vattimo e rorty

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43 Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 37, jul./dez. 2010 Il pensiero debole: Vattimo e Rorty Moysés da Fontoura Pinto Neto * Resumo: Este paper sintetiza alguns dos principais aspectos da obra dos pensadores Gianni Vattimo e Richard Rorty. Para tanto, reúne, pri- meiramente, os elementos do “pensamento fraco” que remetem ao nii- lismo de Nietzsche e ao Ser como “evento” de Heidegger, gerando uma concepção de pensamento anti-fundacional que admite seus limites e propõe politicamente a redução da violência. Na mesma linha, trabalha as influências de Richard Rorty no seu anti-representacionalismo e a defesa da solidariedade no lugar da objetividade, redundando no seu liberalismo pós-moderno que recusa as estruturas metafísicas liberais, mas, prag- maticamente, considera a cultura liberal como aquela mais aberta à aceitação tolerante às demais. Palavras-chave: Vattimo. Pensamento Débil. Rorty. Anti-representacio- nalismo. * Doutorando em Filosofia (PUCRS). Mestre e Especialista em Ciências Criminais (PUCRS). Professor do Curso de Direito da ULBRA. Pesquisador e Conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade.

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  • 43Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 37, jul./dez. 2010

    Il pensiero debole: Vattimo e Rorty

    Moyss da Fontoura Pinto Neto*

    Resumo: Este paper sintetiza alguns dos principais aspectos da obra dos pensadores Gianni Vattimo e Richard Rorty. Para tanto, rene, pri-meiramente, os elementos do pensamento fraco que remetem ao nii-lismo de Nietzsche e ao Ser como evento de Heidegger, gerando uma concepo de pensamento anti-fundacional que admite seus limites e prope politicamente a reduo da violncia. Na mesma linha, trabalha as influncias de Richard Rorty no seu anti-representacionalismo e a defesa da solidariedade no lugar da objetividade, redundando no seu liberalismo ps-moderno que recusa as estruturas metafsicas liberais, mas, prag-maticamente, considera a cultura liberal como aquela mais aberta aceitao tolerante s demais.

    Palavras-chave: Vattimo. Pensamento Dbil. Rorty. Anti-representacio-nalismo.

    * Doutorando em Filosofia (PUCRS). Mestre e Especialista em Cincias Criminais (PUCRS). Professor do Curso de Direito da ULBRA. Pesquisador e Conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade.

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    Intrito

    O presente texto busca ser apenas uma introduo sinttica obra mltipla e multifacetada de dois filsofos contemporneos, o ita-liano Gianni Vattimo e o norte-americano Richard Rorty. A aproximao entre ambos se d a partir da noo de pensamento fraco, conceito cunhado por Vattimo, mas que, de alguma forma, se aproxima seguramente da fi-losofia de Rorty. Ambos articulam seus temas com alguma simetria: ad-mitem a filiao a uma corrente de pensamento que teria Nietzsche e Heidegger como pais na crtica metafsica, ainda que Vattimo procure situar-se na dimenso hermenutica e Rorty reconstrua o pragmatismo a partir de uma linguagem mais prxima da filosofia analtica; na outra ponta, ambos tm severas preocupaes ticas e procuram reconstruir a poltica a partir de um horizonte ps-metafsico (ou ps-moderno) que diminua o sofrimento e se abra para a alteridade. A seguir, traaremos alguns dos principais aspectos de cada um dos autores.

    I. Vattimo e o Pensamento Fraco

    1.1. Introduo

    O pensamento de Gianni Vattimo estrutura-se a partir de dois fil-sofos decisivos para a Ps-Modernidade: Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger. Ambos seriam pais do pensamento ps-moderno e decre-tam o fim da aventura metafsica. O referimento luminoso, nico, est-vel, cartesiano do pensamento se perde sem receio, transformando em pensamento fraco, sem um apoio fundacional (TEIXEIRA, 2005, p. 7; VATTIMO, 1980).

    O pensamento fraco formado por quatro caractersticas: a) um tomar a srio as relaes entre evidncia metafsica e relaes de po-der, com apoio em Nietzsche e talvez at Marx; b) um olhar amigo ao mundo das aparncias, vendo a um possvel lugar para a experincia

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    do ser; c) evitar a glorificao desse mundo, como em Deleuze, para no cair novamente na metafsica; d) identificao entre o ser e a lin-guagem, defendendo uma aproximao hermenutica de um ser frgil, que se manifesta pelo recordo, pelas pegadas (TEIXEIRA, 2005, p. 8; PECORARO, 2006, p. 192-193).

    Trata-se, portanto, de uma estrutura que recusa qualquer fundao ltima, qualquer ponto onde possvel o apoio, tal como o sujeito durante a Modernidade. Seu pensamento marcado por um olhar proposital-mente provisrio, marca apenas direo e rota a ser seguida.

    1.2. Nietzsche e o Niilismo

    Etimologicamente, niilismo vem de nihil, nada. Filosoficamente significa uma corrente que no aceita a possibilidade de a certeza ser o indicativo da realidade em si, aparecendo, como em Shopenhauer, o mundo como vontade de poder. Trata-se de uma realidade catica, redundando em viso pessimista da realidade (TEIXEIRA, 2005, p. 17).

    Nietzsche se proclamar o primeiro niilista completo, o nico que viveu a experincia niilista at o fim. O filsofo da Basilia ope um nii-lismo ativo a um passivo: este se baseia no cristianismo, defendendo um mundo alm. Aquele, por sua vez, consiste em uma transmutao de todos os valores, sustentando a falsidade dos valores cristos e a oposio de novos valores conforme a vida (TEIXEIRA, 2005, p. 18). O niilismo passivo um niilismo reativo, pois quando os valores su-premos se dissolvem atua uma vontade desesperada de restaur-los, utilizando-se de subterfgios idealistas e platnicos. O ativo, por sua vez, aceita que Deus est morto, mas no se limita a desmascarar as estru-turas eternas e mostrar o nada que a elas subjaz, mas tambm produz novos valores, sentidos e interpretaes. Julga os valores e verdades rece-bidos, ainda, a partir do seu valor para a vida.

    preciso entender que, para Nietzsche, a diferena platnica entre o mundo verdadeiro e o mundo das aparncias foi dissolvida. Em O crepsculo dos dolos Nietzsche descreve a queda do ideal platnico:

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    Como o Mundo-verdade tornou-se enfim uma fbula (Histria de um erro). 1. O Mundo-verdade acessvel ao sbio, ao religioso, ao virtuoso, vive nele, ele mesmo esse mundo.(Esta a forma mais antiga da idia, relativamente racional, simples, convincente. Perfrase da proposio: Eu, Plato, sou a verdade).

    2. O Mundo-verdade inacessvel no momento, porm, prometido ao sbio, ao religioso, ao virtuoso, ao pecador, que faz penitncia. (Progresso da idia; torna-se mais sutil, mais insidiosa, mais in-compreensvel, torna-se mulher, faz-se crist...).

    3. O Mundo-verdade inacessvel, indemonstrvel, que no se pode prometer, porm que mesmo supondo-se seja imaginrio, um consolo e um imperativo.(O sol mais antigo ilumina no fundo, mas obscurecido pela n-voa e a dvida, a idia se tornou plida, setentrional, koenigsber guiana).

    4. O Mundo-verdade... inacessvel? Pelo menos no alcanado em caso algum. Logo desconhecido. Por isso nem consola, nem salva, nem obrigada a nada; como pode obrigar a algo alguma coisa desconhecida?(Aurora cinzenta, primeiro vagido da razo, canto do galo do positivismo).

    5. O Mundo-verdade; uma idia que no serve mais para nada, no obrigada a nada; uma idia que se tornou intil e suprflua; por conseguinte, uma idia refutada: suprimamo-la!(Dia claro, desjejum, retorno do senso comum e da alegria. Plato se cobre de vergonha e todos os espritos livres fazem um tumulto dos diabos).

    6. O Mundo-verdade acabou abolido, que mundo nos ficou? O mundo das aparncias? Mas no; com o Mundo-verdade abolimos o mundo das aparncias!(Meio-dia, momento da sombra mais breve, termo do erro mais demorado, ponto culminante da humanidade: INCIPIT ZARATUSTRA (NIETZSCHE, 1988, p. 47-48).

    O niilismo passivo, portanto, est ligado a uma nostalgia da objeti-vidade perdida, a um desejo de verdade eterna e essencial, uma vontade do dado. O niilismo ativo, por outro lado, tem conscincia hermenutica,

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    correspondendo a uma forma de vida mais rica e aberta. O niilismo no mais encarado como uma perda das referncias ltimas, como uma de-sesperana nostlgica, um desespero saudosista do tempo das verdades eternas; o niilismo , antes de tudo, uma chance, uma estrada positiva para o pensamento (TEIXEIRA, 2005, p. 19-20; PECORARO 2006, p. 192).

    Esse niilismo ativo representa um passo adiante na filosofia da ma-nh, uma vez que eliminamos o mundo aparente (antigo Mundo-ver-dadeiro). aqui que entra o eterno retorno como elemento decisivo e uma espcie de redimir-se do tempo. Vattimo considera que Nietzsche vai contra a concepo edipiana do tempo, em que cada momento de-vora o anterior (pai), que lhe deu origem, sendo o mesmo o seu destino. Nesse tempo, no possvel a felicidade, pois nenhum momento tem em si a plenitude do sentido. O eterno retorno, assim, vem de uma estrutura que no comporta apenas de construir instantes de tal modo intensos e plenos que se passar a querer seu eterno retorno (como havia ventilado em Humano Demasiado Humano), mas tambm um sentido cosmo-lgico: necessria uma radical transformao que suprima o tempo linear a partir da dissoluo do Mundo-verdadeiro e todas as suas con-seqncias (VATTIMO, 1990, p. 70).

    A filosofia da manh, que se constitui a partir de um niilismo ativo, constri-se desde a radicalizao dos pressupostos da Modernidade. Esse trajeto pode ser encontrado na prpria interpretao de Vattimo da filoso-fia de Nietzsche, dividindo-a em trs perodos. Enquanto o perodo jovem enfatizaria o artista trgico como paradigma, o perodo mdio traria a adoo do esprito cientfico, ainda que a cincia no fosse o valor em si, mas uma espcie de atitude adequada, que a arte teria preparado. Trata-se, como afirma Vattimo, do processo de auto-supresso da moral:

    Auto-supresso da moral significa o processo no qual se d des-pedimento da moral [...] por moralidade [...]. com base no de-ver de verdade sempre pregado pela moral metafsica e depois crist que nos fim as realidades em que esta moral acreditava Deus, virtude, justia, amor pelo prximo so reconhecidas como erros insustentveis (VATTIMO, 1990, p. 51).

    Uma vez adotada essa atitude, chegar-se-ia concluso de que os valores morais se auto-suprimem, abrindo a possibilidade da terceira fase, a filosofia da manh. A filosofia mdia prepara a da manh a partir de um contedo mais voltado instaurao de um estado de esprito,

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    sendo vazia de contedo. A partir dessa detonao dos valores tradicio-nais a partir da sua prpria radicalizao (anlise qumica), possvel ca-minhar com os erros, vivendo na superfcie (VATTIMO, 1995, p. 53-55). Trata-se, portanto, da instaurao de um pensamento de errncia, em que o fundamento e a verdade se dissolveram (TEIXEIRA, 2005, p. 24).

    Esse retorno inocncia da existncia anterior ao Mundo-verda-de descrito por Evilzio Teixeira com preciso:

    O desmascaramento niilista de Nietzsche representa aquela intuio de finitude como alteridade, pensada enquanto reserva e abertura, dentro da qual, as coisas se deixam interpretar sem aquele pretensioso mito da certeza do cogito. O que realmente conta a luta pelo sentido que vontade de potncia pode trans-crever na existncia somente des-substancializando o sujeito na abertura aos outros e ao outro (TEIXEIRA, 2005, p. 28).

    1.3. O Niilismo como fundao hermenutica

    Mas como no cair no Nietzsche que Heidegger denuncia como o ltimo dos metafsicos, aquele que encarna o fecho da metafsica na medida que reduz finalmente o ser vontade de vontade, transformando o mundo em espcie de plataforma tcnica e completando o total esque-cimento do ser (VATTIMO, 1996, p. 91)?

    aqui que Vattimo traz a ponte que liga Nietzsche ao pensamento hermenutico, considerando que o niilismo pr-condio no apenas para uma destruio total da metafsica, mas da possibilidade herme-nutico-filosfica de deixar-se guiar pela coisa mesma do filosofar. O niilismo denuncia a simples-presena das coisas e mostra-se como uma nova experincia do pensamento, em que o ser doa a condio para uma interrogao radical. Ele pe em xeque a metafsica tradicional e seu sonho dogmtico, acelerando a paixo pelo desencanto em relao ao estvel e eterno. Heidegger teria percebido o potencial do niilismo de implodir a relao ser-essncia no processo de reduo da realidade mscara, mas no dado seguimento a perceber o niilismo como nvel ontolgico (TEIXEIRA, 2005, p. 30-31).

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    A morte de Deus, assim, evento decisivo, mas no pode ser inter-pretada dentro dos mesmos quadros metafsicos que a jogariam em um atesmo ingnuo, espcie de teologia negativa (VATTIMO, 1990, p. 51-52). O niilismo, ao contrrio, pensaria a questo ps-metafsica a partir de uma recusa da entificao do ser, recusando aquele que o ente supre-mo, Deus. Mais tarde, o homem colocou-se nessa posio de baliza teo-lgica, secularizando essa estrutura a partir da vontade de representao e do domnio da subjetividade. A morte de Deus , assim, a destruio de qualquer baliza teolgica no pensamento, do fundamento, razo, cau-sa primeira (TEIXEIRA, 2005, p. 33).

    O nada aqui desempenha um papel fundamental: a porta de en-trada para o pensamento do ser, pois possibilita a passagem do pensamento ntico para o ontolgico, incapacitando a simples reduo impresso imediata do cogito. O nada a possibilidade de entrar no ser do ente para ultrapassar o ente em direo ao ser sem deixa-se iludir pela plenitude do ente, tampouco, permanecer na superfcie annima do ser-a (TEIXEIRA, 2005, p. 33). O pensamento niilista segue essa trilha sem hesitar, no h salvao para a nossa civilizao seno perceber que estamos erigidos sobre o nada. Trata-se de um fundamento de ausncia de fundamento, ou de uma fundao do Ser coincide com o seu des-fundamento.

    Assim, a hermenutica apresentada como direo filosfica que traz como tema central a interpretao mostra-se como base apropriada para crtica e destruio da metafsica tradicional (VATTIMO, 1980, p. 35), servindo de pano de fundo para a inaugurao do pensamento fraco.

    1.4. Evento (Ereignis) e Pensamento Meditativo

    Se o niilismo o ponto fundamental do pensamento nietzschiano que atravessa o trabalho de Vattimo, a noo de Ereignis (evento) que ir ser um dos principais traos incorporados do pensamento heidegge-riano, que, como vimos, ocupa posio igualmente central para o filso-fo italiano. A idia do evento do ser, em contraponto entificao do ser traada pelo pensamento metafsico que ignora a diferena ontolgi-ca, faz Vattimo recuperar a existncia de princpios epocais detectada por Heidegger como viga-mestra para sustentao desse seu pensamen-to sem fundo (VATTIMO, 1996, p. 115-116; 1980, p. 73).

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    A concepo de Vattimo coloca radicalmente o princpio epocal como dado fundamental trazido por Heidegger e procura entrar em contato com ele, evitando, assim, a condenao do passado (algo prprio do tempo edpico que Nietzsche ajudou a corroer). A ausncia nietzschiana de dis-tino dentre essncia e aparncia culmina a histria do ser com a idia de vontade de potncia (momento da vontade de vontade que encerra a metafsica), provocando uma espcie de vertigem que mostra a ausncia de fundamento (TEIXEIRA, 2005, p. 70; DUARTE, 2006, p. 226; VATTIMO, 1996, p. 96). Assim, pensar

    [...] o evento no indica certamente uma essncia estvel do ser vlida para todos os seus modos de dar-se na histria: o ser j no algo de geral relativamente aos seus modos histricos de se determinar. O ser nunca outra coisa seno o seu modo de se dar histrico aos homens de uma determinada poca, os quais esto determinados por este seu dar-se na sua prpria essncia, enten-dida como o projecto que os constitui (VATTIMO, 1996, p. 118).

    Diante disso, o pensamento no poder ser ingnuo a ponto de se contrapor meramente metafsica (ou tcnica, que sua realizao1), repetindo aquilo que pretende aniquilar, mas sua superao (berwindung) deve vir a partir da sua dis-toro (Verwindung), por meio da qual a metafsica retorna como diferena entre ser e ente. Surge assim o pen-samento meditativo, que se ope ao pensamento tcnico sem o recusar, mas sim pensando o domnio tcnico da humanidade como algo assu-mido enquanto destino (Geschick). Pensar o ser enquanto rememo-rao na sua diferena com os entes apresentados historicamente no o mesmo que entificar esse ser, como fazia o pensamento metafsico.2

    1 Na idade da metafsica realizada, o pensamento d o ltimo passo nesse caminho, pensando o ser como ser-representado, um ser representado que depende completa-mente do sujeito re-presentante. Representado no significa, naturalmente, imaginado, fantasiado, sonhado, mas trazido conscincia, ao ser, mediante procedimentos ri-gorosos, como os da cincia experimental e da tcnica, que no s deles depende mas que a funda na sua prxima possibilidade. Se o pensamento na idade da metafsica e da filosofia tal como efetivamente se desdobrou, vivida da interrupo do ente quanto ao seu ser, hoje essa pergunta, graas tcnica que tornou totalmente explcita a essn-cia da metafsica, j no tem sentido algum (VATTIMO, 1980, p. 120-121). Ver ainda STEIN, 2002, p. 155.

    2 Para uma viso crtica ver SOUZA, 2006, p. 264-265.

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    Contrape-se, assim, o pensamento calculador e o pensamento medi-tativo-rememorativo (DUARTE, 2006, p. 229; VATTIMO, 1980, p. 123; HEIDEGGER, 2007). Todo fundamento , pois, fundado numa aber-tura abismal, sem fundo, do envio epocal do ser, gratuidade para a qual cabe apenas um pensamento-agradecimento (DUARTE, 2006, p. 230).

    1.5. O pensamento fraco

    Entramos assim na concepo prpria de Vattimo: o pensamento fraco (pensiero debole). A radical historicidade que o evento do ser proporciona implica o ocaso da racionalidade forte da metafsica devastando o mito da evidncia , em direo a um pensamento fraco, que valoriza as aparncias, procedimentos e formas simblicas. Seu trao principal a ausncia de fundamento, derivando do pensamento de Nietzsche e Heidegger a impossibilidade da realidade absoluta e, com isso, situando-se na ps--modernidade. A morte de Deus no aqui uma verdade enuncia-da metafisicamente, mas a tomada de conscincia de um evento que significa o ser como no sendo uma estrutura estvel, introduzindo o pensamento da diferena (TEIXEIRA, 2005, p. 113).

    Estruturas fortes como a arch (SOUZA, 2006, p. 259) decaem em direo a uma poca que aceita a incerteza e permite um horizonte mais aberto de sentido. Com isso, a prpria filosofia perde o seu posto de fundamento e d lugar a uma multiplicidade de saberes. O pensar do pensamento fraco um pensar que se abre ao horizonte histrico-lingstico em que est situado, por meio do qual as coisas se tornam acessveis. Existir estar lanado em uma linguagem. Esta no eterna ou imutvel, mas apre-senta acontecimentos historicamente qualificados. A filosofia, assim, torna-se narrativa; os filsofos contam histrias (TEIXEIRA, 2005, p. 117-118).

    Trata-se, em suma, de combater a violncia do pensamento meta-fsico: evitar lidar com a realidade em termos de estruturas fortes como verdade, autenticidade, propriedade e fundamento, no as substituindo por ou potncia subjetiva de controle dos desejos e do fundamento, mas almejando o enfraquecimento da fora coercitiva da realidade (DUARTE, 2006, p. 234). O niilismo entra como idia-chave que per-mite uma experincia mtica da realidade, que tambm nossa nica possibilidade de liberdade (TEIXEIRA, 2005, p. 119). Vattimo afirma:

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    Como j havia claramente intudo Nietzsche, e tal como Heideg-ger demonstra por meio de termos ontolgicos, a tradio meta-fsica a tradio de um pensamento violento que, ao privilegiar categorias unificadoras, soberanas, generalizantes, no culto da ar-ch, manifesta uma insegurana e um pathos de base a que reage com um excesso de defesa (1980, p. 13).

    O enfraquecimento do pensamento , assim, sobretudo uma chance em vez de um risco , talvez remetendo aquele famoso dito de Hlderlin de que ali onde mora o perigo est tambm a salvao, destruindo a violncia metafsica a partir de um pensamento hospitaleiro com a al-teridade de todas as interpretaes.3 O tempo , nesse sentido e enquanto demanda de uma historicidade radical, aquilo que abre o espao fechado da totalidade metafsica. o que afirma Ricardo Timm de Souza:

    Talvez devamos compreender a radicalidade do pensiero debole no a partir de algum resqucio, ainda que remotssimo, de uma ontologia primeira, mas sim atravs daquilo que, propriamente, debilita o pensamento totalizante: a temporalidade. Pois o gran-de poder do ser humano que tudo que ele necessita para ser humano ele j tem: ele tem o instante, o instante que desarticu-la definitivamente a solido violenta e reintroduz o desencon-tro original entre o Mesmo e o Outro, condio primordial da inteligibilidade decisiva da absolutamente necessria diferena real entre Totalidade e Infinito, raiz do sentido e condio de todo futuro concebvel. Estaremos a realmente, no ocaso do Ser e de suas nostal-gias, s portas de uma humanidade ultrametafsica (2006, p. 269).

    Aproveitando essa chance no-fundada, possvel a reconstruo da pol-tica em torno de uma recusa do reconhecimento de estruturas metafisicamen-te dadas (a referncia a essncias e direitos tornou-se patrimnio da direita) e da genrica apologia ao pluralismo (que possibilita a combinao entre uma cultura de supermercado e identidades parciais vividas com fundamentalis-mo). O princpio da dissoluo da violncia seria, assim, a viga-mestra que apoiaria uma ao poltica de esquerda capaz de responder cultura de super-mercado e aos fundamentalismos reativos (PECORARO, 2006, p. 195).

    3 Ver, por exemplo, o artigo de Maria Clara Lucchetti Bingemer em que aproxima o pen-samento de Vattimo do de Simone Weil a partir da categoria da religio (BINGEMER, 2006, p. 237-253), concluindo que nossos dias nos dizem com sua vida e seu pen-samento que a nica verdade revelada, no fundo, o amor. Ver tambm o dilogo Da Violncia e da Beleza, travado entre Gianni Vattimo e Jacques Derrida e no qual a questo da alteridade brilhantemente polemizada (VATTIMO; DERRIDA, 2006).

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    II. Richard Rorty e o Neopragmatismo

    2.1. Um projeto filosfico abandonado

    O prprio Richard Rorty nos facilitou a tarefa de rememorar seu pensamento ao escrever um belo ensaio nomeado Trotsky e as Orqudeas Selvagens. Rorty narra sua histria desde os 12 anos e diz que seu projeto inicial era reunir os temas da Verdade e da Justia, afirmando um sistema unitrio em que fosse possvel deduzir de uma posio filosfica uma posio poltica verdadeira, tal como Scrates e Plato haviam concebi-do. Criado em um ambiente socialista e tendo seus pais amigos de John Dewey, resume tudo na frase de Yeats de captar a realidade e a justia em uma nica viso entendendo por realidade seus momentos junto s orqudeas selvagens das montanhas de New Jersey, quando testemu-nhava espcie de inefvel, e por justia libertar os fracos do domnio dos fortes (RORTY, 2005, p. 35).

    Rorty narra que seus professores em Chicago, em 1946, onde havia forte influncia aristotlica, adotavam freqentemente como alvo de escrnio John Dewey, pelo seu excessivo relativismo, sendo necessrio algo mais profundo e consistente para explicar por que seria melhor morrer a ser nazista (RORTY, 2006, p. 36). Esse perodo Rorty define como dos seus 15 a 20 anos, quando realmente tentou ser platonista.

    Em seguida, comeou percebendo que a argumentao dedutiva ti-nha problemas, dentre os quais o de remeter aos primeiros princpios que ningum alcana. Essa preocupao foi superada com a idia de co-erncia. Dois livros o influenciaram na mudana de atitude: Fenomeno-logia do Esprito, de Hegel, e Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. O compromisso com a temporalidade era o elemento antiplatnico que o fascinou. Foi ento que teve sua reconciliao com Dewey, vendo neste algum que leu Hegel com Charles Darwin na outra mo, imunizando--se contra o pantesmo. Ao mesmo tempo, teve seu primeiro encontro com Derrida e isso o fez se aproximar de Wittgenstein e Heidegger nas crticas ao cartesianismo. Foi nesse ambiente que construiu seu primeiro livro A filosofia e o espelho da natureza (RORTY, 2006, p. 39-40). A par-tir desses fatos que comeou a construir seu sistema de dissociao entre realidade e justia de uma viso nica.

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    2.2. A filosofia como espelho da natureza

    O principal alvo da crtica metafsica de Rorty um objeto sagrado dentro dessa tradio: a verdade. Seguindo os passos de Nietzsche e Heidegger, no mbito da filosofia continental, e de Wittgenstein, Quine e Davidson dentro da tradio analtica, Rorty deflaciona a idia de verdade-como-correspondncia que tpica da metafsica tradicional em diversos artigos, situando-se como maior inimigo da tradio e reivindi-cando, como ele prprio brinca certa vez, o posto de maior dos antiplatonistas.

    Rorty ataca a verdade-como-correspondncia fundamentalmente a partir do conceito de representao. Segundo ele, a filosofia estaria im-pregnada da idia de que se constituiria em um vocabulrio final, trans-parente, capaz de refletir as coisas-como-elas-so-em-si-mesmas. Essa idia fica muito clara a partir do ttulo da sua tese, A filosofia e o espelho da natureza. Segundo a metafsica tradicional, a filosofia poderia tornar-se espcie de vocabulrio final, capaz de trazer no apenas representaes que teriam algum sentido em coerncia com o restante das nossas cren-as, mas de refletir com perfeio itens no-lingsticos. As divergncias entre idealistas e realistas se d no interior desse representacionalismo.

    Para Rorty, no entanto, trata-se de um pseudo-problema que deve ser dissolvido, e no resolvido. Os anti-representacionalistas entre os quais se inclui esto prontos a admitir que a nossa linguagem se d em conformidade com a nossa ambincia e vivncia, negando, portanto, a hiptese do ctico (representacionalista). O que eles negam que seja proveitoso para a explicao selecionar e escolher algo entre os conte-dos de nossas mentes ou de nossa linguagem, bem como dizer que este ou aquele item corresponde a ou representa o ambiente de uma forma que algum outro item no faz (RORTY, 2002a, p. 18).

    Podemos ver isso a partir de um exemplo: Rorty se prope com-parar texto e amostra, aproveitando para cutucar aqueles que defendem uma diviso clara entre a crtica literria e a anlise qumica. Nesse paper Rorty alfineta aqueles que se pem como adversrios da subjetividade e que no pode ser reduzido ao objetivo e cientfico. Ele exemplifica dizendo que quando Galileu viu a lua de Jpiter atravs de seu telescpio, era possvel dizer que o impacto na sua retina foi concreto no sentido relevante do termo, ainda que suas conseqncias pudessem ser diferentes

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    para os astrnomos de Pdua, que trataria de adaptar a anomalia ao sistema aristotlico, do que para seus seguidores, que despedaaram as esferas cristalinas de uma vez por todas. Portanto, a concretude desse fato apenas a concretude da concordncia de uma comunidade sobre as conseqncias do evento.

    Mas o dado, argumentar-se-ia em contrrio, ele mesmo, real e completamente alheio interpretao. O pragmtico, diz Rorty,

    [...] encontra esse ponto medida que se diferencia do idealista. Ele concorda que h uma coisa como uma resistncia fsica bruta a presso das ondas de luz no globo ocular de Galileu ou da pedra sobre a bota do Dr. Johnson. Mas ele no v nenhuma forma de transferir esse carter bruto no-lingstico para os fatos, para a verdade das sentenas. O modo com que um espao vazio se atm forma de uma modelagem que se forja, no possui nenhuma analogia com a relao entre a verdade da sentena e o evento do qual a sentena trata. [...] Dizer que precisamos ter respeito pelos fatos justamente dizer que precisamos, se ns devemos jogar um jogo de linguagem, jogo a partir das regras (2002a, p. 115).

    O elemento qumico ouro, ele reconhece, tem certa tenacidade bruta que inegvel, porm isso no pode significar que s pode ser descrito de uma forma nem que imponha qualquer descrio. Para os pragmatistas, o que est em jogo to-somente a concordncia intersubjetiva imposta pela palavra, e no pela fora, que nos traz algo novo sobre o ouro.

    Rorty manifesta contrariedade como o projeto de transformar a filosofia em filosofia da cincia. Para ele, lembrando Thomas Kuhn, a cincia natural no um gnero natural. A idia de que possvel alcanar a partir da cincia uma espcie de compreenso absoluta dos fatos, algo que impensvel. Alm disso, o resultado da cincia natural apenas controle e predio. O que h, afinal, de to especial nessas dimenses que justificaria sua predominncia em relao a domnio que persegue o belo ou o justo? (RORTY, 2002a, p. 95).

    Em suma, no possvel verificar as representaes para alm do que est estabelecido na linguagem, e tudo que podemos fazer manter a coerncia entre o conjunto de crenas que mantemos no mbito dessa linguagem algo como nossa viso global do mundo, aproximando-se do internalismo de Hillary Putnam e do holismo de Donald Davidson (RORTY, 2002a, p. 19). Trata-se de uma filosofia, como a de Vattimo,

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    que recusa a fundao, no se utiliza de qualquer ponto arquimedia-no (ou gancho celeste) para se apoiar, como se fosse possvel alcanar o olho de Deus para julgarmos, por exemplo, se a astronomia mais fundada que a astrologia, salvo a coerncia com as nossas crenas e a utilidade prtica da primeira em relao segunda.

    2.3. Solidariedade em vez de objetividade

    Completando sua posio holista e anti-representacionalista, Ror-ty igualmente adepto do naturalismo, no sentido de que, desde Da-rwin, impossvel estabelecer uma diferena qualitativa entre ns e os brutos. Essa posio, compartilhada por Dewey, Davidson e Quine, v espcie de impossibilidade de diferena qualitativa entre ns, bpedes sem penas, e os outros, de forma que, por exemplo, como exemplifica Donald Davidson, nossa linguagem no tem funo diferente da lngua do tamandu. Trata-se de simples adaptao ao meio que pode se redes-crita de diferentes formas.

    aqui exatamente que ressurge o pragmatismo de Dewey e James, recusando a posio que ele chamaria de realista que contm a idia de verdade como correspondncia realidade, ou da objetividade no sentido de que deveriam existir estruturas humanas naturais que nos levariam reforma social, e preferindo posio pragmtica, abdicadora de qualquer metafsica e ontologia. Para essa posio, uma crena deve ser aceita contanto que seja boa para ns. O desejo por objetividade , na realidade, apenas uma forma de esticarmos o pronome ns para alm da nossa comunidade. Essa posio no quer significar que uma crena to boa quanto outra, nem que verdade um termo equvoco com-patvel com um sem-nmero de procedimentos de justificao. Quer di-zer to-somente que

    [...] no h nada a ser dito sobre a verdade, nem sobre a raciona-lidade, para alm das descries dos procedimentos familiares de justificao de uma dada sociedade a nossa emprega em uma ou outra rea de justificao. O pragmtico toma esse terceiro ponto de vista etnocntrico. Mas ele no sustenta a primeira viso, auto-re-futadora, nem a excntrica segunda viso (RORTY, 2002a, p. 40).

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    O que est em jogo portanto uma releitura dos procedimentos cientficos, por exemplo, enquanto procedimentos de solidariedade elemento que o pragmtico coloca em lugar da objetividade analisando a investiga-o humana cooperativa apenas com base tica, sem substituir por qual-quer epistemologia (e, portanto, sem qualquer epistemologia relativista) (RORTY, 2002a, p. 41). Trata-se de substituir uma descrio metafsica e epistemolgica por uma descrio poltica e moral.

    E aqui precisamente Rorty faz uma leitura otimista4 da cincia. Apesar do seu rechao da cincia enquanto gnero natural capaz de nos proporcionar um gancho celeste ou a perspectiva do olho de Deus, Rorty enxerga na comunidade cientfica um ideal a ser seguido: a tolerncia entre os seus membros, realada com a prevalncia da palavra sobre a fora. Diz ele:

    Os pragmticos gostariam de substituir o desejo por objetividade o desejo de estar em contato com uma realidade que mais do que alguma comunidade com a qual ns nos identificamos pelo desejo por solidariedade com essa comunidade. Eles pensam que os hbitos de confiana antes na persuaso do que na fora, de res-peito pelas opinies dos colegas, de curiosidade e zelo por novos dados e idias so as nicas virtudes que os cientistas tm. Eles no pensam que h uma virtude intelectual chamada racionali-dade alm dessas virtudes morais (RORTY, 2002a, p. 60).

    A cincia, assim, ainda que no possa ser considerada com gnero superior ou como uma via de acesso segura realidade-como-ela-, tal como viam os positivistas, pode ser tida como modelo de solidariedade humana, podendo ser copiada em suas instituies e provendo sugestes comunitrias para o resto da cultura organizar a si mesmo (RORTY, 2002a, p. 61). As questes tericas dariam lugar a questes prticas sobre se devemos conservar nossos valores, teorias e prticas presentes ou ten-tar substitu-los por outros. O desejo por objetividade, por isso, daria lugar ao desejo por solidariedade. E aqui caminhamos por a outra ponta do pensamento de Rorty a filosofia poltica.

    4 Que, de certa forma, contrasta com influncias evidentes no texto, como a de Martin Heidegger. Este, ao estabelecer o ser como Ereignis como vimos linhas atrs constatou a abertura que possibilita a construo de diversos sentidos para alm da simples-pre-sena. Isso visivelmente pressuposto no texto do Rorty. No entanto, enquanto a viso de Heidegger sobre a tcnica era pessimista, a de Rorty parece estar mais prxima do otimismo de John Dewey.

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    2.4. Pragmatismo e poltica: o liberalismo burgus ps-moderno

    O que torna Richard Rorty um filsofo sui generis que, a despei-to de estar, como ele prprio brinca, na corrida para se tornar o mais anti-platnico dos filsofos, ou seja, de rechaar qualquer fundao metafsica que sustente um conhecimento superior e capaz de refletir a realidade-como-ela-, de ser um puro espelho representacional ou um vocabulrio final que deveramos falar, Rorty ainda um entusiasta da Modernidade e do liberalismo poltico.

    Rorty faz questo de se definir como algum entre Habermas e Lyotard, aceitando os postulados do ltimo acerca da insuficincia das metanarrativas e da impossibilidade de uma fundao verdadeira na filosofia poltica, de um lado, mas, pragmaticamente, estando ao lado de Habermas quanto ao fato de que progredimos moralmente no mundo mo-derno, no sendo o caso de abandonar esse projeto (RORTY, 2002b, p. 221). Para isso, cria uma espcie de liberalismo pragmtico, que recusa bases metafsicas tpicas (ex. idia de uma universalidade do sujeito racional), mas ao mesmo tempo considera-se como uma poltica pragmaticamente adequada, pois mantm as janelas abertas para absorver o novo e o diferente incorporado de outras culturas.

    Ele afirma, com Dewey, ser um equvoco o desejo iluminista de objeti-vidade que poderia residir numa suposta natureza humana fundadora de direitos e deveres. A valorizao da cincia natural, poca, era apenas uma retrica que combatia um vocabulrio menos aberto e tolerante. Essa retri-ca, no entanto, conservou velhas oposies entre mente e mundo, aparncia e realidade, etc. Dewey via e Rorty concorda que a prevalncia dessas oposi-es nos impedia de ver a cincia moderna como nova e promissora inteno, algo que pode simplesmente nos trazer o novo (RORTY, 2002a, p. 66-67).

    O que ele postula uma prioridade da democracia para a filosofia. Ele pe de um lado aqueles filsofos que trabalham com conceitos for-tes como direitos humanos e respostas corretas, enxergando um elo metafsico que poderia ser localizado na idia de dignidade humana (posio, por exemplo, de Ronald Dworkin); de outro, aqueles que pos-tulam o abandono desse conjunto de crenas sem deixar de usufruir seus benefcios, restringindo-a a uma comunidade particular (um Ns) que, ainda com esses critrios, pode distinguir o racional e o fantico (posi-o de John Dewey e John Rawls) (RORTY, 2002a, p. 237).

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    Essa concepo leva Rorty a definir o anti-anti-etnocentrismo. Por essa posio, impossvel acessar o olho de Deus e, por isso, sus-tentar uma posio desde um ponto acima das demais culturas. Mas isso no nos encaminha para o relativismo cultural: simplesmente impos-svel ser relativista, medida que sempre estamos situados desde algum lugar que nos abre nossa perspectiva cultural. dentro dessa rede que Rorty traa seu liberalismo burgus ps-moderno: atribuir relativis-mo ao ps-moderno significa colocar uma metanarrativa em sua boca, coisa que ele certamente no aceitaria; de outro lado, desconstruir as categorias universais como dignidade humana no significa recusar o liberalismo poltico, que aquela posio que tem como pressuposto moral a abertura de novas janelas na mnada cultural. Trata-se de uma espcie de etnocentrismo aberto (RORTY, 2006, p. 45; 2002b, p. 235). Em sntese:

    A utopia pragmtica no , ento, aquela em que a natureza hu-mana tenha sido liberta, mas aquela em que todo mundo tenha tido chance de sugerir modos atravs dos quais ns pudssemos nos reunir rapidamente e a grosso modo uma sociedade mundial (ou galctica), e na qual todas essas sugestes tivessem sido dis-cutidas em encontros livres e abertos (RORTY, 2002a, p. 283).

    III. Uma pequena concluso...

    Os trabalhos de Rorty e Vattimo so amplamente estruturados e exi-giriam uma apreciao crtica que demandaria muito mais tempo e espao do que essas breves linhas introdutrias. Por exemplo, a hesitao com que Rorty pensa a filosofia de Derrida em termos polticos (reduzindo-o condio de ironista privado, tal como Nietzsche) o impede de perce-ber aspectos fundamentais que proporcionaram um ponto arquimediano no-metafsico nem fundacional, mas contingente. A ausncia de uma devida compreenso da filosofia de Emmanuel Levinas,5 nesse sentido, pode ter sido o fator fundamental para essa no-aproximao de Rorty de um pensamento que lhe estava to prximo, pois coloca razo tica

    5 Sobre o tema, conferir o volume Desconstruo e Pragmatismo (1998), organizado por Chantal Mouffe, especialmente os papers de Critchley e Rorty.

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    como prioridade sobre razo tcnica (de forma muito smile construo da cincia enquanto solidariedade do prprio filsofo anglo-saxnico) (SOUZA, 2004a e 2004b). Aparentemente, esse pequeno rudo que impe-diu a comunicao entre duas tendncias (pragmatismo e tica da alteri-dade) to incompreendidas pelos seus adversrios, mas similares nos seus objetivos (reduo do sofrimento do Outro) est em vias de correo por meio de uma aproximao entre Enrique Dussel e Hillary Putnam.

    Cabe, antes, ressaltar as inmeras convergncias entre o pensa-mento fraco de Vattimo e o neopragmatismo de Rorty, especialmente na idia francamente anto-fundacional que orienta a ambas, assim como o respectivo engajamento numa filosofia poltica que reduza a violncia, sem, por isso, desembocar no niilismo cnico de alguns ps-modernos. Tratam-se, a rigor, de dois pensadores bastante prximos, diferindo ape-nas pelo estilo mais analtico de Rorty e hermenutico de Vattimo.

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