não é mediado de explicações:“Metadedaartenarrativaestáemevitarexpli-cações. O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação”. Na relação boca-orelhas da narração tem-se, sempre, a presença do repetível daquilo que se escuta: umahistória é contada para ser recontada, ouvida para ser repetida. Nos movimentos de contar e recontar, o que assegura à memória a retenção suave dos relatos e também sua repetição é um processo de assimilação que se dá, segundo Benjamin, “em camadas muito profundas e exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro. Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro das folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes.

COMO ESCUTAR COM OUVIDOS, OLHOS, PELE, POROS, PENSAMENTO?

A distância dos ofícios tradicionais, a distância imensa que temos da natureza, levam-nos, então, a buscar práticas que permitam algum contato com o que acena, para nós, o texto de Benjamin, nosso texto e todas as derivações daí surgidas. Quais os exercícios de ativação da reminiscência? Quepráticaspodemnosdevolveralgumprolongamentona relação com o tempo, sem que cultivemos a necessidade (que se impõe cotidianamente) por abreviá-lo? Como percorrer a trajetória a partir de alguma derrubada de nossas necessidades de ‘informação’, de ‘explicação’, de ‘comunicação’?

COMO CHEGAR NO LUGAR ONDE JÁ ESTAMOS?

banda mirim #2 | 2726 | banda mirim #2

DalvinhaA gente se viu

A gente dançouA gente se encontrou- profundamente -

Não pela palavra Que quer dizer tudo

Foi pelo corpoPelo traço no ar

Um constante olho no olhomuitas vezes com os olhos fechadosSeus pés tinham a gravidade ereta

Seus tornozelos as mandingas Enfeitadas de fitas, de um ser

que é mundo todoSeus cabelos, o emaranhado da falta do pente

E a beleza do enfeite detalhado em cores

Não tinha dentes. Somente dois.Articulava a boca, sem som, dizendo nada

E contando tudo.Abria e fechava os olhos como um sorriso

A gente se uniu no gestoSem saber quem começava ou continuava

A gente só dançava em pura abstraçãoComo estrela

A estrela DalvaDalvinha

CLÁUDIA MISSURA

banda mirim #2 | 2928 | banda mirim #2

Ao longo dos anos temos observado o envelhecimento da população em todo o mundo. Entre os anos 80 e 2000 apopulaçãomundialdeidososaumentouem7,3milhões.No Brasil temos a expectativa de que seremos o sexto país com o maior número de pessoas com mais de 60 anos até 2025.

O motivo do nosso envelhecimento se dá por conta das baixas taxas de fertilidade e do acréscimo de longevidade. E ainda não entendemos ao certo como nos preparar emo-cionalmente com o avançar da idade.

A velhice nos remete a uma imagem negativa com

ENVELHECER É UM ATO DE LIBERDADE E NÃO DE DEPENDÊNCIA

ao qual não sabemos lidar. As palavras avó e aposentado rotulam os indivíduos como ultrapassados ou improdutivos, tornando o estigma do envelhecimento ainda mais pesado, pois ao envelhecermos rompemos com a rotina do nosso dia a dia, percebemos uma queda abrupta das relações sociais, lidamos com uma redução salarial, além da falta de alternativas fora do ambiente de trabalho.

O idosoenfrentasériasdificuldadesdeadaptação,pro-vocando em muitos casos transtornos psiquiátricos que impossibilitam a manutenção de uma vida social prazerosa composta por atividades de lazer.

Anderson Martiniano - Terapeuta Cognitivo Comportamental

Quandoconvidadoparaescreverarespeitodoenvelheci-mento, recebi emmeuFacebookumapostagemquedizia: “O homem só envelhece quando os lamentos substituem os sonhos”. Sou psicólogo clínico e, ao longo dos anos, tenho percebido um aumento de pacientes com queixa de de-pressão após a aposentadoria ou após o status de avó ou avô.

Em muitos casos ocorre uma perda de autonomia e uma percepção de menos valia que conduzem o idoso ao isola-mento. Podemos perceber um decréscimo de atividades na vida diária, um humor deprimido, falta de energia e motivação para a realização de atividades que lhe conferiam prazer.

Numa sociedade consumista, observamos que a visão de que o velho se torna obsoleto e descartável. Além disso, caracterizamos as pessoas mais velhas através de estereótipos universais como ranzinzas, ultrapassadas e vagarosas, o que geram uma imagem distorcida da velhice.

O conceito que possuímos de idade cronológica é medido pelo tempo e sua decorrência ao longo dos dias e dos anos, porém a idade é um fator multidimensional e não pode ser compreendida como algo absoluto, como se a idade repre-sentasse a nossa identidade.

Segundo Anita Liberalesso Neri, sumidade em envelhe-cimento no Brasil, a idade social corresponde aos papéis etários que a sociedade determina para seus membros. Ela é composta de acordo com a cultura, o gênero, a classe social e as condições de vida e trabalho.

Ao tratarmos dos aspectos biológicos, Neri e Sueli Apare-cida Freire descrevem que o envelhecimento está ligado à deterioração do corpo e ao declínio do ciclo vital. Na base da rejeição ou da exaltação, existe uma forte associação entre

o ciclo vital com a morte, a doença, o afastamento e a de-pendência.

O declínio do funcionamento cognitivo e da função motorasãomarcadospelasdificuldadesdedoençascomodepressão(faltadeconfiança,baixasexpectativasdefuturo,dependência e perda de autonomia). Um exemplo do círculo vicioso é que após uma queda, o idoso reduz a quantidade de atividade física, o que produz uma redução da reserva de energia, tônus muscular e atenção, o que de fato pode aumentar o risco podendo levar a uma nova queda.

Estes elementos são agravados por uma mudança social no decorrer do tempo, como a perda dos amigos, dos familiares, cônjuge e autonomia, causando muitas vezes solidão, isolamento ou até mesmo institucionalização.

DeacordocompesquisarealizadapeloinstitutoQualibest,90% da população brasileira tem medo de envelhecer. As pessoas temem aquilo que perderão com o enve-lhecimento e ignoram o que podem ganhar.

Devemos afastar a identidade do envelhecimento como a idade das perdas.

Éprecisoquetenhamosumenvelhecimentoativoeumdiálogo harmonioso com a passagem do tempo na qual nossas decisões sejam marcadas pelas oportunidades que criamos e não pelas perdas que consideramos possíveis ao aceitarmosasdificuldadesdo envelhecimento como limi-tadoras e não instransponíveis.

banda mirim #2 | 3130 | banda mirim #2

ILPI CANINDé | 06.07.2015 Ainda com a lembrança da morte recente do meu avô, presente também nos sacos com roupas dele que levei para doar, essa visita doeu.

Logo na chegada chorei. Eram idosos com pouca mobilidade. A maioria em cadeiras de rodas e alguns - vários - com o corpo amputado, especialmente pés e pernas. Choravam de dor.

Não consegui me aproximar de nenhum deles. Não me lembro de suas feições. Trouxe uma memória mais emotiva do que concreta, mas me apoiei em relatos e nomes que anotei no caderninho.

Marinete. Isaura. Salvina.

Eudália. Noêmia. Jandira.

Circulamos desplugados, cantando ao pé do ouvido canções conhecidas da maioria. Luiz Gonzaga, Demônios da Garoa, marchinhas de carnaval, Braguinha. Também doloridos, cantamos para e com eles. Asa Branca, Aurora, Carinhoso, Trem das Onze.

Uma senhora que parecia um caramujo, na cadeira de rodas, com a cabeça ‘enfiada’ entre as pernas, escondida, levantou a cabeça para cantar o Trem das Onze.

Helena Isabel. Maria Aparecida. Alaíde.

“Sabe o Pelé? Ele é o pai dos meus três filhos. Quando eu morava na igreja com as irmãs, ele ia me visitar... E aí, eu engravidava. O safado nunca me deu nada.”.

“A senhora gosta de forró?”

“Não. Eu gosto de nada”, respondeu.

Seu José. Josefa. Benedita.

Jéssi. Adailton. Maria de Lourdes.

Antonia. Eliete. Maria.

Comemos um pedaço de bolo e um copo de suco natural de abacaxi.

Despedida.

Era dia de doar. E doía.

Nô STOPA

AGRADECIMENTOS

Ana Roxo, Anderson Martiniano, Arícia Mess, Bezão,

Claudia Vidigal, Condomínio Cultural, Daniel Carvalho,

Duda Gomes, Ernani Maletta, Ernani Napolitano,

Felipe Camara, Flavia Soares, Giovanni Venturini,

Isabel Penteado (Instituto Fazendo História), Jean

Marcel, Kika Antunes, Luiz Cláudio Fumaça, Maria

Piedade, Mariana Piza, Marina Novaes, Maurício Bade,

Monique Ramos, Ricardo (motorista), Roberta Ursaia,

Suel Turismo, Tatiana Thomé, Thelma Nascimento,

Thiago Amaral, Zé Geraldo e Zeca Loureiro

Secretaria Municipal de Assistência e

Desenvolvimento Social

Secretaria Municipal de Cultura

Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania

Todos os gestores, monitores, psicólogos, assistentes

sociais, enfermeiros, cuidadores, funcionários e

usuários dos centros de acolhida visitados

32 | banda mirim #2

Respeite tudo o que vive

Dê apoio a quem faz o bem

Trabalhe com alegria

Quando feliz, fale menos

Escute a essência do que é dito

Dê ordens com respeito

Respire antes de decidir

Estimule os jovens

Proteja os idosos

Dê assistência aos incapacitados

Seja atencioso com os desanimados

Importe-se com a comunidade

Coexista em harmonia

Ajude sem pedir em troca

Pratique o voluntariado

Em tudo, seja sensato

RECOMENDAÇÕES BUDISTAS

Respeite tudo o que vive;Dê apoio a quem faz o bem;Trabalhe com alegria;Quando feliz, fale menos;Escute a essência do que é dito;Dê ordens com respeito;Respire antes de decidir;Estimule os jovens;Proteja os idosos;Dê assistência aos incapacitados;Seja atencioso com os desanimados;Importe-se com a comunidade;Coexista em harmonia;Ajude sem pedir em troca;Pratique o voluntariado; eEm tudo, seja sensato.