um estranho no espelho

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UM ESTRANHO UM ESTRANHO NO ESPELHO: NO ESPELHO: REPRESENTAÇÕES REPRESENTAÇÕES DO CABOCLO DO CABOCLO AMAZÔNICO AMAZÔNICO Maria das Graças Ferreira de Maria das Graças Ferreira de Medeiros Medeiros

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Este estudo investiga as representações sociais do caboclo amazônico, emergentes no discurso de jovens amazonenses, estabelecendo relação entre o imaginário sobre a Amazônia da época da colonização e os estereótipos relacionados a essa categoria social, procurando identificar as razões de sua permanência ao longo do tempo e a maneira como hoje se expressam nas relações sociais.

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UMUM ESTRANHOESTRANHO

NONO ESPELHO:ESPELHO:

REPRESENTAÇÕES REPRESENTAÇÕES DO CABOCLODO CABOCLO AMAZÔNICOAMAZÔNICO

Maria das Graças Ferreira de MedeirosMaria das Graças Ferreira de Medeiros

Page 2: Um estranho no espelho

MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

UM ESTRANHO NO ESPELHO

REPRESENTAÇÕES DO CABOCLO AMAZÔNICO

Manaus

2004

1

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MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

UM ESTRANHO NO ESPELHO:

REPRESENTAÇÕES DO CABOCLO AMAZÔNICO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação “Sociedade e Cultura na Amazônia”, da Universidade Federal do Amazonas, como requisito para obtenção do título de Mestre em “Sociedade e Cultura na Amazônia”, área de concentração Processos Socioculturais na Amazônia.

Orientador: Professor Doutor Marcos Frederico Krüger Aleixo

Manaus

2004

2

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Ficha Catalográfica:

Bibliotecária responsável: Maria Siméia Ale Girão

3

Medeiros, Maria das Graças Ferreira de Um estranho no espelho: representações do caboclo amazônico / Maria das Graças Ferreira de Medeiros. - Manaus, AM : UFAM, 2004. 187 p. : il. Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de mestra em “Sociedade e Cultura na Amazônia” pela Universidade Federal do Amazonas. Orientador: Professor Doutor Marcos Frederico Krüger Aleixo.

1. Atitudes étnicas 2. Identificação 3. Influência social 4. Mudança social 5. Estereótipo (Psicologia) I.Título

CDU: 316.647.8(811)

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Autora: Maria das Graças Ferreira de Medeiros

Título: Um estranho no espelho: representações do caboclo amazônico

Área: Processos Socioculturais na Amazônia

Data: 23 de agosto de 2004

Dissertação de Mestrado apresentada em defesa pública como requisito

para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação

“Sociedade e Cultura na Amazônia”, do Instituto de Ciências Humanas e Letras

da Universidade Federal do Amazonas.

........................................................................................

MARIA DAS GRAÇAS FERREIRA DE MEDEIROS

........................................................................................Professor Doutor Marcos Frederico Krüger AleixoDoutor em Literaturas de Língua Portuguesa / UFAM

Presidente

........................................................................................Professor Doutor Narciso Júlio Freire LoboDoutor em Ciências da Comunicação / UFAM

Membro

........................................................................................Professor Doutor Amarildo Menezes Gonzaga

Doutor em Educação / CEFET/AMMembro

4

Page 6: Um estranho no espelho

Aos queacreditam no valor dos primeirospassos.

A mim mesma,por não perdera Fé.

Dedico.

5

Page 7: Um estranho no espelho

“Um galo sozinho não tece uma manhã”João Cabral de Melo Neto

A todos os que,de alguma maneira,contribuíram para esta tessitura,com pequenos gestos desolidariedade, atenção generosa,orientação, incentivo e apoio.

A Deus, porque sem fénão teria sido possívelmover montanhas.

Ao Marcos Frederico, meu orientador,pela paciência.

Aos professores Narciso Lobo, Raquel Castro, Iraildes Torres, Heloísa Lara Raimundo Nonato Silva, pela gentileza.

Às bibliotecárias do NAEA – Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPa, em especial a Cacilda, e à Socorro, da biblioteca do ICHL da UFAM, pela atenção desinteressada.

Às amigas do Mestrado, especialmenteFrancileide e Socorro Pacó, pela solidariedade.

Ao jornalista Aldísio Filgueiras, pela generosidade.

Aos familiares e amigos que, em momentos importantes, hipotecaram o seu apoio : meu filho Daniel, Gisele, Terezinha, Dra. Ana Maria Marques e outros tantos,particularmente ao meu irmão, Osmir Medeiros.

Minha gratidão.

6

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O que sabemos é uma gota,o que ignoramos, um oceano.

Isaac Newton

7

Page 9: Um estranho no espelho

RESUMO

Este estudo investiga as representações sociais do caboclo amazônico, emergentes no discurso de jovens amazonenses, estabelecendo relação entre o imaginário sobre a Amazônia da época da colonização e os estereótipos relacionados a essa categoria social, procurando identificar as razões de sua permanência ao longo do tempo e a maneira como hoje se expressam nas relações sociais. Analisa, ainda, a possibilidade de existência de uma identidade cabocla, correlacionando as origens do termo e o processo histórico que consolidou o seu uso, à idéia de alteridade associada ao seu emprego relatada por estudiosos do homem amazônico e ainda hoje evidenciada na fala dos sujeitos da pesquisa. A tentativa de interpretação apóia-se na tradição hermenêutica, com vistas a ampliar a discussão sobre o tema.

Palavras-chave: representações, estereótipo, imaginário, alteridade, identidade

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ABSTRACT

This study investigates the emerging of the speech of young amazonenses Amazonian mestizo's social representations, establishing relationship among the imaginary on the Amazonian of the time of the colonization and the related stereotypes the that social category, trying to identify the reasons of its permanence along the time and the way as today is expressed in the social relationships. Its analyzes, still, the possibility of existence of an identity cabocla, correlating the origins of the term and the historical process that it consolidated its use, to the alteridade idea associated to its use told by the Amazonian man's specialists and still today evidenced in the speech of the subject of the research. The interpretation attempt leans on in the tradition hermenêutica, with views to enlarge the discussion on the theme.

Key-words: representations, stereotype, imaginary, alteridade, identity

9

Page 11: Um estranho no espelho

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. A ÓTICA EUROCÊNTRICA – ESTEREÓTIPO E PRECONCEITO 24

1.1Um estigma como herança 36

2. CABOCLO – UMA IDENTIDADE POSSÍVEL? 46

2.1 A propósito do termo “caboclo” 542.2 A cultura cabocla 622.3 O caboclo na história (ou a história do caboclo?) 692.4 O caboclo hoje 76

3. RECOLHENDO FRAGMENTOS: UMA PERSPECTIVA DE COMPREENSÃO DAS REPRESENTAÇÕES 81

3.1 Conhecendo o terreno: real e imaginário nas representações 903.2 Analisando os fragmentos: o dito e o não-dito 96

4. JUNTANDO OS PEDAÇOS: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO CABOCLO 139

4.1 O caboclo estereotipado: imaginário e representações 1394.2 Caboclo “é o outro”: representação da alteridade 1484.3 O caboclo e “eu”: identidade e conflito 153

REFLEXÕES FINAIS 162

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 172

OBRAS CONSULTADAS 179

10

Page 12: Um estranho no espelho

INTRODUÇÃO

Existe, sim, um lugar secreto na Amazônia. No âmago de suas terras encontra-se a origem de todos os

homens. 1

cone da modernidade pseudo-ecológica na onda naturalista que invadiu o

mundo nos últimos tempos, a Amazônia tem suscitado idéias e concepções

controversas, especulações várias e pouca compreensão sobre a sua

realidade. No imaginário de muitos a Amazônia continua encarnando o papel do

Novo Mundo, inóspito, fantástico, mágico, estarrecedor, que animou as elites

européias por ocasião do descobrimento das Américas.

Í

Quando chegou ao conhecimento dos europeus, segundo Busato (s.d., p.

300), o Novo Mundo “já estava pré-construído no sentido do imaginário, por

muitos séculos de estórias...”, principalmente criadas a partir de relatos dos

grandes exploradores. Foram os estrangeiros, então, os primeiros a filtrar os

mitos antigos e “exportar” para o Brasil o que eles elaboraram culturalmente,

podendo-se afirmar que grande parte do ideário brasileiro não é de origem

nacional.

Referindo-se à época dos descobrimentos, afirma o autor que o indígena

brasileiro, na cultura européia daquele tempo, aparecia como um ser degenerado

e até como um simples animal, cuja figura perturbava a imagem particular da

Amazônia “criada” pelos descobridores. Ao contrário da natureza exuberante, o

homem amazônico apresentava falhas imperdoáveis aos olhos do colonizador.

Fazendo uma releitura dos relatos dos expedicionários e naturalistas que

por aqui passaram, vê-se o delineamento de uma imagem negativa sobre o

amazônida e as bases sobre as quais ela foi assentada: o contexto sócio-cultural,

1 GONDIM, Neide, em A Invenção da Amazônia.

11

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a religiosidade e as raízes filosófico-políticas que norteavam o modus vivendi

europeu, confrontados com a existência amedrontadora de uma realidade outra,

completamente adversa, assustadora mesmo para os padrões daqueles

estudiosos.

Essa criação, cristalizada no imaginário popular, ainda constitui o pano de

fundo para qualquer representação da Amazônia, não somente em outros

Estados do país, mas também na região amazônica e mesmo no Estado do

Amazonas, resultando daí uma imagem mitificada, estereotipada, especialmente

sobre o homem amazônico. A despeito da cultura rica e variada, originada das

seculares tradições dos inúmeros povos indígenas que habitam essa vastíssima

região, a idéia de inferioridade do homem americano provavelmente influenciou a

auto-imagem dos seus descendentes.

Resultado do processo miscigenatório entre índios e brancos, o caboclo

parece ter absorvido em parte o estereótipo para si criado. Partindo desse

pressuposto, pode-se supor que as representações do homem amazônico estão

assentadas em terreno fértil, ou seja, são facilmente integradas, já que não se

evidencia resistência aos estereótipos de indolência, preguiça, inferioridade

intelectual e estética atrelados à imagem do nativo da região.

Não é raro observar nos jovens amazonenses o afã de copiar modelos

estrangeiros, no falar, no vestir, no comportamento. As influências dos padrões de

beleza e modismos do sul do Brasil são evidentes no seu vestuário, nos

adereços, na produção da imagem pessoal, no linguajar, nas opções de lazer,

etc., o que é relativamente compreensível pela influência da mídia nos hábitos

sociais.

O que surpreende, no entanto, é o que se observa empiricamente no

contexto local, no discurso cotidiano do próprio caboclo amazonense, entendido

como o indivíduo aqui nascido e criado, independente de características físicas e

status social. Em muitas ocasiões é possível verificar a predominância da visão

do “estrangeiro”, ou seja, a emergência de preconceitos atribuídos aos “de fora”,

como a idéia de que o caboclo é “preguiçoso”, é “burro”, é “feio”. Chamar alguém

de “índio” ou “caboclinho” para alguns tem um cunho depreciativo, inclusive o

12

Page 14: Um estranho no espelho

termo é freqüentemente utilizado pejorativamente em várias situações,

especialmente em Manaus.

Partindo-se dessas indicações, a presente investigação científica busca

saber se realmente existe uma negação por parte do jovem amazonense, de uma

identidade como “caboclo”, e se esse jovem se percebe integrante dessa

categoria depreciada. Considerando as evidências históricas da constituição

desse imaginário, em que sobressai a imagem depreciativa do homem

amazônico, quais as razões de sua durabilidade, já que ainda hoje são

percebidas evidências de sua existência? Os elementos para esboçar possíveis

respostas a estas indagações, estão expostos no presente estudo.

Assim sendo, o objeto desta pesquisa qualitativa diz respeito às

representações do jovem amazonense sobre o homem amazônico,

especificamente o denominado “caboclo”, buscando-se identificar se a influência

da visão eurocêntrica ainda prevalece no pensamento desse jovem, e de que

forma essa representação é feita, estabelecendo relação entre o contexto em que

esse ideário negativo foi constituído e a realidade atual em Manaus.

Considerando a grande lacuna observada em relação a esse habitante típico da

região nos estudos investigativos registrados sobre a Amazônia, pretende-se

também reunir dados que possibilitem uma melhor compreensão do tema e

fomentem novos questionamentos.

Esta pesquisa se impõe, então, a tarefa de compreender a maneira como o

caboclo é representado, tomando como sujeitos alunos de nível médio de

instituições de ensino público. Partindo do discurso dos mesmos e de sua análise,

estabelece-se um diálogo entre esses dados empíricos, a base teórica relativa ao

tema e as noções que o circunscrevem, dentro de uma perspectiva sócio-histórica

e cultural.

Adotou-se como elemento norteador a teoria das representações sociais,

procurando-se compreender o indivíduo em seu contexto, sua história e

imaginário social. Sá (1998) acentua que, como modalidade do pensamento

prático, as representações emergem das práticas sociais, tornando-se

13

Page 15: Um estranho no espelho

imprescindível que, no processo de seu desvelamento, sejam resgatadas as

condições em que foram tecidas.

A investigação das representações sociais é uma forma para se atingir

essa estrutura maior chamada “cultura”, pois os significados sociais são

construídos num meio cultural que normaliza e pressiona a emergência dos

discursos, das visões de mundo, das atuações, dos processos cognitivos, afetivos

e sociais individuais. Cultura e sociedade, segundo Morin (1998) estão numa

relação geradora mútua, onde os indivíduos exercem um papel importante, já que

funcionam como portadores e transmissores de cultura:

Por se tratar de um conhecimento prático, as representações sociais são

enquadradas entre as correntes que estudam o conhecimento do senso comum.

Pesquisar representações significa, então, adentrar a uma realidade intra-

individual, onde elementos afetivos, sociais e mentais integram a cognição, a

linguagem, a comunicação e se manifestam por meio da realidade material, social

e imaginária se seus atores. Para compreender as representações sociais Minayo

(1996) resgata um conceito de Gramsci, que considera o senso comum como a

matéria-prima das representações, chamando a atenção para a solidez das

crenças, que produzem normas de conduta e, ao mesmo tempo, conformismo

diante da crise.

O processo de análise das representações sociais impõe a necessidade de

remissão aos conceitos centrais propostos por Moscovici (apud SÁ, 1996). O

primeiro é o conceito de ancoragem, que indica a integração cognitiva do objeto

representado a um sistema de pensamento social pré-existente, ou seja,

interpreta-se determinado fenômeno a partir de experiências anteriores

armazenadas, com as quais a experiência atual é identificada; o segundo conceito

é a objetivação, através da qual se torna concreto o conceito abstrato. Por meio

desses processos de ancoragem e objetivação ocorre a transformação do não-

familiar em familiar, quando objetos, indivíduos e eventos são percebidos,

compreendidos e “acomodados” em paradigmas previamente estabelecidos.

De acordo com Minayo (1997), algumas representações sociais são mais

abrangentes em termos da sociedade como um todo e revelam a visão de mundo

14

Page 16: Um estranho no espelho

de determinada época. São as concepções das classes dominantes dentro da

história de uma sociedade. Mas essas mesmas idéias possuem elementos de

passado na sua conformação e projetam o futuro em termos de reprodução da

dominação.

No trabalho com representações, Sá (1998) chama a atenção para o fato

de que a representação que liga o sujeito ao objeto é um saber efetivamente

praticado que não deve ser apenas suposto, mas sim detectado em

comportamentos e comunicações que de fato ocorram sistematicamente. Ou seja,

a escolha do tema para estudo não pode estar baseada em especulações ou em

suposições quanto à existência do fenômeno. É necessário ter previamente

confiança de que o fenômeno exista de fato, assim como evidências de sua

representação pelos sujeitos.

Esta pesquisa tem como sujeitos 30 estudantes do ensino médio de duas

escolas públicas de Manaus, a Escola Estadual Francisco Albuquerque,

localizada na rua Joaquim Nabuco, no centro de Manaus, onde foram

entrevistados 15 alunos do primeiro ano do nível médio, turno noturno, e a Escola

Estadual Ernesto Penafort, na zona leste da cidade, onde 15 alunos do terceiro

ano do turno vespertino participaram da pesquisa. A escolha da primeira escola

se deu por estar situada no centro da cidade, considerando-se que a sua clientela

seria composta de alunos de bairros diversos, possibilitando uma amostra mais

heterogênea. Já a escola da zona leste foi escolhida porque nessa área

predominam nos moradores as características físicas que evidenciam os traços

somáticos indígenas.

Optou-se trabalhar com jovens estudantes em razão, primeiramente, da

facilidade de acesso a esse grupo, e também em razão de sua espontaneidade

nas expressões e, ainda, por estarem os jovens em fase de formulação de

conceitos e de estruturação de um pensamento social. Nessa fase,

particularmente no contexto social da atualidade, os indivíduos estão submetidos

a muitos estímulos e informações e muito suscetíveis a influências, mas

teoricamente em condições de elaborar conceitos e discernir escolhas.

15

Page 17: Um estranho no espelho

Utilizou-se para a coleta de dados a entrevista semi-estruturada, elaborada

de maneira a possibilitar a emergência de informações relevantes sobre idéias,

crenças, opiniões e condutas dos indivíduos, assim como as bases conscientes e

inconscientes dessas construções e a revelação de sistemas de valores e normas

do grupo no qual os indivíduos se inserem. As entrevistas foram realizadas com a

permissão da direção das escolas, após solicitação formal de permissão para o

contato com os alunos, tendo-se o cuidado de não atrapalhar o desenvolvimento

normal das atividades escolares.

O trabalho de campo foi realizado no período de julho a setembro de 2003,

tendo havido receptividade e espírito colaborativo em ambas as escolas por parte

dos professores para a participação dos alunos na pesquisa. Da parte dos

sujeitos, 14 homens e 16 mulheres na faixa de 15 a 20 anos, em princípio houve

certo retraimento, principalmente por parte dos homens, logo superado pela

curiosidade, havendo depois um decréscimo do “ânimo” inicial em virtude da

extensão da entrevista, elaborada de forma a captar o máximo possível de

informações, assim como as contradições que freqüentemente emergem neste

tipo de discurso.

Minayo (1996) aconselha a associação de técnicas complementares à

entrevista nos estudos de representação, como a discussão em grupos focais,

uma estratégia de coleta de dados geralmente usada para complementar

informações sobre conhecimentos peculiares a um grupo e para formulação de

questões mais precisas nas entrevistas. O interesse da composição desses

grupos para o campo das representações sociais, segundo a autora, prende-se

principalmente no fato de que eles de certo modo simulam conversações

espontâneas pelas quais as representações são veiculadas na vida cotidiana,

fazendo emergir certas percepções e atitudes que só seriam vistos no ambiente

natural.

Essa estratégia foi então utilizada previamente à realização das

entrevistas, com o intuito de colher informações mais precisas sobre o objeto das

representações para a formulação de questões mais adequadas aos objetivos

que se pretendia alcançar. A idéia era ver como os jovens estudantes se

16

Page 18: Um estranho no espelho

comportariam numa conversa informal, o que deixariam transparecer que

pudesse ser útil para orientar uma etapa posterior.

Para a constituição do grupo focal foi feita uma reunião com nove alunos

voluntários do nível médio, sem especificação de série. Percebeu-se, pela

dificuldade de abordagem do tema com os jovens, a dificuldade de extrair nos

depoimentos pessoais dados suficientemente relevantes para constituir material

de estudo, evidenciando-se a necessidade de introduzir na entrevista perguntas

mais diretivas, assim como observar a postura dos estudantes durante a

verbalização.

Os elementos emergentes no grupo ajudaram a conceber o tipo de

abordagem que poderia ser mais eficaz e subsidiaram o roteiro da entrevista,

principalmente quanto a aspectos sobre o ambiente social amazônico e

amazonense que deveriam ser enfocados. Na entrevista partiu-se de questões

mais gerais, procurando-se situar o entrevistado numa realidade sócio-econômica

e política específica, para questões mais direcionadas ao objeto de estudo, as

representações do caboclo, evitando-se a abordagem direta e privilegiando-se as

sutilezas.

Minayo (1996) considera a entrevista uma técnica interrogativa

fundamental para recuperação das representações, constituindo-se a entrevista

em profundidade ou semi-estruturada em um método indispensável nos estudos

sobre as representações, pois parte da elaboração de um roteiro no qual o

pesquisador pode enumerar da forma mais abrangente possível as questões que

pretende abordar, de acordo com suas hipóteses ou pressupostos. Sabe-se,

entretanto, que não é possível a previsão de todas as situações que vão ser

encontradas no trabalho de campo, podendo surgir a necessidade de

redirecionamento para captação de aspectos considerados relevantes na

compreensão do objeto.

A entrevista como fonte de informação fornece dados secundários e primários, referentes a fatos, idéias, crenças, maneira de pensar, opiniões, sentimentos, maneiras de sentir; maneiras de atuar; conduta ou comportamento presente ou futuro; razões conscientes ou inconscientes de determinadas crenças, sentimentos, maneiras de atuar ou comportamento (MINAYO, 1996, p. 108).

17

Page 19: Um estranho no espelho

Sá alerta para a idéia errônea e bastante difundida de que o material

discursivo do qual se queira extrair as representações deve ter sido produzido

pelos sujeitos da forma mais espontânea possível:

O problema não está em se fazer perguntas diretas, mas sim na qualidade das perguntas que são feitas, entendendo-se qualidade aí como uma decorrência da pesquisa estar criteriosamente informada pela teoria. A espontaneidade não é uma garantia de ampla revelação das representações, podendo mesmo ter, ao contrário, o efeito de encobrí-las (SÁ, 1998, p. 89).

Na opinião de Minayo (1996), o que faz da entrevista um instrumento

privilegiado de coleta de informações, na área de ciências sociais, é a

possibilidade da fala ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de

valores, normas e símbolos, ao mesmo tempo tendo o poder de transmitir as

representações de grupos determinados em condições históricas, sócio-

econômicas e culturais específicas. Deve-se ter em mente, por outro lado que a

entrevista não se resume a uma simples coleta de dados, por existir

obrigatoriamente uma situação de interação entre o entrevistado e o

entrevistador, podendo as informações dadas pelos sujeitos serem afetadas pela

natureza dessas relações:

[...] a dissimetria nas posições entrevistador / entrevistado tem que ser compreendida e assumida criticamente em todo o processo de construção do saber. O impacto resultante do pertencimento a outra classe, que se concretiza em experiências sócio-culturais e até conflitantes, é um dado condicionante da pesquisa, junto com todos os outros fatores que acompanham qualquer uma de suas fases (MINAYO, 1996, p. 119).

Existe também uma preocupação com o uso deste instrumento porque a

entrevista é, antes de tudo, uma técnica que se traduz pela produção de um

discurso, sendo este uma atividade complexa caracterizada por aspectos que

dificultam sua análise. A expressão discursiva durante uma entrevista favorece,

conscientemente ou não, a utilização de mecanismos psicológicos, cognitivos e

sociais, o que pode comprometer a confiabilidade e a validade de seus

resultados.

Essas dificuldades e divergências são efetivamente enfrentadas pelo

pesquisador, segundo Minayo (1996), quando se parte para a tarefa concreta de

18

Page 20: Um estranho no espelho

análise do material coletado. Nesse momento não existe concordância nem

quanto a pressupostos teóricos e nem quanto a métodos e técnicas a serem

empregados, se instaurando uma polêmica que tem a ver com os próprios limites

do conhecimento e com a luta intelectual para ultrapassá-los.

Análise de conteúdo costuma ser a expressão comumente usada para

representar o tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa. Na avaliação da

autora, no entanto, esta expressão, mais do que um procedimento técnico

engloba no seu significado uma histórica busca teórica e prática no campo das

investigações sociais. Operacionalmente, a análise de conteúdo parte de uma

leitura de primeiro plano para atingir um nível que ultrapassa os significados

manifestos.

Bardin (1977) concebe a análise de conteúdo como um conjunto de

técnicas de análise das comunicações. Não se trata de propriamente de um

instrumento, mas de um “leque de apetrechos”. Diz a autora que, por ser um

método muito empírico, que depende do tipo de fala e do tipo de interpretação

que se pretende fazer, “a técnica de análise de conteúdo adequada ao domínio e

ao objetivo pretendidos, tem que ser reinventada a cada momento...” (BARDIN,

1977, p. 30).

Pertencem, pois, ao domínio da análise de conteúdo, todas as iniciativas que, a partir de um conjunto de técnicas parciais, mas complementares, consistam na explicitação e sistematização do conteúdo das mensagens e da expressão desse conteúdo, com o contributo de índices passíveis ou não de quantificação, a partir de um conjunto de técnicas que, embora parciais, são complementares (idem, p. 42).

A análise de conteúdo organizada e empregada como técnica interpretativa

é criticada por Minayo (1996) pela ênfase na fala como material de análise,

resultando em fraca capacidade explicativa:

O material etnográfico é arrancado como um corpus, isto é, como um conjunto sistematizado e fixo, privilegiando-se tudo o que pode se constituir em sistema de signos a serem decifrados. Desta forma, não entram em pauta o processo de tomada de decisões no campo e nem o contexto da ação analisada. As entrevistas costumam ser vistas em bloco, perdem sua autoria e o jogo dos “significantes em cadeia” passa a ser o foco da compreensão. [...]... o rigor formal de que se reveste costuma sacrificar a riqueza dos detalhes e a multidimensionalidade da pesquisa

19

Page 21: Um estranho no espelho

empírica – características que constituem a aura e o mérito da abordagem antropológica (MINAYO, 1996, p. 229-30).

É o método hermenêutico-dialético o proposto pela autora como o mais

capaz de se aproximar de uma interpretação fiel da realidade, porque por esse

caminho, segundo ela, a fala dos sujeitos é colocada em seu contexto para ser

entendida a partir do seu interior e no campo da especificidade histórica e

totalizante em que é produzida.

A hermenêutica consiste na explicação e interpretação de um pensamento,

buscando a compreensão de sentido que se dá na comunicação entre os seres

humanos, importando, mais do que a expressão verbal, a compreensão simbólica

de uma realidade a ser penetrada. Pela capacidade de propiciar uma reflexão que

não se distancia da práxis, a hermenêutica-dialética é vista por Minayo como um

“caminho do pensamento”, pelo qual, neste trabalho, é tentada uma compreensão

mais aproximada quanto possível do pensamento social sobre o caboclo na

atualidade.

Esta opção metodológica para o trabalho interpretativo na análise de

conteúdo foi escolhida também em razão da idéia de que o desvendamento e

melhor entendimento do caboclo, na sua dimensão sócio-histórica e psicológica,

implica em entender também a nossa história pessoal e social. Acredita Ricoeur

(1978) que, de modo implícito ou explícito, toda hermenêutica é a compreensão

de si mesmo mediante a compreensão do outro, e é uma melhor compreensão de

si próprio, enquanto ser social, que todo investigador persegue em última

instância.

Após a transcrição das entrevistas, foi feita a leitura flutuante2 do material,

sendo os dados agrupados conforme as questões do roteiro de entrevista e

gerando-se tabelas com a intenção de facilitar a análise posterior, que não foi

desenvolvida a partir de uma teoria exclusiva, mas com base em conceitos e

noções teóricas, por meio dos quais se estabelece um diálogo com os fenômenos

empíricos3. Estes, após uma interpretação preliminar a partir das respostas às

2 Terminologia utilizada por Bardin (1977) para identificar a leitura prévia dos documentos.3 No sentido proposto por Minayo (1996, p. 92-3), os conceitos “são as unidades de significação que definem a forma e o conteúdo de uma teoria. Podemos considerá-los como operações mentais que refletem certo ponto de vista a respeito da realidade, pois focalizam determinados aspectos dos fenômenos, hierarquizando-os. Desta forma eles se tornam um caminho de ordenação da realidade, de olhar os fatos e as relações, e ao mesmo tempo um caminho de criação.” Noções são entendidas pela autora como “elementos de uma teoria que ainda não apresentam clareza suficiente e são usados como ‘imagens’ na explicação do real. Eles expressam também o caminho do pensamento. Ou seja, expressam a relação intrínseca entre a experiência e a construção do conhecimento.”

20

Page 22: Um estranho no espelho

questões, reunidas pela convergência temática, foram novamente agrupados em

três categorias empíricas centrais, que constituem a súmula interpretativa do

material da pesquisa de campo.

Para subsidiar a interpretação dos dados, além das leituras sobre

representações sociais e o estudo dos principais conceitos para a articulação das

análises, procedeu-se a levantamento bibliográfico com a intenção de identificar

as origens do que configurou mais tarde o componente principal do imaginário

sobre o homem amazônico, ou seja, a idéia de inferioridade da raça americana,

idealizada na figura do indígena. Estudos tendo o caboclo como tema, também

foram pesquisados, buscando-se reunir informações suficientes para a

compreensão dos dados.

No primeiro capítulo, então, aborda-se a visão eurocêntrica sobre o homem

americano, impregnada de conceitos depreciativos, que tem permeado a

representação de muitos sobre o amazônida dentro e fora do Brasil, estudada a

partir de relatos de naturalistas, tomando-se como amostra o trabalho de

Alexandre Rodrigues Ferreira, no século XVIII, os relatos de Spix e Martius, do

início do século XIX e do casal Agassiz, da segunda metade do mesmo século.

No século XX, vários estudiosos debruçaram-se sobre a Amazônia, com

finalidade descritiva, analítica ou simplesmente reflexiva, dentre os quais Euclides

da Cunha em sua obra À Margem da História, aqui referenciada.

A escolha desses naturalistas, dentre os vários que aqui estiveram,

justifica-se principalmente pela proeminência no cenário intelectual de sua

respectiva época. A Viagem Filosófica, de Alexandre Rodrigues Ferreira, por

exemplo, é um trabalho histórico de referência no Brasil, pela riqueza de detalhes

e minúcias apresentadas para estudo, assim como a Viagem pelo Brasil, dos

naturalistas Spix e Martius, no início do século XIX.

Os relatos do casal Agassiz, em Viagem ao Brasil, na segunda metade do

século XIX, por sua vez, trazem informações preciosas sobre o modo de vida da

população amazônica nas comunidades urbanas, com precisão de detalhes e

descrições. Já no século XX, a visão literária de Euclides da Cunha imprime um

cunho emocional ao painel sobre a região. Outros autores contemporâneos

21

Page 23: Um estranho no espelho

contribuem com seus escritos para esta pesquisa, buscando-se uma melhor

compreensão e referências suficientemente capazes de embasar a análise

empreendida a partir de dados coletados nas entrevistas.

A categoria “caboclo”, escolhida para o estudo em questão, constitui o

tema do segundo capítulo, tomando por base bibliografia específica a partir de

textos que abordam o homem amazônico. O termo “caboclo”, por sinal, não é

designativo exclusivamente de habitantes da região amazônica, mas aparece

relacionado a grupos de outras regiões do país, e até mesmo de cunho religioso,

como é o caso dos “caboclos” do candomblé. De toda forma, é forçoso perceber

que os diferentes usos da designação “caboclo”, em algum momento convergem

para as origens admitidas como mais remotas do termo, referindo-se àquele “que

vem do mato”.

A despeito das menções a outras acepções do termo, é especificamente

para o indivíduo originário da região amazônica, geograficamente determinado e

caracteristicamente identificado por seu habitat, costumes e modus vivendi, que

está voltado este estudo, no qual se buscou extrair das escassas fontes de

informação relacionadas ao tema, elementos suficientes para orientar a análise

dos dados coletados na pesquisa de campo. Estudos como os de Eduardo

Galvão, Roberto Cardoso de Oliveira, Charles Wagley e Eugene Parker

constituíram fontes importantes de referência no assunto, assim como o trabalho

de Débora de Magalhães Lima4, resumido em artigo, mesmo assim bastante útil

pela abrangência de suas apreciações, sem demérito para outros tantos autores

de cujas obras foram feitas menções.

No terceiro capítulo estão apresentados os resultados da pesquisa de

campo em articulação com os dados bibliográficos e os conceitos mais

diretamente relacionados ao tema, como identidade, alteridade, imaginário e

estereótipo. Primeiramente estão expostos os dados colhidos junto aos sujeitos

da pesquisa, reunidos e organizados respectivamente em quadro resumo, com as

4 Débora de Magalhães LIMA é autora da Tese de Doutorado (na qual assina LIMA AYRES) apresentada em 1992 na Universidade de Cambridge, intitulada The Social Category Caboclo: the history, social organization, Identity and outsider’s social classification of the rural population of an amazonian region (the Middle Solimões). Seu trabalho é referenciado em vários estudos sobre a Amazônia e o caboclo mas, infelizmente, não pôde ser consultado para esta pesquisa por não constar do acervo do NAEA – Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, onde foi obtido o Caderno com o artigo da pesquisadora, mencionado no presente trabalho.

22

Page 24: Um estranho no espelho

informações gerais sobre os entrevistados, e tabelas compostas com as

respostas dos entrevistados às perguntas feitas na entrevista, seguidos de

considerações analíticas.

As representações do caboclo propriamente, fragmentadas no decorrer da

análise, são recompostas depois em três categorias empíricas, expostas no

quarto capítulo, considerando que foram construídas fundamentalmente a partir

dos dados empíricos, mas que se prestam à interpretação norteada pela

abordagem hermenêutica-dialética. Busca-se aí, identificar as interrelações

intrínsecas entre o fenômeno das representações e aspectos da realidade dos

sujeitos, para compreender as condições que os determinaram e pelas quais eles

podem ser explicados.

As considerações finais trazem uma retrospectiva desse “caminho do

conhecimento” de que fala Cecília Minayo, a propósito do trabalho de pesquisa

em ciências sociais. Ali estão resumidos os pontos principais de cada etapa, as

dificuldades teóricas e práticas, assim como os pontos de convergência que se

convencionou chamar de conclusões, na ausência de termo mais apropriado.

Tendo em conta a lacuna existente em termos de um saber erudito

estruturado e difundido de forma ampla sobre o tema, acredita-se que as

informações aqui apresentadas possam resultar em contribuição para o escasso

acervo local. Espera-se, por outro lado, contribuir para a ampliação do espaço de

discussões sobre esse universo instigante que é a região amazônica, no qual o

elemento humano, embora relegado muitas vezes a dados estatísticos nas

pesquisas demográficas, esmaecido na grandiosidade da paisagem, há muito

tempo está a merecer o olhar elucidador da investigação científica.

23

Page 25: Um estranho no espelho

1. A ÓTICA EUROCÊNTRICA – ESTEREÓTIPO E PRECONCEITO

“... a principal causa de todas as diferenças entre o selvagem

e o homem sociável é que o primeiro vive em si mesmo

e o segundo vive sempre fora de si...”Rousseau

e acordo com Lisboa (1997), as imagens da América criadas pelos

europeus do séc. XIX reportam-se às idéias veiculadas na época da

conquista européia do continente americano, quando as diferenças

entre os continentes foram firmadas por uma oposição conceitual entre o Velho e

o Novo Mundo. O primeiro, centro de cultura e desenvolvimento, o segundo, uma

“terra de ninguém”, selvagem e indômita. A imagem de inferioridade e de

debilidade da terra e do homem americano é alicerçada pelos conceitos de

naturalistas respeitados nos meios científicos, como Buffon e Cornelius de Pauw,

este último defensor da idéia de que o continente americano estaria fadado a uma

irreversível degradação.

D

A teoria climática de Montesquieu é retomada por Buffon, que classifica a

humanidade conforme uma “estrutura hierárquica” pautada no modelo normativo

e eurocêntrico. Segundo esse modelo, os homens mais belos seriam encontrados

nas regiões de clima temperado. Os extremos climáticos, como frio excessivo e

áreas de climas tórridos aparecem como “desvios negativos” desse padrão. O

homem selvagem é considerado parente dos animais, marcado pelo tamanho

insignificante, debilidade física, carência de vivacidade, insensibilidade e frigidez

sexual, “defeito” este que o torna ainda mais desprezível.

Mundo intacto, é assim que Buffon visualiza ou imagina o Novo Mundo, onde o homem é um intruso. É um mundo ainda em formação. [...] Na construção da história do Novo Mundo, o clima nefando é o responsável pela geração dos animais inferiores. O clima, o solo, a umidade, o descomunal tamanho dos rios, a exuberância das florestas diziam que o mundo era imaturo, porém a vida animal que o povoava mostrava, por outro lado, que esse mundo já nascera imperfeito, motivo pelo qual era fraco, enfermiço e débil. A influência desses fatores agia sobre o temperamento do homem, modulando sua história e seus costumes (GONDIM, 1994, p.73).

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Page 26: Um estranho no espelho

De Pauw foi mais longe e, sem jamais ter tido contato com os selvagens

americanos, se declara convicto da sua “degeneração”, deduzindo serem esses

pouco mais do que “bestas”, que sentiam ódio das leis da sociedade e da

educação. Considera ele que, além de possuírem menos sensibilidade, menos

humanidade, menos gosto, menos instinto, menos coração e menos inteligência,

esses selvagens são fracos e incuravelmente preguiçosos, incapazes de

progresso mental.

Tanto Buffon quanto De Pauw, em suas considerações sobre o homem

americano, denotam um exacerbado preconceito, extrapolando a visão

etnocêntrica que, de acordo com Claude Lévi-Strauss, na sua expressão mais

imediata, não é particular do europeu. Grande parte dos seres humanos, segundo

ele, apresenta essa atitude profundamente enraizada, razão por que o

etnocentrismo é considerado como um desdobramento do “egocentrismo”,

característico de todos os seres humanos e culturas.

Meggers (1977, p. 199) vê o etnocentrismo como uma das principais

barreiras à transmissão e evolução cultural, traduzido pela “convicção de que

nossa própria gente é ‘gente de verdade’, enquanto que todos os outros grupos

são inferiores, ou mesmo subumanos.”

O comportamento de tais inferiores não é somente considerado indigno de imitação como também pode ser visto como inalienável, juntamente com a cor dos cabelos e outros traços biológicos. Esta atitude psicológica continua sendo muito espalhada hoje em dia e manifesta-se pelo desprezo para com os hábitos alimentares, roupas, métodos de adorno pessoal, indolência, agressividade e demais características de outro grupo, traduzindo-se, pois no esforço por evitar, tanto quanto possível, qualquer associação com esses indivíduos... (idem, p. 199).

Nessa forma de apreensão do mundo, o indivíduo se posiciona no centro

do seu universo, o mundo da cultura e da civilização, olhando à sua volta aqueles

que reconhece como seres humanos, seus semelhantes. Alguns parecem mais

próximos; outros só longinquamente são aparentados. Para além disso há os

estranhos, cujos costumes não são suficientemente reconhecidos e semelhantes

ao dele para que experimente sentimentos de simpatia humana. Além desses

últimos há pessoas ainda mais estranhas, que não suscitam a menor

25

Page 27: Um estranho no espelho

sensibilização. Esses estão para além dos limites da humanidade, são selvagens,

animais, elementos da natureza. É assim que é visto o nativo americano.

Autômato, achatado sob um clima adverso, nômade, sem vontade própria, sem sociedade, o nativo não é anão, é um híbrido, algo intermediário entre o réptil e o vegetal que o camufla, apesar de ter sido produzido por obra divina. [...] Floresta virgem, madrasta para os inertes, é a personagem principal nesse cenário onde o homúnculo imberbe é gerado da mesma larva que os insetos, parido sobre o mesmo leito aplainado pelo rastejas das serpentes imensas. Mal constituído, não tem o tamanho nem da vitalidade da fauna que o sufoca porque é um híbrido, quase que produzido instantaneamente (GONDIM, 1994, p. 74).

Esse etnocentrismo pernicioso tem seus desdobramentos em larga escala,

particularmente porque oriundos da Meca dos pensadores, a Europa. Na opinião

de Gerbi (1996), é precisamente a partir da divulgação das idéias do naturalista

Buffon, que a tese da inferioridade das Américas inicia uma trajetória histórica

ininterrupta que passa por De Pauw e alcança seu ápice com Hegel. Imaturidade,

impotência, inferioridade e degeneração, a partir de então passariam a ser termos

recorrentes durante séculos, sempre que eram feitas descrições da realidade

americana, incluindo sua natureza e sua gente.

Os registros arquetípicos construídos nas especulações filosóficas sobre a

existência de um paraíso terrestre, impenetrável e místico que em si mesmo

encontra o seu oposto (o inferno), estava agora materializado no Novo Mundo, e

era ele que acompanhava os viajantes e cientistas que aventuraram conhecer a

Amazônia. As narrativas desses desbravadores eram destinadas aos europeus e

é a partir deles, segundo Busato (s.d., p. 310), que vai surgir, recriado e filtrado

dos mitos antigos, o imaginário amazônico “exportado” depois para o Brasil.

Assim, “a visão atual da Amazônia pelos brasileiros fundamentou-se fora do Brasil

e fora da época contemporânea”.

De acordo com Cicerchia (2000), o trabalho que mais difundiu as teorias de

Buffon e De Pauw foi The History of America, de William Robertson. Refratário às

idéias de Rousseau e permeável ao pessimismo naturalista de De Pauw, o

historiador escocês reconhecia na América um continente imenso, com um clima

predominantemente frio e uma população “rude e indolente”. Foi a partir deste

texto que foi sendo introduzido gradualmente também um olhar que corrige a

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Page 28: Um estranho no espelho

direção cerradamente naturalista dos detratores do Novo Mundo. Ainda que os

americanos fossem primitivos ou animais melancólicos, Robertson via na

variedade americana, possibilidades históricas.

Em sintonia com as idéias de Buffon, Alexandre Rodrigues Ferreira,

quando esteve na região amazônica em uma jornada encomendada pela Coroa

Portuguesa, conhecida como “Viagem Filosófica”, buscou comprovar as teses do

famoso naturalista e estabeleceu que a preguiça e a indolência eram

responsáveis pelo atraso da Amazônia. A intervenção colonialista seria, então,

uma forma de integrar os americanos nos rumos da “civilização” e estimular a sua

inteligência, ainda embrionária. Apesar do domínio apresentado sobre alguns

fenômenos da natureza, Ferreira considerou que a racionalidade indígena não era

nem mais iluminada nem mais previdente que o instinto dos animais (RAMINELLI,

2001).

Para o naturalista a ambição, poderosa "mola das ações humanas", era

inerte naqueles seres, pois viviam na indolência e a felicidade consistia em não

trabalhar. Quando a fome os perseguia, satisfaziam-se com qualquer raiz e

animais, disponíveis na natureza. Não havia, entre eles, previsão para o futuro.

Em suas observações pondera que, em alguns momentos, os seres primitivos

deixavam entrever uma inteligência, mesmo que embrionária, capaz de se

desenvolver (FERREIRA, 1971).

Ferreira dissertou sobre a constituição física, moral e política dos povos

amazônicos que conheceu, recorrendo também a testemunhos de viajantes,

cronistas e estudiosos da América, cruzando informações, verificando similitudes,

com a finalidade de compor uma "figura americana". Percorreu as várias nações

indígenas sem buscar explicações para costumes e idiossincrasias; limitando-se a

descrevê-las nos aspectos visíveis e extraídos dos acontecimentos, tratando os

temas de forma superficial ou detalhada, conforme as particularidades e

excentricidades dos grupos contatados.

Por meio de identidades e diferenças, o naturalista classificou-as pela

fisionomia, "deformidade" anatômica, enfeite, vestimenta e capacidade produtiva.

A descrição visual é, portanto, particularmente estática, dedicada, sobretudo, a

27

Page 29: Um estranho no espelho

pormenorizar os índios pelos aspectos externos e imediatos. Seguindo os

pressupostos buffonianos, a descrição histórica está ausente.

Vale ressaltar que a postura de Ferreira condizia perfeitamente com o

encargo que lhe fora atribuído. Os naturalistas atuavam como homens de ciência,

recorrendo à neutralidade para produzir conhecimento. Eles desempenhavam

simultaneamente funções de cientistas e agentes imperiais, auxiliando a

expansão da Europa. Por intermédio da história natural apreendiam-se as

memórias. As pranchas e as espécies coletadas demonstravam o valor e a

importância das comunidades e regiões percorridas, assim como as

potencialidades da exploração comercial.

As informações reunidas na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues

Ferreira obedecem a essa racionalidade e constituem uma produção artística e

científica com base em uma lógica colonial, destinada a classificar e transformar a

natureza e as comunidades indígenas em bens para manutenção e exploração.

Na ótica de Ferreira, o possível abastardamento e a degeneração dos índios

civilizados seriam de inteira responsabilidade do próprio nativo, ao preferir a

ociosidade de uma vida improdutiva à segurança civilizatória.

O mito do bon sauvage, preconizado por Rousseau, discutido e combatido

largamente, encontrava seu oposto: le mauveau sauvage. Para Rousseau (1983),

o “estado de natureza” era o ideal humano, porquanto em estado primitivo não

havia espaço para a corrupção promovida pelo contato social. Observa Lisboa

(1997) que o pensador referia-se ao bon sauvage, não como sinônimo de

inocência paradisíaca, mas em função de sua indiferença a valores morais,

perfeitamente condizentes com o seu contexto histórico.

Defendido por alguns e atacado por outros, esse mito norteou a visão de

muitos estudiosos, viajantes e naturalistas como Spix e Martius, cujas anotações

iniciais de viagem em área brasileira indicam claramente essa orientação. Tal

visão, no entanto, ao contato com uma realidade cultural inteiramente diversa do

imaginado por eles, não só desfez-se completamente, como reforçou a

construção de uma imagem totalmente negativa do indígena americano.

28

Page 30: Um estranho no espelho

O bom selvagem, entrevisto nos primeiros contatos, é mantido até o

momento em que os naturalistas se defrontam com o universo cultural dos

selvagens em sua plenitude. Um exemplo categórico foi a mudança da impressão

de Martius quanto aos miranhas, grupo de antropófagos com os quais

permaneceu durante algum tempo.

No convívio com esse grupo indígena, Martius observa situações

cotidianas e faz considerações em princípio favoráveis, como as relativas às

mulheres miranhas:

[...] embora as mulheres dos miranhas se ocupem incessantemente com essa delicada parte do seu lar, e também saibam confeccionar artísticos trançados, nunca se lembraram, entretanto, de fazer peças de vestuário para si mesmas. Elas sempre andam vestidas no traje da inocência, mas sempre cuidadosamente pintadas, em vez de roupa. Impressionou-me aqui tanto mais essa nudez, porque julguei notar nesse sexo muitos impulsos superiores. Ao passo que os homens se entregam à mais despreocupada ociosidade, as mulheres são incansáveis no incessante labor doméstico e até mostram bondade especial nos seus esforços contínuos de nos preparar comida melhor e na compaixão por nossa doença. Quase quero acreditar que o sexo mais fraco possua em menor grau a disposição e o temperamento dos aborígenes americanos, e que por isso, mais facilmente será possível levá-los à civilização (SPIX e MARTIUS, 1981, p. 234).

Depois, gradativamente, o que poderia ser considerado como uma ligeira

simpatia mostra sinais de intolerância e rispidez:

Enquanto os homens se dispersam para caçar ou para pescar, ficam as crianças sob os cuidados da mãe, e esse momento é de educação, se é que se pode chamar assim a ocupação tola com os pequenos seres egoístas. Lição de moralidade, mesmo de simples bons modos, não se acha aqui; quando muito, um adestramento para a subsistência entre os outros. [...] Deferência, modéstia, obediência, desconhecem-nas tanto as crianças, quanto os pais (idem, p. 234).

Finalmente desaparece do ideário dos naturalistas toda a idéia de

“bondade” que se inclinavam a atribuir-lhes, dando lugar ao “mau selvagem”, no

sentido lato, que não é somente estúpido, indolente, ignorante e rude, mas

também pervertido e mau por índole. Sobre esse grupo, que julgava “rudes até a

bestialidade”, mas detentores de certa nobreza, após conhecer alguns costumes

e presenciar certas festas e rituais, Martius expressa-se de maneira

especialmente contundente:

29

Page 31: Um estranho no espelho

Ainda me confrange a alma, quando me lembro da horrível degeneração desses brutos. [...] Fiquei persuadido de que esses selvagens não tinham idéia alguma do Deus, bondoso, pai e criador de todas as coisas; que somente domina seus destinos um ente mau, transformando-se em cada fatalidade, caprichoso e implacável, ao qual se sujeita em cego e inconsciente medo. A alma desses homens primitivos decaídos não é imortal; ela apenas se manifesta na existência, não conscientemente, e só a fome e a sede lhes lembram as necessidades da vida. Justamente por isso, a vida não é por eles considerada um grande bem, e a morte lhes é indiferente. Com ela, tudo se acaba; só sobrevivem o ódio e a vingança como espectros atormentadores. O laço do amor é frouxo; em vez de ternura, cio; em vez de afeição, necessidade; os mistérios da geração, profanados às claras; o homem, por comodidade, meio vestido; a mulher, escrava nua; em vez de puder, vaidade; o casamento, um concubinato que se desfaz, segundo o capricho; a preocupação do pai de família é seu estômago, quando cheio este, crua concupiscência; seu passatempo, glutonagem e ócio apático; sua ocupação, irregularidade; o trabalho das mulheres, cego e sem finalidade; os seus prazeres, repugnante lascívia; as crianças, fardo dos pais, e, por isso, evitada; a afeição paternal, somente cálculo, e a maternal, somente instinto; o pai de família, descuidado e sem autoridade; a educação, brincadeira imitativa da mãe, cega despreocupação do pai; em vez de obediência filial, medo; [...] em vez de amizade, camaradagem; [...] em vez de direito, a voz do egoísmo; [...] mutismo por pobreza de idéias; indecisão, por falta de discernimento; o domínio do tuxaua, por inaptidão dos demais, porém todos incapazes da verdadeira obediência moral, assim como do comando – eis como vive o aborígene destas selvas! No mais primitivo grau da humanidade, é deplorável enigma para si mesmo e para o irmão do oriente ... (SPIX e MARTIUS, 1981, p. 247).

As imagens projetadas pelo naturalista evocam a idéia de um ser abjeto, e

denotam claramente o julgamento personalista ao que o autor submeteu os

literalmente “inocentes” índios, os quais, medidos por parâmetros arbitrários,

julgados e condenados como as mais vis criaturas, nada mais faziam do que

“viver em natureza”, de acordo com o seu próprio universo. Esse julgamento, por

sinal, não se restringe aos miranhas por seus bárbaros costumes, mas se

expressa em outras circunstâncias, como sobre os júris e os botocudos, onde o

preconceito eurocêntrico também é evidenciado nas referências às características

físicas dos indígenas:

[...] na sua aparência feia, quase não têm traço de humanidade. Indolência, embotamento e rudeza animal, estampam-se-lhes nos rostos [...]; voracidade, preguiça e grosseria, patenteiam-se-lhes nos lábios inchados, na barriga, assim como em todo o torso troncudo e no andar de passos curtos (idem, p. 247).

Em oposto à preconceituosa visão dos naturalistas sobre o homem dos

trópicos, um ideal romântico de natureza sobressai nos relatos sobre as incursões

30

Page 32: Um estranho no espelho

pelo mundo natural. Essa imagem, no entanto, também se observa permeada de

contradições, à medida que os viajantes adentram na região amazônica e são

submetidos a inúmeros percalços em áreas inóspitas.

Lisboa (1994) acredita que Spix e Martius experimentaram nos trópicos

uma natureza que podia causar enorme prazer. No entender desses naturalistas,

o “sentimento da natureza” era imprescindível para investigar os objetos da

história natural na sua totalidade. Segundo a autora, possivelmente a criação

dessas descrições paisagísticas tem como pano de fundo a discussão sobre os

conceitos das duas formas de representar a natureza, que nortearam uma

reflexão estética no decorrer da segunda metade do séc. XVIII em torno da

poética do pitoresco e do sublime, estabelecendo uma contradição dialética entre

o indivíduo e a coletividade.

No trabalho dos naturalistas as referências paradisíacas são mais

freqüentes do que as infernais, sendo sempre evocadas no contexto da prática do

pesquisador da natureza, que se fascina com a descoberta da variedade e da

vitalidade dos trópicos. Ao longo da viagem, no entanto, fustigados por insetos,

animais, chuvas torrenciais, calor, doenças, os estudiosos perdem a empolgação,

mostrando-se oprimidos e horrorizados com o perigo e com a estranheza de uma

natureza invicta e selvagem.

Lisboa observa na descrição dos viajantes uma dimensão visionária do

“sublime”, segundo a qual a natureza os transporta a sensações infernais. Se

antes era benéfica, agora podia provocar o mal-estar. Nesse aspecto,

particularmente, os índios potencializam a imaginação de uma natureza

ameaçadora. A consciência de pertencer a um mundo considerado “civilizado” os

faz se sentirem agredidos por aqueles que representam a alteridade.

Do mesmo modo que a natureza brasileira se oferecia ao enriquecimento

da pesquisa naturalista, a diversidade étnica dos seus habitantes prestava-se

para ampliar o conhecimento acerca dos “povos” extra-europeus e das raças

humanas. No entanto, os diferentes tipos humanos encontrados nos trópicos são

classificados pelos naturalistas segundo idéias maniqueístas de degeneração e

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Page 33: Um estranho no espelho

perfeição, deixando sobressair sua convicção da superioridade da raça caucásica

no contexto da escola evolutiva dos homens.

Lisboa (1994) situa Spix e Martius no grupo dos primeiros naturalistas a

pesquisar os povos indígenas brasileiros de forma sistemática. A carência de

sensibilidade para enxergar o índio evidencia justamente o etnocentrismo europeu

no início do século XIX, uma vez que o critério básico para a investigação era o

da perfectibilidade moral e o da conseqüente capacidade de “civilizar-se”,

permeado pela dúvida quanto à humanidade ou não dos indígenas.

A autora critica a insensibilidade dos naturalistas diante das complexas

relações sociais intrínsecas a uma sociedade colonial escravocrata. Para aqueles

estudiosos tanto os índios como os etiópicos e mestiços revelam uma timidez

velada diante do branco, bastando um simples olhar deste e mesmo a sua

presença para amedrontá-los, de forma que um branco poderia em tese governar

tacitamente centenas deles.

O conceito de inferioridade racial do homem americano ganha, então,

dimensão maior nas considerações dos autores em seus relatos. Relata Lisboa

que na opinião de Spix e Martius as feições da maioria dos grupos indígenas

tinham pouca distinção entre um grupo e outro, parecendo todos dominados pelo

que eles chamam de “traços gerais da raça”. A ausência de traços individuais

seria sinal de sua falta de “desenvolvimento”. No entender desses naturalistas, o

fenômeno da indistinção não acontecia mais em nenhuma outra raça, o que

implicava a primitividade dos índios americanos na história da evolução humana.

Na visão dos autores, o temperamento dos indígenas não se desenvolvia:

Não ligam para o dia seguinte, porque não distinguem “passado e futuro” [...] não conhecem o “sentimento de deferência, gratidão, amizade, humildade, ambição”. São “insensíveis, taciturnos, imersos no mais absoluto indiferentismo por tudo”. Levados pelos “instintos animais” são “frios e indolentes”, mesmo com a família. [...] Assim passam-se meses e anos, para o índio, em caçadas e guerras, festas selvagens e tarefas rotineiras, numa vida rude e insensível, ignorante de toda alta vocação, a que a humanidade tende (SPIX e MARTIUS apud LISBOA, 1994, p. 149).

32

Page 34: Um estranho no espelho

Nessa ótica os índios vivem do lado de fora da sociedade humana, sendo

fortemente conduzidos por instintos animais e dotados de uma alma definhada,

inspirando esses homens das selvas nos naturalistas uma sensação mista de

rejeição e de pretensa compaixão. A dança dos Puris, por exemplo, lhes evoca

sentimentos melancólicos em razão da “degeneração do humano” nos índios.

[...] o porte baixinho, o pardo-avermelhado da pele, o cabelo negro de carvão, solto e desgrenhado, o formato desagradável da cara larga, angulosa, e os olhos pequenos, oblíquos, inconstantes, finalmente o andar de passos curtos, esquivos [...]. E, então, pelo caráter tristonho dessa festa, na escuridão da noite, a nossa impressão de pena era ainda maior... (SPIX e MARTIUS apud LISBOA, 1994, p. 150).

Apesar de consideraram os índios do Amazonas mais desenvolvidos do

que os das tribos do sul do Brasil, em grau de “civilização”, em nenhum lugar

pareceu-lhes tão medonha e triste a miséria do silvícola americano como entre os

muras. Também o pavor de fantasmas e a crença em fatos extraordinários são

considerados como ridículos.

À medida que conheciam mais grupos aldeados, perdiam também a

convicção do sucesso das iniciativas civilizatórias. A crítica dos autores à

interferência colonizadora e ao trabalho dos jesuítas, “não se refere à trágica

dizimação da população autóctone e o desrespeito à sua forma de vida, mas o

fato de que essa política teria impedido a ‘civilização’ dos selvagens, perpetuando

o seu estado de selvageria e de degeneração moral” (LISBOA, 1994).

Os apontamentos de Spix e Martius sobre a questão indígena, de acordo

com a autora, abrangem justamente o período caracterizado pelas polêmicas

sobre a forma institucional de “civilizar” os índios. Os naturalistas não são alheios

às contradições do processo colonizador e às dificuldades que se travaram entre

os europeus e os íncolas originais. Criticam a conduta desrespeitosa dos colonos,

o passado da violenta conquista, a escravidão indígena, a violação da legislação,

a política dos aldeamentos, as missões religiosas, as autoridades

governamentais, enfim, conferem à colonização o papel de ter lançado tantas

“sementes de destruição” no Novo Mundo, aparentemente relativizando e quase

inocentando os índios de sua “decadência”...

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Page 35: Um estranho no espelho

O lado devastador da colonização para com a população indígena é

apontado pelos naturalistas, os quais reconhecem que a “decadência moral e

física” dos índios os joga numa vida ambígua e triste, na qual perdem os seus

costumes originais, esquecem sua língua, dissipam “toda a energia moral” ou

mesmo se extinguem por completo.

Lisboa (1994) enfatiza que, ao exaltar a superioridade do europeu sobre as

demais raças, no entanto, a razoável lucidez dos autores acerca das mazelas da

colonização perde a sua intensidade. Spix e Martius destroem a própria crítica ao

compactuar com a idéia que os índios são irracionais e inacessíveis à civilização:

Foram baldadas as mais diversas e numerosas tentativas para estabelecer em pé de igualdade de direitos e deveres estes homens entre os demais habitantes da América; quando, além disso, uma desproporcionada mortalidade faz entrever que os filhos dessa parte do mundo, cheia de vida material abundante, são de constituição tão fracamente dotada de força vital, temos de inclinar-nos à conclusão de que os índios não suportam a cultura mais alta que a Europa lhes quer inocular, e que a civilização progressiva, elemento vital da humanidade florescente, mesmo os destrói, como um veneno letal (SPIX e MARTIUS apud LISBOA, p. 163).

Na opinião dos autores, os índios contraem as enfermidades dos brancos

em virtude de sua debilidade natural, assim como a falta de desenvolvimento

espiritual explicaria o alastramento das doenças européias entre eles, a

diminuição da fecundidade feminina e a degeneração da constituição robusta e

resistente de seus corpos.

Assim, o destino da raça americana, tal qual acontece com outros seres da

natureza, é decompor-se, antes de alcançarem o mais alto grau de

desenvolvimento. Por não serem dotados de perfectibilidade, a raça americana

nada mais é do que um “ramo atrofiado no tronco da humanidade”, relegados,

portanto, à impossibilidade de aperfeiçoamento e de atingirem a “humanidade

superior”.

O estado degenerativo é traduzido não somente pela ausência de traços e

vestígios materiais que permitam a reconstrução de sua história, mas também

pelo fato do passado do homem americano ser igual ao presente, de nada se ter

34

Page 36: Um estranho no espelho

transformado neles e em torno deles e pelo fato de viverem num tempo imóvel,

próprio de sua “natureza decaída”. Em sua concepção, os nativos americanos

pertencem a uma não-história , em que não há passado nem futuro (LISBOA,

1994).

A autora destaca que no texto O Estado do Direito Entre os Autóctones do

Brasil, Martius menciona novamente o “enigma obscuro” que são os índios no

meio das criações da civilização e dos costumes europeus que no Novo Mundo

triunfalmente se espalharam do litoral para o interior do continente. Seu “estranho

e inexplicável estado”, evidenciando sua incapacidade para o progresso, fez

fracassar todas as tentativas de conciliá-lo inteiramente com a Europa vencedora

e torná-lo um cidadão satisfeito e feliz.

A tese de a raça americana ser um “ramo atrofiado” do tronco da

humanidade é assim encampada por Martius, enfatizando que a decadência

moral e física da população indígena teria sido causada muito mais por caprichos

da natureza do que pela colonização. Para Martius, sendo o gesto fundador da

civilização o domínio dos homens sobre a natureza, o vazio de seres humanos da

paisagem brasileira, não pode ser preenchido por índios. Os naturalistas

defendem o processo civilizador por ser este conduzido pela “raça caucásica”.

Entendem ser a irradiação da civilização, iniciada no Oriente, a grande

disseminadora de cultura devendo, mais cedo ou mais tarde, atingir a América.

O projeto civilizador dos naturalistas para o Brasil pautava-se não somente na dominação da natureza, mas também no cruzamento das diferentes “raças”, cabendo à raça caucásica, por ser mental, física e moralmente superior às outras, conduzir esse processo de branqueamento por meio da mistura racial. Apostavam que os brancos absorveriam, por meio da miscigenação, as demais etnias, descaracterizando-as no sentido de aperfeiçoá-las para a civilização. [...] Os poucos índios seriam naturalmente excluídos ou então, em casos raros, incorporados, à medida que perdessem a sua identidade cultural. Ao contrário de Hegel, para quem a América meridional era um mundo inacabado e imaturo onde a História Universal jamais chegaria,os naturalistas bávaros acreditavam que o Brasil estava a caminho do seu “aperfeiçoamento” (LISBOA, 1994, p. 173).

Para Martius, a miscigenação das raças, tal qual acontecia no Brasil, era

um aspecto basilar no inexorável caminho da civilização. Ao homem branco nos

trópicos, por representar a “verdadeira humanidade” e por isso gozar de

35

Page 37: Um estranho no espelho

superioridade sobre as demais raças, cumpria a sua missão de difundir a

civilização. Em teoria, quanto mais claros os indivíduos, mais dotados de

perfectibilidade.

Por serem considerados autores de referência nos estudos naturalistas,

sua herança foi marcante para muitos estudiosos brasileiros, preocupados em

definir uma identidade para a nascente nação: a questão da miscigenação foi um

dos assuntos mais debatidos ao longo da segunda metade do séc. XIX e início do

séc. XX, disseminando a visão eurocêntrica do homem americano pela elite

brasileira, particularmente no meio científico.

A força de idéias como esta, difundida e partilhada por muitos estudiosos,

pode ser evidenciada tempos depois em trabalhos como o de Tavares Bastos

(1975, p. 219): “Eu não imagino aplicável a esta região da América senão a

medicina que tanto se recomenda a toda ela: a imigração de indivíduos das raças

vigorosas do norte do globo”.

Sem desconsiderar o trabalho minucioso e enriquecedor, do ponto de vista

científico, com que estes estudiosos contribuíram para o conhecimento da região

amazônica, acredita Lisboa que Spix e Martius não conseguiram ultrapassar o

limiar da auto-referência para estabelecer uma identificação com os estranhos.

Embora tenham sido capazes de integrar-se à natureza tropical, não conseguiram

desfazer-se de si mesmos para observar o “outro”, representado pelos negros,

mulatos e, principalmente, índios. Além disso, mundialmente reconhecidos e

respeitados como pesquisadores, em parte do seu legado ajudaram a reforçar um

estigma que ainda hoje perdura no auto-conceito do homem amazônico.

1.1 Um estigma como herança

Outros viajantes, além de Spix e Martius, compartilharam da visão

eurocêntrica de superioridade da raça caucásica e do preconceito com o indígena

brasileiro, entre esses o casal Agassiz, que estiveram no Brasil na segunda

metade do século XIX em viagem de estudos. Apesar de seus interessantes

relatos muitas vezes afáveis e em tom afetuoso sobre os caracteres gerais da

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Page 38: Um estranho no espelho

Amazônia e a vida comunitária local, em vários momentos eles atestam sua

adesão à idéia de inferioridade da população local.

Assim, a despeito de apropriadamente criticarem a postura dos brancos em

relação aos nativos, ressaltando a prática exploratória do trabalho indígena e a

baixa moralidade da população branca, deixam entrever o preconceito subjacente

com referência aos indígenas e mestiços, particularmente na região amazônica:

Não somente a população branca é muito escassa para corresponder à tarefa que tem diante de si, como essa população não é menos pobre em qualidade do que reduzida em quantidade. Apresenta o singular fenômeno de uma raça superior recebendo o cunho duma raça inferior, de uma classe civilizada adotando os hábitos e rebaixando-se ao nível dos selvagens. Nas povoações do Solimões, as pessoas consideradas como da aristocracia local, a aristocracia branca, exploram a ignorância do índio, iludem-no e embrutecem-no, mas tomam não obstante os seus hábitos e, como ele, sentam-se no chão e comem com as mãos (AGASSIZ, 1975, p. 154).

Aproveitam para criticar a colonização portuguesa que, em sua opinião,

“rebaixa-se” ao nível dos índios:

Os norte-americanos e os ingleses poderão ser bem sórdidos em suas transações com os naturais do país; o tráfico de “peles azuis” não lhes deixou certamente as mãos limpas, mas não quereriam degradar ao nível dos índios como o fazem os portugueses: não se abaixariam a adotar-lhes os costumes”. (idem, p. 154)

O “elemento índio”, para o casal Agassiz, é o responsável pelo surgimento

de uma classe híbrida, sem expressão, o grande vilão do processo

miscigenatório:

Outra particularidade que igualmente impressiona o estrangeiro, é o aspecto fraco e depauperado da população. Já o havia assinalado anteriormente; mas, nas províncias do norte, isto é bem mais impressionante que nas do sul. Não se trata apenas de ver crianças de todas as cores: a variedade de coloração testemunha, em toda sociedade em que impera a escravidão, o amálgama das raças. Mas no Brasil essa mistura parece ter sido sobre o desenvolvimento físico numa influência muito mais desfavorável do que nos Estados Unidos. É como se toda pureza do tipo houvesse sido destruída, daí resultando um composto vago, sem caráter e sem expressão. Essa classe híbrida, ainda mais marcada na Amazônia por causa do elemento índio, é numerosíssima nas vilas e nas grandes plantações... (AGASSIZ, 1975, p. 180).

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Page 39: Um estranho no espelho

Mais do que o índio aparece aí o preconceito contra o resultado da

miscigenação, o “híbrido”, representado pela figura “decadente” do mestiço:

Aqueles que põem em dúvida os efeitos perniciosos da mistura de raças e são levados por falsa filantropia, a romper todas as barreiras colocadas entre eles, deveriam vir ao Brasil. Não lhes seria possível negar a decadência resultante dos cruzamentos que, neste país, se dão mais largamente do que em qualquer outro. Veriam que essa mistura apaga as melhores qualidades, quer do branco, quer do negro, quer do índio, e produz um tipo mestiço indescritível, cuja energia física e mental se enfraqueceu. (idem, p. 180, rodapé)

Os “bastardos” da mistura de raças são equiparados a cães, cujas

qualidades certamente sobrepujam às do miserável tipo “impuro”:

O resultado de ininterruptas alianças ente mestiços é uma classe de pessoas em que o tipo puro desapareceu, e com ele todas as boas qualidades físicas e morais das raças primitivas, deixando em seu lugar bastardos tão repulsivos quanto os cães amastinados, que causam horror aos animais de sua própria espécie, entre os quais não se descobre um único que haja conservado a inteligência, a nobreza, a afetividade natural que fazem do cão de raça pura o companheiro e o animal predileto do homem civilizado (AGASSIZ, 1975, p. 184).

Em seu À Margem da História, em que relata sua experiência na região

amazônica, também Euclides da Cunha (1975) lança um olhar como que

“penalizado”, desalentador, sobre a paisagem e os seus raros habitantes.

Reportando-se ao passado, Euclides registra o seu caráter ilusório, diante de uma

realidade inalterável, na qual parece não haver progresso nem melhora, nem

evolução, corroborando, ainda que não intencionalmente, a teoria de que a

civilização dos trópicos está fadada a uma não-história:

São realmente reveladores os inúmeros relatos de cronistas e viajantes

que percorreram a Amazônia e deixaram impressões depreciativas sobre os

lugares e seus primeiros habitantes. La Condamine, que desce o rio Amazonas

em 1735, fala dos índios como inimigos do trabalho e indiferentes, incapazes de

previdência e reflexão, preservando da infância os defeitos, sem amadurecer. Em

sua opinião o homem americano ainda está na infância do mundo, pouco

diferindo das bestas.

38

Page 40: Um estranho no espelho

Praticamente todos os viajantes que visitaram o paraíso infernal

amazônico, observa Gondim (1994), apontam os nativos como os agentes que

desarmonizam a ordem social instalada pelo branco. La Condamine, por exemplo,

pretendendo escrever um trabalho científico sobre a Amazônia, na sua opinião

enredou-se na escolha do que considerou notável e digno de registro,

engrossando a fileira dos detratores.

Para Bates (1979) os índios são como animais anfíbios, dado o extremo

vínculo com a água, com os rios. Em sua opinião o índio não passa de um

estranho nas regiões tropicais e a aparente bondade é provavelmente decorrente

muito mais da ausência de qualidades más do que da presença de boas

qualidades. Bates critica também o temperamento apático e indiferente dos

índios, assim como a ausência de ambição e a frieza de sentimentos, e a falta de

curiosidade e agilidade mental, presumindo que esses têm uma imaginação

embotada, sem vivacidade, generalizando essas e outras características

depreciativas para toda a raça indígena dos trópicos.

Cardoso de Oliveira (1978) considera um absurdo esse tipo de

generalização, porquanto a imagem unívoca e abstrata de um índio genérico é em

si mesma inverossímil, pois desconsidera (e mesmo ignora) a variedade cultural

inerente à paisagem indígena brasileira.

Ocorre que “os viajantes e conquistadores que por aqui andaram

manifestaram seu fascínio ou estranhamento em relação à natureza e aos povos

nativos a partir dos parâmetros da chamada “civilização ocidental”, tida como

física, econômica e culturalmente superior” (COSTA, 2000, p. 123).

Arruda (1998) refere-se às imagens sobre o mundo recém descoberto

como representações de um imaginário pré-concebido com o qual era necessário

familiarizar-se:

As formulações edênicas, projetadas sobre a América, criavam uma ponte que aproximava o Novo Mundo do velho, integrando-o ao seu imaginário, preenchendo o lugar antes ocupado pelas terras longínquas ... De certa forma, edenizar a América significava estabelecer com ela uma camaradagem, uma cumplicidade que repousava no mundo imaginário. Encontrava-se ali algo que, de certa forma, já estava concebido: via-se o que se queria ver, o que se ouvira dizer (ARRUDA, 1998, p. 22).

39

Page 41: Um estranho no espelho

Relativamente ao elemento humano, em detrimento da imagem do ‘bom

selvagem’ venceu a diferença: “infernalizou-se o mundo dos homens em

proporções jamais sonhadas. [...] Os índios seriam o foco mais vivaz da

ambigüidade, retraduzida na detração.” Esta se estendeu do índio para os negros

e daí para os colonos em geral (ARRUDA, 1988, p. 23).

O índio, e depois o negro seriam bárbaros, animais, demônios. Denegrindo-os, procedia-se à cristianização. Detratando-os, estava justificada a escravidão. Todavia, estas não eram as únicas representações em presença. Elas constituíam sim, as mais pragmáticas, aquelas que melhor solucionavam a ambivalência diante do outro naquela situação (idem, p. 24).

Na descrição dos pesquisadores que no século XIX percorreram a Bacia

Amazônica, observa Vicentini:

[...] acoplava-se, ao pensamento quantitativo e classificatório da natureza, um forte sentido moral de civilização. Os povos primitivos eram comparados a outros animais e aos povos negros, numa referência aos pressupostos da escravidão, mesmo que o índio também fosse discriminado pela crença em sua apatia em relação ao trabalho, já que esses idéias se colocaram no sentido de domesticação do mundo a serviço do homem ocidental (VICENTINI, 1986, p. 113).

É digno de registro, segundo Nogueira (2000, p. 111), a surpresa que um

missionário do século XVIII teve ao ouvir de um índio o que mesmo estava

pensando, porque na concepção do religioso, nunca se soube que raça de índios

do Amazonas, fosse capaz de pensar. “Ou seja, foi esta construção que

predominou para definir o habitante da região. Diferente de outros, um vencido.”

Na opinião de Arruda (1998, p. 21) as descrições da nova terra ressaltando

a natureza inauguram um fluxo de representações que passaria a transitar em

mão dupla entre o Brasil e o Europa. “Elas evocam a alteridade, cuja descoberta

renova nosso saber sobre o homem e questiona a imagem que temos de nós”:

A alteridade serviu de fermento para a renovação dos repertórios mentais. Urgia formular um novo senso comum que incorporasse a natureza tropical e as populações indígenas. [...] Novos sistemas representacionais eram convocados pelas informações que se produziam, confirmando sua aderência às situações de novidade, seja nas sociedades ditas complexas, seja nas anteriores. Elas trabalhavam pelo estabelecimento dum senso comum condizente com os novos tempos (idem, p. 21).

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Page 42: Um estranho no espelho

O novo, impactante, vislumbrado pelos colonizadores, na opinião de Arruda

provocou a necessidade de acomodação de sentimentos ambíguos como

surpresa e medo, atração e repulsa, fazendo com que no processo

representacional certas características prevalecessem em detrimento de outras.

“É nesse encontro das diferenças que mergulham algumas das fundas raízes da

maneira brasileira de representar a si e a seu espaço” (ARRUDA, 1998, p. 25).

Durante a colonização, a representação da natureza ofuscou a presença humana; ao surgir o Brasil-nação ela contaminou tudo e todos com o exotismo, embaçando a vista de si própria. [...] Essas representações omitiram a relação da sociedade com a natureza enquanto uma relação social, terminando por encobrir tanto uma quanto a outra . [...] A construção da “brasilidade” teria se dado, portanto, através de sucessivos tratamentos da diferença, que vão configurando um quadro de elaboração e apropriação progressiva da alteridade, sob formas diversas. (idem, p. 39-40)

A propósito da formação do pensamento social na Amazônia, pontua

Weigel (2000, p. 22-3) que essa região

sempre foi composta de um mosaico de concepções, mutante ao longo do tempo, ao longo da sucessão de tentativas de ocupação. O que é importante anotar aqui é que com a chegada da civilização ocidental, e posteriormente do capitalismo, ocorre a implantação de um modo de pensar dominante, mas que não consegue tornar-se predominante. É um modo de pensar de características hegemônicas, que não instala plenamente a sua hegemonia, pelas suas limitações inerentes e pela superioridade localizada de outros modos que com ele se chocam, balizados pela especificidade das interações homem-ambiente e pelo arcabouço cultural subjacente e determinante.

Acredita o autor que, por ser um fragmentado, o pensamento social sobre a

Amazônia não é considerado em sua totalidade, o que “leva à perpetuação da

dependência regional, do desgaste sociocultural e de propostas equivocadas de

desenvolvimento” (WEIGEL, p. 30).

Segundo Cardoso de Oliveira (1978, p. 257), na época da ocupação

portuguesa, que se inicia em princípios do século XVII, a Amazônia era habitada

por um grande número de tribos indígenas, cuja cultura era geralmente de

subsistência, com base no cultivo de roças de mandioca, e de vida mais ou

menos sedentária em aldeias. “A tribo como entidade política era pouco definida,

41

Page 43: Um estranho no espelho

não obstante constituir uma unidade social resultante de língua, padrões culturais

e território comuns”.

O processo de aculturação entre as sociedades – a tribal e a nacional – foi

facilitado, segundo ele, por fatores como a simplicidade cultural do colono e a sua

dependência do índio, não apenas como mão-de-obra, mas como possuidor de

um complexo sistema de adaptação às novas condições ecológicas com que este

se defrontava. “A dominação secular e religiosa, apoiada em força de armas foi,

nessa região, orientada para a integração do índio na sociedade colonial”

(CARDOSO DE OLIVEIRA,1978, p. 268).

O resultado do contato foi a destribalização dos grupos mais expostos, que

habitavam as margens do Amazonas e de seus afluentes. Indivíduos de

diferentes tribos foram reunidos nas vilas, aldeias missionárias ou transferidos

para os centros coloniais. As diversas línguas foram substituídas por um dialeto

comum, com base no tupi-guarani, falado pelas tribos costeiras, porém adaptado

pelos missionários e colonos. O processo de absorção da massa indígena não foi,

entretanto, pacífico.

Galvão (1976) enfatiza que o elevado contingente indígena característico

da formação étnica regional foi na Amazônia usado em maior número e muito

mais intensamente que em qualquer outra região do Brasil. E isso devido à

dependência maior sobre ele do colono, a quem faltava o conhecimento da

técnica da exploração dos produtos naturais e da floresta.

As tribos indígenas do alto fornecem o braço de trabalho na medida em que se incorporam à sociedade rural e absorvem sua cultura, contribuindo ao mesmo tempo para a persistência e fixação de elementos ameríndios já integrados aos hábitos de vida do caboclo (GALVÃO, 1976, p.11-12).

A propósito do processo de colonização da Amazônia, viabilizado pela

inserção compulsória da mão-de-obra indígena, Tavares Bastos faz referência ao

caráter ideológico determinante daquelas condições:

[...] nos casos onde a colonização de faz por meio de sistemas de trabalho compulsório, a ideologia operante tenderá a ser autoritária,

42

Page 44: Um estranho no espelho

dispondo os indivíduos em grupos distintos e hierarquizados, tendo como limite as ideologias raciais. [...] À população dependente não cabe nessa ideologia papel algum, exceto submeter-se e funcionar segundo os padrões instituídos, identificando-se com a ideologia dominante e procurando traduzir em termos dela suas crenças e condutas. Tal ideologia de maneira alguma pretende oferecer-lhe elementos para uma opção de vida da qual ela própria será o agente, mas somente compilar e codificar um conjunto de obrigações que têm efetivamente a seguir (TAVARES BASTOS, 1975, p. 113).

No entanto, nem os europeus de outrora nem os brasileiros de hoje

constituíram uma frente maciça e compacta, e desse modo, diluiu-se e foi

enfraquecido seu poder de influenciar culturalmente as sociedades indígenas.

Por outro lado, a guerra e a captura maciça de cativos determinaram a desorganização da maioria dos grupos indígenas e a assimilação forçada dos indivíduos no contexto urbano. O que restou da população indígena, refugiou-se nas cabeceiras dos rios, ou em áreas ainda inexploradas, onde remanescentes são encontrados ainda hoje (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, p. 274).

Com o período áureo da borracha uma mudança social se desenvolve,

firma-se e empresta nova fisionomia às cidades e povoados, vindo a

intensificação de atividades econômicas com um sistema original de crédito

fornecer a base em que se desenvolveu um novo esquema de classes sociais. As

distinções entre índios e brancos, na realidade distinções culturais e étnicas que

se refletiam na organização social, praticamente desapareceram (GALVÃO,

1976).

Uma outra hierarquia substituiu o modelo colonial e pós-colonial, dando

lugar aos caboclos, coletores de borracha, recrutados entre índios, mamelucos,

nordestinos e portugueses, e os patrões ou financiadores. De acordo com Galvão

(1976, p. 113):

A “cidade” e a “aldeia”, tradicional divisão das povoações amazônicas, identificando na “cidade o elemento branco ou mesclado, porém de cultura e situação social “branca”; na “aldeia”, o índio domesticado desapareceu, cedendo lugar a um único local segmentado em “gente de primeira” (comerciantes, funcionários de categoria, “famílias de tradição”) e “gente de segunda” (caboclos, roceiros ou seringueiros).

A imagem de inferioridade do homem amazônico, que percorreu gerações,

tem nos caboclos a sua representação, constituindo, ao que tudo indica, elemento

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Page 45: Um estranho no espelho

de auto-referência bastante forte para muitos integrantes da população local. O

estudo de Lima (1997) sobre uma comunidade amazônica reflete suas

impressões sobre esse conceito depreciativo em relação àqueles habitantes:

Em geral, as populações locais têm, ao lado de uma identidade própria, uma imagem, muitas vezes estereotipada, atribuída a elas pelos grupos sociais com os quais interagem na sociedade regional. No caso de Mamirauá, as populações locais apresentam duas categorias de referência: uma a de caboclo, usada pela sociedade para identificá-las, e outra, a de pobres, que é a categoria mais abrangente com que se identificam (LIMA, 1997, p. 305).

Segundo a autora, a representação cultural de um “típico amazônida rural”

inclui também conceitos de valor, na maioria depreciativos, do ribeirinho:

A “indolência” e a “preguiça” do caboclo são elementos de um estereótipo que oferece uma interpretação moral de sua pobreza. [...] Como a população “cabocla” firmou-se em número e em importância econômica nos meados do século dezenove, quando idéias racistas dominavam o pensamento social da elite ocidental e eram copiadas pelos brasileiros, a posição social da população cabocla foi explicada como sendo conseqüência do efeito deletério da mistura de raças. Essa busca por atribuições próprias para explicar a condição social inferior permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje (LIMA, 1997, p.306).

Embora não incorporem de forma consciente o estereótipo, na análise de

Lima os caboclos acabam por corroborar o estigma da preguiça, indolência e

inferioridade física e intelectual atribuído a eles:

O retrato do caboclo, no entanto, não corresponde a uma identidade social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido a outras classes e categorias sociais. Sua própria construção de identidade não lhes confere uma noção de coletividade demarcada por uma nítida diferenciação social, como a noção de caboclo poderia supor. [...] De certo modo, incorporam, embora de forma invertida, o estereótipo que lhes é atribuído, já que sua condição estruturalmente desprivilegiada lhes oferece a possibilidade de negar qualquer responsabilidade por sua sorte e se posicionar como merecedores “naturais” de auxílio. Enquanto o estereótipo atribui a causa de sua pobreza à indolência natural de sua “raça”, sua própria interpretação é de que, como não são responsáveis por sua condição social, são obrigatoriamente merecedores (carentes) de ajuda. Essa auto-imagem, reforçada e manipulada por patrões e políticos, principalmente em época de eleição, é de baixa auto-estima, e constitui mais uma dificuldade que têm que enfrentar para melhorar seu padrão de vida (LIMA, 1997, p. 307).

Essas representações deturpadas, afinal, têm sua origem, em última

instância, na dificuldade dos europeus em reconhecer que os povos indígenas

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Page 46: Um estranho no espelho

possuíam uma história, uma subjetividade, tal qual os “civilizados”, pois a alma

indígena era tida como inferior e imanente à sua condição de bestialidade. Essa

idéia de uma suposta incapacidade e ingenuidade dos indígenas é repassada às

gerações desde os primeiros anos da escola, pois quando é ensinado que os

índios ficaram felizes e impressionados com a chegada dos “descobridores”, a

própria escola está colaborando para a concepção de que “o índio é um bobo, ao

mesmo tempo que é um cara bom, porque deixou o outro chegar” (GAMBINI

1999, p. 86).

Por outro lado, a visão etnocêntrica e preconceituosa fez com que e o

estilo de vida despojado do indígena fosse traduzido pelos europeus como

preguiça e indolência, e a sua docilidade e brandura percebidas como palermice e

lerdeza correspondendo, em última análise, a ausência de inteligência e cognição

(TORRES, 2003).

O preconceito étnico é uma idéia articulada por processos sociais de longo alcance e intensidade como no caso de relações econômicas e culturais mundializadas, transpassadas pela cultura de fronteira. [...] As relações de poder encarregar-se-iam de criar o racismo e seus desdobramentos nas sociedades ocidentais (TORRES, 2003, p. 26).

Considera a autora que a exotização constituiu-se em um recurso utilizado

pelas civilizações ocidentais para identificar sociedades e grupos humanos

culturalmente diferenciados. Imagens e metáforas passaram dessa forma a ser a

“base real sobre a qual o Ocidente explicitou sua vocação exploratória sobre

outros mundos [...], que iria permitir o renascimento definitivo do outro, mesmo

que o presentificando como exótico, primitivo, selvagem” (CARVALHO apud

TORRES, 2002, p. 83).

A literatura colonial, segundo Souza (2001) deixou um legado marcante na

forma determinada de expressar a região a ponto de, muitos séculos depois, ser

capaz de reproduzir-se com considerável força:

O espírito simulador do discurso colonial legou o velho e gasto conceito de “Amazônia, reserva natural da humanidade”. Contraditoriamente, sua permanência é hoje a comemoração do assalto indiscriminado à floresta, da transformação da selva em deserto e da tentação de vergar a espinha para as diversas ações retóricas de solidariedade que deseja congelar o primitivo. Discurso colonial e discurso

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Page 47: Um estranho no espelho

preservacionista são aparições do mesmo estoque de arrogância. Na mão direita, o processo de extermínio dos índios e a violação da natureza por uma lógica econômica ensandecida. Na mão esquerda, o bálsamo de um discurso que não é mais que a velha tradição do banquete de palavras, das metáforas discrepantes que pintam tudo em levitações da gramática e do significado, numa anacrônica dimensão equatorial do barroco, para que o homem das selvas nunca se liberte do primitivismo (SOUZA, 2001, p. 62).

Paiva (2002) fala de um processo de “moldagem” pelo qual a Amazônia

tem passado ao longo do tempo, por parte de seus “intérpretes”, moldagem essa

de acordo os seus diferentes interesses econômicos, políticos e culturais.

[...] podemos dizer que foi criada uma verdadeira “tradição de um pensamento sobre a Amazônia”, possível de ser detectada tanto por um aspecto sincrônico (o caráter auto-referente de seus intérpretes) quanto por um aspecto diacrônico (conforme os diversos contextos de sua apropriação). Enfim, as várias Amazônias foram devidamente “inventadas” em função do grau de apropriação que delas se fazia (PAIVA, 2002, p. 67).

A história da Amazônia, reforça Torres (2002, p. 84), tem sido escrita desde

a época da colonização “com a letra minúscula do preconceito e da distorção

mentirosa”. Em sua opinião, não há dúvidas de que o preconceito constitui uma

construção social profundamente arraigada ao imaginário social, independente da

nacionalidade e sentido de pertencimento a determinada cultura. “O preconceito

assume uma dimensão simbólica gratuita, às vezes até inconsciente, mas que

solda idéias e reforça o sistema de estereotipia”.

Falar sobre o homem amazônico, portanto, especificamente neste caso

aquele denominado “caboclo” e sua história (ou, como queriam os seus

detratores, não-história), implica re-visão de estereótipos e preconceitos

embutidos também nas visões sobre a Amazônia, implica em avanços e

retrocessos em trilhas labirínticas, como os igapós da região, e por caminhos

imprevisíveis como os igarapés, que fluem incessantemente em várias direções e

para rumos ignorados.

46

Page 48: Um estranho no espelho

2. CABOCLO – UMA IDENTIDADE POSSÍVEL?

“ O espelho não vê coisas, mas imagens de coisas que significam outras coisas...”

Ítalo Calvino5

história do caboclo amazônico é uma história de exclusão, de silêncios

e ausências, evidenciada não somente pelas parcas menções nos

registros históricos e no discurso científico nacional, mas também por

sua quase invisibilidade no panorama social brasileiro. O seu papel no mundo

amazônico e na sociedade nacional tem sido marcado por evasivas e

indefinições. Falar a respeito do caboclo, sobretudo se referido ao elemento assim

denominado na região amazônica implica, portanto, um trabalho artesanal: é

juntar pedaços, criar conexões, percorrer caminhos que se cruzam, tentando

constituir um conjunto coerente de sentido.

A

A invisibilidade do caboclo amazônico é um contraponto à excessiva

visibilidade da região amazônica na atualidade. Objeto de atenção sem

precedentes, hoje grande parte da humanidade, principalmente o mundo

científico, volta os olhares para aquela que se configura como um manancial

infinito de possibilidades: a Amazônia, de natureza portentosa e onipotente e

recursos naturais incalculáveis. Desde sempre estereotipada aos olhos

estrangeiros, a Amazônia é vista quase como uma entidade mágica, com vida

própria, enquanto os seus habitantes, aqui representados na figura do caboclo,

literalmente ignorados, esmagados pela paisagem natural, imobilizados dentro do

conceito de natureza.

Originário da fusão de culturas tão diferentes, o mestiço passou a

caracterizar a representação mesma da alteridade, o avesso do nativo puro, um

rascunho do índio e arremedo do europeu. Para os habitantes da Amazônia em

geral, o índio não é definido como "caboclo", e este, com raras exceções, não se

reconhece como tal, nem se sente parte de uma pretensão de "etnia",

5 Em As Cidades Invisíveis.

47

Page 49: Um estranho no espelho

considerando-se grupo étnico aquele que se concebe em si mesmo bem

diferenciado dos outros grupos e assim é percebido por aqueles. Por outro lado,

os tidos como caboclos também não se consideram índios e, freqüentemente,

negam uma ascendência indígena, apesar das características somáticas

evidentes.

Lima (1999) observa que o termo caboclo usado coloquialmente não se

refere exclusivamente a um grupo social, nem corresponde a um grupo étnico.

Segundo a autora,

De acordo com Barth (1969:13), os traços críticos para a definição de um grupo étnico são autodenominação e denominação pelos outros. Seguindo a definição de Barth, nem mesmo a população dos ameríndios assentados a que se chamou de caboclos durante os tempos coloniais poderia ser considerada um grupo étnico. Embora esses primeiros caboclos fossem claramente distintos dos europeus a partir de uma base étnica, elas não constituíram um grupo político nem possuíram uma identidade coletiva (LIMA, 1999, p. 21).

Embora o termo seja utilizado em outras regiões do país, observa a autora,

a combinação de um “tipo racial” específico a uma região geográfica está

relacionada à história da Amazônia. “Em contraste com outras regiões do Brasil, a

colonização da Amazônia incluiu políticas para integrar (ou seja, escravizar,

estimular casamentos mistos e “civilizar”) a população indígena à sociedade

colonial” (LIMA, 1999, p. 6). Por outro lado a exclusão do caboclo da História e do

discurso científico está ligada à idéia da Amazônia como um vazio social, um

deserto verde no qual é possível efetuar qualquer programa de desenvolvimento e

exploração dos recursos naturais.

Esse “renitente mito” da Amazônia como um vazio demográfico, segundo

Souza (2001, p. 101), resultante da imagem amplamente divulgada pelos

viajantes em toda a Europa e entre as elites intelectuais brasileiras, foi de pouca

ou nenhuma valia para os habitantes da Amazônia, cujas vidas foram

profundamente afetadas no decorrer dos séculos pelas conclusões desses

homens de ciência, raros dos quais “se importaram realmente com a sorte dos

nativos ou com o fato de já existir, pelo menos no alvorecer do século XIX, uma

civilização tipicamente amazônica, amalgamada pelos sistemas coloniais com as

sociedades tribais.”

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Page 50: Um estranho no espelho

Em razão dessa idéia de “vazio demográfico”, historicamente fixada, reitera

Morán (1990), os europeus trouxeram e utilizaram sistemas de exploração de

recursos naturais inadequados às peculiaríssimas condições do meio ambiente

amazônico, no qual existiam e continuam a existir física e culturalmente

populações que conhecem a fundo o ambiente em que vivem. O

desconhecimento histórico verificado (e justificado) na época da conquista tem

sido repetido nas práticas exploratórias subseqüentes.

Parker (1985, xx) refere-se aos primeiros caboclos como os culturalmente

destituídos sobreviventes da destruição européia. Foram eles, segundo o autor,

que deram início a um lento e difícil processo de forjar um padrão novo, um

contexto novo para sua existência na Amazônia.

In the context of the region’s history, caboclos are the indigenous, rural inhabitants of Amazonia who, for the most part, reside in small communities within riverine environs using Amerindian technologies in subsistence activities. […] Indigenous is employed here because caboclos are directly linked historically, culturally, and biologically to the Amerindian populations that occupied lowland Amazonia at the time of European contact; in effect, the “first caboclos” were the culturally disenfranchised survivors of the (predominantly) floodplain Amerindian populations that were destroyed by the Portuguese. These first caboclos, including their mixed-blood offspring, began, without benefit of script or history, the slow and difficult process of forging a new pattern, a new context, for existence in Amazonia. 6

É fato que o uso do termo transmite um significado preciso ao receptor,

pois é de amplo uso e conhecimento. Mas, questiona Lima (1999, p. 8), “se é um

termo de identificação do observador, qual é a identidade própria das pessoas às

quais o termo se refere?” Em trabalho de pesquisa sobre o assunto, a autora

constatou que os popularmente e mais especificamente denominados “caboclos”,

no caso os pequenos produtores rurais amazônicos, não têm uma

autodenominação, sendo a categoria social caboclo caracterizada pela ausência

de uma identidade coletiva forte. “A população rural tem ao contrário, identidades

6 No contexto da história da região, caboclos são os indígenas habitantes rurais da Amazônia que, em sua maioria, vivem em pequenas comunidades nos arredores dos rios, usando tecnologia ameríndia em atividades de subsistência. [...] “Indígena” é aqui empregado porque os caboclos estão historicamente, culturalmente e biologicamente ligados diretamente à população ameríndia que ocupou a planície amazônica na época do contato europeu; com efeito, os “primeiros caboclos” foram predominantemente os culturalmente sobreviventes das populações ameríndias que foram destruídas pelos portugueses. Estes primeiros caboclos, incluindo seus descendentes miscigenados, começaram, sem benefício de registros ou história, o lento e difícil processo de forjar um novo padrão, um novo contexto para existência na Amazônia.

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Page 51: Um estranho no espelho

locais, do ponto de vista de uma observação externa que nela percebe traços

comuns.”

Afirma Lima (1997, p. 106) que, como a população “cabocla” firmou-se em

importância numericamente e economicamente em meados do século XIX,

“quando idéias racistas dominavam o pensamento social da elite ocidental e eram

copiadas pelos brasileiros, a posição social da população cabocla foi explicada

como sendo conseqüência do efeito deletério da mistura de raças”, hipótese

assimilada pelo nativo.

Essa busca por atribuições próprias para explicar a condição social inferior permaneceu no estereótipo do caboclo até os dias de hoje. Da mesma forma que o papel das políticas coloniais que determinaram a formação de uma classe camponesa subordinada à elite colonial foi ignorado no século passado, hoje, a preguiça atribuída pelo estereótipo substitui uma compreensão apropriada das condições desfavoráveis que esta população enfrenta para se reproduzir no contexto da formação de uma estrutura de classes que acompanha a expansão mercantil-capitalista na Amazônia (LIMA, 1997, p.106).

Efetivamente, segundo a autora, o retrato do caboclo não corresponde a

uma identidade social, e o termo é geralmente por eles rejeitado ou transferido a

outras classes e categorias sociais.

Sua própria construção de identidade não lhes confere uma noção de coletividade demarcada por uma nítida diferenciação social, como a noção de caboclo poderia supor. Em sua fala, a categoria de identidade mais abrangente que usam para se referirem a si mesmos é a de “pobre”, seguida, mais recentemente, da identidade de “ribeirinho”, introduzida ao longo do trabalho de evangelização católica (idem, p. 107).

A dificuldade de precisar o termo é antiga. Wagley (1985), citando o

trabalho realizado por ele e Eduardo Galvão em uma comunidade amazônica

(Gurupá) nos idos de 1940, menciona os obstáculos encontrados por eles para

“localizar” fisicamente os ditos “caboclos”. Desde os primeiros momentos os

informantes, ao direcioná-los aos “caboclos de Gurupá”, automaticamente se

excluíam, apontando outros grupos que, por sua vez, indicavam outros, sempre

relacionando o considerado como pertencente a um status inferior.

In the late 1940s when Eduardo Galvão and I were preparing for research in Gurupá which we gave the fictious name of Itá in our publications, our colleagues, government officials and others in the city of Belem exclaimed when we outlined our research plans. “So you are going

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to study the caboclos of Gurupá.” When we reached Gurupá, our informants and friends in the town looked puzzled at first when we used the term. Then, they told us that the caboclos da beira (river bank inhabitants) lived on the alluvial islands across the river channel. They excluded the farmers who lived on the upland terra firme; the caboclo was a rubber gatherer cultivating only a small plot in quick growing corps in the annually flooded varzea and adding to their food supply by hunting and fishing. They laughed and told us stories of the rustic behavior of the caboclos; they arrived in town without shoes or sandals and complained of the hard streets. (They were not paved) Later, we spent time on the islands coming to know the so called caboclos only to find that they did not identify themselves as such. They pointed to the north toward the Brazilian-Guiana border. “There are caboclos there”, they explained, “and they are nude and hunt with bows and arrows.” In short, to them the caboclo is the autochthonous Indian. Darrel Miller in this paper states correctly that the term is mildly pejorative. As our experience in Gurupá indicates it is used by segments of the Amazon population for those lower in socio-economic status than their own. No one, even the innocent Indian, uses the therm to identify themselves. In the history of the Amazon, the term caboclo was first used to refer to the Amerindian. Then as miscegenation took place, it referred to the offspring of a European male and an Indian women (synonym “mameluco”). Finally, by the mid-19th century it came to designate the rural rustic7 (WAGLEY, 1985, p. viii).

Quem é, afinal, o denominado “caboclo”? Para chegar a uma definição é

preciso fazer uma distinção básica entre o significado “nacional” e sentido

“regional” do termo. Em nível nacional, grosso modo, o termo caboclo é usado

para designar uma pessoa que vive no interior do país e ocupa uma posição

social inferior do que aquela que está falando. No entanto, se no caso do caboclo

do sul do Brasil o componente índio é quase nulo, no caboclo amazônico é, ao

contrário, predominante, fato que contribuiu para conferir ao caboclo amazônico

uma configuração particular em comparação à cultura brasileira geral.

7 Nos idos de 1940, quando Eduardo Galvão e eu estávamos preparando para pesquisa em Gurupá, à qual nós demos para o nome fictício de Itá em nossas publicações, nossos colegas, funcionários do governo e outros na cidade de Belém, exclamavam quando nós esboçávamos nossos planos de pesquisa. "Então vocês vão estudar os caboclos de Gurupá." Quando nós localizamos Gurupá, nossos informantes e amigos na cidade “olharam atravessado” na primeira vez que nós usamos o termo. Então, eles nos disseram que os “caboclos da beira” (os habitantes de ribanceiras de rio) viviam nas ilhas aluviais do outro lado do canal. Eles excluíram os fazendeiros que viviam no planalto, em terra firme; o caboclo era um coletor de borracha que cultivava só um canteiro para colheitas rápidas na várzea anualmente inundada, para complementar a sua provisão de comida oriunda da caça e pesca. Eles riram e nos contaram histórias do comportamento rústico dos caboclos; eles chegavam na cidade sem sapatos ou sandálias e reclamavam das ruas duras (elas não eram pavimentadas). Depois de passarmos um tempo nas ilhas viemos a saber que eles chamavam caboclos para designar aqueles com quem não se identificavam. Eles apontaram ao norte em direção à Guiana brasileira. “Há caboclos lá", eles explicaram, "e eles são nus e caçam com arcos e setas." Em resumo, para eles o caboclo é o índio nativo. Darrel Miller em seus estudos afirma corretamente que o termo é ligeiramente pejorativo. Nossa experiência em Gurupá indica que o termo é usado por segmentos da população Amazônica em relação àqueles de menor status sócio-econômico que eles próprios. Ninguém, até mesmo o índio inocente, usa o termo para se identificar. Na história da Amazona, o termo caboclo foi usado para se referir primeiro o ameríndio. Quando a miscigenação aconteceu, referiu-se à descendência de europeus com mulheres índias (sinônimo de “mameluco"). Finalmente, na metade do século XIX, veio a designar o homem rústico rural.

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Page 53: Um estranho no espelho

Lima (1999) identifica no discurso coloquial amazônico basicamente dois

usos para o termo caboclo, um objetivo e um relacional.

O uso objetivo é mais restrito, aparecendo na mídia, na ficção literária e nos discursos políticos, quando designa a população rural indígena amazônica. Apesar de se referir a uma população concreta, esse uso está associado a uma avaliação subjetiva e ambivalente da população rural. Tanto na literatura quanto no discurso regional, o retrato do caboclo vai de um fracasso humano, um tipo preguiçoso e atrasado, a um indivíduo sábio e racional, perfeitamente adaptado ao meio ambiente social e ecológico da Amazônia. [...] Um fator comum a essas visões opostas é a questão da pobreza do caboclo. O estereótipo caboclo e as opiniões que se têm sobre as qualidades do meio ambiente são usados para explicar a pobreza humana e o subdesenvolvimento da Amazônia (LIMA, 1999, p. 20).

Quando se refere à posição de inferioridade em relação ao interlocutor,

explica Lima (1999, p. 7), o termo caboclo é empregado como categoria

relacional:

Os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem as qualidades rural, descendência indígena e “não civilizada” (ou seja, analfabeta e rústica), que contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada. Como categoria relacional, não há um grupo fixo identificado como caboclos. O termo pode ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa considerada mais rural, indígena ou rústica em relação ao locutor ou a locutora. Nesse sentido, a utilização do termo é também um meio de o locutor ou a locutora afirmar sua identidade.

No entanto, esclarece a autora, nem a natureza conceitual nem a relacional

do termo são explícitas. Como resultado, “o uso coloquial do termo leva à

suposição de que existe uma população concreta que pode ser imediatamente

identificada como cabocla e carrega a identidade de caboclos” (idem, p. 7).

Na comunidade amazônica pesquisada por Wagley (1985), por exemplo, o

termo era usado com dois significados específicos: um indicando e status social e

outro as características físicas, às quais eram associados estereótipos

comportamentais como “são tímidos e preferem viver como animais”, “são

traiçoeiros”, “são ótimos pescadores e caçadores”, “são preguiçosos” etc.

The term as still used in Gurupá has a double meaning – one indicating low social status and another indicating American physical characteristics. Along with such terms as branco (white), preto (black), moreno (mulatto), the term caboclo (sometimes the synonym tapuia) was used to describe a person’s physical appearance. The caboclo has straight

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black hair, bronze skin, and little body hair. As with the other physical types there are behavioral stereotypes associated with the caboclo physical type. Caboclos are thought to be timid because they prefer to live by themselves “like animals”. They are suspicious and tricky. They are excellent hunters and fishermen. But they are lazy – “they do not plant gardens but live from the sale of a little rubber and by fishing for their meals.” Yet these stereotypes are aimed not only at those of caboclo physical type but also at all rural collectors. […] Much of the confusion in Amazonia as to who is a caboclo derives from the changing meaning of the term over time and the segment of the population to which it refers8 (WAGLEY, 1985, p. vii– ix).

Estas imagens estereotipadas, analisa Lima (1999), dizem respeito ao

arquétipo do caboclo, composto de traços culturais que distinguem seu modo de

vida de uma existência branca e urbana.

De fato, a existência de uma população rural que tem um estilo de vida distinto, em estreito relacionamento com a floresta, justifica que ela seja agrupada como uma categoria social específica. Além disso, as políticas coloniais iniciais induziram à criação de uma classe amazônica subalterna, com a qual a categoria social caboclo está intimamente associada (LIMA, 1999, p. 13).

A autora concorda com Wagley, no entanto, no sentido de que o conceito

regional do caboclo é mais que uma referência a essa população rural ou ao seu

estilo de vida, incluindo um estereótipo que caracteriza esse habitante da

Amazônia como “preguiçoso, indolente, passivo, criativo e desconfiado. E os

mesmos traços culturais que distinguem os caboclos [...] são tomados como

evidência de inferioridade, pois são vistos como primitivos” (LIMA, 1999, p. 13).

Brondízio9 (s.d.) faz referência à dificuldade de categorização do termo

caboclo também com relação a classificações étnicas na antropologia, apontando

como errônea a generalização de caboclos como sinônimo de agricultores, em

razão deste termo englobar duas outras categorias na Amazônia brasileira:

colonos migrantes da zona rural e habitantes da periferia urbana que cultivam

8 O termo como ainda é usado em Gurupá tem duplo significado: um indicando baixo status social e outro indicando características físicas americanas. Da mesma forma que termos como branco, preto e moreno, o termo caboclo (às vezes sinônimo de tapuia) era usado para descrever a aparência física de uma pessoa. O caboclo tem cabelo preto liso, pele bronzeada, e pouco pelo no corpo. Como com os outros tipos físicos há estereótipos de comportamento associados com o tipo físico do caboclo. Pensa-se que os caboclos são tímidos porque eles preferem viver entre si "como animais". Eles são desconfiados e traiçoeiros. Eles são excelentes caçadores e pescadores. Mas eles estão preguiçosos - "eles não plantam jardins, mas vivem de pequenas vendas de borracha e pescando para as suas refeições". Estes estereótipos não são somente dirigidos ao caboclo tipificado fisicamente, mas também a todos os coletores rurais. […] Muito da confusão na Amazônia sobre quem é um caboclo deriva da variação do significado do termo com o passar do tempo e do segmento da população ao qual se refere. 9 Texto obtido em endereço eletrônico.

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pequenas agriculturas de subsistência como complemento de renda. Diferenças

óbvias entre os caboclos amazônicos e os novos colonos, segundo ele, tornam

desnecessárias elaborações sobre as suas particularidades sócio-culturais e

históricas, deixando claro que tal definição não dá conta da especificidade

histórica do caboclo e o seu modo particular de produção, baseado em

conhecimento adaptativo do seu ambiente.

Lima (1999, p. 17) também enfatiza a necessidade de distinção entre os

colonos e os “verdadeiros” caboclos. Segundo ela, embora não seja possível

precisar o quantitativo de migrantes que adentraram a região, “foi grande o

suficiente para prover uma clara distinção entre o caboclo e as populações

nordestinas durante a primeira metade deste século.”

A maneira de lidar com o ambiente amazônico e o comportamento

econômico do caboclo são componentes centrais do seu estereótipo, o que na

avaliação de Lima (1999), ajuda a explicar o simbolismo masculino do termo,

atrelado ao papel dos homens em tares de subsistência como caça e pesca,

ligadas à natureza. A mulher cabocla, apesar de desempenhar um papel

importante nas atividades de subsistência da família, é mais freqüentemente

associada ao estereótipo feminino da sensualidade e da disponibilidade sexual,

herdado da imagem da mulher índia divulgada pelos colonizadores.

Torres (2003) acrescenta que o jeito introspectivo da mulher “caboca”10 da

zona interiorana do Amazonas é freqüentemente interpretado também como

“rudeza do tipo brava, amuada, sonsa, calada e arredia”, sem considerar que os

nativos amazônicos, de modo geral, têm esse comportamento silencioso, um

tanto arredio, que tem a ver com a vida calma do interior e a estreita relação do

caboclo com esse ambiente, traduzindo-se como uma expressão cultural desse

povo.

O uso objetivo do termo caboclo pretende especificar uma categoria social

à qual falta um termo próprio de autodenominação e aponta para o processo

histórico de sua constituição. Para reconstruir o percurso problemático da

aquisição de uma possível “identidade” para o mestiço amazônico, então, é

10 Forma utilizada pela autora.

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preciso recorrer à história das diferentes origens do mesmo termo "caboclo". Para

isso se faz necessário considerar as raízes do termo e o contexto nos quais foi

modelado ao longo do tempo, e comparar com o que significa hoje ser "caboclo".

Embora não seja possível neste estudo afirmar a existência de uma identidade

cabocla, de acordo com os critérios étnicos, teoricamente pode-se reconstituir o

processo de elaboração dessa denominação como “identidade simbólica”.

2.1 A propósito do termo “caboclo”

De acordo com Torres (2003, p. 109), a primeira versão escrita desse

termo aparece no Alvará Régio de 4 de abril de 1775, no qual uma autoridade

portuguesa proibia o uso do termo cabocolos “ ou outro semelhante, que se

pudesse tomar por injurioso” aos vassalos casados com índias. Tal proibição faz

deduzir “que o termo “cabocolo” estava associado a algo pejorativo, de

característica negativa, a ponto de ser proibido o emprego desse termo para

designar o colono matrimoniado com a indígena.”

Com o passar do tempo, a palavra “cabocolo” foi ganhando outros

significados e evolução. Na acepção de Teodoro Sampaio, estudioso dos índios

tupinambás, o termo é “caboclo” e não “cabocolo” e é originário do tupi-guarani

caá-boc, que significa “homem procedente do mato”. Especialistas em lexicologia

e lexicografia colocam em dúvida a origem do termo “caboclo”, sugerindo este

não é indicativo somente de pessoas descendentes de índios e brancos, mas é

também aplicado ao português degredado, enviado à Amazônia para prover a sua

subsistência (TORRES, 2003).

A construção social denominada “cabocolo”, ou caboclo, que em Portugal

causava horror e repugnância, “estava associada aos párias e até mesmo aos

“apirus, que nas antigas línguas, como o ugarítico, era um termo que se aplicava

aos grupos marginais de pessoas como os bandidos, mercenários, sem-terra e

pobres” (GALLARES apud TORRES, 2003, p. 110).

Essas pessoas eram discriminadas em Portugal pelo status social que

ocupavam. Os “cabocolos” incluíam os sem-terra, os desempregados e as

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pessoas de “má-índole”. De acordo com a autora (p. 110), em razão do caráter

duvidoso desses indivíduos, “o termo “cabocolo” assumia uma conotação

pejorativa, sendo conveniente ‘exportar’ esses indivíduos para o Brasil ou para o

“quinto dos infernos”, que correspondia ao quinto reinado de Portugal, sob a coroa

de D. João VI” (TORRES, 2003, p. 110).

É possível supor que tenha havido uma modificação da palavra caboco para caboclo, justamente para conferir um tom de sofisticação e intelectualização a um termo estigmatizado e segregado. Observe-se que o termo do tupi-guarani é caá-boc, sem a letra L, daí pensarmos que essa mudança queira sugerir uma divisa\o de classes. Assim, o termo original caboco é mais indicado para designar o homem interiorano da Amazônia, pertencente a estratos sociais baixos, de característica rudimentar e de sotaque regionalizado. O termo caboclo, modificado possivelmente pelos espanhóis no século XVII, é utilizado para designar os indivíduos descendentes de brancos e índios que se ocidentalizaram e que pertencem a estratos sociais médios e altos (idem, p. 110).

Lima (1999) pondera que as etimologias relacionadas à palavra caboclo

são especulativas, mas entre a de Parker, que sugere a origem do termo da

palavra tupi kari’boka, que significa “filho do homem branco”, e a de Teodoro

Sampaio, que afirma ser caboclo derivado do tupi caa-boc, que quer dizer “o que

vem da floresta”, a segunda, na sua opinião, tem mais probabilidade de estar

correta.

Isso porque, na Amazônia, caboclo foi inicialmente usado como sinônimo de tapuio, termo genérico de desprezo que os povos indígenas usavam quando se referiam a indivíduos de outros grupos. Em tupi, de acordo com Veríssimo (1970[1878]:14, a palavra tapuio significa o hostil, o inimigo, o escravo. Após a colonização, o termo foi usado para designar o ameríndio assentado e trazia as mesmas conotações de desprezo que tinha quando usado entre os índios (LIMA, 1999, p. 9).

Assim como tapuio naquele contexto, hoje o termo caboclo é também

usado no sentido de desprezo em relação ao outro, e tal significado de alteridade

é encontrado na segunda etimologia citada. Na opinião de Lima, essa designação

poderia ser tomada como alusão a uma espécie de expatriação com referência a

um outro cuja origem é selvagem (o que vem da floresta). Por analogia, a

utilização atual do termo caboclo é similarmente caracterizada por uma referência

ao outro e à exclusão. Por isso, na maior parte das vezes o termo é rejeitado por

aqueles que designa, sendo apenas em algumas instâncias usado como um

termo de auto-atribuição.

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Nesse último caso estão os grupos indígenas que usam, eles próprios, o

termo caboclo para autodenominação, utilizando-o como um recurso de oposição

aos brancos:

[...] o uso da palavra caboclo como termo de autodesignação por alguns grupos indígenas está sempre ligado ao contexto de sua oposição e conflito interétnico com os brancos. [...] É somente no contexto local de contato interétnico entre populações indígenas e brancas que o termo caboclo é reconhecido como um rótulo de identificação e/ou um termo de autodenominação para os grupos indígenas (LIMA, 1999, p. 12).

Segundo a autora, a não utilização de caboclo como um termo de auto-

designação está relacionada, em primeiro lugar, com a conotação pejorativa do

termo e o significado de “índio domesticado” (e não o de uma raça cruzada entre

branco e índio), que ele transmite entre a população rural”. Explica ela ainda que:

Quando caboclo é usado por certos grupos ameríndios como termo de autodesignação, a conotação pejorativa está subentendida. Como afirma Cardoso de Oliveira (1972a), o uso de caboclo como termo de auto-identificação é uma maneira de os índios assumirem uma posição social inferior em relação aos brancos. Discutindo o uso do termo entre os ticuna, Cardoso de Oliveira afirma que é uma identidade negativa (ou seja, a do índio que se vê do ponto de vista do branco). Por essa razão, os índios que individualmente migram do alto rio Negro para a cidade de Manaus não reproduzem sua identidade cabocla através das gerações, mas apenas a usam para si (LIMA, 1999, p. 21).

Lima alerta para a importância de enfatizar a natureza conceitual do termo,

considerando que caboclo é uma categoria de classificação social empregada por

estranhos, com base no reconhecimento de que a população rural amazônica

compartilha um conjunto de atributos comuns, mas não é uma categoria social

homogênea nem absolutamente distintiva. Segundo ela, “existe o perigo de

tomar-se o termo caboclo como uma identidade e desse modo criar fronteiras

absolutas para um grupo social que não é encontrado na vida real. Ao contrário, o

termo caboclo deve ser entendido como uma categoria geral de referência e

identificação” (LIMA,1999, p. 8).

A natureza do termo caboclo é portanto conceitual e consiste em uma categoria social de pensamento analítico. Sendo uma categoria social, o termo é uma abstração, uma unidade de um sistema de classificação social projetada para retratar as diferenças entre as pessoas na sociedade. Em contraste com um grupo social, uma categorial social consiste em uma agregação artificial de pessoas baseada na identificação

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de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam necessariamente em um relacionamento social em razão dessa similaridade. Os atributos que definem uma categoria social podem ser biológicos, sociais ou culturais. Um grupo social, por outro lado, consiste em uma agregação humana real, que é definida por interações estreitas e relacionamentos pessoais (LIMA, 1999, p. 9).

Na Amazônia brasileira, de acordo com a autora, o termo caboclo é

amplamente utilizado como uma categoria de classificação social. No discurso

coloquial a definição da categoria social caboclo é complexa, ambígua e está

associada a um estereótipo negativo.

Na antropologia, a definição de caboclos como camponeses amazônicos é objetiva e distingue os habitantes tradicionais dos imigrantes recém-chegados de outras regiões do país, Ambas as acepções de caboclo, a coloquial e a acadêmica, constituem categorias de classificação social empregadas por pessoas que não se incluem na sua definição (LIMA,1999, p. 5).

Existem no Brasil outras categorias populares de raça mista, tais como o

mulato (o filho do branco e do negro) e o cafuzo (filho do índio e do negro). Mas,

enquanto tais categorias raciais não se associam a uma região brasileira

específica, os caboclos, sim. E, em contraste com outros tipos regionais, o nome

caboclo também é usado como categoria de classificação social (LIMA, 1999).

Atualmente, no médio Solimões, a população rural é ainda chamada de caboclos. [...] O caboclo é mencionado sempre que “o homem amazônico típico” está em discussão. Embora o termo seja às vezes aplicado aos pobres das cidades, a imagem desse “amazônida típico” é essencialmente rural e ribeirinha. [...] O termo evoca a figura de um homem associado com o meio ambiente amazônico (LIMA, 1999, p. 12).

Em seu estudo sobre uma comunidade amazônica que ele chamou de Itá,

Wagley (1977) observou que os conceitos do povo local sobre o tapuia ou

caboclo, identificado pelo tipo físico do ameríndio, eram menos favoráveis que os

do negro, carregando duplo sentido, um significando baixa posição social e outro

indicando as características físicas do ameríndio, sobressaindo os conceitos

depreciativos:

O caboclo é considerado preguiçoso: “Não plantam roças, vivem da venda de um pouco de borracha e pescando para comer”. Diz-se que o

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caboclo é tímido porque vive isolado na floresta. “Preferem viver como animais, longe dos outros, no fundo das florestas”, disse certo homem. Entretanto o caboclo é considerado manhoso e extremamente desconfiado. [...] As pessoas descendentes do ameríndio, ao contrário dos negros, não gostam que se mencione sua ascendência indígena. [...] Na sociedade amazônica o índio, muito mais freqüentemente do que o negro, era o escravo da sociedade colonial. [...] Hoje em dia, as características físicas de índios são, portanto, um símbolo não só de descendência escrava como também de origem social mais baixa, nos tempos coloniais, do que a do negro (WAGLEY, 1977, p. 149).

Silva (1996) explica que a expressão qualificativa “caboclo brasileiro”, em

Galvão11, é o signo diferenciador deste personagem social (o caboclo) face ao

índio. É a diferença estabelecida entre aquele personagem tipicamente brasileiro,

forjado ao longo da história deste país, e o índio que não se acaboclou. Este

pertence à categoria sócio-cultural índio, ou seja, é um ser de origem histórica

que tem sua identidade étnica no povo indígena em que se constitui.

No processo colonizatório também o “branco” acaboclou-se ao penetrar

neste mundo social diferenciado. No convívio com o índio e o ex-índio, foram

engendradas as condições, com base em fatores biológicos e culturais, para a

emergência do mestiço resultante da miscigenação, e do “branco” tornado

caboclo, de acordo com os condicionantes implícitos no processo (SILVA, 1996).

Em alguns casos, o índio deixa de ser índio e não se torna um “branco”, ou seja, objetiva e subjetivamente, não é mais um ser tribal, mas também não ingressou no meio urbano, nem passou a viver com o mínimo de dignidade, em meio à escala social, no meio rural ou na cidade; não se sente como um partícipe da cultura e da sociedade dos “brancos”, em igualdade com estes;. na passagem, se cabocliza e, com freqüência, torna-se um marginal na sociedade estranha; resta à margem do mundo dos brancos, como um ser decadente e alienado.

O “branco” penetrou neste mundo social e acaboclou-se. Ao juntar-se ao índio ou ao ex-índio, originam-se as condições, no convívio, para as conjunções biológicas e culturais, dando origem, por um lado, ao mestiço, e, por outro, ao “branco” que se tornou caboclo, em um processo que, também, assume tonalidades diversas, face aos diferentes condicionantes (idem, p. 300).

Branco ou mestiço, conclui o autor, o ser “acaboclado” acaba perdendo a

referência dos elementos biológicos e culturais de origem indígena que

constituíram a sua singularidade social, tornando esse ser distinto do índio e do

branco, passando a ser um alter em relação aos elementos originários que

influenciaram em sua formação. “... poder-se-ia dizer que o caboclo é a própria

11 Eduardo Galvão é autor de várias obras sobre a cultura amazônica, especialmente sobre a cultura cabocla.

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‘consciência infeliz’. Fracionada sua personalidade em duas, ela bem retrata a

ambigüidade de sua situação total...” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1981, p.83).

Diz ainda o autor (idem, p. 82) que o “caboclismo” está estreitamento

relacionado à natureza da organização política imposta e reflete a sujeição,

habitual e sem perspectiva, ao branco. “Dentro do caboclismo é impensável

qualquer movimento coletivo de rebeldia à ocupação da sociedade nacional...”.

Com referência a esse “acaboclar-se”, Parker (1985) fez um estudo a

propósito da transformação do ameríndio na Amazônia, atribuindo a esse

processo de “caboclização” parte da responsabilidade pela destruição da

sociedade indígena americana, processo esse desencadeado pela intervenção

religiosa na Amazônia no início do século XIX.

[…] the process of “caboclization” in the Brazilian Amazon, the events and conditions that in large part destroyed Amerindian society, transformed the Amerind and resulted in the emergence and solidification of caboclo class and culture in Amazonia by the early 19th century. The caboclization of Amerindians will be shown to have been accomplished in three distinct but related stages: (1) the early settlement period (1600-1655) in which settler slaving expeditions exated and enormous toll upon Amerindian populations, general chaos prevailed, and the problem of sufficient labor first appeared; (2) the years of Jesuit dominance in Amazonia (1655-1755) during which Amerindian were “missionized” and converted from subsistence to commodity producers; and (3) the rule of the Directorate (1755-1799), under which a set of policies and regulations were promulgated intended to convert and Christianize Amerindians and hence make them full-fledged members of Portuguese society but which in fact served primarily to complete the transformation of the Amerindian to caboclo12 (PARKER, 1985, p. 3).

Parker refere-se ao termo como designativo do resultado de um processo

de exploração e enquadramento dos indígenas ao sistema estrangeiro,

modificando costumes e induzindo-os a uma adaptação forçada que

descaracterizou a sua cultura original e deu margem à emergência de uma

categoria híbrida e despojada culturalmente.

12 […] o processo de "caboclização" na Amazônia brasileira, os eventos e condições que em grande parte destruíram a sociedade ameríndia, transformaram o ameríndio e resultaram no aparecimento e solidificação de uma classe e cultura caboclas na Amazônia no início do século XIX. A caboclização dos ameríndios pode ser vista como tendo sido efetuada em três fases distintas, mas relacionadas: (1) o período inicial de estabelecimento (1600-1655), no qual as expedições colonizatórias exacerbam em perversas investidas sobre as populações de ameríndios, o caos prevalece e o problema de trabalho adequado aparece pela primeira vez; (2) os anos de domínio jesuítico na Amazônia (1655-1755), durante os quais o ameríndio foi "catequizado" e convertido de subsistência a produtor de mercadorias; e (3) as regras do Diretório (1755-1799) sob as quais um jogo de políticas e regulamentos foi promulgado, pretendia converter e cristianizar os ameríndios e conseqüentemente convertê-los em membros da sociedade portuguesa, mas na realidade serviu principalmente para completar a transformação do ameríndio em caboclo.

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What emerged from this destructive period were caboclos: disenfranchised and culturally deprive Amerindians and mixed-blood offspring engaged in desultory subsistence activities and collection of forest products. […] The caboclo was a solitary economic actor upon the regional stage, relatively self-sufficient and very often completely isolated. MacLachlan (1972:386) noted the Amerindian, stunned culturally and psychologically, readily abandoned village, and at times family, to pursue his existence and livelihood alone. He now wore European-style clothing, perhaps spoke rudimentary Portuguese in addition to lingua geral, and retained only vestiges of his former social and cultural self13 (PARKER, 1985, p. 35).

Por sua vez Galvão (apud SILVA, 1996), vê também por outro ângulo,

destacando o encontro das culturas indígenas e européias na origem da cultura

cabocla.

Por caboclo entendemos não apenas os descendentes de cruzamento entre índios e alienígenas, mas também os brasileiros de outra procedência, notadamente maranhenses, que aí se fixaram motivados pela exploração econômica dos recursos naturais e que absorveram e adotaram algo do modo de viver indígena, sobretudo a tecnologia primária. Entretanto, seus padrões sociais e culturais se orientam pelo modelo urbano e rural brasileiro (SILVA, 1996, p. 225).

Lima (1999, p. 26) ressalta que, embora a referência ao termo caboclo

possa evocar vários significados, o sentido pejorativo predomina na maioria deles,

“decorrente da representação negativa do indivíduo ou grupo que ocupa uma

posição social inferior.” Os principais sentidos atribuídos estão relacionados a

“noções geográficas (Amazônia, interior, rural), de descendência e “raça”

(indígena, mestiça), das hierarquias e relações sociais (conquista ibérica,

submissão, a relação de dívida e de crédito no aviamento, o par patrão e freguês)

– todas ligados à história da ocupação européia da Amazônia.

Embora haja também uma valoração positiva – no folclore, que retrata o caboclo como “o homem da terra”, e em cultos de possessão, em que aparece como “espírito forte” – o estereótipo predominante é negativo. Corresponde a figuras como o “matuto” e o “caipira” do interior sulista. Por esse motivo, qualquer referência ao termo não pode ser inteiramente inocente, pois sempre remete à conotação pejorativa – de domínio público, apreendido pelo senso comum -, ao ponto do nome mesmo não ser senão excepcionalmente usado como autodenominação. A forma singela e

13 O que emergiu deste período destrutivo foram caboclos: desprestigiados e despojados culturalmente ameríndios e descendentes miscigenados engajaram-se em atividades de subsistência inconstantes e coleta de produtos de floresta. […] O caboclo era um solitário ator econômico na fase regional, relativamente auto-suficiente e muito freqüentemente completamente isolado. MacLachlan (1972:386) nota que o ameríndio, culturalmente e psicologicamente atordoado, prontamente abandona a aldeia, e às vezes a família, para procurar sozinho garantir a sua existência e seu sustento. Ele agora usa o estilo de vestir europeu, talvez fale um português rudimentar além da língua geral, e reteve somente vestígios da sua própria formação social e cultural.

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humilde de por a mão no peito e anunciar, como reconhecimento de inferioridade. “eu sou apenas um caboclo” dirige-se especificamente a um interlocutor branco, rico ou de outra região que não a Amazônia (LIMA 1999, p. 26).

Surgido no contexto de uma estrutura social altamente hierarquizada, a

sociedade amazônica colonial, ao longo do processo em que se formou o

segmento camponês amazônico, o nome caboclo carrega uma história particular,

tendo sido criado não só para referir a essa classe inferior, como para definir suas

qualidades e seu valor (LIMA, 1999).

Vimos como a palavra inicialmente denotava o índio genérico, destribalizado, passando posteriormente a significar o híbrido, o miscigenado. Que o termo tem a função de classificar categorias e definir posições sociais é comprovado pelo fato de a palavra ter sido mantida, apesar da evolução da composição étnica da população que nomeia. A manutenção do nome implica que, embora seu significado pareça ter mudado [...] ele é na verdade uma categoria de referência para a posição inferior na estrutura social do meio rural principalmente (idem, p. 27).

Para Galvão (in SILVA,1996, p. 229), o caboclo amazônico, com “sua

cultura de segunda ordem – em termos historicamente seqüenciais -, em seus

componentes indígenas e não indígenas, é um dos seres que constroem, com

sua participação pessoal e direta, a identidade do brasileiro.” Galvão advoga a

idéia de que o caboclo é consciente de sua condição sócio-cultural.

Os critérios adotados para a identificação do caboclo, em Galvão, são de naturezas diversas (biológicos, culturais e econômico-estruturais) e servem a análises distintas dessa figura sociológica característica. No conjunto de sua obra, o caboclo referencial, na comparação com o índio e com o “branco”, é o ser que está inscrito como um elo social e cultural, em alguns casos biológico, entre o ser índio e o ser não-índio; entre as culturas indígenas e a cultura ocidental. Da perspectiva do estudo de mudança cultural, o caboclo é um signo desta passagem (idem, 299-300).

Silva (1996, p. 230) ressalta que diferentes expressões vocativas com o

uso do termo “caboclo” podem exprimir tanto preconceito “racial”, colocando o

mestiço (caboclo) em uma categoria inferiorizada e de menor prestígio social,

quanto serem empregadas com um sentido extremamente afetivo e carregado de

simpatia “nas relações informais entre pessoas, interrelações que se

estabelecem, preferencialmente, no interior de cada segmento de classe social,

porém, podem também ter lugar entre pessoas inseridas em classes distintas.”

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Page 64: Um estranho no espelho

As qualificações negativas, de acordo com Lima (1999, p. 14), também se

relacionam ao fato de que os caboclos são considerados pobres:

Como no caso do termo caboclo, pobreza também é um conceito cultural. O caboclo não é só pobre em relação a padrões de vida urbanos ou internacionais, mas também em relação a uma expectativa elevada para a performance econômica e social deste neobrasileiro na Amazônia.

No entanto, no interior do Amazonas, informa Torres (2003, p. 110), o

termo não tem conotação pejorativa sendo frequentemente empregado para

indicar, com orgulho, “o tipo de homem que possui capacidade para vencer os

perigos e desafios da floresta e dos rios; é o homem que tem um comportamento

meditativo, calmo, silencioso, sem vexames, pressa ou afobamento.”

É verdade, reforça a autora (p. 123), que os nativos não se preocupam com

o dia de amanhã, como também não se preocupam em deixar bens materiais

para os filhos, o que não significa que sejam preguiçosos. O comportamento

meditativo, calmo e silencioso do homem amazônico e o seu modo

“despreocupado” de conduzir a vida, são devido a um condicionamento histórico e

têm a ver com as características indígenas latentes, “mas também estão

associados a uma sabedoria de vida e a uma estratégia de sobrevivência. É uma

questão culturalmente arraigada ao seu modo de ser...”.

2.2 A cultura cabocla

Na concepção de Silva (1996, p. 223) “o que caracteriza o caboclo não é o

caráter genético-biológico, o tipo físico, mas sim, a cultura – cultura cabocla - ,

produto da ‘amalgamação’ das diferentes contribuições fundadoras”. De acordo

com Wagley (1977, p. 56), na época da independência do Brasil, os habitantes do

vale amazônico eram predominantemente mestiços, e o modo de vida dessa

população era mais adequado aos padrões europeus (de Portugal), embora

sofrendo fortes influências das culturas aborígines e do ambiente amazônico.

“Formara-se uma cultura regional, fundamentalmente européia em suas principais

instituições, mas profundamente influenciada pelo ambiente típico da Amazônia e

pelas culturas nativas da região”.

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Page 65: Um estranho no espelho

Assim, juntamente com os padrões ibéricos impostos e ensinados à população campesina do Amazonas por seus conquistadores europeus, persistiu na cultura rural de toda a Amazônia brasileira uma coleção de padrões aborígenes. Estes fundiram-se na estrutura da cultura predominantemente ibérica, formando um modo de vida e uma cultura típica da região, perfeitamente adaptados ao ambiente particular da Amazônia (WAGLEY, 1977, p. 59).

A formação da chamada cultura cabocla, de acordo com Galvão (1976, p.

114), foi um processo contínuo que teve início com a chegada dos europeus no

século XVII, por meio da “aculturação seletiva da sociedade mista de colonos

portugueses e índios, condicionada pela configuração e pelos padrões peculiares

a essas duas culturas que entraram em contato, e à situação de dominância da

primeira.”

O autor enfatiza a dificuldade de compreensão, a não ser em linhas gerais,

da complexidade desses processos de aculturação e mudança cultural sofridos

tanto pela sociedade nacional quanto pela tribal, considerando que a

“especificação do fenômeno requer o estudo detalhado de períodos históricos ou

de áreas geográficas e culturais em que os fatores mais induzentes da mudança

de uma ou outra sociedade possam ser melhor analisados” (GALVÃO, 1979, p.

261).

Tal dificuldade é devida, segundo o autor, ao fato de que as mudanças

ocorridas na sociedade tribal não decorreram de um processo gradual.

O ritmo ou a penetração da mudança são resultados de transformações que operam na sociedade nacional. O processo de aculturação intertribal, iniciado antes da conquista portuguesa, sofreu um aceleramento progressivo, porém irregular na medida em que se desenvolveu o dispositivo de ocupação e fixação da frente pioneira nacional em território indígena (GALVÃO, 1979, p. 267).

A formação da cultura regional amazônica, na análise de Galvão, pode ser

vista a partir de etapas de um fenômeno progressivo, mas não uniforme, uma vez

que os períodos históricos mais ou menos delimitados foram caracterizados ora

por mudanças e desenvolvimento lento, ora por rápidas transformações. Segundo

ele, existem grandes contrastes referentes às configurações culturais da

Amazônia, evidenciados em padrões de povoamento, de organização familial ou

outras formas mais complexas de padrões e práticas religiosas, diferenças essas

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Page 66: Um estranho no espelho

originárias da forma como os indígenas reagiram à influência dos “brancos” no

processo colonizatório.

O crescente envolvimento dos grupos tribais pela expansão das frentes pioneiras, ou o seu cerco pela população rural, aumentou e acelerou o ritmo das modificações da cultura dos grupos indígenas. Não se trata mais de um processo rápido de destribalização dos índios, ou um recíproco dar e receber entre índios e brancos. Defrontando-se com um novo meio, os colonizadores do século XVII, portadores de uma cultura rural européia relativamente simples, adotaram muitos dos costumes e conhecimentos indígenas, principalmente os que tinham relação direta com o uso do ambiente físico, como as técnicas de horticultura, as plantas cultivadas, os métodos de caça e pesca, as técnicas de construção de casas, as artes, a farmacopéia, a cura pela pajelança e a adoção de idéias religiosas [...]. Os índios, por sua vez, passaram a utilizar armas de fogo, utensílios de ferro e roupas, adotaram valores sociais e conceitos religiosos, e adaptaram suas economias fechadas e auto-suficientes a sistemas de intercâmbio e de comércio, o que resultou em mudanças na sua organização social. Hoje em dia suas mudanças são unilaterais, no sentido de que a cultura mestiça do brasileiro contemporâneo teve saturada, por assim dizer, a sua capacidade de receber influência indígena. A distância cultural aumentou, então, com um considerável decréscimo na comunicação e na troca (GALVÃO, 1979, p. 275-6).

Em suas obras Galvão enfatiza a importância de que sejam enfocadas e

compreendidas as forças atuantes no processo de formação da cultura do

caboclo, reiterando a atuação do indígena nesse processo:

O índio não teve um papel simplesmente passivo de continuar em suas sociedades nativas ou de adotar traços da cultura lusa para somar aos seus já tradicionais. O aborígene foi destribalizado e forçado a aceitar os padrões e instituições européias, dada sua situação de inferioridade como escravo, ou sob as contingências de uma população dominada. Sua contribuição à cultura da sociedade que então se formava foi importante por se referir sobretudo aos meios de controle do ambiente físico, como seja a agricultura, alimentos, meios de transporte, material e construção da habitação e uma infinidade de técnicas, que significavam os métodos essenciais para adaptação a um ambiente geográfico peculiar – a floresta tropical – desconhecido do colono português (GALVÃO:1976, 114-15).

A despeito da ampla contribuição ameríndia, observa o autor, a cultura e a

sociedade emergente desse contato entre “índios” e “brancos” foram norteados

pelos padrões ibéricos, inclusive nas atividades de agricultura, na seleção de

plantas para cultivo e técnicas de plantio. A cultura original em formação foi

também permeada pelas crenças e práticas religiosas dos colonizadores e,

embora as crenças religiosas dos indígenas tenham sobrevivido, foram

dissociadas do seu contexto original e integradas ao catolicismo ibérico.

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Page 67: Um estranho no espelho

As crenças religiosas que têm origem nas culturas indígenas do vale e são hoje parte do patrimônio caboclo, modificaram-se sob a influência do cristianismo e do folclore europeu. Sob nova forma difundiram-se e integraram-se na cultura regional. Constituem parte tão essencial da vida religiosa, quanto as crenças católicas e respondem a necessidades emocionais condicionadas pelo ambiente e pelo grupamento social (GALVÃO, 1976, p. 115).

Embora a dominância do caboclo na Amazônia geralmente induza a

estereótipos, tais como a consideração do moderno habitante da região como

“índio”, Galvão considera um equívoco a atribuição à cultural regional amazônica

uma qualidade de “indígena”:

O caboclo não tem orgulho ou vergonha do ancestral que habitava as malocas, simplesmente ignora ou não se preocupa com esse fato. [...] A cultura dessas sociedades tribais dificilmente influenciará, no sentido de contribuir com elementos novos, o modo de vida do caboclo, principalmente porque seus traços culturais mais passíveis de adaptação já de há muito foram assimilados pelo mestiço luso-índio, que os tomou de culturas indígenas hoje extintas (GALVÃO, 1976, p. 127-8).

Segundo Silva (1996), Galvão vê o caboclo, independente de suas

características somáticas, virtualmente inserido na sociedade de classes, como

um trabalhador explorado e marginalizado, mas que vive, trabalha, comporta-se

na sociedade e tem uma visão de mundo segundo padrões da cultura híbrida

cabocla.

A sociedade cabocla – estudada por Galvão -, nas gerações sucessivas, constrói um modus vivendi, formas culturais (caboclas), que instauram universos sociais específicos e estáveis, persistentes, com códigos culturais próprios, híbridos – pelas vertentes indígenas e “brancas” constitutivas -, presentes nos mitos, nos rituais, no xamanismo, na religiosidade sincrética, na tecnologia de produção de mercadores com variados fins, nas relações com o meio ambiente, enfim, nas atitudes face à vida e à morte. Porém, no conjunto da categoria social dos caboclos como um todo, ressalta-se um traço comum: a marginalidade e a dominação, condições a que todos estão submetidos na sociedade (SILVA, 1996, 301).

Wagley (1977) ressalta que as razões de uma suposta condição de “atraso”

atribuída à cultura cabocla são decorrentes da história da Amazônia e da forma

peculiar com que tem sido processado o seu povoamento:

Desde o décimo sexto século a região amazônica tem sido uma área colonial, primeiro pertencente a Portugal e, a seguir, do próprio Brasil que, durante mais de três séculos, foi um produtor de matérias-primas para mercados distantes, sem uma justa compensação para esses produtos. [...] Permaneceu em toda a região um sistema rígido de

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discriminação de classes que se baseia em critérios econômicos, familiares e educacionais. O Vale Amazônico continua a ser uma das áreas coloniais do mundo (WAGLEY, 1977, p. 278-9).

A forma de vida das populações tradicionais da Amazônia, segundo Castro

(1997), é concebida a partir de sua relação com o ambiente. Conservam na

linguagem, por exemplo, imagens dos rios e igarapés, assim como da mata, e as

suas concepções de natureza definem tempos e lugares de suas vidas. Essas

práticas são consideradas simplórias e vistas como improdutivas pela sociedade

moderna que, incessantemente, dirige novos apelos “modernizantes” para induzir

essas comunidades a mudanças consideradas mais adequadas à atual lógica de

mercado.

Na concepção de Parker (1985), muitos estudiosos falham precisamente

em reconhecer no modo de vida tradicional do caboclo, a qualidade adaptativa do

seu sistema produtivo e a sua contribuição para a economia e o desenvolvimento

regional, enfatizando a flexibilidade do caboclo ao lidar com as influências

externas. Segundo o autor, muitas afirmações e generalizações sobre a cultura

cabocla estão baseadas em indícios insuficientes ou incompletos, resultando em

um “conhecimento” limitado e fragmentário:

[…] our knowledge and understanding of Amazon caboclo culture is limited and fragmentary. Less colorful and exotic than their tribal cousins, caboclos have not enjoyed the attention that Amerindinas have heretofore enjoyed. Ignored, overlooked, and at times casually lumped together with migrant populations, caboclos remain largely unstudied despite their central role in the human environment of Amazonia. […] many assumption and generalizations about caboclo culture are based upon insufficient or incomplete evidence14 (PARKER, 1985, xliii).

Silva (1996) considera que os estudos sobre o caboclo da Amazônia

podem ser objetivados em dois planos: um se encontra no próprio nível das

subjetividades, das identidades sociais e das atitudes e julgamentos nas relações

grupo a grupo, pessoa a pessoa, na sociedade. Outro passa pela lente das

interpretações teóricas em relação aos fatos observados nas sociedades

específicas. Estes dois planos se entrecruzam.

14 […] nosso conhecimento e entendimento da cultura do caboclo amazônico é limitado e fragmentário. Menos coloridos e exóticos do que os seus primos tribais, os caboclos não desfrutaram a atenção que os ameríndios antes desfrutaram. Ignorado, negligenciado, e eventualmente marginalizado junto com populações migrantes, os caboclos permanecem desconhecidos em grande parte, apesar do seu papel central no ambiente humano da Amazônia. […] muitas suposições e generalizações sobre a cultura cabocla são baseadas em evidências insuficientes ou incompletas.

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[...] o ser caboclo amazônico, por seus componentes biológicos (miscigenação), culturais (encontro de culturas) e sociais (está distribuído em diferentes segmentos da população), é uma configuração sociológica específica, que pode ser analisada sob diferentes ângulos teóricos articulados com a observação das situações concretas na sociedade (SILVA:1996, 230).

Para Parker, foi no século XIX, precisamente entre 1800 a 1850, que o

caráter e a qualidade da classe cabocla tomaram a forma que persiste até a

atualidade. A despeito da natureza de sua atividade econômica, o isolamento

cultural e todos os fatores que conspiraram contra a sua organização como grupo

social, o caboclo efetivamente acabou por tornar-se o legítimo representante

cultural da região, atingindo naquela época, um contingente bastante

representativo do total de habitantes da área.

It was during the 50 years between 1800-1850 that the character and quality of caboclo class and culture took shape and which have persisted to the present day. The nature of their economic activity, the cultural deprivation experienced, and the resultant settlement pattern all militated against further social articulation of caboclo life. The caboclo had indeed become the cultural representative of Amazonia – the dominant cultural and economic agent throughout the region. The true Amerind was limited to the far flung corners of the basin and deep within the unpenetrated reaches of the forest. Their very existence depended upon evading contact and communication with all non-Amerindians, including caboclos. […] The proposition that caboclos were the cultural representatives of the region is lent support by estimates of the regional population in 1850 which may have been as much as 75 percent caboclo at time15 (PARKER, 1985, 36).

Na atualidade, pelo menos no âmbito urbano, não é comum se falar na

existência de uma “cultura cabocla”, exceto nos meios acadêmicos ou em

eventuais menções na mídia, associadas neste caso ao folclore regional. A idéia

no senso comum faz relação com práticas típicas do estilo de vida simples do

homem interiorano, particularmente o ribeirinho, mas restringe-se ao modelo

estereotipado consagrado no imaginário da maioria dos brasileiros, inclusive no

da população citadina local.

15 Foi durante os 50 anos entre 1800-1850 que o caráter e qualidade da classe e cultura cabocla tomaram a forma que persiste até o presente. A natureza da sua atividade econômica, a privação cultural experimentada e o padrão determinante daí resultante, tudo militou adicionalmente contra a articulação social da vida do caboclo. O caboclo tinha, entretanto, se tornado o representante cultural da Amazônia - o agente cultural e econômico dominante de toda a região. O verdadeiro ameríndio foi arremessado às áreas remotas da bacia e profundamente dentro dos limites da floresta impenetrável. Sua existência mesma dependia de evitar o contato e a comunicação com todos os não-ameríndios, inclusive os caboclos. […] A proposição de que os caboclos eram os representantes culturais da região é apoiada por estimativas de que a população regional em 1850 era constituída em 75% de caboclos.

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Informalmente falando, pode-se dizer que existe um estilo caboclo de ser,

ou seja, uma forma de resolver as questões, de se comportar, um jeito meio

“apático”, meio blasé, de encarar a vida. Chama-se leseira, segundo Souza

(2001), essa maneira amolentada do caboco16 conduzir as coisas, mas que não

corresponde ao sentido dicionarizado e sim a um estilo de resistência e

sobrevivência às pressões externas, na opinião do autor uma demonstração de

superioridade cultural.

Caracteriza esse comportamento a expressão “leseira baré”, criada por

Souza para identificar o que ele chamou de uma “prática existencial poderosa”,

uma forma de resistência contra políticas intervencionistas que insistiam em fazer

da Amazônia palco de experiências desenvolvimentistas arbitrárias:

Mas o que é leseira? Como identificar tal estilo de resistência. Quando um nativo da Amazônia se olha no espelho, ele vê lá no fundo de seus olhos um sinal de que não foi feito para obedecer certas leis, especialmente econômicas. Por isso, a leseira é elusiva, pode ser uma forma aguda de esnobismo ou uma ironia. [...] a leseira é uma prática existencial poderosa – e foi a única arma que se mostrou eficaz para impedir que muitos projetos da ditadura militar fossem totalmente implantados – que ainda vai livrar a região de tanta solidariedade não solicitada, pois há uma exata medida de leseira em todos os escalões, em todas as classes sociais, em todas as almas (SOUZA, 2001, p. 162).

O termo leseira, entretanto, que Souza intentou cunhar como indicativo de

um comportamento culturalmente superior acabou se tornando mais um vocábulo

no acervo de termos depreciativos com que são referidos (ou se auto-referem) os

habitantes de Manaus. Por outro lado, na forma como o exemplificado pelos

autores referidos, não se identifica localmente na atualidade práticas sociais

suficientemente delineadas a ponto de configurarem o que poderia se chamar de

uma verdadeira “cultura cabocla”. Exemplo disso é o uso da expressão “é típico

de caboclo” que, invés de caracterizar a cultura local, na maioria das vezes tem

cunho depreciativo.

2.3 O caboclo na história (ou a história do caboclo?)

16 Tal qual Torres (2003), o autor prefere usar esta grafia.

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Comparando as definições apresentadas por vários autores, Lima (1999, p.

20) observa que “o caboclo é uma construção de quem é o nativo num dado

momento da história. O amazônida típico da época é sempre definido em

contraste com aqueles que são migrantes recentes e os povos indígenas, de um

lado, e o grupo social identificado como branco, urbano e rico, de outro.” A

definição social de caboclo “implica uma série de oposições: pobre versus rico,

selvagem versus civilizado, floresta versus cidade e, na avaliação moral, indolente

versus empreendedor.”

Zaccaria (s.d.)17 acredita que a aproximação etimológica permite a

reconstrução da história do caboclo pelos significados que, desde seu primeiro

aparecimento (século XVI) foram de tempo em tempo a ele atribuídos. Cada

significado tem um referente preciso que reflete o contexto no qual foi forjado.

Faz-se necessário, para isso, voltar à época da Conquista e percorrer o caminho

que foi trilhado para a formação de um mundo mestiço a partir da destruição do

mundo ameríndio, podendo ser distinguidas algumas etapas18 fundamentais.

No século XVI, conforme a autora, as conquistas brutais resultam na

destruição física de várias etnias ameríndias. Aquelas que não foram destruídas

tiveram os seus integrantes geralmente reduzidos a escravos, recrutados para a

extração de produtos da floresta, sobretudos os conhecidos como “drogas do

sertão”. Como o braço nativo não era suficiente, foi necessário recorrer à força de

trabalho externa, desencadeando a importação de escravos negros da África.

Na Amazônia, no entanto, tal aporte se revelou pouco adequado à

economia extrativa, evidenciando-se a dificuldade do negro em adaptar-se a um

ambiente tão diferente do seu, considerando-se a sua inexperiência desses 17 Texto obtido por meio eletrônico.18 XVI secolo. Conquista brutale e distruzione fisica di molte etnie amerindie. Quelle che non sono annientate sono spesso ridotte in schiavitù, reclutate nell'estrazione dei prodotti della foresta, soprattutto del legname e delle cosiddette "drogas do sertão". XVII - prima metà del XVIII secolo. Con l'arrivo dei Gesuiti in Amazzonia (1610), si dà avvio a quel sistema che, in più di un secolo, avrebbe condotto i gruppi indigeni radunati nelle missioni, alla perdita delle loro tradizioni e cerimonie, quindi della loro identità. II metà del XVIII secolo. Con l'espulsione dei Gesuiti dal Brasile (1755) e la fine del sistema delle missioni, una nuova epoca ha inizio. Il ministro portoghese Pombal instaura il Diretorio dos indios (direttorio degli indios) (1755-1789), che prevede l'assimilazione pianificata di indios e meticci nella società coloniale, attraverso la loro incorporazione nell'economia regionale. Nel corso del XIX secolo, quando per caboclo si intende ormai il contadino amazzonico, nato da padre bianco e da madre india, due eventi fondamentali contribuiscono ad imprimergli una fisionomia precisa e a conferirgli un qualche senso di identità come gruppo. Questi avvenimenti determinanti per la defini7ione del caboclo quale egli è attualmente, sono la rivolta del Cabanagem (1834-1836) ed il Boom del caucciù (1850-1920), con la conseguente migrazione di contadini poveri dalle zone aride del Nordest ( 1877) verso la lussureggiante foresta.

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lugares. A apropriação colonial na Amazônia foi instável nesse período, limitada a

breves incursões de fazendeiros e pequenos extrativistas, fato que não impediu o

início de um intenso processo de "cruzamento" físico-cultural. Nesse contexto o

termo “caboclo” (se for aceita a derivação do tupi “caa” = “floresta” e “boc” =

“aquele que vem dela”, ou “aquele que vem da floresta”) indica o índio puro. Este

termo é usado pelos tupis da costa para referir-se aos seus inimigos de dentro da

floresta (ZACCARIA, s.d.).

Na primeira metade do século XVIII, com a chegada dos Jesuítas na

Amazônia, é dado início ao sistema que, em mais de um século, teria conduzido

os grupos nativos à perda de suas tradições e rituais, conseqüentemente de sua

identidade. Agrupado nas missões, o caboclo se representa no índio aculturado

ou mameluco, ou o mestiço nascido pelo pai europeu e mãe nativa. Então, se no

período missionário permanecem a organização de comunidade e a coletividade

dos meios de subsistência, os outros aspectos do passado tribal desaparecem ou

são esvaziados do seu significado, contribuindo para conferir à cultura cabocla,

um quase intrínseco senso de "vergonha de si mesma" (idem).

Em meados do século XVIII, com a expulsão dos jesuítas do Brasil (1755)

e o fim do sistema de missões, uma nova época teve início. Pombal, ministro

português, estabeleceu o Diretório dos Índios (1755-1789), que programou a

assimilação planejada de índios e mestiços na sociedade colonial por meio de sua

incorporação na economia regional. A língua geral, proibida por Pombal, se fundiu

com o português, originando a linguagem característica do caboclo amazônico;

caboclos e índios destribalizados, indispensáveis pelo conhecimento do ambiente,

foram inseridos no sistema de depredação dos recursos naturais que persiste até

hoje, enquanto outros foram reduzidos a escravos pelos administradores e

colonos que penetravam mais e mais na Amazônia (ZACCARIA, s.d.).

A expulsão dos jesuítas, de acordo com Parker (1985), foi uma reação ao

sucesso de sua empreitada: eles conseguiram o domínio econômico da colônia

com a transformação os índios em agricultores de subsistência, controlando

efetivamente o trabalho dos ameríndios, mantendo, entretanto, relativamente

intactos muitos dos seus costumes originais.

71

Page 73: Um estranho no espelho

O caboclo, de acordo com a autora, tornou-se um trunfo para os jesuítas no

jogo de forças com a Coroa portuguesa, que reagiu expulsando os religiosos e

estabelecendo um Diretório de índios, por meio do qual o processo de

“caboclização”, iniciado com os jesuítas, foi completado. O objetivo do Diretório

era criar suficiente mão-de-obra para o desenvolvimento econômico da região

amazônica, no entanto os ameríndios “caboclizados” não serviram a esse

propósito, pois os caboclos se dispersaram e foram literalmente cuidar de suas

vidas.

The Crown reacted to Jesuit successes by expelling them from the region and assuming responsibility for Amerindian affairs. The promulgation of the Directorate in 1757 provided the mechanism through which the caboclization of the Amerindian was completed. […] The goal of the Directorate was to convert and Christianize Amerinds and by so doing make them full fledged members of Portuguese society. Such transformation of the Amerindian populace would constitute a major assault upon their cultures and societies. However, the ultimate aim of the Directorate was to create a sufficient labor force for the economic development of the Amazon region. Caboclos, the transformed Amerindians, did not serve this purpose. Though “detribalized”, the caboclos dispersed throughout the interior of Amazonia engaged in subsistence activities predicated upon indigenous resource perceptions and technologies19 (PARKER, 1985, 38).

A integração em uma economia de mercado diversificada permitiu aos

caboclos o retorno àquela mobilidade espacial que o sistema de missões os havia

privado. Eles retornaram aos seus grupos de origem na floresta, tentando

restaurar a forma de vida tribal, e aqueles que se dispersaram ao longo das

margens dos rios, constituíram os primeiro grupos com um modo de vida livre e

adaptado ao ambiente, que caracteriza o modo de vida caboclo (ZACCARIA,

s.d.).

Durante o século dezenove, quando por caboclo se entende o amazônida

rural, nascido de pai branco e mãe índia, dois eventos fundamentais contribuíram

para imprimir uma fisionomia precisa e conferir a ele algum sendo de identidade.

Esses eventos determinantes para a definição do caboclo como ele é atualmente

19 A Coroa reagiu ao sucesso dos jesuítas expulsando-os da região e assumindo a responsabilidade pelos negócios dos ameríndios. A promulgação do Diretório, em 1757, proveu o mecanismo pelo qual a caboclização do ameríndio foi completada. […] A meta do Diretório era converter e cristianizar os ameríndios e assim torná-los integralmente membros de sociedade portuguesa. Tal transformação da população ameríndia constituiria a principal agressão em suas culturas e sociedades. No entanto, o objetivo final do Diretório era criar mão-de-obra suficiente para o desenvolvimento econômico da região amazônica. Caboclos, os ameríndios transformados, não serviram a este propósito. Embora "destribalizados", os caboclos dispersaram ao longo do interior da Amazônia, engajando-se em atividades de subsistência baseadas em idéias e tecnologia indígenas.

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Page 74: Um estranho no espelho

foram a Cabanagem (1834-1836) e o boom da borracha (1850-1920), com a

conseqüente migração de colonos pobres do nordeste árido para a floresta.

O movimento denominado Cabanagem, em especial, marca talvez o

delineamento de uma possível “identidade” cabocla. Na opinião de Zaccaria (s.d.),

mesmo que não seja possível conferir à Cabanagem a conotação de "luta de

classe ou raça", porque é difícil identificar uma sólida base ideológica, não se

pode considerá-la uma simples insurreição rural de massa, podendo esse evento

ser visto como um momento fundamental para a tomada de consciência, pelo

caboclo, da possibilidade de constituir para ele uma identidade própria.

Por outro lado, na opinião de Parker (1985) a Cabanagem serviu para

evidenciar a natureza pouco convincente do caboclo como revolucionário.

Restringindo seus interesses a assuntos locais, ele mostrou-se incapaz de

sustentar uma forte e contínua oposição ao poder econômico dominante.

The true nature of the caboclo would only appear after the acid test of revolution, the cabanagem, revolt of 1835-1836 which plunged Amazonian society into a bloody confrontation between the rural caboclo and the urban seat of power. The molding of the caboclo into a revolutionary was a slow and imperfect process which ultimately failed. The caboclo proved to be a poor revolutionary, committed to only short range local issues, and unable to forge a sustained attack against those who controlled much of his economic foundation20 (PARKER, 1985, p. 51).

O fracasso do movimento, na visão desse autor, foi principalmente devido à

mentalidade individualista do caboclo e à falta de uma base ideológica forte:

The inability of the cabano leadership to mold the individual local bands into a united fighting force also reflected the emphasis on the individual. Local leaders, local groups, local grevances, all further reinforced the multiple focus of the Cabanagem. It was no wonder at all that the Cabanagem was characterized by a total lack of ideology or theoretical construct. In fact, the very nature of the individualist caboclo mentality doomed the cabanagem to failure as a change-producing mechanism. Individualism set the tone of the Cabanagem and mandated its demise21 (PARKER, 1985, p. 83).

20 A verdadeira natureza do caboclo só se apareceria depois do teste decisivo da revolução, a cabanagem, revolta de 1835-1836 que mergulhou a sociedade amazônica em uma confrontação sangrenta entre o caboclo rural e a base urbana do poder. A moldagem do caboclo em um revolucionário foi um processo lento e imperfeito que, no final das contas, falhou. O caboclo provou ser um revolucionário pobre, comprometido somente com assuntos locais, e incapaz de forjar um ataque contínuo contra aqueles que controlavam a maior parte de sua base econômica.21 A inabilidade da liderança cabana para moldar os grupos locais em uma força lutadora unida refletiu a ênfase no indivíduo. Líderes locais, grupos locais, dissidentes locais, tudo reforçou os focos múltiplos da Cabanagem. Não é de se espantar que a Cabanagem tenha sido caracterizado por uma falta total de

73

Page 75: Um estranho no espelho

Por seu turno, Souza (2001) considera o movimento um evento histórico

singular e de grande importância na história do Amazonas, mas que não teve o

devido relevo na ótica dos analistas.

Os acontecimentos políticos e militares que constituíram a Cabanagem foram uma clara demonstração de que os agentes sociais da Amazônia estavam não apenas experimentando a desmontagem final do projeto colonial, mas que algo de muito profundo havia acontecido em seu componente humano e apontava para o nascimento de uma civilização original: os cabocos. Infelizmente, o pouco conhecimento da Cabanagem, a bibliografia excelente mas reduzida sobre o assunto, até mesmo uma ênfase na fase colonial e um certo viés conservador nas análises fizeram com que um fenômeno histórico tão importante, de natureza única nas Américas, fosse reduzido a um simples hiato de anarquia social das massas incultas, perdendo-se assim um dos fios da meada do processo histórico da Amazônia (SOUZA, 2001, p. 142).

O autor assevera que o movimento “transbordou como uma grande

enchente nas margens conhecidas da luta política e fez renascer o orgulho de

uma Amazônia indígena, que saiu de sua letargia para dar o troco de dois séculos

e meio de atrocidades” (SOUZA, 2001, p. 143).

O ciclo da borracha, na segunda metade do século XIX, introduziu na

Amazônia uma massa de pequenos agricultores pobres provenientes de zonas

áridas do nordeste do país, sobretudo do Ceará, de origem branca ou africana,

modificando sensivelmente a estrutura do mundo caboclo e contribuindo para

definir sua atual configuração.

Nesse contexto, observa Cardoso de Oliveira (1978), a menor produção do

índio é talvez o fator primordial que marca sua situação de caboclo,

caracterizando-o, assim, como mão-de-obra menos qualificada:

O branco “classe alta” fundamenta sua objetivação do caboclo no prejuízo que este lhe acarreta no cumprimento das atividades de produção; o branco “classe baixa”, baseado nas mesmas evidências de baixa produtividade, estigmatiza o caboclo com termos similares, todos expressando a diferença essencial entre seringueiros de etnia diversa: “o caboclo trabalha mal porque ele é mais pra bicho do que pra gente”. E muitos alardeiam que seu trabalho vale o de dez caboclos (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978, 106).

ideologia ou construto teórico. Na realidade, a verdadeira natureza individualista dominante no caboclo sentenciou a cabanagem ao fracasso como um mecanismo produtor de mudança. O individualismo fixou o tom da Cabanagem e determinou a seu fim.

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Page 76: Um estranho no espelho

Por outro ângulo, Weinstein (1985) endossa a opinião de Morán quanto à

relevância do caboclo no período anterior e posterior ao boom da borracha na

região amazônica. De acordo com esse estudioso, o caboclo tornou-se a figura

central naquele período precisamente por sua flexibilidade no trato e absorção

dos migrantes nordestinos:

One might argue that this process of “caboclization” occurred only after the collapse, in response to a drastically different set of economic circumstances, and has little to do with the boom period itself. Yet I think it is more tenable to construct the opposite argument, even though it may involve some speculation: that the work rhythms, world view, and socio-economic relations that we associate with the caboclo community before and after the rubber boom, actually had a direct impact on the boom period itself. I am not alone in this opinion. In the words of the noted Amazonianist, Emilio Moran (1974:139), “the caboclo became the chief figure in this sixty-year ‘rubber period’, both because of his ability to labor in the forest, and because of the caboclo culture’s ability to absorb the many migrants that came from the Northeast”22 (WEINSTEIN, 1985, 90-1).

Naquele contexto, aponta Weinstein, os seringueiros se constituíram como

um grupo de pessoas ligadas em um mesmo sistema de relações de produção,

visão de mundo e modo de resistência, independente das diferenças étnicas ou

culturais originárias. No fundo era a figura do “caboclo” que sobressaía.

Whether “indian”, “caboclo”, ou “nordestino” in origin, the seringueiros displayed certain common features as a class – that is, a group of people who stand in the same relation to the means of production – and developed a common world view and mode of resistance that had greater significance than the obvious differences in ethnic or cultural backgrounds. Combining production for the market with subsistence activities, following a semi-migratory existence, organizing production around the individual or femily unit, becoming dependent upon a patrão but struggling to maintain some form of autonomy, the tapper became, or remained, a caboclo23 (WEINSTEIN, 1985, 105-6).

22 Alguém poderia argüir que este processo de "caboclização" só aconteceu depois do colapso, em resposta a um jogo drasticamente diferente de circunstâncias econômicas, e tem pouco para ver com o próprio período do boom. Eu ainda penso que é mais sustentável construir o argumento oposto, embora isso possa envolver alguma especulação: que os ritmos de trabalho, visão de mundo, e relações sócio-econômicas que nós associamos com a comunidade cabocla antes e depois do boom da borracha, de fato teve um impacto direto no próprio período de estrondo. Eu não estou só nesta opinião. Nas palavras do “amazonista” notável, Emílio Moran (1974:139), "o caboclo se tornou a figura principal nos sessenta anos do 'período de borracha', tanto por causa da habilidade dele para trabalhar na floresta, quanto por causa da habilidade da cultura do caboclo para absorver os muitos migrantes que vieram do Nordeste".23 Fossem “índios”, “caboclos” ou “nordestinos” na origem, os seringueiros exibiam certas características comuns como uma classe - quer dizer, um grupo das pessoas que se colocam em uma mesma posição relativamente aos meios de produção - e desenvolveram uma visão de mundo comum e modo de resistência que têm maior significação prática do que as óbvias diferenças étnicas ou culturais. Combinando produção para o mercado com atividades de subsistência, seguindo uma existência semi-migratória, organizando produção ao torno do indivíduo ou unidade familiar, tornando-se dependente de um patrão, mas lutando manter alguma forma de autonomia, o seringueiro se tornou, ou permaneceu, um caboclo.

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Page 77: Um estranho no espelho

Além do boom extrativista, outro evento que marcou época na vida dos

caboclos amazônicos foi, segundo Miller (1985), o projeto governamental de

colonização em larga escala, a partir da abertura de rodovias. Com a

Transamazônica, por exemplo, seria facilitada a emergência de comunidades ao

longo da estrada, incrementando em conseqüência a ocupação regional. Miller

estudou os impactos causados por essa estratégia desenvolvimentista na

comunidade de Itaituba, que também sofria os efeitos da exploração nos

garimpos, que atraíram não somente a população cabocla, mas também os índios

mundurucus e um crescente número de imigrantes.

A maioria dos depósitos minerais era fluvial, e os caboclos tiveram um

papel chave no processo de extração e na descoberta das minas. No entanto, o

sistema de trabalho nas minas, na relação patrão-empregado, era semelhante ao

da borracha, caracterizando-se pela espoliação da mão-de-obra cabocla. A

exploração mineral, reforça o autor, foi apenas um acréscimo na longa história de

exploração econômica a que tem sido submetido o povo da floresta, forjando a

constituição de uma única cultura reconhecidamente adaptada: a cultura cabocla.

Apesar de uma sensível diminuição do conhecimento relativo à natureza e

o incremento de técnicas predatórias, na opinião de Zaccaria (s.d.), o boom da

borracha não parece haver tocado a natureza profunda do caboclo. Os

nordestinos, por sua vez, se “caboclizaram” em vários âmbitos: depois de uma

fase nas zonas de extração do látex, eles adotaram o comportamento nômade

dos caboclos, seus meios de subsistência e parte de seu universo ideológico,

adaptando-se a uma ambiente natural antes percebido como estranho e hostil.

Mas também o caboclo, por meio da intensa fusão física e cultural, recebeu

alguns elementos externos que deram à sua cultura o caráter profundamente

sincrético da qual ela é hoje portadora.

2.4 O caboclo hoje

O moderno caboclo amazônico revela em seu tipo físico, como na sua

cultura, o caldeamento de elementos de origem ibérica e ameríndia, entrando

76

Page 78: Um estranho no espelho

nessa composição, em proporção menos significativa, também o elemento

africano. A preponderância dos dois primeiros elementos foi condicionada por

fatores peculiares ao ambiente amazônico, fazendo da Amazônia uma área ímpar

no Brasil.

Nesse personagem, segundo Galvão (1979) estão presentes os caracteres

somáticos, seus componentes biológicos e culturais, alguns estereótipos que

circulam na região a seu propósito e as subjetividades identitárias do caboclo e do

habitante na cidade, associados à não valorização do contributo indígena na

formação das respectivas sociedades.

Quanto à forma como o índio e, por extensão, o caboclo, são vistos nas

comunidades urbanas, Silva (1996) reporta-se à existência de um “mecanismo

psicológico” inconscientemente utilizado pelos citadinos na tentativa de

obscurecer a condição de mestiço, traduzido na prática por uma suposta (e

forçada) valorização do índio como ancestral, não por consciência valorativa, mas

por sua condição de personagem histórico, numa posição idealizada e distante da

realidade social. A “identidade cabocla”, ao inverso, insiste em impor-se na

evidência dos traços somáticos:

No que tange aos valores que transitam no meio urbano, nos quais se pode registrar “uma tendência para valorizar o ancestral e as tradições tapuias” estas atitudes valorativas, na realidade, mascaram a rejeição e o preconceito do homem urbano ou urbanizado em relação ao índio, cujas ancestralidade e tradições são valorizadas apenas e só porque os índios são personagens da história, portanto, distanciados e idealizados (e deformados) no tempo histórico, e/ou se encontram, espacialmente, muito afastados da floresta.

Por diferentes razões, este vínculo identitário é recusado e rejeitado na subjetividade de muitos e na ação prática de outros. [...] A ação prática pode concretizar-se em atitudes anti-índio, na difusão de idéias estereotipadas a seu respeito e/ou, por interesses econômicos, buscar subtrair-lhes direitos (SILVA,1996, p. 228).

As lentes pelas quais os indivíduos são vistos na Amazônia e classificados

numa ou noutra categoria étnico-cultural, segundo esse autor (p. 231),

têm suas origens constitutivas, por um lado, nas culturas (e nos estereótipos que nelas estão contidos) e, por outro lado, nas posições de classe do indivíduo que julga (e do grupo de semelhantes a que ele pertence) e do indivíduo julgado e classificado com esta ou aquela identidade.

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Page 79: Um estranho no espelho

Na opinião de Torres (2003, p. 25), no passado a imagem dos indígenas

como canibais e seres degradados serviu como pretexto para legitimar a

escravidão e naturalizar a inferioridade étnica, e hoje serve para justificar a

ausência de políticas públicas condizentes com as reais necessidades regionais.

Desde a conquista até os dias atuais, ao lado de processos intensos de

exploração do território amazônico, índios e cabocos24 foram e continuam sendo

considerados como “grupos sociais acomodados, passivos, preguiçosos e de

baixa estatura moral.”

Lima (1999) reforça essa proposição sobre a estereotipia como forma de

mascarar a dificuldade de compreensão do universo amazônico, que se traduz

em concepções contraditórias sobre a natureza e os seus habitantes,

representados pelo caboclo. Segundo ela:

O termo constitui uma categoria intermediária no sistema de classificação social, situada entre categorias sociais opostas. Inicialmente a oposição era designada exclusivamente em termos de raça. Agora, a definição do caboclo implica uma série de oposições: pobre versus rico, selvagem versus civilizado, floresta versus cidade e, na avaliação moral, indolente versus empreendedor. [...] O meio ambiente amazônico em si é outra fonte de desacordo e é definido ora como abundante, ora como agressivo. [...] O estereótipo caboclo e as opiniões que se têm sobre as qualidades do meio ambiente são usados para explicar a pobreza humana e o subdesenvolvimento da região (LIMA, 1999, p. 20).

Do estereótipo étnico do ameríndio, por sua vez, vem a idéia de que os

caboclos são culpados por sua má situação social. Seria, assim, a bagagem

cultural indígena responsável pela mesma “indisposição” para esforços pesados

atribuída aos índios. Oposto ao ideal de produtividade estabelece-se a “preguiça”

do caboclo, suposta herança da ociosidade indígena.

Conjugada à idéia de preguiça vem a de indolência e acomodação (no

sentido de conformismo), tendo como justificativa as poucas conquistas

econômicas do caboclo, evidenciadas principalmente pela modéstia de sua

habitação e hábitos de vida. No entanto, pondera Lima, não são consideradas

suas condições de vida, no exuberante e complexo meio ambiente amazônico.

24 Grafia pela qual a autora optou para referir-se ao “caboclo” em sua tese de doutoramento.

78

Page 80: Um estranho no espelho

Essa decantada indolência, particularmente, é analisada por Souza (2001)

por ângulo totalmente contrário à acepção comum. Como anteriormente

mencionado, o autor chama de leseira a um comportamento que, segundo ele,

não corresponde ao sentido ordinário do termo, mas traduz um conceito filosófico-

existencial específico do povo caboco, usado como mecanismo de sobrevivência

após as frustrações e decepções historicamente vivenciadas e que culminaram

com o fracasso do movimento da Cabanagem.

Souza faz coro aos opositores a essa imagem negativa do caboclo atrelada

freqüentemente justamente à imagem de indolente. Viana Moog, por exemplo,

citado por Oliveira Filho (1979), exalta as qualidades adaptativas do caboclo, o

único capaz de vencer as dificuldades que um ambiente de grande complexidade

ecológica como a Amazônia apresenta, qualidade esta também enfatizada por

Miller (1985).

Lima (1999, p 18) também cita a consideração de Moog quanto ao caboclo

como “um bom equilíbrio racial”, no qual “as qualidades das raças índia e branca

são combinadas e produzem uma raça híbrida bem adaptada, capaz de conviver

com o meio ambiente social e ecológico amazônico”:

E embora Moog confirme a falta de ambição do caboclo, é só para exaltar o fato de que essa qualidade lhe deu meios para levar a vida no vale amazônico. Enquanto muitos migrantes nordestinos retornaram para casa depois do colapso da economia da borracha, o caboclo permaneceu, apesar das condições econômicas desfavoráveis. “Se não fosse pelo caboclo sem ambições, não teria sido difícil prever o futuro da população amazônica. Graças ao [caboclo]... a civilização amazônica continua sua marcha” (idem, p. 18).

Álvaro Maia (apud SANTOS, 2002) reforça essa idéia, atribuindo ao

caboclo o “desbravamento” da Amazônia, pois foram eles que serviram de guias

para a entrada na região, por seu conhecimento das florestas e dos rios,

rejeitando ferozmente os atributos de “indolente” e “covarde” a ele impingidos.

Além disso, coube também ao caboclo, segundo o autor, em meio a uma natureza

selvagem e hostil, a tarefa de descobrir as formas de trabalho possíveis. Para

Alcarde (1962), o nativo da Amazônia chega a ser um herói anônimo, um

indivíduo de extraordinária resistência física e moral. O seu defeito, confundido

com indolência, é não ter ambição.

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Page 81: Um estranho no espelho

Lima (1999, p. 18-9) diz que é possível observar tanto na literatura

amazônica quanto no discurso regional exaltação às qualidades do caboclo,

particularmente no interior do Amazonas. “Na idealização positiva, o caboclo é

designado como alegre e sábio, como se diz, porque se satisfaz com a pura

existência e é, portanto, capaz de aproveitar a vida com mínimo esforço”. Na

literatura acadêmica também se encontram avaliações positivas como a de Morán

(1990), entre outros, que tem a cultura cabocla como o sistema humano adaptado

mais importante da Amazônia.

Na opinião de Silva (1996, p. 231), as diferentes formas de perceber o

caboclo são complementares entre si

e expressam a complexidade deste ser social, nas diferentes formas como ele se constitui, no interior do processo de construção da sociedade amazônica, na dinâmica das relações entre as classes, ao longo do tempo histórico, na sua inserção na sociedade de classes como trabalhador braçal e nas subjetividades identitárias, que exprimem, na vida social, por um lado, o ego, o si, o mesmo, e por outro lado o outro, a alteridade.”

A concepção de “caboclo” é referida por ele como uma construção

subjetiva, que implica em “sentir-se” como tal:

O ser caboclo implica em ser objetivamente sentido porque é subjetivamente constituído. O homem urbano ou urbanizado, qualquer que seja a classe social em que se insira, mesmo quanto possui caracteres somáticos similares aos do caboclo, não se sente caboclo, tem consciência de que é detentor de outras expressões de cultura, ainda que nestas possam estar – e na Amazônia estão – traços de origem indígena-cabocla (SILVA, 1996, p. 229).

É a percepção empírica desse (não)-ser caboclo nos dias de hoje, no

contexto local, que se afigura indistinta e repleta de ambigüidades, observando-se

que a prática nas relações cotidianas, na maioria das vezes, contraria o discurso

dos sujeitos sobre o assunto, ou seja, até mesmo aquele de diz “ser” caboclo

freqüentemente evidencia não se “sentir” como tal.

O exercício interpretativo a seguir pretende promover uma articulação

dialética entre as instâncias básicas - nível das subjetividades e dos fatos

empíricos e o das interpretações teóricas - nas quais, segundo Silva, estão

assentadas as possibilidades de estudos sobre o caboclo da Amazônia, tendo por

base a realidade de Manaus, com o propósito maior, inerente à praxis acadêmica,

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Page 82: Um estranho no espelho

de ampliar um pouco mais o campo de discussão a respeito de tema tão

instigante.

3. RECOLHENDO FRAGMENTOS: UMA PERSPECTIVA DE COMPREENSÃO DAS REPRESENTAÇÕES

Em princípio, o espelho reflete a imagem que sobre ele se debruça, como uma espécie de

duplo do real... (...) sabemos que a imagem refletida depende do olhar de quem contempla

e, como tal, o espelho pode operar de forma invertida e deformante.25

fato que qualquer proposta de estudo sobre o caboclo amazônico corre o

risco de se instaurar, desde a sua gênese, em bases movediças. Não

somente pela carência de um saber científico estruturado sobre o assunto,

mas também porque é um objeto que remete a amplas e diversificadas

É25 Sandra Jatahy PESAVENTO, em O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre.

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Page 83: Um estranho no espelho

possibilidades de elaboração e interpretação e inúmeras outras conexões teóricas

nas quais se faz necessário “escorar” o pensamento.

Alguns construtos teóricos, portanto, são indispensáveis para a tarefa

analítica e interpretativa que se pretende na composição deste estudo, sendo

fundamentais as noções de imaginário, cultura, estereótipo, alteridade e

representações para a articulação teórico-prática a ser empreendida. A teoria das

representações vem contribuir, pela via cognitiva, para a integração do estranho

em familiar e mesmo, readequando o passado ao presente, conforme Arruda

(1998, p. 43) “ ... estranhar – elementos até então familiares.”

Na proposição de Moscovici (1978) essa integração é feita pelo processo

de ancoragem, pelo qual se procura encontrar um lugar para encaixar o não-

familiar, em razão da tendência generalizada de rechaço ao estranho, o diferente,

assim como de informações, sensações e percepções que possam causar

desconforto. Na maior parte das vezes esse movimento implica juízo de valor,

pois a ancoragem pressupõe uma classificação dentro de alguma categoria que

historicamente comporta esta dimensão valorativa.

Castoriadis (1982, p. 375) diz que a representação “não pertence ao

sujeito, ela é, para começar, o sujeito”, referindo-se a esta como

a apresentação perpétua, o fluxo incessante no e pelo qual o que quer que seja se dá. [...] A representação não é decalque do espetáculo do mundo; ela é aquilo em que e porque ergue-se, a partir de um momento um mundo. Ela não é aquilo que fornece “imagens” empobrecidas das “coisas”, mas aquilo do qual certos segmentos aumentam de um índice de realidade e se “estabilizam”, bem ou mal e sem que esta estabilização seja jamais definitivamente garantida (idem, p. 375).

Um traço distintivo do ser humano é, sem dúvida, a capacidade de

verbalização. Pela fala o indivíduo, no seu meio social, é capaz de transformar o

outro e ser ao mesmo tempo transformado. Segundo Lane (1994), a linguagem é

um produto da coletividade e reproduz por meio dos significados das palavras e

frases os conhecimentos e valores associados às práticas sociais. Esta

proposição nos induz à idéia de que a representação social é em grande parte

construída no processo de comunicação, implicando a sua análise

necessariamente na análise do discurso do indivíduo (no sentido lato, não como

82

Page 84: Um estranho no espelho

técnica interpretativa) que, por meio de suas escolhas e verbalizações,

contradições e lacunas, manifesta a sua visão de mundo e de si mesmo.

A linguagem é também considerada por Minayo (1996) como uma medição

privilegiada para compreensão das representações sociais:

As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama para as relações sociais em todos os domínios. Bakhtin chama a atenção para o fato de que cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discursos, determinado pelas relações de produção e pela estrutura sócio-política. Portanto a palavra é a arena onde se confrontam interesses contraditórios, veiculando e sofrendo os efeitos das lutas das classes, servindo ao mesmo tempo como instrumento e como material (MINAYO, 1996, p. 174).

Por sua vez, a linguagem expressa a elaboração de um pensamento que

evidencia uma determinada forma de enxergar a sociedade e suas relações

internas e externas, pensamento esse que não é homogêneo, mas uma sucessão

de consensos, com predominância de determinada formação ideológica em

determinado momento, mas sempre sendo adaptado, alterando a sua trajetória

conforme as variações do meio.

A predominância de uma determinada concepção social, de acordo com

Weigel (2000), vai depender de constante negociação e equilíbrio mutante. A

explicação e interpretação desse pensamento são possibilitados pela

hermenêutica, pela qual, defende Minayo (1996, p. 220), se pode alcançar mais

do que uma interpretação literal ou averiguação de sentido das expressões

verbais, mas “a compreensão simbólica de uma realidade a ser penetrada”.

Pela via reflexiva da hermenêutica dialética, nos moldes propostos por

Minayo (1996) como um “caminho do pensamento” tenta-se alcançar neste

trabalho uma compreensão mais aproximada quanto possível desse pensamento

social sobre o caboclo no contexto atual. Como enfatiza a autora, em

concordância com o pensamento de Lukács, nossos conhecimentos são apenas

aproximações da realidade sendo, por isso, relativos, mas também são absolutos

por representarem a efetiva aproximação da realidade objetiva existente

independente de nós, formando, portanto, uma unidade dialética.

83

Page 85: Um estranho no espelho

Mas, questiona Minayo (1996, p. 238), “como podemos garantir a desejada

coincidência entre o pensamento sobre a realidade e a própria realidade?” A

resposta a essa indagação pressupõe um campo aberto de debate que engloba

não somente a produção empírica, mas a própria concepção da “realidade” a ser

estudada, pois o que é ou não “real” é uma construção subjetiva.

Dentro da perspectiva dialética da validade da pesquisa, a prática não pode ser pensada apenas como atividade externa de transformação, mas é importante incluí-la como compromisso social, e enfatizar a dimensão interior, ontológica do ser humano enquanto criador, e da realidade sócio-histórica como construção humana objetivada. Em relação ao saber, é necessário abranger teoria e prática enquanto aproximação da realidade, e teoria capaz de incluir e compreender a transformação social: critérios ao mesmo tempo internos e externos que provam a lógica e a sociológica do conhecimento (idem, p. 246).

A opção por este método para a análise de conteúdo é devida, também, à

idéia de que desvendar e entender melhor o caboclo na sua dimensão sócio-

histórica e psicológica é entender também a nossa história pessoal e social,

nossos condicionamentos e condicionantes. Ensina Ricoeur (1978, p, 18) que

“toda hermenêutica é, implícita ou explicitamente, compreensão de si mesmo

mediante a compreensão do outro” e por meio dessa compreensão o que o

intérprete persegue é a ampliação da compreensão de si próprio enquanto ser

social.

Tal proposição tem reforço em Castoriadis (1982), para quem a busca em

elucidar o ontem e o depois da “humanidade” só tem sentido como forma de

elucidação existencial própria. Diz ele que

o fato de que não possamos compreender o outrora e o alhures da humanidade a não ser em função de nossas próprias categorias [...] não traduz simplesmente as condições de todo conhecimento histórico e seu enraizamento, mas o fato de que toda elucidação que empreendemos é finalmente interessada, é para nós em sentido efetivo, porque não existimos para dizer o que é, mas para fazer ser o que não é [...]. Nosso projeto de elucidação das formas passadas da existência da humanidade só adquire sentido pleno como momento do projeto de elucidação de nossa existência... (CASTORIADIS, 1982, p. 197).

A dinâmica do processo de construção social, por sua vez, em ininterrupto

movimento, tem na visão dialética um enfoque perfeitamente ajustado à

necessidade de analisar um objeto que não pode ser imobilizado no tempo e no

84

Page 86: Um estranho no espelho

espaço e está intimamente associado a outros objetos e fenômenos. Entende-se

que as representações do caboclo se insiram nesta perspectiva, principalmente

pelas suas determinações históricas. Em concordância ao pensamento de Engels,

afirma Lakatos (1986) que existe uma ligação intrínseca e necessária entre

elementos tanto da natureza quanto da sociedade, ambos compostos de objetos

e fenômenos em estreita ligação, dependência e condicionamento recíprocos.

Segundo ele,

o método dialético considera que nenhum fenômeno da natureza pode ser compreendido fora dos fenômenos circundantes, pelos quais é condicionado. Todos os aspectos da realidade (da natureza ou da sociedade) prendem-se por laços necessários e recíprocos. Essa lei leva à necessidade de avaliar uma situação, um acontecimento, uma tarefa, uma coisa, do ponto de vista das condições que os determinam e, assim, os explicam (LAKATOS, 1986, p. 97).

A união da hermenêutica com a dialética na concepção de Minayo (1996,

p. 227), conduz o intérprete ao entendimento da comunicação oral ou escrita

como resultante de um processo social e de conhecimento, cada um com seu

significado específico, fruto de variadas determinações. O texto ou fala “é a

representação social de uma realidade que se mostra e se esconde na

comunicação, onde o autor e o intérprete são parte de um mesmo contexto ético-

político...”.

Como a fenomenologia, a hermenêutica traz para o primeiro plano, no tratamento dos dados, as condições cotidianas da vida e promove o esclarecimento sobre as estruturas profundas desse mundo do dia-a-dia. [...] Ela se introduz no tempo presente, na cultura de um grupo determinado para buscar o sentido que vem do passado ou de uma visão de mundo própria, envolvendo num único movimento o ser que compreende e aquilo que é compreendido (MINAYO, 1996, p. 221).

O estudo das representações sociais impõe a necessidade de utilização de

técnicas de coleta e de análise de dados que possam recuperar da melhor

maneira possível os elementos constitutivos da representação ou seu conteúdo,

conhecer a organização dos seus elementos e as relações entre os seus

constituintes, dentro de um contexto sócio-histórico no qual estejam inseridos.

Sendo as representações do caboclo amazônico o que importa interpretar,

empreendeu-se a tentativa de partir do aparente “caos” das informações

85

Page 87: Um estranho no espelho

recolhidas no campo para fazer delas expressão da visão social de mundo do

segmento “caboclo” em relação à sociedade dominante, revelando, ao mesmo

tempo, sua especificidade de concepção e de participação no contexto

circundante.

Considerando que não é possível conceber a interpretação como uma

verdade absoluta, uma vez que não existe uma única interpretação, a tentativa de

análise aqui esboçada é um exercício de reflexão sobre as representações

emergentes dos discursos com a utilização de um modelo explicativo, que

pressupõe concepções teóricas que direcionam o curso dessas interpretações.

A interpretação dialética nos faz ver que as concepções sobre o caboclo

são resultado de condições anteriores e exteriores ao grupo entrevistado, mas ao

mesmo tempo específicas. Elas são fruto de condições dadas, mas são também

produtos de sua ação transformadora sobre o meio social e devem ser entendidas

como resultantes e como manifestações de condicionamentos sócio-históricos

que se vinculam a tradições culturais, concepções dominantes e veiculadas e a

interrelação de tudo isso. Essas representações constituem um fenômeno social

não apenas por que expressam socialmente, mas também porque são

manifestações da vida material, dos limites sociais e do imaginário coletivo.

A escolha das representações do caboclo amazônico como objeto de

pesquisa foi feita em razão do interesse despertado em vista de evidências

empíricas quanto à existência (ou resistência) de estereótipos fortemente

arraigados na cultura local relacionados ao termo, especificamente na cidade de

Manaus. Considerando que o complexo urbano reúne indivíduos de diferentes

procedências, tanto do interior do Estado quanto de outros estados brasileiros,

especialmente do nordeste, considerou-se o contexto da capital um locus

privilegiado para a realização deste trabalho de pesquisa, pressupondo-se a

heterogeneidade e diversidade de relações, como um dado capaz de evidenciar a

força e o grau de enraizamento de determinada idéia.

Jodelet enfatiza os suportes pelos quais as representações são veiculadas

e sedimentadas na vida cotidiana:

86

Page 88: Um estranho no espelho

Esses suportes são basicamente os discursos das pessoas e grupos que mantêm tais representações, mas também os seus comportamentos e as práticas sociais nas quais estes se manifestam. São ainda os documentos e registros em que os discursos, práticas e comportamentos ficam institucionalmente fixados e codificados. Finalmente, são as interpretações que eles recebem nos meios de comunicação de massa que dessa forma retroalimentam as comunicações, contribuindo para sua manutenção ou sua transformação... (JODELET apud SÁ, 1998, p 73-4).

É fato reconhecido que a região Norte do país, não somente pela distância

geográfica, é vista de maneira estereotipada pelos habitantes do outro extremo.

Tal afirmação é facilmente comprovável em situações de contato entre pessoas

do sul com as do norte, especialmente do Amazonas, em vista do nível de

desconhecimento que se evidencia “dos de lá” em relação “aos daqui”.

Com seu fantástico poder de penetração em todos os níveis sociais, a

mídia nacional cumpre com grande eficiência o papel que na época da conquista

coube aos cronistas: disseminar e reforçar os estereótipos e preconceitos,

entendendo-se “preconceito” não com a conotação negativa com que é

comumente usado, mas na sua acepção mais objetiva de “conceito antecipado” e

“opinião sem base séria”.26

Verificar até que ponto esses estereótipos e preconceitos relativamente ao

caboclo estão presentes entre a população local, constitui, assim, o objetivo maior

desta investigação, considerando que tem havido nos últimos tempos uma certa

“movimentação” no sentido de “resgate” e valorização das chamadas raízes

culturais amazônicas. A Amazônia na última década, por sinal, virou quase que

um modismo, em razão da onda ambientalista que tomou conta do planeta.

Apressou-se então a administração pública em incentivar a “cultura de raiz”,

injetando recursos em manifestações folclóricas tipo exportação como o boi

bumbá de Parintins, por exemplo, além de outras ações de menor vulto, voltadas

para o artesanato, música etc.

De uns tempos para cá tem havido como que uma tentativa de “retorno às

raízes”, uma espécie de chamamento “de sangue”, no caso, sangue indígena.

Mas, até que ponto essa re-valorização (se é que a cultura indígena foi algum dia,

valorizada na região) é real? Não seria essa valorização das origens uma

26 Cf. Enciclopédia e Dicionário Ilustrado Koogan/Houaiss.

87

Page 89: Um estranho no espelho

“tradição inventada”27? Ou seja, está mesmo havendo um processo de

conscientização cultural, no sentido de que a população de Manaus, em grande

parte resultante de miscigenação com antecedentes indígenas, está voltando seu

interesse e agregando valor às coisas “da terra”? Será mesmo que os produtos e

produções “típicos” estão significando para os amazonenses mais do que

significam para os “gringos”, ou seja, produtos exóticos?

Nesse caso, não haveria para o nativo como empreender uma viagem de

“resgate” às origens culturais sem situar-se como caboclo. Não seria possível

ignorar esse “elo”, esse “quase”, esse híbrido chamado caboclo que, a despeito

da forma como tem sido visto e tratado, permanece como “marca d’água” no pano

de fundo da história na Amazônia brasileira. No contexto citadino, pelo menos, o

que sobressai é um alheamento desses valores culturais, e o caboclo, como

referência identitária ou categoria social, parece ter deixado de existir. Os jovens

evidenciam com mais nitidez esse afastamento das origens, não somente nas

expressões cotidianas, nas posturas, nas comunicações, mas também no silêncio

e na ausência de definição pessoal.

Por isso foram os jovens os escolhidos para constituir a amostra na

pesquisa de campo, por constituírem uma categoria específica como indivíduos

em um momento particularmente importante, tanto na elaboração quanto na

concretização de conceitos. Ao mesmo tempo em que, teoricamente, estão

abertos a variadas influências, os jovens costumam expressar de forma mais

transparente e espontânea suas opiniões e estão em fase de maturação dos

conceitos apreendidos, assumindo, em alguns casos, de maneira mais autêntica

suas próprias idéias, formatadas na convivência familiar e social.

Como estudantes de nível médio, eles em tese estão se preparando para

encarar uma etapa mais séria da vida, uma opção profissional, o que implica em

capacidade de escolha e discernimento. Além disso, de acordo com as novas

27 Eric HOBSBAWM e Terence RANGER, no livro A invenção das tradições exploram o tema. A expressão é aqui utilizada em sentido aproximado à idéia de que, com vista a determinados fins, faz-se a utilização de elementos antigos na elaboração de novas tradições, podendo haver o enxerto dessas novas tradições “inventadas” nas velhas (originais), usando-se a história como legitimadora das ações e como “cimento da coesão grupal”. De acordo com os autores, quanto os velhos usos e costumes se conservam, não é necessário recuperar nem inventar tradições.

88

Page 90: Um estranho no espelho

orientações curriculares, a questão regional é obrigatoriamente enfocada no

processo educacional.

O instrumento selecionado para abordagem dessa amostra foi uma

entrevista semi-estruturada, elaborada de modo a tentar obter dados relevantes

sobre idéias, crenças, opiniões e condutas do indivíduo, assim como possíveis

razões conscientes e inconscientes dessas construções. E também revelar,

dentro das limitações do instrumento, sistemas de valores e normas e as

representações do grupo na qual o indivíduo está inserido, nas condições sócio-

históricas e culturais específicas do momento.

O roteiro da entrevista foi feito a partir dos elementos que emergiram no

grupo focal, composto por nove voluntários, alunos de nível médio da Escola

Estadual Ernesto Penafort, na zona leste de Manaus, sem distinção de gênero ou

idade, convidados a participar de um “papo” sobre cultura amazônica. Com a

aquiescência da direção da unidade, a reunião foi feita na cantina da escola, no

horário de aula, enquanto os outros alunos estavam em sala, e durou pouco mais

de uma hora. Foi informado a eles que aquela atividade integrava uma pesquisa

acadêmica, e que não tinha finalidade de avaliá-los ou instruí-los, mas somente

de coleta de dados preliminares. Os estudantes pareciam estar à vontade, na

medida do possível, mas sempre com uma margem de reserva pelo fato de

saberem que estavam sendo observados.

O início da abordagem foi dificultado pelo receio de não suscitar uma

discussão proveitosa. A opção foi por um assunto que mobilizasse o interesse do

grupo e provocasse a emergência dos dados espontaneamente. O “carnaboi”,

uma criação que une as coreografias das apresentações do boi bumbá com ritmo

de carnaval, foi a opção escolhida, tendo sido questionado de início o que eles

achavam do evento como manifestação cultural. As respostas foram na maioria

favoráveis, e as palavras “cultura”, “resgate”, “tradição”, “identidade” e “indígena”

foram recorrentes. Progredindo na discussão, o termo “caboclo” foi naturalmente

introduzido, quando alguém disse que gostava de boi porque tinha “sangue

caboclo”, sendo contestado por outro que alegou que o “povo amazonense era

descendente de índio, não de caboclo.”

89

Page 91: Um estranho no espelho

Emergiram da discussão as associações mais comuns, como: homem do

interior, homem da roça, descendente de índio, ribeirinho, pescador, matuto,

mestiço, preguiçoso, homem rural, pessoa da terra, pessoa sem estudos, pessoa

ignorante, mateiro, traiçoeiro, homem feio etc. Um dado relevante observado foi

que, sempre que instigados, havia uma certa resistência a falar no assunto, como

se não interessasse. “Não tem muito o que falar sobre caboclo”, disse um deles,

“porque isso é coisa de gente do interior”.

O roteiro da entrevista foi elaborado, assim, considerando as dificuldades

de acesso às informações pretendidas por via direta, tomando por base também

alguns dados para direcionamento das perguntas como, por exemplo, qual a

imagem física que eles têm sobre o caboclo, nível cultural e intelectual,

capacidade produtiva etc.

Procurou-se, então, de acordo com as orientações de Jodelet (1998), além

das questões objetivas sobre o contexto sócio-familiar do entrevistado, incluir

perguntas relacionadas mais concretamente às suas experiências cotidianas,

passando sutilmente a questões envolvendo reflexões mais abstratas e

julgamentos, de forma a encaminhar a entrevista para os conteúdos que não são

revelados espontaneamente e que, muitas vezes, nem são verbalizados. Esse

“não dito”, na opinião de Jodelet, geralmente é o principal conteúdo da

representação.

A classificação dos dados foi feita a partir do material recolhido, em relação

com o embasamento teórico dos pressupostos e hipóteses estabelecidos a partir

de leitura exaustiva e repetida dos textos (leitura flutuante), com o fim de

apreender as estruturas de relevância dos atores sociais e as idéias centrais que

buscam transmitir. As categorias analíticas teoricamente estabelecidas para

norteamento da investigação foram relacionadas às categorias empíricas,

buscando-se as relações dialéticas entre elas.

Foram constituídos, com base nessa classificação, unidades de registro ou

significação, considerando o conteúdo empiricamente manifestado. A partir

dessas unidades, confrontando os conteúdos empíricos com as variáveis teóricas

já esboçadas, procedeu-se ao “enxugamento” da classificação com vista ao

90

Page 92: Um estranho no espelho

aprofundamento do conteúdo das mensagens, discriminando-se os temas mais

relevantes e reagrupando-os em torno de categorias centrais entre si

concatenadas.

3.1 Conhecendo o terreno: o real e o imaginário nas representações

Conforme mencionado, os sujeitos da pesquisa são 30 jovens estudantes

do ensino médio de duas escolas públicas de Manaus. Em princípio pretendeu-se

restringir a faixa etária de 15 a 18 anos, em razão de ser esta a média de idade

de estudantes deste nível de ensino. Constatou-se, entretanto, que esta

delimitação não seria viável porque a participação seria voluntária, e em escolas

da rede pública essa faixa é bastante flexível.

Na Escola Estadual Francisco Albuquerque, localizada na rua Joaquim

Nabuco, no centro da cidade, foram entrevistados alunos do primeiro ano, turno

noturno. Um bom número de alunos da turma na qual foram feitas as entrevistas,

tinham idade acima de vinte e cinco anos, havendo, inclusive, alunos com mais de

trinta anos. Foi esclarecido, então, que a pesquisa propunha uma faixa de idade

específica, tendo esta sido estendida para até 20 anos, tendo em conta a

realidade ali evidenciada, onde jovens que já poderiam estar cursando a

universidade iniciavam o ensino médio. A escolha dessa escola se deu em razão

de sua localização: por estar situada no centro da cidade, teoricamente a sua

clientela seria constituída de indivíduos de bairros diversos, possibilitando uma

amostra mais heterogênea.

Quinze outros alunos, do terceiro ano, foram entrevistados na Escola

Estadual Ernesto Penafort, na zona leste de Manaus. A escolha de uma escola

desse bairro periférico da cidade foi feita por conta das características físicas

predominantes nos moradores, em grande parte evidenciando os traços

somáticos indígenas mais conhecidos, ou seja, cor morena, cabelos lisos, rosto

arredondado, olhos pretos etc. O interesse neste aspecto particular era saber se

um indivíduo que fisicamente poderia ser apontado como caboclo se identificaria

como tal, dado considerado importante para algumas elaborações teóricas

previamente esboçadas.

91

Page 93: Um estranho no espelho

Na transcrição resumida das entrevistas foi feita uma numeração

seqüencial de 1 a 30, sendo os primeiros 15 entrevistados os alunos do primeiro

ano da Escola Estadual Professor “Francisco Albuquerque”, e os 15

subseqüentes os alunos do terceiro ano da Escola Estadual “Ernesto Penafort”.

Para efeito de melhor visualização e para facilitar a explanação, foram

discriminadas em um quadro-resumo as informações gerais sobre o contexto dos

entrevistados (sexo, idade, cor, naturalidade, local de moradia, nível de instrução

e ocupação dos pais) e, adicionalmente, um dado considerado importante para

este estudo, relativo às fontes de informação mais utilizadas, além da escola.

O dado quanto à “cor” dos entrevistados também foi destacado como

relevante em virtude da pesquisa estar voltada para uma categoria cujas

características somáticas constituem base para um dos estereótipos a ela

atribuídos: a predominância dos traços indígenas nos caracteres físicos.

Quadro Resumo – Informações Gerais

Nº Natural Sexo Idade Cor Onde reside Instrução pais Ocupação pais Fontes informação

1 AM F 17 morena Petrópolis Pai nv. fund. Mãe fund. incpl..

Pai mecânico e mãe doméstica Quadrinhos e TV (MTV)

2 MA F 20 negra Alfredo Nascimento

Mãe fund. incompl.

Mãe doméstica Revistas e TV

3 MA F 20 morena Grande Vitória

Pai e mãe nível fundamental

Pai garimpeiro e mãe vendedora

Bíblia, jornal e conversa

4 PA M 20 moreno Nova Conquista

Pai e mãe fundam. Incompl.

Pai agricultor e mãe doméstica Livros diversos, TV (jornalísticos)

5 AM F 19 branca São Francisco

(Pai separado) Mãe nível médio

Mãe industriária Romances TV (filmes,novelas)

6 RO M 16 negro Jorge Teixeira Pai fund. incompl. Mãe ensino médio

Pai lanterneiro e mãe pintora Revistas e TV (novela, desenho)

7 AM M 19 moreno Educandos Pai alfabetizado Mãe fund. incompl.

Pai pescador Mãe doméstica Revista Veja e TV (desenho)

8 AM M 19 moreno Compensa Pai e mãe nv. fund. Pai comerciante Mãe doméstica Revistas e TV9 MT F 20 morena Japiim Pai e mãe nível

fundamentalPai vendedor Mãe doméstica Bíblia e televisão

(jornal e novela)10 MA M 19 branco Novo Israel Mãe fundamental Mãe cobradora Televisão ( filmes)11 AM F 18 branca São Lázaro Pai médio incompl.

Mãe fundamentalPai “faz tudo” e mãe vende roupa Televisão

12 AM M 15 pardo São José Operário

Pai nível médio Mãe md. incompl.

Pai eletricista e mãe dona de casa Revistas e televisão

13 AM M 18 branco Campos Elíseos

Pai e mãe nível superior

Pai administrador e mãe func. Pública

Revistas e televisão

14 AM M 17 moreno Jardim Petrópolis

Pai e mãe nível médio

Pai téc. administr. e mãe doméstica

Rádio e TV (progs. policiais)

15 AM M 15 pardo São José Pai e mãe nv médio

Pai aux. administr. e mãe artesã

Jornal, livros de poesia, TV

16 AM F 17 moreno São José dos Campos

Pai nível superior Mãe nível médio

Pai contabilista e mãe dona de casa

Revistas e TV (filmes,desenhos)

17 AM F 17 morena São José II Pai nível médio Mãe fundamental

Pai soldador e mãe dona de casa

Livros de química e TV (novelas)

18 AM M 17 moreno Tancredo Neves

Pai médio incompl. Mãe fundamental

Pai motorista e mãe dona de casa

Jornais e Tv (filmes, desenho)

92

Page 94: Um estranho no espelho

19 AM F 17 branca Cidade de Deus

Pai e mãe nível fundamental

Pai e mãe comerciantes Romances, televisão (novela)

20 AM M 19 moreno São José Pai e mãe nível médio incompleto

Pai e mãe vendedores Revistas e TV (filmes e novelas)

21 AM F 18 moreno Tancredo Neves

Pai e mãe nível fundamental

Pai vendedor e mãe dona de casa

Revistas e televisão

22 AM F 19 branca São José II Pai e mãe nível fundamental

Pai autônomo e mãe dona de casa

Livros literatura, jornais, TV

23 AM M 19 moreno São José I Pai fundamental Mãe nv. superior

Pai fotógrafo e mãe professora Televisão (jornais,programas)

24 PA F 16 branca Novo Aleixo Pai e mãe nível fundamental

Pai comerciante e mãe dona de casa

Rev. educativas e TV (noticiário)

25 AM F 18 morena São José III Pai e mãe nv. médio

Pai oper. máquina e mãe revisora

Revistas variadas, TV prg. educativos

26 AM M 16 branco São José III Pai nível médio Mãe falecida

Pai funcionário público Palavras cruzadas, TV (filmes)

27 PA F 18 morena Zumbi I Pai nível superior Mãe nível. médio

Pai empresário e mãe tec. enferm.

Televisão (filmes e novelas)

28 AM F 19 morena São José I Pai nível médio Mãe fundamental

Pai aposentado e mãe serv. gerais

Livros literatura e religião e TV

29 RR F 18 parda Comunidade de Deus

Ambos nível fundamental

Pai autônomo Mãe doméstica

Revistas diversas, jornal, TV

30 AM M 20 moreno Tancredo Neves

Pai fundamental Mãe nível. médio

Pai segurança Mãe doméstica Livros, revistas, TV

O quadro pretende sintetizar o plano da realidade objetiva quanto ao grupo

amostral, esboçando a conjuntura sócio-econômica e cultural na qual o grupo se

insere e sua participação enquanto ator social; condições de renda (no caso

familiar), moradia e distribuição geográfica, além dos recursos informacionais aos

quais o grupo tem acesso, de maneira a subsidiar o estudo das condições de

produção e circulação das representações sociais. Interessa saber quais as

relações que a emergência e a difusão das representações sociais têm com

valores, modelos culturais, comunicação interindividual, institucional e de massa,

contexto ideológico e histórico, inserção social dos sujeitos etc.

Do ponto de vista histórico, a postura interpretativa dialética [...] toma como centro da análise a prática social, a ação humana e a considera como resultado de condições anteriores, exteriores mas também como práxis. Isto é, o ato humano que atravessa o meio social conserva as determinações, mas transforma o mundo sobre as condições dadas (MINAYO, 1996, p. 232).

De acordo com a orientação de Minayo, no caso das representações sobre

o caboclo, é necessário entendê-las como frutos e manifestações de

condicionamentos sócio-históricos, interrelacionando tradições culturais e as

concepções dominantes veiculadas. A identificação dessas representações como

um fenômeno social, é feita não apenas por que expressam socialmente, mas

também porque são manifestações da vida material, dos limites sociais e do

imaginário coletivo.

93

Page 95: Um estranho no espelho

Assim, as concepções sobre o caboclo são resultantes de condições

anteriores e exteriores ao grupo entrevistado, em grande parte de condições

dadas, mas são também produtos da ação dos sujeitos sobre o meio social. De

acordo com Guareschi (1997, p. 20), “é quando as pessoas se encontram para

falar, argumentar, discutir o cotidiano, ou quando estão expostas às instituições,

aos meios de comunicação, aos mitos e à herança histórico-cultural de suas

sociedades, que as representações sociais são formadas.”

Um dos pressupostos metodológicos estabelecidos por Minayo (1996) é

que o pesquisador tem que aclarar para si mesmo o contexto de seus

entrevistados, porque o discurso expressa um saber compartilhado com outros,

do ponto de vista moral, cultural e cognitivo. O pesquisador só pode compreender

o conteúdo significativo de um texto quando está em condições de tornar

presentes as razões que o autor teria para elaborá-lo, tendo em conta que o texto

reflete a relação existente entre o sujeito que comunica e aquele que interpreta

como personagens, em última instância, do mesmo tempo e da mesma história

social.

Quem são, e como vivem os sujeitos da pesquisa? Os entrevistados são

em sua maioria amazonenses: dos 30 participantes, apenas 8 não são naturais de

Manaus (24%), e 5 desses 8 são da região norte (Pará e Roraima). São jovens

em maioria provenientes de família de baixa renda, haja vista a ocupação dos

pais, e o baixo nível de instrução. A fonte de informação preferencial é a televisão.

O que este contexto pode significar relativamente à produção de representações

sobre o caboclo, ainda não é possível inferir, mas é possível pressupor a

existência de condições desfavoráveis ao desenvolvimento de consciência crítica

e mesmo de capacidade analítica em relação à sua realidade social.

Não significa supor, no entanto, que “pobre” não pense e não critique, ou

que possua pouca capacidade de entendimento e discernimento, mas que as

condições sócio-econômicas menos privilegiadas, por si só, já restringem e

condicionam as práticas sociais, principalmente quanto à aquisição e expansão

de conhecimentos. A faixa etária dos primeiros quinze entrevistados, alunos da

primeira série do nível médio, é significativa neste sentido, já que apenas dois

alunos (um de 15 e outro de 17 anos) estão em idade considerada mais

94

Page 96: Um estranho no espelho

adequada ao que se poderia esperar para uma evolução normal na “carreira

estudantil”, evidenciando nos demais um “atraso” na trajetória para aquisição de

um requisito indispensável para o acesso ao mercado de trabalho, que é a

conclusão do nível médio.

Além disso, além da escola, é na televisão preferencialmente que esses

jovens vão buscar informações, e as revistas mencionadas são as que divulgam

“fofocas” de TV, com raríssimas exceções. Como formar opiniões em jovens cujo

acervo informacional não parece incluir elementos que dêem base para a

constituição de debates e o raciocínio crítico? O discurso dos entrevistados, visto

a seguir, mostra esta lacuna e configura um vazio conceitual que pode vir a

constituir (ou já está se constituindo) em terreno fértil para a reprodução de

atavismos pouco favoráveis à cultura local e à formação pessoal dos

entrevistados.

Morin (2001, p. 16-7) alerta para a dispersão do saber em unidades

informacionais, fazendo coro a T. S. Eliot quando este questiona: “Onde está o

conhecimento que perdemos na informação?”. As informações, ensina Morin,

constituem parcelas dispersas do saber e “em toda parte, nas ciências como nas

mídias, estamos afogados em informações.” O conhecimento só pode ser assim

considerado quando constituído de forma organizada, interrelacionado com as

informações e inserido no contexto destas. Os fragmentos de conhecimento só

servem para uso técnico e

não conseguem conjugar-se para alimentar um pensamento capaz de considerar a situação humana no âmago da vida, na terra, no mundo, e de enfrentar os grandes desafios de nossa época. Não conseguimos integrar nossos conhecimentos para a condução de nossas vidas. Daí o sentido da segunda frase de Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?” (MORIN, 2001, p. 16-7).

O autor afirma que a reforma do pensamento é necessária e fundamental

para a mudança de paradigmas, mas ela não se dá de maneira simples e

instantânea, e sim à custa de um processo que começa no início da vida escolar,

pois a cultura também se ensina e se reproduz na escola, em processo contínuo,

assim,

95

Page 97: Um estranho no espelho

só poderemos começar a reforma do pensamento na escola primária e em pequenas classes. [...] é nesse nível que devemos nos beneficiar da maneira natural e espontaneamente complexa do espírito da criança, para desenvolver o sentido das relações entre os problemas e os dados. Sempre nos deparamos com este problema de fundo, o fato de que a reforma do pensamento só pode ser realizada por meio de uma reforma da educação (MORIN, 1999, p. 34).

Na opinião de Torres (2003, p. 274), “como formador de opiniões e visões

de mundo, o processo educativo desempenha um papel fundamental na

construção das representações sociais dos indivíduos.” De acordo com a autora,

a resistência do preconceito ao tempo e às transformações sociais ocorre “porque

sua desconstrução não foi incorporada pelo processo educativo”.

3.2 Analisando os fragmentos: o dito e o não-dito

O que os jovens entrevistados sabem (conjunto de concepções) sobre o

caboclo amazônico e como representam esse saber? No desdobramento do

processo de classificação e ordenamento dos dados empíricos, foram separadas

e agrupadas as respostas dos entrevistados a cada pergunta, com o intuito de

facilitar a percepção dos pensamentos expressados pelo grupo. Inferindo sobre o

seu conteúdo, procede-se à análise dos processos de sua formação e sua lógica

própria, contradições e convergências e de sua eventual mutação, tendo como

objetivo encontrar nesses textos uma significação particular e um papel revelador

do todo.

Isso implica também considerar na análise interna, como parte das

representações, conforme orienta Minayo (1996), os signos (substantivos, verbos,

adjetivos etc), com a certeza das contradições ocultas e de idéias existentes não

expressas. Nesse “instante hermenêutico”, apenas para fins analíticos o material

de representação social será provisoriamente tomado como um conjunto

separado, a ser tecnicamente trabalhado e cuidadosamente analisado.

Neste trabalho primeiramente estão elencadas perguntas em relação mais

estreita e, a cada conjunto de respostas, procede-se uma análise preliminar, com

vistas ao posterior estabelecimento de categorias gerais de sentido. Na

composição do roteiro de entrevista procurou-se “cercar” o tema com

96

Page 98: Um estranho no espelho

questionamentos de ordem geral – Amazônia, Amazonas, índios, homem

amazônico – contextualizando o tema principal, o “caboclo”, de maneira a permitir

a identificação de dissociações entre esses elementos, fato por si só merecedor

de análise.

Tabela 1A Amazônia é um assunto que interessa a você? Tem informações a respeito?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não, nem tem informações.

2 MA F negra Sim, e tem informações sobre “os rios, a mata as pessoas”.

3 MA F morena Um pouco, mas não tem informações.

Tabela 1 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

4 PA M moreno Sim, principalmente pela exploração dos recursos.

5 AM F branca Sim, tem algumas informações gerais.

6 RO M negro Sim, interessa-se pela preservação e exploração dos recursos naturais.

7 AM M moreno Sim, “pelos rios, matas, fauna e flora”.

8 AM M moreno Não, e não tem informações.

9 MT F morena Sim, por questões gerais.

10 MA M branco Sim, pela questão da biodiversidade.

11 AM F branca Não muito, nem tem informações.

12 AM M pardo Sim, pelos aspectos de ecologia e cultura.

13 AM M branco Sim, pela ecologia e preservação.

14 AM M moreno Não, nem tem informações.

15 AM M pardo Sim, pela ecologia.

16 AM F moreno Sim, pela geografia e cultura.

17 AM F morena Sim, pelos aspectos econômicos.

18 AM M moreno Sim, pela floresta.

19 AM F branca Sim, pela flora e fauna.

20 AM M moreno Sim, pelo turismo e vegetação.

21 AM F moreno Sim, pelo desenvolvimento da região.

22 AM F branca Sim, pela organização social e econômica.

23 AM M moreno Sim, pela fauna e flora.

24 PA F branca Sim, por assuntos econômicos.

25 AM F morena Sim, pela natureza e riquezas.

26 AM M branco Sim, assuntos gerais.

27 PA F morena Sim, pelo desenvolvimento ambiental e ecológico.

28 AM F morena Sim, pela biodiversidade.

29 RR F parda Sim, em todos os aspectos.

30 AM M moreno Sim, pelos aspectos geográficos, humanos e culturais.

97

Page 99: Um estranho no espelho

Tabela 2Você se interessa por questões relativas ao Amazonas? Tem informações?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não, nem tem informações

2 MA F negra Sim, pelas festas, música, festivais etc.

3 MA F morena Um pouco, mas não tem informações.

4 PA M moreno Sim, um pouco.

5 AM F branca Sim, pois tem orgulho de onde mora.

Tabela 2 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

6 RO M negro Sim, pela política, educação e patrimônio histórico e cultural.

7 AM M moreno Sim, pelos rios, matas, fauna e flora.

8 AM M moreno Não, nem tem informações.

9 MT F morena Não, nem tem informações.

10 MA M branco Sim, pela cultura e segurança.

11 AM F branca Não muito. Não tem informações.

12 AM M pardo Sim, pelos aspectos de ecologia e cultura.

13 AM M branco Sim, pela preservação.

14 AM M moreno Não, nem tem informações.

15 AM M pardo Sim, pelo futuro dos animais e plantas.

16 AM F moreno Sim, pelas condições do povo.

17 AM F morena Sim, pela política, desemprego etc.

18 AM M moreno Sim, pelos povos indígenas do passado.

19 AM F branca Sim, pelas questões sociais.

20 AM M moreno Sim, pela política.

21 AM F moreno Sim, pela história.

22 AM F branca Sim, pela organização social e política e aspectos econômicos.

23 AM M moreno Não, nem tem informações.

24 PA F branca Sim, por toda as questões.

25 AM F morena Sim, pela história e natureza.

26 AM M branco Sim, pela história, a Zona Franca etc.

27 PA F morena Sim, pelo crescimento e desenvolvimento do Estado.

28 AM F morena Sim, pelos acontecimentos gerais nos municípios.

29 RR F parda Sim, por política, violência, emprego, municípios etc.

30 AM M moreno Sim, pelas cidades e história.

Tabela 3Você conhece a história do Amazonas? Qual(is) a(s) fonte(s) de informações?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não.

98

Page 100: Um estranho no espelho

2 MA F negra Sim, por meio da escola.

3 MA F morena Sim, por meio da escola e falado às vezes em casa.

4 PA M moreno Sim, por meio da escola.

5 AM F branca Sim, por meio da escola.

6 RO M negro Sim, por meio da escola.

7 AM M moreno Sim, por meio da escola.

Tabela 3 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

8 AM M moreno Sim, por meio da escola.

9 MT F morena Um pouco, por meio da escola.

10 MA M branco Não.

11 AM F branca Não.

12 AM M pardo Não muito, por meio da escola.

13 AM M branco Sim, por meio da escola.

14 AM M moreno Não.

15 AM M pardo Sim, por meio da escola.

16 AM F moreno Um pouco, por meio da escola.

17 AM F morena Um pouco, por meio da escola.

18 AM M moreno Um pouco, por meio da escola.

19 AM F branca Um pouco, por meio da escola.

20 AM M moreno Um pouco, por meio da escola.

21 AM F moreno Sim, por meio da escola.

22 AM F branca Sim, por meio da escola.

23 AM M moreno Não.

24 PA F branca Quase nada.

25 AM F morena Um pouco, por meio da escola.

26 AM M branco Um pouco, por meio da escola.

27 PA F morena Sim, por meio da escola.

28 AM F morena Sim, por meio da escola.

29 RR F parda Um pouco, por meio da escola.

30 AM M moreno Sim. por meio da escola.

Sobressai nas respostas sobre a Amazônia a idéia de “natureza” (no

sentido genérico do termo), expressa nas palavras recorrentes ecologia,

preservação, biodiversidade, riquezas, recursos, fauna, flora, vegetação. O ideário

sobre a natureza amazônica, alimentado e disseminado pelos viajantes,

possivelmente aliado ao globalizado “mito da natureza intocada”, criticado por

Diegues (1997), é o que aparentemente prevalece na mentalidade dos sujeitos.

Talvez uma idéia abstrata e global das potencialidades da natureza como um

patrimônio a ser protegido e preservado, em lugar de uma real consciência do

valor intrínseco do patrimônio genético e da biodiversidade regional.

99

Page 101: Um estranho no espelho

Esse mito da natureza intocada e intocável reelabora não somente crenças antigas, mas incorpora também elementos da ciência moderna, como a noção de biodiversidade, das funções dos ecossistemas, numa simbiose expressa pela aliança entre determinadas correntes das ciências naturais e do ecologismo preservacionista. [...] Isso apesar de evidências científicas crescentes de que, nas diversas centenas de milhares de anos de vida humana, os homens de uma forma ou outra interferiram, com maior ou menor intensidade, nos diversos ecossistemas terrestres, hoje restando muito pouco de natureza virgem intocada (DIEGUES, 1997, p. 316).

Essa noção generalizada e não atualizada, segundo Arruda (1998), funda

suas raízes no processo brasileiro de colonização, quando o imaginário já

instalado sobre o novo mundo produziu representações que omitiram a relação da

sociedade com a natureza, encobrindo tanto uma quanto a outra, sendo esta

última emblematizada, transformada em essência inalcançável. Essa idealização

ofuscou a presença humana e contaminou com o exotismo o pensamento sobre a

região.

O imaginário coletivo dos europeus, segundo Costa (2000, p. 122), situou a

Amazônia no século XIX atrelada a uma imagem de exuberância, diversidade e

exotismo:

A idéia de Amazônia como Inferno ou Paraíso marcou o pensamento de uns ou de outros, conforme a experiência por eles aqui vivida, cruzou com o conteúdo de suas bagagens, em termos de expectativas, preconceitos e visão de mundo. De certa maneira, quase toda a literatura produzida sobre a Amazônia expressava essa dicotomia.

Sabe-se que nas últimas décadas foram levantadas bandeiras, sobretudo

pelos movimentos ecológicos, nas quais a região amazônica é invocada como

reserva mundial de energia, pulmão do mundo; celeiro ou santuário da

biodiversidade mundial e por aí afora. A Amazônia pode ser considerada

atualmente a “marca” brasileira mais conhecida (e vendida) não somente no

exterior, mas também em outras regiões do país, que só conhecem a sua face

exótica.

Os efeitos dessa ótica reducionista são perversos em todos os sentidos,

por reproduzirem, nos próprios brasileiros, o “estranhamento” dos colonizadores

em relação ao paraíso/inferno verde; por desconsiderarem o homem nesse

100

Page 102: Um estranho no espelho

cenário; por obstaculizarem avaliações realistas e investimentos políticos mais

pertinentes e adequados à região e até mesmo a o avanço de estudos científicos

sobre o componente humano desse cenário e os seus saberes.

Essa distorção instaura, segundo Diegues (1997), um neomito, segundo o

qual

o mundo natural tem vida própria, é objeto de estudo e manejo, aparentemente sem participação do homem. O saber moderno se arvora não só em juiz de todo o conhecimento, mas até da proteção de uma natureza “intacta”, portadora de uma biodiversidade sobre a qual a ação humana teria efeitos devastadores. Não é para menos que em todas as áreas naturais protegidas, a pesquisa científica é permitida, mas não o etnoconhecimento, pois esse exige a presença das comunidades tradicionais, do saber, das técnicas patrimoniais e, sobretudo, de uma relação simbiótica entre o homem e a natureza (DIEGUES, 1997, p. 339).

Tal reducionismo, reproduzido no discurso dos entrevistados, é

parcialmente extensivo à visão sobre o Amazonas, pelo qual a grande maioria

manifestou interesse. O uso de frases de efeito como “crescimento e

desenvolvimento”, “organização social e política”, “patrimônio histórico e cultural”,

“história” e “cultura”, ao invés de significarem um dado positivo, possivelmente

denotam a reprodução de um discurso com base no processo educacional, pois é

a escola a fonte onde os sujeitos extraem o que dizem conhecer sobre a história

do Estado.

Não é propósito deste estudo adentrar em um assunto tão complexo

quanto a educação no estado brasileiro, podendo até soar como leviano fazer

inferências ou tecer considerações críticas nesse âmbito, mas abstrair da questão

ao tratar da produção do discurso dos indivíduos que, neste momento preciso,

estão envolvidos no processo educacional, seria ignorar parte do contexto no qual

eles estão inseridos. Opta-se, então, por seguir a linha do pensamento de Morin

(2001) quando insta aos educadores pensar o problema do ensino tendo em

conta os efeitos deletérios da compartimentação excessiva dos saberes sem que

haja, por parte dos estudantes (e possivelmente também de alguns educadores),

suficiente aptidão para contextualizá-los e integrá-los, aptidão essa que precisa

ser desenvolvida.

Assim sendo, considera-se pertinente suscitar questionamento sobre de

que forma a questão regional, tão amplamente defendida e divulgada como

101

Page 103: Um estranho no espelho

prioritária nos parâmetros curriculares nacionais e efetivamente materializada nos

livros didáticos, tem sido abordada nas escolas. Assim também a validade dessa

contribuição para a formação dos alunos, não somente como pessoas que sabem

ou conhecem o assunto, porque o sentido de saber ou conhecer pode ser muito

vago, em se tratando de conteúdo curricular, mas precisamente como pessoas

capazes de pensar sobre o assunto com suficiente clareza e capacidade crítica.

Distante dessa visão estereotipada, a Amazônia de hoje, depõe Oliveira

(2000, p. 21),

é um lugar bem diverso do que era no início do século XX, para não retornar tempos mais remotos, não só porque a floresta, os rios e o solo foram profundamente modificados, mas porque a cultura mudou de modo considerável, a partir da transformação de hábitos e costumes, sobretudo no decorrer das últimas cinco décadas.

Refere-se também o autor às políticas equivocadas de exploração regional,

originárias da malfadada idéia da Amazônia como fonte inesgotável de recursos:

Esse processo evidenciou que a relação homem-natureza que passou a predominar na Amazônia teve e continua tendo como principal característica a tendência à degradação do homem e da natureza. [...] a verdade é que, a persistência do mito da produtividade ilimitada, apesar do vergonhoso fracasso de todas as iniciativas em grande escala para desenvolver a região, constitui-se em um dos mais notáveis paradoxos do nosso tempo, culminando num emaranhado de ações que determinaram novas mediações nas relações sociais, modificadoras não apenas da natureza, mas principalmente dos modos de vida (OLIVEIRA, 2000, p. 21).

Questiona Busato (s.d.) em quais bases está assentado o ideário sobre a

Amazônia, representada em várias instâncias da cultura global brasileira, desde

obras literárias a discursos ambientalistas, principalmente nos livros escolares de

geografia e história, onde ela é entronada como patrimônio nacional e mesmo

patrimônio da humanidade.

Um brasileiro “consome” assim sua dose de Amazônia desde a escola primária e não se pode dizer que ela é ou não suficiente, pertinente ou não; mas pode-se supor que é sobre ela que se alicerçam as representações mentais da Amazônia de cada brasileiro; e sabemos que as representações, por sua vez, constituem a base mental dos comportamentos individuais... (BUSATO, s.d., p. 298).

102

Page 104: Um estranho no espelho

Nas próximas tabelas, tratando da temática indígena e do homem

amazônico, a visão idealizada e didaticamente formulada se insinua como maior

nitidez. Em vista da aproximação com o objeto de pesquisa propriamente dito, as

representações do caboclo, é perceptível certa resistência, ou reserva, por parte

dos sujeitos, em abordar o tema. A noção do “outro” começa a tomar forma.

Tabela 4Você se interessa pela temática indígena? Por quê?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Um pouco, “quando falam do assunto”.

2 MA F negra Não muito.

3 MA F morena Sim, “mas não tenho informações”.

4 PA M moreno Sim, “porque os índios são nossos ancestrais”.

5 AM F branca Sim, porque “foram os índios que deram origem ao Brasil”.

6 RO M negro Sim, porque “demonstra como crescemos aos olhos preconceituosos de muitos”.

7 AM M moreno Sim, porque “é bom saber”.

8 AM M moreno Não, “não tenho interesse”

9 MT F morena Não, porque “não gosto”.

10 MA M branco Não, “não tenho interesse”.

11 AM F branca Não, “não tenho interesse”.

12 AM M pardo Não muito, porque “acho que ninguém avalia muito a cultura indígena”.

13 AM M branco Sim, porque “é uma cultura a ser estudada”.

14 AM M moreno Não, “não tenho interesse.

15 AM M pardo Sim, porque “sou um índio e me interesso pela minha cultura”.

16 AM F moreno Sim, porque “traz um grande aprendizado”.

17 AM F morena Sim, porque “o indígena faz parte do nosso passado e não devemos esquecê-lo, pois foi um dos primeiros a entrar na Amazônia”.

18 AM M moreno Sim, “para adquirir mais conhecimentos”.

19 AM F branca Sim, porque “faz parte da nossa história e a raça indígena é discriminada”.

20 AM M moreno Não, porque “não me interessa”.

21 AM F moreno Sim, porque “é muito importante que conheçamos as nossas origens”.

22 AM F branca Sim, porque “praticamente tudo o que possuímos é herança indígena”.

23 AM M moreno Não, porque “é um assunto que não me chama a atenção”.

24 PA F branca Não, porque “não desperta interesse”.

25 AM F morena Sim, “acho interessante”.

26 AM M branco Sim, “porque se trata de nossos antecessores”.

27 PA F morena Sim, “porque meu pai é índio e sua cultura está sendo esquecida”

28 AM F morena Sim, “pois faz parte de nossas raízes, e as tribos estão sendo extintas”.

29 RR F parda Sim, porque “faz parte da minha cultura, da minha origem”.

30 AM M moreno Sim, pois “gosto de saber sobre esses povos”.

Tabela 5Você tem informações sobre o homem amazônico?

103

Page 105: Um estranho no espelho

Tem interesse por este assunto?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não. Só se interessa “quando passa na televisão”.

2 MA F negra Poucas, “não tenho muita curiosidade”.

3 MA F morena Algumas. Tem interesse porque “sou estudante e preciso estar informada”.

4 PA M moreno Algumas. Interessa-se “pelo tipo de vida”.

5 AM F branca Não, “nem me interessa”.

6 RO M negro Algumas, no “aspecto histórico”. Tem interesse porque “é a nossa história”.

7 AM M moreno Algumas, mas “não me interessa”.

8 AM M moreno Não, “nem me interessa”.

9 MT F morena Não, “não tenho interesse”

10 MA M branco Sim, sobre “o tipo de vida”. Interessa-se porque “é uma forma de aprender a viver na floresta”.

11 AM F branca Algumas. Interessa quando é abordado na escola.

12 AM M pardo Algumas, mas “não interessa muito”.

13 AM M branco Não, “não tenho interesse”

14 AM M moreno Não, “não tenho interesse”

15 AM M pardo Sim, de que “ele adora peixe”. Tem interesse porque “sou um homem amazônico”.

16 AM F moreno Sim, “sobre a vida e a cultura”. Interessa-se porque “é sempre bom saber dessa história que vivemos e que é interessante”.

17 AM F morena Sim. Tem interesse porque “temos que estar por dentro”.

18 AM M moreno Poucas, sobre “cultura e costumes”. Interessa-se porque “é importante estarmos por dentro”;

19 AM F branca Sim, sobre costumes, mas pouco interesse pelo assunto.

20 AM M moreno Algumas, mas não tem interesse.

21 AM F moreno Algumas sobre “costumes e cultura”. Tem interesse porque “vale a pena conhecer a sua origem”.

22 AM F branca Sim sobre “costumes, crenças e religião”, e acha importante “para compreender melhor a formação populacional do Estado em que vivo”.

23 AM M moreno Não, nem interesse, porque “é um assunto que não me chama a atenção”.

24 PA F branca Sim, mas não tem interesse porque “acho algo banal”.

25 AM F morena Não, nem interesse.

26 AM M branco Não, mas se interessa “pela sua cultura”.

27 PA F morena Sim, e também interesse, porque “meu pai e meu tio são ligados a uma organização indígena”.

28 AM F morena Sim, e interesse porque “estou inserida nesta cultura”.

29 RR F parda Sim, e tem interesse porque “faz parte da minha cultura, da minha origem”.

30 AM M moreno Sim, e interessa saber “como vivem e o que fazem”.

Tratando de representações sociais, Ramos (1997) considera que uma de

suas funções é justificar os comportamentos adotados por um determinado grupo.

Convivendo em sociedade o indivíduo incorpora costumes, valores, crenças,

condutas e práticas institucionalizadas no cotidiano, tecidas pelas relações

104

Page 106: Um estranho no espelho

objetivas da sociedade e modifica-se a partir de um conjunto de objetivações

vinculadas ao contexto histórico-social em que está inserido.

Realidade e ficção, abstrato e concreto, se misturam no habitus, forjando

no individuo um modus vivendi vincado na sua existência social. Na sua relação

com o mundo, reforça Jovchelovitch (1997), o sujeito constrói um novo mundo de

significados, desenvolve uma identidade, cria símbolos e se abre para a

diversidade de um mundo de outros.

A questão da diferença é tratada por Arruda (1998) relativamente ao

confronto cultural quando da chegada dos colonizadores à América, tendo o

elemento índio como o representante máximo da alteridade, e como se configurou

a necessidade, por parte dos conquistadores, de construir representações para,

na terminologia de Moscovici (1978), “ancorar” o desconhecido:

O advento da colonização representou um fato crucial para a história da civilização, ao abrir a fenda na unidade essencial do gênero humano, institucionalizando, com a conquista da América, a questão: O outro é humano? [...] A alteridade serviu de fermento para a renovação de repertórios mentais. Urgia formular um novo senso comum que incorporasse a natureza tropical e as populações indígenas (ARRUDA, 1998, p. 19-21).

Quando foi questionado o interesse dos entrevistados pela temática

indígena, um terço demonstrou total desinteresse (8 amazonenses, 1 paraense e

1 maranhense), parcela significativa para uma amostra de 30 sujeitos. O

desinteresse pelo indígena por parte de indivíduos provavelmente ligados a eles

por herança genética, reforça a idéia da existência de um sentimento de não

pertencimento a essa categoria tão aviltada histórica e socialmente.

A fala de uma entrevistada, natural do Pará, exemplifica bem esse sentido

de não pertencimento: ela alega interesse pela temática indígena por conta de

sua filiação: “porque meu pai é índio e sua cultura está sendo esquecida”, no

entanto não parece se incluir nesse universo. É a cultura do seu pai e não a sua

que está sendo esquecida. Outro entrevistado, amazonense, se posiciona da

mesma maneira quando se diz interessado, mas se ausenta do objeto de

interesse: “gosto de saber sobre esses povos”.

105

Page 107: Um estranho no espelho

Por outro lado, emergem da fala dos sujeitos os clichês amplamente

conhecidos e divulgados nos livros didáticos, como “os índios são nossos

ancestrais; “foram os índios que deram origem ao Brasil”; “o indígena faz parte do

nosso passado”; “é muito importante que conheçamos as nossas origens”; tudo o

que possuímos é herança indígena”; “pois faz parte de nossas raízes”; “faz parte

da minha cultura, da minha origem”; etc.

Quando o tema passa a ser “o homem amazônico”, esse sentido de

alteridade se acentua, aumentando o distanciamento dos interlocutores. Essa

negativa de pertencimento é traduzida pelo desinteresse da metade dos

entrevistados e por aqueles que dizem ter interesse por precisam ficar “por

dentro” do assunto porque é uma exigência escolar. A denominação genérica

“homem amazônico” neste trabalho foi proposital, com o intuito justamente de

propiciar a emergência espontânea de ranços e preconceitos que pudessem

eventualmente estar sendo inconscientemente camuflados.

Poder-se-ia esperar que os estudantes vissem na categoria “homem

amazônico” um reflexo de suas histórias e contexto vivencial, pelo menos do

ponto de vista geográfico, do tipo aquele que vive no mesmo habitat, embora de

forma diferente da minha. No entanto, as respostas fazem parecer que o tal

“homem amazônico” é persona non grata no ambiente, remetendo à idéia do

intruso no paraíso, impressão passada por inúmeros viajantes e naturalistas que

percorreram a região amazônica a partir do século XVII. Naquele caso era o índio

o elemento estranho no ambiente paradisíaco idealizado; neste caso o indígena é

de certa forma reintegrado ao seu habitat, na qualidade de habitante legítimo, e o

“homem amazônico” surge como o estranho.

De fato, o elemento indígena assume hoje um papel de destaque no

cenário mundial: é motivo de debate, questionam os seus direitos, tem espaço na

mídia com porta-vozes famosos, tem visibilidade. Em parte porque faz parte

intrínseca do “pacote Amazônia” tipo exportação, por outro lado porque integra o

discurso científico internacional, o que garante a preocupação do governo federal

com a criação e implantação de políticas exclusivas em seu benefício. Se tudo

isso é real ou imaginário, é questão a ser explorada, mas o fato é que esse status

106

Page 108: Um estranho no espelho

confere pelo menos ao “personagem” índio uma situação favorável aos olhos do

homem comum.

Ao contrário, pondera Busato (s.d., p. 312) que

o homem amazônico se apresenta com falhas que a cultura popular dificilmente integra: no caso do índio (as centenas de tribos primitivas, vivendo muito longe dos modos e modas modernos ou vivendo da assistência do Estado), a fantasia se transforma quanto mais em compaixão quando ele se aproxima; contraste tanto maior pelo fato que, no seu estado de natureza, o índio representou uma espécie de ideal, ou de utopia, para muitos modernos, e que ainda hoje ele é considerado com simpatia por essa alma coletiva chamada massa ou opinião pública.

Torres (2003, p. 83) chama atenção para o fato de que essa formação de

idéias no contexto social tem a contribuição de vários mecanismos sociais, e em

se tratando de sociedades onde há manifestação de preconceitos raciais e

étnicos,

as noções de diferença e de hierarquia raciais são inevitavelmente adquiridas na família, na escola, na rua e nas instituições religiosas. Deve-se notar, também, que uma idéia sobejamente valorizada e positivada pelo fascínio com que é levada ao público contribui, efetivamente, para a formação de opinião.

Nas tabelas seguintes adentra-se diretamente no objeto de pesquisa, a

representação do caboclo, primeiramente fazendo referência ao “termo”,

sugerindo uma realidade fora do contexto do entrevistado, para depois

estabelecer relação com um questionamento mais direto, sobre as características

físicas do caboclo, personificado.

A palavra caboclo é uma representação e, segundo Baktin (1979), a

palavra é o primeiro meio da consciência individual, e representação é o modo

pelo qual vemos as coisas. A realidade da palavra constitui o material semiótico

da vida interior, da consciência, do discurso interno, e tem sua origem no

consenso entre indivíduos.

Lima (1999, p. 27) ressalta que o exercício de poder nomear as coisas é

uma forma de expressar a dominação, passando essa nominação a influir no

curso da formação do grupo nomeado: “A definição dos nomes das classes,

107

Page 109: Um estranho no espelho

privilégio dos grupos que ocupam posições superiores, reflete e configura a

estrutura social. [...] o próprio termo caboclo tem na sua etimologia o significado

de alteridade (aquele que vem do mato)”.

Tabela 6O termo “caboclo” é familiar? Você tem informações a respeito?

Este tema interessa a você? Por quê?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena É familiar, mas não tem informações a respeito. Não se interessa pelo assunto porque “não me chama a atenção”.

2 MA F negra É familiar porque é falado na escola que “o caboclo é mistura de raças”. Não se interessa pelo assunto.

3 MA F morena É familiar, mas não tem informações. Não se interessa pelo tema.

4 PA M moreno É familiar, mas não tem informações. Tem interesse no assunto porque “faz parte da nossa vida”.

5 AM F branca É familiar, mas não tem informações. Não se interessa pelo assunto porque “não tenho paciência com essas coisas”.

6 RO M negro É familiar; sabe que “os primeiros caboquinhos amazonenses nasceram do cruzamento do indígena com o branco”. Tem interesse pelo tema porque “é o começo da nossa história”.

7 AM M moreno É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto.

8 AM M moreno É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto.

9 MT F morena É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto porque “tenho coisas mais interessantes pra fazer”.

10 MA M branco É familiar, refere-se a “pessoas que nascem no meio do mato”. Não se interessa pelo assunto.

11 AM F branca É familiar; sabe que “o caboclo é um indígena”. Não se interessa pelo tema.

12 AM M pardo É familiar; sabe que tem relação com “seringueiros”. Tem interesse pelo tema porque “tem a ver com a história e o passado”.

13 AM M branco É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto.

14 AM M moreno É familiar, mas não tem informações. Não tem interesse pelo assunto.

15 AM M pardo É familiar; sabe que os caboclos são “um povo de respeito”. Não tem interesse pelo tema.

16 AM F moreno É familiar; tem informações sobre cultura, religião etc. Tem interesse no assunto porque “temos parte nessa história”.

Tabela 6 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

17 AM F morena É familiar; o caboclo “um homem que mora nos interiores e que ganha a vida através de peixes e colheitas”. Tem interesse no tema porque “o caboclo faz parte da nossa cidade”.

18 AM M moreno Não é familiar; não tem informações a respeito. Tem interesse pelo tema “para aprender mais”.

19 AM F branca É familiar; sabe da “questão da discriminação”. Tem interesse pelo assunto porque “qualquer informação é favorável”.

20 AM M moreno É familiar; tem algumas informações. Tem interesse “pela cultura”.

21 AM F moreno É familiar; tem algumas informações. Tem interesse pelo tema “por fazermos parte dessa origem”.

22 AM F branca É familiar; o caboclo é “a miscigenação do índio com o branco”. Tem interesse pelo assunto porque “é interessante pra poder entender como duas culturas

108

Page 110: Um estranho no espelho

distintas se formam”.

23 AM M moreno É familiar; sabe sobre “sua origem e sua mistura”. Não se interessa pelo assunto porque “não acho que a sociedade julga importante e não atiça o meu interesse”.

24 PA F branca É familiar, tem poucas informações. Tem interesse “para ter uma informação a respeito.”

25 AM F morena Não é familiar; não tem informações a respeito. Não tem interesse.

26 AM M branco Não é familiar e não tem informações. Não tem interesse pelo assunto porque “não é abordado atualmente”.

27 PA F morena É familiar; como “homem da terra”. Tem interesse para “saber mais sobre ele”.

28 AM F morena É familiar; tem algumas informações. Tem interesse pelo tema porque “minha família e eu somos caboclos”.

29 RR F parda É familiar; tem algumas informações. Tem interesse porque “tem a ver com a minha história”.

30 AM M moreno É familiar; tem algumas informações. Tem interesse porque “nós aqui do norte somos denominados assim”.

Perguntados se o termo caboclo soava familiar, a grande maioria

respondeu que sim, com exceção de três entrevistados, todos amazonenses, que

alegaram desconhecimento. Desses, dois opinaram sobre as características

físicas daquele que diziam desconhecer. Doze pessoas disseram que era familiar,

mas não tinham informações a respeito; dezesseis disseram não ter interesse.

Desta vez a metade dos entrevistados manifestou desinteresse pelo tema

“caboclo”, o dobro dos desinteressados pela temática indígena.

Nesse momento a figura do índio aparece em maior relevo que a do

caboclo, quando aquele soa mais familiar do que este, e se poderia supor o

inverso, pelo fato de que o mundo indígena é efetivamente muito mais distante e

diferenciado da realidade do homem amazonense da cidade do que o mundo

caboclo. Isto, mesmo tomando como referência a imagem estereotipada do típico

amazônida que mora em choupana ou palafita, se locomove de canoa e cultiva a

sua horta de subsistência.

Tabela 7Quais as características físicas do caboclo? Você acha bonito o tipo físico?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Cabelos negros, moreno escuro. Não acha bonito “por causa da pouca higiene”.

2 MA F negra Moreno, alto, cabelos lisos e olhos pretos. Acha bonito porque “é diferente”.

3 MA F morena Tipo físico “normal”. É “mais ou menos bonito”; “tem uns bonitos e outros feios”.

4 PA M moreno Forte, geralmente cabelo preto liso. O tipo físico é “normal”.

5 AM F branca Características “iguais de todo mundo”... “bonito ele não é”.

6 RO M negro Características de “uma pessoa que tem traços indígenas e brancos”. Não tem

109

Page 111: Um estranho no espelho

opinião sobre o tipo físico.

7 AM M moreno Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

8 AM M moreno Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

9 MT F morena Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

10 MA M branco Baixo, cabelos lisos, forte, moreno. Acha bonito porque “já acostumei”.

11 AM F branca Negro, cabelos espetados e olhos puxados. Não acha bonito:“é muito diferente”.

12 AM M pardo Moreno, cabelos lisos, olhos amendoados. Não acha bonito: “ninguém merece”.

13 AM M branco Moreno, tipo indígena. Não tem opinião sobre o tipo físico.

14 AM M moreno Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

15 AM M pardo Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

16 AM F moreno Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

17 AM F morena Magro, cabelos “tensos”. Não acha bonito o tipo físico.

18 AM M moreno Não saber dizer as características nem tem opinião sobre o tipo físico.

19 AM F branca Mestiço, olhos negros ou castanhos. Acha bonito: “são pessoas humildes”.

20 AM M moreno Moreno, forte e corajoso. Não acha bonito o tipo físico.

21 AM F moreno Homem “parecido com indígena na fisionomia, jeito etc”. Acha bonito porque “são diferentes e usam pouca roupa”.

22 AM F branca Altura mediana, traços indígenas, pele morena. Não acha bonito o tipo físico.

23 AM M moreno Características “do homem amazônico”. É bonito: “não tenho porque não achar”.

24 PA F branca Moreno, cabelos lisos, forte. Acha bonito “algumas vezes”.

25 AM F morena Estatura média, pele parda, olhos e cabelos escuros. Não acha bonito o tipo.

26 AM M branco Características de “mulato”. Não é bonito porque ‘vivem fora da sociedade”.

27 PA F morena Características “de pessoa normal, mas com costumes diferentes”. Acha bonito.

28 AM F morena Características “de indígena”. Não acha o tipo físico bonito.

29 RR F parda Robusto, forte, trabalhador. Acha o tipo físico bonito.

30 AM M moreno Cabelos lisos, moreno, ombros largos, estatura mediana. Acha bonito o tipo porque “se nós não acharmos, quem vai achar? “

Solicitadas a apontar os traços do caboclo, sete pessoas disseram não

saber precisar suas características físicas, das quais apenas uma não era

amazonense. Dos seis amazonenses, um era pardo e os outros todos morenos,

com características físicas semelhantes às descritas pela maioria, tipificando o

padrão com que o amazônica é conhecido (e reconhecido) - moreno(a), cabelos

lisos, olhos escuros – semelhante ao tipo indígena.

Quando à questão de “beleza”, as opiniões foram variadas. Algumas

chamaram atenção pelo sentido oculto nas palavras. Por exemplo, uma

entrevistada, amazonense, branca, disse achar bonito o tipo físico dos caboclos

porque “são pessoas humildes”. A mesma pessoa apontou como informações que

tem do caboclo “a questão da discriminação”. Tal opinião remete à idéia do

branqueamento proposta por Martius como a “salvação” da raça indígena, e traz à

lembrança a visão do colonizador “penalizado” diante da inferioridade dos índios

em oposição à superioridade da raça caucásica.

110

Page 112: Um estranho no espelho

Um entrevistado justificou que o caboclo não é bonito porque “vive fora da

sociedade”, atrelando o seu conceito de beleza à condição “inferior” do caboclo

por viver, na sua concepção, de modo diferenciado do seu. Essa mesma idéia foi

expressa por Spix e Martius quanto aos índios, que viviam, pela ótica

etnocêntrica, fora da sociedade humana, sendo equiparados a animais. Outro,

parecendo tomar pra si o estereótipo do “caboclo feio”, ao mesmo tempo reage a

essa avaliação discriminatória. Ele acha o caboclo bonito porque “se nós não

acharmos, quem vai achar?”, interroga.“

Essas aparentes contradições são explicadas por Minayo (1997) pelo fato

de que as representações traduzem um pensamento fragmentário, limitando-se a

certos aspectos da experiência existencial, que por si já é contraditória. A visão de

mundo dos indivíduos e grupos, de fato, é uma expressão dos conflitos e

contradições presentes nas condições em que foi engendrada, o que não elimina

a capacidade de se traduzir, com relativa claridade e nitidez, em relação à

realidade.

Castoriadis (1982, p. 318) contribui para aumentar a angústia do

pesquisador, quando diz que representação é “inanalisável” e nos dá apenas a

“multiplicidade inconsistente”, sendo os aspectos captados “nunca são mais do

que transitórios”. “O que não se encontra numa representação” – complementa

ele - “pode talvez nela se encontrar.”

O “viver fora da sociedade” referido pela entrevistada pode ser entendido

também com relação à idéia de localização geográfica do caboclo em um cenário

específico. Segundo Lima (1999) é freqüente em cidades como Belém e Manaus

a referência aos caboclos como a população do interior do Estado. Já nos

municípios, caboclos são os habitantes rurais. Por sua vez a população rural

rejeita o rótulo, transferindo-o aos índios. A classe urbana das cidades também

pode referir-se aos mais pobres como caboclos, sendo comum a rejeição ao

termo por aqueles por ele referidos, em razão do sentido depreciativo a ele

agregado.

111

Page 113: Um estranho no espelho

Por outro lado, pode ser considerado um recurso explicativo a existência de

um arquétipo do caboclo, referido por Lima como um composto dos traços

culturais distintivos do modo de vida do típico amazônida, refletido numa

arquitetura diferenciada, meios de transporte, instrumentos de trabalho,

conhecimento e manejo dos recursos naturais, além de hábitos alimentares,

práticas religiosas, mitologia e maneirismos sociais, traduzindo um estilo de vida

distinto do modo urbano. No entanto, alerta a autora, na verdade o conceito

regional do caboclo ultrapassa essa referência, incluindo estereótipos negativos.

Independente disso, de modo geral a imagem do amazônida típico é

essencialmente rural e ribeirinha, evocando a figura de um homem ligada com o

meio ambiente amazônico.

Um atributo depreciativo comumente associado ao caboclo é de que ele é

“lerdo”, ou “burro”. Outros adjetivos depreciativos, bastante divulgados, são

relativos à preguiça e à indolência, retomando as idéias divulgadas pelos

viajantes e naturalistas a propósito da suposta incapacidade do nativo de “evoluir”

(principalmente em termos econômicos) para alcançar a civilização.

É perceptível também em Manaus a existência, embora velada, de uma

noção de inferioridade intelectual, não somente por parte de estrangeiros, mas

pelos próprios amazonenses, principalmente pessoas mais simples, no sentido de

pouca instrução. Um caboclo amazonense chegar a uma posição social

privilegiada é motivo de admiração, assim como ostentar títulos acadêmicos,

especialmente se for portador dos traços físicos característicos da descendência

indígena. Nas tabelas seguintes pretende-se saber se e até que ponto os sujeitos

são partidários, conscientes ou não, dessas idéias, e de que forma isso se

expressa no seu discurso.

Tabela 8Você concorda com adjetivos como preguiçoso, ignorante e rude (burro),

atribuídos ao caboclo? Por quê?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não.

2 MA F negra Não.

3 MA F morena Não.

4 PA M moreno Não.

112

Page 114: Um estranho no espelho

5 AM F branca Não, porque “somos seres humanos como qualquer outro”.

6 RO M negro Não, “porque todos temos capacidade e só precisamos de oportunidade. Temos esse “título” porque os índios tinham tudo o que queriam da selva, sendo que o que eles precisavam só era ir pegar”.

7 AM M moreno Não tem opinião a respeito.

8 AM M moreno Não tem opinião a respeito.

9 MT F morena Não tem opinião a respeito.

10 MA M branco Não, porque “não é um que faz o todo e a maioria é muito inteligente”.

11 AM F branca Não.

12 AM M pardo Não, porque “são eles que cultivam a borracha”.

13 AM M branco Não tem opinião a respeito.

14 AM M moreno Não tem opinião a respeito.

15 AM M pardo Concorda com o atributo de “preguiçoso”, porque “somos um povo calmo pra tudo”, mas não de “rude” e “leso”, porque “somos espertos e independentes”.

16 AM F moreno Não, porque “não somos melhores que ninguém e não devemos desconsiderar os outros”.

17 AM F morena Não.

18 AM M moreno Não.

19 AM F branca Não.

20 AM M moreno Não, porque “isso é preconceito. Os caboclos são muito trabalhadores”.

21 AM F moreno Não, porque “hoje eles têm escola e estão mais inteligentes”.

22 AM F branca Não, “se fôssemos preguiçosos Manaus não seria o que é hoje. Basta freqüentar as faculdades para constatar a nossa sabedoria”.

23 AM M moreno Não, “basta sair nas ruas pra ver as pessoas trabalhando arduamente pra manter seu sustento, além de que as pessoas estão procurando se habilitar mais ainda, tanto pra aumentar o conhecimento, como no trabalho”.

Tabela 8 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

24 PA F branca Não concorda com o atributo de “preguiçoso” porque “os caboclos são pessoas que trabalham para o seu próprio sustento”, mas acha que são “um pouco rudes”, porque “o grau de escolaridade dos caboclos é muito baixo”.

25 AM F morena Não, porque “as pessoas nem conhecem e vão falando coisas”.

26 AM M branco Não, “os caboclos são pessoas dignas. Estão desmoralizando nossos traços”.

27 PA F morena Não, porque “se fosse verdade não teria cultura amazônica”.

28 AM F morena Não.

29 RR F parda Não, “as pessoas não devem deixar que os outros os agridam”.

30 AM M moreno Não, “muito pelo contrário, o caboclo é muito trabalhador, e isso é pura discriminação”.

Questionados sobre os atributos negativos imputados ao caboclo, apenas

dois disseram concordar parcialmente, um com a pecha de “preguiçoso”, porque

em sua opinião “somos um povo calmo pra tudo”; outro com o adjetivo de “rude”

(no sentido de ignorância), porque “o grau de escolaridade dos caboclos é muito

baixo”. Vale notar que, mesmo os que declararam não conhecer o termo e não ter

interesse no assunto foram veementes em discordar daquela atribuição negativa.

113

Page 115: Um estranho no espelho

Tabela 9Pessoas inteligentes e cultas podem ser classificadas como “caboclas”? Por quê?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não sabe dizer.

2 MA F negra Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

3 MA F morena Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

4 PA M moreno Sim, porque “o caboclo também estuda”.

5 AM F branca Sim, porque “são iguais a todo mundo”.

6 RO M negro Sim, porque “ser caboclo não quer dizer nada”.

7 AM M moreno Não sabe dizer.

8 AM M moreno Não sabe dizer.

9 MT F morena Não, porque “é uma ilusão da cabeça das pessoas”.

10 MA M branco Sim, porque “caboclo é raça”.

11 AM F branca Não, porque “não tem nem comparação”.

12 AM M pardo Sim, porque “todo mundo tem no sangue”.

13 AM M branco Sim, porque “são pessoas sábias”.

14 AM M moreno Não. Não tem opinião sobre o porquê.

15 AM M pardo Sim, porque “os caboclos são inteligentes”.

Tabela 9 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

16 AM F moreno Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

17 AM F morena Não, porque “são pessoas diferentes da vida de um caboclo”.

18 AM M moreno Não, porque “os caboclos não têm muita capacidade”.

19 AM F branca Não, porque “não têm esse tipo de nível”.

20 AM M moreno Não, porque “não tem nada a ver”.

21 AM F moreno Sim, porque “nas veias deles corre sangue de caboclo, por mais que não aceitemos”.

22 AM F branca Sim, porque “não é a raça que faz a sabedoria de um povo”.

23 AM M moreno Sim, porque “apesar da discriminação, toda regra tem exceção”.

24 PA F branca Sim, porque “não depende da raça”.

25 AM F morena Sim, porque “depende da origem da pessoa”.

26 AM M branco Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

27 PA F morena Sim. Não tem opinião sobre o porquê.

28 AM F morena Sim, porque “têm suas raízes e cultura”.

29 RR F parda Sim, porque “inteligência não apaga a cultura nem a origem”.

30 AM M moreno Sim, porque “basta ter conhecimento, para qualquer pessoa, de qualquer raça”.

Sobre a possibilidade de chamar de caboclos a pessoas cultas e

inteligentes, muitos responderam que sim. No entanto quatro pessoas que haviam

discordado dos adjetivos preconceituosos (nºs 11 e 17 a 20), agora afirmam não

ser possível essa relação, porque “não tem nem comparação”; “são pessoas

114

Page 116: Um estranho no espelho

diferentes da vida de um caboclo”; “os caboclos não têm muita capacidade”; “não

têm esse tipo de nível”; “não tem nada a ver”. Essa contradição não é a única que

aparece; outros entrevistados, afirmando uma coisa revelam outra, como aqueles

que dizem que “o caboclo também estuda”; “nas veias deles corre sangue de

caboclo, por mais que não aceitemos”; “apesar da discriminação, toda regra tem

exceção”; “depende da origem da pessoa”, na verdade estão expressando

justamente o contrário do que querer dizer ao responderem que caboclos podem

ser inteligentes e cultos sob determinada condição.

Spink (1997) orienta que o distanciamento cronológico é importante e

necessário para que o pesquisador possa se aproximar dos conteúdos do

imaginário social, conseqüentemente dos componentes mais estáveis das

representações:

Quanto mais englobarmos em nossa análise o tempo longo – e, portanto, os conteúdos do imaginário social – mais nos aproximaremos das permanências que formam os núcleos mais estáveis das representações. No sentido oposto, quanto mais nos ativermos ao aqui-e-agora da interação, mais no defrontaremos com a diversidade e a criação. [...] Ao aprofundarmos a análise do senso comum, deparamo-nos não apenas com a lógica e com a coerência, mas também com a contradição (SPINK, 1997, p. 122-3).

Goffman (1975), por seu turno, chama atenção para o cuidado que se deve

ter na tentativa de compreender uma representação. Em razão da característica

de impulsividade própria do ser humano,

devemos estar capacitados para compreender que a impressão de realidade criada por uma representação é uma coisa delicada, frágil, que pode ser quebrada por minúsculos contratempos. A coerência expressiva exigida nas representações põe em destaque uma decisiva discrepância entre nosso eu demasiado humano e nosso eu socializado. Como seres humanos somos, presumivelmente, criaturas com impulsos variáveis, com estados de espírito e energias que mudam de um momento para outro (GOFFMAN, 1975, p. 58).

Essas orientações se mostram perfeitamente adequadas, na medida em

que as questões são colocadas aos entrevistados e as suas respostas oscilam

entre ver-se dentro e fora da categoria caboclo, de acordo com a dimensão

pessoal ou social que está sendo realçada.

115

Page 117: Um estranho no espelho

Tabela 10Os caboclos estão inseridos em todas as classes sociais? Predominam em qual?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Sim. Predominam na classe pobre.

2 MA F negra Sim. Não sabe em qual predominam.

3 MA F morena Sim. Predominam nas mais humildes.

4 PA M moreno Sim. Predominam nas mais pobres.

5 AM F branca Sim. Predominam nas sociedades ricas.

6 RO M negro Sim, sem predominar em nenhuma.

7 AM M moreno Não sabe dizer.

8 AM M moreno Não sabe dizer.

9 MT F morena Não sabe dizer.

10 MA M branco Sim, sem predominar em nenhuma.

11 AM F branca Não. Não sabe em qual predominam.

Tabela 10 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

12 AM M pardo Sim, sem predominar em nenhuma.

13 AM M branco Sim, sem predominar em nenhuma.

14 AM M moreno Sim. Predominam “na classe pobre do interior do estado”.

15 AM M pardo Sim, sem predominar em nenhuma.

16 AM F moreno Sim. Não sabe em qual predominam

17 AM F morena Não. Predominam “nas classes baixas”.

18 AM M moreno Sim. Não sabe em qual predominam

19 AM F branca Não, estão somente “na de baixa renda”.

20 AM M moreno Sim. Predominam na classe “pobre”.

21 AM F moreno Sim. Não sabe em qual predominam

22 AM F branca Não. Predominam “nas classes mais baixas, como operário ou como simples patrão, devido à discriminação que sofre”.

23 AM M moreno Sim. Predominam na classe “dos inferiorizados pela sociedade”.

24 PA F branca Não. Predominam na “classe baixa”.

25 AM F morena Sim. Não sabe em qual predominam.

26 AM M branco Não, porque “são da floresta”.

27 PA F morena Sim. Não sabe em qual predominam.

28 AM F morena Sim. Não sabe em qual predominam

29 RR F parda Sim. Predominam na “classe média”

30 AM M moreno Sim. Predominam “nas de baixo nível financeiro, porque é uma classe que sofre preconceitos”.

Em resposta à pergunta sobre a inserção social do caboclo, um número

significativo de entrevistados reforçou a secular associação do caboclo à pobreza,

situando-o predominantemente nas classes “de baixo nível financeiro”, de “baixa

renda”, “pobre”, “nas mais humildes” etc.

116

Page 118: Um estranho no espelho

Lima (1999) alega que a “pobreza” ligada ao termo caboclo é um conceito

cultural, relacionado a uma expectativa de vida e performance econômica e social

mais elevada do que a experimentada pelo chamado caboclo, expectativa essa

originada na intenção colonial de estabelecer um campesinato na Amazônia, tida

como um celeiro de riquezas a serem exploradas materialmente. Daí a grande

frustração em relação à “improdutividade” do caboclo em meio a esse manancial,

estendendo-se a ele os preconceitos relativos à ociosidade, em oposição a

produtividade, e indolência, relativo às suas modestas condições econômicas e

de moradia.

É possível inferir nesse desdobramento temporal do preconceito o

processo de objetivação concebido por Moscovici, por meio do qual uma

representação é cristalizada. Nesse processo, de acordo com Sá (1998), noções

abstratas são transformadas em imagens e seu conteúdo, descontextualizado,

compõe um núcleo figurativo pelo qual as imagens são transformadas em

elementos da realidade, ou seja, uma abstração torna-se algo quase físico no

processo de objetivação.

Percebe-se, então, que o atributo de “preguiçoso”, assim como a noção de

“pobreza” ligada ao caboclo, têm uma dimensão muito maior do que simples

“xingamento”. Envolvem processos sócio-econômicos e políticos históricos, e

trazem a marca da visão discriminatória do colonizador em relação ao colonizado

que não se enquadrou nas suas expectativas, revelando concepções

engendradas em uma época determinada que perduram subliminarmente no

imaginário atual. Essas representações, segundo Minayo (1997, p. 174),

são mais abrangentes em termos da sociedade como um todo e revelam a visão de mundo de determinada época, são as concepções das classes dominantes dentro da história de uma sociedade. [...] elas são uma mistura das idéias das elites, das grandes massas e também das filosofias correntes, e expressão das contradições vividas no plano das relações sociais de produção. Por isso mesmo, nelas estão presentes elementos tanto da dominação como da resistência, tanto das contradições e conflitos como do conformismo.

Essa hipótese é reforçada por Spink (1997, p. 122), quando afirma ser

consenso entre os pesquisadores da área a idéia de que as representações

sociais, enquanto produtos sociais, “têm sempre que ser remetidas às condições

sociais que as engendraram, ou seja, o contexto de produção, definido não

117

Page 119: Um estranho no espelho

apenas pelo espaço social em que a ação se desenrola como também a partir de

uma perspectiva temporal”.

Lima (1999) aponta a equivalência entre o termo caboclo e o termo índio, e

ressalta a validade de estabelecer analogia entre os conceitos, na tentativa de

compreensão do porquê o termo índio ganhou sentido concreto e foi aceito por

quem o recebeu, e o termo caboclo é amplamente rejeitado, considerando que

ambos são essencialmente rótulos de identificação, podendo ser ou não usados

para a auto-identificação. A explicação, em sua opinião, pode vir do fato de que o

caboclo possivelmente representa a desilusão de uma Amazônia civilizada,

estando o tema da pobreza diretamente associado com o caboclo, enquanto o

índio não é julgado pobre.

Assim como o termo caboclo, o termo índio foi atribuído como uma

categoria genérica de identificação utilizada pelos não-índios, sem relação com os

povos indígenas referidos, não tendo até pouco tempo a sentido político de hoje.

Também o ameríndio, segundo Lima, foi muitas vezes tido como preguiçoso ou

“inapto para a civilização”, mas essas características eram explicadas por sua

distinção étnica, que justificava um comportamento econômico diferente do

comportamento do branco. A diferença étnica foi, e em muitos locais da Amazônia

ainda é, vista em termos evolutivos, quando a tal “indolência” do ameríndio é

considerada resultado do “primitivismo” de sua raça, visões essas antigos

constituintes do imaginário sobre esses povos.

Para Castoriadis (1982, p. 192) não se pode compreender o que foi o que é

a história humana, fora da categoria do imaginário, pois o simbolismo escolhido

em cada sociedade tem implicações que ultrapassam o real e o racional,

repousando nas elaborações imaginárias muitas respostas acerca das questões

sobre a identidade coletiva, o que indica a necessidade de buscar a compreensão

do lócus, espaço do imaginário onde cada sociedade se constrói e se espelha.

“Não podemos compreender uma sociedade sem um fator unificante, que fornece

um conteúdo significado e o entrelace com as estruturas simbólicas.”

Também Torres (2003) refere-se à importância do conhecimento do

imaginário para a compreensão do mundo e da cultura dos atores sociais,

118

Page 120: Um estranho no espelho

ressaltando a interrelação entre os níveis subjetivo e objetivo nessa composição.

Segundo ela:

O mundo social-histórico é um espaço prenhe de significações simbólicas. Há um verdadeiro entrelaçamento do mundo concreto resultante de processos históricos, materialmente determinado, com o mundo subjetivo construído pelas representações do imaginário, também históricas. É possível que em determinado momento a realidade vivida e experimentada nas e pelas consciências dos sujeitos, se choque com os dois níveis do seu mundo imaginário: o subjetivo e o objetivo. [...] Em vários momentos a história e o imaginário se confundem. Pode-se dizer que o imaginário se situa no campo das mediações entre a concreticidade da vida real e as representações que os sujeitos produzem de si e do mundo (TORRES, 2003, p. 57).

Essa construção mediada entre a vida concreta e a representada pessoal e

socialmente à qual se refere Torres é, mais uma vez, insinuada nas respostas

sobre a existência, ou não, de atitudes discriminatórias para com os caboclos em

Manaus. Isso com relação aos próprios moradores da cidade, sem discriminação

de origem, e por parte dos “de fora”, pessoas de outros Estados brasileiros ou

mesmo estrangeiros.

Tabela 11Existe discriminação para com os “caboclos” em Manaus?

Por que você acha isso?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F Morena Não.

2 MA F Negra Sim, porque dizem “que aqui só tem índio”.

3 MA F morena Não.

4 PA M moreno Sim, porque “as pessoas do sul se acham superiores”.

5 AM F branca Sim, “por parte das famílias ricas, porque são pessoas mesquinhas”.

6 RO M negro Sim, mas não sabe explicar por que.

7 AM M moreno Não.

8 AM M moreno Sim, mas não sabe explicar por que.

9 MT F morena Não sabe dizer.

10 MA M branco Sim, porque “os caboclos são discriminados pela aparência”.

11 AM F branca Sim, mas não sabe explicar por que.

12 AM M pardo Sim, “pelos estrangeiros”, porque “eles se acham melhores”.

13 AM M branco Não sabe dizer.

14 AM M moreno Sim, “de vários tipos”, porque “os caboclos são tratados mal”.

15 AM M pardo Não.

16 AM F moreno Sim, porque “tem muitas pessoas que se acham melhores e não reconhecem que também fazem parte disto. Hoje muitas já perderam a sua dignidade”.

119

Page 121: Um estranho no espelho

17 AM F morena Sim, “como pessoas analfabetas”, porque “muitos deles vêm dos interiores e não têm estudo”.

18 AM M moreno Não.

19 AM F branca Sim, “pela falta de condições dos caboclos”.

Tabela 11 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

20 AM M moreno Sim, “por causa do racismo” e porque “não dão oportunidade”.

21 AM F moreno Sim, porque “as pessoas tomam as terras que eles têm direito”.

22 AM F branca Sim, porque “muitas pessoas negam suas origens e valorizam só o que vem de fora. Os caboclos são mal vistos pela sociedade e muitas pessoas acreditam que pessoas do interior são limitadas de conhecimento, e que só sabem plantar e colher”.

23 AM M moreno Sim, porque “a sociedade separa os bons dos maus”.

24 PA F branca Sim, porque “existe muita ignorância das pessoas e os caboclos sentem dificuldade ao procurar emprego com alto grau de intelectualidade”.

25 AM F morena Sim, porque “são pessoas com origem e costumes indígenas e a sociedade não sabe que não precisa ser igual pra ter seu valor respeitado”.

26 AM M branco Sim, “por causa da sua raça e do seu comportamento”.

27 PA F morena Sim, porque “há muita gente irônica e racista que não se conforma com sua origem”.

28 AM F morena Sim, “de alguns”.

29 RR F parda Sim, como “índio, burro e outras coisas, porque as pessoas nem sabem o que significa o termo”.

30 AM M moreno Sim, “por causa da aparência. Já vi caboclos inteligentes perderam o emprego por não ter aparência do tipo branco, olhos claros etc.”

Tabela 12Você acredita que há preconceito por parte dos “de fora” para com

o caboclo amazonense? Por que você acha isso?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Sim, “pelo tipo de roupa que usam” (os caboclos).

2 MA F negra Sim, “falam que aqui só tem índio”.

3 MA F morena Sim, “criticam as diferenças”.

4 PA M moreno Sim, “falam mal do caboclo”.

5 AM F branca Sim, “pessoas de fora acham que somos tudo índio”.

6 RO M negro Sim, “nos acham inferiores”.

7 AM M moreno Não sabe.

8 AM M moreno Sim, não sabe dizer de que tipo.

9 MT F morena Não sabe.

10 MA M branco Sim, “acham que todo caboclo é burro por causa do passado”.

11 AM F branca Não.

12 AM M pardo Sim, “eles se acham melhores”.

13 AM M branco Sim, não sabe dizer de que tipo.

120

Page 122: Um estranho no espelho

14 AM M moreno Sim, “são tratados mal”.

15 AM M pardo Sim, “não dão valor ao caboclo”.

Tabela 12 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

16 AM F moreno Não sabe.

17 AM F morena Sim, “acham que os caboclos amazonenses são analfabetos”.

18 AM M moreno Sim, “acham que todo mundo é índio porque não estão ligados no nosso dia-a-dia”.

19 AM F branca Sim, não sabe dizer de que tipo.

20 AM M moreno Não.

21 AM F moreno Sim, “acham que os caboclos ainda usam arco e flecha”.

22 AM F branca Sim, não sabe dizer de que tipo.

23 AM M moreno Sim, porque “sabem apenas sobre sua cultura e sua tecnologia e somos discriminados pela cor”.

24 PA F branca Sim, não sabe dizer de que tipo.

25 AM F morena Sim, “pensam que só porque são de fora são melhores”.

26 AM M branco Sim, “por causa da sua raça”.

27 PA F morena Sim, porque “eles não têm senso”

28 AM F morena Sim, “eles pensam que na Amazônia só existe índio”.

29 RR F parda Sim, “pensam que somos todos índios, e ainda por cima sem inteligência”.

30 AM M moreno Sim, “eles acham que aqui só existem bichos pelas ruas, malocas e índios, pois é isso que é divulgado da região”.

Pode-se dizer que as questões sobre discriminação mobilizaram bastante

os entrevistados, mesmo aqueles que disseram não ter interesse pelo assunto, e

até alguns que haviam dito não conhecer o termo caboclo. Estereótipos ligados à

idéia de pobreza, pouca inteligência, má aparência (ou feiúra mesmo), classe

social inferior etc, podem ser facilmente identificados, no caso como provindo de

outros, que não os sujeitos da pesquisa. Apenas dois não opinaram, e cinco

acreditam que não exista discriminação, tendo a grande maioria afirmado que os

caboclos, incluindo-se ou não eles próprios na categoria, são discriminados de

alguma forma.

Quanto à discriminação ou preconceito pelos “de fora, o resultado foi

semelhante, observando-se nesse caso predominância de comparações

negativas com relação à inferioridade intelectual e a classificação aos caboclos na

categoria de índios, soando com um sentido de rebaixamento. Vale ressaltar que

essa grande maioria que antes havia se colocado em posição distanciada da

categoria em foco, agora inconscientemente nela se insere, contrapondo-se

121

Page 123: Um estranho no espelho

imediatamente à identificação como índio, rebaixado a um status inferior ao

depoente. O índio idealizado deixa de existir e a “triste figura” do nativo detratado

pelos naturalistas, hoje desarticulado de suas tradições e confinado em reservas,

parece se sobrepor.

Sobressai pelo que parece, uma necessidade de incorporar o papel social

mais vantajoso no momento, o que é explicado por Goffman (1985) como uma

tendência comum quando o indivíduo se apresenta diante dos outros. Nessa

situação seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores

oficialmente reconhecidos pela sociedade.

A propósito, Torres (2003, p. 90) observa a existência de um conflito, e

mesmo de vergonha quanto à assunção de uma identidade étnica na Amazônia:

Assumir a identidade étnica e viver a condição humana de índio, caboco, negro e mulher na Amazônia – onde a dominação e as relações de poder têm endereços bem definidos – implica enfrentamento com as estruturas de poder. [...] A espoliação dos povos indígenas parece ter levado os nativos a vivenciarem duas situações: a primeira está relacionada a uma atitude crítica frente às relações de poder por parte daquelas pessoas que assumem a sua identidade étnica. A consciência de si, de sua raça e de sua condição social possibilitam ao sujeito uma percepção mais abrangente em relação à sociedade e à história, e vai aclarando à medida que se caminha nessa história. A segunda vincula-se ao aspecto de vergonha que muitos nativos têm de suas origens. E não cause espanto constatar que a vergonha étnica atinge um universo significativo na Amazônia.

Na construção de identidades, reforça Castells (2000, p. 24), utiliza-se

“matéria-prima fornecida pela história, geografia, instituições produtivas e

reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais”, sendo os

significados em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em

sua estrutura social.

[...] em linhas gerais, quem constrói a identidade coletiva, e para quê essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como de seu significado para aqueles que com ela se identificam ou dela se excluem.”

Essa forma de enxergar, de ver o outro como alguém que nada tem a ver

com a gente, quando na verdade “a alteridade atravessa o que somos”

122

Page 124: Um estranho no espelho

(JOVCHELOVITCH, 1997, p. 81), poderia ser interpretada, talvez, como uma

forma de distanciamento ou não-reconhecimento em si mesmo de semelhanças

com esse outro socialmente estigmatizado.

As tabelas 13 e 14 mostram as respostas sobre valorização social e

pessoal.

Tabela 13Você acha que o caboclo amazonense se sente socialmente valorizado? Por

quê?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não, “as pessoas de fora acham que não temos educação”.

2 MA F negra Sim, “porque têm a sua própria cultura”.

3 MA F morena Sim, não sabe explicar porque.

4 PA M moreno Não, não sabe explicar porque.

5 AM F branca Não, porque “há discriminação”.

6 RO M negro Não, não sabe explicar porque.

7 AM M moreno Não sabe.

8 AM M moreno Não sabe.

9 MT F morena Não sabe.

10 MA M branco Sim, porque “tem escola, hospital, trabalho...”.

11 AM F branca Sim, não sabe explicar porque.

12 AM M pardo Não sabe.

13 AM M branco Não, não sabe explicar por que.

14 AM M moreno Não, não sabe explicar por que.

15 AM M pardo Não, não sabe explicar por que.

16 AM F moreno Não, “geralmente eles são desvalorizados pelos outros”.

17 AM F morena Não, não sabe explicar por que.

18 AM M moreno Sim, não sabe explicar por que.

19 AM F branca Não, porque “os caboclos não têm valor social”.

20 AM M moreno Não, “por causa das diferenças”.

21 AM F moreno Não, porque “ainda hoje discriminam muito as pessoas por achar que deviam morar no mato”.

22 AM F branca Não, porque “é difícil encontrar alguém do interior ou daqui em uma classe social elevada”.

23 AM M moreno Não, “a prova tá aí, no dia a dia”.

24 PA F branca Não, “porque na sociedade se tira somente a sua cultura, mas seus valores como pessoas são negados”.

25 AM F morena Sim, porque “está ganhando respeito”.

Tabela 13 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

26 AM M branco Não, “porque não podem mostrar sua capacidade”.

27 PA F morena Não, “porque é cada vez mais esquecido com o passar dos anos”.

123

Page 125: Um estranho no espelho

28 AM F morena Não, “porque a valorização é financeira, e isso não tem”.

29 RR F parda Não, “porque são tratados com descaso, com ironia”.

30 AM M moreno Não, “porque vive numa região pouco divulgada e valorizada”.

Tabela 14Você acha que o caboclo amazonense se dá valor pessoal

ou socialmente? Por quê?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não, não sabe explicar por que.

2 MA F negra Sim, porque “têm a sua própria cultura”.

3 MA F morena Sim, não sabe explicar por que.

4 PA M moreno Não, porque “acostumou achar que é inferior”.

5 AM F branca Não, “as pessoas têm vergonha do que são”.

6 RO M negro Não, “porque muitas vezes ele nem admite o que é”.

7 AM M moreno Não sabe.

8 AM M moreno Não sabe.

9 MT F morena Não sabe.

10 MA M branco Sim, porque “não se rebaixam nas opiniões”.

11 AM F branca Sim, não sabe explicar por que.

12 AM M pardo Não sabe.

13 AM M branco Sim, não sabe explicar por que.

14 AM M moreno Não, não sabe explicar por que.

15 AM M pardo Não, não sabe explicar por que.

16 AM F moreno Depende, “alguns se dão valor, outros não”.

17 AM F morena Sim, “porque falam mal dele e ele tenta provar o contrário”.

18 AM M moreno Sim, “eles são muito esforçados”.

19 AM F branca Sim, “porque trabalha para seu próprio sustento”.

20 AM M moreno Não, “por causa das diferenças”.

21 AM F moreno Não, “porque se acha discriminado e esconde sua origem”.

22 AM F branca Sim, “muitos tentam mostrar que são capazes mesmo em meio ao preconceito”.

23 AM M moreno Sim, “porque luta pra mostrar o seu valor à sociedade”.

24 PA F branca Sim, “eles tentam de alguma forma mostrar que são pessoas que querem e devem ter os mesmos direitos que as outras”.

25 AM F morena Sim, “está ganhando respeito”.

26 AM M branco Sim, “porque lutam para sustentar sua família”.

Tabela 14 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

27 PA F morena Não, “porque as pessoas de fora discriminam e tem gente que prefere não ser discriminado”.

28 AM F morena Sim e não, “depende do seu esforço para trabalhar e estudar”.

29 RR F parda Sim, “muitos estão tentando se valorizar mais”.

30 AM M moreno Sim, “porque cumpre bem com seus deveres e regras”.

124

Page 126: Um estranho no espelho

Questionados sobre se acreditavam que o caboclo se sentia valorizado

socialmente, a grande maioria respondeu que não, o que reforça a inferência de

que, neste momento, alguns entrevistados provavelmente estão se colocando no

papel de caboclos. Uma entrevistada do sexo feminino, cor branca (nº 19),

amazonense, que anteriormente disse achar os caboclos bonitos porque eram

“pessoas humildes”, e nas respostas subseqüentes parece ter reforçado esse

“olhar colonizador”, agora reafirma esta posição (tabela 13), ao afirmar que os

caboclos não são valorizados socialmente porque “os caboclos não têm valor

social”.

Sendo as características físicas um forte indicativo de distinção social em

nosso meio, a diferença de cor da pele pode significar um “salvo-conduto” para

fora de uma classificação que estigmatiza e é socialmente desvantajosa. A tese

do branqueamento como forma de aperfeiçoamento racial, tem eco na

supervalorização do padrão ariano como ideal estético que ainda vigora no país, a

despeito dos esforços em sentido contrário. Diz Torres (2003, p. 111), que é

importante ser lembrado que a idéia de raça “brota de uma construção mental

forjada para fundamentar um novo padrão de poder, o poder mundial de padrão

branco. Raça, etnia, povo, população são conceitos convergentes que engendram

relações de poder.”

Não se pretende tomar a entrevistada como bode expiatório e exemplo de

racismo, mas evidenciar um tipo de preconceito que existe efetivamente aqui

como em qualquer lugar do Brasil, e se fortalece insidiosamente nas relações

cotidianas. Complementa Torres que:

O racismo é adquirido muito cedo na infância e implica na classificação de categorias raciais: índio, caboco, mameluco, negro, cafuzo... Desde cedo, as crianças são levadas a perceber similaridades e diferenças nas pessoas e essa percepção desencadeia um processo de categorização. O problema não está na categorização, pois vivemos num país que inclui no seu espaço territorial diferentes nações. A questão central consiste em perceber a base do racismo construída na família, onde a aprendizagem do mundo social se dá através de um processo educativo de nomeação dos indivíduos e coisas (TORRES, 2003, p. 112).

125

Page 127: Um estranho no espelho

Sobre a auto-valorização do caboclo, a metade acredita que o caboclo se

valoriza, ou pelo menos tenta se valorizar. Sobressaiu nas respostas positivas a

imagem de alguém que “luta” pra mostrar seu valor, pra melhorar sua condição

intelectual e econômica, que não se rebaixa etc, como uma espécie de reação

emocional a um sentimento de opressão.

Nas tabelas 15 e 16 procurou-se identificar se o termo é de uso comum no

contexto dos entrevistados; como eles vêem ou o fazem uso do mesmo.

Tabela 15Você já viu alguém se sentir incomodado (a) por ser chamado

de caboclo (a)? Qual foi a reação?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não.

2 MA F negra Sim, “reagiu agressivamente”.

3 MA F morena Sim, “a reação foi ruim”.

4 PA M moreno Sim, “não ficou satisfeito”.

5 AM F branca Sim, mas não lembra a reação.

6 RO M negro Sim, mas não sabe explicar a reação.

7 AM M moreno Não.

8 AM M moreno Não.

9 MT F morena Não.

10 MA M branco Sim, “a pessoa saiu do local”.

11 AM F branca Sim, “a pessoa ficou agressiva”.

12 AM M pardo Sim, “ficou aborrecido”.

13 AM M branco Sim, “ficou com raiva”.

14 AM M moreno Não.

15 AM M pardo Sim, “ficou ofendido”.

16 AM F moreno Sim, “várias pessoas”; a reação foi de agressividade.

17 AM F morena Sim, “ficou triste, de cabeça baixa”.

Tabela 15 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

18 AM M moreno Sim, “reagiu com violência”.

19 AM F branca Sim, “reagiu com raiva”.

20 AM M moreno Sim, “ficou com raiva”.

21 AM F moreno Sim, “teve uma reação explosiva”

22 AM F branca Sim, “a pessoa ficou com vergonha”.

23 AM M moreno Não.

24 PA F branca Não.

126

Page 128: Um estranho no espelho

25 AM F morena Não.

26 AM M branco Sim, “a pessoa ficou magoada”.

27 PA F morena Não.

28 AM F morena Sim, “ficou zangado”.

29 RR F parda Sim, “já vi várias pessoas ficarem zangadas”.

30 AM M moreno Não.

Tabela 16Você já usou o termo caboclo no sentido pejorativo?

Tendo sido usado, por que e em que sentido?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Sim, mas não lembra o sentido.

2 MA F negra Não.

3 MA F morena Não.

4 PA M moreno Não.

5 AM F branca Não.

6 RO M negro Sim, “pra xingar uma pessoa”, porque “somos todos preconceituosos”.

7 AM M moreno Não.

8 AM M moreno Não.

9 MT F morena Não.

10 MA M branco Sim, “para humilhar a pessoa”, porque “estava com raiva e não me controlei”.

11 AM F branca Sim, mas não lembra o sentido.

12 AM M pardo Sim, “por brincadeira”, no sentido de “rebaixar um pouco a pessoa”.

13 AM M branco Sim, “para humilhar”.

14 AM M moreno Não.

15 AM M pardo Não.

16 AM F moreno Não.

17 AM F morena Não.

18 AM M moreno Não.

Tabela 16 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

19 AM F branca Não.

20 AM M moreno Não.

21 AM F moreno Não.

22 AM F branca Sim, “pra fazer raiva”.

23 AM M moreno Não.

24 PA F branca Não.

25 AM F morena Não.

26 AM M branco Sim, “pra desmoralizar a pessoa”

27 PA F morena Não.

28 AM F morena Não.

29 RR F parda Sim, “sem querer”.

127

Page 129: Um estranho no espelho

30 AM M moreno Não.

Dois terços dos sujeitos, inclusive alguns que negaram a familiaridade com

o termo, afirmaram já ter visto alguém se sentir incomodado ou ofendido por ter

sido chamado de caboclo, confirmando o uso pejorativo do termo de que fala

Lima (2003) e outros estudiosos. As reações foram de raiva, vergonha, mágoa,

tristeza, aborrecimento e até revide, o que atesta o conteúdo ideológico que o

termo ainda carrega, mobilizada pelo interlocutor como um instrumento de

agressão ao outro.

Quanto ao uso do termo pelos entrevistados no sentido pejorativo, a maior

parte alegou não ter feito uso do mesmo desta forma, e aqueles que o fizeram,

declararam a intenção de “humilhar”, “rebaixar”, “xingar” e “desmoralizar” o

interlocutor.

No uso pejorativo, a palavra traz consigo toda a carga secular de

preconceito que tem sido lançada contra o ameríndio pelo simples fato dele

“existir” fora dos padrões concebidos e institucionalizados como os melhores e

mais adequados a uma forma social de vida conhecida como “civilização”. Esse

“outro” aparece aqui numa relação de alteridade que não se refere ao objeto

visado em sua essência, mas sim como uma qualificação que lhe é atribuída do

exterior, em termos de tipificação desvalorizante e estereotipada do diferente.

Nessa construção, analisa Jodelet (1998, p. 51), “se movem interesses que

servem à comunidade, no interior da qual se define a identidade”. Para ela,

a passagem do próximo ao alter implica o social, através da pertença ao grupo que é o palco dos processos e práticos da transformação em alteridade... [...] É levando em conta os processos, simbólicos e práticos, de marginalização que se pode estudar a alteridade como forma específica de relação social, superando a sua definição puramente negativa de que o outro não é o mesmo (JODELET, 1998, p. 51).

Lima (1999) se reporta à etimologia considerada por ela mais adequada ao

termo, chamando a atenção para os aspectos históricos que hoje definem o

sentido de alteridade, pois na Amazônia da época da colonização caboclo foi

inicialmente usado como sinônimo de tapuio, termo genérico usado pelos próprios

128

Page 130: Um estranho no espelho

índios para referir-se a indivíduos de outros grupos no sentido de desprezo. Tal

como tapuio, o termo caboclo expressa uma espécie de expatriação, de

banimento, de exclusão.

Tabela 17Alguém já chamou você de caboclo(a)?

Como você se sentiu ao ser chamado(a) assim?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Não.

2 MA F negra Não.

3 MA F morena Não, “porque não sou”.

4 PA M moreno Sim, “não me incomodei porque sou da terra”.

5 AM F branca Não.

6 RO M negro Sim, “não me senti à vontade porque causou uma impressão de inferioridade”.

7 AM M moreno Não.

8 AM M moreno Não.

9 MT F morena Não.

10 MA M branco Sim, “mas não me incomodei porque sei que isso não é feio”.

11 AM F branca Não.

12 AM M pardo Sim, “não me senti ofendido”.

13 AM M branco Não.

14 AM M moreno Não.

15 AM M pardo Sim, “achei normal”.

16 AM F moreno Sim, várias vezes. “Me senti à vontade porque faço parte”.

Tabela 17 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

17 AM F morena Não.

18 AM M moreno Sim, “fiquei constrangido”.

19 AM F branca Sim, “achei normal”.

20 AM M moreno Não.

21 AM F moreno Sim, “mas não liguei”.

22 AM F branca Não.

23 AM M moreno Não.

24 PA F branca Não.

25 AM F morena Não.

26 AM M branco Não.

27 PA F morena Não.

28 AM F morena Não.

29 RR F parda Sim, “fiquei com raiva, mas não sabia o que significava na época”.

30 AM M moreno Não

129

Page 131: Um estranho no espelho

Perguntados se já tinham sido referidos pelo termo, a maioria declarou que

não. Outros consideraram normal serem chamados pelo termo e poucos disseram

ter sentido incômodo com a referência. Um dos entrevistados (nº. 6), que havia

usado o termo para “xingar” uma pessoa, se sentiu “inferiorizado” quando foi

tratado dessa forma, reforçando a afirmação de Lima (1999), compartilhada por

Wagley (1985), sobre o uso freqüente do termo como categoria relacional,

podendo ser aplicado a qualquer grupo social ou pessoa, indicando uma

consideração de status inferior para quem é referido e uma afirmação de

identidade superior para quem está falando.

Relacionando as respostas com aquelas sobre preconceito e valorização,

pode-se inferir a possibilidade desse tipo de ocorrência estar sendo camuflado,

pelo fato de que, assumindo ter sido referido dessa forma, implica em ser

identificado socialmente como tal, o que seria uma admissão de desprestígio,

considerando a carga negativa do termo.

A nominação, como a nomeação, é um ato de definição de identidades e atributos sociais. No caso de uma palavra com sentido de exclusão como caboclo (em muitos aspectos o pária da sociedade colonial amazônica), o nome atribui uma identidade que prende o grupo e os sujeitos a uma imobilidade social. A permanência do nome restringe as possibilidades de emancipação (LIMA, 1999, p. 27).

As tabelas 18 e 19 mostram a quem os entrevistados atribuem a

“identidade” cabocla, se a um tipo específico ou a todos os amazonenses.

Tabela 18Que tipo de pessoa você identifica como sendo um “caboclo”?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena “Minha mãe”.

2 MA F negra Não sabe dizer.

3 MA F morena “Os habitantes da terra”

4 PA M moreno “O homem do interior”.

5 AM F branca “Todos nós”.

6 RO M negro “Somos todos nós”.

7 AM M moreno “Os ribeirinhos”.

8 AM M moreno Não sabe dizer.

9 MT F morena Não sabe dizer.

10 MA M branco “Uma pessoa que trabalha e mora na floresta”.

11 AM F branca Não sabe dizer.

12 AM M pardo Não sabe dizer.

130

Page 132: Um estranho no espelho

13 AM M branco Não sabe dizer.

14 AM M moreno Não sabe dizer.

15 AM M pardo “Pessoa de garra, de fibra”.

16 AM F moreno “Pessoas que não perderam seus costumes e suas origens”.

17 AM F morena “Pessoa trabalhadora que faz sacrifícios pra sustentar sua família”.

18 AM M moreno “Aquelas que vestem mal”

19 AM F branca “Pessoa simples, humilde, que mora nos municípios”.

20 AM M moreno “Pessoa rude, misturado com índio”.

21 AM F moreno “Um homem de cor escura e fisionomia diferente dos outros”.

22 AM F branca “Aquele que não se envergonha dos traços que possui e que respeita a sua raça, sua cultura”.

23 AM M moreno Não sabe dizer.

24 PA F branca “Uma pessoa que nasce dentro da Amazônia e carrega o peso do trabalho desde muito cedo”.

25 AM F morena “Uma pessoa com costumes e raízes indígenas”.

26 AM M branco Pessoa “com traços amazonenses”.

27 PA F morena Não sabe dizer.

28 AM F morena Não sabe dizer.

29 RR F parda “Todos do Amazonas”.

30 AM M moreno “Uma pessoa que vive numa boa e curte a natureza”.

Nas respostas sobre quem pode ser identificado como caboclo, novamente

emergem os conceitos mais conhecidos relacionados à origem e à descendência,

assim como a imagem estereotipada do amazônida típico, anteriormente

mencionada.

Tabela 19Em sua opinião, todo amazonense é caboclo? Por quê?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Sim, porque “é mistura de índio com branco”.

2 MA F negra Sim, porque “são todos indígenas”.

3 MA F morena Sim, porque “são mestiços”.

4 PA M moreno Sim, porque “existe uma parte de sangue indígena”.

5 AM F branca Sim, “por causa da origem”.

6 RO M negro Não, mas não sabe explicar a distinção entre o caboclo e os outros.

7 AM M moreno Não, porque “a maioria nasce em Manaus e outros na Amazônia”.

8 AM M moreno Não sabe dizer.

9 MT F morena Não, porque “acho isso uma leseira”.

10 MA M branco Não, porque “pode somente ter nascido aqui, mas não viver aqui”.

11 AM F branca Sim, porque “são da região”.

12 AM M pardo Sim, porque “é povo”.

13 AM M branco Sim, porque “somos filhos da terra”.

14 AM M moreno Não sabe dizer.

131

Page 133: Um estranho no espelho

15 AM M pardo Sim, porque “é descendente de índio”.

16 AM F moreno Sim, porque “nascemos aqui e temos todos os costumes”.

17 AM F morena Não, porque “caboclos são pessoas que moram nos interiores e não na cidade de Manaus”.

18 AM M moreno Sim, porque “somos todos descendentes”.

19 AM F branca Não, porque “nem todos os amazonenses são totalmente amazonenses”.

20 AM M moreno Não, porque “são muitas etnias”; e “caboclo é uma pessoa rude, misturado com índio”.

21 AM F moreno Sim, “não é o que dizem, mas é verdade, porque todos temos descendência de caboclos”.

22 AM F branca Sim, porque “somos a junção de duas culturas”.

23 AM M moreno Acho que sim, “por dedução”.

24 PA F branca Não, porque “há amazonenses que nascem na classe alta, e não no sistema social do caboclo”.

25 AM F morena Não, porque “muitos não têm a mesma origem que o caboclo”.

26 AM M branco Não, porque “nem todos têm esses traços”.

27 PA F morena Sim, porque “possui uma cultura hereditária”.

Tabela 19 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

28 AM F morena Sim, pois “quer queiram ou não, os que são nascidos aqui fazem parte da história dos nossos antepassados”.

29 RR F parda Sim, porque “descende do índio e do branco, e possui costumes iguais, mesmo não querendo”.

30 AM M moreno Sim, “por causa da miscigenação”

Na questão “se todo amazonense é caboclo”, pouco mais da metade (17

entrevistados) respondeu que sim, dois não quiseram opinar e o restante disse

que não. Aparecem novamente aqui nas respostas positivas os conceitos

standardizados pela escola e os meios de comunicação sobre o caboclo como

mistura de raças, produto da miscigenação, mestiço, descendente de índio etc.

As negativas reafirmam a diferença, excluindo-se da categoria.

Tabela 20Você se classificaria como um(a) caboclo(a)?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Sim, “porque sou filha de uma”.

2 MA F negra Sim, “porque acho aqui tudo interessante e positivo”.

3 MA F morena Não, “porque não me sentiria bem”.

4 PA M moreno Sim, “porque sou da terra”.

5 AM F branca Sim, “porque somos dessa origem”.

6 RO M negro Sim, porque “nasci de uma mistura”.

132

Page 134: Um estranho no espelho

7 AM M moreno “Não sei dizer”.

8 AM M moreno “Não sei”.

9 MT F morena Não, porque “nenhum ser humano deve ser chamado de caboclo”.

10 MA M branco Sim, porque “já me tornei um”.

11 AM F branca Não.

12 AM M pardo Talvez, porque “como todo mundo vive aqui, passa a ser”.

13 AM M branco Sim, porque “nasci aqui”.

14 AM M moreno “Não sei”.

15 AM M pardo Sim, porque “Tenho sangue de caboclo sofrido e guerreiro”.

16 AM F moreno Sim, “mas quando digo que faço parte não quer dizer que sou cabocla, mas eu nasci aqui e considero muito o caboclo e por isso digo que sou um deles”.

17 AM F morena Sim, porque “já que eu moro no Amazonas e as pessoas dizem que aqui só mora caboclo e índio, eu tenho que me sentir uma cabocla, já que faço parte desta cidade.”

Tabela 20 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

18 AM M moreno Sim, porque “moro no Amazonas e todo amazonense é caboclo para o pessoal de fora”.

19 AM F branca Sim, porque “sou do Amazonas”.

20 AM M moreno Sim, porque “eu nasci aqui e minha família é daqui”.

21 AM F moreno Sim, porque “meu pai é descendente de uma cabocla”.

22 AM F branca Sim, porque “nasci no Amazonas e faço parte dessa miscigenação. Sou cabocla e isso me faz sentir orgulho”.

23 AM M moreno Sim, “por causa das raízes, da cor”.

24 PA F branca Não, “porque o meu aspecto é contraditório ao dos caboclos amazonenses”.

25 AM F morena Não, porque “simplesmente não tenho origem na região”.

26 AM M branco Não, porque “eu tenho sangue maranhense”.

27 PA F morena Sim, porque “é uma origem hereditária, por mais que seja esquecida”.

28 AM F morena Sim, “sou nascida e criada aqui, tenho a cultura daqui, por que seria de outro modo?”.

29 RR F parda Sim, “porque sou cabocla, gosto de viver a vida à vontade”.

30 AM M moreno Sim, “por todos os atributos (no bom sentido) que se referem ao caboclo”.

Contraditoriamente, na auto-classificação como caboclo, dois terços

declaram que se incluiriam na categoria. No entanto, ao invés de se constituírem

afirmações de identidade, algumas declarações deixam entrever como que uma

obrigatoriedade em se declarar caboclo pelo fato de ter nascido aqui, ser

descendente de caboclo e de índio etc. Três respostas, em particular, de

amazonenses (um homem e duas mulheres), com traços característicos de

descendência indígena, reforçam esta proposição:

A primeira fala como se fizesse uma concessão ao dizer-se cabocla:

“quando digo que faço parte não quer dizer que sou cabocla, mas eu nasci aqui e

133

Page 135: Um estranho no espelho

considero muito o caboclo e por isso digo que sou um deles”. Outra fala como se

estivesse sendo obrigada pelas circunstâncias e pela pressão social: “já que eu

moro no Amazonas e as pessoas dizem que aqui só mora caboclo e índio, eu

tenho que me sentir uma cabocla, já que faço parte desta cidade”; outro para se

enquadrar a uma classificação imposta: “moro no Amazonas e todo amazonense

é caboclo para o pessoal de fora”.

Outros entrevistados, naturais do Amazonas, buscam justificativa na

origem dos pais ou na cor da pele para fugir à classificação: “simplesmente não

tenho origem na região”; “eu tenho sangue maranhense”; “o meu aspecto é

contraditório ao dos caboclos amazonenses”. A propósito dessa postura, Silva

(1996) considera que:

O homem com caracteres físicos europeus e portador de cultura urbana, se sente como um sujeito branco e pode mesmo ver todos os demais amazônidas que têm biótipos não estritamente brancos, nem negros, através do estereótipo que lhes atribui a identidade cabocla (em muitos casos, mesmo independente da classe social em que este personagem esteja inserido). As lentes pelas quais cada ser-homem é visto, na Amazônia, classificando-a nesta ou naquela categoria étnico-cultural, têm suas origens constitutivas, por um lado, nas culturas (e nos estereótipos que nelas estão contidos) e, por outro lado, nas posições de classe do indivíduo que julga (e do grupo de semelhantes a que ele pertence) e do indivíduo julgado e classificado com esta ou aquela identidade (SILVA, 1996, p. 231).

Lima (1999) explica esta recusa no sentido de que as pessoas buscam se

preservar de um estigma que pesa sobre os caboclos há séculos: a noção de

inferioridade, herança da descendência indígena. Diz ela:

... as palavras não apenas criam, mas conservam as coisas que criam, como as estruturas e as representações sociais. Porque carrega a história colonial de subordinação, a palavra caboclo compromete o destino de uma população. O efeito do nome sobre a identidade é inegável – o nome condensa a própria essência da identidade. Aceitar o nome caboclo é aceitar a derrogação (LIMA, 1999, p. 28).

Tabela 21O que é, afinal, ser “caboclo”, na sua concepção?

Nº. Natural Sexo Cor Respostas

1 AM F morena Ser muito à vontade com as pessoas que lhe rodeiam.

2 MA F negra Uma mistura de raças. Todos nós somos caboclos.

134

Page 136: Um estranho no espelho

3 MA F morena Não sei o que responder por que preciso saber mais sobre o assunto.

4 PA M moreno Ser da Amazônia.

5 AM F branca Ter orgulho cada vez mais de ser brasileiro, amazonense, manauara.

6 RO M negro Ser da terra, ser uma mistura simples e agradável.

7 AM M moreno Não sei direito.

8 AM M moreno Não sei dizer.

9 MT F morena Sei lá.

Tabela 21 (cont.)Nº. Natural Sexo Cor Respostas

10 MA M branco Uma pessoa boa, acolhedora, prestativa etc.

11 AM F branca Não sei identificar.

12 AM M pardo Não sei dizer.

13 AM M branco Pessoa culta que dá valor às suas origens.

14 AM M moreno Não sei definir.

15 AM M pardo Povo guerreiro.

16 AM F moreno Ser digno, ter sempre em mente o seu povo e sua cultura.

17 AM F morena Um homem livre que usa um modo de vida melhor para ele e sua família.

18 AM M moreno Gente do interior.

19 AM F branca Uma pessoa humilde que ficou um pouco restrita na sociedade.

20 AM M moreno Um homem que luta pra sobreviver.

21 AM F moreno Um homem que se veste diferente da sociedade.

22 AM F branca É junção de culturas, costumes. É a minha raça.

23 AM M moreno Pra mim não importa a raça. Importa saber a diferença de humano e “ser” humano.

24 PA F branca Nascer e se criar nas proximidades do Amazonas e ser uma pessoa lutadora desde cedo.

25 AM F morena Quem tem o aspecto físico e os costumes típicos da região.

26 AM M branco Alguém com traços indígenas e que não vive na sociedade.

27 PA F morena Alguém de origem cultural antiga.

28 AM F morena Todas as pessoas que nasceram e moram no Amazonas.

29 RR F parda Ser valente, livre e feliz.

30 AM M moreno Ser o que você acha que é, não o que os outros dizem ser.

Quando solicitados a dar sentido ao termo, poucos alegaram não ter o que

dizer a respeito. A grande parte dos entrevistados ressaltou as qualidades

positivas do caboclo, projetando, talvez, a forma como gostariam de ser vistos

pelos “de fora”. O imaginário de uma época que vê o indígena com os atributos de

bom, valente, guerreiro é, em parte, resgatado e integrado aos estereótipos do

homem amazônico.

As condições que regem a constituição de toda a identidade, de acordo

com Lisboa (2002b), são baseadas na afirmação da diferença, sendo constituída

135

Page 137: Um estranho no espelho

a partir de um espaço e de múltiplas relações marcadas pelo confronto com o

outro. A identidade é constituída num processo, está sempre incompleta, sempre

sendo formada, mas socialmente necessitando ser reconhecida.

A identidade, reforça Lima (1999, p. 29),

é uma forma de representação dirigida a si próprio. É a visão de si, que em um contexto social diferenciado é relacionada a uma identidade coletiva. [...] A identidade de um grupo não está fora da existência de seus membros, não é algo metafísico ou exterior aos indivíduos, mas sim uma produção coletiva da somatória das contribuições individuais, no contexto de uma formação social particular.

Torres (2003, p. 92) refere-se à constituição da identidade como um

“processo histórico-cultural que resulta do esforço do ser social em firmar a sua

auto-imagem numa relação entre o eu e o mundo, aos outros e à sociedade.” Em

uma parcela da população nativa, segundo ela, é possível perceber a existência

de “um sentimento de amazonidade latente”, mas esse processo é prejudicado

porque “o estigma da inferioridade e o vilipêndio étnico deixaram marcas

indeléveis”, sendo o processo de construção da identidade dos amazônidas

profundamente afetado.

Nesse momento de retomada à figura mítica do caboclo, há como que uma

espécie de ufanismo, uma sensação de pertencimento a uma “raça”, a brasileira.

O homem amazônico neste momento parece encarnar o arquétipo indígena que

traduz as raízes brasileiras, o dono da terra quando aqui aportou o estrangeiro.

Por esse prisma, o caboclo é visto na sua dimensão ontológica: é em si mesmo

valoroso, guerreiro, feliz. É o índio bom, portador de virtudes e qualidades de

Rousseau. O “ser” caboclo, então, é ser índio na sua melhor acepção, é ser da

“raça” brasileira. O “sentimento de amazonidade latente” de que fala Torres

(2003), parece emergir espontaneamente do cipoal de contradições e

preconceitos no qual se encontra submerso.

136

Page 138: Um estranho no espelho

4. JUNTANDO OS PEDAÇOS: AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO CABOCLO

“Em que espelho se perdeu a minha face?”Cecília Meireles

A partir do material organizado, sobre o qual foram feitas considerações

preliminares no sentido de interpretar o conteúdo explícito e implícito das

verbalizações, três categorias28 centrais foram estabelecidas a partir dos dados

empíricos para possibilitar análise mais acurada do seu conteúdo. Buscou-se,

então, identificar as relações que essas representações guardam com o real, as

condições que favoreceram a sua emergência e as discussões que podem ser

articuladas entre a sua natureza epistêmica e o saber constituído, de maneira a

favorecer uma compreensão teórica da realidade.

Essa compreensão mais específica sobre um conjunto de informações a

partir da fala e do comportamento dos sujeitos relativos ao tema, de acordo com

Minayo (1996), deve trazer à tona as significações mais profundas que a

pertinência a um grupo ou classe e uma época histórica determinada conferem a

esses sujeitos.

Porque cada ser humano, individualmente, em grupo ou sob a expressão histórica de classe é um ser significante. Nunca se pode compreender sua palavra ou seu gesto sem superar o presente ou sem projetá-lo para o futuro. As significações que descobrimos vem do ser humano e de seu projeto e se inscrevem por toda parte, na ordem das coisas e nas relações mediadas pelas estruturas enquanto ação humana objetivada (SARTRE apud MINAYO, 1996, p. 237).

3.1 O caboclo estereotipado: imaginário e representações

28 Conforme orientação metodológica proposta por Minayo (1993), p. 94.

137

Page 139: Um estranho no espelho

Um homem de feições rudes em uma canoa, um rio-mar que se estende

infinitamente, tendo ao fundo um horizonte interminável de vegetação. Perdido na

paisagem, isolado, a imagem estereotipada do caboclo amazônico traduz em

grande parte o seu status no imaginário social do amazonense citadino da

atualidade. É uma figura distante da realidade barulhenta e cada vez mais agitada

do homem urbano, principalmente o jovem, rodeado de estímulos diversos, cuja

visão mais aproximada do paraíso é um moderno shopping center.

Essa visão não é de todo negativa, mas encerra em si um reducionismo

que circunscreve e inviabiliza maiores aprofundamentos. O horizonte verde que

parece infindável reduz-se em si mesmo porque não é um horizonte do e para o

caboclo, mas o limite que o encerra e o imobiliza no espaço-tempo. É no

imaginário do paraíso amazônico que essa imagem se nutre. Esse homem só

existe e é aceito porque se integra à paisagem, não a macula, nem a subverte:

ele “é” a paisagem.

Assim concebido, subtrai-se da compreensão do caboclo as condições de

luta e de sacrifício que determinaram o seu processo adaptativo ao meio

ambiente amazônico. O imaginário, nesse sentido, se sobrepõe ao real porque é

mais aceitável e mais fácil de ser incorporado na atualidade, porque se abstrai

dessa imagem a história perversa de vilipêndios e subjugações a que foi

submetido o nativo, para que conformasse a sua vida nesses termos.

Mas qual seria a razão de tão longa predominância de um imaginário

construído e exportado pelos europeus quase sem retoques, particularmente no

tocante à Amazônia e aos amazônidas? Berger (2000) refere-se ao que ele

denomina “universos simbólicos” como objetivações sociais nos quais estão

contidos toda a sociedade histórica e a biografia do indivíduo, como

acontecimentos que se passam dentro deste universo, sendo o homem em

sociedade um construtor do mundo. Implicitamente, então, estaria a capacidade

humana de “desconstruir” esses universos e de transformá-los à sua vontade. Diz

o autor que:

Sendo produtos históricos da atividade humana, todos os universos socialmente construídos modificam-se, e a transformação é realizada pelas ações concretas dos seres humanos. [...] A realidade é

138

Page 140: Um estranho no espelho

socialmente definida. Mas as definições são sempre encarnadas, isto é, indivíduos concretos e grupos de indivíduos servem como definidores da realidade (BERGER, 2000, p. 157).

Desta forma, orienta o autor (p, 157), “para entender o estado do universo

socialmente construído em qualquer momento, ou a variação dele com o tempo, é

preciso entender a organização social que permite aos definidores fazerem sua

definição”, o que implica buscar a compreensão de como as conceituações da

realidade se tornaram historicamente acessíveis e foram legitimadas até sua

aceitação pelo senso comum.

Segundo Castoriadis (1982, p. 277), “o imaginário social é,

primordialmente, criação de significações e criação de imagens ou figuras que

são o seu suporte.” É justamente das condições específicas da formação histórica

brasileira, afirma Pesavento (1999), que vem essa predisposição para o

predomínio do imaginário sobre o real, resultando que

a perversidade das condições de realização do capitalismo no Brasil dão margem a um contexto em que a representação assume, de direito e de fato, preeminência sobre o real. O peso do simbólico sobrepõe-se à realidade: o parecer tem o efeito de ser e, como tal, é julgado e avaliado. A credibilidade do imaginário se impõe, mesmo que as condições concretas da existência neguem os discursos e as imagens que sobre a realidade se produzem. A aparência e a fachada têm alta significação e o detalhe é tomado pelo conjunto (PESAVENTO, 1999, p. 160).

Esse estereótipo do nativo amazônico funda suas raízes muito além, em

tempo e espaço pretéritos, nas idéias pré-concebidas na Europa sobre a América

muito antes dos conquistadores aqui aportarem. E é na Amazônia que eles vão

encontrar posteriormente a “mais completa tradução” desse mito do paraíso

perdido que permaneceu subliminar, mesmo quando os viajantes confrontaram o

inferno no mesmo lugar. Essa é a matéria-prima, segundo Gondim (1994), que vai

alimentar os sonhos (e os pesadelos) dos que os sucederam, pois

a visão inaugural da Amazônia oferecida pelos cronistas viajantes vai fundamentar, enquanto matéria-prima, as deduções teóricas e, inversamente, estas servem de estofo aos sucessores, cujo estoque de informações impedem e/ou inibem a apreensão da variedade, da multiplicidade, da diferença, em suma, caem na cegueira da confirmação de verdades científicas (GONDIM, 1994, p. 10).

Castoriadis (1982), no entanto, chama a atenção para o cuidado quanto à

análise das significações imaginárias sociais quanto à sua natureza

139

Page 141: Um estranho no espelho

eminentemente conotativa, ou seja, estas não têm um significado exclusiva e

claramente definido e não podem ser tomadas como definitivas. A tessitura dessa

rede de significados, interminavelmente remissiva e intrincada quanto à sua

ordenação, é um terreno pantanoso para o pesquisador e demanda cautela.

O mundo das significações, diz ele, é um magma, isto é, as significações

são compostos e não conjuntos. Uma significação é “um feixe indefinido de

remissões intermináveis a outra coisa... estas outras coisas são sempre tanto

significações como não-significações – aquilo a que se referem ou se relacionam

às significações” (CASTORIADIS, 1982, p. 283-4).

Assim sendo, continua Castoriadis, é em função de um sistema dessas

significações que o mundo social é constituído e articulado na forma de um

imaginário efetivo. É dessa forma, segundo ele, que cada sociedade define e

elabora uma certa “ordem do mundo”, uma imagem do universo onde vive e do

mundo natural, tentando constituir um conjunto significante onde estão inseridos

os elementos considerados importantes para a coletividade, e esta própria

coletividade. Na sua opinião:

A história é impossível e inconcebível fora da imaginação produtiva ou criadora, do que nós chamamos o imaginário radical tal como se manifesta ao mesmo tempo e indissoluvelmente no fazer histórico, e na constituição, antes de qualquer racionalidade explícita, de um universo de significações (CASTORIADIS, 1982, p. 176).

É necessário compreender o espaço do imaginário, de acordo com este

autor, como aquele no qual uma sociedade se constrói e se espelha conforme o

simbolismo escolhido, e essa escolha não pode ser justificada apenas com base

no real e do racional, pois esses servem apenas para a organização dos dados,

enquanto que as subordinações e significações que vão constituir uma visão mais

ou menos estruturada daquela experiência humana vão depender do imaginário.

Este elemento, que dá à funcionalidade de cada sistema institucional sua orientação específica, que sobredetermina a escolha e as conexões das redes simbólicas, criação de cada época histórica, sua singular maneira de viver, de ver e de fazer sua própria existência, seu mundo e suas relações com ele, esse estruturante originário, esse significado-significante central, fonte do que se dá cada vez como sentido indiscutível e indiscutivo, suporte das articulações e das distinções do que importa e do que não importa, origem do aumento da existência dos objetos de investimento prático, afetivo e intelectual, individuais ou

140

Page 142: Um estranho no espelho

coletivos – este elemento nada mais é do que o imaginário da sociedade ou da época considerada (CASTORIADIS, 1982, p. 175).

Paiva (2002, p. 24) fala de um “campo imaginário” retroalimentando as

representações sociais, fornecedor de representações da sociedade para com ela

mesma, o qual “não deve ser concebido enquanto uma instância produtora de

representações que sejam ilusórias ou falsas, mas sim enquanto uma instância

fornecedora de um conjunto sistemático de “imagens” geradas pela própria

sociedade”. Segundo o autor, a constituição do campo imaginário brasileiro teve a

participação efetiva da “inteligência” nacional, a elite da intelectualidade, no final

do século XIX.

Pensadores do porte de Euclides da Cunha, segundo ele, ajudaram a

reforçar a idéia de que um processo de branqueamento da população, via

mestiçagem, melhoraria as condições da população brasileira, tendendo à

homogeneização, auxiliando conseqüentemente o processo civilizatório nos

moldes europeus. A tese de superioridade da raça branca, vista anteriormente, foi

defendida fervorosamente pelo naturalista Martius como forma de “salvar” a

civilização ameríndia da degeneração a que supostamente estava fadada.

Desta forma, muitas idéias distorcidas disseminadas ao longo do tempo

foram privilegiadas pelos grupos dominantes, incluindo as elites intelectuais,

contribuindo, algumas vezes involuntariamente, para a sua consolidação no

imaginário popular. A propósito, Morin (1999, p. 76) alerta para a necessidade de

compreensão que o mundo das idéias é absolutamente real, “no entanto, esta

realidade depende de nós mesmos”. Segundo ele, “nossas idéias são bárbaras, e

nós somos seus escravos, sem nem mesmo compreender que fomos nós

mesmos que as geramos”.

Até meados do século passado, reforça Arruda (1998, p. 37-8), é

precisamente a literatura que vem colocar-se como guia na viagem de regresso

às origens do Brasil:

O “olhar armado” pela ciência será produtor de identidades através de cortes, como um passe de mágica (que faz desaparecer o que não deve ser visto). A natureza continua a ser o grande biombo das misérias nacionais.

141

Page 143: Um estranho no espelho

Paiva (2002) acentua que a intelectualidade brasileira dessa época, por

exemplo, não somente foi partidária das idéias evolucionistas, como contribuiu

para a sua consolidação, reforçando o seu valor científico ao buscar explicar o

“atraso” do Brasil em relação aos países europeus por meio dos conceitos de raça

e meio geográfico. Tal postura atendia à necessidade dos dirigentes de

formulação de um diagnóstico preciso e convincente das reais possibilidades de

implementação de uma “civilização” no Brasil, com vistas ao estabelecimento de

estratégias para um modelo de modernização política e econômica.

Por outro lado, à medida que o modo de produção capitalista foi

estabelecendo sua primazia na região e novas estratégicas de desenvolvimento

foram sendo tentadas, a ciência, no sentido do pensamento social dominante

(Weigel, 2000, p. 25), que poderia ter representado um canal de discussões e

mudanças manteve-se, no entanto, no ponto de mediação homogeneizante,

participando decisivamente “na construção dos enfoques que atualmente

orientam o pensamento sobre a região.”

Weigel (2000) enfatiza que a região sempre foi palco de grande

movimentação de interesses e tentativas de ocupação que demandavam

constantes adaptações e recriações para fazer frente às peculiaridades locais. O

autor também enfatiza a homogeneização que há muito tempo vem sendo

impingida aos povos amazônicos, não somente em nível socioeconômico, mas

também cultural. Entretanto, mesmo o modo de pensar dominante que se

implantou com a chegada da “civilização” capitalista, voltado para o

estabelecimento de modos de produção adequados aos moldes ocidentais, não

conseguiu tornar-se predominante:

É um modo de pensar de características hegemônicas, que não instala plenamente a sua hegemonia, pelas suas limitações inerentes e pela superioridade localizada de outros modos que com ele se chocam, balizados pela especificidade das interações homem-ambiente e pelo arcabouço cultural subjacente e determinante (WEIGEL, 2000, p. 22-3).

Para a compreensão dessa mentalidade, na opinião de Pesavento29 (s.d.),

se faz necessária a remissão àqueles autores que se debruçaram sobre “a alma

da terra” para explicá-la, e acabaram por inventar um passado e forjar um futuro. 29 Texto obtido em endereço eletrônico.

142

Page 144: Um estranho no espelho

A história, segundo a autora, é muitas vezes engendrada a partir dessa dinâmica,

pois

idéias não têm raízes e viajam no tempo e no espaço, proporcionando sempre novas apropriações e historicizações”. É por este princípio que se torna instigante a constante releitura daqueles autores que desvelaram / revelaram a alma da terra sob diferentes perspectivas. Eles realizaram, com a sua escritura, não só uma explicação do seu presente, mas uma invenção do passado e uma criação do futuro (PESAVENTO, s.d.).

Com relação à Amazônia, Paiva (2002) acredita que sobre ela foi criada, ao

longo dos tempos, uma verdadeira “tradição de um pensamento social”, atuando

os seus intérpretes de acordo com o tipo de apropriação que dela se fazia, seja

econômico, político ou cultural, moldando-a, enfim, aos interesses ocasionais.

Segundo esse autor, houve em período determinado, na história do país, um

movimento deliberado no sentido da criação de uma imagem da Amazônia que

justificasse o seu “atraso” em relação ao restante do país e ao conceito

internacional de “civilização”.

Por este viés, o trabalho de Euclides da Cunha assume uma dimensão

significativa para a compreensão do imaginário sobre a Amazônia no cenário

nacional. No entender de Euclides da Cunha, traduz o autor,

A presença humana revelava-se frágil na sua compreensão dada a forte exuberância da natureza (“o Homem chegou antes do Gênesis”, afirmava ele ao sugerir a idéia de “paraíso perdido” em relação à Amazônia). Fazia-se necessário, no seu entender, o desenvolvimento de programas de ordem político-administrativa no sentido de promoverem a presença humana na região para consolidar a sua ocupação. [...] podemos afirmar que o ponto de partida de uma interpretação “nova” sobre a Amazônia, patrocinada pelas elite manauaras decadentes, esta ao cargo dos “herdeiros de Euclides da Cunha” (PAIVA, 2002, p,. 68-9).

A imagem da Amazônia mítica, caracterizada pelo exotismo, foi então

retocada, e teve no trabalho de intelectuais do porte de Euclides o seu lugar no

palco dos debates científicos, assim como a sua legitimação na ordem sócio-

política e econômica nacional.

Houve, também, um momento histórico de necessidade local de constituir

uma “cara” regional em que o imaginário secularmente forjado sobre a Amazônia

ganhou reforço e legitimação pelos detentores do poder em duas instâncias

143

Page 145: Um estranho no espelho

chaves, a elite intelectual e a política. O investimento feito pela elite intelectual

nesse sentido, foi direcionado para a criação de um folclore amazônico, que teve

na obra de Mário Ypiranga Monteiro, segundo o autor, a sua representação

máxima. O folclore, então, foi o viés encontrado para o delineamento de uma

“identidade regional”, buscando-se realçar especificidades, marcar a diferença

para poder “existir”, mesmo como espaço social diferenciado, na realidade

nacional.

A caracterização da “região” amazônica, enquanto espaço social distinto e diferenciado frente às demais realidades regionais do Brasil [...] constitui-se em um momento político específico da “história regional. [...] O êxito desse redirecionamento, no entanto, encontrava-se na dependência de uma articulação balanceada entre aquilo que seria próprio e específico da “região” e contributivo para a nação. Nesse sentido, a inserção da Amazônia, enquanto espaço social simultaneamente dotado de especificidades e integrante da realidade brasileira dependeu da demonstração da existência de elementos individualizados, próprios e, ao mesmo tempo, aditivos para a identificação de uma mesma “cultura nacional” (PAIVA, 2002, p. 71-2).

É possível depreender da fala do autor, que o imaginário construído pelos

europeus e exportado para o Brasil aqui teve os seus legitimadores, tanto em

nível nacional quanto em nível regional. Para “fazer parte” da cultura nacional,

reforçaram-se na Amazônia as especificidades, conseqüentemente os aspectos

que a distinguem mais claramente do resto do país: a conformação geográfica, o

exotismo, suas lendas e fantasias. A Amazônia “folclórica” subsiste na atualidade

e crescentemente ganha força, servindo de biombo para a realidade

reiteradamente ignorada sobre a vida que pulsa por trás dessa cortina fantasiosa.

É o imaginário sobre a Amazônia, portanto, como “pano de fundo”, que vai

dar conformação à figura do caboclo algum tempo depois. É nesse cenário que

ela se forma e aí se fixa, imobilizada no tempo, de forma indissociável. No

discurso dos entrevistados se evidencia com nitidez essa relação. Há uma

Amazônia “inventada”30, idealizada, à qual a maioria se reporta, que é mais uma

atualização do mito secular de paraíso. Agora ela é o manancial inesgotável, o

celeiro de recursos e potencialidades inexploradas inimagináveis. Assim, o “real”,

a Amazônia concreta, na qual vivem esses indivíduos, é percebida pela lente do

imaginário, sem filtro de crítica e sem atualização.

30 Na acepção de Gondim (1994).

144

Page 146: Um estranho no espelho

Por esse prisma o estereótipo do caboclo, então, pode ser entendido como

um conjunto de significações, configurando-se, por sua vez, conforme Bardin

(1977, p. 51), como uma composição imagética organizada em torno de

elementos simbólicos, que serve de orientação ou substituição à informação ou a

percepção real e “corresponde a uma medida de economia na percepção da

realidade”. Surge espontaneamente, como representação partilhada por membros

de um grupo social.

Estrutura cognitiva e não inata (submetida à influência do meio cultural, da experiência pessoal, de instâncias e de influências privilegiadas como as comunicações de massa), o estereótipo, no entanto, mergulha as suas raízes no afetivo e no emocional, porque está ligado ao preconceito por ele racionalizado, justificado ou engendrado (BARDIN, 1977, p. 51-2).

É esse preconceito historicamente enraizado que estudiosos

pesquisadores como Galvão (1979), Wagley (1977), Parker (1985) e outros mais

recentes, como Lima (1999), ao empreenderem estudos sobre o homem

amazônico, detectaram ao longo do tempo a respeito do caboclo. No momento

em que os primeiros estudos conhecidos foram realizados, essa imagem era pelo

menos mais coincidente com a realidade experimentada por aqueles assim

denominados. No entanto, em estudos mais atuais como de Lima, essa mesma

construção é observada, assim como a existência de outros condicionantes

negativos atrelados ao termo.

Neste estudo, embora nos limites estreitos em que se insere a proposta de

investigação, é possível identificar esses mesmos elementos arcaicos compondo

o imaginário dos jovens entrevistados. É a partir dessa composição imagética que

o caboclo ora é excluído, ora incluído, do espaço vivencial desses indivíduos,

realizando o movimento dialético de contradição e permanência a que se refere

Jodelet quanto à dinâmica das representações. Dá-se, então, a negação dos

atributos negativos com a criação do alter, e é nessa figura do “outro”, construída

historicamente desde tempos idos, que o caboclo se torna mais visível também na

atualidade.

145

Page 147: Um estranho no espelho

3.2 Caboclo “é o outro”: representação da alteridade

É na constituição do imaginário sobre o homem americano e sobre a

Amazônia, que vão ser encontradas as raízes desse alter originário que foi sendo

consolidado com o tempo. A fenda primordial na unidade essencial do gênero

humano foi aberta, segundo Arruda (1998), com o advento da colonização, a

partir de quando se questionou a humanidade do outro. Daquele momento

histórico de confronto com a diferença, experimentado pelos colonizadores,

continua a ecoar a pergunta: o outro é humano? Agora não mais se tratando do

humano em relação ao selvagem ou não-humano , mas de um humano como eu,

nos moldes nos quais eu acredito estar constituído, de acordo com os padrões

socialmente aprovados.

Faz parte da nossa herança cultural, na opinião de Laraia (2002), reagir de

forma depreciativa em relação àqueles que apresentam comportamentos ou

características diferentes dos padrões socialmente aprovados pela maioria da

comunidade, e esses padrões, como se sabe, são produtos de múltiplas

determinações socialmente constituídas. Arruda (1998) faz menção a esses

determinantes que forçam as mudanças nos padrões socialmente aceitos e nas

relações sociais:

A construção da alteridade e do mesmo se move ao compasso das conjunturas históricas. As mudanças de representações hegemônicas correspondem a novas necessidades coletivas, oriundas da renovação de projetos políticos, econômicos, sociais, de situações culturais e outras. Devem-se à necessidade de estabelecer um novo senso comum com relação a si mesmo e ao outro que dê conta ao mesmo tempo da nova situação em que se encontram e dos novos ângulos que ela ilumina. A historicidade das representações sociais segue esse movimento (ARRUDA, 1998, p. 41-2).

Essa necessidade de estabelecer um ponto de apoio para situar-se no

confronto com a diversidade, é também explicada por Berger (2000) como uma

forma de apreensão do novo que se relaciona diretamente ao universo simbólico

do indivíduo que vivencia esta experiência. Ou seja, para não “se perder” das

suas referências originárias, ou não “desorganizar” aquilo que já está constituído

e aceito, faz-se necessário construir para o “outro” um universo simbólico que o

encaixe e o explique, diferenciando-o do seu próprio. Assim, foi a partir do seu

146

Page 148: Um estranho no espelho

universo simbólico já internalizado que os conquistadores da América puderem

distinguir o indígena como diferente:

Uma das principais ocasiões para o desenvolvimento de uma conceitualização conservadora de um universo é o que se apresenta quando uma sociedade defronta-se com outra que tem uma história muito diferente. [...] O universo distinto apresentado pela outra sociedade tem de ser enfrentado com as melhores razões possíveis para afirmar a superioridade do nosso próprio (BERGER, 2000, p. 146-7).

Segundo este autor (p. 140), “o universo simbólico também ordena a

história. Localiza todos os acontecimentos coletivos numa unidade coerente, que

inclui o passado, o presente e o futuro.” Assim, pode-se inferir a constituição de

um universo simbólico idealizado originalmente pelos estrangeiros, que foi

assimilado pelos nativos, a partir do qual foram sedimentadas as concepções hoje

reinantes.

Com relação ao passado, estabelece uma “memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. Em relação ao futuro, estabelece um quadro de referência comum para a projeção das ações individuais. Assim, o universo simbólico liga os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido... Todos os membros de uma sociedade podem agora conceber-se como pertencendo a um universo que possui um sentido, que existia antes de terem nascido e continuará a existir depois de morrerem (BERGER, 2000, p. 140).

O preconceito que cerca a figura do homem amazônico, particularmente do

caboclo, possivelmente perdura porque passou por um longo processo de

enraizamento e cristalização ao longo do tempo, tendo sido reforçado pelo

acolhimento puro e simples e pelo fato de que os movimentos em sentido

contrário não tiveram suficiente força e poder de abalar suas estruturas

ideológicas.

A representação do caboclo como o “outro” no presente estudo delineia-se

antes mesmo de o termo ter sido empregado, a partir das primeiras questões

sobre a temática indígena, e se acentua quando entra em foco o homem

amazônico. Observa-se desde esse momento, por parte dos entrevistados, uma

postura de reserva, do tipo “não é comigo”: esse de quem se fala é o “outro” – o

alter -, pressupondo uma diferença ou distância social, além do sentido de

simples diferenciação.

147

Page 149: Um estranho no espelho

Na opinião de Lima (1999), a própria etimologia do termo caboclo já

carrega uma história de exclusão, desde que começou a ser usado como

sinônimo de tapuio que, para os índios, identificava o pária. Os estudiosos que

pesquisaram o caboclo no universo amazônico foram unânimes na menção ao

sentido predominantemente negativo do termo, associado à inferioridade social e

econômica. A idéia de que “caboclo é sempre o outro” foi identificada por Wagley

(1976) em estudo sobre uma comunidade no interior da Amazônia na década de

70, concluindo que o termo era utilizado sempre que se queria referir a uma

categoria social inferior a de quem falava, e era sucessivamente transferido até

chegar ao indígena.

Silva (1996), no estudo da obra de Eduardo Galvão, identifica na visão

daquele autor a visão do caboclo como um elo social e cultural (e mesmo

biológico em alguns casos) entre o ser índio e o ser não índio. O caboclo é um

signo da passagem de um a outro estado, na perspectiva de mudança cultural.

Como um híbrido, um ser distinto do índio e do branco que lhe deram origem e

influenciaram a sua constituição, esse personagem social diferenciado, sem a

consciência dos contributos culturais originários, passa a ser um alter em relação

a aqueles.

A noção do “outro” se expressa, então, em vários momentos no discurso

dos sujeitos, quando se aborda classe social, aparência física, capacidade

intelectual etc. Os atributos negativos, mesmo quando não verbalizados ou

admitidos, emergem espontaneamente e ninguém quer ser identificado como

“feio”, “burro” e principalmente “pobre”, um atributo ligado ao caboclo desde

quando o termo começou a ser utilizado.

Há momentos em que o outro é simbolizado no índio, mas com tendência a

eximi-lo das conotações negativas, então o sentido volta para o mesmo, como

numa brincadeira de “manja-pega”. O caboclo, então, é negado, como uma

sujeira que se tira da roupa, porque o termo carrega a pecha de inferioridade e

ninguém quer ser inferior. Por ausência de análise crítica, no entanto, esse

sentido é experimentado, mas não questionado o porquê desse rechaço, desse

distanciamento. Afirma Arruda (1998, p. 42), no entanto, que “a construção do

outro e do mesmo são indissociáveis”, e que a construção da alteridade “decorre

148

Page 150: Um estranho no espelho

de um espaço de ambigüidade que permanece vivo e presente e que permite

reacomodações segundo as circunstâncias.”

Ressalta a autora, por outro lado, a importância de que não se perca de

vista que uma representação pode encobrir outra. De fato, é um outro

representado que aparece quando são abordadas questões como preconceito e

discriminação, podendo-se inferir a manifestação de sentimentos de pertença, de

inclusão, de “estar no lugar do outro”, ainda que não de forma explícita em muitos

casos. Tratando da representação da alteridade, Arruda (1998) faz uso da

terminologia proposta por Moscovici para analisar a existência de uma

perturbação diante de uma “diferença” que surpreende muito mais pela

semelhança:

A diferença que surpreende – o inusitado perturbador – busca terreno conhecido para ser incorporado. Ela surpreende muito mais na medida em que, na verdade, o outro não é tão diferente, mas sim um semelhante que não conseguimos situar. É na semelhança que desconcerta: parece familiar sem o ser. Torna-se imperativo, dessa forma, achar o ponto de ancoragem, aquele que vai permitir acomodar o desconcerto, neutralizá-lo de alguma forma (ARRUDA, 1998, p. 20).

Nas falas que traduzem a concepção de caboclo para os entrevistados, é

uma outra noção de alteridade que se evidencia, denotando a existência de

sentimentos positivos relacionados à descendência indígena e à herança cultural,

talvez resultantes do fato de que em Manaus, nos últimos anos, têm se falado

muito mais em “cultura local”, “valores da terra” e outros tantos clichês que

causam boa impressão pública. E têm sido, de fato, abertos maiores espaços

para manifestações culturais diversas, em grande parte no rastro do sucesso que

os bois bumbás de Parintins estão fazendo no país e até internacionalmente.

Existe hoje no Amazonas, particularmente em Manaus, uma movimentação

no sentido de evidenciar os valores artísticos regionais, que aparenta ser uma

reedição daquela desencadeada na região, de acordo com Paiva (2002, p. 71), no

período de 20 a 50, constituindo um momento político diferenciado na história

regional, quando “o pensamento referente à região amazônica voltou-se quase

que inteiramente para o seu próprio interior através de um ‘olhar nativo’.” Naquele

momento impunha-se uma necessidade de fazer sobressair elementos

149

Page 151: Um estranho no espelho

representativos de uma “cultura amazônica”, numa tentativa de transformação de

conceitos estigmatizantes relativos à região.

A investigação sobre os processos de representação regional, elaborada por um determinado “círculo de intelectuais” no âmbito de um contexto cultural específico, configurou um momento de retomada de singularidades regionais em confronto/associação com aspectos de uma nacionalidade mais abrangente no âmbito de um espaço de ressocialização dotado de particularidades. [...] fazia-se necessário a revelação de aspectos próprios e específicos da realidade amazônica que simultaneamente a diferenciaria das demais regiões e contribuiria para a configuração de uma cultura nacional (PAIVA, 2002, p. 71-2).

Arruda (1998, p. 34) também faz menção a essa iniciativa em nível

nacional na qual se privilegiou o exotismo na tentativa de construir um perfil que

explicasse a diferença entre o país e as nações civilizadas, da qual o movimento

local é tributário, e cujos desdobramentos se fazem notar tanto tempo depois. Ela

chama esse momento de “negociação da diferença”. “A compreensão da

natureza, dos acidentes geográficos, esclarecia assim os próprios fenômenos

econômicos e políticos do país. O Brasil e os brasileiros se explicavam através

dessa natureza e das raças que aqui habitavam”. Acrescenta a autora que os

processos de construção da representação de si através do encontro com o outro

foram de duas ordens, de acordo com o momento histórico:

Na chegada do colonizador, o peso do imaginário medieval serviu de ímã para a ancoragem, colorindo a composição do novo panorama por projeção. O diferente se demarcou pela detração, mergulhando no velho – e em funduras do inconsciente. No momento seguinte, sempre no plano “oficial”, tratava-se de usufruir da diferença, ressaltando-a, e as teorias explicativas são o novo que se busca para reacomodar a velha diferença, dar-lhe outra indumentária. Assim, é a representação da alteridade, em ambos os casos, que constitui o mesmo, e se primeiramente ela é encarada sobretudo pelo negativo, mais adiante precisa ser resgatada para compor uma nova diferença, agora com relação aos “outros” não-brasileiros (ARRUDA, 1998, p. 40-1).

Tal como o mencionado pelos autores, nota-se novamente aqui e ali um

“quê” de orgulho a cada menção na mídia nacional às festas e ao folclore

amazônico, afinal, estar na mídia parece traduzir-se em um sentimento de

integração nesta “aldeia global” que é o Brasil. Nessa construção “metamórfica”

da alteridade em relação ao caboclo amazônico por parte dos sujeitos, podem ser

entrevistos esses processos de que fala Arruda, sobretudo quando o termo

150

Page 152: Um estranho no espelho

preconceito é mencionado. O outro nesse momento é o “de fora”, o estrangeiro,

aquele que não faz parte desta realidade e se arvora em julgá-la.

A relação simbiótica do homem com o ambiente, criada a partir da visão do

estrangeiro quanto ao homem americano, aqui personificado na figura do caboclo,

na opinião de Arruda (1998), é parte intrínseca da nossa subjetividade:

A relação estreita e ambígua com o ambiente natural – pela mão de um olhar externo – é um dos esteios da construção da nossa subjetividade. Apresenta dois estágios: primeiro, a diferenciação; depois, a incorporação do exótico – o outro de ontem torna-se o eu de hoje – e a valorização dessa incorporação, por meio de um nacionalismo eurocêntrico... Dessa forma, para construir uma imagem de si, extrai-se do outro uma parte do mesmo (ARRUDA, 1998, p.36).

A complexidade em definir “quem é o outro” de quem se fala nas

representações do caboclo, confirmam a proposição de Arruda de que a

alteridade “não é obrigatoriamente uma construção definitiva. Ela se aparenta a

um holograma, uma projeção do mesmo em movimento, mas também mais do

que isso. Ela se dilui e evolui no tempo, dando novos contornos a cada um

desses personagens” (ARRUDA, 1998, p. 42).

Assim, os personagens da nossa história se mostram nesse processo de

alternância entre simplesmente atribuir ao outro a designação com a qual não se

sentem propriamente identificados, e o sentir-se caboclo, como uma realidade

intrínseca à sua condição existencial presente, em que pesem os condicionantes

dessa designação. Ou ainda, em certos momentos, uma postura de defesa à

assunção consciente de uma identidade como grupo social, com características

próprias e valoração positiva.

3.3 O caboclo e “eu”: identidade e conflito

É nesse processo dinâmico de aproximações e contrastes que se vai tentar

identificar a existência de um sentido de identidade nas representações do

caboclo. De acordo com Jovchelovitch (1998, p. 80),

151

Page 153: Um estranho no espelho

o sujeito simbólico não está centrado em si mesmo, mas emerge em relação a algo que lhe é alter, distinto do que ele é. Da mesma forma, esta é a razão pela qual a ordem do simbólico se funda na alteridade. A alteridade, ou a diferença objetiva do mundo externo, fornece ao sujeito social as referências e os significados em relação aos quais a subjetividade emerge, se sustenta e, se for o caso, se defende. A identidade do interno sempre emerge em relação à identidade do externo. É quando o sujeito é capaz de reconhecer, acessar, avaliar e mesmo rejeitar o externo, que ele pode reconhecer quem é. Para ser portador de uma identidade única o sujeito vai precisar, em algum nível, defletir o externo e não permitir ao externo o controle de todos os seus mandatos identificatórios.

Para ser o portador de uma identidade – continua a autora – o sujeito não

só precisa reconhecer o que ele não é, como também estabelecer uma relação

com esse “não ser”. Supõe-se, então, que a tentativa de encontrar indícios de

uma possível “identidade cabocla” neste estudo passe necessariamente pela

negação do “ser caboclo”, expressado não só pelas verbalizações, mas

principalmente pela não verbalização, pelo não-dito.

Em seu artigo sobre a construção histórica do termo caboclo, Lima (1999,

p. 8-9) chama a atenção para a sua natureza conceitual, considerando-o como

“uma abstração, uma unidade de um sistema de classificação projetado para

retratar as diferenças entre as pessoas na sociedade”. Alerta ela para o perigo do

termo ser tomado como identidade, e com isso serem criadas fronteiras para um

grupo na realidade inexistente e estabelece distinção entre um grupo social, como

uma agregação real definida por interações estreitas, e uma categoria social, no

caso do caboclo, “uma agregação artificial de pessoas baseadas na identificação

de atributos comuns compartilhados por indivíduos que não se engajam

necessariamente em um relacionamento social em razão dessa similaridade.”

Lima (p. 29) abre discussão sobre a conveniência ou adequação de uso do

termo na atualidade, questionando o que deve fazer “se nossa representação do

outro entra em conflito com a sua própria representação de si, sua própria

identidade?”. Considera ela que a manutenção do uso da palavra demonstra

desconhecimento da parte de quem usa o termo, da forma como os próprios

caboclos se representam, pois “o nome caboclo vive apenas no discurso que nós

fazemos sobre uma outra categoria social”.

152

Page 154: Um estranho no espelho

Propõe a autora, que não se use mais a palavra caboclo ao se fazer

referência às identidades rurais na Amazônia contemporânea:

[...] essa história da palavra caboclo me faz refletir sobre a pretensão antropológica de subtrair sua carga simbólica consagrada pelo uso popular e supor que pode empregá-la com um novo sentido. Podemos falar em caboclo impunemente, atribuindo à palavra um significado neutro (e no caso pretender também o exercício da nominação)? (LIMA, 1999, p. 29).

De acordo com (Silva, 1996, p. 230), em razão de sua heterogeneidade

constitutiva, agregando componentes biológicos oriundos do processo

miscigenatório, elementos culturais diversos e classificação social não rígida, pois

pode ser encontrado em diferentes segmentos da população, o ser caboclo

amazônico “é uma configuração sociológica específica que pode ser analisada

sob diferentes ângulos teóricos, articulados com a observação das situações

concretas na sociedade”. O autor se refere, ainda, ao caráter subjetivo da

constituição do ser caboclo, que implica em objetivamente sentir-se como tal,

tendo ou não caracteres somáticos que evidenciem origem indígena.

Castells (2000, p. 22-3) reforça esta idéia, ao afirmar que identidades

constituem fontes de significado para os próprios atores, por eles originadas, e

construídas por um processo de individuação. Mesmo quando essas identidades

são formadas a partir de instituições dominantes, somente assumem essa

condição se forem internalizadas pelos atores sociais, que constroem o seu

significado com base nessa internalização. “Entendo por identidade” – diz ele –“o

processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda

um conjunto de hábitos culturais interrelacionados, os quais prevalecem sobre

outras fontes de significado.”

Segundo esse autor, na história da humanidade a etnia sempre foi uma

fonte fundamental de significado e reconhecimento, por tratar-se de uma das

estruturas mais primárias de distinção social assim como também de

discriminação, em muitas sociedades contemporâneas:

Em meio a comunas culturais e unidades territoriais de autodefesa, as raízes étnicas são distorcidas, divididas, reprocessadas, misturadas, estigmatizadas ou recompensadas de maneiras distintas, de acordo com uma nova lógica de informacionalização / globalização de

153

Page 155: Um estranho no espelho

culturas e economias que produzem compostos simbólicos a partir de identidades não claramente discerníveis (CASTELLS, 2000, p. 79).

Nessa perspectiva de reformatação identitária parece se inserir o

mencionado por Paiva (2002), em termos de identidade regional, reportando-se

ao contexto histórico anteriormente mencionado no qual se forjou, em nível

nacional e local, a criação de elementos culturais distintivos, uma “cara” nacional.

Assim, a “identidade regional” amazônica passa a ser definida, segundo ele, a

partir do confronto com outras regiões brasileiras:

Uma determinada região será melhor caracterizada em sua identidade, não em função de elementos próprios e específicos, mas sim em decorrência de um reconhecimento diferenciador destes elementos frente a outras “regiões”. Se os intelectuais amazonenses, ao longo das décadas de 1920 a 1950, elaboraram um certo conjunto de representações acerca da Amazônia, os aspectos e elementos identificadores por eles ressaltados não devem ser percebidos como dotados de uma existência na própria realidade regional, mas sim enquanto aspectos que ganham visibilidade a partir de uma confrontação com outras representações de outras regiões componentes da realidade nacional (PAIVA, 2002, p. 69-70).

Essa questão regional, de fato, faz parte do discurso dos entrevistados

como componente de um imaginário atualizado daquele secularmente

reproduzido, mas igualmente reducionista e equivocado. É com base nesse

composto imagético que a identidade amazônica está formada fora daqui

(nacionalmente e internacionalmente). Em nível local, a influência desse ideário

pode também ser notada.

Goffman (1988, p. 117) afirma que tanto a identidade pessoal quanto a

social de uma pessoa fazem parte das definições de outras pessoas e, no caso

da identidade pessoal, surgem antes mesmo do seu nascimento e subsistem

após sua morte. Embora tenha relativa liberdade na sua elaboração identitária, “o

indivíduo constrói a imagem que tem de si próprio a partir do mesmo material do

qual as outras pessoas já construíram a sua identificação pessoal e social”.

A análise de Berger (2000) sobre identidade converge para essa

concepção. Segundo ele:

154

Page 156: Um estranho no espelho

A identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez criada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a (BERGER, 2000, p. 228).

No pensamento desse autor, forçosamente as teorias sobre a identidade

estão sempre encaixadas em uma interpretação mais geral de uma dada

realidade, sendo “embutidas” no universo simbólico e legitimadas por este:

A identidade permanece ininteligível a não ser quando é localizada em um mundo. Qualquer teorização sobre a identidade – e sobre os tipos específicos de identidade – tem, portanto, de fazer-se no quadro das interpretações teóricas em que são localizadas (BERGER, 2000, p. 230).

Essa estreita relação da identidade com a sociedade na qual ela é

constituída é reforçada por Castoriadis (1982), que evidencia o seu caráter

“institucional”:

A identidade é instituída como regra e norma de identidade, como primeira norma e forma sem o que nada pode ser da sociedade, na sociedade, para a sociedade. [...] Não é apenas pelo fato de que só a instituição social-histórica possa “enunciar”, “formular”, “explicitar” a idéias, o esquema, a efetividade da identidade: somente a instituição social-histórica faz ser, e isso pela primeira vez na história do mundo, a identidade como tal, fazendo ser o idêntico como rigorosamente idêntico. Nesse sentido a identidade “plena” é, e só é, como instituída. [...] a sociedade faz ser a identidade com um modo de ser impossível e inconcebível em outro lugar (CASTORIADIS, 1982, p. 242).

A identidade social particularmente, acredita Silva (1996, p. 286), “implica

no sentir-se semelhante, “idêntico a”. Trata-se de um estado de ser que

pressupõe um compartilhamento, em termos coletivos. Neste sentido a

correspondência tem um significado de essencialidade.” Assim sendo, mesmo

portador de uma identidade individual, cada indivíduo carrega marcas identitárias

que o identificam como pertencente a diferentes grupos sociais, que se

evidenciam socialmente independente da vontade do portador. “Cada homem,

enquanto ser social, um ser político, um integrante de uma coletividade, contém

em si uma subjetividade insersora.” Já a identidade coletiva, seja qual for a

155

Page 157: Um estranho no espelho

dimensão quantitativa da coletividade, tem um caráter generalizante, que

transcende o individual.

Em se tratando de representações, destaca Lima (1999), deve-se ter em

mente que elas não são necessariamente identidades e não devem ser assim

interpretadas, ressaltando o vínculo obrigatório entre a concepção identitária

individual e a identidade coletiva:

A identidade é uma forma de representação dirigida a si próprio. É a visão de si, que em um contexto social diferenciado é relacionada a uma identidade coletiva. [...] A identidade de um grupo não está fora da existência de seus membros, não é algo metafísico ou exterior aos indivíduos, mas sim uma produção coletiva da somatória das contribuições individuais, no contexto de uma formação social particular (LIMA, 1999, p. 29).

A propósito, Berger (2000, p. 229-30) fala na constituição de identidades

dentro de um mesmo contexto:

As estruturas sociais históricas particulares engendram tipos de identidade, que são reconhecíveis em casos individuais. [...] os tipos de identidade são observáveis, verificáveis na experiência pré-teórica, e por conseguinte pré-científica. A identidade é um fenômeno que deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade. Os tipos de identidade, por outro lado, são produtos sociais tout court, elementos relativamente estáveis da realidade social objetiva (sendo o grau de estabilidade evidentemente determinado socialmente...).

No caso do caboclo estudado por ela em uma comunidade amazônica, a

autora observou não haver uma identidade clara, forte e socialmente valorizada

relacionada ao termo, a não ser como uma encenação pré-fabricada, “uma

aceitação dissimulada da nomeação que é imputada ao locutor e que este só

adota para uma platéia específica: uma que lhe seja (ou que ele considere)

superior” (LIMA, 1999, p. 26).

Internamente, o indivíduo constrói sua noção de pessoa com outros referenciais, citados acima, como sendo ligados à sua condição social (pobre), à principal atividade econômica (pesca artesanal, agricultura de pequeno porte, coleta de castanha), ao ambiente que ocupa (várzea ou terra firme), aos laços de parentesco locais (as “comunidades” de parentes), à cosmologia e à religião que professa (o mundo dos encantados, o catolicismo popular ou as seitas pentecostais de várias denominações). Essas noções de identidade estão presentes no seu discurso direto, quando falam de si e por si (LIMA, 1999, p. 26).

156

Page 158: Um estranho no espelho

Assim sendo, continua Lima (p. 27),

De maneira geral [...] a palavra caboclo é usada em discursos indiretos, quando se fala de alguém ou de algum grupo. O nome caboclo carrega uma história particular: surgiu ao longo do processo em que se formou o segmento camponês amazônico, no contexto de uma estrutura social altamente hierarquizada, como foi a sociedade amazônica colonial. E surgiu não só para referir a essa classe inferior como para definir suas qualidades e seu valor. Vimos como a palavra inicialmente denotava o índio genérico, destribalizado, passando posteriormente a significar o híbrido, o miscigenado.

Lima considera uma prova de que o termo tem sido usado principalmente

para classificar categorias e definir posições sociais é o fato de que a palavra ter

sido mantida, apesar da evolução da composição étnica da população que

nomeia. Ela acredita que a recusa de auto-designação como caboclos por parte

indivíduos da comunidade estudada está indissoluvelmente ligada à idéia de

inferioridade, porque o termo está atrelado à história colonial de subordinação.

Como é inegável o efeito que o termo causa à identidade, a aceitação do nome

caboclo implicaria também em incorporar o estigma de fracassado e derrotado.

Na presente análise, sem a pretensão de aprofundamento em termos

conceituais, toma-se a noção de identidade mais precisamente no sentido de

pertencimento a um grupo social, no caso o de “amazonenses”, stricto sensu e

“amazônidas” lato sensu, tendo em conta as implicações históricas e os

determinantes sócio-políticos e culturais que isso acarreta.

É estabelecida, assim, para efeito de interpretação, uma relação estreita

entre o ser caboclo, o ser amazonense e o ser amazônida, buscando-se perceber

e compreender as conexões e rupturas ocultas e visíveis na representação

dessas concepções pelos sujeitos e o que isso pode significar para o

entendimento da sua realidade atual.

É possível inferir das representações dos jovens entrevistados quanto à

existência de uma noção de identidade cabocla, uma convergência para a

proposição de Silva (1996) com relação ao sentir-se caboclo de acordo com

situações concretas na sociedade, e com a conveniência dessa auto-

157

Page 159: Um estranho no espelho

denominação a partir do paralelo que possa ser traçado entre essa referência e

um contexto específico ou imagem associada.

Sentir-se caboclo, por esse prisma, seria sentir-se semelhante ao caboclo

na concepção socialmente construída, mas essa concepção só é utilizada para

auto-atribuição quando internalizada e aceita pelo indivíduo, e isso só acontece

quando é favorável a ele. Melhor dizendo, parece não existir um ser caboclo, e

sim um estar caboclo, ou sentir-se caboclo em diferentes momentos dos

discursos, relativamente ao contexto enfocado. É, portanto, uma noção subjetiva,

mas calcada em valores da coletividade.

Pode-se dizer que a identidade de caboclo não é consensual enquanto

grupo de amazonenses (ou amazônidas, já que o número de entrevistados que

não é da região é mínimo): alguns amazonenses se dizem caboclos e outros não.

Mas existe consensualmente uma identidade de caboclo atribuída a outro grupo,

no caso o que reúne os estereótipos mencionados e encontra-se imobilizado ora

em um tempo histórico, ora em um espaço geográfico específico, ou em ambos

simultaneamente.

Quando a referência ao caboclo situa o entrevistado no mesmo universo,

onde é possível ser estabelecida uma comparação entre os sujeitos (no caso o

caboclo e o sujeito da pesquisa), impõe-se uma distância às vezes traduzida pelo

silêncio, pela negativa em opinar, como se, ao falar sobre o assunto, corresse o

risco de se revelar. A negativa de uma identidade como caboclo, acredita-se, não

é a negativa de uma identidade amazônica propriamente, mas rechaço a uma

carga histórica de negatividades que há séculos tem sido utilizada para

discriminar e oprimir o homem amazônico. O termo caboclo, infelizmente, tem

sido o “portador” preferencial dessas estereotipias.

Por carência de conhecimento aprofundado sobre identidade, esbarra-se

na dificuldade de ampliar a discussão quanto à possibilidade da existência de

uma identidade cabocla, pelo risco de incorrer em leviandade e superficialidade

no trato de uma questão tão complexa, principalmente quando autores como Lima

(1999) atestam a impossibilidade dessa existência. Para essa autora, o termo

158

Page 160: Um estranho no espelho

caboclo é uma abstração e refere-se a uma categoria social, não devendo ser

entendido como uma referência identitária.

No entanto, mesmo dentro deste limitado espaço interpretativo é possível

cogitar da existência de uma identidade cabocla “virtual”, uma identidade que

efetivamente não se realizou, mas ainda é passível de realizar-se. Mesmo na

negativa de assunção de uma identidade que se configura socialmente muito

mais como um “rótulo” indicativo de inferioridade, os indivíduos entrevistados

evidenciam a latência de um desejo de identificação, de pertencimento a uma

classe, uma necessidade de estabelecer laços sociais significativos, de integrar

um grupo, quando se posicionam a respeito da visão depreciativa “dos outros”

sobre o caboclo.

Existe, sim, uma negativa implícita e explícita, por parte dos entrevistados,

a uma categoria social desprestigiada e estigmatizada, mas esta multifacetada

abstração que é o caboclo comporta possibilidades outras que se nutrem também

no imaginário, mas vivem no espaço das contradições: o mesmo imaginário que

imobiliza, porque constituído de elementos que demandam atualizações para se

transformarem, revela as raízes de um povo cujos valores latentes só precisam de

espaço para vicejar.

159

Page 161: Um estranho no espelho

REFLEXÕES FINAIS

A condição humana está marcada por duas grandes incertezas: a incerteza cognitiva e a incerteza

histórica. (...) Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa,

mas dialogar com a incerteza. 31

is que esta viagem labiríntica parece ter chegado ao seu termo. Como

um remador que driblou por muito tempo a correnteza e o emaranhado

de galhos nas veredas intermináveis dos igapós e que, ao desaguar no

rio, acredita ter chegado a um lugar seguro, assim pensa o pesquisador, ao

abandonar o terreno movediço das análises e interpretações, ter chegado a, pelo

menos, algumas “quase” certezas. Mas o que se abre àquele que busca, assim

como para o remador, é um rio-mar incomensurável, cujo horizonte se perde de

tão distante. Um rio-mar de dúvidas e indefinições e apenas uma certeza: esta é

uma viagem que recomeça a cada nova paisagem.

E

Nas últimas falas deste breve “diálogo com a incerteza”, os

questionamentos que lhe deram origem subjazem às respostas que se esperava

ter encontrado. No início dessa jornada, questionava-se sobre as origens do

imaginário sobre o caboclo, pressupondo-se as ligações ancestrais com o ideário

delineado na época do descobrimento, tendo em conta a literatura dos

naturalistas e dos viajantes que tanto enfatizaram essa imagem mítica, que

contrapunha à natureza idilicamente idealizada a imagem de seres tidos como

selvagens e primitivos, beirando a animalidade.

Essa concepção é até certo ponto compreensível, em se considerando os

universos simbólicos tão contrastantes daqueles povos que ali se defrontavam em

momento histórico peculiar. Aqueles estrangeiros, antes de chegarem ao Novo

31 Edgar Morin, em A cabeça bem feita.

160

Page 162: Um estranho no espelho

Mundo, já traziam a imaginação povoada pelos elementos míticos que desde

tempos imemoriais vivem no universo onírico do homem; afinal é ali que o

desconhecido encontra existência real. Diante da incompreensão daquela

realidade tão diversa (e adversa), a explicação foi buscada nas histórias

reproduzidas pelos antigos sobre povos estranhos e grotescos em meio a uma

natureza fantástica.

O pensamento na Idade Média estava fortemente impregnado pela doutrina

da unidade fundamental do gênero humano, o que significa dizer que, pela ótica

eurocêntrica, a idéia da existência de humanos além das fronteiras geográficas

conhecidas na época era inaceitável. A busca por terras desconhecidas, assim,

era também a busca do paraíso desabitado, pleno de delícias e beleza, e os

relatos dos viajantes que arriscavam suas vidas nesses mundos inexplorados,

substituíam os contos maravilhosos que excitavam a imaginação, e exerciam

fascínio ainda maior do que aqueles.

Ao contato com um mundo inóspito e seres “incompreensíveis”, a miragem

tornou-se real, e foi assim que os aventureiros e cronistas encaixaram a paisagem

encontrada no modelo já existente, preenchendo as lacunas do que não era

explicável com as tintas da imaginação. Em algum momento, e por pouco tempo,

o selvagem foi incorporado ao paraíso e visto como o seu complemento, com o

manto da pureza com o qual cobriu Rousseau, ou pelo prisma mais racional e

criterioso com que o avaliaram Montaigne e Locke. Mas logo os seus modos

primitivos o distanciaram dessa concepção e ele passou a encarnar o oposto,

aquele que maculava o paraíso com a sua selvageria, para alguns, e sua

debilidade para outros: ele era o protótipo da inferioridade, vivia pelo instinto e

externava as fúrias fundamentais que a razão científica, a mística religiosa e a

lógica civilizatória não poderiam aceitar.

Essa lógica moldou a civilização americana a partir daquele momento,

adequando aos seus padrões o modus vivendi daqueles seres e forjando novos

modelos de vida pelo processo miscigenatório, que não originou apenas novos

tipos humanos, mas novas formas de organização social, embora à custa de

dolorosos embates e subjugações. O Brasil que hoje se conhece é resultante

161

Page 163: Um estranho no espelho

dessa mescla e de uma longa tradição de dominação e aviltamento das

populações indígenas.

A proposta integracionista do período colonial brasileiro deu margem a

freqüentes práticas genocidas e etnocidas, aniquilando formas sócio-organizadas

e culturais que poderiam representar hoje importantes experiências civilizatórias,

como é o caso da sociedade cabocla32 amazônica que, ao longo das histórias de

conquistas que marcaram a civilização brasileira, é um dos muitos exemplos que

podem ilustrar essa dinâmica de reciprocidade, quando são analisadas as

influências culturais impostas pelos dominados aos dominadores nas mais

diversas situações. É uma história de resistência, em todos os sentidos, que os

nativos têm exemplificado ao longo dos tempos.

A não-predominância da visão estrangeira no cenário amazônico tem

relação direta com a postura do nativo desde as primeiras investidas dos

colonizadores. Não foi sem resistência passiva, ou ativa, que os grupos indígenas

permitiram a chegada dos estranhos e, mesmo subjugados pela força e poderio

bélico dos dominadores e induzidos a modificação de hábitos culturais e

modificação drástica de atividades produtivas, com ênfase no extrativismo, não se

permitiram à subtração de sua forma peculiar de lidar com o ambiente amazônico,

com qual tinham total sintonia.

Ao longo do tempo e a despeito da ampliação e fortalecimento do modo de

produção capitalista na região, afluxo populacional de outros centros,

superexploração da natureza, desmantelamento cultural e extrativismo

tecnológico até o esgotamento de recursos, o caboclo restou como símbolo de

uma cultura ímpar, de um saber tradicional que hoje é posto em relevo para

entendimento da região.

A história do caboclo, por sinal, começa antes mesmo da “descoberta” da

Amazônia, nos tempos em que ela foi “inventada” pelos europeus. É na região

amazônica brasileira, mais do em qualquer outro lugar, que o mito edênico se

traduz e se perpetua. Enquanto no restante do país a face da civilização vai

32 De acordo com pesquisadores que estudaram os grupos tradicionais habitantes da Amazônia e consideram o modo de vida caboclo, nos moldes tradicionais, o melhor exemplo de sistema adaptativo ao complexo meio ambiente da região.

162

Page 164: Um estranho no espelho

ganhando contornos mais nítidos via colonização, a Amazônia resta praticamente

incólume, resistente ao “progresso” que avança em todos os pontos. É um país

dentro de outro, cuja natureza avassaladora ergue barreiras impenetráveis para

muitos que tentam alcançá-lo, e, mesmo aqueles que o adentram, não o

alcançam em sua complexidade.

Nesse universo belo e hostil vivem seres que, para alguns, nem chegam a

ser considerados humanos, incompreensíveis na sua maneira de viver uma vida

de ócio, selvageria e devassidão33, e inaceitáveis pela sua suposta incapacidade

de se adequar aos moldes da civilização. É nessa tentativa de “formatar” o

indígena aos interesses dos colonizadores que se vai delineando aos poucos a

figura do caboclo, o híbrido que nasce (literalmente) de uma ação profundamente

invasiva e autoritária, mas que não se amolda aos propósitos para si

estabelecidos, criando uma possibilidade alternativa de vida integrada ao

ambiente de forma quase simbiótica.

Essa reconhecida sabedoria do caboclo, no entanto, representa apenas um

aspecto de uma designação que reúne um mosaico de preconceitos

profundamente enraizados, situando o caboclo em um patamar bastante

desprestigiado. O caboclo foi alijado da dita sociedade civilizada desde que

rejeitou a subordinação imposta pela política colonizatória, que o mantinha refém

de práticas produtivas e tentava enquadrá-lo a padrões culturais estrangeiros.

Ignorando os atrelamentos econômicos e modelos de vida social, ele

desvencilhou-se dos seus algozes e “espraiou-se” pela imensidão amazônica, ao

longo dos rios, em pequenos agrupamentos de subsistência, optando por ser

dono de sua própria vida ao invés de escravo de interesses alheios. Embora

muitas vezes de modo pouco evidente, mostra a história que o espírito guerreiro e

livre do indígena, subjugado e espezinhado das formas mais atrozes, nunca

deixou de viver, latente, no caboclo, e o movimento da Cabanagem simbolizou

para muitos esse grito de afirmação.

33 Para muitos, como o naturalista Martius.

163

Page 165: Um estranho no espelho

O jeito ensimesmado do caboclo típico34, sua maneira rústica de viver, sem

requintes, supostamente sem ambições, provendo o seu sustento da natureza,

com a qual está em permanente contato, foi (e é) geralmente interpretado como

primitivismo, preguiça, incapacidade para progredir e outros tantos estereótipos a

ele atribuídos que têm raízes em conceitos semelhantes relacionados aos índios,

seus ancestrais. Práticas extrativistas como a exploração da borracha, no entanto,

mostraram que havia uma “ciência de viver” nessa forma do caboclo, sem a qual

seria impossível o acesso a bens tão cobiçados como a seringa.

Os que vieram para a Amazônia, atraídos pelas possibilidades de

enriquecimento e que acabaram constituindo uma mão-de-obra especializada

naquela atividade, como os nordestinos, não tiveram alternativa senão amoldar-se

à maneira típica dos caboclos, que dominavam o conhecimento do meio, e se

caboclizaram 35, no sentido de conformar o seu modo de vida a esse feitio,

enriquecendo a cultura local.

O fato é que, a despeito das qualidades que poderiam ser enumeradas a

partir de uma breve análise do contexto sócio-histórico do caboclo amazônico,

prevalece o imaginário que o coloca e o recoloca sempre numa posição de

inferioridade, ou pelo menos no sentido oposto em relação ao que se considera

como “civilizado”. Na visão atual, o caboclo aparece até mesmo em posição

inferior ao índio, numa inversão que ilustra bem a influência que podem exercer

os processos educacionais e os meios de comunicação de massa, subsidiados

pela mesma visão homogeneizante que fez cristalizar o neomito que traduz a

Amazônia como a cornucópia virtual da humanidade.

O índio salta dos livros de história como um personagem idealizado, cujo

contorno é reforçado pelo surto ecológico dos últimos anos, que contrapõe à

prática predatória que tem levado de roldão os recursos naturais em várias partes

do globo, a imagem de uma região que simboliza o baluarte das riquezas, cujo

habitante, portador de flecha e arco, é o seu guardião legítimo. Nesse cenário o

homem amazônico, personalidade real desta história, é relegado a uma não-

34 No caso o habitante do interior, cujo modo de vida ainda hoje é semelhante ao de seus ancestrais.35 A caboclização também é enfocada negativamente, no sentido de que, colocando-se no nível dos caboclos, tornar-se igualmente “inferior”.

164

Page 166: Um estranho no espelho

existência que se traduz em políticas que verdadeiramente ignoram a sua

presença.

Fato notório de que as políticas desenvolvimentistas não têm em conta o

caboclo36, é que os projetos voltados para a região (malogrados em sua maioria)

são feitos à sua revelia e sem considerar o seu conhecimento do meio. Ressalte-

se, também, que muitos fracassos de investidas políticas e econômicas na

Amazônia continuam a ser explicados pela velha lógica da supremacia do meio

em relação ao homem, pelas noções de terra inóspita, floresta indevassável, solo

improdutivo e outros tantos mitos recriados para justificar, inclusive, a longa

história de descaso com que a região amazônica, particularmente o Amazonas,

foi (e ainda é) tratada em nível nacional pelo poder federal.

Tratou-se até aqui quase exclusivamente do caboclo no sentido daquele

personagem ao qual o termo imediatamente remete, que tem características

físicas remanescentes do ameríndio, circunscrito em um habitat geograficamente

idealizado, que envolve rio, floresta etc. Mas os caboclos, no caso os assim

identificados pelos outros, já não compõem exclusivamente esta imagem

estereotipada (embora subsistam em muitos lugares de forma semelhante).

Mesmo o indivíduo a quem pode ser atribuída essa denominação, por sua origem

determinada de mestiço de índio com branco, pela tipicidade de suas maneiras e

conhecimento do meio, há muito vive também em comunidades urbanizadas e em

cidades como Belém e Manaus.

Seus descendentes espalham-se na cidade, ostentando nos caracteres

somáticos a sua herança. A julgar somente pela aparência física, especialmente

nos bairros periféricos da cidade, poder-se-ia dizer que em Manaus predominam

caboclos, e eles estão inseridos em todas as classes sociais, estão nas escolas,

nas universidades, em carros importados e em ônibus lotados. Este olhar, no

entanto, é um olhar “de fora”, já que, ao que tudo indica, tais quais os “caboclos”

que Wagley procurou localizar para realizar a sua pesquisa nos idos de 70,

também os “caboclos” modernos não se identificam como tal, e mesmo parecem

por vezes negar até mesmo a existência de caboclos no cenário urbano.

36 No mesmo sentido de homem amazônico.

165

Page 167: Um estranho no espelho

Foi neste aparente paradoxo que se firmou o interesse que originou esta

proposta de pesquisa, pelas evidências empíricas de que o termo continuava a

ser rejeitado como auto-referência pelos habitantes de Manaus, particularmente

os jovens. Os sujeitos da pesquisa corroboraram essa constatação, ao

reproduzirem nos seus discursos todo o ideário conhecido sobre a Amazônia, o

índio, o homem amazônico e o caboclo (seu sinônimo), com o agravante de

denotarem ignorância de uma história que diz respeito diretamente à sua

realidade social, e não demonstrarem (na maioria) consciência crítica a propósito

desse desconhecimento.

Em princípio se poderia cogitar que o problema é o termo caboclo, talvez já

em desuso, mas é pouco provável que assim o seja, porque o termo é utilizado

cotidianamente em Manaus, e tem sido reeditado como sinônimo de identidade

regional nos investimentos atualmente feitos na área cultural pelo Estado.

Políticos de grande influência no Amazonas o utilizam com freqüência nas suas

falas, acentuando a referência identitária, e os artistas, músicos e escritores locais

utilizam correntemente o termo em seus trabalhos.

Nas relações em sociedade, no entanto, o que sobressai é justamente o

aspecto negativo do uso, de forma que é comum usar o termo como forma de

ofensa a alguém. Poucos ficam impassíveis ao serem referidos como caboclos, e

os entrevistados reforçaram esta percepção, quando alguns afirmaram já ter feito

uso da palavra no sentido pejorativo, ou terem presenciado o desconforto de

alguém ao ser chamado pelo termo. Alguns, inclusive, admitiram tê-lo usado com

o propósito de humilhar o outro, confirmando a impossibilidade de uso neutro para

uma palavra forjada por um conjunto tão denso de significados.

De fato, realmente há uma negação, por parte do jovem amazonense, de

uma possível identidade como “caboclo” e um sentimento de alteridade na forma

com que este jovem vê aquele assim denominado. Da análise das falas dos

entrevistados é possível inferir a negativa não somente de uma identidade

cabocla, mas também de uma identidade amazônica, se isso implica em fazer

parte de uma história de fracassos e em desprestígio social.

166

Page 168: Um estranho no espelho

No entanto, paradoxalmente, em oposição a uma “vergonha” originária, é

possível identificar também um sentimento de orgulho racial latente, uma

sensação de pertencimento que em momentos espontaneamente emerge nos

discursos, a despeito do peso dos estereótipos negativos, remetendo à idéia de

que possa existir não apenas “uma abstração”, mas uma identidade cabocla

“virtual”, no sentido de que potencialmente pode significar um elo de

fortalecimento que subjaz aos processos de pulverização cultural.

Perguntado se considerava a si mesmo caboclo, um dos entrevistados, de

15 anos, respondeu que sim, porque “tenho sangue de caboclo sofrido e

guerreiro”. Outros, por sua vez, questionados sobre que tipo de pessoa

identificavam como caboclo, responderam que seria “uma pessoa de garra, de

fibra”ou “aquele que não se envergonha dos traços que possui e que respeita a

sua cultura”. Uma entrevistada, em sua fala sobre a valorização e auto-

valorização do caboclo, faz uma reflexão bem adequada sobre a realidade vista

em Manaus. Diz ela que “muitas pessoas negam suas origens e valorizam só o

que vem de fora. Os caboclos são mal vistos pela sociedade e muitas pessoas

acreditam que pessoas do interior são limitadas de conhecimento, e que só

sabem plantar e colher”.

Foi evidenciado no processo histórico de delineamento do pensamento

social sobre a Amazônia, como as ações da elite pensante européia e nacional

exerceram influência decisiva na constituição do ideário que hoje conhecemos e

vivenciamos na região, constatando-se que todos esses equívocos historicamente

engendrados e legitimados continuam a se reproduzir naturalmente, sem

encontrar resistência ou oposição, porque encontram terreno fértil na ausência de

ações que lhe façam frente.

Observa-se, assim, que o peso do imaginário no qual se encontra a

imagem deteriorada do caboclo é evidenciado nas representações dos sujeitos da

pesquisa, o que assume especial relevância quando se considera que esses

jovens fazem parte de uma geração que tem acesso a uma quantidade elevada

de informações e estas tendem a preencher o espaço vazio do conhecimento não

consolidado. Ou seja, na ausência ou fragilidade de uma orientação ou formação

167

Page 169: Um estranho no espelho

cultural, o que resta senão reproduzir o que já vem pronto (a cultura fast food),

que iguala a todos em um mesmo nível de alienação?

Volta-se, então, à ênfase na importância do processo educacional na

constituição do pensamento social dos jovens amazonenses. Assim, mesmo com

o risco de parecer “receita de almanaque”, acredita-se que na educação esteja o

primeiro e fundamental mecanismo de reforma cultural, não em bases alegóricas,

como foi visto no último quarto do século XX, mas em bases sólidas, em um

processo de reformatação identitária a partir da consciência crítica. Não como

uma forma de distanciamento da realidade polimorfa e da identidade high tech

ditada pela globalização, mas como um distintivo real, de um povo cujas raízes

culturais se fincam em um passado longínquo, mas cuja sabedoria cada vez se

mostra mais atual.

O segundo e igualmente importante elemento de transformação está na

ciência. Não a ciência que apenas descobre e cataloga novas espécies da fauna

e da flora e pesquisa aplicações práticas para os milhares de recursos naturais

que a região oferece, sem desconsiderar a sua importância e relevância, mas a

ciência que também pensa o social e o humano desse universo. Que questiona o

seu próprio saber quando se descobre assentada em bases movediças, e se

concebe como caminho, não como ponto de chegada. É nesse tipo de ciência,

norteada pela consciência de que há muito a ser palmilhado para o desvelamento

e o entendimento de um universo tão complexo como o amazônico, que se pode

também sustentar expectativas de mudança.

A desaguar sem fim num mar sem termo...

Na tessitura dessas considerações finais, quando que se percebe ainda

tantas interrogações a serem suscitadas, e a riqueza que a temática encerra,

aguça-se ainda mais a consciência do “princípio de incerteza”, existente em cada

instância constitutiva do conhecimento. Na construção do mosaico de

interpretações, em que se pretende que cada peça encontre o seu encaixe,

tende-se irremediavelmente à magia das soluções instantâneas, na tentativa de

reduzir a complexidade do fenômeno mesmo sabendo dessa impossibilidade.

168

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Não há certezas, esta é a conclusão possível e mais palpável ao se

vislumbrar o horizonte imenso. A lógica da percepção traduz apenas o que foi

visto: o espelho no qual se reflete o caboclo na atualidade, incluindo nesta

categoria os amazonenses entrevistados, produz uma imagem distorcida que ele

ora estranha, por não coincidente com sua auto-representação, ora reconhece,

por realçar aspectos que lhe são familiares.

Como o reflexo no rio, é uma imagem fugidia, que ora se apaga, ora se

revela, que se emoldura da paisagem e se revela familiar e acolhedora. Que se

esmaece na paisagem e se revela distante, indefinida.

No mesmo espelho d’água em que se imagina mirando o caboclo,

contempla-se a impossibilidade de definir o seu rosto, cujos contornos se

confundem com a paisagem. O horizonte é imenso, mas a linha divisória existe e

só é preciso alcançá-la....

Mas isto é uma outra viagem.

169

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