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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS MARIA OLINDINA ANDRADE DE OLIVEIRA OLHARES INQUISITORIAIS NA AMAZÔNIA PORTUGUESA: O Tribunal do Santo Ofício e o disciplinamento dos costumes (XVII-XIX) MANAUS 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

MARIA OLINDINA ANDRADE DE OLIVEIRA

OLHARES INQUISITORIAIS NA AMAZNIA PORTUGUESA: O Tribunal do Santo Ofcio e o disciplinamento dos costumes

(XVII-XIX)

MANAUS 2010

MARIA OLINDINA ANDRADE DE OLIVEIRA

OLHARES INQUISITORIAIS NA AMAZNIA PORTUGUESA: O Tribunal do Santo Ofcio e o disciplinamento dos costumes

(XVII-XIX)

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria como requisito parcial para obteno de ttulo de Mestre em Histria Social. Linha de Pesquisa: Poltica, Instituies e Prticas Sociais.

Orientadora: Marcia Eliane Alves de Souza e Mello

MANAUS 2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

MARIA OLINDINA ANDRADE DE OLIVEIRA

OLHARES INQUISITORIAIS NA AMAZNIA PORTUGUESA: O Tribunal do Santo Ofcio e o disciplinamento dos costumes

(XVII-XIX)

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Marcia Eliane Alves de Souza e Mello UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

Prof. Dr. ngelo Adriano Faria de Assis UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIOSA

Prof. Dr. Auxiliomar Silva Ugarte UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS

Ficha Catalogrfica (Catalogao realizada pela Biblioteca Central da UFAM)

O48o

Oliveira, Maria Olindina Andrade de

Olhares inquisitoriais na Amaznia portuguesa: o Tribunal do Santo Ofcio e o disciplinamento dos costumes / Maria Olindina Andrade de Oliveira.

Manaus: UFAM, 2010. 153 f.; il. color.

Dissertao (Mestrado em Histria Social)

Universidade Federal do Amazonas, 2010.

Orientadora: Prof. Dra. Marcia Eliane Alves de Souza e Mello

1. Amaznia portuguesa - Histria 2. Inquisio 3. Amaznia portuguesa

Perodo colonial, 1763-1773 I. Mello, Marcia Eliane Alves de Souza e II. Universidade Federal do Amazonas III. Ttulo

CDU 981.1(043.3)

A Deus e a Nossa Senhora,

Arthur Jos Dantas Tavares e

Rassa Andrade de Oliveira Tavares

AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal do Amazonas, por

nos ter propiciado participar de vrios congressos de histria nacionais e internacionais, e ao

CNPq por ter financiado a nossa viagem Belm para pesquisar no Centro de Memria do Par,

no mbito do projeto Amaznia Portuguesa: documentos coloniais .

Secretaria Municipal de Educao (SEMED) e Secretaria Estadual de Educao

(SEDUC), por terem me dispensado para realizar o mestrado, possibilitando que me dedicasse

exclusivamente minha pesquisa.

Professora Doutora Marcia Eliane Alves de Souza e Mello, que durante todo o

mestrado foi mais que uma sbia orientadora. Sem sombra de dvida, sem o seu apoio, amizade e

companheirismo, eu no teria chegado at onde cheguei. A voc, todo o meu carinho e o meu

muito obrigado.

Aos Professores Doutores James Roberto Silva e Auxiliomar Silva Ugarte por suas

preciosas observaes na ocasio do Exame de Qualificao, e em especial ao Prof. Auxiliomar,

no s pelo estmulo constante, e por ter aceitado fazer parte da Banca de Defesa.

Ao Professor Doutor ngelo Adriano Faria de Assis, pelo apoio dado nos encontros de

Histria Colonial e por gentilmente aceitar fazer parte da minha Banca de Defesa.

historiadora Ana Margarida Santos Pereira, que muito gentilmente nos cedeu seu

material de pesquisa, colaborando, sobremaneira, para os dados iniciais da nossa dissertao.

Ao historiador Antonio Otaviano Vieira Jnior, por nos ter indicado e disponibilizado o

material existente no Centro de Memria do Par para a realizao de nossa pesquisa.

Aos meus colegas de turma, parceiros do mestrado, em especial, s amigas de toda a hora,

Maria Eugnia Mattos, Elisngela, Blenda e Adriana.

Tambm dedico esta pesquisa a todos os meus colegas de trabalho, tanto do Centro de

Formao Permanente do Magistrio/SEMED (sempre!) quanto aos da Escola Estadual Aderson

de Menezes/SEDUC, pelo carinho, apoio e ateno de todos vocs.

Aos meus familiares, em especial, meus pais (Jos Marques e Maria Gracieme), minha

irm Waleska e aos meus dois grandes amores, Arthur e Rassa, pela pacincia e dedicao.

RESUMO

Estudo sobre a atuao do Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio no Estado do Maranho e

Gro-Par desde o sculo XVII at o XIX. O objetivo do trabalho de analisar a ao da

Inquisio na Amaznia portuguesa, no que diz respeito natureza dos delitos praticados pela

populao da regio. Em especial, analisa a atuao do Tribunal e sua contribuio com a poltica

pombalina para a regio, a partir do estudo de processos inquisitoriais referentes a ndios, negros

e mestios, pertencentes ao perodo da Visitao de 1763 a 1773.

Palavras-chaves: Santo Ofcio; Estado do Maranho e Gro-Par; visitao.

ABSTRACT

Study on the proceedings of the Court of the Holy Office of the Inquisition in the State of

Maranho e Gro-Par from the seventeenth to the nineteenth centuries. In this paper, we analyze

the proceedings of the Inquisition in Portuguese Amazonia, focusing especially on the nature of

the offenses practiced by the regional population and on the proceedings of the Court and its

contribution to the regional policies of the Pombaline era, based on the study of the inquisitorial

trials of Indians, negroes and mestizos, during the Visitation period of 1763 to 1773.

Key-words: Holy Office; State of Maranho e Gro-Par; Visitation of the Inquisition.

RSUM

tude sur l atuation du Tribunal du Saint Office de l Inquisition dans l tat du Maranho et

Gro-Par partir du XVIIe sicle au XIXe sicle. L objectif est d analyser l action de

l Inquisition portugaise dans l Amazonie portugaise, spcialment, sur la nature des transgressions

realiss pour la population de la rgion. Surtout, ce travail analyse l atuation du Tribunal et leur

contribuition avec la politique pombaline pour la rgion, partir des tudes des procs

inquisitoires de indiens, noires et mtisses dans la priode de la Visitation de 1763 1773.

Mots cl: Saint Office, tat du Gro-Par et Maranho, Visitation

LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Inquisio em Portugal.................................................................... ............................. 24

Figura 02: Execuo de condenados pela Inquisio, no Terreiro do Pao, em Lisboa. (sc.

XVIII)............................................................................................................................................ 29

Figura 03: Mapa da Jurisdio dos Tribunais distritais da Inquisio em Portugal (sculo XVI-

XIX) .............................................................................................................................................. 42

Figura 04: Termo de abertura do livro da Visitao do Par (1763-1769).....................................52

Figura 05: ltimo flio escrito do livro da Visitao do Par (1763-1769)...................................72

Figura 06: Frontispcio do Regimento do Santo Ofcio da Inquisio. 1640...............................101

LISTA DE GRFICOS

Grfico 01: Delitos denunciados entre 1617-1700 ........................................................................60

Grfico 02: Pessoas da Amaznia portuguesa denunciadas ao Santo Ofcio (1671-1700)............61

Grfico 03. Evoluo de delitos e nmero de denunciados (1701-1762)...................................... 63

Grfico 04: Evoluo do nmero de delitos e pessoas denunciadas (1617-1762).........................67

Grfico 05: Levantamento Geral de pessoas e delitos denunciados entre (1617-

1805)...............................................................................................................................................82

Grfico 06: Delitos denunciados ao Santo Ofcio entre (1617-1805)............................................83

LISTA DE QUADROS

Quadro 01: Nmero de sentenciados em autos pblicos e privados em Portugal. 1682-

1750................................................................................................................................................68

Quadro 02: Nmero de indivduos e denncias durante a visitao 1763-1771.

........................................................................................................................................................73

Quadro 03: Natureza dos delitos denunciados durante a visitao do Par (1763-

1771)...............................................................................................................................................75

Quadro 04: Nmero de indivduos denunciados na Amaznia Portuguesa (1774-1805).............81

Quadro 05: Nmero de ndios, negros e mestios processados na Amaznia Portuguesa............92

Quadro 06: Grau de culpabilidade aplicada aos ndios, negros e mestios...................................94

Quadro 07: Sentenas inquisitoriais aplicadas aos ndios, negros e mestios na Amaznia

Portuguesa......................................................................................................................................95

SUMRIO

RESUMO

ABSTRACT

RESUM

LISTA DE FIGURAS

Introduo ....................................................................................................................................13

Captulo 1

Antigo Regime, Inquisio e Novo Mundo: uma breve contextualizao

histrica..........................................................................................................................................20

1.1 Estado e Igreja no Antigo Regime.....................................................................................20

1.2 Fazendo o bom combate ....................................................................................................26

1.3 A Igreja, a Lei do Padroado e o Novo Mundo...................................................................30

Captulo 2

Conquista e evangelizao na Amaznia portuguesa: o Santo Ofcio no Estado do

Maranho e Gro-Par ...................................................................................................................33

2.1 A atuao da Igreja na Amaznia portuguesa....................................................................33

2.2 Os mecanismos de controle social da Igreja.......................................................................40

2.3 O Santo Ofcio no Estado do Maranho e Gro-Par: fontes e problemas........................48

Captulo 3 - Do Estado do Maranho Capitania de So Jos do Rio Negro (sculo XVII-

XIX)...............................................................................................................................................58

3.1 A presena do Santo Ofcio nas capitanias do norte...........................................................58

Captulo 4

A ao inquisitorial no Gro-Par............................................................................86

4.1 Das penas inquisitoriais: o modelo jurdico inquisitorial...................................................86

4.2 Anlise dos processos inquisitoriais referentes ao Gro-Par (sculo XVIII) ................91

4.3 Natureza dos delitos analisados........................................................................................103

4.3.1 Os casos de feitiaria e prticas mgicas...............................................................105

a) A histria de Adrio Pereira de Faria e Crescencio de Escobar ................................. 105

b) Alberto Monteiro, Anselmo da Costa, Joaquim Pedro e Domingas Gomes da

Ressurreio: trs ndios e uma mameluca envolvidos nas teias do Santo Ofcio............109

c) Joana Maria e Maria Francisca: pretas escravas na mira do Tribunal do Santo

Ofcio.................................................................................................................................118

4.3.2 O crime de bigamia....................................................................................................120

a) Dois ndios acusados pela Inquisio: a histria de Florncia Martins Perptua e

Igncio Joaquim..........................................................................................................120

b) A histria do ndio Miguel, da ndia Rosaura e do ndio Manoel: trs casos

extraordinrios de absolvio...........................................................................................125

c) Rus rigorosamente punidos pelo Santo Ofcio: o caso do ndio Custdio da

Costa/Silva e da ndia Felcia ..........................................................................................128

4.3.3 Dois casos excepcionais: sacrilgio e fingimento....................................................130

Consideraes Finais..................................................................................................................135

Fontes ..........................................................................................................................................139

Referncias Bibliogrficas ........................................................................................................143

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INTRODUO

Quando comeamos a presente pesquisa, nossa preocupao inicial era compreender de

que maneira ndios, pretos escravos, cafuzos, mamelucos e mulatos1 foram percebidos e tratados

pelo Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio na Amaznia portuguesa. Contudo, a partir do

contato mais intenso com as fontes, percebemos que no seria possvel tratar desta questo sem

que compreendssemos tambm outros fatores, sendo ento necessrio ampliar a nossa

problemtica em pelo menos duas grandes questes: como se deu a ao inquisitorial em nossa

regio durante todo o perodo colonial e qual a natureza dos delitos praticados pela populao que

vivia nesse imenso territrio.

Assim, para poder responder a essas questes, a pesquisa foi delimitada espacialmente na

rea que, durante o perodo colonial, era conhecida genericamente como Estado do Maranho,

territrio autnomo e diferenciado do Estado do Brasil. Esse territrio chegou a compreender em

diferentes momentos as capitanias do Maranho, Gro-Par, Rio Negro (atual Amazonas), Piau,

Cear e outras subordinadas2. Devido a sua amplitude e especificidade, doravante adotaremos o

termo Amaznia Portuguesa para nos referirmos a essa imensa regio.

Quanto ao recorte temporal, optamos por recuarmos nossa prospeco dos dados s

primeiras dcadas do sculo XVII, com o estabelecimento do Estado portugus na regio, que

ocorreu a partir de 1612, e estendermos nossa pesquisa at as primeiras dcadas do sculo XIX,

quando Portugal perdeu sua soberania sobre o territrio.

A historiografia brasileira possui uma significativa produo sobre a atuao da

Inquisio no Brasil, como, por exemplo, os trabalhos de Laura de Mello e Souza, Anita

Novinsky, Ronaldo Vainfas, Snia Siqueira, Luiz Mott, Daniela Calainho e, mais recentemente,

Bruno Feitler e ngelo Adriano de Assis, que so referncias em relao aos estudos sobre o

modelo de funcionamento do Tribunal, o papel da Inquisio enquanto meio de promoo e

ascenso social, os cristo-novos e as prticas judaizantes, os familiares, entre outros temas.

1 Utilizamos aqui a forma como se encontram denominados na documentao, as pessoas denunciadas ao Santo Oficio. 2 Durante o perodo colonial a Amaznia portuguesa passou por vrias reorganizaes espaciais, por fora da necessidade poltico-administrativa, recebendo ao longo desse perodo vrias denominaes, a saber: Estado do Maranho e Gro-Par (1621-1652), Estado do Gro-Par e Maranho (1655-1772) e Estado do Gro-Par e Rio Negro (1772-1823).

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Entretanto, no que diz respeito aos estudos sobre a atuao do Tribunal do Santo Ofcio da

Inquisio no Estado do Gro-Par e Maranho, a historiografia ainda est longe de ter avanado

sobre o tema, uma vez que os poucos estudos existentes privilegiam a anlise do perodo de sua

visitao, tradicionalmente datada de 1763 a 1769, sendo raros aqueles que fazem referncia

fase anterior ou posterior a esse perodo. Isto se verifica porque em relao s fontes,

tradicionalmente os pesquisadores tm baseado os seus estudos quase que exclusivamente no

Livro de Confisses e Denncias da Visitao, publicado por Jos Roberto de Amaral Lapa, em

19783. De fato, esse material, encontrado casualmente em Lisboa no Arquivo Nacional da Torre

Tombo, foi na poca de suma importncia para impulsionar as pesquisas sobre a visitao

inquisitorial ao Gro-Par, at ento desconhecida pelos historiadores. Entretanto, os

conhecimentos produzidos a partir de ento pela historiografia possuem suas limitaes devido

prpria especificidade do respectivo material.

A pesquisa nos documentos produzidos pela ao da Inquisio nos territrios

ultramarinos dificultada pela distncia, uma vez que estes se encontram guardados em Portugal.

Mesmo com a disponibilizao aos historiadores dos inmeros processos inquisitoriais referentes

Inquisio de Lisboa, existentes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, os estudos sobre a

ao inquisitorial sobre o Estado do Gro-Par e Maranho pouco avanaram para alm do

perodo da visitao.

Compreendemos que inicialmente a dificuldade colocada pela distncia do acervo e pouco

tempo para acessar a um grande volume de documentos originais existentes em Lisboa, ainda

pouco organizados, foram durante muito tempo um grande empecilho para romper com essa

perspectiva. Contudo, atualmente, com a reorganizao dos fundos arquivsticos da Torre do

Tombo, sobretudo da Inquisio, a constituio de novos instrumentos de pesquisa, a adoo de

uma nova poltica de acessibilidade aos seus arquivos4, o estabelecimento de parcerias entre

3 LAPA, Jos Roberto do Amaral. Livro da Visitao do Santo Ofcio da Inquisio ao Estado do Gro-Par 1763-1769. Petrpolis: Vozes, 1978. 4 A primeira iniciativa de vulto se deu em julho de 2005, com a criao no Arquivo Nacional da Torre do Tombo do projeto TT On-line , que visava divulgar pela internet as suas principais fontes arquivsticas. Naquela altura, foram disponibilizados mais de 52.500 documentos provenientes de alguns fundos do arquivo e, no que toca Inquisio, de uma base de dados com um catlogo em linha. Em julho 2007, foi criado o Projecto Inquisio de Lisboa on-line , cujo objetivo era o tratamento arquivstico, a conservao e restauro, a digitalizao dos livros, processos, e maos de documentos do subfundo Inquisio de Lisboa do Arquivo Nacional da Torre do Tombo . Em setembro de 2008, iniciou-se a digitalizao de 19.000 processos e 800 livros da Inquisio de Lisboa, o que resultou em dezembro de 2009 na disponibilizao on-line de 19.775 registros descritivos e 2.392.997 imagens.

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instituies brasileiras e portuguesas, todas estas aes iro, em breve, conseguir incentivar uma

significativa e numerosa produo acadmica sobre a temtica.

Nossa pesquisa iniciada em 2007, em meio a estas reformas, no pde desfrutar de todos

os seus atuais benefcios e facilidades. Muito pelo contrrio, precisamos no incio de nosso

trabalho contar com os esforos de projetos pioneiros que visavam reproduo de

documentao sobre a Amaznia colonial5, bem como da generosidade de pesquisadores que

procederam os primeiros levantamentos na documentao inquisitorial sobre a Amaznia

diretamente nos arquivos portugueses6, uma vez que no dispnhamos quela altura de condies

de faz-lo pessoalmente.

Visando comprovar nossas hipteses iniciais, a saber, que o Tribunal do Santo Ofcio

atuou na regio desde o incio do sculo XVII e que o auge de sua atuao ocorreu ainda na

primeira metade do sculo XVIII, partimos para uma avaliao da documentao inquisitorial

processual disponvel na base eletrnica do Arquivo Nacional da Torre Tombo, cujo catlogo

estava acessvel via internet e que iria se constituir nos primeiros passos para a construo de

uma base de dados mais alargada. Para tanto, em nossa pesquisa, delimitamos a busca a

processos e denncias relativas a pessoas que nasceram e/ou viviam nas capitanias do Gro-Par,

Maranho, Piau e So Jos do Rio Negro. Como resultado, conseguimos identificar 162

processos pertencentes Amaznia portuguesa7.

Alm das fontes processuais, trabalhamos igualmente com os cadernos do promotor 8, o

que nos propiciou fazer um quadro geral do nmero de denncias/delitos relativos s pessoas que

viviam nessa imensa regio. Dentre os 124 cadernos existentes no subfundo da Inquisio de

5Refiro-me aqui especificamente ao projeto coordenado pela Prof Dr Marcia Alves de Souza e Mello desenvolvido, entre 2005 e 2006, no qual foram digitalizados vrios processos referentes a ao inquisitorial na Amaznia, no mbito do Ncleo de Pesquisa em Poltica, Instituies e Prticas Sociais (POLIS), da Universidade Federal do Amazonas, ao qual me encontro vinculada como pesquisadora. 6 Gostaramos aqui de agradecer penhoradamente a colaborao da pesquisadora portuguesa Ana Margarida Santos Pereira, que nos cedeu gentilmente um levantamento preliminar dos cadernos do Promotor sobre a Amaznia, elaborado pela pesquisadora. Bem como, a ajuda inestimvel da Dr. Mrcia Eliane Mello, que nos facilitou o acesso s cpias dos diversos cadernos do promotor, sobre os quais foi possvel elaborar os primeiros dados desta pesquisa. 7 Queremos ressaltar que esse levantamento teve incio em 2008 e foi concludo em julho de 2009. Em face de recente reorganizao dessa documentao, possvel que a disponibilizao de novos dados possa modificar algumas informaes quantitativas apresentadas nesse trabalho. Contudo, acreditamos que os atuais resultados no iro ser afetados na sua anlise geral. 8Livro manuscrito organizado em cadernos costurados ao longo da dobra e protegidos por uma encadernao. Neste caso, os documentos que formavam os cadernos eram as diversas denncias originais enviadas ao Tribunal do Santo Ofcio. Sobre a natureza das fontes inquisitoriais trataremos mais adiante no captulo 2.

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Lisboa9, foram identificados, com dados pertencentes rea delimitada para este estudo, um total

de 63 cadernos10, dos quais tivemos acesso a cpias de 56 cadernos, ou seja, conseguimos

trabalhar com mais de 88% do material disponvel, o que torna, portanto, significativos e

representativos os dados levantados e apresentados nesta pesquisa11. Alm disso, completando as

informaes disponveis nos livros da Inquisio, utilizamos tambm os dados de alguns

cadernos do nefando e de solicitante , informados atravs dos estudos publicados pelo

pesquisador Luis Mott.

Como em nossa pesquisa a preocupao principal era compreender como se deu a

atuao da Inquisio na Amaznia Portuguesa, tendo por base a natureza dos delitos praticados

na regio, completamos os dados com um levantamento especfico das confisses e denncias

registradas no Livro da Visitao12.

A partir da coleta dos dados disponveis nas fontes coligidas, elaboramos um quadro geral

das denncias, no qual tivemos a preocupao em realizar um cruzamento das informaes,

usando como critrio a excluso daqueles indivduos cujas denncias se repetiam no mesmo ano,

para nos aproximarmos de um resultado mais fidedigno da realidade. Consideramos assim os

dados apenas dos casos de indivduos que foram denunciados no mesmo ano, mas por delitos

diferentes e aqueles que foram denunciados pelos mesmos delitos, mas em anos diferentes.

Para uma melhor anlise, foram estabelecidos quatro grandes recortes temporais que

resultaram em um conjunto de dados analisados posteriormente assim organizados: uma primeira

fase, que vai de 1617 a 1700; uma segunda fase, antecedendo ao perodo da visitao, que vai de

1701 a 1762; uma terceira fase que ocorre durante a visitao de 1763 a 1773; e por fim, uma

quarta fase, que se d depois da visitao, entre 1774 a 1805. As datas balizas da periodizao

9 De acordo com o instrumento de descrio documental, publicado em 1990, constavam enumerados, para os sculos XVII e XVIII, 135 cadernos e 02 cadernos ficaram sem numerao especfica, totalizando 137 cadernos do promotor para a Inquisio de Lisboa. Entretanto, desse total, encontram-se ainda desaparecidos 13 cadernos, restando localizados no acervo 122 cadernos enumerados mais os dois sem numerao, acima referidos. FARINHA, Maria do Carmo Jasmins Dias.

Os Arquivos da Inquisio. Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1990. p. 176-180. (Srie Instrumentos de Discrio Documental). 10 PEREIRA, Ana Margarida Santos. Levantamento dos livros da inquisio referentes ao Par e Maranho. Lisboa, mimeo. 2002. 11 Em agosto de 2009, com o apoio do Projeto de pesquisa Amaznia Portuguesa documentos coloniais, financiado pelo CNPq, estivemos em Belm pesquisando no Centro de Memria da Amaznia, onde foi possvel completar o nosso levantamento dos cadernos do promotor, acrescentando os dados de 13 cadernos disponveis naquele acervo em microfilme. Agradecemos ao diretor Dr. Antonio Otaviano Vieira Jnior que nos facultou o acesso ao material ainda em tratamento, existente no Centro de Memria para a realizao de nossa pesquisa. 12 LAPA, Jos Roberto do Amaral. Livro da Visitao do Santo Ofcio da Inquisio ao Estado do Gro-Par.

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aqui utilizadas foram definidas a partir da datao das confisses/denncias catalogados na

pesquisa.

Dessa maneira, resultou do levantamento feito na documentao entre 1617-1805 um total

de 516 indivduos denunciados ao Santo Ofcio e na identificao de 556 delitos13. Em relao

aos delitos praticados pela populao que habitava a regio, no geral, sobressaram os casos

referentes feitiaria e prticas mgicas, seguidos de bigamia, blasfmia e sacrilgio. Tal

resultado nos possibilitou ter uma viso mais ampliada da atuao do Tribunal na Amaznia

portuguesa.

Desconhecemos, at ento, algum estudo que tenha colocado em perspectiva um nmero

to expressivo de pessoas denunciadas para a regio. Bem como, nunca havia sido realizado

antes o cruzamento de um universo to amplo, espacial e temporalmente, quanto diversificado de

fontes. Se por um lado, temos conscincia das crticas que podem advir dessa metodologia, por

outro, tentamos nos cercar de precaues que constitussem em um caminho seguro para a anlise

dos dados.

O objetivo do nosso trabalho compreender o funcionamento da Inquisio, enquanto

rgo da vigilncia da f, agente do poder rgio e instituio pertencente Igreja,

especificamente em relao natureza de sua atuao no Estado do Maranho e Gro-Par.

Partimos do pressuposto que, para compreendermos o impacto dessa atuao, os historiadores

devem se despir dos parmetros que tradicionalmente norteiam suas pesquisas sobre as visitas

realizadas em outras partes da Amrica portuguesa, cuja ao inquisitorial se deu, espacial e

temporalmente, de forma diferenciada.

Em nossa anlise, privilegiamos o seu carter disciplinador, visando compreender como

se desenvolveu o processo de institucionalizao de normas e valores no Estado do Maranho e

Gro-Par que no se restringiu ao perodo da visitao, ao contrrio, teve incio desde meados

do sculo XVII, juntamente com o processo de conquista e colonizao da regio.

A preocupao especfica com o seu carter disciplinador justifica-se na medida em que

uma das funes da Igreja era dar unidade ao Imprio Portugus atravs da religio. Da a

importncia de se compreender a maneira como ocorreu o processo de disciplinamento exercido

13 O nmero de delitos ser sempre o superior ao nmero de denncias, porque ocorria muitas vezes de ser a mesma pessoa denunciada por um ou mais delitos diferentes.

18

pela Igreja, atravs de uma de suas principais instituies, o Tribunal do Santo Ofcio, com a

justificativa de levar a civilizao e a salvao aos gentios.

O processo de evangelizao empreendido pela Igreja para contribuir com a difuso do

cristianismo e, desse modo, garantir a manuteno da integridade religiosa do Imprio Colonial

Portugus, resultou em conflitos e na criao de comportamentos que violavam as normas do

sistema social, exigindo desta, medidas disciplinares para combater essas atitudes.

Dessa maneira, propomo-nos a identificar os mecanismos pedaggicos impostos pelo

Tribunal a ndios, negros e mestios e analisar at que ponto suas sentenas foram influenciadas

pela percepo que seus agentes tinham da populao que habitava a regio.

Ao mesmo tempo, compreendemos que esse processo de institucionalizao ocorre de

vrias maneiras, positiva e negativamente, de forma violenta ou sutil, mas principalmente que

necessita de uma coero externa para que outros mecanismos (internos) possam existir. Ou seja,

a atuao da Inquisio possui um significado muito mais amplo do que aquele tradicionalmente

destacado pela historiografia, cujas interpretaes, muitas vezes, esto recheadas de preconceitos

e de concluses que, em geral, desconsideram o contexto histrico em que emergiu e atuou o

Tribunal.

Dessa forma, acreditamos que o nosso estudo possa contribuir para uma melhor

compreenso sobre a ao inquisitorial e a natureza dos delitos praticados, bem como sobre a

prpria natureza da visitao e o papel do Tribunal no contexto da poltica regalista de Sebastio

Jos de Carvalho e Melo, marqus de Pombal, principalmente no que diz respeito a ndios, negros

e mestios.

A dissertao encontra-se dividida em quatro captulos. No primeiro captulo, expomos

algumas consideraes gerais acerca do direito e da justia no Antigo Regime em Portugal,

enfatizando a estrutura disciplinar da Igreja, a dupla natureza do Tribunal do Santo Ofcio da

Inquisio e suas caractersticas bsicas; em seguida, abordamos sobre os medos escatolgicos do

fim do Medievo, destacando o impacto da descoberta do Novo Mundo para os europeus, o papel

do Tribunal do Santo Ofcio enquanto guardio da f crist e sua importncia para a manuteno

da ordem social estabelecida; e, por ltimo, caracterizamos o processo de conquista e colonizao

da Amrica, especificamente o papel da Igreja na conquista das almas e dos corpos daqueles que

viviam no Novo Mundo.

19

No segundo captulo, fazemos uma breve contextualizao histrica acerca do processo de

conquista, colonizao e evangelizao da Amaznia Portuguesa, na qual destacamos a

importncia e a maneira como se deu a atuao da Igreja na regio, expondo acerca dos

mecanismos de controle social exercidos pela Igreja no imenso imprio ultramarino portugus. E,

por fim, tratamos acerca da atuao do Santo Ofcio no Estado do Maranho e Gro-Par desde o

sculo XVII, no qual apresentamos as fontes trabalhadas e a metodologia adotada.

No terceiro captulo, apresentamos os resultados de nossa pesquisa. Defendemos que o

Santo Ofcio efetivamente passou a atuar naquele estado desde meados do sculo XVII at o

incio do sculo XIX, agindo de forma mais intensa na primeira metade do sculo XVIII. Alm

disso, estabelecemos uma nova datao para a Visitao ao Gro-Par, compreendendo o perodo

de 1763 a 1773.

No quarto e ltimo captulo, apresentamos a anlise de 17 processos referentes a ndios,

negros e mamelucos, todos pertencentes ao sculo XVIII. Enfatizamos, em nossa anlise, as

sentenas proferidas pelo Tribunal, em especial, as suas justificativas para as referidas penas.

Destacamos principalmente a existncia de um significativo padro inquisitorial das sentenas

proferidas pelo Tribunal em 13 processos analisados, todos referentes ao perodo da visitao.

Esse padro tem por base dois tipos de justificativa: a qualidade das culpas e a qualidade do ru.

Compreendemos que esses dois aspectos foram determinantes na definio das sentenas, ao

mesmo tempo, que revelam todo o preconceito dos agentes inquisitoriais em relao populao

local.

20

Captulo I

Antigo Regime, Inquisio e Novo Mundo:

uma breve contextualizao histrica.

1. 1 - Estado e Igreja no Antigo Regime

O direito no Antigo Regime em Portugal caracterizava-se pela existncia de um

complexo universo normativo, abrangendo instncias morais e religiosas, que se constituam na

mentalidade e nas prticas sociais do mundo portugus. Da a importncia do papel da Igreja

enquanto instituio que possua prerrogativas jurisdicionais, tanto na esfera religiosa quanto na

temporal.

A Igreja possua muitos privilgios polticos, tendo at mesmo mais autonomia de

salvaguardar sua autoridade em Portugal do que na Espanha. Em relao ao seu estatuto poltico-

institucional, possua alguns privilgios, tais como, isenes em relao ao direito comum do

reino, autonomia jurisdicional, no que diz respeito sua disciplina interna, e certas prerrogativas

jurisdicionais em matrias no religiosas e disciplinares14.

O primeiro aspecto, que trata das isenes da Igreja e de seus membros em relao ao

direito comum do reino, baseia-se no princpio jurdico de que a jurisdio dos prncipes

careceria de jurisdio espiritual, de tal forma que no poderiam exercer seu poder temporal

sobre instituies no temporais, como a Igreja e o clero. Ao mesmo tempo, existia uma corrente

dominante em Portugal no sculo XVII que, por sua vez, defendia o princpio de que esta iseno

poderia ser alterada ou diminuda nomeadamente por concordata ou costume prescrito ou aceite

pela Igreja 15. Segundo este princpio, nas matrias de natureza eclesistica, os religiosos no

estavam sujeitos jurisdio real, mas nos assuntos de ordem temporal se aplicava aos

eclesisticos a lei do prncipe ou o estatuto local, desde que este no ofendesse gravemente o

14 HESPANHA, Antnio Manuel. As vsperas do Leviathan. Instituies e poder poltico em Portugal

sculo XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. p. 325. 15 HESPANHA, Antnio Manuel. As vsperas do Leviathan. p. 325.

21

direito cannico nem oprimisse o ofcio eclesistico 16. A Igreja tambm possua privilgio de

foro, como o reconhecimento do direito de asilo em determinados locais em que a justia secular

no podia prender foragidos.

Em relao s matrias de f e disciplina interna dos crentes, a Igreja tinha autonomia

jurisdicional e, em geral, possua influncia suficiente para suscitar uma imediata obedincia dos

fiis aos seus preceitos. Caso isso no acontecesse, dispunha de meios disciplinares para

combater qualquer tipo de resistncia. De acordo com Antnio M. Hespanha,

Essa esfera abarcava tanto a moral individual como a moral social, integrando os comportamentos sexuais, as crenas e as atitudes culturais, as prticas polticas e a deontologia comercial, o agir do dia-a-dia (ir missa, observar os dias santos e de preceito, confessar-se e comungar, batizar os filhos, pagar as prestaes e esmolas devidas Igreja)17.

No que diz respeito sua organizao, a Igreja era constituda pelo clero secular18, o clero

regular19 e as ordens militares20. A estrutura disciplinar responsvel pelo controle sobre os fiis e

os religiosos era formada pelos tribunais eclesisticos, cuja atuao era intensificada pelo Santo

Ofcio. Cada bispado possua um tribunal eclesistico, que ficava sob a jurisdio do vigrio-

geral, delegada pelo bispo, cuja ao ocorria atravs das visitaes episcopais.

No que diz respeito s prerrogativas jurisdicionais, a Igreja tambm possua jurisdio

sobre determinadas matrias e relaes jurdicas, que independiam do estado religioso ou leigo

dos sujeitos envolvidos nos crimes21. Eram os chamados casos de foro misto , que abrangiam a

16 Nesse perodo, os clrigos deveriam contribuir para a satisfao das necessidades pblicas. De acordo com Hespanha, os clrigos estavam obrigados ao servio militar defensivo e ao auxlio no caso de calamidades pblicas, a obedecer aos estatutos exigidos pela utilidade pblica, e a respeitar, embora com limitaes, a proibio de usar armas e as leis de almotaaria . HESPANHA, Antonio Manuel. As vsperas do Leviathan, p.326. 17 HESPANHA, Antonio Manuel. As vsperas do Leviathan, p. 333. 18 O clero secular compe a Igreja hierrquica, organizada canonicamente, que no Antigo Regime tambm estava submetida ao poder rgio. Mais adiante, trataremos da atuao do clero secular na Amaznia portuguesa. 19 As ordens regulares so constitudas por diversas congregaes e suas origens remontam ao Medievo. Com a expanso ultramarina, Portugal apoiou-se nas ordens religiosas como a da Companhia de Jesus, Ordem de So Francisco, Ordem do Carmo, de So Domingos, entre outras, para exercerem atividade missionria no Novo Mundo. No segundo captulo, trataremos sobre a atuao das ordens regulares na Amaznia portuguesa. 20 As ordens militares possuam muitos privilgios jurisdicionais. No Antigo Regime, as ordens militares existentes em Portugal eram a Ordem de Cristo, a Ordem de S. Bento de Aviz, a Ordem de Santiago e a Ordem do Hospital de S. Joo de Jerusalm (ou de Malta, a partir de 1530) . HESPANHA, Antnio Manuel. As vsperas do Leviathan, p. 339. 21 HESPANHA, Antonio Manuel. As vsperas do Leviathan., p. 334.

22

blasfmia22, o sortilgio23, o perjrio24, o concubinato, o adultrio pblico, o lenocnio25, o

incesto, a sodomia, o sacrilgio26, a simonia27 e a manuteno de casas de jogo28.

A origem dessa estrutura disciplinar relaciona-se com o surgimento da heresia do

catarismo ou movimento dos albigenses29, que, entre outras coisas, rejeitava os princpios da

Igreja e tambm as instituies bsicas da vida civil, como o matrimnio, a autoridade

governamental e o servio militar. No incio do sculo XII, o movimento ctaro, j em expanso,

passa a representar uma ameaa Ordem crist do Ocidente medieval, devendo, portanto, ser

reprimido. O que resultou na instituio da Inquisio Episcopal, criada em meados do sculo

XII, atravs de um decreto estabelecido pela Assemblia da cidade de Verona, na Itlia. A partir

daquele momento, o poder civil e eclesistico passaram a atuar juntos. Com isso, os hereges no

eram s denunciados, mas tambm procurados (inquiridos) pela coroa e a inquisio. At ento, o

juiz no empreendia a procura de criminosos e sua atuao s ocorria aps a apresentao de uma

denncia30.

Como resultado desse processo, no final do sculo XII, o Papado se preocupou em

nomear religiosos com plenos poderes para combater as heresias onde quer que existissem.

Incumbncia esta que foi destinada aos dominicanos, em 1233, pelo Papa Gregrio IX. Institua-

22 Fazer injria a Deus, ou aos Santos com palavras mpias, e sacrlegas . (BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio portugus e Latino. Coimbra: Real Colgio das Artes, 1712-1728. 8v. p. 130). 23 um secreto ou manifesto recurso ao demnio, para por a sorte de seu favor, e conselho em o que se deseja saber; como quando um por sorte anda investigando quem o roubou, ou por outra coisa, que toca a adivinhar, ou tambm se por sortes inquirisse o que deve seguir em algum negcio . (BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio portugus e Latino. p. 734). 24 O crime de perjurar. faltar f, violar as leis da natureza, e de toda a sociedade humana, tirar do mundo o comrcio e exterminar a Religio . (BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio portugus e Latino. p. 433). 25 Propriamente o infame comrcio dos alcoviteiros, e corruptores da mocidade . (BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio portugus e Latino. p. 79). 26 Injria, feita pessoa ou coisa, ou lugar sagrado . (BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio portugus e Latino. p. 425). 27 Cometem o pecado de simonia os que compram, ou vendem por preo temporal coisas espirituais, ou anexas ao espiritual . (BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio portugus e Latino. p. 648). 28 HESPANHA, Antonio Manuel. As vsperas do Leviathan, p. 334-338. 29 Raphael Bluteau caracteriza esse movimento como: Certos hereges discpulos de Pedro Valdo, que dos montes do Delsinado, e de Saboya, passaram para a Provncia de Languedoc, e fizeram acento na Diocese da Cidade de Albi, donde tomaram o nome de Albigenses. Renovaram esses hereges os erros de Maniches, e outros ainda mais ridculos, e tiveram tantos to obstinados, e to poderosos sequazes, que pelo espao de mais cinqenta anos, a saber desde o ano de 1176, que foram descobertos, at o de 1228, em que Raimundo o moo se conciliou com So Lus, e com a igreja, foram causa de muitas mortes e estragos;... (BLUTEAU, Raphael. Vocabulrio portugus e Latino. p. 212-213). 30 FALBEL, Nachman. Heresias medievais. So Paulo: Perspectiva, 1977. p. 36-59. Para aprofundar o tema sobre o catarismo recomendamos a leitura da bela obra de Emmanuel Le Roy Ladurie, Montaillou: povoado occitnico 1294-1324 (So Paulo: Companhia das Letras, 1997) ; alm do verbete heresia encontrado no Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval, organizado por Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt,. (Dicionrio Temtico do Ocidente Medieval. So Paulo: Imprensa Oficial/EDUSC, 2002.)

23

se nesse momento a Inquisio, cuja atuao acontecia independentemente do bispo ou da

diocese em que se encontrava31.

Em Portugal, a Inquisio s foi estabelecida no sculo XVI e nunca foi uma instituio

meramente eclesistica, ao contrrio, firmou-se ao longo da histria com o duplo estatuto de

tribunal eclesistico e tribunal da Coroa 32. De acordo com Antnio Hespanha, este modelo de

integrao da Igreja com o sistema de poder que se processou em Portugal ocorreu da seguinte

maneira,

No plano simblico, a preeminncia da coroa, como caput communitatis, salvaguardada pela garantia da proteo rgia, pelo beneplcito, pelo padroado rgio e, finalmente, pelo reconhecimento da superioridade temporal do rei. (...). Mas, apesar de tudo isto, no plano menos vistoso, mas no menos efetivo, da jurisdio

isto , da prtica quotidiana do poder

o domnio de autonomia e particularismo da Igreja mantinha uma enorme importncia33.

31 Em seu processo de criao, a Inquisio teve grande apoio popular. Concordamos com Grigulevich que faz a seguinte observao ao tratar das origens da Inquisio: En realidad, la Inquisicin no se cre para lograr grandes efectos , ni son enigmticas las causas de sua aparicin, ya que radican en la propria esencia social de la religin cristiana y de la Iglesia, que presume encontrarse por encima de las clases y apela a las masas desheredadas

que constituyen la generalidad de los creyentes -, pero en la prctica sirve a los intereses de las clases dominantes . GRIGULEVICH, I. Historia de la Inquisicin. Moscou: Editorial Progreso, 1976, p. 51. 32 Ana Maria Homem Leal de Faria caracteriza o duplo estatuto do Tribunal do Santo Ofcio da Inquisio da seguinte maneira: Efectivamente, se os seus poderes eram exercidos por delegao papal e os seus juzes pertenciam ao estado eclesistico, o inquisidor geral era proposto pelo rei, os membros do Conselho Geral eram nomeados aps consulta rgia e o monarca era regular e sistematicamente informado sobre as actividades do Santo Ofcio. Este duplo estatuto conferia-lhe uma estratgia relativamente autnoma no seio da Igreja, reclamando a sua ligao directa ao rei . FARIA, Ana Maria Homem Leal de. Uma teima : do confronto de poderes ao malogro da reforma do Tribunal do Santo Ofcio. A suspenso da Inquisio Portuguesa (1674-1681). In: BARRETO, Lus Filipe Soutos. Inquisio Portuguesa. Tempo, Razo e Circunstncia. Lisboa- So Paulo: tipografia Lousanense, LDA, 2007. P. 77-78. 33 HESPANHA, Antonio Manuel. As vsperas do Leviathan, p. 343.

24

Figura 1: Inquisio em Portugal. Gravura a cobre intitulada "Die Inquisition in Portugall" por Jean David Zunner retirada da obra "Description de L'Univers, Contenant les Differents Systemes de Monde, Les Cartes Generales & Particulieres de la Geographie Ancienne & Moderne." por Alain Manesson Mallet, Frankfurt, 1685 (Da coleco privada do Dr. Nuno Carvalho de Sousa - Lisboa).

A Inquisio foi instalada em Portugal (figura 1), atravs da Bula Papal de Vinte e trs de

maio de 1536, sendo que D. Joo III tinha um duplo motivo ao implantar o Tribunal do Santo

Ofcio: primeiro, buscava obter maior controle sobre os bispos e a Igreja em Portugal34,

implantando-o de forma centralizada (vertical) desde o incio, e caracterizando-se por uma quase

34 Para Pedro Campos, a instalao do Santo Ofcio em Portugal representou um obstculo a livre ao do papado. O Tribunal constitua uma barreira, na medida em que o Inquisidor Geral, nomeado pelo rei, exercia um poder superior ao dos bispos

refreando intromisses indesejveis da Santa S, atravs do episcopado. E a Coroa conseguiu tambm, um instrumento para a centralizao do poder real, bem como para um controle mais efetivo do pas. O Tribunal era um novo mecanismo de integrao e controle social

eficientssimo, pois agia tanto no topo quanto na base da sociedade... CAMPOS, Pedro Marcelo Pasche de. Inquisio, Magia e Sociedade: Belm do Par, 1763-1769. 1995. Dissertao (Mestrado em Histria). UFF. Niteri. p. 06.

25

completa independncia de ao em relao Cria romana 35. Segundo, teve como pblico-alvo

os cristo-novos36, objeto de justificativa para a sua prpria criao.

Entretanto, seu campo de atuao foi ampliado a partir das diretrizes tomadas pelo

Conclio de Trento (1545-1563), pois, a partir daquele momento, passou tambm a abarcar os

cristo-velhos, incluindo delitos como a blasfmia, a bigamia, a fornicao, a sodomia, a

feitiaria, ou seja, todo um universo de prticas que se chocava com as diretrizes normatizadoras

que a Igreja procurava implantar. Como bem afirma Ronaldo Vainfas, o Tribunal do Santo Ofcio

nesse perodo assumiu os mesmos objetivos da Contra-Reforma de:

conter o avano do protestantismo na Pennsula, combater os saberes eruditos que extrapolassem os dogmas do catolicismo e perseguir as condutas e religiosidades populares irredutveis aos preceitos da Igreja. nesse contexto que se enquadra a perseguio das prticas mgicas, da feitiaria, das blasfmias, de moralidades consideradas heterodoxas e de opinies e palavras tidas por errneas em matria de f37.

Em outras palavras, a partir deste momento, o Santo Ofcio passou tambm a se preocupar

com comportamentos suspeitos de heresia, atuando sobre indivduos que por livre vontade

escolhiam viver de forma contrria norma estabelecida pela Igreja, tendo incio a perseguio

aos bgamos e sodomitas, alm de considerar determinadas prticas religiosas como pactos e

possesses diablicas.

De acordo com Francisco Bethencourt, a estrutura do Tribunal do Santo Ofcio da

Inquisio era:

liderada por um conselho geral composto de trs, cinco ou mesmo sete membros (o nmero varia ao longo do tempo) e uma estrutura intermediria de tribunais de distrito polarizada por dois ou trs inquisidores assessorados por uma poderosa mquina burocrtica com controle sobre uma extensa rede local38.

35 BETHENCOURT. Histria das Inquisies: Portugal, Espanha e Itlia

sculos XV-XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 10. 36 Os cristos novos constituem-se nos judeus que foram obrigados a se converterem ao catolicismo pelo decreto de D. Manuel, rei de Portugal, em 1497, passando a serem designados dessa maneira para serem distinguidos dos cristo-velhos. Por representarem uma ameaa f catlica no reino de Portugal, os cristo-novos constituram-se no principal alvo de ao do Tribunal do Santo Ofcio. Nas visitas inquisitoriais realizadas no Brasil, com exceo a do Gro-Par, sobressaram os delitos referentes ao judasmo e s prticas judaizantes deste grupo. 37 VAINFAS, Ronaldo. Excluso e estigma: moralidades e sexualidades na teia da Inquisio. In: ASSIS, ngelo Adriano F. de (org.). Desvelando o poder. Histria de Dominao: Estado, Religio e Sociedade. Niteri: Vcio de Leitura, 2007. p. 16. 38 BETHENCOURT. Histria das Inquisies, p. 29.

26

Toda essa organizao autnoma e centralizada tinha o propsito de controlar o processo

decisrio principalmente das sentenas inquisitoriais39. Em Portugal, foram instalados pela ordem

de criao os seguintes tribunais: o de Lisboa (1563-1821), o de vora (1563-1821), o de Lamego

(1541-1546), o de Tomar (1541-1543), o do Porto (1541-1543), o de Coimbra (1541-1547; 1565-

1821) e o de Goa (1560-1812), abrangendo assim todo o Imprio portugus, sobretudo nas

periferias dos tribunais de distrito. O Tribunal de Lisboa compreendia as dioceses de Lisboa e

Leiria, bem como os territrios portugueses no Atlntico

as ilhas, o Brasil, as fortalezas e

entrepostos na costa noroeste e ocidental da frica 40.

1.2 - Fazendo o bom combate

Na opinio de Laura de Mello e Souza, tornou-se lugar comum entre os historiadores a

constatao do papel da religio, enquanto fornecedora de mecanismos ideolgicos , para

justificar a conquista e colonizao do Novo Mundo. Entretanto, destaca que poucos se

preocuparam em esmiuar o mundo complexo da religiosidade desse perodo. Nesse sentido,

faz a seguinte observao Nunca demais lembrar que o fim da Idade Mdia e os incios da

poca Moderna caracterizaram-se por uma religiosidade funda, exacerbada, cheia de angstia

41.

Essa angstia qual se refere a historiadora diz respeito aos medos escatolgicos do fim

do Medievo que, segundo Jean Delumeau, so essenciais para a compreenso do nascimento do

mundo moderno. Por sua vez, Delumeau afirma que os europeus desde o sculo XIII foram

assolados por grandes calamidades, entre elas, a Peste Negra, a Guerra dos Cem Anos, o avano

turco, o Grande Cisma, as Cruzadas, a decadncia moral do Papado, a secesso protestante, alm

de inmeras sublevaes, massacres e guerras42.

Em contrapartida, os homens da poca procuraram causas globais , principalmente de

natureza teolgica, que explicassem os terrores que estavam vivenciando. Essas explicaes os

remeteram a dois grandes temores da poca: a vinda do anticristo e o juzo final, gerando, com

39 BETHENCOURT. Histria das Inquisies. p. 38. 40 BETHENCOURT. Histria das Inquisies. p. 53. 41 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1986.p.33. 42 DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente 1300-1800, uma cidade sitiada. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 205

27

isso, um pessimismo geral sobre o futuro

fsico e moral

da humanidade 43. Esse medo teve

ampla difuso entre as mais diversas camadas da populao europeia, cuja imaginao voltou-se

principalmente para as desgraas que deveriam preceder esses dois eventos.

No que diz respeito a Portugal, Jean Delumeau destaca que a nfase recaiu na

culpabilidade pessoal dos indivduos, que fizeram a opo por se afastar dos ensinamentos de

Jesus, preferindo em seu lugar a busca da felicidade terrestre . Para a hierarquia eclesistica,

esses desvios necessitariam ser combatidos pela Igreja de maneira a reconduzir os fiis para o

bom caminho 44. Dessa maneira, a Inquisio surge com o objetivo de conter as heresias, os

apstatas de Cristo, que por livre vontade resolveram se afastar da ortodoxia catlica45.

A Inquisio convm repetir, era um tribunal de f , encarregado por princpio de averiguar e descobrir os desvios da alma, escolhas conscientes de caminhos opostos aos dogmas oficiais. A Inquisio cuidava, em suma, de heresias, cujo significado etimolgico exatamente escolha. O herege, ru da Inquisio, era o indivduo que escolhera e isolara de uma verdade global uma verdade parcial, obstinando-se na crena errnea46.

Assim, a Inquisio, no Perodo Moderno, constitui-se como a guardi da f crist ,

combatendo toda e quaisquer dissidncias e reinterpretaes47. E como seria o cristo ideal, nesse

mundo moderno, rodeado de calamidades e incertezas? Sobre este aspecto, Carlos Andr Macedo

Cavalcanti afirma que todo cristo deveria ser autovigilante, dominar os seus prprios impulsos,

evitando assim o domnio de sat sobre si mesmo48.

43 DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente. p. 205-206. 44 DELUMEAU, Jean. Histria do Medo no Ocidente. p. 211. 45 Segundo as Ordenaes Filipinas, Livro V, Ttulo I, que trata dos hereges e apstatas, o crime de heresia constitui-se como o ato de afirmar, crer ou concordar com algo dito ou feito contra Deus e a Santa Madre Igreja. O hertico era, portanto, a pessoa que cria ou sustentava com tenacidade um sentimento considerado hostil Igreja. O hertico, nas ordenaes aquele que, sendo batizado, afasta-se da ortodoxia catlica . In: LARA, Silvia Hunold (org.) Ordenaes Filipinas. Livro V. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. pp.55-57. 46 VAINFAS, Ronaldo. Excluso e estigma... p. 20. 47 Para a Igreja, os hereges representavam um perigo social. De acordo com Geraldo Pieroni: Todos eles representavam um perigo para a unidade social, poltica e religiosa do Reino, orgulhoso do seu catolicismo romano. As heresias que esses criminosos propagavam podiam corromper, como um verme fruta, a ordem virtuosa do Reino, a qual era estabelecida pelo rei e reforada pelos inquisidores. A ao da Inquisio constitui, em sntese, uma panacia para os males sociais . (PIERONI, Geraldo. Os excludos do reino: a Inquisio portuguesa e o degredo para o Brasil Colnia. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2006. p. 18) 48 CAVALCANTI, Carlos Andr Macdo. Conceituando o intolerante: o tipo ideal de inquisidor moderno. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno & LIMA, Lana Lage da Gama. (orgs.). A inquisio em xeque. Temas. Controvrsias. Estudos de caso. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006, p. 138.

28

Portanto, em pleno Antigo Regime, no perodo compreendido entre o final do sculo XV

at meados do sculo XVII, o medo constitua-se numa realidade presente na sociedade em

geral, vivida em seu cotidiano. Para Carlos Cavalcanti, a especificidade da ao inquisitorial est

justamente em incorporar este medo e utiliz-lo como instrumento central para sensibilizar as

almas por meio do temor autoridade terrena 49. Dessa forma, afirma que enquanto os rus e

seus pecados e heresias inspiraram o medo, o tribunal do Santo Ofcio ensinou o temor... 50,

recorrendo ao castigo e catequizao para reintegrar sociedade catlica os seus dissidentes.

Por isso mesmo, essa fase inquisitorial conceituada pelo autor como a fase da Pedagogia do

Medo.

Combater o mundo da heterodoxia, eis o principal objetivo da Inquisio. Mas por que a

necessidade de criar um tribunal especfico para exercer essa funo? Geraldo Pieroni justifica

que,

Os motivos essenciais da legitimidade do tribunal inquisitorial organizavam-se em torno da sacralidade de sua funo, da inspirao divina de sua ao, de sua utilidade espiritual, social e poltica. Para os juzes da f, era evidente que sem o Santo Ofcio o mundo cristo seria impregnado de heresia, e, portanto, regido pelas foras malignas. A heterodoxia manchava a f e suscitava a confuso de idias, o que podia provocar a desagregao do corpo mstico de Cristo: a Igreja51.

Dessa forma, afirma o autor, entre o sculo XIII e o XVIII, quase todos os crimes eram

punidos com bastante rigor pelos tribunais seculares, eclesisticos e inquisitoriais, no admitindo

ou tolerando, assim, quase nenhum tipo de desvio. Em geral, os criminosos eram condenados

pena de morte (figura 2), mutilao, aos trabalhos forados, ao degredo e ao encarceramento.

Isso porque todas as legislaes do Antigo Regime portugus consideravam os pecados como

crimes e quem os cometiam se opunham ordem estabelecida por Deus e pelo rei 52.

49 CAVALCANTI, Carlos Andr Macdo. Conceituando o intolerante... p. 140. 50 CAVALCANTI, Carlos Andr Macdo. Conceituando o intolerante... p. 140. 51 PIERONI, Geraldo. Os excludos do reino. p. 18. 52 Geraldo Pieroni afirma que: Numa poca em que a religio estava profundamente consolidada em Portugal e em toda a Pennsula Ibrica, os delitos contra o catolicismo no podiam passar impunes. A Igreja associou-se ao trono na luta contra as ameaas sociais, polticas e religiosas da poca. Todos os reis e prncipes deviam, entre outras misses, fazer justia, sobretudo em relao aos pecados e s faltas cometidas contra o Senhor Deus . PIERONI, Geraldo. Os excludos do reino. p.38.

29

Figura 2: Execuo de condenados pela Inquisio, no Terreiro do Pao, em Lisboa. (sc. XVIII). www.planetaeducacao.com.br/.../inquisicao_01.jpg

considerando esse contexto que devemos perceber o real significado da descoberta da

Amrica e de uma nova humanidade para a Europa naquele perodo. Segundo Jean Delumeau,

esses dois eventos tiveram um impacto muito grande e foram compreendidos como um sinal de

que o reino dos santos estava prximo ou o que o fim dos tempos no tardaria 53.

Em outras palavras, os medos vivenciados pelos homens desse perodo resultaram num

assombro, principalmente em relao aos povos que viviam no Novo Mundo, cuja alteridade e

diversidade foraram a uma reconstruo da identidade crist ocidental, ao mesmo tempo em que

levaram a um processo de animalizao e demonizao desses povos. Da a necessidade de

catequiz-los, visando assim a salvao de suas almas. Sobre esse aspecto, Laura de Mello e

Souza destaca:

Se a descoberta da Amrica colocara os europeus diante de um outro que o negava e o justificava

era o estado de natureza que conferia identidade ao estado de cultura -, era o espao do paganismo e da idolatria que dava sentido ao catequtica -, tal feito acarretara igualmente o desabamento, sobre o Velho Continente, de seus demnios internos, expusera seus nervos e suas entranhas54.

53 DELUMEAU, Jean. Histria do medo no Ocidente. p. 213. 54 SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlntico: demonologia e colonizao: sculos XVI-XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 41.

http://www.planetaeducacao.com.br/.../inquisicao_01.jpg

30

1.3

A Igreja, a Lei do Padroado e o Novo Mundo.

Ao tratar da Igreja no contexto da expanso ibrica, Charles Boxer exps claramente a

unio estreita e indissolvel entre a Cruz e a Coroa , estabelecida atravs do Padroado Real, que

se constitua numa combinao de direitos, privilgios e deveres concedidos pelo papado

Coroa portuguesa, como patrona das misses catlicas e instituies eclesisticas na frica, sia

e Brasil 55.

Essa aliana caracterizou-se pelo estabelecimento de uma srie de privilgios que, na

prtica, fez com que os membros do clero fossem tratados como simples funcionrios da

Coroa , resultando assim na subordinao da Igreja ao Estado, com exceo dos assuntos

relativos aos dogmas e doutrina. Em linhas gerais, a conquista de novos territrios e da

populao amerndia no Novo Mundo foi justificada sendo para Deus e para o rei de Portugal .

A funo da Igreja nesse processo bastante evidente na mxima cuius rgio, illius et religio, ou

seja, o dono da regio igualmente dono da religio praticada 56. Por conseguinte, a conquista,

a colonizao e a catequizao dos povos que viviam no Novo Mundo, teve como justificativa

levar a civilizao e a salvao aos gentios.

Dessa forma fica claro que atravs da lei do Padroado que devemos entender a relao

estabelecida entre o Estado e a Igreja e a atuao desta no Novo Mundo. O Papado delegou ao rei

de Portugal a administrao e a organizao da Igreja Catlica em seus domnios. Isso porque a

expanso territorial e a propagao da f constituam-se nos dois lados do mesmo processo: a

colonizao. Se, por um lado, o Padroado anulou qualquer aspirao de autonomia por parte da

Igreja Catlica, por outro, no evitou que conflitos e contradies ocorressem entre a Igreja e o

Estado Portugus57.

Sendo assim, fundamental expormos a nossa compreenso sobre a Igreja.

Primeiramente, destacando as suas mltiplas funes religiosas que, na prtica, resultam na

existncia de vrias instituies, entre elas, nas diversas ordens que compem o clero regular

55 BOXER, C. R. A Igreja e a expanso ibrica (1440-1770). Lisboa: Edies 70, 1978, p. 99. 56 HOORNAERT, Eduardo. A Amaznia e a cobia dos europeus. In: HORNAERT, Eduardo (Coordenador). Histria da Igreja na Amaznia. Petrpolis: Vozes, 1992. p. 56. 57 HOORNAERT, Eduardo (org.). Histria da Igreja no Brasil: ensaio de interpretao a partir do povo: primeira poca

perodo colonial. Petrpolis: Vozes, 2008; OLIVEIRA, Marlon Anderson de. Entre a coroa e a cruz: a igreja colonial sob a gide do padroado. In: Anais do II ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTRIA COLONIAL. Mneme

Revista de Humanidade. V. 9, n. 24, p. 01-14, set/out 2008.

31

(fundamentais na conquista do Novo Mundo e no processo inicial de converso dos ndios), no

clero secular (que diz respeito Igreja episcopal, hierarquizada e organizada canonicamente) e,

por fim, no prprio Tribunal do Santo Ofcio.

Faz-se necessrio tambm compreendermos a atuao da Igreja, a partir da viso que os

portugueses possuam acerca da populao que habitava o Brasil. No caso especfico, a

colonizao58 portuguesa caracterizou-se pelo processo de marginalizao e excluso social,

principalmente de negros e ndios. A prpria posio perifrica a qual se encontrava e/ou era

percebido o Brasil em termos mentais, fsicos, espirituais e humanos, cuja populao se desviava

dos ideais metropolitanos59, contribuiu para esse processo.

Portanto, a colonizao do Brasil no se restringiu conquista efetiva de territrios, mas

tambm abrangeu o que Serge Gruzinski define como processo de ocidentalizao , ou seja, na

conquista das almas e dos corpos daqueles que viviam no Novo Mundo60.

A colonizao portuguesa tambm se caracterizou pela vinda de degredados, delinquentes

e aventureiros; pela dizimao ou explorao dos povos indgenas; pela escravizao de negros

africanos; e pelo processo de mestiagem racial e cultural61 que resultou no surgimento de uma

nova populao: mamelucos, mulatos e cafuzos.

Para os portugueses, era no Brasil que se dava a luta entre o Bem e o Mal, Deus e o

Diabo, sendo decisiva, em suas relaes com o negro e o ndio, a maneira como compreendia e

percebia essas populaes e seus costumes. Ou seja, associado a esses valores, os missionrios

portugueses em especial estigmatizaram essas populaes, considerando-as como brbaras e

selvagens. Como resultado, os seus hbitos e condutas sexuais foram associados luxria. Todos

58 Utilizaremos aqui a definio de colonizao empregada pela historiadora Snia Siqueira, na qual afirma que: Colonizar significa o transplante de todo um complexo scio-cultural, alicerado num determinado conceito de

hierarquia, ordem e paz social, bem como no Cristianismo militante recm-definido em Trento. Significava, certamente, alterar, em direo definida, comportamento e sensibilidade da populao autctone. Significava, tambm, garantir a continuidade de padres e modelos de comportamento, sem excluir, claro, a dinmica inerente ao processo . (SIQUEIRA, Snia. Inquisio e marginalidades. O caso do Par. Revista de Cincias Histricas, Porto, Universidade Portucalense, vol. XI, p. 113-141, 1996. p. 114). 59 A idia que os portugueses possuam sobre a colnia portuguesa alm-mar expressa no seguinte provrbio portugus: Os filhos de Lisboa nascem na corte, criam-se na ndia e perdem-se no Brasil . 60 GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestio. So Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 63. 61 Estamos empregando aqui a palavra mestiagem no sentido dado por Gruzinski, que a definiu no sentido de ... designar as misturas que ocorreram em solo americano no sculo XVI entre os seres humanos, imaginrios e formas de vida, vindos de quadro continentes

Amrica, Europa, frica e sia . (GRUZINSKI. O pensamento mestio. p. 62). Considerando, portanto, a contribuio da multiplicidade de culturas, religies e imaginrios que se encontraram na Amrica, no apenas o racial.

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esses aspectos contriburam para o processo de animalizao e demonizao dos costumes desses

povos62.

No caso dos indgenas, estes eram compreendidos como seres primitivos incapazes de

gerir a prpria vida, que necessitariam ser civilizados, atravs da catequese, meio pelo qual

incorporariam os princpios e valores da cultura ocidental. Enfim, a catequizao significava a

salvao das suas almas, pois os libertaria do jugo demonaco.

Em relao aos africanos, o discurso no era diferente, sendo a religiosidade negra o

principal campo que sofreu processo de demonizao. Entretanto, esse processo teve algumas

especificidades, pois, para os europeus, a cor negra estava associada escurido e ao mal e, por

conseguinte, ao inferno e s criaturas que l viviam. Verifica-se tambm que a cor negra estava

associada aos males ou pecados cometidos, ou seja, mesmo sendo uma pessoa branca, tornava-se

negra ao cometer determinados pecados, voltando a ser branco somente depois de confess-los.

Essa viso associa a cor da pele a um carter adquirido e de exclusiva responsabilidade do

indivduo 63. Os africanos tambm foram associados a outras idias negativas como a ausncia de

linguagem, a nudez e a reaes irracionais64.

Por fim, considerando esse contexto histrico referente ao perodo do Antigo Regime

que trataremos mais adiante acerca da colonizao portuguesa na Amaznia, em especial, da

atuao da Igreja e do Santo Ofcio nesse imenso territrio, a partir do sculo XVII.

62 RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonizao: a representao do ndio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Zahar,1996. 63 DEL PRIORE, Mary e VENNCIO, Renato Pinto. Ancestrais: uma introduo histria da frica Atlntica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 58. 64 No caso das prticas religiosas, por exemplo, essa relao de superioridade/inferioridade oriunda do processo de evangelizao, persiste ainda em nossos dias todas as vezes que somos obrigados a confrontarmos a identidade catlica brasileira com outras prticas, principalmente, associadas cultura negra e a cultura indgena, apesar de juntos fazerem parte das matrizes religiosas que fundamentam a nossa sociedade. Elas permanecem sendo vistas de forma distinta, num grau inferior ao do catolicismo, definidos como elementos que fazem parte da cultura popular, associados ao folclore, s supersties populares, etc. Sendo assim, importante destacarmos a responsabilidade do historiador em romper com este preconceito e, comear a perceb-la com uma viso que foi construda ao longo do processo de formao da sociedade brasileira.

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Captulo II

Conquista e evangelizao na Amaznia Portuguesa:

O Santo Ofcio no Estado do Maranho e Gro-Par

2.1 - A atuao da Igreja na Amaznia Portuguesa

A partir do final do sculo XV, tm incio as primeiras expedies europeias, cujo

objetivo era conhecer e conquistar a regio Amaznica65. Esses exploradores pioneiros

encontraram uma regio densamente povoada e tiveram contato com uma diversidade muito

grande de povos indgenas, oriundos de seis grandes troncos lingsticos: Aruak, Karib, Tupi; J;

Katukina; Pano; Tukano; Tukuna e Xiriana, que ocupavam o vasto territrio da regio.

No que diz respeito ao imaginrio europeu em relao a esses povos, Auxiliomar Silva

Ugarte observa que, desde esse perodo, os primeiros viajantes j definiam de forma negativa a

alteridade dos ndios , pois, segundo eles, esses povos viviam sob o reinado do Demnio .

Surgiu assim, a urgncia em implantar o quanto antes o Evangelho, de forma a evitar que

continuassem mergulhados na ignorncia da verdadeira f 66. Ugarte aponta ainda que:

Primeiramente, no houve cronista (eclesistico ou leigo) que deixasse de considerar os povos indgenas como brbaros. Por conseguinte, a maior parte das, seno todas as manifestaes religiosas dos ndios foram avaliadas sob o prisma da negatividade. Os cronistas entendiam-nas como inspiradas pelo Diabo, chamando-as de idolatrias, cujos principais desdobramentos eram as feitiarias. (...). Nesse aspecto, os autores de nossas fontes em nada se diferenciavam dos seus consortes que escreveram acerca das religiosidades indgenas de outras regies do Novo Mundo 67.

65 A primeira expedio que entrou na Amaznia foi realizada, em fevereiro de 1500, pelo espanhol Vicente Yez Pinzn e a segunda, foi comandada por Diogo de Lepe, realizada no mesmo perodo, com alguns dias de diferena. Cf. PAPAVERO, Nelson (org.) O Novo den: a fauna da amaznia brasileira nos relatos de viajantes e cronistas desde a descoberta do rio Amazonas por Pinzn (1500) at o tratado de Santo Idelfonso (1777). 2 ed. Belm: Museu Paraense Emlio Goeldi, 2002. 66 UGARTE, Auxiliomar Silva. Margens mticas: a Amaznia no imaginrio europeu do sculo XVI. In: DEL PRIORE, Mary & GOMES, Flvio (orgs.). Os senhores dos rios. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 23. 67 UGARTE, Auxiliomar Silva. Alvores da conquista espiritual do alto Amazonas (sculo XVI-XVII). SAMPAIO, Patrcia Melo. & ERTHAL, Regina de Carvalho (orgs.). Rastros da memria: histria e trajetrias das populaes indgenas na Amaznia. Manaus: EDUA, 2006. p. 14-15. Grifo do autor.

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Entretanto, segundo o autor, apesar de os europeus terem realizado inmeras expedies

ao longo do sculo XVI, a conquista militar e colonial da regio s ocorreu a partir do sculo

XVII, uma vez que os conquistadores no dispuseram das condies materiais para realizar de

fato o seu intento 68.

Portanto, a efetiva conquista da Amaznia pelos portugueses ocorreu ao longo do sculo

XVII, atravs da fundao de povoaes e fortificaes nas margens dos rios. Nesse processo, foi

crucial a participao das misses religiosas, com o estabelecimento de aldeamentos para onde

eram levados os ndios descidos de suas aldeias de origem.

A misso tem ntima relao com a noo de evangelizao da Igreja e, em geral, sempre

esteve associada converso dos povos no-cristos f catlica69. Em relao aos indgenas,

foram denominados de brbaros devido aos seus costumes e prticas (entre eles, antropofagia, a

poligamia, a feitiaria, a nudez, o nomadismo, etc.), sendo necessrio ensin-los os bons

costumes , que se traduziam na converso desses povos aos valores e costumes cristos. Foi

dessa maneira que teve incio o processo de desestruturao das sociedades indgenas e de sua

insero como sditos (cristos) a servio da Coroa portuguesa.

A atuao dos missionrios foi crucial para a expanso portuguesa no territrio, pois,

nesse perodo, a conquista dos povos indgenas se dava tanto para Deus quanto para o Rei de

Portugal70. No caso da Amaznia, destacamos a sua especificidade e importncia no processo de

conquista e colonizao da regio, pois como bem afirma Fabiano Vilaa dos Santos:

68 UGARTE, Auxiliomar Silva. Margens mticas: a Amaznia no imaginrio europeu do sculo XVI p. 31. 69MARTINS, Fbia. A concepo de Misso no Projeto da Companhia de Jesus no Estado do Maranho e Gro-Par, sculo XVII. In: NEVES, Fernando Arthur de F. & LIMA, Maria Roseane P. de (orgs). Faces da Histria da Amaznia. Belm: Paka-Tatu, 2006. p. 43-81.MELLO, Mrcia Eliane Alves de Souza e. A poltica missionria . In: F e Imprio: as Juntas das Misses nas conquistas portuguesas. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2009. p. 27-48. 70 Segundo Arlindo Rubert, vrios foram os obstculos encontrados pelos missionrios em seu trabalho de evangelizao no Brasil, entre eles, destaca: a descoberta de novas naes brbaras ainda no contactadas pelos brancos, o que tornava mais missionrio seu campo de ao pela dificuldade em aprend-las; a ganncia dos brancos em se aproveitarem dos ndios para suas lavouras e para seus currais, com pouco ou nenhum respeito de suas pessas e de sua instruo religiosa; os maus exemplos de muitos cristos, entre os quais no faltavam alguns grossos escravocratas, que por suas tropelias nas reas indgenas levavam o ndio a odiar os brancos e no aceitar a boa nova do Evangelho; seus prprios costumes deteriorados, que custavam a deixar para encarnar em sai moral evanglica; o pouco exemplo de certos religiosos e clrigos, que buscavam mais seus interesses do que o bem estar espiritual de seus dirigidos; a falta de conhecimento da lngua indgena, at por parte de alguns zelosos missionrios, impedindo-os de colherem os desejados frutos; a rivalidade entre os diversos grupos missionrios, julgando cada um fazer melhor que os outros; as enormes distncias em que se achavam as diferentes tribos e a falta de caminhos; o clima trrido e mido da zona equatorial e parte da zona tropical, que enervava os agentes missionrios; a falta de continuidade de muitas misses por deficincia de pessoal apto para esse ministrio; o golpe deferido s misses pela

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Pode-se dizer que a histria da ocupao portuguesa na regio se confundiu, desde o incio do sculo XVII, com a histria das invases estrangeiras (francesas e holandesas, por exemplo) e das misses religiosas. As primeiras tentativas de fixao dos portugueses no territrio do Maranho aps a invaso francesa de 1612 ocorreram muito mais por meio do estabelecimento de misses religiosas, configurando-se numa espcie de associao entre conquista militar e conquista espiritual 71.

No incio do sculo XVII, logo aps a expulso dos franceses, chegaram ao Estado do

Maranho as primeiras ordens religiosas que atuaram na regio norte: os Franciscanos da

Provncia de Santo Antnio (1615), a Ordem do Carmo (1615) e a Companhia de Jesus (1616).

Mais tarde, outras ordens missionrias se estabeleceram na regio, a saber, a ordem de Nossa

Senhora das Mercs (1639), os Franciscanos da Provncia da Piedade (1692) e os Franciscanos da

Provncia da Conceio da Beira do Minho (1706). Os carmelitas e os mercedrios voltaram-se,

principalmente, para a educao dos filhos dos colonos e para a moralizao dos costumes,

enquanto que franciscanos e jesutas atuaram mais na converso dos ndios72.

Dentre as ordens regulares, a franciscana era a mais solicitada pelos governantes, aceita

pelos colonos e recomendada pelo rei por que:

No causava perturbaes e actuava de uma maneira discreta. Com a sua humildade, caridade e bom exemplo, cativava ao gentio e com uma entrega total, espalhava o Evangelho. Com estas caractersticas muito prprias, conseguiu pacificar o ndio, submet-lo soberania portuguesa e convenc-lo a lutar por uma causa justa e santa, que era a guerra contra o herege . A estratgia utilizada mais que suficiente para explicar a importncia que os Franciscanos tiveram no momento da conquista e expulso dos estrangeiros73.

Sendo uma das primeiras ordens a se estabelecer na regio, os franciscanos tomaram a

iniciativa de fundar o novo comissariado de Santo Antnio do Gro-Par (1617), com jurisdio

invaso holandesa; o isolamento e a falta de meios de subsistncia em que minguavam muitos missionrios . In: RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Expanso missionria e hierrquica. (sculo XVII). Santa Maria: ed. Palloti, 1981-1988. vol. 2. p. 130. 71 SANTOS, Fabiano Vilaa dos. O governo das conquistas do norte: trajetrias administrativas no Estado do Gro-Par e Maranho (1751-1780). 2008. Tese. (Doutorado em Histria Social). USP. So Paulo. p 312-313. 72 SARAGOA, Lucinda. A ao dos franciscanos e dos jesutas na conquista e povoamento da Amaznia 1617-1662. Santarm, 1997. Mimeo. p. 30. 73 SARAGOA, Lucinda. A ao dos franciscanos e dos jesutas na conquista e povoamento da Amaznia 1617-1662. , p. 30-1.

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no Maranho e no Par. Em Carta Rgia de 20 de julho de 1618, o rei Felipe II, entre outras

coisas, destacou a importncia de se enviar religiosos para a conquista do Maranho e Gro-Par,

recomendando explicitamente que os franciscanos acompanhassem o governador regio. Como

consequncia, em 1624, missionrios franciscanos integravam a comitiva do primeiro governador

do Estado do Maranho e Gro-Par, Francisco Coelho de Carvalho, entre eles, Frei Cristvo de

Lisboa74, que exercia as funes de Custdio, Visitador e Comissrio do Santo Ofcio. Durante

esse tempo, portanto, antes da criao das dioceses, a regio ficou sob seus cuidados espirituais,

Fixando-se em So Lus, agiu e interagiu intensamente com todas as reas sob sua circunscrio eclesistica. Fundou conventos em So Lus e em Belm do Par, alm de hospcios em Camut, no Tocantins, e em Caet, no litoral paraense. Percorreu, em prolongadas visitas, a capitania do Par, fazendo cumprir, com naturais resistncias dos colonos e de parte das autoridades civis locais, os institutos legais que obtivera concernentes gesto das aldeias indgenas75.

Foi apenas no final do sculo XVII que os jesutas obtiveram xito em estabelecer suas

misses no Estado do Maranho e Gro-Par e seus domnios abrangeram toda a Amaznia

portuguesa, alm das capitanias do Cear e do Piau76. Foram inmeras as dificuldades

encontradas pela Companhia de Jesus para se estabelecer no Maranho, principalmente devido

hostilidade dos ndios e dos colonos que viviam na regio. A ao missionria dos Jesutas foi

marcada pela constante animosidade das autoridades eclesisticas e civis, das outras ordens

religiosas e da populao local, em virtude da hegemonia que exerciam em relao aos indgenas,

alm do poder temporal que possuam na regio. A intensidade desses conflitos resultou na

74 Sobre este aspecto Caio Boschi afirma que: Preparando-se ainda na corte, para o exerccio das suas novas funes, Frei Cristvo de Lisboa procurou inteirar-se da administrao material das aldeias dos ndios, terminando por obter das autoridades metropolitanas a proibio expressa da ingerncia de leigos na citada matria, bem como a concesso de ordinrias aos conventos e misses franciscanas. O custdio passava, assim, a reunir poderes espirituais e temporais, o que lhe dava confortvel margem para atuar, sobretudo quando das suas visitas cannicas e pastorais . BOSCHI, Caio As misses no Brasil. In: In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti. (Dirs.) Histria da Expanso Portuguesa. v.2. Lisboa: Crculo de Leitores, 1998, p. 398-399 75 BOSCHI, Caio. As misses no Brasil. p.399. 76 Caio Boschi faz questo de enfatizar que foi na Amaznia que, tambm na vertente da missionao, o mnus jesutico mais se fez notar, et pour cause, maiores e definitivos atritos produziu. Ali, os Inacianos impuseram rgidas normas de vida e de trabalho, sendo este ltimo explorado em favor do fortalecimento financeiro da Companhia, no obstante as pesadas somas revertidas e reinvestidas no labor missionrio e no desenvolvimento civilizacional do gentio . BOSCHI, Caio. Ordens religiosas, clero secular e missionao no Brasil. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti. (Dirs.) Histria da Expanso Portuguesa. v.3. Lisboa: Crculo de Leitores, 1998. p. 295. Grifo do autor.

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expulso dos missionrios jesutas do Estado do Gro-Par e Maranho, em 1759, no reinado de

D. Jos I, durante o ministrio de Sebastio Jos de Carvalho e Mello77.

Ao longo desse perodo, foi gerada uma Igreja indgena , resultante da ao missionria,

que se encontrava fora da jurisdio dos bispos. Numa sociedade de Antigo Regime

hierarquizada como a portuguesa, inclusive no tocante religio, o estatuto do ndio cristo era

considerado inferior aos cristo-velhos. Por conseguinte, podemos considerar essa Igreja como

marginalizada social e culturalmente, isso porque, de acordo com o projeto dos missionrios, os

indgenas para serem civilizados deveriam abandonar a sua identidade tnica, mas isto no

significava que passariam a ser considerados brancos 78. Hugo Fragoso expe claramente esta

questo quando afirma que,

Era uma Igreja de nefitos . E a categoria de nefitos era aplicada na poca, no apenas a indivduos particularmente, mas a povos inteiros. Eram os cristo-novos , em contraposio aos cristo-velhos . Os cristo-novos

(nefitos) no podiam, pelo direito cannico de ento, ser admitidos ao sacerdcio, vida religiosa nem a postos de administrao na Igreja. Eram, em suma, cristos de segunda categoria 79.

A atuao da Igreja hierrquica, organizada canonicamente na Amaznia colonial,

tambm foi moldada pela Lei do Padroado e, em geral, sua ao no se limitou a aspectos de

jurisdio eclesistica, exercendo tambm cargos pblicos. A subordinao ao poder real ocorria

da seguinte maneira:

Os bispos eram considerados nobres vinculados coroa real, e portanto sua atuao religiosa estava limitada com freqncia aos interesses polticos. Alguns bispos que agiram com certa independncia em seu mnus pastoral foram afastados do exerccio de seu cargo pela autoridade do rei80.

77 Conde de Oeiras, futuro Marqus de Pombal (1770), como ficou mais conhecido. Assumiu a Secretaria do Estado do Reino com funes de Primeiro Ministro (1750-1777). 78 FRAGOSO, Hugo. A era missionria (1686-1759). In: HOORNAERT, Eduardo (coord.). Histria da Igreja na Amaznia. Petrpolis: Vozes, 1990. p. 183. 79 FRAGOSO, Hugo. A era missionria. p. 183. 80 AZZI, Riolando. A instituio eclesistica durante a primeira poca colonial. In: HOORNAERT, Eduardo (org.). Histria da Igreja no Brasil. Ensaio de interpretao a partir do povo: primeira poca

perodo colonial. Petrpolis: Vozes, 2008. p. 172.

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Podemos considerar trs aspectos caractersticos do episcopado no Estado do Brasil e no

Estado do Maranho e Gro-Par, durante todo o perodo colonial: a constante ausncia dos

bispos eleitos, a significativa sujeio Coroa e as longas vacncias entre um prelado e outro81.

De fato, com exceo da Bahia que no sofreu com as prolongadas vacncias82, no geral,

a Igreja teve sua ao pastoral bastante prejudicada na Amrica portuguesa. Vrios foram os

motivos que geraram este problema: a recusa dos sacerdotes indicao, o grande nmero de

renncias, a falta de entusiasmo dos novos bispos em tomar posse do cargo, que se traduziu na

demora das nomeaes dos candidatos, a lentido das comunicaes, as dificuldades das viagens,

atrelada distncia entre a metrpole e a colnia, o salrio modesto e insuficiente, cujo

pagamento estava sujeito aos constantes atrasos, e a sujeio dos bispos arbitrariedade da

Coroa83.

No Maranho, a diocese criada em 1677, pela Bula Super universas orbis eclesias, teve

como primeiro bispo nomeado para a diocese o capuchinho D. Frei Antnio de Santa Maria, que

no chegou a assumir o cargo, sendo indicado para o seu lugar o cnego secular de So Joo

Evangelista, D. Gregrio dos Anjos (1677-1689)84.

A atuao pastoral de D. Gregrio dos Anjos destacou-se pela preocupao eclesistica

em visitar vrios lugares de sua diocese, chegando a realizar uma visita pastoral capitania do

Par. Tambm se preocupou pela catequese dos indgenas que na poca estava sob a

responsabilidade principalmente dos jesutas e dos franciscanos, mas no teve xito em seu

intento85.

O segundo bispo do Maranho Frei Timteo do Sacramento O. S. P. (1697-1700) atuou

por muito tempo numa diocese precria, sendo grande a sua preocupao com a moral dos

costumes. Eram constantes os conflitos do bispo com os missionrios e os leigos, pois,

81 Segundo Riolando Azzi, no sculo XVIII, a diocese do Maranho efetivamente contou com a presena dos bispos eleitos por apenas 37 anos, ficando os restantes 63 anos sob os cuidados dos Vigrios Gerais ou Governo do bispado. O mesmo ocorreu com o bispado do Par, que no sculo XVIII ficou vacante num total de 24 anos. AZZI, Riolando. A instituio eclesistica durante a primeira poca colonial. p. 174. 82 BOSCHI Caio. Episcopado e Inquisio. In: BETHENCOURT, Francisco & CHAUDHURI, Kirti. (Dirs.) Histria da Expanso Portuguesa. p. 376. 83 RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Expanso territorial e absolutismo estatal. (1700-1822). Santa Maria; Ed. Palloti, 1988. Vol 3. p. 17; BOSCHI, Caio. Episcopado e Inquisio. p. 373. 84 OLIVEIRA, Pe. Miguel de. Histria Eclesistica de Portugal. Lisboa: Ed. Europa-Amrica, 1994 (Ed. Revisada e atualizada). 85 LARCHER, M. Madalena e P.J. Oudinot. Tenses entre o episcopado e clero missionrio na Amaznia na transio do sc. XVII para o XVIII. CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTORIA MISSIONAO PORTUGUESA E ENCONTRO DE CULTURAS. Vol. 1. Actas do..., Braga: Universidade Catlica Portuguesa, CNCDP/ Fundao Evangelizao e Culturas, 1993, 671-98 p.

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O bispo do Maranho, por muito tempo, viu-se praticamente sozinho, pois os religiosos, que eram a esmagadora maioria do clero da diocese, ora apelavam para seus privilgios e isenes, negando at a visita do bispo s Aldeias dos ndios, ora viviam divididos entre si e opostos ao Prelado. (...). Os leigos, numa terra to tumultuada, levavam vida pouco digna da moral crist. Criou-se, desta forma, ambiente extremamente difcil, que vinha repercutir negativamente na vida da Igreja86.

A diocese do Par, com sede em Belm, foi criada em 04 de maro de 1719, pela Bula

Copiosus in misericordia87; no entanto, seu primeiro bispo, D. Bartolomeu do Pilar (1721-1733),

assumiu a diocese apenas em 1724. Da mesma forma que no Maranho, foram comuns no Par

os conflitos entre o bispo e os missionrios, principalmente com os jesutas, pelo interesse do

prelado em realizar visitas pastorais nas misses. Preocupado com a vida crist das populaes,

D. Bartolomeu do Pilar deu incio sua ao pastoral visitando o bispado,

Logo se capacitou de estar numa diocese imensa, escassamente povoada, com populaes distantes entre si, com poucos moradores brancos e inumerveis indgenas, j em boa parte aldeados e batizados. Deu-se tambm logo conta que diminuto era o clero secular do novo bispado, que dirigia a matriz de Belm, algumas outras igrejas da Vila e algumas parquias do interior, como Camet, Gorup, Caet, etc.88.

Como resultado da ao missionria iniciada a partir do sculo XVII, constatamos a

existncia das primeiras geraes de ndios cristos no incio do sculo XVIII, a sua maioria

vivendo nas misses. Por outro lado, existia ainda um nmero significativo de grupos indgenas,

denominados de gentios, que continuavam a viver margem desse processo de integrao. Alm

deles, esta sociedade era composta pelos colonos portugueses e pelos primeiros mestios

oriundos da mistura destes com os indgenas; sendo que, a partir da segunda metade do sculo

XVIII, tambm teremos uma entrada significativa de escravos africanos na regio, os quais

tambm se misturariam com ndios e brancos.

86 RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Expanso missionria e hierrquica. vol. 2 . p. 182. 87 ALMEIDA, Fortunato de. Histria da Igreja em Portugal. Coimbra: Imprensa Acadmica, 1910. v 2. 88 RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil. Expanso territorial e absolutismo estatal. vol 3, p.135.

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2.2

Os mecanismos de controle social da Igreja

Para exercer o seu controle no imenso Imprio Ultramarino portugus, a Igreja utilizava-

se de dois mecanismos principais: as visitas (episcopais e inquisitoriais) e o estabelecimento de

uma rede de oficiais e auxiliares civis (comissrios e familiares) do Santo Ofcio.

No que diz respeito sua origem, as denominadas visitas ou inspees remontam

tradio medieval de uma justia itinera