vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecção ... · livedo reticular, pápulas e...

5

Click here to load reader

Upload: buituyen

Post on 30-Nov-2018

212 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecção ... · livedo reticular, pápulas e placas purpúricas de dimensões variadas, com diâmetro inferior a 1,5cm, bem delimitadas

Recebido em 22.02.2006.Aprovado pelo Conselho Consultivo e aceito para publicação em 25.03.2007. * Trabalho realizado no atendimento ambulatorial em clínica privada em Santo André (SP), Brasil.

Conflito de interesse: Nenhum / Conflict of interest: NoneSuporte financeiro: Nenhum / Financial funding: None

1 Doutorando da Disciplina de Telemedicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) - São Paulo (SP). Especialização em CirurgiaDermatológica pela Faculdade de Medicina do ABC - Santo André (SP), Brasil.

2 Professor doutor do Departamento de Dermatologia e Radioterapia da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB), Universidade Estadual Paulista (Unesp) –Botucatu (SP), Brasil.

©2008 by Anais Brasileiros de Dermatologia

151

An Bras Dermatol. 2008;83(2):151-5.

Caso clínico

Resumo: As vasculites cutâneas podem representar grande desafio clínico, mesmo após exame derma-tológico cuidadoso e realização de exames complementares. Os autores apresentam caso de vasculitecrioglobulinêmica cutânea associada à infecção crônica pelo vírus da hepatite C, salientando aimportância do exame dermatológico na investigação diagnóstica. Discutem ainda a importância dabusca da etiologia e da correta classificação no prognóstico e terapêutica das vasculites cutâneas.Palavras-chave: Crioglobulinemia, Hepatite C, Vasculite

Abstract: Cutaneous vasculitis may represent a great clinical challenge, even after careful dermato-logical examination and laboratory assessment. The authors present a case of cutaneous cryoglobu-linemic vasculitis associated to chronic hepatitis C virus infection, pointing out the importance ofthe dermatological examination for diagnostic investigation. They discuss about the importance ofdefining the etiology and making correct classification for appropriate prognosis and treatment ofcutaneous vasculitis.Keywords: Cryoglobulinemia, Hepatitis C, Vasculitis

Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecçãocrônica pelo vírus da hepatite C *

Cutaneuos cryoglobulinemic vasculitis induced by chronichepatitis C virus infection *

Maurício Pedreira Paixão 1 Hélio Amante Miot 2

INTRODUÇÃOAs vasculites representam grupo de afecções

que se caracterizam fundamentalmente por infiltradoinflamatório envolvendo a parede dos vasos sangüí-neos. Podem acometer vasos de diferentes calibres,afetando o sistema arterial, venoso ou ambos. Porconseguinte, diversos órgãos e sistemas podem estarimplicados. A pele, nesse contexto, é órgão comu-mente acometido pelas vasculites, e o dermatologistaé, freqüentemente, o primeiro especialista a ser pro-curado por esses pacientes. Quanto à etiologia,podem ser primárias ou secundárias a doenças sistê-micas.1

Devido à miríade de manifestações sistêmicas eda grande variedade de etiologias relacionadas às vas-

culites, foram propostas diferentes classificações enomenclaturas para esses quadros. Classificações maisatuais de vasculites bastante usadas são as doAmerican College of Rheumatology de 19902 e o con-senso de Chapel Hill, de 1994.3, 4

O presente caso ilustra como o exercício doexame clínico, associado à adequada propedêuticalaboratorial, permitiu diagnóstico correto e estabeleci-mento de plano terapêutico individualizado.

RELATO DO CASOC.T.O.L., do sexo feminino, 33 anos, do lar,

referiu o aparecimento há 10 meses de lesões nos ter-ços distais dos membros inferiores, incluindo cianose,

Page 2: Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecção ... · livedo reticular, pápulas e placas purpúricas de dimensões variadas, com diâmetro inferior a 1,5cm, bem delimitadas

livedo reticular, pápulas e placas purpúricas dedimensões variadas, com diâmetro inferior a 1,5cm,bem delimitadas (Figuras 1 e 2), por vezes com colo-ração mais violácea e exibindo pequenas crostas nasuperfície. Concomitantemente, referia artralgia e adi-namia. Informou outros episódios semelhantes pré-vios, com agravamento nos meses mais frios, tendofeito uso de sintomáticos por indicação médica empostos de saúde, sem melhora. Negava transfusão san-güínea e outras queixas sistêmicas. Não foram obser-vadas mais alterações ao exame clínico. Durante a pri-meira consulta foi orientada a suspensão de medica-ções e realização de exames complementares. Pelapresença de púrpuras palpáveis no momento da con-sulta, optou-se pela realização de biópsia cutânea emuma dessas lesões.

Os primeiros exames solicitados foram: VHS,proteína C reativa, hemograma, Aslo, c-Anca e p-Anca,VDRL, FAN, fator reumatóide, urina I, parasitológico defezes, sorologia para HIV, hepatites B e C, transamina-ses hepáticas, dosagem de crioglobulinas, complemen-to e exame anatomopatológico da biópsia cutânea.

Foi orientado uso de prednisona (40mg/d) atéo resultado dos exames, observando-se melhora doquadro clínico.

Em meio aos exames alterados, observou-se apresença de crioglobulinas e sorologia positiva parahepatite C. O exame histopatológico da lesão cutânearevelou vasculite leucocitoclástica envolvendo peque-nos vasos (Figura 3).

Após resultado dos exames laboratoriais foi sus-pensa a prednisona, e a paciente foi encaminhadapara o Serviço de Infectologia, onde foi realizadabiópsia hepática, dosagem de carga viral e genotipa-gem para vírus C. A biópsia hepática revelou a presen-ça de infiltrado inflamatório em porções septais e por-tais, ausência de necrose em saca-bocado e de pig-mentos, sendo compatível com hepatite crônica porvírus C discretamente ativa (Figura 4). O genótipo dovírus C identificado foi o 1b. A análise quantitativa dacarga viral revelou mais de três milhões de cópias (logda carga viral superior a seis).

Foram orientados cuidados gerais quanto àexposição ao frio e retornos periódicos à clínica der-matológica, observando-se involução das lesões cutâ-neas, com raros episódios de menor intensidadedurante o inverno. Após planejamento conjunto como Serviço de Infectologia do Hospital Emílio Ribas,indicou-se o uso de interferon-alfa (IFN-α) peguiladoe ribavirina para o tratamento da hepatite C.

DISCUSSÃOAs vasculites representam grupo bastante hete-

rogêneo de afecções, e sua gravidade varia desdedoença autolimitada com acometimento cutâneo dis-creto até quadros extremamente graves cursando comfalência de múltiplos órgãos. Representam área deinterface em que podem atuar o dermatologista, oreumatologista e o infectologista, além de outras espe-cialidades.5

A investigação das vasculites cutâneas envolvehistória e exames clínicos minuciosos, caracterizaçãohistopatológica e busca racional a partir de examescomplementares. A elaboração de estratégia sistemati-zada pode facilitar a elucidação diagnóstica, e nessesentido foi elaborado o fluxograma a seguir (Figura 5).

152 Paixão MP, Miot HA.

An Bras Dermatol. 2008;83(2):151-5.

FIGURA 1: Pápulas purpúricas na face anterior dascoxas e das pernas

FIGURA 2: Pápulas purpúricas na face anterior das coxas e das pernas

Page 3: Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecção ... · livedo reticular, pápulas e placas purpúricas de dimensões variadas, com diâmetro inferior a 1,5cm, bem delimitadas

Como visto até aqui, a abordagem das vasculi-tes pode representar um grande desafio diagnósticoao clínico, e as dificuldades em sua abordagem par-tem das tentativas de classificação. A classificação doAmerican College of Rheumatology, de 1990, incluicritérios clínicos e histológicos, e a classificação de1994, obtida por consenso internacional em ChapelHill, divide as vasculites de acordo com os calibres dosvasos. Portanto, diferentes aspectos são tipificados esingularizados, existindo certo grau de sobreposição edificultando a completa transposição entre elas.5,6

Na década de 1950, Pearl Zeek descreveu qua-dros de vasculite de pequenos vasos com acometimen-to cutâneo resultado de exposição a droga, denomi-nando-os vasculite de hipersensibilidade. Mais recen-temente, dentre as vasculites com acometimento cutâ-neo, salienta-se um subgrupo chamado de vasculitecutânea de pequenos vasos (VCPV), definido após oconsenso de Chapel Hill.5-8 Há, porém, autores queinsistem em caracterizar a VCPV como entidade clínicaprópria, com acometimento cutâneo exclusivo ecomumente associada ao uso de medicações ou ainfecções.5 Esse subgrupo apresenta um espectro delesões cutâneas, sendo a púrpura palpável a maiscomum. Seus achados histopatológicos característicosincluem inflamação angiocêntrica e segmentar, edemaendotelial, necrose fibrinóide da parede do vaso e infil-trado celular composto predominantemente de neu-trófilos com fragmentação nuclear (cariorrexe). Osvasos acometidos são as vênulas pós-capilares, apre-sentando padrão histopatológico de vasculite leucoci-toclástica com potencial participação de imunocom-plexos em sua patogênese.5,7 As VCPV podem serencontradas em crianças e em adultos, sendo maiscomum o aparecimento entre 34 e 49 anos, com a pro-

porção mulher/homem variando de 2:1 a 3:1. Quadrosclínicos recidivantes sugerem a associação de crioglo-bulinemia e infecção por vírus da hepatite C.8,9

A identificação da presença de crioglobulinas,como no presente caso, associada à positividade soro-lógica para o vírus C, aponta para o diagnóstico defi-nitivo. Investigações subseqüentes, como genotipa-gem, carga viral e biópsia hepática, foram de grandevalia nos julgamentos voltados para o prognóstico e otratamento.

A crioglobulina é um crioprecipitado de imuno-globulinas (Ig) que pode ser do tipo monoclonal oupoliclonal. Segundo a classificação de Brouet,10 notipo I encontra-se Ig monoclonal do tipo M (IgM) ouG (IgG), que normalmente não forma complexos, maspode causar sintomas quando oclui vasos. É vista nasdoenças hematológicas malignas. Nos tipos II e III,encontra-se a presença de anticorpos IgM monoclonal(tipo II) e policlonal (tipo III) dirigidos contra IgGpoliclonais; estes últimos constituem a crioglobuline-mia mista essencial.10,11 Desde a descoberta do vírus C,em 1989, aproximadamente 75-90% dos casos atéentão reconhecidos como essenciais passaram a terum agente causal identificado, o que pode questionara palavra “essencial” na nomenclatura.5,12

O achado clínico característico nas vasculitescrioglobulinêmicas (VC) é a presença de púrpura pal-pável, normalmente restrita às extremidades inferio-res. É relatada piora com o frio, presença de acrocia-nose, livedo reticular, artralgias e adinamia. Podem serencontrados fator reumatóide, fator antinúcleo eoutros auto-anticorpos (antimúsculo liso, anti-Ro/La ec-Anca), e hipocomplementemia, além de alteraçõesrenais e neurológicas.12

Quanto ao tratamento, a paciente possuía

An Bras Dermatol. 2008;83(2):151-5.

Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecção crônica pelo vírus da hepatite C 153

FIGURA 3: Exame histopatológico de fragmento de pele demons-trando vasculite leucocitoclásica dos pequenos vasos superficiaisda derme (H&E 10x). Detalhe no canto inferior demonstrando

cariorrexe e extravasamento de hemácias (H&E 40x)

FIGURA 4: Biópsia hepática com discreto infiltrado inflamatório emporções septais e portais evidenciando hepatite crônica com

discreta atividade (H&E 10x). Detalhe no canto inferior esquerdo doinfiltrado inflamatório predominantemente linfocitário (H&E 40x)

Page 4: Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecção ... · livedo reticular, pápulas e placas purpúricas de dimensões variadas, com diâmetro inferior a 1,5cm, bem delimitadas

carga viral elevada e o genótipo 1b, encontradoprincipalmente no Japão e em países ocidentais,ambos associados à resistência terapêutica, mesmocom a terapia combinada de IFN-α associado à riba-virina.13

Já foram descritas melhoras do quadro imunoló-gico hepático e das lesões cutâneas em pacientes queutilizaram IFN-α, quer por seu efeito direto imunomo-

dulador, quer por seu efeito indireto sobre o vírus. Otratamento sugerido conta com a utilização de IFN-α,do tipo 2a ou 2b peguilado, pois apresenta maiormeia-vida e menor antigenicidade em comparação aoconvencional recombinante. A associação do IFN-αcom ribavirina é descrita como apresentando efeitomais favorável para esse genótipo do que o IFN-α iso-ladamente.5,14,15

154 Paixão MP, Miot HA.

An Bras Dermatol. 2008;83(2):151-5.

FIGURA 5: Fluxograma para avaliação das vasculites cutâneasFonte adaptada: Fiorentino DF5

Page 5: Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecção ... · livedo reticular, pápulas e placas purpúricas de dimensões variadas, com diâmetro inferior a 1,5cm, bem delimitadas

REFERÊNCIAS1. Hannon CW, Swerlick RA. Vasculitis. In: Bolognia JL,

Jorizzo JL, Rapini RP, editors. Dermatology. London:Mosby; 2003. p. 381-402.

2. Hunder GG, Arend WP, Bloch DA, Calabrese LH, FauciAS, Fries JF, et al. The American College ofRheumatology 1990 criteria for the classification of vasculitis. Introduction. Arthritis Rheum. 1990;33:1065-7.

3. Jennette JC, Falk RJ, Andrassy K, Bacon PA, Churg J,Gross WL, et al. Nomenclature of systemic vasculitides.Proposal of an international consensus conference.Arthritis Rheum. 1994;37:187-92.

4. Crissey JT, Parish LC. Vasculitis: the historical developmentconcept. Clin Dermatol. 1999;17:493-7.

5. Fiorentino DF. Cutaneous vasculitis. J Am AcadDermatol. 2003;48:311-40.

6. Hautmann G, Campanile G, Lotti TM. The many faces ofcutaneous vasculitis. Clin Dermatol. 1999; 17:515-31.

7. Lotti T, Ghersetich I, Comacchi C, Jorizzo JL. Cutaneoussmall-vessel vasculitis. J Am Acad Dermatol. 1998; 39:667-87.

8. Jennette JC, Falk RJ. Small-vessel vasculitis. N Engl JMed. 1997;337:1512-23.

9. Blanco R, Martinez-Taboada VM, Rodrigues-Valverde V,Garcia–Fuentes M. Cutaneous vasculitis in children andadults: associated diseases and etiologic factors in 303patients. Medicine. 1998; 77:403-18.

10. Brouet JC, Clauvel JP, Danon F, Lein M, Seligmann M.Biological and clinical significance of cryoglobulins: a report of 86 cases. Am J Med. 1974;57:775-88.

11. Stone JH, Nousari HC. “Essential” cutaneous vasculitis:what every rheumatologist should know about vasculitisof the skin. Curr Opin Rheumatol. 2001;13:23-34.

12. Ferri C, Mascia MT. Cryoglobulinemic vasculitis. CurrOpin Rheumatol. 2006;18:54-63.

13. Pascu M, Martus P, Hohne M, Wiedenmann B, Hopf U,Schreier E, et. al. Sustained virological response in hepatitis C virus type 1b infected patients is predicted bythe number of mutations within the NS5A-ISDR: a meta-analysis focused on geographical differences. Gut. 2004;53:1345-51.

14. Moreno-Otero R. Therapeutic modalities in hepatitis C:challenges and development. J Viral Hepat. 2005;12:10-9.

15. Manns MP, Obermayer-Straub P. Viral induction ofautoimmunity: mechanisms and examples in hepatology.J Viral Hepat. 1997;(Suppl 2):S42-7.

An Bras Dermatol. 2008;83(2):151-5.

Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzida por infecção crônica pelo vírus da hepatite C 155

AGRADECIMENTOSOs autores agradecem ao Dr. Raphael

Salles e à Dra. Mílvia M. S. S. Enokihara osuporte de diagnóstico histopatológico.

Como citar este artigo / How to cite this article: Paixão MP, Miot HA. Vasculite cutânea crioglobulinêmica induzi-da por infecção crônica pelo vírus da hepatite C. An Bras Dermatol. 2008;83(2):151-5.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA / MAILING ADDRESS:Maurício Pedreira PaixãoRua Teodoro de Beaurepaire, 208, ap. 15104279-030 São Paulo-SPTel./Fax: (11) 4493-5455E-mail: [email protected]

Outras condutas terapêuticas utilizadasincluem desde a simples monitoração do pacientepara quadros assintomáticos até esquemas mais com-plexos incluindo plasma, corticosteróides, ciclofosfa-mida e rituximab, reservados para casos mais gravesque cursam com glomerulonefrite rapidamente pro-gressiva, neuropatia sensoriomotora e vasculite comacometimento difuso.12

É também descrito que a terapia com IFN-αdesprovida de imunossupressores pode agravar aVC.11 O emprego da prednisona oral, apesar damelhora cutânea, não promove benefícios no pro-cesso hepático que originou primariamente adoença. Por outro lado, a escolha de parâmetros,usados em diversos esquemas, como dose e medi-cações envolvidas, duração de tratamento, contra-indicações e efeitos colaterais, transcende o objeti-vo do artigo.

Umas das formas de avaliar o sucesso do trata-mento da doença hepática é a verificação da respostaimunológica sustentada, observada por desapareci-mento da carga viral ou redução de dois logs 12 sema-nas após o término do tratamento.13,14 Nesse caso, apaciente encontra-se em planejamento para introdu-ção dessa terapêutica, após sua concordância. �