um estranho sonho de futuro

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Livro.

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Page 1: Um Estranho Sonho de Futuro
Page 2: Um Estranho Sonho de Futuro

UM

ESTRANHO SONHO DE

FUTURO CASOS DE ÍNDIO

Page 3: Um Estranho Sonho de Futuro

Algumas destas histórias me foram contadas por minha mãe, Maria Costa, e por meu pai,

Miguel Costa. A eles, minha gratidão. Agradeço a Heloisa Prieto mais esta

oportunidade de contar as histórias da nossa gente; a Lucas Nemeth, a boa companhia

que foi em nossa viagem à aldeia Katõ; ao prefeito de Jacareacanga, Eduardo

Azevedo, por seu apoio logístico em nossa viagem; ao povo Munduruku, por sua acolhida calorosa

durante nossa estada na aldeia.

Page 4: Um Estranho Sonho de Futuro

Dedico esta obra aos meus irmãos e irmãs, Ângela, Helena, Raimundo, Toninha, Zeca, Graça, Socorro,

Robson Marcelo e Luis Guilherme, pelo grande apoio e carinho que dispensam a este irmão distante.

A todos vocês, meu profundo amor.

Page 5: Um Estranho Sonho de Futuro

Sumário

APRESENTAÇÃO

O CAMINHO MAIS SEGURO É AQUELE QUE FOI PISADO

MUITAS VEZES ............................................................................ 11

PREFÁCIO ..................................................................................... 13

I o ESPÍRITO DA NOITE .............................................. 17

2 O MATINTAPERERA NA JANELA ............................ 23

3 TERROR NO PÁSSARO DE FERRO ............................ 27

4 A CAMINHO DA A L DELA ........................................... 31

5 UM ENCONTRO COM A MÃE-D'ÁGUA ...................... 35

6 O FUNERAL ................................................................ 41

7 A COBRA-GRANDE .................................................... 51

8 UM ESTRANHO NA ALDEIA ...................................... 55

9 UM DIA NA ALDEIA ................................................... 59

1 0 MEDO DE ÍNDIO ......................................................... 65

11 LUCAS PESCADOR ...................................................... 69

}2 UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO ....................... 75

13 UM REENCONTRO COM A TRADIÇÃO ..................... 83

}4 AS PEGADAS DO CURUPIRA ..................................... 89

}5 ONZE DE SETEMBRO ................................................. 95

16 RETORNO PARA CASA ............................................... 99

F in a 1 As coNsEQüÊNciAs DA viAGEM ............................ 105

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UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO

O CAMINHO MAIS SEGURO É AQUELE QUE FOI PISADO MUlTAS VEZES

Conhecer Daniel Munduruku foi um marco em minha vida. Eu o encontrei por meio de uma amiga querida, Lilia Moritz,

que me apresentou a Daniel para que eu o acompanhasse duran­te a escritura de seu primeiro livro. Durante o encontro logo per­cebi que estava diante de um mestre, um jovem cuja sabedoria e sensibilidade se traduziam nos menores comentários, na risa­da solta, na simplicidade para decifrar as pessoas, e principal­mente no bom humor e talento para apreciar a vida.

Desde então fizemos muitos projetos literários juntos e nos­sa amizade cresce a cada dia. Com os anos, Daniel e sua famí­lia passaram a fazer parte da minha e assim foi que ele levou

• meu pai, Luiz Prieto, para passar um tempo entre seu povo e depois meu filho Lucas, cuja viagem inesquecível ele narra nes­te livro.

A viagem durou quase um mês e, depois dela, pegadas de ani­mais, o vôo das aves, os sinais secretos dos sonhos passaram a habitar a fala de Lucas, que àté hoje se beneficia desta expe­riência que todo jovem deveria ter.

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DANIEL MUNDURUKU

Dizia o antropólogo Claude Lévi-Strauss que só se conhece a própria cultura a partir do contato com outra. E além das aven­turas na floresta, dos barcos e animais, dos novos amigos indí­genas, aconteceu também uma aventura interna, pessoal e in­transferível.

Sonhos passaram a ter a mesma importância que os fatos, as reflexões contestando a importância das informações, adoecer é sinônimo de perder a conexão com os espíritos ancestrais, o contato com outra tradição ajudando-o a descobrir um mapa in­terno, o mesmo que auxilia as aves migratórias em seus vôos de modo que elas sempre encontrem seu destino.

Dizem os antigos munduruku: "O caminho seguro é aquele que foi pisado muitas vezes". Então, que este trajeto que uniu temporariamente um jovem urba'no ao universo ancestral do povo indígena seja trilhado inúmeras vezes até tornar-se uma rota segura para o conhecimento, a amizade e a igualdade entre todos.

Heloisa Prieto

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UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO

PREFÁCIO

Este livro é uma ficção, mas partiu de um fato verdadeiro. O menino Lucas existe e ele foi comigo a uma viagem até minha aldeia no Estado do Pará. Alguns dos fatos aqui narrados são verdadeiros, ocorreram nos vinte dias que passamos viajando. Outros fatos são narrados apenas para mostrar como é o dia- a­dia em uma aldeia Munduruku e como o universo deste povo é recheado de histórias mágicas e crenças que o ajudam na orga­nização de seu estar no mundo.

A viagem foi muito gostosa e cheia de aventura e alguns con­tratempos também. Como o acesso é bastante difícil, tivemos que esperar algum tempo até concluí -la.

Saímos de São Paulo rumo a Santarém. Antes passamos por Belém, onde ficamos dois dias. Chegando a Santarém, tomamos um barco que nos levou para Itaituba, uma cidade que cresceu muito na década de 1960 devido à descoberta de grandes jazi­das de ouro na região. O crescimento trouxe também a violência e a pobreza. Embora fosse rica, Itaituba continuou amargando uma triste estatística de cidade mais violenta do Brasil. Era co­nhecida como a cidade faroeste por ocorrerem nela autênticas cenas de bangue-bangue, semelhantes às dos filmes america-

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,_,

DANIEL MUNDURUKU

nos. Quando a febre do ouro diminuiu, Itaituba estava ainda mais empobrecida e sua população teve que se adaptar aos no­vos tempos. Por isso a cidade investiu na agropecuária, na pes­ca e no turismo.

É na cidade de Itaituba que fica a sede regional da Fundação Nacional do Índio (Funai). Passamos por lá para dar satisfação ao administrador; depois seguimos, de avião, para a cidade de Jacareacanga, município do qual fazem parte todas as aldeias Munduruku do Pará.

Esse município, relativamente novo, foi emancipado no iní­cio dos anos 1990, quando se tornou independente de Itaitu­ba. Até dez anos atrás a cidade não tinha sequer energia elé­trica pública. Apenas alguns comerciantes tinham acesso a esse luxo e isso os fazia explorar a população inteira, inclusi­ve a indígena.

Como todas as cidades da região, Jacareacanga foi criada por garimpeiros. Pessoas vindas de diversos estados brasileiros acorreram para lá atrás da riqueza rápida. Muitos desses ho­mens e mulheres acabaram tornando- se escravos dos grandes donos dos garimpos e permaneceram pobres para o resto da vida. Como se tratava de uma cidade sem população fixa, Jaca­reacanga não tinha muita expectativa de futuro, vivendo do ouro que, eventualmente, por ali se encontrava. Somente depois de sua emancipação a cidade passou a receber maior atenção e hoje tem um desenvolvimento mais visível.

A população de Jacareacanga é composta, em sua maioria, pe­los herdeiros dos primeiros garimpeiros e mineradores dare­gião. No entanto, fazem _parte dela aproximadamente dez mil Munduruku, que habitam perto de cem aldeias numa área recen­temente homologada de quase dois milhões e meio de hectares.

Por ser uma cidade distante dos grandes centros, Jacareacan­ga tem um custo de vida muito alto e, às vezes, faltam gêneros de primeira necessidade para a população local. Quando chega­mos, havia falta de gasolina para subirmos o rio até a minha al­deia. Isso atrasou um pouco nossa viagem .

..

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UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO

Outro fato bastante marcante foi o ataque ao World Trade Center, nos Estados Unidos, no dia 11 de setembro de 2001. Fi­camos sabendo do ocorrido ali em Jacareacanga, no hotel onde estávamos hospedados. Embora tenha sido chocante, não hou­ve nenhum impacto maior no cotidiano daquelas pessoas.

Queria dizer, para concluir, que o jeito de narrar estes acon­tecimentos é como memória buscando refletir os fatos. Algu­mas vezes preferi colocar ponto de vista ou opinião numa ten­tativa de comparar a sociedade-indígena com a não-indígena, mostrando as qualidades e os defeitos de uma e de outra. Sei que algumas vezes fui parcial, favorável à sociedade indígena. Espero que entendam. Lembrem que quem narra os fatos é um indígena, portanto é a partir dessa ótica que deve ser lido este pequeno livro.

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I

O ESPÍRITO DA NOITE

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DANIEL MUNDURUKU

-Alô, aqui é de São Paulo, preciso falar com o cacique Arnal-do, câmbio.

-Só um instante que vou chamá-lo, câmbio. -Vou esperar na linha. O tempo passou bem lentamente enquanto eu aguardava na

linha a vinda do cacique. Fiquei pensando por um momento so­bre o motivo daquele chamado. Será que a visita de um estra­nho à aldeia iria causar muito alvoroço por lá? Teria eu feito bem em convidar meu amigo Lucas para ir à aldeia?

Meus pensamentos foram interrompidos quando uma voz do outro lado da linha me despertou para a realidade. E agora, o que poderei dizer ao cacique?

- Xipat, oboré Danie_l? O que está acontecendo por aí? - Xipat, Arnaldo. E com, o velho amigo, como andam as coisas? - Por aqui está sempre do mesmo jeito e só piorando. Conti-

nuam invadindo nossas terras. Mas tudo isso você já sabe, não é mesmo?

-Infelizmente, sei. Mas o motivo de ter ligado para você é para lhe pedir autorização para levar um amigo até nossa al­deia. Ele quer nos conhecer ...

..

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al-

UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO

- Quantos anos tem este pariwat? -Ele é ainda jovem, não deve ter mais que catorze anos. -E você acha que ele agüenta passar algum tempo por aqui?

Você sabe que aqui a gente tem que caçar, pescar, coletar. Além disso, tem os mosquitos, os carapanãs, os piuns ...

-Eu sei, capitão. Tudo isso já foi dito a ele e ainda assim está disposto a ir.

- Então não tenho nada a opor. Só peço que você conte a ele a história do pariwat que veio até aqui e se encontrou com o Es­pírito da Noite e ficou meio maluco. Você se lembra?

-Lembro sim', Arnaldo, e vou contar para ele, prometo. Dito isso, desliguei o rádio e fiquei pensando no que o caci­

que me disse. Procurei na minha memória a tal história e lem­brei de uma vez que um estrangeiro chegou a nossa aldeia com os olhos arregalados, cheios de medo. Veio remando uma canoa velha. Estava cansado e cambaleava. O cacique o aco­lheu com algum receio de que se tratasse de um garimpeiro invasor que tinha se perdido, mas como ele não conseguia falar e não tirava do rosto o espanto que havia chegado, Arnaldo preferiu deitá-lo na rede e chamar o pajé para ver o estrangeiro.

Depois de algum tempo o pajé estava ao lado do paciente, examinando-o. Acendeu seu cigarro de tauari e tocou a testa febril do homem, que continuava suando como nunca. Em se­guida lançou algumas baforadas do cigarro e cantou uma can­tiga ancestral. Muita gente começou a chegar na casa do caci­que para acompanhar o "tratamento" que o curador fazia. Com a sala já cheia de gente, o velho homem depositou ervas numa vasilha e lançou sobre elas água fervendo. Ia molhando um ve­lho pano e passando na testa e no peito do moribundo. De re­pente- o homem começou a gemer e falar coisas que ninguém entendia direito.

O pajé não deu importância às palavras desencontradas do doente e continuou a cuidar dele durante a noite toda, sempre acompanhado de uma platéia que se avolumava na sala.

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Antes de o dia amanhecer por completo, o pajé deitou-se na rede ao lado e adormeceu. Ele precisava sonhar com a doença que tinha acometido o rapaz.

Depois de uma hora, o curador acordou um pouco atordoado. Foi até o igarapé e tomou um banho frio da manhã. Precisava lavar o corpo para manter sua memória viva a fim de fazer o re­médio certo para o doente. Durante o tempo todo esteve em si­lêncio como se estivesse procurando entender o sonho que ha­via tido. Em seguida, dirigiu- se até a mata que circundava a al­deia e apanhou um pouco de erva e uma raiz. Foi até sua casa e preparou um chá que trouxe para a casa de Arnaldo.

Com a ajuda de várias pessoas, o pajé levantou o paciente e lhe aplicou uma massagem no corpo, seguida de um gole do chá que havia preparado. O doente tomou e quase vomitou todo o conteúdo porque o remédio era muito amargo. O pajé, porém, conseguiu fazê-lo segurar e engolir tudo. Em seguida voltou a deitá-lo na rede para que pudesse dormir novamente.

Lembro que se passaram algumas horas até o doente come­çar a se mexer e abrir os olhos. Ficou um pouco assustado ao ver tantos rostos estranhos diante de si. Aos poucos foi, no en­tanto, se recompondo e sentou-se na rede. Olhou ao redor e per­guntou onde estava, ao que foi respondido que havia sido encon­trado quase desfalecido e que tinha sido recolhido à aldeia.

-Não sei como vim parar aqui, mas recordo que corri por um longo tempo pelo mato adentro.

-Do que você corria? -Não sei direito, mas lembro que senti um arrepio muito gran-

de no corpo. Olhei para t~ás, mas nada vi. Ou pelo menos não acho que tenha visto algo importante.

-O que você estava fazendo aqui, em nossa área? - Sou pescador. Faço pesca esportiva. Vim de São Paulo junto

com um grupo de amigos para praticar. Hoje resolvi sair sozi­nho. Por isso peguei um barco e fui até uma área que, segundo dizem, tem muitos peixes. Mas não sabia que se tratava de uma área indígena.

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as pessoas, o medo as torna muito frágeis. Foi isso que vi no sonho que tive.

O pajé não quis continuar aquela conversa e dispersou todo mundo, sugerindo que levássemos o estrangeiro embora para que ninguém achasse que ele tinha morrido na floresta e come­çassem a procurá-lo em nossas terras.

Lembro que o moço agradeceu demais ao velho pajé, que o ti­nha mantido vivo. Acho que foi por isso que o cacique Arnaldo sugeriu que eu contasse ao meu amigo Lucas essa história, para lhe mostrar que havia muitos mistérios em nossa cultura.

Embora eu não quisesse assustar meu jovem amigo, contei a história para ele e para sua mãe. Isso gerou um certo receio nela, que já não estava muito convencida que esta viagem seria boa ao seu menino. Tentou, inclusive, convencê -lo a não sair de São Paulo e que deixasse para ir num outro momento. Felizmente Lucas já tinha decidido viajar e ficou até muito excitado para conferir a veracidade da história. Coube à sua mãe conformar­se e aceitar a sua decisão. Preferi não me envolver no assunto. Para mim, o que eles resolvessem estaria bom demais .

.,

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O MATIN

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Meu amigo Lucas sempre foi muito tímido e entre nós havia pouca coisa em comum. Ele é descendente de espanhol, eu sou indígena; ele é bemjoverri, eujá tenho muito tempo de estrada; temos visões de mundo e modernidade diferentes. Mas temos algo em comum: nascemos no mesmo dia, seis de fevereiro. Se­gundo a tradição ocidental, somos do signo de aquário, ambos vivemos no mundo das nuvens; ambos criamos universos em nossa mente. Ele o faz através da música e do desenho, eu, atra­vés da literatura. E foi dessas coisas em comum que surgiu a idéia de juntos vivermos esta experiência.

Quando eu era criança, ouvia muitas histórias que meus pais e avós contavam. A gente se reunia no início da noite, após a nossa refeição, e os mais velhos se punham a contar histórias. Muitas delas eram verdadeiras, tinham sido vivenciadas por eles mesmos; outras histórias eram mais antigas, falavam de um mundo que era habitado por seres fantásticos, de um tem­po muito anterior ao nosso. E ainda havia as histórias que a gen­te mesmo vivia em nosso cotidiano na aldeia.

A que agora narro foi contada por minha avó, numa dessas tardes de inverno da Amazônia, quando chovia torrencialmen-

..

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te. Era uma época que não tinha energia elétrica e nossa única iluminação era uma velha lamparina acesa à base de querose­ne, que a gente comprava na cidade.

Minha avó era uma senhora com mais de oitenta anos de idade, mas estava bem lúcida, cb~ lembranças claras dos acon­tecimentos. Ela nos disse que numa determinada noite de mui­to calor havia deixado a única janela da casa aberta para en­trar um vento que refrescasse seu sono. Ainda assim teve uma noite bastante difícil, pois acordava de vez em quando, so­bressaltada pelo calor e por sonhos estranhos. É claro que isso a assustava, pois nossa tradição diz que os sonhos trazem mensagens do outro mundo. Quando os sonhos são muito fre­qüentes numa mesma noite, é porque algo de muito ruim pode acontecer.

A cada flash entre o sono e a vigília minha avó acordava e as­sentava-se na rede para respirar fundo. Num desses momentos, ela despertou e voltou seu olhar para a janela. O susto que le­vou foi enorme. Sentada na janela estava uma grande ave que a mirava fixamente. Minha avó esfregou os olhos várias vezes na tentativa de confirmar sua visão. A ave ficou alguns instantes no batente da janela e depois alçou vôo para a floresta.

Minha avó correu até a janela, deu duas olhadas de relance e a fechou rapidamente com receio de que a estranha ave voltas­se. Depois se assentou na rede e disse algumas palavras na lín­gua de nossa gente e deitou-se. Dessa vez dormiu até a manhã seguinte sem nenhum sobressalto. Tão logo levantou, contou tudo o que tinha visto aos outros moradores de sua casa. Meu avô, que era um homem muito sábio, ouviu tudo em silêncio e disse que aquela estranha ave era, na verdade, a matintaperera pedindo fumo para não mandar doença sobre alguém daquela casa. Na mesma noite minha avó colocou fumo ralado numa cuia e deixou perto da mata. No dia seguinte tudo havia desapareci­do e o perigo de doença tinha sido afastado da aldeia.

Depois de ouvir a história, quis saber de minha avó como era a ave. Ela não soube me dizer, pois estava com muito medo e não

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DANIEL MUNDURUKU

foi capaz de reparar direito. Apenas me disse que a partir da­quele dia nunca mais dormiu de janela aberta.

Lucas contou com a ajuda de seu avô para arrumar as malas. Seu Luís é um experiente caçador. Viajou para muitos lugares do Brasil. Em algumas de suas viagens entrou em contato com os Xavante do Mato Grosso. Passava dias e dias longe de São Paulo, embrenhado pelas matas e rios de nosso país.

Foi por tudo isso que seu Luís quis emprestar sua experiência ao jovem neto, que iria fazer sua primeira viagem para um lugar distante. Aconselhou, conversou, admoestou, deu dicas de como se comportar no campo, o que deveria fazer em situações difí­ceis, etc ... Eu ficava observando tudo de longe, ouvindo a apreen­siva mãe trazer seus receios e ouvindo também conselhos de como cuidar do "menino".

De minha parte, fiquei pensando que na nossa tradição indí­gena as mães também lamentam muito quando os filhos saem para fazer seu ritual de passagem. Lembrei que foi assim que aconteceu comigo quando saí para ficar sete dias no mato. Mi­nha mãe, assim como todas as outras mães, chorou. Chorou por dois motivos: um, porque a gente poderia não mais voltar, ser atacado por uma fera da floresta; dois, porque quando retornás­semos já não seria mais um menino, seria um homem e teria que ser tratado como tal. Para as mães é sempre um momento deli­cado. Por isso tudo compreendia a apreensão de minha cara ami­ga. Por outro lado, não podia interferir por se tratar de um mo­mento especial e de exercício de liberdade. Quando voltamos da mata, somos tratados como adultos, recebemos o respeito de to­dos, o olhar das moças da' aldeia e a permissão de nos casar, caso a gente queira. Imaginava que isso tudo estava acontecen­do com o menino Lucas .

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TERROR

NO PÁSSARO

DE FERRO

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O avião é algo novo no imaginário indígena. Aliás, é novo também para o não-índio, uma vez que é uma invenção recen­te, se pensarmos no tempo que o ser humano levou para inven­tá-lo. No caso indígena, então, há todo um espanto causado pela chegada desse aparelho que toma conta dos céus como um gran­de pássaro.

O povo Xavante - que foi contatado há 50 anos - conta que quando viu um avião pela primeira vez achou que estava sendo invadido por grandes pássaros de ferro e imediatamente pas­saram a tentar acertá-lo com suas poderosas flechas. As mu­lheres e crianças ficaram dentro das casas esperando que a qualquer momento fossem exterminadas por aqueles estranhos aparelhos celestes. Mas tudo não passou da chegada dos homens brancos em sua aldeia. No entanto, isso marcou profundamen­te o coração desse povo, que por longo tempo foi senhor absolu­to do cerrado.

A tecnologia indígena é bastante simples, útil. O nativo de­senvolve uma forma muito própria de relacionar- se com a na tu­reza, dela tirando tudo o que precisa para o dia-a-dia. Essa tro­ca exige uma tecnologia que não está baseada em criar coisas para acumular bens. Ao contrário, inventamos os objetos que nos ajudam a nos tornar cada vez mais livres .

..

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os

as que

UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO

Com a chegada do homem branco, os povos indígenas tiveram que se adaptar a essa nova realidade, inclusive utilizando esses mesmos recursos para sobreviver e mostrar- se ao mundo. Hoje, muitos desses grupos já estão criando páginas na internet, pro­duzindo documentários, indo para~ universidade, escrevendo livros, entre outras coisas.

O avião tem sido um instrumento usado por muitos grupos para poder se locomover para participar de eventos no mundo todo, mas não é sem nenhum medo, não. Ao contrário, dentro das aldeias há muitas histórias que falam sobre a presença do avião na vida dos povos indígenas. Alguns pesquisadores chegaram a encontrar desenhos antigos nas cavernas que registraram a pre­sença de objetos voadores, tais como o próprio avião.

Chegar na aldeia Katõ é uma grande aventura. Para ganhar tempo é preciso tomar um avião em São Paulo rumo a Belém, a bela capital paraense. Em seguid'a, pega- se outro que nos leva até Santarém. Isto em uma grande companhia aérea. Quando se chega em Santarém, é preciso mudar de transporte. Tomamos um barco a motor e seguimos até a cidade de Itaituba, uma an­tiga localidade que cresceu em função do garimpo descoberto na década de 1960. Em função desse ouro, Itaituba ocupou mui­tas manchetes nacionais como a cidade mais violenta do país. Como era uma área indígena, houve muito confronto entre ín­dias e garimpeiros. Depois ela cresceu, desenvolvendo uma eco­nomia baseada no comércio de gêneros alimentícios para outras áreas de garimpos que foram aparecendo com o passar dos anos. Ainda hoje ela abriga aldeias indígenas em seu território.

De Itaituba temos que tomar um avião para outra cidade de nome Jacareacanga. Ela abrange toda a área indígena Mundu­ruku. Pertencia a Itaituba até 15 anos atrás, quando se eman­cipou tórnando- se um município independente e assumindo uma identidade própria, buscando uma economia auto-sustentável. Nesse município habitam cerca de sessenta mil pessoas, sendo dez mil do grupo Munduruku. E também não é tão fácil viver num lugar como esse. Meu amigo Lucas sentiu isso na pele, es-

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pecialmente quando entramos na barriga do pássaro de ferro, indo de Itaituba a Jacareacanga.

Chegamos ao pequeno aeroporto da cidade com um certo atra­so. Uma chuva já se formava no horizonte. Tivemos que nos apressar um pouco mais, pois a pequena aeronave queria par­tir antes da chuva, caso contrário só sairia no dia seguinte, o que para nós não era uma boa idéia. Por isso nos apressamos e resolvemos embarcar imediatamente.

O bimotor- que em geral leva apenas cinco passageiros - es­tava lotado. Contando as pessoas e as malas, era quase impos­sível caber sequer mais uma única mosca. Nós nos acomodamos do jeito que foi possível. Tão logo nos assentamos, o piloto deu partida e colocou a aeronave em movimento. Lá fora o vento já apresentava sua majestade e alguns passageiros demonstravam certo receio naquela viagem.

O avião tomou velocidade de decolagem e logo alçou vôo. De iní­cio sentimos que a viagem não seria das melhores, pois o bimotor batia contra o vento e era jogado ora para um lado ora para outro. O piloto tentava controlar o aparelho, mas não conseguia. Todos nos segurávamos do jeito que era possível. Mas o pior ainda esta­va por vir. Uma grossa chuva começou a bater contra o pára-brisa do aparelho, fazendo-nos entrever um breve acidente aéreo.

Havia um rapaz que viajava próximo ao Lucas. Com o decor­rer dos fatos, o jovem foi se desesperando de tal modo que pas­sou a gritar, dizendo que não queria morrer, que ainda era jo­vem, tinha muitas coisas a realizar, etc. Seus gritos apavoravam a todos, provocando desconforto.

O piloto pediu para qu~ o rapaz se controlasse para evitar o pâ­nico entre os passageiros. Só então o jovem se conteve. A chuva começou a ficar cada vez mais forte, lançando torrentes sobre a pequena aeronave, que resistia bravamente. O piloto fez uma ma­nobra radical e levou o aparelho para as alturas, tentando ficar acima das nuvens de chuva. Felizmente ele conseguiu, diminuin­do o pavor de que a aeronave caísse. Mas o alívio só foi total no momento em que o avião aterrissou em Jacareacanga.

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4

A CAMINHO

DA ALDEIA

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Depois de ter passado tanto sufoco no pássaro de ferro, Lucas e eu só queríamos um lugar para descansar. Porém, tão logo che­gamos, já havia um automóvel para nos levar direto para a beira do rio, onde um barco a motor nos esperava. No entanto, existia um problema: a cidade estava sem combustível. Ou seja, não tí­nhamos como sair dali por pelo menos dois dias. Isso nos obrigou a ficar na cidade. Mas nem tudo foi perdido, pois iniciamos um tra­balho de reconhecimento no município. Foi a oportunidade que precisávamos para conhecer melhor a realidade do local.

A aparência do Lucas causou um certo alvoroço entre as mo­ças dali. Ele é um jovem com um rosto bem delineado, de pele alvíssima, cabelos que iam até o meio das costas. Este tipo de gente não é muito comul!l na região, por isso todos voltaram so­bre ele o olhar.

-Senhor Lucas, o que o trouxe a nossa cidade? - Eu vim para conhecer a realidade daqui. - O senhor não tem medo do que vai encontrar por aqui? - Acho que não tenho por que ter medo. Não vim aqui para

brigar ou fazer qualquer tipo de discussão. Pelo contrário, es­tou aqui para conhecer o povo Munduruku.

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UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO

- Por que o senhor resolveu conhecer este povo e não outro qualquer?

-Porque conheci um Munduruku, de quem fiquei amigo, e re ­solvi vir conhecer como vive a gente dele.

Foi assim que correu a pequena entrevista que Lucas teve que dar para a única rádio da cidade. Pelas ·perguntas se podia sentir que havia certa inquietude nas pessoas, pois em cidades pequenas sempre há alguma desconfiança e insegurança, sobretudo se quem vem se parece com um europeu e está acompanhado por um índio. Quase sempre as pessoas acham que está havendo algum tipo de movimento para acabar com elas, destruí-las. Apesar disso, a po­pulação local tem uma vida cordial com a comunidade indígena.

Também Lucas teve que se encontrar com o prefeito da cida­de e foi, inclusive, por conta dessa conversa que conseguimos combustível para prosseguir a viagem para a aldeia .

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DANIEL MUNDURUKU

Nossa ida para a aldeia iniciou-se tão logo o dia raiou. Levan­tamos por volta das cinco horas e fomos direto para o posto de ga­salina suspenso, que fica a três quilômetros da cidade. Embarca­mos num velho caminhão com outras seis pessoas que iriam a pro­veitar nossa embarcação para ir junto. Tão logo chegamos, Nico­lau, o piloto que nos levaria, abasteceu o barco e deu ordem de partida. Todos nos assentamos do melhor jeito possível e inicia­mos a viagem, que duraria aproximadamente oito horas, cor­tando o igarapé cabitutu que nos levaria até a aldeia Katõ.

A floresta amazônica é algo surpreendente. Eu a conheço bem e sempre me extasio diante de sua grandiosidade e bele­za. Em muitos lugares só se chega a pé ou de canoa. Alguns braços dos seus rios são tão sinuosos que nem mesmo o mais experiente piloto se aventura a desobedecer as ordens que essa natureza impõe.

Nicolau, no entanto, já havia feito tantas vezes aquele cami­nho que o conhecia de cor e salteado e, ainda assim, seguia um ritual do qual não abria mão. Preferia sair bem cedinho para evitar surpresas como a chuva, o mau tempo e outros pequenos incidentes que sempre acontecem. Um desses "incidentes" ele nos contou quando já estávamos em pleno Tapajós.

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UM ENCONTRO

ami-

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DANIEL MUNDURUKU

Nicolau assentou-se ao nosso lado, mas sempre de olhos vol­tados para o caminho das águas. Mesmo atento foi nos contan­do o encontro que ele jurou que teve com a Mãe-d'água num dia em que ele teimou desobedecer e descumpriu o seu ritual.

"Era uma noite sem lua e precisávamos vir para a cidade tra­zer um doente para o hospital local. Ninguém estava muito dis­posto a sair de casa porque, em noites como aquela, muita coi­sa poderia acontecer. Eu também não estava com muita vonta­de de ir para aquela viagem porque ela foi arranjada em cima da hora e eu nunca viajo dessa maneira. Mas naquela noite ha­via uma emergência: uma cr iança tinha sido mordida por uma cobra cascavel das mais venenosas. Se ela não fosse carregada imediatamente ao hospitaJ, acabaria morrendo. E como o meni­no era meu sobrinho e o cacique foi pessoalmente me pedir para ir, eu não pude recusar. Consegui que um outro primo fosse co­migo mais a mãe do menino. No total éramos quatro pessoas.

Embar camos por volta da meia-noite, hora dos espíritos es­tarem rondando os rios . Liguei o motor da voadeira e lancei um olhar para cima, pedindo a proteção dos ancestrais . Na primei­ra hora foi tudo muito tranqüilo, sem sobressaltos. Meu sobri-

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UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO

n ho e sua mãe cochilavam no barco e meu primo ia clareando o caminho com uma lanterna de mão. De repente o motor começou a falhar, até que parou totalmente e ficamos à deriva. Falei para meu primo que era preciso remar até a aldeia Taperebá para que pudéssemos pedir auxílio. Ele pegou o remo e se pôs a im­pulsionar a canoa, enquanto eu olhava o motor para ver se ti­nha acontecido algum problema de fácil solução. No entanto, por mais que eu procurasse, não conseguia encontrar o local onde tinha ocorrido a avaria. Minha sensação era de que algo muito estranho tinha acontecido ao motor, porque eu não havia percebido nada de anormal pelo caminho. Mesmo assim, tenta­va encontrar o problema. Abaixado, não percebi que meu primo havia sumido da proa do barco. Levantei apenas quando ouvi um estranho barulho na água, como se alguém tivesse mergulha­do. Quando percebi que meu primo não estava ali, me deu um de­sespero e achei que ele tinha cochilado e caído n'água. Corri para a proa gritando por ele, acordando, inclusive, os outros passagei­ros. Quando ali cheguei, meu primo pedia para que eu o pegasse rapidamente porque a Mãe-d'água estava querendo levá-lo para o fundo do rio. Estendi meu braço para ele e o agarrei com força, alçando-o para dentro da canoa. Ele estava todo encharcado e ti­ritando de frio. Joguei uma toalha sobre ele a fim de aquecê-lo.

Como a noite estava muito escura, não pude ver nada a nossa frente. Todos estávamos com muito medo e nos sentamos junti­nhas, pois nossos velhos dizem que a Mãe-d'água nunca desis­te quando quer levar alguém consigo. Ela precisa, vez ou outra, encontrar um homem para morar com ela no seu lugar de des­canso. Existem muitas histórias de nosso povo que falam do su­miço misterioso de rapazes. Ninguém sabe para onde foram ou se met~ram. Existe até a história de um que sumiu e voltou de­pois de algum tempo, não se sabe de onde. Ele apareceu na al­deia muito pálido e sem conseguir mais falar. Passou a comu­nicar-se por meio de sinais, pois não sabia ler nem escrever. Al­guns acham que ele fora enfeitiçado pela Mãe-d'água para nun­ca revelar o segredo de sua casa.

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Pois bem, quando o primo recuperou o fôlego, perguntei a ele o que havia visto. Ele disse, então, que viu uma mulher muito bonita no meio das árvores. Ela o chamava através de uma mú­sica que, aparentemente, só ele escutava. Tentou firmar o olhar para poder enxergar melhor, mas viu apenas uma sombra. Al­cançou a lanterna que estava no fundo do barco, e quando ten­tou clarear o lado da floresta onde estava a mulher, foi puxado para dentro do rio. No entanto, como estávamos pertinho da margem, ele agarrou-se a uma árvore. Foi nesse momento que prestei atenção e corri para a proa, segurando-o. Caso contrá­rio ele teria sido sugado para dentro do rio, de onde não sairia nunca mais."

Tendo dito isso, Nicolau calou-se um instante. Lucas, com um ar incrédulo, não perdeu a chance de fazer perguntas a Nicolau.

-Você acha que realmente foi a Mãe -d'água que fez isso? Não teria sido um cochilo que seu primo deu e acabou caindo na água?

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-Tenho certeza de qúe não foi um cochilo, pariwat. Todos nós estamos acostumados a viajar por muitas horas nestes rios to­dos. Conhecemos cada palmo a nossa frente. Depois, ninguém cochila enquanto rema um barco.

- Mas se ele não sabe o que viu, coll?-o pode afirmar que era a Mãe-d'água?

- Ele sabe o que viu. Nós da floresta temos nossos sentidos muito treinados para poder sobreviver aqui. Quem não sabe o que vê não sobrevive também. Além disso, oboré, tem coisas que a gente só enxerga bem quando está de olhos fechados.

-Isso parece apenas mais uma lenda, um mito para assustar as pessoas ...

- Talvez seja assim que as pessoas pensem na cidade porque elas estão rodeadas de claridade por todos os lados. Por isso os espíritos que habitam a cidade não se manifestam e as pessoas acabam tendo medo umas das outras, verdadeiros fantasmas. Aqui nós não temos medo uns dos outros que vemos, temos medo do que não vemos, mas sabemos que existe.

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Assisti passivamente à conversa dos dois. Na verdade, estava admirado com a desenvoltura de Nicolau em explicar as coisas da tradição para Lucas, que, claro, apesar de ser nosso amigo, tinha uma formação mental da grande cidade, onde as -pessoas são criadas quase sem nenhuma fantasia ou preferem esconder suas crenças com medo de parecerem ridículas.

Enquanto pensava nisso, Nicolau retomou a palavra e termi­nou sua narrativa, lembrando por que, a partir daquele dia, de­cidiu nunca mais viajar de noite e seguir seu próprio ritual de embarcar sempre pela manhã, quando o sol anunciava seus pri­meiros raios.

Enquanto ia observando o sol se projetar sobre as árvores criando prismas na água revolvidas pelo motor do barco fiquei imaginando o que Lucas estava pensando naquele momento. Tal­vez ele pensasse em como o povo indígena é supersticioso por acreditar em espíritos que vagam pela floresta atrás das víti­mas; ou talvez estivesse imaginando qual seria sua reação caso ocorresse com ele um evento dessa natureza; ou, ainda, imagi­nasse como seria morar no reino da Mãe-d'água ... enfim, talvez estivesse apenas querendo compreender estes mistérios que cir­cundam os povos indígenas do Brasil... talvez.

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Depois daquela história que Nicolau nos contou, ficamos um tempão sentados, quietos, observando os movimentos ao nosso redor. Vez em quando um grande mutum batia as asas sobre nós, fugindo do barulho da voadeira. Vimos tucanos, araras, jacarés, que nos vigiavam a distância. Lucas, como um bom turista her­deiro do avô, procurava registrar tudo com sua câmera filma ­dora e sua máquina fotográfica. Eram seus outros olhos, ele di­zia. Assim passaram- se mais algumas horas da viagem.

De repente Nicolau nos chamou e apontou para cima. Lucas olhou com atenção, mas nada entendeu. Nicolau gritou lá do seu lugar:

-Estes pássaros estão dizendo duas coisas. Primeira: mais tarde vai chover; segunda: aconteceu algum fato triste por aqui. Daqui a pouco iremos saber o que é, pois estamos chegando na aldeia Terra Preta. Certamente eles terão um café com melancia para nós.

Quando Nicolau calou-se, Lucas não se conteve e veio me fa-zer uma série de perguntas.

- Como ele sabe disso? - Disso o quê?- falei querendo provocar o menino. -Dos pássaros. Como ele sabe que os pássaros estão falando

isso? Ele é, por acaso, uma espécie de bruxo?

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- Claro que não, Lucas- disse sorrindo.- A gente acredita que os pássaros são mensageiros dos espíritos do tempo. Eles são capazes de ver além do que vemos e sempre nos falam o que vai acontecer.

-Mas como é possível aprender isso, essa linguagem? - O vôo deles é como uma escrita; um texto que a gente vai

aprendendo a ler. É claro que para isso a gente precisa treinar bastante.

-Quem é que ensina essa escrita? - Normalmente são os velhos. Meu avô mesmo me ensinava

esses códigos deitado no chão e apontando para os pássaros. Para nós que vivemos na floresta é importante saber esses có ­digos para que a gente não se perca quando está sozinho.

- E todos os pássaros são mensageiros? - Não, Lucas, apenas aqueles que voam alto. Lucas pareceu se satisfazer com as minhas respostas, pois

virou para o lado e ficou procurando pássaros no alto do céu. Queria registrar com seus outros olhos.

Enquanto nos aproximávamos da aldeia Terra Preta, vimos que ali também chegava um outro barco vindo do lado oposto. Ele trazia o motivo do vôo dos pássaros a que Nicolau se refe­ria. Trazia um caixão todo fechado. Do barco saíram alguns pa­rentes do falecido. Ficamos curiosos para saber o que havia acontecido e saltamos imediatamente do barco no ancoradouro da aldeia, que estava já cheio de gente. A atenção estava toda voltada para o caixão e seu ocupante, de modo que as pessoas nem nos notaram direito.

Nicolau encostou a embarcação e aproximou-se para especu­lar o que havia ocorrido. Ninguém sabia direito. Disseram ape ­nas q~e havia morrido por ingestão da raiz do timbó, um conhecido veneno para pescaria coletiva. As hipóteses ali eram várias: alguns diziam que ele se matou porque tinha ciúmes da mulher com outros homens; outros falavam que ele ficou enfeitiçado por algum espírito da floresta e queria morrer para juntar-se a ele; havia quem dissesse que ele não estava muito

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bem da cabeça depois que seu filho de seis anos morrera ao cair de uma árvore; ou ainda que a morte da criança o fizera cair numa bebedeira lascada que o levara ao suicídio. Tudo isso, po­rém, eram apenas especulações das pessoas, uma vez que nin­guém sabia ao certo o que ocorrera.

Como acontece entre os Munduruku, os parentes do morto estavam muito tristes e chorosos. Entramos na casa onde seria realizado o funeral e o enterro e vimos um grupo de mulheres assentadas de cócoras, chorando, dando pequenos gritos de dor e falando em sua língua que iriam sentir muita saudade dele e que lhe desejavam uma boa viagem para a terra dos antepassa­dos, onde um dia todos iriam se encontrar.

Lucas não estava entendo nada daquilo. Aproximou- se mais de mim e fui explicando a ele cada momento do ritual que ocor­ria naquela hora.

Conforme as pessoas que visitavam o local viam o cadáver, saíam para dar vez aos outros que queriam entrar. Saímos tam­bém para o terreiro. Somente nesse momento aproximou-se de nós o cacique da aldeia. Cumprimentou primeiro Nicolau, por

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ser o mais velho do nosso grupo. Em seguida cumprimentou-me e a Lucas. Contei ao cacique Pedrinho o motivo de nossa viagem e que teria desejado chegar num momento menos triste para po­der conversar assuntos mais alegres. Ele entendeu e nos condu­ziu até sua residência. Nisso foi se'guJdo por sua esposa, que logo providenciou café, água, farinha de tapioca e melancia para to­dos nós. É claro que comemos tudo com muito gosto, pois está­vamos com fome.

Na versão que Pedrinho nos ofereceu, o jovem pai realmen­te não agüentou conviver com a morte do seu único filho, pre­ferindo a morte através da ingestão do veneno do timbó. Oca­cique nos lembrou que esse veneno tem um efeito muito longo, de modo que a pessoa que o toma tem possibilidade de voltar atrás caso queira. O jovem sofreu, no dizer do cacique, antes de morrer.

Pedi para que ele falasse um pouco sobre morrer para nosso povo, a fim de que o menino Lucas pudesse entender nossos rituais.

Imediatamente Pedrinho assumiu um ar professora!, como se fosse dar uma aula, e dirigiu- se a todos os presentes lançando um olhar instigador.

- Morrer - iniciou ele- é para nós um momento de muita tris­teza. Quando um dos nossos morre, todos morremos um pouco. Mas morrer para nós não é uma coisa ruim. Não é ruim para quem morre, é ruim para quem fica porque sente saudade du­rante um longo tempo. Morrer é ir encontrar-se com nossos an­tepassados, que vivem bem longe daqui, na nascente do grande rio Tapajós. Lá, segundo nossa tradição, é a casa dos nossos pri­meiros pais e é o local onde nos reunimos com eles.

Pedrinho fez uma pausa para respirar e tomar um gole de chi­bé - uma bebida feita de água e farinha - , além de comer uma boa fatia de melancia com farinha de tapioca.

- Nosso avô ancestral - retomou - conta que seus primeiros pais viviam dentro da terra. Era um lugar muito bonito, cheio de coisas boas; ninguém sentia fome, nem dor, nem morria nun­ca, todos eram muito felizes. Um dia, um jovem caçador esta-

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va passeando num local nunca antes visitado e viu um grande tatu, que passou a perseguir. Quanto mais próximo estava, mais o tatu se escondia e escapava de suas mãos . Até o mo­mento em que o caçador viu o tatu abrir um grande buraco no céu para poder escapar. O moço, que nunca desistia de uma caça, foi até a floresta, apanhou um bocado de cipós e cons­truiu uma grande corda com a qual laçou o buraco. Como per­cebeu que ela havia se prendido, subiu na corda e visitou aque­le mundo que ele desconhecia . No entanto, ficou com medo e resolveu chamar mais gente para conhecer sua descoberta. Veio gente de tudo que era lugar. Alguns quiseram subir imediata­mente, mesmo contra os conselhos dos anciãos, que insistiam para que tomassem cuidados para não fazer nenhuma boba­gem por lá e que ali era o lugar da felicidade. Como o número de pessoas que queria subir aumentava, a corda foi aos poucos cedendo. No exato momento em que iriam subir todos os ho­mens e mulheres mais formosos e sábios, a corda rompeu-se e

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o buraco fechou -se quase que imediatamente, separando os dois grupos. Os que estavam no lado de cima estavam tão dis­traídos com a beleza do lugar que não se deram conta da ca­tástrofe que havia acontecido. Foram se distanciando do local da fenda. Quando perceberam ' o ?corrido, quiseram voltar e descer, mas qual não foi a surpresa deles ao descobrir que não havia mais volta. Tiveram que construir casas e encontrar um jeito de viver naquele novo lugar. O mais interessante é que as casas que fizeram aqui repetiam o mesmo jeito das casas do fundo da terra. Repetiam os mesmos rituais para que nunca perdessem a memória do lugar de onde tinha vindo. Os primei­ros sábios daquele lugar ajudavam para que o povo não os es ­quecesse e diziam que voltariam para ali quando morressem. É por isso que eu digo que quando a gente morre volta para aquele lugar.

Lucas não se conteve e quis s'aber mais coisas sobre a morte. - Se já sabem para onde vai, por que choram então?

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- Porque somos todos humanos e sentimos saudade das pes ­soas que viveram perto da gente. Esse moço que morreu, por exemplo, escolheu morrer para estar mais perto ~o seu filho único. A gente chora, Lucas, porque a gente acredita que nosso choro ajuda a passar nossa tristeza e porque faz com que as pessoas se libertem do parente morto, ajudando-o a fazer a via­gem até o lugar dos antepassados.

-E depois que passa esse momento do choro? - Durante um mês inteiro os parentes do morto choram e

depois nunca mais pensam nele. É como se houvesse uma liber­tação, como se a gente tivesse certeza que ele chegou no lugar dos nossos antepassados. Então ele está melhor lá do que aqui e de lá ele vai olhar para a gente e vai vir nos visitar nos sonhos.

Fiquei bastante admirado com a conversa de Pedrinho. Não é muito comum abrir essas considerações para estranhos, mas por algum motivo o cacique se sentiu à vontade com o menino Lucas . Na verdade, acho lque ele aproveitou para falar para to­das as pessoas que haviam se reunido ali.

Ficamos conversando algumas amenidades, contando alguns fatos da cidade, enquanto aguardávamos as pessoas visitarem a casa do falecido. Pedrinho fez questão de nos mostrar toda a aldeia e o que estava nos arredores, como as plantações de mi­lho, arroz e mandioca. Ficamos admirados com o grau de orga­nização da aldeia e de como as crianças estavam todas muit o bem de saúde. Pedrinho nos contava com orgulho todo seu tra ­balho como agente de saúde na comunidade.

Enquanto convers~vamos, umjovem veio nos comunicar que era hora do enterro e que o pajé Mimi já havia chegado para f a ­zero ritual. Pedrinho apressou o passo e seguiu atrás do meni­no; nós tentávamos acompanhar os passos dele.

Todos estávamos no centro da casa. Ali tinham feito um bura­co onde o corpo seria colocado. À fr~nte, o pajé Mimi - que era com6 chamavam o velho Argemiro- segurando um maracá e uma pena do pássaro mutum. Ele examinou o local e se pôs a falar na

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língua dos espíritos. Dizia que a hora tinha chegado e pedia aos espíritos dos antepassados que levassem o parente para o lugar de onde tinha saído para esperar a todos nós.

Em seguida balançou fortemente o maracá para purificar o ambiente. Deu algumas voltas em to~no do buraco no chão e mandou que colocassem o corpo lá dentro. Alguns parentes o t iraram de sobre a mesa onde estava e o desceram na cova. Jun­t o com ele foram colocados os objetos pessoais: rede, arco e fle­cha, uma cabaça cheia d'água, um pouco de farinha e pimenta, alguns nacos de mandioca, milho e arroz. Como o buraco era re­lativamente fundo, não houve problema de espaço. Depois disso os parentes jogaram terra até ficar nivelado novamente. Saímos da casa e nos encaminhamos para a de Pedrinho. Ao longe ou­víamos os choros dos parentes.

Lucas tinha observado tudo num silencioso respeito. Repara­va em cada detalhe, nas palavras, rio rosto das pessoas, no res­peito que guardavam, nos rituais . Depois ele me confidenciou que ficou surpreso com a participação das crianças no funeral. Elas viam tudo com muito respeito. Procurei explicar a ele que para nós a morte não era um bicho-papão assustador. Ao con­trário disso, ela representa para nossa gente a oportunidade de nos unirmos com os antepassados.

-Vocês acreditam que ele volta um dia? Reencarna?- per­guntou-me de chofre.

- A gente acredita que podemos voltar sim, mas eu não sei como se chama isso, que nome se dá a esse fenômeno. A gente acredita que é possível retornar.

-E por que o morto é enterrado de pé e com a comida? - Porque a gente acredita que ele irá fazer uma viagem e pre-

cisa de a_limento para ela. Quanto a ser enterrado assim, é para facilitar sua caminhada.

- Achei estranho o fato de ser enterrado dentro da própria casa. Não há cemitérios?

- Sua casa é seu lugar preferido. É uma forma de homenagear o lugar onde ele viveu. Além do mais, seus parentes irão chorar

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durante trinta dias para ajudá -lo a atravessar o caminho que o separa do lugar dos antepassados, conforme você ouviu do caci­que Pedrinho. Os cemitérios distanciam os vivos dos _mortos.

- Vi que as crianças participam de tudo. Ninguém mandou que elas saíssem dali...

-Nós não temos medo da morte, amigo Lucas. E desde crian­ça nos dizem que ela é uma forma de nos encontrarmos com o espírito dos nossos antepassados. As crianças aprendem isso participando de todos os rituais da aldeia . Quando crescem, já sabem que isso faz parte da nossa vida social.

-Na cidade é muito diferente ... Quando Lucas tocou no assunto, algumas pessoas o olharam

como se quisessem que ele explicasse como é que as pessoas en­caram a morte nas grandes metrópoles. Ele ficou um pouco cons­trangido, mas não se fez de rogado. Sentou-se no meio delas e ficou explicando como o tema era tratado na cidade.

Deixei meu amigo falando sobre a morte e fui até onde o c a ­cique e o pajé estavam. Fiquei conversando, à espera do momen­to de continuar nossa viagem pelos igarapés que nos levariam para Katõ.

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A COBRA-

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Nicolau deu-nos a ordem para embarcamos imediatamente, pois o sol já estava bem alto no céu e o caminho ainda era lon­go até nosso destino final. i

Lucas foi o último a entrar. Havia estabelecido um contato bem interessante com as crianças, que o acompanhavam para todos os lugares que ele ia. Elas haviam gostado do jeito dele e também admiravam seus longos cabelos que desciam pelas c os­tas. Elas diziam que ele se parecia com uma mulher. Riam a va­ler dessa brincadeira que o pariwat curtia também.

A tarde já estava começando quando avançamos para nosso destino. Viajamos um bom momento sem trocar nenhuma pala­vra. Estávamos muito impressionados com os acontecimentos da aldeia Taperebá. Aproveitei para deitar um pouco no estrado do barco. Nessa posição podia contemplar o céu azulado da Ama­zônia. O cansaço era tão grande que cochilei. Foi o bastante para ter um sonho. Lembro que sonhei que tinha morri do e que es­tava a caminho das terras dos antepassados . Levava comigo meus pertences mais usados em vida. Caminhava sozinho. De repente fui atacado por um bando de pássaros selvagens que vinham bicar minha cabeça. Corri para debaixo das árvores

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para tentar me livrar deles, mas continuaram me perseguindo. Continuei correndo desesperadamente até encontrar uma pe­quena abertura de pedra, onde me enfiei. Imediatamente colo­quei minha rede na entrada e os pássaros não puderam mais entrar e me deixaram em paz. Depo~s que eles foram embora, sentei e só então percebi que aquela entrada era uma gruta mui­to grande, cujo final não conseguia enxergar tamanha era a es­curidão. Fiquei em dúvida sobre entrar nela ou não. Como não tinha certeza, acabei saindo dali e retomando o caminho para o lugar dos antepassados .

Lembro que esse sonho me deixou pensativo durante algu­mas horas. Será que era um aviso? Será que eu estava para mor­rer? O que meus antepassados queriam dizer com aquilo? Por que vieram visitar-me em sonhos?

Meio perdido nesses pensament os, não notei que Nicolau es­tava um tanto agitado. Ele esticava o pescoço querendo ver al­guma coisa no meio da água. Diminuiu a velocidade e passou a ficar mais atento. Lucas e eu ficamos apreensivos .

- O que você está procurando, Nico? -perguntei. Ele apenas me olhou, sem se mover do lugar.

Na expectativa do que iria acontecer, ficamos atentos ao lo­cal que Nicolau apontava sempre. O barco singrava lentamen­te seguindo o fluxo das águas, enquanto o piloto dava o rumo usando um remo de madeira. De repente ouvimos um barulho vindo de mais longe e notamos uma pequena elevação que pa­recia ser uma cobra. Olhamos para o piloto, que também obser­vava o local. Parecendo que estava lendo meu pensamento ex­clamou:

-É uma cobra e das grandes . Acho que é uma sucuriju, tam­bém ch_amada de cobra-grande. Temos que ter cuidado e ver o que ela está querendo, ou se está com fome. Se estiver por aqui atrás de comida, ela pode virar nosso barco e daí não vai sobrar nenhum de nós para contar história.

Lucas ficou apreensivo com as palavras do piloto, mas resol­veu disfarçar seu temor mirando a lente de sua filmadora na

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tentativa de registrar aquele momento precioso. Infelizmente nada gravou, talvez por causa do medo.

Nicolau continuou atento, mas como nada mais viu ~ sossegou no seu lugar. Mais relaxado, evitando ligar o motor por precau­ção, ele nos contou que as histórias sobre a cobra-grande são muitas e que os riscos que se correm ao vê -la são tantos que é melhor nem lembrar.

Depois do susto, para brincar com Lucas, eu lhe contei sobre as histórias da boiúna que correm pela Amazônia. Falei sobre os habitantes da floresta, que, entre nós, essas histórias não são tratadas como lendas ou conversas para assustar criancinhas; ao contrário, elas são contadas justamente porque foram expe­rimentadas pelas pessoas . Quando a gente trata essas histórias como folclore, lendas ou histórias da carochinha, estamos per­dendo o medo do desconhecido e apagando em nós a fantasia que dá sentido à nossa existência.

Acho que Lucas não entendeu nada do que lhe falei. Ao me­nos achei que foi assim, uina vez que ele apenas balançou a ca­beça, aprovando o que eu havia dito .

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UM

ESTRANHO

NA ALDEIA

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Finalmente chegamos até o Katõ, aldeia que me viu crescer. Estávamos cansados e desejando um pouco de sossego. Ao me­nos era isso que todos esperávamos, mas nossa surpresa foi grande quando vimos muita gente no porto, a nossa espera. Não tanto por minha causa, mas porque as notícias sobre o Lucas já haviam nos precedido e todos queriam ver o pariwat de cabelos longos . Foi sucesso imediato.

As crianças imediatamente rodearam o rapaz, que não sa ­bia como proceder naquele momento. Senti que lançou um olhar pedindo SOS. Fui até ele e dispersei a meninada, que mesmo assim o seguiu até a casa onde íamos nos hospedar. Todos faziam um grande alvoroço, quebrando o silêncio que sempre acompanha~ aldeia.

Lá, eram os adultos quem nos esperavam. Cumprimentamos o cacique Arnaldo em primeiro lugar, pois nossa tradição ensi­na que devemos saudar primeiro o cacique da aldeia e depois os outros, iniciando pelos mais velhos. Apresentei o menino para os adultos, que o crivaram de perguntas. Lucas resistia a tudo de forma heróica, sem reclamações . O velho Biboy, um líder ca­rismático daquela aldeia, colocou-nos a par dos assuntos que

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haviam acontecido ali nos últimos dias. Fez um verdadeiro rela­tório. Entre outras coisas, falou-nos das invasões que garimpei­ros estavam fazendo dentro da área e que isto ocasionava ten­são em todas as aldeias, tornando a iminência do conflito cada vez mais certa.

Lucas ouvia tudo com atenção, mas 'já estava demonstrando grande cansaço. Tomei a palavra e disse que precisávamos des­cansar. Falei um pouco das novidades da cidade e convidei to­dos para uma refeição com os alimentos que nós lhes trouxe ­mos. Os homens adultos dispensaram as crianças e chamaram as mulheres para acompanhá-los.

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Durante o jantar, recheado por farinha de mandioca, caldo de peixe e a carne de um veado, continuamos a conversar sobre as­suntos gerais . Depois Biboy voltou a perguntar sobre o menino Lucas. Quem era ele? O que queria ali? Agüentaria umá vida como aquela? Não sentiria muita saudade da mãe?

Procurei mostrar a eles que Lucas era sim um menino ainda inexperiente e que aquela era sua primeira viagem fora de sua cidade e que valeria a pena ser bem tratado por todos. Acres­centei que qualquer ajuda seria muito boa para que o menino pudesse sentir- se à vontade na aldeia. Todos garantiram que o ajudariam, pois sabiam que era um bom menino.

Ainda naquela noite ouvimos um pouco de música cantada pelas crianças da aldeia e pelo velho Biboy, mas não tivemos condições de ouvir as histórias que ele queria nos contar. Ficou combinado que as ouviríamos no dia seguinte. Com todas essas emoções, descansamos naquela noite de setembro, a primeira de Lucas numa aldeia indígena.

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UM DIA

NA ALDEIA

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Faz parte da tradição dos povos indígenas acordar muito cedo para iniciar as atividades. Normalmente homens e mulheres fa­zem seu planejamento rio dia anterior e já levantam sabendo exatamente o que devem fazer nesse novo dia.

Cabe aos homens o cuidado com a aldeia e com sua família, sendo os responsáveis por prover o alimento, tarefa que exige mais destreza e coragem. Esse alimento é a carne de caça e de peixe e o mel silvestre. Além disso, devem ajudar as mulheres em sua lida diária no preparo da farinha e no trabalho na roça.

Às mulheres cabem os afazeres da casa, coletar frutas, plan­tar a mandioca e posteriormente processá-la para tornar-se o pão de cada dia. Alé:rp. disso, devem cuidar da caça que o mari­do traz, preparar a comida e tomar conta das crianças. É um trabalho estafante, que começa muito cedo e não tem hora para terminar.

Já as crianças têm total liberdade para fazer o que quiserem. Não são obrigadas a realizar nenhum tipo de trabalho, a não ser pequenas tarefas que lhes são sugeridas pelas mães. Elas as f a­zem com alegria, pois sabem que estão contribuindo para o bom .,

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andamento da vida cotidiana e com isso aprendem coisas im­portantes para a vida adulta. As crianças brincam o tempo todo. Suas brincadeiras têm a ver com aquilo que utilizarão mais tar­de, quando já serão consideradas adultas por sua família .

Brincam de imitar os animais apertas para subir nas árvores; de pescar e caçar; de pega-pega; brincam de correr nas proxi ­midades da aldeia. Com isso elas acabam fazendo o reconheci­mento dos espaços no entorno de onde vivem.

Os adolescentes (hoje em dia já é mais comum usar este ter­mo, mas antigamente não se tinha essa nomenclatura para as pessoas em crescimento, já que crescer é algo que acontece du­rante a vida toda) acompanham os pais em suas atividades di á­rias. Eles os ajudam a desenvolver as ações voltadas para o sus­tento da comunidade. Meninos e meninas estão em fase de aprendizado e por isso acompanham sempre a mãe e o pai. Com essa atitude, os jovens vão treinando suas habilidades para aquilo que serão mais tarde, quando já estiverem assumindo sua própria família.

Assim passam-se os dias numa aldeia. O cotidiano é altera­do, às vezes, pela realização de algum ritual, de alguma festa ou de algum problema que aconteça e que tire as pessoas do seu dia-a- dia normal.

Quando chega a noite, outra vida começa na aldeia, pois é o momento em que as crianças se reúnem em torno dos mais ve­lhos para ouvir histórias de antigamente, dançar e cantar em volta da fogueira. É claro que hoje em dia já existe também a televisão, que exerce grande influência sobre as crianças e os jovens, especialmente as novelas e os jogos de futebol. Parte das pessoas vai ouvir histórias e outra vai para a televisão.

Quando acordamos na manhã seguinte, o sol já estava alto e as pessoas já tinham saído para o dia de trabalho. Acordamos com o velho Biboy falando pelos corredores. Falava alto como se quisesse mesmo nos acordar. Achei que já era mais tarde do que de fato era. Olhei no relógio e vi que não passava das seis e

l

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meia da manhã. Um pouco sobressaltados, levantamos de nos­sas redes e fomos fazer nossa higiene pessoal na beira do rio. Biboy ficou nos aguardando na sala. _

Quando voltamos, o sábio homem logo pediu café para todos. Algumas mulheres foram nos servindo, trazendo também farinha de tapioca e beiju. Comemos à vontade. Foi uma farta refeição.

-Então, parente, o que você trouxe de bom para nós? - per­guntou o cacique Arnaldo, que já havia entrado na casa.

- Na verdade, cacique, não trouxemos muita coisa, já que não temos tanto dinheiro para comprar muitos presentes. Mas pudemos trazer alguns anzóis para a pesca, linha de pescar, algumas camisetas, bastante miçanga para fazer colares e pul ­seiras para todos .

- Para nós é já uma grande coisa - disse Arnaldo. -E fumo? Trouxeram fumo? - falou uma voz no fundo da sala.

Era o pajé Chiquinho, que também chegara. - Claro que trouxemos um pouco de tauari para o pajé- falei,

arrancando um sorriso de contentamento do homem. Dito isso, passamos a distribuir os poucos brindes que levá­

ramos . Mulheres vinham de todos os cantos da aldeia. Traziam

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colares feitos com sementes e dentes de macaco. Vinham para trocá-los por miçanga. Uma fila enorme se organizou. Não sa­bíamos bem como distribuir, mas o velho Biboy assumiu o tra­balho de dividir entre todos. Fez de forma tão organizada que ninguém ficou privado de um pouco de miçanga.

Durante a distribuição chegaram aigumas crianças e não vi e­ram sozinhas. Trouxeram seus animais de estimação, como ma­cacos, bichos-preguiça, cutia, araras. Aquele momento tornou­se mágico para Lucas, que apreciava tudo do seu canto: tirava foto, filmava e procurava chamar a atenção das crianças com seus desenhos improvisados. A tática de aproximação deu cer­to e logo Lucas estava rodeado por um monte delas, que davam gostosas risadas junto com o pariwat.

Permaneci na casa com os velhos e Lucas saiu com as crian­ças. Gostei da iniciativa dele. Era um bom sinal, muito embora um rapaz da idade dele não se juntaria com crianças dentro de nossa sociedade. Mas o gesto dele foi bem entendido por nossa gente.

-Vai ser o momento dele aprender coisas de nossa aldeia. E a melhor maneira de fazer isso é com as crianças - disse Biboy.

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- Às vezes o melhor é deixar que se aprenda com crianças, pois sabemos que os jovens daqui são bem desconfiados e até eles se aproximarem de Lucas iria demorar muito teii?-po e tem­po é algo que não temos - disse eu, olhando um pouco para os jovens que a tudo ouviam sem se pronunciar.

-Não tenha receio, meu primo- quem falou foi o professor Misael, que adentrara o recinto com um certo estardalhaço -logo nosso novo amigo vai se acostumar com a gente. Afinal, pri­mo, por que os pariwat olham para nós com medo?

A pergunta do professor me deixou um pouco surpreso. Os Mundurukujá não estão com bastante tempo de contato? Não é tempo suficiente para entender como funciona a cabeça dos pa­riwat? O que o jovem professor queria provocar com aquela per­gunta?

Um silêncio prevaleceu na sala após a indagação de Misael. Todos esperavam algum tipo de resposta. Achei que deveria di­zer algo, mas nada me ocorria no momento. Pensei num caso que havia acontecido comigo àlgum tempo atrás .

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Uma vez fui a uma escola conversar com as crianças sobre os indígenas do Brasil. Gosto de fazer isso porque acredito que as crianças e os jovens são mais fáceis de mudar seu pensamento que os adultos. Tinha sido convidado pela diretora e por isso me dirigi a ela quando cheguei à escola. Estava vestido normal­mente e nada em mim era de espantar ou causar constrangi­menta. Aliás, sempre fiz questão de conversar com as crianças desse jeito porque assim elas poderiam ver a transformação acontecendo e aprender que há muitas formas de ser índio hoje no Brasil.

Alguns dias antes de ir até a escola contei para a diretora, em detalhes, o que iria fazer e disse-lhe que não se preocupasse porque tudo sairia de acordo com o combinado.

Quando cheguei lá, as•criançasjá estavam me esperando com uma certa tensão. Eu senti isso no ar e já fui me preparando para o pior.

No final da sala de aula estava a professora e atrás dela ha­via uma menininha de uns cinco anos de idade. Ela estava agar­rada à saia da professora de tal modo que parecia que ia arran­cá-la. A moça bem que tentou, fez de tudo para convencer a me-.,

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nina de que não tinha nenhum bicho-papão ali, ao contrário, havia uma pessoa que era diferente.

Nada disso adiantou e então pedi para que a mestra deixas­se que ela fizesse o que quisesse. Comecei, em seguida, a contar uma história que ia aos poucos prendendo a atenção dos meni­nos e das meninas. A garota, que continuava assustada e agar­rada à professora, foi relaxando até sentar no chão junto com seus colegas.

Quando percebi que ela tinha entrado no clima da minha con­versa, fui explicando para eles sobre a cultura de nossa gente, iniciando por falar sobre a pintura corporal. Tirei de minha bol­sa- um cesto Xavante que sempre trago comigo- um estojo com urucum e passei a pintar o meu rosto, causando alvoroço entre as crianças, que seguiam atentamente o meu gesto. Enquanto fazia isso, ia explicando o sentido que os povos indígenas da­vam à pintura corporal e como eram feitas as tintas.

A menininha que tinha tanto medo do índio foi relaxando e entrou na atividade de tal forma que foi a primeira a chegar- se até mim e pegar na minha mão quando os convidei para dançar uma música de meu povo. Foi também a primeira da fila na hora em que propus aos presentes uma pintura no rosto.

Contei essa história para os presentes àquela sala e todos ri­ram a valer. O professor Misael ficou parado por alguns instan­tes pensando na menina e em como ela tinha reagido. Em segui­da fez novas perguntas.

- Oboré, Daniel, eu entendi a história, mas não entendi por que ela tinha medo de índio. Ela não era muito pequena? De onde, então, veio esse medo?

- É difícil dizer, Misael, mas acho que as crianças têm esse medo por causa do que elas vêem na televisão ou lêem nos jor­nais. Ós jornais sempre trazem informações sobre os povos in­dígenas, mas muitas notícias mostram alguma coisa ruim sobre nossa cultura. Dessa maneira as pessoas acham que o índio é selvagem, ou preguiçoso, violento ou atrasado. O pensamento de­las não consegue entender o nosso jeito de viver.

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-Não será por causa da escola também? - perguntou Arnal­do, que estava quietinho no canto, ouvindo tudo com bastante atenção.

-A escola é uma das principais culpadas, sim. Há professores que não se esforçam muito para aprender as coisas certas e aca­bam ensinando aquilo que eles aprenderam quando eram crian­ças. E o que eles aprenderam são os estereótipos, as caricaturas do que é a cultura indígena. Mas existem boas escolas e bons pro­fessores que fazem um trabalho muito sério com seus alunos.

- Quando se fala de nosso povo, o que mais assusta os pa­riwat?

- Quando eu digo que nosso povo caçava cabeça e dela fazia um troféu de guerra. Eu até brinco dizendo para eles não mexe­rem comigo senão cabeças rolarão ...

Disse isso acompanhando com alguns gestos e caretas e todos riram bastante. Em seguida começaram a sair da sala porque precisavam trabalhar para conseguir o que comer naquele dia. Concordamos em nos enco;ntrar à noite para contar outras histó­rias da cidade.

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Depois que todos deixaram a sala pedi que alguém fosse pro­curar Lucas, que tinha ~aído com as crianças e ainda não tinha voltado. Precisávamos providenciar nossa comida para aquele dia. Eu sabia que não ficaríamos com fome porque as pessoas da aldeia providenciariam o que comer, porém era importante participar do cotidiano delas e buscar - como todos fazem -nosso alimento diário.

Lucas chegou animado dizendo que havia brincado muito com as crianças e tinha aprendido, inclusive, algumas palavras na língua. Fiquei orgulhoso do rapaz. Combinamos o que faríamos de almoço e ele sugeriu uma pescaria. Era, na verdade, a coisa mais fácil, porque evitava que a gente saísse para a mata atrás de caça, uma vez que não tínhamos muito tempo para ficar ali. Chamei dois rapazes da comunidade para que providenciassem canoa, remos, iscas e varas de pescar, além de, é claro, arco e flecha. Pedi a Lucas que fosse com eles para saber onde conse­guir esse material.

Em dez minutos voltaram trazendo tudo e anunciando esta­rem prontos para a pescaria. Conferi o material e saímos, não sem antes avisar Lucas para não esquecer de·levar o boné, o pro-

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tetor solar e o seu facão. Por que será que os jovens sempre es­quecem coisas úteis?

Descemos o rio na pequena canoa pilotada por um dos garo­tos que nos acompanhavam. Seguimos durante meia hora até chegar num local que os pescadores gC?stavarn de ficar porque ali era mais fácil encontrar os peixes, já que eles iam até os bar­rancos atrás de comida.

O piloto parou a canoa e lançamos as varas de pescar ao rio. Um dos meninos empunhou o arco e a flecha e ficou no aguar­do de urna boa visão para atirar. Lucas o observava atentarnen­te para ver corno ele conseguiria fazer aquilo. Até se esqueceu de jogar sua linha. Depois o alertei para a pescaria.

O dia não estava muito bom. O igarapé apresentava calmaria e o sol, a pino, nos castigava lentamente. Para completar, havia muito carapanã circundando nossas cabeças e cantando urna mesma melodia bem em nossos ouvidos. "É a lida do pescador", pensei com os meus botões.

Assim, passamos boa parte da manhã sem conseguir nada. Mesmo o pescador com arco e flecha não visualizou nada inte ­ressante para mostrar sua destreza. Lucas se irnpacientava. "Moço da cidade não tem paciência", provocou Tawé da proa do barco, falando na língua. Karú achou graça do que o amigo ha ­via dito. Lucas não tinha entendido nada e batia nos braços para matar pernilongos que teimavam em atacá -lo.

- As pessoas da cidade têm outro tempo - eu disse. - Lá, o tempo passa mais rápido porque eles vivem em função do reló ­gio, que controla as horas. A mente deles está voltada para o mo­vimento, para o fazer as coisas sem pensar direito.

-Na cidade as pessoas vivem corno? Elas moram mesmo den­tro das c9-ixinhas corno vemos pela televisão?

Lucas arregalou os olhos e me encarou, meio desconfiado. Pedi a ele que respondesse aquela pergunta. Ele fez um gesto de quem não sabia o que dizer. Mesmo assim insisti para que respondes ­se. Ele voltou seu olhar para o rio, que corria lentamente, deu um inaudível suspiro e falou com os rapazes da canoa.

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- A nossa vida na cidade não segue o mesmo ritmo daqui da floresta porque a preocupação que a gente tem lá é muito dife­rente. A gente vive uma vida muito cheia de coisas p~a fazer. Lá a gente tem obrigações que aqui vocês não têm. Temos cobran ­ças da sociedade, da família, da escola, dos nossos amigos ... Te­mos que aprender milhões de coisas que nunca vão servir pra nada em nossa vida. Aqui pelo menos vocês só aprendem o que precisam e nada mais.

- Pelo visto você não aprendeu nada aqui - comentou Karú. - O que eu vi desde que comecei esta viagem mostra que há

mais liberdade para as pessoas porque vocês não estão preso aos horários estabelecidos por outras pessoas. Quem estabele­ce o que fazer são vocês mesmos. Não é assim?

-Nisso você tem razão. Aqui a gente faz o que quer e na hora que quer. Mas não é uma vida tão simples assim. A gente t eiL. obrigações que nossa comunidade nos dá e da qual a gente tam ­bém não pode fugir, senão nossos pais brigam com a gente.

- Que tipo de coisas são essas? -Temos que aprender o que nos vai ser útil no nosso dia- a-

dia, como caçar, pescar, coletar frutas, plantar mandioca, der­rubar mata para fazer roçado, ajudar a fazer farinha. Além dis ­so, temos que treinar nossos sentidos para ouvir os sons da mata, ler os sinais que os animais deixam, descobrir as plantas que nos fazem bem ou mal, aprender os cantos tradicionais, prepa­rar festas.

-Mas tudo isso não é gostoso de aprender?- perguntou Lu­cas admirado.

- Para fazer tudo isso a gente tem que dividir nosso tempo. Não pense que é pouco p'orque todos nós temos ainda que pra ­ticar os conhecimentos que aprendemos . Para isso passamos por alguns rituais que servem para nos provar, para ver se a gente aprendeu mesmo tudo- tomou a palavra Tawé, dirigindo -se a Lucas .

-É gostoso, sim, mas depois que a gente já passou por tudo isso. Durante o nosso aprendizado, sofre-se muito porque, di -

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zem nossos velhos, só se aprende de verdade quando passamos pelo sofrimento - arrematou Karú.

- É engraçado mesmo. Na cidade as pessoas costumam evitar a dor, o sofrimento porque acham que sofrer não é bom para elas, para os filhos, para a socieda~e. E mesmo evitando tudo isso as pessoas não parecem felizes. Já aqui, olhando vocês, as crianças, os velhos, as moças da aldeia, todos parecem que es­tão de bem com a vida. Como é isso?- indagou Lucas olhando fixamente para o rio.

Os dois rapazes entenderam que o pariwat estava pensando em voz alta, refletindo sobre a vida da cidade, e não deram a mí­nima resposta, como se estivessem deixando Lucas chegar a suas próprias conclusões. Eu ouvia tudo sem me pronunciar. Sabia que depois ele perguntaria para mim as dúvidas que tinha.

O silêncio prevalecia no barco. Todos se calaram e prestaram mais atenção ao que faziam. Nesse silêncio total, apenas que­brado pelos sons da floresta, pudemos acompanhar um tucuna­ré que se aproximava rapidamente da canoa. Ele passou direto por nossas iscas e foi para debaixo do barco. Quando ele apon­tou do outro lado, Tawé desferiu um golpe certeiro com seu arco e flecha, deixando Lucas boquiaberto. O peixe começou a se de­bater, mas a flecha tinha atingido as costas, tornando impossí­vel sua fuga. Calmamente Tawé dirigiu-se até o peixe e o reti ­rou da água do rio. Depois lhe arrancou a flecha, colocou- o na altura da boca e disse algumas palavras na língua munduruku. Imediatamente o peixe se acalmou e foi colocado no fundo da canoa. Lucas me olhou espantado, meio que pedindo uma expli­cação. Mas quem lha deu foi Tawé.

- Nós acreditamos que os peixes e todos os seres de nossa flo­resta ~ão nossos parentes e amigos. Quando matamos um para nossa alimentação, temos que dizer a ele que nos perdoe e que quando a gente morrer vamos alimentar a nossa grande mãe, a mãe de todos nós, a terra. Foi isso que eu disse para o peixe.

Lucas achou estranha aquela explicação, mas preferiu não perguntar mais nada. Percebeu que aquela cultura era regida

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por estranhas conjugações que sua cabeça da cidade não esta­va acostumada a fazer. O melhor, naquele momento, era ficar em silêncio. E isso ele já havia aprendido ali.

Nossa pescaria teve mais sucesso a partir de então. Conse ­guimos pescar bastante peixe para nosso almoço e, quem sabe, para o jantar. O mais curioso é que cada vez que Lucas conse ­guia um peixinho, ele o trazia até a boca e falava algumas pa­lavras inaudíveis.

Algum tempo depois voltamos para casa a fim de preparar nosso alimento. Fizemos uma gostosa caldeirada de tucunaré, que repartimos com nossos amigos que haviam nos acompanha­do. Depois decidimos descansar durante a tarde, aproveitando o hábito local de relaxar após o almoço.

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Após almoçar a deliciosa caldeirada de tucunaré, resolvemos descansar. Deitei na minha rede e fiquei pensando em tudo o que estávamos vivendo. Pensei na experiência de Lucas, moço da cidade acostumado com shoppings, automóveis, música alta, danças exóticas, escolas quadradas. Pensei nos jovens do meu povo, crescendo na liberdade, mas com muitos problemas nas costas, problemas trazidos pela cidade, pela ganância. Pensei nas nossas crianças, que irão crescer quase sem terra para ca­çar, sem rios e igarapés para pescar. Terão que comprar alimen­tos na cidade, terão que estudar na cidade, terão que trabalhar na cidade. Pensei no futuro.

-Futuro? O que é isso?- perguntou-me o pequeno Tawé. -É o que seremos amahhã- respondi. -Mas o que é futuro?- insistiu teimosamente o menino. -É o que a gente vai ser quando crescer- tentei ser didático. - Eu ainda não entendi direito. Deve ser porque sou criança

- concluiu o garoto. -Não é por isso, não, Tawé. O futuro é difícil mesmo de en-

tender para qualquer um.

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-Mas, primo- olhou~rne fixamente-, se o futuro é o que eu vou ser quando crescer, você que já cresceu não é o futuro? O meu futuro não é você? Para mim é muito difícil entender essas palavras porque nosso avô sempre diz que só existe o presente, o agora, que é bom viver um dia por vez.

-Nosso avô tem razão, Tawé. Você·tarnbérn tem razão. Eu sou seu futuro. A gente que vive na cidade sempre se esquece disso. As pessoas adultas sempre pensam nas crianças do futuro e não lembram que elas foram crianças um dia e que hoje elas vivem seu próprio futuro.

- Quando eu for adulto - pensou Tawé do alto dos seus nove anos-, vou continuar defendendo o nosso presente. Nossas crian~ ças vão ter um futuro: eu.

Fiquei pensando no que o menino havia falado, mas ele, após dizer aquelas palavras, sumiu no mato atrás dos seus amigos.

O mais interessante dessa conversa foi que, quando dei por mim, não havia ninguém conversando comigo. Será que eu ti~ nha sonhado? O que poderia significar esse sonho? Teria eu so ~ nhado devido ao alimento que havia ingerido?

Precisava contar meu sonho ao pajé tão logo o encontrasse, pois nossa tradição nos ensina que precisamos contar o que so ~ nharnos ao nosso pajé para que ele nos diga o sentido do que os espíritos nos falaram durante o sono.

Pensando nisso nem notei que Lucas já tinha levantado e es ~ tava pronto para iniciar outra aventura antes do dia chegar a seu final.

O DESPERTAR DA PAIXÃO Deixei Lucas por conta dos meninos da aldeia. Não era minha

preocupação nem minha vontade ficar vigiando o que ele gos ~ taria de fazer. Sabia que estaria em boas mãos e isso me alivia~ va bastante. De minha parte, queria procurar o pajé para con~ tar meus sonhos.

Enquanto caminhava para a casa do pajé notei urna rnovirnen ~ tação curiosa debaixo das mangueiras. Desconfiado, fui me apro~

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ximando na surdina para não ser notado. Ouvia vozes mas não via pessoas. Vez ou outra tinha uma risadinha desconfiada que vinha ali daquele lugar. Curioso que estava, aproximei-me e fi ­quei observando a cena.

CENA 1 Um grupo de meninos- aproximadamente treze anos - esta­

va desfilando diante de um grupo de meninas - aproximada­mente doze anos . Eles as provocavam gesticulando bastante, mostrando o músculo dos braços e das pernas. Vez ou outra cha­mavam a atenção delas contando alguma piada ou atirando lon­ge uma flecha, impulsionada pelo arco. As meninas soltavam pequenas risadinhas aprovando o feito do rapaz.

Isso levou uns quinze minutos . Era um desfile de músculos e pernas , um ritual d.e sedução. Meninos estavam mostrando suas "competências" para as meninas. Depois disso elas os iriam escolher.

CENA2 Os meninos começaram a subir nas mangueiras. Cada um de ­

les ia para uma árvore diferente. Como num piscar de olhos, al­guns deles retornavam para o solo. Traziam belas mangas nas

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mãos e as ofereciam às meninas. Cada um ia direto para a me­nina que lhe interessava conquistar. As meninas continuavam passivas.

CENA3 As meninas colocaram as mangas a seus próprios pés . En­

quanto isso, os meninos voltaram a seus lugares e as espia­vam em suas ações . Em seguida elas se abaixaram, apanha­ram suas mangas e deram voltas em torno de si mesmas . De­pois passaram a abrir as frutas e as degustaram. Saborearam por uns dois minutos e foram até o menino que lhes havia ofe ­recido e passaram a ele a fruta, que a pegou e mordeu de uma única vez.

CENA4 Todos trocaram olhares diversas vezes e se dispersaram indo

cada grupo para lados opostos. É claro que conhecia bem aquele ritual, mas fiquei encanta­

do com sua realização naquele momento. Era, para mim, uma volta n<? tempo de minha infância. Lembrei os momentos que também passara por isso. Confesso que fiquei com saudade dos rituais de minha gente. Rituais que não podia fazer com tanta freqüência por ter ido para a cidade, por ter feito uma opção por meus estudos. Baixou meu astral e resolvi seguir o caminho da casa do pajé.

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SEGUROS SÃO OS CAMINHOS TRILHADOS MUITAS VEZES - Você não deve ficar se torturando por isso, meu neto. Você

foi mandado para a cidade para falar de nossa gente para as pes­soas de lá . Você teve que abrir mão disso, dos rituais, Ínas não tem que abrir mão de suas certezas.

- Mas, vô, lá na cidade as pessoas não compreendem nossos rituais. Acham que tudo isso é bobagem.

-É bobagem porque eles não compreendem nem a si mesmos. Se eles fossem mais atentos veriam que os bons caminhos são aqueles que já se andou muito por cima. A gente corre menos riscos de encontrar cobras, onças e outros bichos ferozes.

-Talvez o senhor tenha razão, meu avô. Mas o que você quer dizer com isso?

- Meu neto foi para a cidade estudar, mas não está canse­guindo entender palavras simples. Quero dizer que é preciso manter os rituais sempre vivos . Eles são caminhos seguros. Através dos rituais sabemos mais sobre nós mesmos e temos a garantia da tradição. Temos_ feito isso por muito tempo e nossa gente é feliz .

-Tem razão, meu avô. Eu vi a alegria nos olhos de meus pri­mos quando estavam ali, conversando com as meninas.

- Quando eu era criança- disse o velho pajé, a quem todos chamávamos de avô- tudo era bem diferente. A gente não tinha as facilidades que hoje as crianças têm. Coisas que as pessoas compram na cidade e usam aqui.

Num ritmo lento, o velho homem começou a lembrar momen­tos de sua infância. Fazia isso com muito sentimento. Sentados ali, no terreiro em frente a sua casa, não notei que o grupo au­mentava e o próprio Lucàs havia se aproximado. Voltei a pres­tar atenção ao que o pajé dizia.

- Quando eu fui para a floresta encontrar minha vida adulta, fiquei com muito medo. A floresta era para mim um mistério que eu queria desvendar a qualquer custo. Mesmo assim fiquei com medo. Lá, sozinho, sem minha família para me amparar, pensei muito e conversei com os espíritos dos seres. No iníció

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fazia isso por medo, depois fui me acostumando e percebi que a vida na floresta podia ser uma grande festa. Aos poucos fui per­dendo o medo e pude usufruir daquilo que a floresta tem de me­lhor: o silêncio e a fala dos bichos. Ali aprendi coisas que ne­nhum ser humano pode ensinar. Foi ali que me realizei e vi que há um sentido na vida da gente. Foi muito bonito.

O velho estava emocionado. Seus olhos brilhavam fitando o passado que ele havia vivido.

Todos nós- jovens, velhos, homens, mulheres e crianças- ob­servávamos a mágica com que aquele homem falava do passado, do seu passado. Era notória a emoção de todos ali presentes . Eu fiquei muito feliz . Naquele mome.nto me ocorreu a presença do meu velho avô Apolinário, que sempre nos falava da história de nossa gente com lágrimas nos olhos, relembrando o passado glo­rioso que havia vivido.

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Não precisei de mais explicações para compreender a impor­tância dos nossos ritos. Olhar nos olhos do velho pajé falando suas próprias experiências e ver a atenção das crianças pare­ceu-me tão verdadeiro, tão íntimo, tão sobrenatural qu-e não me restava outra solução que reverenciar a sabedoria dos nossos ancestrais.

Com esse sentimento resolvi que eu precisava reencontrar­me com os espíritos da floresta. Precisava alimentar meu pró­prio espírito com sua sabedoria.

Anunciei isso ao pajé . Ele olhou para mim com toda a com­preensão e fez um sinal de aprovação com a cabeça. Eu já havia recebido esse sinal antes e sabia o que devia fazer.

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REENCONTRO

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TRADIÇÃO

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A noite estava para soltar o dia quando levantei. Era a hora do caçador, hora em que o sonhador acorda para contar seu so­nho da caça e convidar todos os amigos para juntar-se a ele para um dia de boa caçada. Não era esse meu objetivo. Acordei Lucas e lhe disse o que precisava fazer. Ele me compreendeu e voltou a dormir.

Peguei um iktiú e coloquei nele alguns objetos pessoais que iria, certamente, usar em minha rápida missão: chocalho, pena de mutum, arco e flecha, urucum, frutas e jenipapo. Não deixei

· ninguém ver quando encostei na casa do pajé e assobiei para despertá-lo. Levei um baita susto porque o pajé apareceu atrás de mim, cutucando minhas costas . Confesso que fiquei gelado na hora. Virei -me e encontrei- o rindo de mim. Divertimo-nos com a ocasião e resolvemos partir.

Andamos por horas seguidas até uma grande clareira na mata. O pajé disse que era o lugar do princípio do mundo. Já tinha ouvido falar muitas vezes desse lugar, mas nunca havia estado ali antes.

O pajé pediu que eu fizesse um círculo no chão e me colocas­se dentro dele. Disse que não saísse por motivo algum para não

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colocar em perigo a minha vida e a vida dele também. Obedeci. Sentei no chão e passei a retirar os objetos de dentro do cesto. ::)e onde estava conseguia ver o pajé procurando algumas ervas. ~le as arrancava depois de conversar com elas.

Acendeu um fogo baixo. Pensei que éra_para assustar as onças. - Aqui as onças não vêm. Elas sabem que é lugar sagrado.

Aqui é a morada dos espíritos. De nada adianta elas se aproxi ­marem porque não tem comida, não tem nada que lhes seja útil.

Ouvi calado as palavras do sábio. Sabia que ele lia meus pensamentos e se ele precisasse explicar alguma coisa o faria sem que eu perguntasse.

Fiquei aguardando a volta do pajé e, enquanto o observava, lembrei minha infância, quando vivia na aldeia aprendendo as coisas da tradição. Meu velho avô era meu professor, pois ele sempre me ensinava tudo o que eu precisava aprender: ler as letras do céu no vôo dos pássaros; o nome das estrelas; pegadas dos aJJ.imais; sinais do tempo. Muitos desses conhecimentos eram passados através de histórias que ele e os outros velhos nos contavam ao redor da fogueira.

Lembro que eles sempre nos diziam que um dia teríamos que nos reencontrar com a tradição porque não importaria o cami­nho que a gente fizesse, era sempre importante voltarmos nos ­sa mente e nosso coração para nosso povo.

Isso marcou bastante a minha vida, mas nunca tive oportu­nidade de perguntar quando seria chegado o tempo desse reen­contro. Mesmo depois de ter voltado tantas vezes para a aldeia e vivido muitas experiências junto com meus parentes, não conse­guia descobrir o que seria esse reencontro. Até esse momento.

Sentado ali, no círculo sagrado, aguardava o momento do meu reencontro com a tradição conforme meu velho avô, já falecido, me havia alertado um dia.

O pajé aproximou-se e fez duas voltas ao redor do círculo can­tando na língua dos espíritos. Fazia isso e balançava a pena de mutum contra o vento com o objetivo de equilibrar o universo e

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nossa vida. Em seguida pediu que eu fechasse os olhos porque

eu 1na atravessar o portal do tempo e me reencontraria com a tradição. Confesso que fiquei com medo, mas obedeci. Peguei uma cuia que ele me ofereceu e tomei seu conteúdo num único gole ...

O TÚNEL DO TEMPO Minhas lembranças e meu corpo foram transportados para

outra dimensão. Encontrava-me num lugar desconhecido para meus olhos, porém muito familiar ao meu espírito. Ali encontrei os meus antepassados, que antes só encontrara em sonhos. Re­ceberam-me como quem estava sendo esperado há muito tem­po. Com eles conversei bastante usando a linguagem do sonho. Ensinaram-me coisas que eu não conhecia e, acho, não teria tem­po de aprender jamais. Tudo era muito rápido. Um autêntico cursinho pré -vestibular onde muita coisa é relembrada ao alu­no, coisas que ele já sab~a, mas que havia esq,Iecido.

Enquanto estive ali - imaginei que era muito tempo, mas foi puro engano qu ando voltei à realidade - , ia ouvindo as vozes dos antepassados que me sussurravam a sabedoria antiga. De olhos fechados via o universo sendo criado, os antigos morando no centro da terra, num mundo perfeito. Via os espíritos cria ­dores atuando sobre nossa gente, trazendo benefícios a todos; alertando nosso povo a trilhar o caminho do bem, da paz, da har-

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monia. Vi nossos antepassados lutando para sobreviver, construindo uma sociedade igualitária,

--=:3.. s ociedade que não permite que uns tenham mais que _ ~utros; vi nossa gente, enfim, cantando, dançando, con ­-do e ouvindo histórias para manter a tradição viva, per­

_=...:lente. Quanta coisa bonita de ver! Quanta alegria, felici­::õ..ie, harmonia! :Jepois de viver os caminhos dos antepassados, abri meus

---=--os e voltei a ver a realidade que me cercava. Nesse instante _ ~elho pajé aproximou-se e disse -me que minha experiência ~:ivia terminado.

Pediu -me para sair do círculo e o apagou lentamente, passan­::a os pés sobre ele. Entregou-me o iktiú e retomamos o cami­=ho de volta para a aldeia.

ENTENDENDO A PASSAGEM

-Meu avô vai ficar quieto, sem me explicar o que houve? - Sua metade urbana está falando mais alto de novo, meu neto.

Você quer entender com a cabeça mesmo tendo mergulhado no mundo dos espíritos .

-Meu avô tem razão. Sou movido pela razão, pelo entendi­mento das -coisas . Não sei se isso é bom ou ruim, mas eu preci­so compreender o que houve comigo.

- Meu neto encontrou- se com a tradição. Todo mundo de nosso povo pode ter este encontro. Não pense que é um privilégio seu. Nossa gente não precisa de privilégios e não estimula que uns sejam melhores que os outros ...

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- Eu já aprendi isso, meu avô. Aliás, eu já sabia, mas tive confirmação dessa verdade.

- Assim tem que ser. A tradição permanece viv_a com estes mergulhos que a gente tem que dar. Mesmo você, que vive na cidade grande, precisa mergulhar nos mistérios da tradição para que ela se mantenha viva. Daqui pra frente você sabe muito mais do que sabia e terá mais responsabilidades que antes. Você é um de nós.

Fiquei horas pensando nas palavras do pajé. Quando chega­mos à aldeia, muita gente veio nos receber, como se todos sou­bessem o que havi.a acontecido. Na verdade, sabiam e tinham que se certificar de que tudo havia corrido bem. Quando per­ceberam que estávamos bem, dispersaram-se imediatamente. Lucas aproximou-se um tanto desconfiado, tentando entender o que se passara. Prometi que depois lhe contaria tudo com de­talhes.

Naquela noite ainda me reuni com os velhos da aldeia e eles me abençoaram, dizendo que precisaria voltar para a cidade, onde eu tinha uma vida já organizada. Disseram, ainda, que meu amigo pariwat já sentia saudade de casa, dos pais e dos amigos.

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DANIEL MUNDURUKU

Lucas e eu nos despedimos de todos os amigos da aldeia A comunidade toda foi até a margem do igarapé para nos da::­adeus. Quando nosso povo gosta de uma visita, toda a comP­nidade vai despedir-se na beira do igarapé a fim de deseja::­um retorno feliz aos visitantes. Isso nos deixou muito cor ­tentes.

Lucas havia feito muitas amizades entre os meninos e merr­nas. Talvez por isso ele estivesse um pouco triste por ter que ;~

embora. De qualquer forma, havia tirado muitas fotos e regi::> ­trado sob forma de desenho suas aventuras. Segundo ele, iss: já valera a pena da sua viagem.

Embarcamos para nosso retorno com o dia engolindo a noit~ Nicolau tomou seu lugar e colocou o barco no rumo do granC.:: Tapajós . Durante a prüneira hora de viagem ficamos calados . apreciando a paisagem. Lucas aproveitou para dormir mais u,..... pouco, apoiado nos sacos de farinha que estávamos levando. E _ preferi ir próximo ao ajot que nos acompanhava. Havia cais~ que eu ainda queria saber e o mais indicado para contar-me e:-::.. aquele homem que já havia experimentado muitas coisas dura=­te sua vida .

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UM ESTRANHO SONH O DE FUTURO

-Meu avô está muito pensativo- falei, tentando puxar con­versa, mas o homem apenas acenou com a cabeça e acendeu um cigarro de palha. Seu olhar acompanhava a margem direita do igarapé com um certo ar de melancolia. Desisti de puxar con­versa e fiquei observando o local. ' E\]- já havia andado tantas vezes por aquela região e sempre ficava admirado com sua be­leza e suntuosidade. Ali embaixo eu me sentia pequeno. Lem­brava-me de quando viajava de avião e sobrevoava a Amazônia. Lá em cima procurava identificar algum lugar que conhecia, mas isso se tornava uma aventura impossível, uma vez que era imensa, sem início nem fim, igualzinho nossas histórias, nos ­sos mitos.

- Foi neste lugar que topei com o curupira- disse o ajot, cha­mando-me para a realidade. Ele indicava o local com o dedo.

-Como foi isso, avô?- perguntei, chamando Lucas para ou­vir a história.

-Foi há muito tempo. Eu ainda era um garoto. Devia ter a ida­de do menino branco.

- Conte para nós o que aconteceu. - Cabitutu. Já era tardezinha e o sol estava indo descansar.

Meus amigos e eu íamos até o alto de uma árvore e de lá pulá­vamos rumo ao rio. Gostávamos de ficar assim horas a fio, sem nos preocuparmos com o tempo.

O velho deu um tempo na narração para tomar fôlego enquan­to pitava seu cigarro. Esse momento é muito importante para quem conta uma história, pois cria expectativa em quem a es­cuta. Além disso, reportava o velho para um instante longínquo em sua memória.

-Estávamos nos divertindo muito e não percebemos o tempo passar. _ Quando nos demos conta, a noite já havia caído quase por completo. Quisemos ir embora, mas um dos amigos notou que estávamos longe e havia um perigo real ao nos dirigirmos à aldeia. De qualquer forma decidimos continuar o caminho. Não estávamos com medo, mas tínhamos a impressão de que algo nos seguia. Isso nos deixava apreensivos e um t a nto

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curiosos. Um dos amigos falou baixinho para seguirmos em frer:­te sem olhar para os lados. Tentamos fazer isso, mas não co· -seguimos porque apareceram, misteriosamente, umas pegad~ que seguiam na mesma direção da aldeia. Nos entreolhamos ~ sentimos um calafrio na espinha. Sempre fizemos esse caminh desde crianças, e o conhecíamos como ninguém. Era sempre usa­do por nós para ir ao igarapé tomar banho e brincar. Nunc:::. havíamos notado qualquer presença no percurso. Isso no~ deixava ainda mais confusos. Por que um ser da natureza, o~ seja lá o que fosse, estaria tão perto da aldeia? O que tem lá q1.:~

ele deseja tanto? Mais uma vez o velho calou- se e ficou com o olhar perdido n ...

tempo. Lucas e eu ouvíamos atentamente a narrativa do homer::. enquanto a voadeira seguia seu rumo sem se importar conosc Vez ou outra Nicolau nos avisava da presença de um galho ou d:= uma curva mais ousada que faria para livrar- se de uma tora de árvore caída.

Atentos que estávamos à conversa daquele avô, só queríamo"' que ele retornasse do ponto em que havia parado e nos disses ­se o que tinha ocorrido. É bem verdade que ouvira muitas nar­rativas iguais a essa e que sabia que algumas pessoas ficavam loucas depois de passar por semelhante situação. Talvez por isso o ajot parasse sempre sua narrativa. Seria por que lembrava de algum episódio mais marcante? Será que algum dos amigos fi­cara louco?

-Continuamos a caminhar sem demonstrar medo. Ou ao me­nos tentar agir assim porque, conforme já nos disseram nossos avós, os seres da floresta atacam apenas os que demonstram medo. '

- Mas é possível não demonstrar medo numa situação como essa?- perguntou Lucas timidamente.

-Medo, menino da cidade, é algo que a gente pode controlar. Este ser da floresta existe mesmo e pode fazer mal pra gente. E se a gente acredita que algo pode fazer mal, então é preciso ter medo, sim. Acontece que quando nossa sobrevivência depende

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UM ESTRANHO SONHO DE FUTURO

do controle do medo, é preciso enfrentá-lo com, pelo menos, es­perteza.

-E foi assim que vocês o enfrentaram?- perguntei. - Assim imaginamos : se nós conseguíssemos capturar um

desses, ficaríamos muito famosos em todos os lugares. Por isso decidimos seguir as pegadas da "coisa''.

- Como foi isso, ajot? -provoquei ainda mais o velho. -Pensávamos que ia ser fácil. Bastava seguir as pegadas e

logo veríamos o monstrinho e o colocaríamos dentro de um cesto para levá-lo à aldeia. No entanto, quando fomos seguir a trilha, percebemos que as pegadas entraram pela mata. Nós, na ânsia de prendermos o serzinho, resolvemos seguir mais um pouco achando que estava bem perto. E de fato o barulho que vinha do mato nos dava a idéia de que ele se encontrava bem próximo a nós. Apressamos o passo seguindo nossa in­tuição e não demos a menor bola para a noite que caía com pressa. Depois de algum tempo rodando nos demos conta de estar perdidos. Imediatamente estancamos para examinar a situação.

-Nessa hora baixou o desespero, avô? -Ainda não. Precisávamos identificar o local para pensar o

que fazer em seguida. -Conseguiram identificar?- Lucas precipitou-se na pergunta. -Não era nenhum lugar conhecido e ainda mais naquela hora,

que a gente já não tinha claridade suficiente para ver qualquer coisa possível. Decidimos montar um abrigo e passar a noite ali, correndo o risco do ataque de algum animal noturno. Nos orga­nizamos em turno para vigiar e recaiu sobre mim a responsa­bilidade das primeiras horas . Foi a noite mais horrível de mi­nha vida. Nunca tinha ouvido tantas vozes juntas. Vozes que se confundiam com as de homem, bichos e outros seres . Mesmo de­pois que terminou meu turno, não consegui dormir, até mesmo porque meus colegas ficaram com muito medo e eu tive que fi­car conversando com eles.

- E o que aconteceu depois, meu avô?

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- A noite demorou muito a passar. Cada pio que ouvíamos era assustador e nos recolhíamos sob a grande árvore castanheira que nos abrigava.

- E a "coisa" voltou a aparecer? -Não. Ouvimos muitas vezes uma forte gargalhada, como se

estivesse zombando da gente, mas não notamos as pegadas da­quele ser que nos fez nos perder na floresta .

-E o que aconteceu depois? - Vimos o dia amanhecer lentamente. Nenhum de nós conse -

guiu dormir naquela noite. Quando o dia chegou, procuramos nos localizar e percebemos, um pouco assustados, que estáva­mos relativamente pérto da aldeia. Mas o medo era tão intenso que não nos demos conta dessa proximidade.

- E a "coisa" o que era, afinal de contas? - Era o curupira. Ao menos foi assim que nos disseram os ve -

lhos da aldeia. Segundo eles, é assim que age esse ser da flores­ta. Ele confunde os caminhos e faz os incautos se perderem para depois serem devorados pelos espíritos da noite.

Aquele avô ainda nos falou que nunca mais ele e os amigos quiseram seguir passos estranhos pela mata. Foi uma experiên­cia marcante para aqueles rapazes, que aumentaram seu respei­to pelas coisas invisíveis que existem na floresta.

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15

ONZE DE

SETEMBRO

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Chegamos na cidade por volta das três da tarde e fomos dire­to para um hotel, onde e~peraríamos o próximo vôo.

Como o calor estava muito forte, fomos tomar sorvete e olhar o movimento da pequena cidade. Na pracinha encontramos al­guns amigos e ficamos conversando sobre nossa viagem para a aldeia.

Lucas era sempre o mais visado pelas meninas da cidade e logo encetou conversas com elas enquanto eu falava com Isaías Krixi, uma liderança política muito forte entre os Munduruku. Embora estivéssemos cansados, ficamos ali até por volta da meia-noite, quando voltamos para o hotel para dormir.

O dia seguinte começou de forma muito estranha. Tinha uma energia que cobria o àmbiente parecendo que havia alguma co i­sa acontecendo. Fui até o restaurante enquanto Lucas dormia. A televisão estava ligada e vi que algumas pessoas comentavam um acontecimento recente. Quis saber do que se tratava. Fui in­formado de que havia acontecido um acidente com um avião nos Estados Unidos. Sentei em frente da tevê e acompanhei o noti­ciário. Havia suspeita de um acidente aéreo .

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UM ESTRANHO SONHO DE F UTURO

Lucas chegou e contei a ele o acontecido. Ele ficou interessa­do e também passou a acompanhar a notícia. Mal havia se as­sentado e outro avião chocou-se com a segunda torre do World Trade Center. Imediatamente foi confirmada a notícia de um ataque terrorista.

As cenas que se seguiram foram as·mais terríveis que havia presenciado. Muitas pessoas aproximaram-se para ver aquilo. Lembro que alguns comentários foram feitos sobre a terceira guerra mundial ou o apocalipse.

Junto conosco havia crianças que não entenderam nada do que ocorria.

Apenas Lucas e eu tínhamos uma noção um pouco mais exa­ta do que havia ocorrido e quais as implicações desse atentado. Exatamente por causa disso, nossas opiniões eram ouvidas com atenção pelo pequeno público que ali se formou.

- O que significa este acontecim~nto para nós aqui?- pergun­tou um comerciante.

Lucas logo se pôs a comentar. - Provavelmente esse ataque vai trazer uma conseqüência

ruim para os comerciantes, pois os preços devem subir por cau­sa da alta do dólar.

-Mas aqui a gente não usa esse tal de dólar, como é que pode nos afetar?

- Porque ele é uma moeda mundial. Muitos produtos são tra ­zidos de fora do país e obedecem ao valor dessa moeda. Então os preços desses produtos sobem para que os comerciantes te ­nham lucro.

-Mesmo numa cidade como a nossa, pequena? -Principalmente. Porque os produtos chegam aqui normal-

mente mais caros. Com a alta do dólar, o que era comprado por um reaí será comprado por dois.

Assim a conversa continuou por um tempo grande enquanto assistíamos ao desenrolar dos fatos.

Quando tudo ficou mais tranqüilo, Lucas e eu nos pusemos a conversar sobre o tempo num lugar como esse, no meio da flo-

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resta amazônica. Um acontecimento com essa envergadura não tinha nenhuma repercussão imediata na vida daquelas pessoas. Elas não conseguiriam perceber com maior clareza o ocorrido porque estavam envolvidas com questões muito párticulares, cujas necessidades eram muito imediatas.

Lucas lembrou que num lugar assim duas torres não tinham a mínima importância; sequer faziam idéia da altura delas. Con­cordei com ele, mas minha idéia tinha a ver com o tempo numa sociedade indígena.

O tempo é algo muito relativo porque passa de modo diferen­te para cada sociedade. Até o fato de ver uma imagem acaba ten­do relações diferentes. No capitalismo, tempo é dinheiro; na so­ciedade indígena, tempo é um deleite, uma bênção, um jeito de estar no mundo. Talvez por isso o que ocorre no outro lado do mundo tem pouca importância para essas sociedades. Torres que caem pouco dizem; conflitos que isso gera não têm importância para quem vive o presente sem dar muita trela ao futuro.

Não deixou, no entanto, de ser um bom motivo para acirradas conversas sobre os rumos que o mundo seguiria dali para fren ­te. E mesmo muitos líderes indígenas puderam dar sua opinião sobre o ocorrido mostrando que, apesar de não alterar em nada a vida dos povos da floresta, os indígenas estão atentos ao que se passa ao redor do mundo.

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16

RETORNO

PARA CAS

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Iniciamos nossa volta para casa tendo vivido as emoções da floresta. Lucas estava visivelmente emocionado pela expe:riên­cia vivida e procurava registrar os acontecimentos na forma de desenhos.

Vez ou outra ele olhava para mim com um olhar agradecido. Fiquei pensando um pouco nos jovens da cidade. Talvez eles

precisassem viver essa experiência de estar numa sociedade onde os valores são outros; onde o olhar das pessoas é diferen­te do que sempre vivenciamos na grande cidade.

Lembrei-me da passagem de um livro que conta um episódio interessante sobre a educação e como ela é diferente nas socie­dades. O livro fala do povo nativo norte-americano. Numa cer­ta ocasião, chefes de p.ma aldeia foram procurados por políticos para convencê-los a mandar os filhos para a escola da cidade. Os chefes ouviram com atenção a proposta do governo e depois responderam que não iriam permitir a saída dos meninos da al­deia porque a escola que eles freqüentavam não lhes ensinava o que era realmente necessário aprender. Segundo os chefes, os meninos que foram anteriormente enviados para escolas da ci­dade voltavam sem o conhecimento necessário para sobreviver

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UM E S T R A NHO S ONHO DE F UTURO

n a aldeia. Eles chegavam cheios de outras vontades, sempre li ­gadas às necessidades da cidade e não mais às de seu povo. Não sabiam mais caçar ou pescar. Não olhavam o tempo com os olhos da tradição e não mais sabiam falar com os espíritos da flores­ta, da natureza. Eles consideraran: a proposta apresentada pelo governo e fizeram uma contraproposta: se o governo quisesse, aquele povo aceitaria receber alguns jovens da cidade para se­rem educados segundo seus costumes. No dizer dos líderes, os meninos da cidade que morassem com eles sairiam dali como verdadeiros homens, pois eles ensinariam os valores que um guerreiro deve ter: coragem, honestidade e honra.

É claro que o governo não aceitou a proposta dos líderes e os meninos índios acabaram sendo levados para as escolas da ci­dade, onde eram proibidos de falar a própria língua e passaram a sentir vergonha de aceitar sua identidade cultural.

Essas reflexões surgiram em; minha cabeça por est ar pensan­do em como a cidade grande inverte os valores, deixando suas crianças crescerem sem aprender o essencial para a vida.

Estava absorto em pensamentos quando Lucas chamou-me para perguntar minha opinião sobre o caso do índio que foi quei­mado vivo em Brasília, alguns anos atrás.

- Não sei se posso responder a essa questão de forma defini­tiva, já que houve uma comoção nacional em torno disso. Mas posso garantir que o problema não é dos garotos que fizeram isso, mas da sociedade brasileira como um todo. Eles são ape ­nas reflexos de uma educação vazia.

- Não concordo completamente - disse Lucas -, embora ache que o fato de eles pertencerem a uma classe econômica mais alta tenha dado a eles a presunção de ter o "direito" de agir com tan­to preconceito.

- Você tem razão. Certamente houve favorecimento por se tra­tar de pessoas da classe média alta. De qualquer forma, Lucas, isso não é relevante quando imaginamos que o caso mostrou que há dois tipos de justiça: uma para os pobres - quase sempre condenados - e outra para os ricos - que acabam sendo julgados

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DANIEL MUNDURUKU

por critérios diferentes. Muitas vezes esses critérios têm a ver com a posição que essas pessoas ocupam na sociedade.

-Você ficou com raiva? Eu ficaria com muito ódio. - Na ocasião dos fatos, realmente fiquei com muita raiva. Mas

não era uma raiva que pensasse em vingança. Era raiva pela in­tolerância que o fato revelou. Lembro que na ocasião fiquei pen­sando no que nossos antepassados sofreram e em como foram humilhados por defenderem seu modo de viver. Quantos morre­ram ou foram escravizados! Quantos foram tirados do ventre de suas famílias! E o mais interessante- ou trágico- é que estava se repetindo a mesma coisa com nossa gente. E o pior de tudo : de forma injustificável! Ou melhor, apenas por brincadeira! Foi chocante.

- E depois, o que você sentiu? Até parece que você não tem coração.

-Não se trata de ter ou não coração, mas de analisar a situa­ção de forma bem racional. Há pessoas que agem só com o cora­ção e isso as fragiliza muito. É preciso saber esperar antes de agir para que a ação possa ser efetiva. Foi isso que fiz, esperei.

- E no que isso foi bom? - Eu consegui canalizar meu pensamento para refletir sobre

as causas de uma semelhante ação. Aí encontrei a educação como causa e pensei que o grande culpado disso tudo são os valores que a sociedade está transferindo para os jovens. Ela os treina para a competição e nunca para ver o que há de belo nas coisas e nas pessoas. O que aconteceu com aqueles garotos não foi um jogo, uma competição. Fiquei imaginando uma conversa entre eles antes de decidire_m iniciar sua "brincadeira". Certamente havia um ou outro que dizia que não deveriam fazer aquilo; ha­via um, provavelmente o mais machão, líder do grupo, que cha­mou todos os que não topavam de covardes, mocinhas, menini­nhas; disse que se não fizessem não fariam parte da turma, que contariam para todo mundo que eles eram "bichinhas", sem co­ragerri. Imagino que um deles até tentou argumentar que isso não se faz com pessoas e que aquela brincadeira era muito in-

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UM ES T RANHO SONHO DE FUTURO

conseqüente. Um outro disse que isso não era importante por­que havia muitos índios pobres e que estavam apenas livrando mais um do sofrimento. Dessa forma, pensava, teremos menos um para julgar quando formos advogados e seguirmos o caminho de nossos pais. Convencido p·el~s "amigos", todos toparam mo ­tivados pelo fato de serem aceitos pelo grupo.

- Entre os jovens e adolescentes esse tipo de coisa sempre acontece. É uma forma de aceitação no grupo. Na minha escola é comum isso ocorrer. Se alguém não aceita o grupo, logo é con­siderado um nerd, alguém que não pertence a um grupo de "agi­tadores", gente livre, capaz de quebrar as estruturas. Eu mesmo já sofri muito preconceito por ser assim ... meio aquariano ... meio viajante ... As pessoas olham para mim como se eu fosse um ET só porque não consigo ser como eles.

- Exatamente, Lucas. E o que tem por detrás disso? Valores hu­manos. Os jovens começaram a pensar desse jeito no momento em que seus pais incutiram neles valores como a necessidade de competição. O processo tem início com os pais competindo entre si. Com isso, se esquecem dos filhos e os deixam à mercê da es­cola, que não tem compromisso nenhum com educação. Escola é lugar de conhecimento e não de educação. Sabe o que acontece, Lucas? Os filhos buscaram em outros lugares essa presença: na escola, nos amigos, nas drogas e nas "brincadeiras selvagens". Eu ainda acho que o principal fato que motivou aqueles jovens ao assassinato foi chamar a atenção dos pais para suas carências. E sabe por que entre os índios não acontece este tipo de evento?

- Não, não sei e espero que você me diga. - Porque os pais sabem acolher seus filhos. Porque as mães

sabem aconchegar os filhos no colo e catar piolho em suas ca_beças; porque as mães não têm pressa; porque os pais brincam com eles e lhes dão a devida atenção de modo que os filhos crescem equilibrados. Me diga você que esteve na aldeia onde cresci: viu algum tipo de preconceito? Viu alguém sendo excluído? Viu alguma criança abandonada? Algum velho sofrendo por estar abandonado?

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-Você tem razão. Eu não vi nenhum tipo de divisão na aldeia. Não vi pessoas que têm mais que outras. Vi uma igualdade mui-to grande. _

Notei emoção nas palavras daquele jovem que havia tido uma experiência única em sua vida. Fiquei muito feliz por ter pro­porcionado este momento tão importante para ele. Talvez por conta da emoção ele tenha ficado calado durante o resto do per­curso até o aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Ali já está­vamos sendo esperados pelos pais de Lucas. Houve muita festa por nossa chegada, além de um visível alívio no rosto da mãe do menino. Coisas de mãe!

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Final

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AS CONSEQÜÊNCIAS DA VIAGEM

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DANIEL MUNDURUKU

Depois que retornamos para São Paulo, Lucas e eu não nos vi ­mos por algum tempo. Vez ou outra falava com a mãe dele para saber notícias. Confesso que ficava contente com as boas notí­cias que recebia: a viagem tinha feito muito bem para o rapaz. Segundo sua mãe, ele estava mais maduro e seguro sobre sua própria vida.

Alguns meses se passaram até que nos reencontrássemos. Pude, então, comprovar o que já tinha ouvido a respeito de nos ­sa viagem.

Vale lembrar que Lucas sempre foi um aquariano tímido. Nun­ca havia viajado sozinho, não tinha muita iniciativa, era fecha ­do para as pessoas e embora tivesse um bom relacionamento com todos vivia num mu_ndo virtual nem sempre real. É verda­de que a maioria dos jovens de sua idade é assim, mas ele era realmente tímido e calado.

Quando o convidei para a viagem, não me ocorreu ajudá -lo com sua personalidade. Mas tinha a certeza de que ele não seria o mesmo ao retornar. O envolvimento dele, caso ocor­resse, sêria um fator decisivo para sua mudança e isso acon­teceu .

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UM ES T RANH O SON H O DE FUT U RO

Em nosso reencontro, quis saber suas impressões sobre a via ­gem. Tivemos uma conversa bem interessante.

- O que você sentiu nessa viagem, Lucas? - No início fiquei com um pouco de receio e confuso sobre se

devia ir ou não. Tinha um cer;to medo do que iria encontrar e medo das imagens que tinha na cabeça e que reforçavam em mim a idéia do índio e a vida que eles levam nas aldeias. De outro lado, estava muito ansioso, nervoso e com algumas dúvidas .

- E tudo isso foi respondido durante a viagem? - Em parte sim. O que eu tento fazer até agora é compreender

as diferenças que existem entre as sociedades. Acho que hoje sou mais tolerante.

- A viagem ajudou você em quê? - Eu acho que cresci como pessoa porque aprendi coisas mui -

to interessantes. - Que tipo de coisa? - Aprendi que os indígenas são menos egoístas que as pes-

soas da cidade e isso os torna mais acolhedores e sinceros. - Você moraria lá? - Acho que sim, mas não posso dizer isso com toda certeza.

Talvez morasse, talvez não. - Como seus amigos te receberam? - Quando eu comuniquei à escola e aos amigos que iria para

uma aldeia, alguns disseram que aquilo era uma loucura, algo sem razão e que não levaria a nada. Não dei muita bola ao que me falavam. Eu tinha tomado a decisão de não ser influenciado por ninguém. Quando voltei, notei que eles ainda não acredita­vam que eu tinha ido fazer um "programa de índio". Continuei não dando bola a isso. O curioso é que pessoas que eu não co ­nl?-ecia passaram a perguntar-me sobre minha "aventura" e tor­naram-se meus amigos . E mais: muitas pessoas acham que eu sou uma espécie de herói.

- Olhe, Lucas, eu estou muito contente com o resultado de nos ­sa viagem. Sempre achei que ela faria bem para você. A nossa sociedade indígena tem muita coisa a ensinar para as pessoas

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DANIEL MUN DURUKU

da cidade. Acho que você pode ensinar muitas coisas para seus amigos.

- É isso que quero fazer de agora em diante. Essa experiên­cia marcou muito a minha vida e quero dizer isso para as pes­soas. Hoje me sinto mais livre, mais decidido, mais determina­do, mais corajoso, capaz de tomar decisões por minha própria vontade. E isso aprendi observando e vivendo junto com os ami ­gos indígenas.

Depois dessa nossa conversa não tive mais contato com Lu­cas, mas tenho absoluta certeza de que ele está colocando em prática muitas das coisas que aprendeu na aldeia.

Vez ou outra falo com sua mãe e ela me dá esta certeza .

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Sobre o autor

Daniel Munduruku nasceu no Pará e formou -se em filosofia nas Faculdades Salesianas de Lorena. É mestrando em Educação na Universidade de São Paulo. Preside o Instituto Indígena Bra­sileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi) e participa ativa­mente de atividades ligadas à causa indígena.

Autor de Histórias de índio, Coisas de índio, Kabá -Darebu e O segredo da chuva, entre outros títulos. Foi o primeiro autor brasileiro a ganhar o prêmio da Unesco de literatura infanto­juvenil sobre tolerância entre os povos por seu livro Meu vô Apo­linário - um mergulho no rio da (minha) memória.

Mora na cidade de Lorena, interior de São Paulo. É casado com Tania Mara e tem três filhos - Gabriela, Lucas e Beatriz.

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Sobre o ilustrador

Andrés Sandoval nasceu no Chile, formou -se em Arquitetura e Urbanismo na USP e trabalha como ilustrador desde 2001. En­tre outros títulos, ilustrou Amazonas, no coração encantado da floresta, de Thiago de Mello. Em 2003, participou da exposi­ção e do workshop da Bienal de Ilu~tração de Bratislava, Eslo ­váquia, e foi indicado ao prêmio Jabuti.

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Copyright © Daniel Munduruku, 2002 Todos os direitos de edição reservados à EDITORA FTD S.A. Rua Rui Barbosa, 156 (Bela Vista) São Paulo - SP CEP 01326-010- Tel. (0 -XX-11) 3253 - 5011- Fax (0-XX-11) 3284-8500 r . 254 . Caixa Postal65149- CEP da Caixa Postal 01390 -970 Internet: http: //www.ftd.com.br E -mail: linguas.redacao @ftd.com.br

Editora Maria Esther Nejm

Editora de Arte Adelaide Carolina Cerutti

Projeto gráfico e capa Daniel Kondo

Ilustrações Andrés Sandoval

Diagramação Kélia Cristina Botta Márcia Muniz da Mata Cozzo

Editoração eletrônica Coordenação Carlos Rizzi Reginaldo Soares Damasceno Finalização Andréa Wolff Gowdak Noto

Organizadora da coleção Heloisa Prieto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Munduruku, Daniel Um estranho sonho de futuro : casos de

índio I Daniel Munduruku; ilustrado por Andrés Sandoval.- São Pfiulo : FTD, 2004. -{Coleção há casos)

l. Literatura infanto-juvenil I. Sandoval, Andrés. II. Título. III. Série.

04-1302 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

l. Casos de índio :Literatura infanto-juvenil 028.5 2. Casos de índio: Literatura juvenil 028.5

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§amoF~com a leitura. ~. ~

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