um caso perdido

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Obras da autora publicadas pela Galera Record Série Slammed Métrica Pausa Série Hopeless Um caso perdido Tradução de Priscila Catão 1ª edição RIO DE JANEIRO 2014 H759c 14-12325 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Hoover, Colleen Um caso perdido [recurso eletrônico] / Colleen Hoover; tradução Priscila Catão. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Galera Record, 2014. recurso digital (Hopeless; 1) Tradução de: Hopeless Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Agradecimentos ISBN 978-85-01-04340-5 (recurso eletrônico) 1. Ficção infantojuvenil americana. 2. Livros eletrônicos. I. Catão, Priscila. II. Título. CDD: 028.5 CDU: 087.5 Título original em inglês: Hopeless Copyright © 2013 by Colleen Hoover Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados. Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Composição de miolo da versão impressa: Abreu’s System Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585- 2000, que se reserva a propriedade literária desta tradução. Produzido no Brasil ISBN: 978-85-01-04340-5 Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções. Atendimento e venda direta ao leitor: [email protected] ou (21) 2585-2002. Para Vance. Alguns pais te dão a vida. Outros te ensinam a vivê-la. Obrigada por me ensinar a viver.

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Page 1: Um Caso Perdido

Obras da autora publicadas pela Galera RecordSérie SlammedMétricaPausaSérie HopelessUm caso perdidoTradução dePriscila Catão1ª ediçãoRIO DE JANEIRO2014H759c14-12325CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJHoover, ColleenUm caso perdido [recurso eletrônico] / ColleenHoover; tradução Priscila Catão. - 1. ed. - Rio de Janeiro:Galera Record, 2014.recurso digital (Hopeless; 1)Tradução de: HopelessFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebAgradecimentosISBN 978-85-01-04340-5 (recurso eletrônico)1. Ficção infantojuvenil americana. 2. Livroseletrônicos. I. Catão, Priscila. II. Título.CDD: 028.5CDU: 087.5Título original em inglês:HopelessCopyright © 2013 by Colleen HooverTodos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ouem parte, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autorforam assegurados.Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da LínguaPortuguesa.Composição de miolo da versão impressa: Abreu’s SystemDireitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somentepara o Brasil adquiridos pelaEDITORA RECORD LTDA.Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000,que se reserva a propriedade literária desta tradução.Produzido no BrasilISBN: 978-85-01-04340-5Seja um leitor preferencial Record.Cadastre-se e receba informações sobrenossos lançamentos e nossas promoções.Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002.Para Vance.Alguns pais te dão a vida. Outros te ensinam a vivê-la.Obrigada por me ensinar a viver.

Domingo, 28 de outubrode 201219h29Levanto e olho para a cama, prendendo a respiraçãocom medo dos sons que estão surgindo do fundo de

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minha garganta.Não vou chorar.Não vou chorar.Ajoelhando-me lentamente, apoio as mãos nabeirada da cama e passo os dedos nas estrelasamarelas espalhadas pelo azul-escuro do edredom.Fico encarando as estrelas até começarem a desfocarpor causa das lágrimas que embaçam minha visão.Aperto os olhos e afundo a cabeça na cama,agarrando o cobertor. Meus ombros começam atremer enquanto os soluços que tentava conterirrompem de mim violentamente. Com um movimentorápido, eu me levanto, grito e arranco o cobertor dacama, jogando-o do outro lado do quarto.Cerro os punhos e olho ao redor freneticamente,procurando mais alguma outra coisa para atirar. Pegoos travesseiros da cama e os arremesso no reflexo doespelho, na garota que não conheço mais. Ficoobservando a menina do espelho me encarar devolta, soluçando de forma patética. A fraqueza desuas lágrimas me deixa furiosa. Começamos a correruma em direção à outra até nossos punhos colidiremno vidro, quebrando o espelho. Vejo-a se desfazerem um milhão de pedacinhos brilhantes sobre ocarpete.Agarro as bordas da cômoda e a empurro para olado, soltando outro grito que estava preso há muitotempo. Após o móvel cair, abro uma das gavetas earremesso o conteúdo pelo quarto, rodopiando,jogando e chutando tudo o que encontro pela frente.Agarro as cortinas azuis e as puxo até o suportequebrar e estas caírem ao meu redor. Estendo obraço para as caixas empilhadas no canto do quartoe, sem nem saber o que tem dentro delas, pego a queestá no topo e a lanço na parede com tanta forçaquanto meu corpo de 1,60m consegue reunir.— Odeio você! — grito. — Odeio você, odeiovocê, odeio você!Estou jogando tudo o que encontro pela frenteem cima de tudo o que está na minha frente. Todavez que abro a boca para gritar, sinto o gosto de saldas lágrimas que me escorrem pelas bochechas.De repente, os braços de Holder me segurampor trás e me prendem com tamanha firmeza que ficoimobilizada. Eu me balanço, me viro e grito maisainda até parar de pensar no que estou fazendo.Passo a reagir apenas.— Pare — diz ele calmamente em meu ouvido,sem querer me soltar. Escuto o que ele diz, mas finjoque não ouvi. Ou simplesmente não me importo.

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Continuo me debatendo em seus braços, que meapertam mais.— Não encoste em mim! — grito o mais altoque posso, arranhando-lhe os braços. Mas Holdernão liga para isso.Não encoste em mim. Por favor, por favor,por favor.A pequena voz ecoa na minha cabeça, eimediatamente amoleço o corpo em seu abraço. Ficomais fraca conforme minhas lágrimas se fortalecem eme consomem. Eu me transformo num merorecipiente para as lágrimas que não param de cair.Sou fraca e estou deixando ele vencer.O aperto de Holder fica mais fraco, e ele põe asmãos nos meus ombros. Em seguida, me vira paraele. Não consigo nem sequer encará-lo. Eu mederreto em seu peito de tanta exaustão e frustração,agarrando sua camisa enquanto soluço, a bochechaencostada em seu coração. Sua mão toca a parte detrás de minha cabeça, e ele leva a boca até meuouvido.— Sky. — A voz dele está calma, inabalada. —Você precisa sair daqui. Agora.

Sábado, 25 de agosto de201223h50Dois meses antes...Gostaria de pensar que a maioria das decisões quetomei nesses meus 17 anos foi inteligente. Espero quea inteligência seja medida proporcionalmente e queminhas poucas decisões idiotas pesem menos que asinteligentes. Se for mesmo assim, amanhã vouprecisar tomar várias decisões boas, pois deixarGrayson entrar escondido pela janela do meu quartotrês vezes nesse mês pende bastante a balança para olado das idiotices. No entanto, só é possível medir aestupidez de uma decisão com o tempo... então pelojeito terei de esperar para ver se serei descobertaantes de julgar qualquer coisa.Apesar do que está parecendo, não sou umavagabunda. A não ser, é claro, que o conceito devagabunda se baseie no fato de que fico com váriaspessoas, mesmo que não me sinta atraída pornenhuma. Considerando isso, é até possívelargumentar.— Vá logo — articula ele com os lábios, por trásda janela fechada, nitidamente irritado com minha

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lerdeza.Destravo a janela e a deslizo para cima da formamais silenciosa possível. Karen pode até ser uma mãenão muito convencional, mas, em relação a garotosentrarem escondidos pela janela do quarto à meianoite,é a típica mãe repressora.— Silêncio — sussurro.Grayson ergue o corpo, joga uma perna por cimado beiral e entra no quarto. O fato de as janelasdeste lado da casa estarem a 1 metro do chão ajudabastante; é quase como se eu tivesse minha própriaporta. E, na verdade, Six e eu provavelmente usamosmais as janelas que as portas para ir de uma casa àoutra. Karen já está tão acostumada com isso quenem sequer comenta mais o fato de minha janela ficaraberta a maior parte do tempo.Antes de fechar a cortina, olho para a janela doquarto de Six. Ela acena para mim com uma dasmãos enquanto puxa o braço de Jaxon, que tambémestá entrando no quarto dela, com a outra. Assim queele entra, põe a cabeça para fora da janela.— Me encontre em sua caminhonete daqui auma hora — sussurra ele bem alto para Grayson, edepois fecha a janela e puxa as cortinas de Six.Six e eu somos grudadas desde que ela semudou para a casa ao lado quatro anos atrás. Asjanelas de nossos quartos são adjacentes, o que éextremamente conveniente. No início, as coisas erambem inocentes. Quando tínhamos 14 anos, eu entravaescondida no quarto dela à noite, roubávamossorvete do freezer e assistíamos a filmes. Com 15anos, começamos a convidar garotos para entraremescondidos em nossos quartos, tomar sorvete e verfilmes com a gente. Aos 16 anos, os garotospassaram a importar mais que filmes e sorvete.Agora, aos 17, só nos damos o trabalho de sair denossos respectivos quartos depois que os garotosvão embora. É então que o sorvete e os filmes voltama ser mais importantes.Six troca de namorado com a mesma frequênciacom que troco os sabores do sorvete. O sabor domês para ela é Jaxon. O meu é Rocky Road.Grayson e Jaxon são melhores amigos e foi por issoque eu e Grayson começamos a ficar. Quando osabor do mês de Six tem um melhor amigo, ela tentaempurrá-lo sutilmente para mim. E Grayson é o maiorgato. Tem um corpo incrível, cabelo perfeitamentedesleixado, olhos escuros penetrantes... tudo nessenível. A maioria das garotas que conheço se sentiriaprivilegiada só de estar no mesmo cômodo que ele.

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Pena que eu não ache isso.Fecho as cortinas e, ao me virar, vejo queGrayson está a centímetros de meu rosto, prontopara começar. Ele toca minhas bochechas e abre seusorriso arranca-calcinha.— Oi, linda.Antes que eu possa responder, seus lábioscumprimentam os meus com um beijo molhado. Econtinua me beijando enquanto tira os sapatos, queele descalça sem dificuldade alguma enquanto vamosem direção à minha cama, ainda com as bocascoladas. A facilidade com que ele faz as duas coisassimultaneamente é impressionante e perturbadora.Sem pressa, ele me acomoda na cama.— Sua porta está trancada?— Vá conferir — digo.Ele me dá um beijo rápido nos lábios antes desaltar da cama para ver se a porta está mesmotrancada. Já estou com Karen há treze anos e jamaisfiquei de castigo; não quero dar motivos para elacomeçar a fazer isso agora. Daqui a algumas semanasvou fazer 18 anos, mas duvido que ela mude a formade me educar, não enquanto eu continuar morandona casa dela.Não que a forma como tenta me educar seja algoruim. É apenas... bem contraditória. Ela sempre foirígida comigo. Nunca tivemos internet, celulares, nemmesmo televisão, porque ela acredita que atecnologia é a origem de todos os males do mundo.No entanto, é extremamente leniente com outrascoisas. Me deixa sair com Six sempre que quero e,contanto que eu avise onde estou, a hora em quechego em casa não importa. Mas jamais abusei muitodessa regra, então talvez tenha hora para chegar emcasa e só não saiba disso ainda.Ela não liga se solto um palavrão, apesar de euraramente fazer isso. Às vezes, até me deixa bebervinho no jantar. Conversa comigo como se eu fossemais uma amiga que uma filha (apesar de ter meadotado 13 anos atrás) e, de alguma maneira,consegue fazer com que eu seja (quase) totalmentesincera sobre tudo o que acontece na minha vida.Não existe meio-termo com ela. Ou éextremamente leniente ou extremamente rígida. É umaliberal conservadora. Ou uma conservadora liberal.Seja lá o que for, é difícil entendê-la, e foi por issoque desisti há anos.O único assunto que já nos fez discutir foi oensino público. Estudei em casa a vida inteira (oensino público é outra origem de todos os males do

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mundo) e venho implorando para frequentar umcolégio desde que Six pôs essa ideia em minhacabeça. Tenho me candidatado para algumasuniversidades e acho que minhas chancesaumentariam se pudesse acrescentar algumasatividades extracurriculares nas inscrições. Depois demeses de súplicas, minhas e de Six, Karen finalmentecedeu e deixou que eu me matriculasse para o últimoano. Eu poderia conseguir os créditos de que precisopara completar meu programa de ensino domiciliarem apenas alguns meses, mas uma pequena parte demim sempre quis a vida de uma adolescente normal.Claro que se eu soubesse que Six começaria umintercâmbio na mesma semana em quecompartilharíamos nosso primeiro dia de aula juntas,eu nunca levaria a sério a ideia de estudar numcolégio. No entanto, sou imperdoavelmente teimosa eprefiro enfiar um garfo na parte carnuda da mão doque dizer a Karen que mudei de ideia.Tentei evitar o pensamento de que não vou terSix comigo este ano. Sei o quanto ela queria ointercâmbio, mas meu lado egoísta estava torcendopara que não desse certo. Fico apavorada só depensar em passar por aquelas portas sem ela.Contudo, sei que nossa separação é inevitável e que,mais cedo ou mais tarde, vou ser obrigada a fazerparte do mundo real onde existem outras pessoasalém de Six e Karen.Minha falta de acesso ao mundo real foitotalmente substituída por livros, e não deve ser muitosaudável viver na terra dos finais felizes. Ler tambémme ensinou sobre os horrores (possivelmenteexagerados) do ensino médio, dos primeiros dias deaula, das panelinhas, das garotas malvadas. E,segundo Six, já tenho uma certa reputação só por seramiga dela, o que não ajuda em nada. Six não temum passado muito comportado, e, pelo visto, algunsdos garotos com quem fiquei não costumam mantersegredo. Juntando as duas coisas, imagino que meuprimeiro dia de aula vai ser bem interessante.Não que eu me importe com isso. Não mematriculei para fazer amizades nem para impressionarninguém, então, contanto que minha reputaçãoinjustificada não interfira no meu objetivo principal,tudo vai ficar bem.Assim espero.Grayson volta para a cama após verificar que aporta está trancada e abre um sorriso sedutor paramim.— Que tal um pequeno strip-tease?

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Ele balança os quadris e levanta um pouco acamisa, deixando à mostra o abdômen sarado. Estoucomeçando a perceber que ele mostra o abdômensempre que pode. Grayson é basicamente o típicobad boy egocêntrico.Rio quando ele gira a camisa acima da cabeça ea joga em mim. Ele desliza o corpo em cima do meumais uma vez e põe a mão na minha nuca, ajustandominha boca de novo.Faz pouco mais de um mês que Grayson entrouescondido no meu quarto pela primeira vez, e namesma hora ele deixou claro que não queria nenhumrelacionamento sério. E eu deixei claro que nãoqueria nenhum relacionamento sério com ele, entãonos demos bem desde o início. Claro que ele é umadas únicas pessoas que conheço no colégio, entãome preocupo que isso talvez estrague essa coisa boaque está rolando entre nós — que é absolutamentenada. Ele está aqui há menos de três minutos e jácolocou a mão por dentro da minha camisa. Achoque ficou bem claro que ele não está aqui pelo meupapo interessante. Seus lábios desgrudam dos meus echegam até meu pescoço, então aproveito o intervalopara inalar profundamente e tentar sentir alguma coisamais uma vez.Qualquer coisa.Fixo o olhar no teto, nas estrelas de plástico quebrilham no escuro, percebendo vagamente os lábiosque se aproximam dos meus seios. São setenta eseis. As estrelas, quero dizer. Sei disso porque nasúltimas semanas tive tempo de sobra para contá-lasdurante esses momentos desagradáveis. Eu, deitada,imperceptivelmente indiferente enquanto Graysonexplora meu rosto, pescoço e, às vezes, meus seios,com lábios curiosos e excitados demais.Se não estou curtindo, por que deixo ele fazerisso?Jamais senti alguma ligação emocional com osgarotos com quem fico. Ou melhor dizendo, com osgarotos que ficam comigo. Infelizmente é algo bemunilateral. Apenas um garoto chegou perto deprovocar alguma reação física ou emocional em mim,mas no fim das contas acabou sendo apenas umailusão autoinduzida. O nome dele era Matt, e saímosjuntos por menos de um mês, até suas idiossincrasiascomeçarem a me irritar. Por exemplo, ele só tomavaágua de garrafa com um canudo. E suas narinas seexpandiam quando ele se aproximava para me beijar.E o fato de ele ter dito que me amava somente trêssemanas após decidirmos namorar.

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Pois é. A última descoberta foi uma maravilha.Tchauzinho, Matty.Six e eu já analisamos minha falta de reaçõesfísicas com garotos muitas vezes. Por um tempo, eladesconfiou que eu devia ser lésbica. Quandotínhamos 16 anos, após um beijo muito breve econstrangedor para “testar” essa teoria, chegamos àconclusão de que não era esse o caso. Não é que eunão goste de ficar com garotos. Gosto, sim — casocontrário, não ficaria com eles. Mas não gosto dissopelos mesmos motivos das outras garotas. Nuncafiquei caidinha por ninguém. Ninguém jamais me fezsentir frio na barriga. Na verdade, desconheçototalmente essa sensação de ficar encantada poralguém. A verdadeira razão pela qual gosto de ficarcom garotos é a seguinte: me sinto completa econfortavelmente entorpecida. São em situaçõescomo esta em que estou agora com Grayson quegosto de desligar a mente. Ela se desliga porcompleto, e gosto disso.Meus olhos estão focados nas 17 estrelas noquadrante direito superior da constelação no teto. Derepente, volto bruscamente à realidade. As mãos deGrayson se aventuraram além do que deixei nopassado; rapidamente percebo que ele desabotoouminha calça jeans e que seus dedos estão na bordade algodão da minha calcinha.— Não, Grayson — sussurro, empurrando suamão. Ele retira a mão, geme e depois pressiona a testano meu travesseiro.— Qual é, Sky. — Ele está respirando forte emmeu pescoço e apoia o peso no braço direito,olhando para mim, tentando me conquistar com seusorriso.Já mencionei que sou imune ao sorrisoarranca-calcinha dele?— Por quanto tempo vai ficar fazendo isso? —Ele desliza a mão pela minha barriga e aproxima aspontas dos dedos da minha calça mais uma vez.Fico horrorizada.— Isso o quê? — Tento sair de baixo dele.Ele ergue o corpo, se apoiando nas mãos, e olhapara mim como se eu fosse totalmente sem noção.— Essa história de pagar de “santinha”. Já nãoaguento mais, Sky. Vamos fazer isso de uma vez portodas.O que me faz voltar a pensar que, ao contráriodo que dizem por aí, não sou uma vagabunda. Nuncatransei com nenhum dos garotos com quem fiquei,nem mesmo com Grayson, que está fazendo bico na

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minha frente neste exato momento. Sei que não reagirsexualmente poderia facilitar e me fazer transar compessoas aleatórias. No entanto, também sei que éexatamente por isso que não devo transar. Sei que,no instante em que fizer isso, os boatos vão deixar deser apenas boatos. Tudo vai passar a ser verdade. Ea última coisa que quero é que as fofocas sobre mimse concretizem. Acho que posso creditar meus quase18 anos de virgindade puramente à teimosia.Pela primeira vez nesses dez minutos em que eleestá aqui, percebo o cheiro de álcool.— Você está bêbado.Empurro seu peito.— Eu disse para você não aparecer mais aquibêbado.Ele sai de cima de mim, e eu me levanto paraabotoar a calça e ajeitar a camisa. Fico aliviada porele estar bêbado. Estou mais do que querendo quevá embora.Ele se senta na beirada da minha cama, agarraminha cintura e me puxa para perto. Em seguida, põeo braço ao meu redor e encosta a cabeça na minhabarriga.— Desculpe-me — diz ele. — É que eu querotanto você que acho que não vou aguentar mais viraqui se não puder tê-la toda para mim. — Ele abaixaas mãos e encosta na minha bunda, depois pressionaos lábios na pele entre minha calça e minha camisa.— Então não venha mais aqui. — Reviro osolhos e me afasto dele. Em seguida, vou até a janela.Quando abro a cortina, vejo Jaxon saindo do quartode Six. De alguma maneira, nós duas conseguimoscondensar as visitas de uma hora para dez minutos.Olho para Six, e ela me lança um olhar de “hora deescolher um sabor novo”.Ela sai pela janela logo depois de Jaxon e seaproxima de mim.— Grayson também está bêbado?Confirmo com a cabeça.— Terceiro strike. — Eu me viro e olho paraGrayson, que está deitado na cama, sem perceberque já passou da hora de ir embora. Vou até a camae pego sua camisa, arremessando-a no rosto dele. —Se manda — digo. Ele olha para mim e ergue asobrancelha. Quando vê que estou falando sério, saida cama de má vontade e calça os sapatos fazendobico, como se fosse um menininho de 4 anos. Eu meafasto para que ele possa sair.Six espera Grayson sair pela janela e depoissobe por ela enquanto um dos garotos murmura a

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palavra “vagabas”. Já dentro do quarto, Six reviraos olhos, vira-se e põe a cabeça do lado de fora.— Engraçado, nós somos vagabas porque vocêsnão comeram ninguém. Canalhas.Ela fecha a janela e vai até a cama, deixando-secair no colchão e cruzando as mãos atrás da cabeça.— E mais um já era.Acho graça, mas minha risada é interrompida poruma forte batida na porta do quarto. Destranco-a namesma hora e dou um passo para o lado para queKaren entre. Seus instintos maternais não medesapontam. Ela olha freneticamente ao redor doquarto até avistar Six na cama.— Droga — diz ela, virando-se para ficar defrente para mim. Ela põe a mão nos quadris e franzea testa. — Jurava que tinha escutado algum garotoaqui dentro.Vou até a cama e tento disfarçar o pânico totalque se espalha pelo meu corpo.— E está desapontada porque... — Às vezesnão entendo mesmo as reações dela. Como jádisse... é contraditório.— Você vai fazer 18 anos daqui a um mês. Otempo que tenho para deixá-la de castigo pelaprimeira vez está se esgotando. Precisa começar aaprontar um pouco mais, menina.Suspiro aliviada ao perceber que ela só estábrincando. Quase me sinto culpada por ela nãosuspeitar de que a filha estava sendo apalpada cincominutos antes neste mesmo quarto. Meu coraçãobate tão forte no peito que fico com medo de quepossa escutar.— Karen? — diz Six atrás da gente. — Se servede consolo, dois caras bonitinhos estavam seagarrando com a gente ainda agora, mas nós osexpulsamos logo antes de você chegar porque elesestavam bêbados.Fico boquiaberta e me viro para lançar a Six umolhar que eu espero ser capaz de lhe dizer que osarcasmo não tem muita graça quando o que se diz éverdade.Mas Karen ri.— Bem, talvez amanhã à noite vocês arranjemuns gatinhos sóbrios.Não preciso mais me preocupar com apossibilidade de Karen escutar meu coração, pois eleparou de vez.— Gatinhos sóbrios, é? Acho que possoprovidenciar isso — diz Six, piscando para mim.— Você vai dormir aqui? — pergunta Karen a

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Six ao voltar para a porta.Six dá de ombros.— Acho que hoje vamos ficar lá em casa. É aúltima semana que tenho para curtir minha própriacama pelos próximos seis meses. Além disso, temChanning Tatum na minha televisão.Olho para Karen e vejo que vai começar.— Não, mãe. — Começo a me aproximar dela,mas vejo seus olhos ficando lacrimosos. — Não,não, não. — Quando a alcanço, já é tarde demais.Ela está aos prantos. Se tem uma coisa que nãosuporto é gente chorando. Não porque fico emotiva,mas porque me irrita. E é constrangedor.— Só mais um — diz ela, correndo para Six. Elajá a abraçou umas dez vezes hoje. Quase acho queela está mais triste que eu por Six ir embora daqui aalguns dias. Six atende ao pedido de um décimoprimeiro abraço e pisca para mim por cima do ombrode Karen. Praticamente tenho de separar as duas àforça, para que Karen saia do meu quarto.Ela anda até a porta e se vira mais uma vez.— Espero que você conheça um italiano bemgato — diz ela para Six.— Espero que eu conheça mais que um —comenta Six impassível.Quando a porta se fecha após Karen sair, meviro, pulo na cama e dou um murro no braço de Six.— Você é uma vaca — digo. — Não foiengraçado. Achei que ela havia acreditado.Ela ri, segura minha mão e se levanta.— Vamos. Tem Rocky Road lá em casa.Ela não precisa pedir duas vezes.

Segunda-feira, 27 deagosto de 201207h15Fiquei em dúvida se devia correr esta manhã ou não,mas acabei decidindo dormir mais um pouco. Corrotodos os dias, exceto aos domingos, mas pareciaerrado acordar mais cedo que o normal hoje. Oprimeiro dia de aula já é tortura suficiente, entãodecido adiar o treino para depois do colégio.Felizmente, tenho meu próprio carro há cerca deum ano, então não preciso depender de ninguém parachegar ao colégio na hora. Não só chegopontualmente, mas 45 minutos adiantada. Meu carroé o terceiro a entrar no estacionamento, então, pelomenos, consigo uma boa vaga.Uso o tempo extra para dar uma conferida na

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quadra de esportes ao lado. Se estou pensando emtentar entrar para o time de atletismo, preciso pelo—menos saber onde ficam as coisas. Além disso, nãoposso simplesmente ficar sentada no carro por meiahora, contando os minutos.Ao chegar na pista de atletismo, vejo um rapazdo outro lado, dando voltas, então vou para aarquibancada. Eu me sento no local mais alto e ficoassimilando os novos arredores. Lá de cima, consigover o colégio inteiro. Não parece tão grande nem tãointimidador quanto eu imaginava. Six desenhou ummapa para mim e até escreveu algumas dicas, entãotiro o papel da mochila para dar uma olhada nele pelaprimeira vez. Acho que ela se sente mal por ter meabandonado e está tentando compensar.Olho para a área do colégio e depois para omapa. Parece fácil. Aulas são no prédio à direita.Almoço à esquerda. Atletismo atrás do ginásio. Alista de dicas é bem longa, então começo a ler.Nunca use o banheiro aolado do laboratório de————ciências. Nunca. Nuncamesmo.Pendure a alça da mochilasó em um ombro. Nuncause nos dois ombros, isso écoisa de nerd.Sempre confira a data devalidade do leite.Fique amiga de Stewart, ocara da manutenção. Vai serbom para você.O refeitório. Evite-o a todocusto, mas se o clima estiverruim é só fingir que nãosabe o que está fazendoquando entrar ali. Eles—conseguem sentir o cheiro

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do medo na pessoa.Se o Sr. Declare for seuprofessor de matemática,sente-se no fundo da sala enão faça nenhum contatovisual. Ele adora colegiais,se entende o que querodizer. Ou, melhor ainda,sente-se na frente. Vaiconseguir um A superfácil.A lista continua, mas não consigo ler mais. Não parode pensar no “eles conseguem sentir o cheiro domedo na pessoa”. Em momentos como esse, euqueria ter um celular. Ligaria para Six agora mesmo eexigiria uma explicação. Dobro o papel e o guardo nabolsa, em seguida volto a prestar atenção nocorredor solitário. Ele está sentado na pista, decostas para mim, alongando-se. Não sei se é umaluno ou um treinador, mas, se Grayson visse essecara sem camisa, provavelmente seria bem maismodesto e não ergueria a sua com tanta rapidez.O rapaz se levanta e segue em direção àarquibancada, sem erguer o olhar, portanto não mevê. Sai pelo portão e anda até um dos carros noestacionamento. Depois abre a porta, pega umacamisa no banco da frente e a veste. Entra no carro evai embora, no exato momento em que oestacionamento começa a ficar cheio. E está ficandocheio bem rápido.Ai, meu Deus.Pego a mochila e coloco as duas alças nosombros de propósito. Em seguida, desço a escadaque leva até o Inferno.Eu disse Inferno? Porque isso foi eufemismo. Ocolégio público é tão ruim como eu imaginava quepoderia ser e ainda pior. As aulas não são tão ruins,mas eu precisei (por pura necessidade edesconhecimento da área) usar o banheiro ao ladodo laboratório de ciências. E apesar de tersobrevivido, vou ficar com sequelas para o resto davida. Uma simples anotação de Six me dizendo que obanheiro está mais para bordel teria sido suficiente.Agora estamos indo para a quarta aula do dia ejá ouvi as palavras “vadia” e “puta” sendosussurradas de maneira nada sutil por quase todas asgarotas com quem cruzei nos corredores. E, por falarem sutilezas, a pilha de dinheiro que caiu do meu

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armário quando o abri, junto a um bilhete, foi umabela prova de que não sou muito bem-vinda aqui. Obilhete havia sido assinado pelo diretor, mas nãoacreditei muito nisso por causa dos erros gramaticaise das últimas palavras: Peço desculpa por seuarmário não ter vindo com uma barra de poledance, sua vagabunda.Fico encarando o bilhete nas mãos com um1.2.sorriso tenso, aceitando vergonhosamente os doispróximos semestres que eu mesma trouxe para minhavida. Cheguei a acreditar que as pessoas só secomportavam assim nos livros, mas estoutestemunhando em primeira mão que gente idiotaexiste de verdade. Também espero que a maioriadessas brincadeirinhas de mau gosto sigam na linhade me dar dinheiro como se eu fosse uma stripper.Que imbecil dá dinheiro quando quer insultar alguém?Imagino que alguma pessoa rica. Ou pessoas ricas.Tenho certeza de que a panelinha de garotasrindo atrás de mim, com suas roupas caras quebeiram à indecência, está esperando que eu largueminhas coisas no chão e saia chorando, correndopara o banheiro mais próximo. Suas expectativas vãose deparar com alguns problemas:Eu não choro. Nunca.Já entrei naquele banheiro ejamais volto lá.3.Gosto de dinheiro. Quemsairia correndo por causadisso?Deixo a mochila no chão do corredor e recolho odinheiro. Há pelo menos vinte notas de 1 dólarespalhadas pelo chão, e mais de dez que ainda estãono meu armário. Pego todas e as enfio na mochila.Deixo uns livros e pego outros, fecho o armário, emseguida coloco as alças da mochila nos dois ombrose sorrio.— Digam aos queridos pais de vocês queagradeço. — Passo pelo grupinho de meninas (quenão está mais rindo) e ignoro os olhares fulminantes.É hora do almoço, e, ao ver a quantidade de chuvainundando o pátio, fica claro que esse clima de merdaé alguma retaliação cármica. Contra quem, não façoideia.Posso fazer isso.Ponho as mãos nas portas do refeitório, abrindoas,

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meio que esperando ser recebida com fogo eenxofre.Passo pela entrada, e não é com fogo e enxofreque me recebem. É com uma quantidade de decibéisque meus ouvidos nunca ouviram na vida. Parecemais que cada pessoa dentro do refeitório estátentando falar mais alto que todas as outras pessoasali presentes. Acabei de me matricular num colégioem que todo mundo só se importa em superar ooutro.Faço meu melhor para fingir que estou confiante,sem querer atrair a atenção indesejada de ninguém.De garotos, panelinhas, párias ou de Grayson.Consigo chegar à metade da fila ilesa; e, então,alguém me puxa pelo braço.— Estava esperando você — diz ele.Nem consigo ver direito o rosto do garotoenquanto ele sai me guiando pelo refeitório,serpenteando entre as mesas. Até reclamaria daqueleincômodo repentino, mas é a coisa mais empolganteque aconteceu comigo durante todo o dia. Ele afastao braço do meu e pega minha mão, me puxandoatrás dele com mais rapidez. Paro de resistir e meentrego ao fluxo.Pelas costas dele, percebo que é estiloso, pormais estranho que seu estilo possa ser. Está usandouma camisa de flanela que tem a borda do mesmotom rosa choque dos sapatos. A calça é preta, justae cai muito bem no corpo de alguém... se essealguém for uma garota. No caso dele, a calça sórealça a magreza de sua silhueta. O cabelo castanhoescuroé curto nas laterais e um pouco maiscomprido em cima. Os olhos dele estão... meencarando. Percebo que paramos e que ele não estámais segurando minha mão.— Veja se não é a puta da Babilônia. — Elesorri para mim. Apesar das palavras que acabaramde sair de sua boca, a expressão é de ternura. Ele sesenta à mesa e balança a mão indicando para eu fazero mesmo. Há duas bandejas na sua frente, mas ele ésó um. Então empurra uma delas para o lugar vaziona minha frente. — Sente-se. Temos uma aliança adiscutir.Eu não me sento. Não faço nada por váriossegundos, além de contemplar a situação que estádiante de mim. Não faço ideia de quem seja essegaroto, e, mesmo assim, ele age como se estivesseesperando por mim. Sem mencionar que acabou deme chamar de puta. E, pelo jeito, comprou... meualmoço? Dou uma conferida de canto de olho,

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tentando entendê-lo, e, de repente, a mochila nolugar ao lado dele chama minha atenção.— Você gosta de ler? — pergunto, apontandopara o livro que aparece no topo da sua mochila.Não é um livro didático. É um livro-livro. Algo queeu pensava que essa geração de monstros da internetdesconhecia. Estendo o braço, tiro o livro da mochilae me sento na frente dele. — É de que gênero? E,por favor, não diga ficção científica.Ele recosta-se e sorri como se tivesse acabadode vencer alguma coisa. Droga, talvez ele tenhavencido mesmo. Acabei me sentando, não foi?— Que importância tem o gênero, se o livro ébom? — pergunta ele.Folheio as páginas, sem conseguir distinguir se éum romance ou não. Sou muito fã de romances e,pela expressão no rosto desse garoto à minha frente,ele também deve ser.— E o livro é? — pergunto, folheando-o. —Bom?—É, sim. Pode ficar com ele. Acabei de leragorinha, durante a aula de informática.Olho para ele, que ainda está contente com suavitória. Guardo o livro na mochila, inclino-me para afrente e investigo o que tem na minha bandeja. Aprimeira coisa que faço é conferir a validade do leite.Está OK.— E se eu fosse vegetariana? — pergunto,olhando para o peito de frango no meio da salada.— É só comer a salada ao redor — respondeele.Pego o garfo e corto um pedaço de frango,levando-o em seguida à boca.— Bem, está com sorte, pois não sou.Ele sorri, pega o próprio garfo e começa acomer.— E vamos formar uma aliança contra quem? —Estou curiosa para saber por que ele me escolheu.Ele dá uma olhada ao redor e ergue a mão no ar,girando-a em todas as direções.— Idiotas. Atletas. Preconceituosos. Vacas.Ele abaixa a mão, e noto as unhas pintadas depreto. Ele percebe que estou observando suas unhas,então olha para baixo e faz um bico.— Escolhi preto porque é o que melhorrepresenta meu humor de hoje. Talvez depois quevocê concordar em se juntar a mim nessa jornada, eutroque por uma cor um pouco mais alegre. Quemsabe amarelo.Balanço a cabeça.

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— Odeio amarelo. Fique com o preto, combinacom seu coração.Ele ri. Uma risada genuína e pura que me fazsorrir. Gostei de... deste garoto cujo nome nem sei.— Qual é o seu nome? — pergunto.— Breckin. E você é Sky. Pelo menos esperoque sim. Acho que devia ter confirmado suaidentidade antes de sair revelando os detalhes domeu plano malévolo e sádico de me apossar docolégio com essa nossa aliança de duas pessoas.— Sou Sky. E não precisa se preocupar, poisvocê ainda nem me contou os detalhes do seu planomalévolo. Mas estou curiosa para saber como vocêdescobriu quem sou. Conheço uns quatro ou cincogarotos desse colégio e fiquei com todos eles. Masvocê não é um desses, então como descobriu?Por uma fração de segundo, vejo nos olhos deleuma centelha do que parece ser pena. Mas ele temsorte de ter sido apenas uma centelha.Breckin dá de ombros.— Sou novo aqui. E, se não deu para deduzirpelo meu estilo impecável, acho que posso afirmarque sou... — Ele se inclina para a frente e coloca asmãos em concha ao redor da boca, para revelar seusegredo. — Mórmon — sussurra ele.Acho graça.— E eu achando que você ia dizer gay.— Isso também — diz ele, mexendo o punho.Ele dobra as mãos debaixo do queixo e se inclinaalguns centímetros para a frente. — Mas falandosério, Sky. Vi você hoje na aula, e é óbvio quetambém é nova por aqui. E, depois de ver o dinheirode stripper cair do seu armário antes da quarta aulae sua ausência de reação, percebi que fomos feitosum para o outro. Além disso, também imaginei que,se nos juntarmos, vamos evitar pelo menos doissuicídios desnecessários de adolescentes. E então, oque acha? Quer ser minha melhor amiga de todas douniverso inteiro?Eu rio. Como não rir com isso?— Claro. Mas se o livro for ruim vamos reavaliaressa amizade.

Segunda-feira, 27 deagosto de 201215h55No fim das contas, Breckin foi o que salvou meudia... e ele é mórmon de verdade. Temos muitascoisas em comum, e mais coisas ainda que não são

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comuns, o que o torna bem mais interessante. Eletambém é adotado, mas é bem próximo da famíliabiológica. Breckin tem dois irmãos que não sãoadotados, e que não são gays, então os pais achamque sua gayzice (palavra dele, não minha) tem a vercom o fato de não terem nenhum parentescobiológico. Ele me disse que seus pais esperam queisso desapareça com preces e com a formatura docolégio, mas ele afirma que essa realidade só vaiflorescer mais.Seu sonho é se tornar uma grande estrela daBroadway um dia, mas ele diz que não sabe cantarnem atuar, então vai parar de sonhar tão alto e querestudar administração. Eu disse que queria me formarem escrita criativa e passar o dia sentada, com calçade yoga, somente escrevendo livros e tomandosorvete. Ele me perguntou que gênero de livro euqueria escrever e eu respondi:— Não importa, contanto que seja bom, não é?Acho que esse comentário selou nosso destino.Agora estou a caminho de casa, decidindo sedevo contar a Six os acontecimentos agridoces dodia ou se devo passar no mercado para comprar cafée poder tomá-lo antes da minha corrida diária.A cafeína fala mais alto, apesar da minha afeiçãopor Six ser um pouco maior.Minha contribuição familiar mínima é fazer ascompras da semana. Na nossa casa é tudo semaçúcar, sem carboidrato e sem sabor, graças aoestilo vegano e não convencional de Karen, entãorealmente gosto de fazer as compras. Pego umpacote com seis refrigerantes e o maior saco deSnickers em miniatura que encontro e os coloco nocarrinho. Tem um esconderijo ótimo no meu quartopara meu estoque secreto. A maioria dosadolescentes esconde cigarros e maconha — euescondo alimentos com açúcar.Ao chegar na fila, reconheço a garota do caixa.Ela faz aula de inglês no segundo horário, assim comoeu. Tenho quase certeza de que o nome dela éShayna, mas no seu crachá está escrito Shayla.Shayna/Shayla é tudo o que eu queria ser. Alta,voluptuosa e loura. Num dia bom, eu chego a ter1,60m, e meu cabelo castanho sem graça estáprecisando de uma aparada — talvez até de algumasmechas. Que dariam um trabalho do cacete paramanter considerando a quantidade de cabelo quetenho. Meu cabelo bate uns 15 centímetros abaixodo ombro, mas, na maior parte do tempo, fico comele preso por causa da umidade da região sul.

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— Você não está na mesma aula de ciências queeu? — pergunta Shayna/Shayla.— Inglês — corrijo-a.Ela lança um olhar condescendente para mim.— Eu falei sim em inglês — argumenta eladefensivamente. — Eu disse: você não está namesma aula de ciências que eu?Caraca. Talvez eu não queira ser tão louraassim.—Não — respondo. — Eu disse inglês nosentido de “a gente não está na mesma aula deciências, a gente está na mesma aula de inglês”.Ela olha para mim inexpressivamente por uminstante e depois ri.— Ah. — Pela expressão em seu rosto, elaparece enfim entender. Ela olha para a tela à suafrente e me diz o total. Coloco a mão no bolso detrás e pego o cartão de crédito, querendo ser rápidapara evitar o que está prestes a se tornar umaconversa nada interessante.— Ah, meu Deus — diz ela baixinho. — Vejasó quem voltou.Olho para cima e noto que ela está encarandoalguém atrás de mim na fila do outro caixa.Não, deixe-me corrigir. Ela está salivando poralguém atrás de mim na fila do outro caixa.— Oi, Holder — cumprimenta elasedutoramente, abrindo o maior sorriso.Será que ela acabou de piscar para ele? Issomesmo. Tenho certeza de que ela acabou de piscarpara ele. Para ser sincera, achei que só se fazia issonos desenhos animados.Olho para trás para ver quem é o tal Holder que,por alguma razão, conseguiu fazer todo o amorpróprio de Shayna/Shayla desaparecer. O rapaz olhapara ela e balança a cabeça como resposta,aparentemente sem ter interesse algum.— Oi... — Ele estreita os olhos na direção docrachá. — Shayla. — Ele se vira de volta para ocaixa que o está atendendo.Ele a está ignorando? Uma das garotas maisbonitas do colégio praticamente se joga em cimadele, e ele age como se aquilo fosse uma coisa chata?Será que é mesmo humano? Não é assim que osgarotos que conheço reagiriam.Ela bufa.— Meu nome é Shayna — diz ela, irritada porele não saber o nome dela. Eu me viro para Shayna ecoloco o cartão na máquina.— Desculpe — pede ele. — Mas você sabe que

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no seu crachá está escrito Shayla, não é?Ela olha para baixo e levanta o crachá parapoder ler.— Hum — murmura ela, estreitando assobrancelhas como se estivesse concentrada. Masduvido que seja muito.— Quando você chegou? — pergunta ela paraHolder, ignorando-me completamente. Acabei depassar meu cartão e tenho quase certeza de que eladevia fazer alguma coisa, mas está ocupada demaisplanejando o casamento com este sujeito para selembrar da cliente.— Semana passada — responde ele secamente.— Então vão deixar você voltar para o colégio?— pergunta ela.De onde estou, consigo escutar ele suspirando.— Não importa — responde ele entediado. —Não vou voltar.A última frase faz Shayna/Shayla repensar ocasamento na mesma hora. Ela revira os olhos e voltaa prestar atenção em mim.— Que pena que um corpo daquele não vemcom cérebro — sussurra ela.Claro que percebo a ironia contida nessaafirmação.Quando ela finalmente começa a apertar as teclasda máquina para completar a transação, aproveitoque está distraída para olhar para trás mais uma vez.Estou curiosa para dar outra olhada no sujeito quepareceu se irritar com a bonita menina loura. Ele estáolhando para a própria carteira, rindo de algo que ocaixa disse a ele. Assim que o vejo, percebo trêscoisas:1. Os dentes incrivelmentebrancos escondidos por trásdo torto sorriso sedutor.2. As covinhas que se formamentre os cantos dos lábios eas bochechas quando sorri.3. Tenho quase certeza deque estou sentindo umaonda de calor.Ou um frio na barriga.Ou talvez esteja com algum vírus no estômago.Essa sensação é tão nova para mim que nem seidireito o que é. Não sei o que ele tem de tãodiferente a ponto de causar a primeira reação

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biológica que tive na vida em relação a outra pessoa.No entanto, acho que jamais havia visto alguémcomo ele antes. Ele é lindo. Não lindo do tipo garotobonitinho. Nem do tipo garoto fortão. É uma misturaperfeita das duas coisas. Nem tão grande, nem tãomagro. Nem tão rústico, nem tão perfeito. Ele está decalça jeans e camisa branca, nada de mais. O cabeloparece não ter sido penteado hoje e, provavelmente,está precisando de um bom corte, assim como omeu. Está tão comprido na frente que ele precisaafastá-lo do rosto ao olhar para cima e notar que oestou encarando completamente.Merda.Normalmente eu abaixaria o olhar assim quenossos olhos se encontrassem, mas tem alguma coisaestranha na maneira como ele reagiu ao olhar paramim que não me deixa desviar os olhos. Seu sorrisoesvaece imediatamente, e ele inclina a cabeça. Umolhar de curiosidade surge e lentamente ele balança acabeça, ou por incredulidade ou por... repugnância?Não dá para saber, mas com certeza não foi umareação positiva. Olho ao redor, esperando que nãotenha sido por minha causa que ele ficou tãoincomodado. Quando me viro novamente, vejo queainda mantém o olhar fixo.Em mim.Fico transtornada, para dizer o mínimo, então meviro depressa para Shayla. Ou Shayna. Sei lá qual éo maldito nome. Preciso me recuperar. Por algumarazão, durante sessenta segundos, este garotoconseguiu me deixar encantada e, depois,completamente apavorada. A mistura de sensaçõesnão faz bem para meu corpo sem cafeína. Seriamelhor se tivesse me olhado com a mesmaindiferença que usou com Shayna/Shayla do que terlançado aquele olhar outra vez para mim. Pego a notafiscal com a fulana de tal e a guardo no bolso.— Oi — diz ele com uma voz grave, em um tomautoritário, me deixando sem ar no mesmo instante.Não sei se ele está falando comigo ou com a fulanade tal, então seguro as alças das sacolas do mercado,esperando ter tempo de chegar ao carro antes queele termine de pagar.— Acho que ele está falando com você — dizela. Pego a última sacola e a ignoro, andando o maisrápido que consigo em direção à saída.Ao chegar no carro, suspiro fundo ao abrir aporta de trás para guardar as compras. O que diaboshá de errado comigo? Um cara bonito tenta chamarminha atenção, e eu saio correndo? Não fico

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constrangida perto de garotos. Na verdade, costumoficar bem confiante. E, no único momento da minhavida em que chego a sentir uma possível atração poralguém, saio correndo.Six vai me matar.Mas aquele olhar. Havia algo tão perturbador namaneira como ele olhou para mim. Aquilo conseguiume deixar constrangida, envergonhada e lisonjeadaao mesmo tempo. Não estou acostumada a sentiressas coisas de jeito algum, muito menos todas elasde uma só vez.— Oi.Fico paralisada. Agora com certeza ele estáfalando comigo.Ainda não consigo saber se é frio na barriga ouvírus estomacal, mas, de qualquer maneira, não gostodo jeito como a voz dele penetra no meu estômagoaté o fundo. Mesmo tensa, me viro lentamente,percebendo, de repente, que minha antiga confiançaficou quase toda para trás.Ele está segurando duas sacolas com uma dasmãos ao lado do corpo e com a outra estámassageando a nuca. Já eu queria que o climaestivesse péssimo e chuvoso para que ele não ficasseparado ali naquele momento. Ele fixa os olhos nosmeus, e o olhar desdenhoso que lançou para mim nomercado agora virou um sorriso torto que parece umpouco forçado. Quando olho melhor para ele, ficaclaro que meu desconforto estomacal não está sendocausado por nenhum vírus.Está sendo causado por ele.Por tudo que diz respeito a ele, desde o cabeloescuro despenteado, aos sérios olhos azuis, àquela...covinha, aos braços grossos que me fazem querertocá-los.Tocar? Sério, Sky? Controle-se!Tudo nele faz meus pulmões pararem defuncionar e meu coração acelerar loucamente. Tenhoa impressão de que se ele sorrisse para mim comoGrayson tenta fazer, minha calcinha estaria no chãoem tempo recorde.Assim que paro de observar seu corpo e nossosolhares se encontram, ele afasta a mão do pescoço epassa a sacola para a mão esquerda.— Meu nome é Holder — diz ele, estendendo amão para mim.Baixo o olhar para sua mão e dou um passo paratrás, sem cumprimentá-lo. Toda aquela situação éconstrangedora demais para que eu confie nessaapresentação inocente. Talvez se ele não tivesse

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lançado aquele olhar penetrante e intenso para mimno mercado, eu estivesse mais suscetível à suaperfeição física.— O que você quer? — Tomo cuidado paraolhá-lo com suspeita em vez de admiração.A covinha dele reaparece junto a uma risadaapressada, e ele balança a cabeça, desviando oolhar.—Hum — diz ele com uma gagueira nervosaque não combina em nada com seu jeito confiante.Seus olhos percorrem o estacionamento como seestivessem procurando uma maneira de escapar, eele suspira antes de fixá-los em mim outra vez. Essasdiferentes reações me deixam totalmente confusa.Num instante ele parece sentir certa repugnância àminha presença, no outro parece que não vai medeixar em paz. Costumo interpretar muito bem aspessoas, mas, se precisasse chegar a uma conclusãoa respeito de Holder com base nos últimos doisminutos, seria obrigada a dizer que ele sofre detranstorno de múltiplas personalidades. As mudançasbruscas entre impertinência e intensidade sãoenervantes.— Talvez isso soe ridículo — diz ele. — Masvocê me parece bem familiar. Posso saber seu nome?Fico tão desapontada no instante em que acantada escapa de seus lábios. Ele é esse tipo degaroto, sabe. O tipo incrivelmente gato que podeficar com qualquer pessoa onde e quando quiser, esabe muito bem disso. O tipo que só precisa abrir umsorriso torto ou formar uma covinha e perguntar onome da garota para ela se derreter toda até seajoelhar na frente dele. O tipo que passa as noites desábado entrando pelas janelas dos quartos.Estou extremamente desapontada. Reviro osolhos e estendo o braço para trás, puxando amaçaneta do carro.— Tenho namorado — minto. Eu me viro, abroa porta e entro. Estendo o braço para fechá-la, masnão consigo. Ergo o olhar e vejo a mão delesegurando a porta, mantendo-a aberta. Há umdesespero firme em seus olhos que faz os pelos dosmeus braços se arrepiarem.Ele olha para mim, e eu fico arrepiada? Quemsou eu, afinal?— Seu nome. É tudo o que quero.Fico em dúvida se devo ou não explicar quesaber meu nome não vai ajudá-lo em suasinvestigações. É mais que provável que eu seja aúnica americana de 17 anos sem acesso à internet.

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Ainda segurando a maçaneta, lanço meu olharfulminante de advertência.— Você se importa? — digo secamente,indicando a mão que está me impedindo de fechar aporta. Meu olhar percorre a mão dele até a tatuagemem letra cursiva no antebraço.

HopelessNão consigo deixar de rir por dentro. Está na caraque hoje o carma está no modo retaliação.Finalmente conheço o único garoto que achoatraente, e ele abandonou o colégio e traz casoperdido tatuado no braço.Fico irritada. Puxo a porta mais uma vez, mas elenão se mexe.— Seu nome. Por favor.A expressão de desespero em seus olhos aod i z e r por favor causa uma reaçãosurpreendentemente complacente em mim, algobastante inesperado.— Sky — revelo de repente, sentindo umacompaixão repentina pelo sofrimento que comcerteza existe por trás daqueles olhos azuis. Afacilidade com que cedo ao pedido por causa de umolhar me deixa desapontada comigo mesma. Solto aporta e ligo o carro.— Sky — repete ele para si mesmo. E ficapensando nisso por um segundo, balançando acabeça como se eu tivesse respondido errado. —Tem certeza? — Ele inclina a cabeça na minhadireção.Se eu tenho certeza? Ele pensa que souShayna/Shayla e que não sei meu próprio nome, é?Reviro os olhos e mudo de posição no banco,pegando minha identidade no bolso. Estendo-a diantede seu rosto.— É claro que sei meu próprio nome.Começo a puxar a identidade de volta, mas elesolta a porta e agarra o documento da minha mão,levando-o para perto de si para analisá-lo. Ele ficaobservando por alguns instantes, vira-o do outro ladoe o devolve.— Desculpe-me. — Ele dá um passo para trás,se distanciando do carro. — Foi engano meu.Agora ele está inexpressivo e sério, e fica meobservando guardar a identidade no bolso. Encaro-opor um instante, esperando por algo mais, mas ele sómove a mandíbula para a frente e para trás enquantocoloco o cinto de segurança.Ele vai desistir de me convidar para sair assim

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tão fácil? Sério? Coloco os dedos na maçaneta daporta, esperando que ele a segure outra vez e venhacom mais uma de suas cantadas ridículas. Mas nadaacontece. Ele se afasta mais ainda enquanto fecho aporta, e alguma coisa estranha começa a meconsumir. Se ele realmente não me seguiu até aquipara me convidar para sair, então o que diabos foiisso?Ele passa a mão pelo cabelo e murmura algopara si mesmo, mas não consigo escutar o quê, porcausa da janela fechada. Engato a ré e fico olhandopara ele enquanto saio da vaga. O garoto continuaimóvel, me encarando o tempo inteiro. Quandocomeço a ir na direção oposta, ajusto o retrovisorpara lhe dar uma última olhada antes de passar pelasaída. Vejo-o se virar e ir embora, esmurrando ocapô de um carro.Tomou a decisão certa, Sky. Ele éesquentadinho.

Segunda-feira, 27 deagosto de 201216h47Após guardar as compras, encho a mão com oschocolates que comprei, enfio-os no bolso e saiopela janela. Levanto a vidraça de Six e entro em seuquarto. São quase 17 horas, e ela está dormindo,então vou nas pontas dos pés até sua cama e meajoelho. Six está de viseira, e o cabelo louro-escurogrudou na bochecha, pois ela baba muito enquantodorme. Eu me aproximo o máximo possível do rostodela e grito:— SIX! ACORDE!Ela se levanta bruscamente e com tanta força quenão tenho tempo de sair da sua frente. Seu cotoveloagitado acerta meu olho, e acabo caindo para trás.Na mesma hora, tapo com a mão a vista que estálatejando e me espalho no chão do quarto de Six.Viro o olho ileso para ela e vejo que está sentada nacama segurando a própria cabeça, fazendo uma carafeia para mim.— Você é uma vaca — diz ela gemendo. Sixjoga as cobertas para longe, sai da cama e vai diretopara o banheiro.— Acho que vou ficar com o olho roxo por suacausa — resmungo.Ela deixa a porta do banheiro aberta e senta-seno vaso.— Ótimo. Você merece. — Ela pega o papel

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higiênico e chuta a porta para fechá-la. — Acho bomque tenha me acordado por um motivo válido. Passeia noite inteira sem dormir arrumando as malas.Six jamais gostou de acordar cedo e, pelo jeito,também não fica muito alegre de tarde. Para ser bemsincera, também não fica muito contente durante anoite. Se tivesse de adivinhar em qual horário Six ficamais agradável, eu diria que é quando está dormindo.Vai ver é por isso que ela odeia tanto acordar.O senso de humor e a personalidade sincera deSix são fatores importantíssimos para nos darmos tãobem. Garotas empolgadas e falsas me irritam paracaramba. Acho que empolgação nem faz parte dovocabulário de Six. Só faltam as roupas pretas paraela ser a típica adolescente melancólica. E falsa?Impossível ser mais direta que ela,independentemente se a pessoa está a fim de ouviraquilo ou não. Six não tem nada de falso, além donome.Quando tinha 14 anos e seus pais decidiram semudar do Maine para o Texas, ela se rebelou epassou a se recusar a atender pelo próprio nome.Seu verdadeiro nome é Seven Marie, por isso elapassou a responder somente quando a chamavam deSix para irritar os pais por a terem obrigado a semudar. Eles ainda a chamam de Seven, mas todas asoutras pessoas a chamam de Six. Isso mostra que elaé tão teimosa quanto eu, o que é um dos váriosmotivos pelos quais somos melhores amigas.— Acho que vai ficar feliz por eu ter acordadovocê. — Saio do chão e vou para sua cama. — Hojeaconteceu algo monumental.Six abre a porta do banheiro e volta para acama. Ela se deita ao meu lado e puxa as cobertaspor cima da cabeça. Depois, rola para longe de mim,afofando o travesseiro até ficar confortável.— Deixe eu adivinhar... Karen assinou uma TV acabo?Giro para ficar de lado e me aproximo de Six,colocando o braço ao seu redor. Apoio a cabeça noseu travesseiro, e ficamos de conchinha.— Tente de novo.— Você conheceu alguém no colégio hoje,engravidou e vai se casar, mas não vou poder sermadrinha do seu casamento porque vou estar lá dooutro lado dessa porcaria de mundo?— Chegou perto, mas não. — Batuco com osdedos no seu ombro.— Então o que foi que aconteceu? — perguntaela, irritada.

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Eu me deito de costas e suspiro fundo.— Vi um garoto no mercado depois do colégioe, puta merda, Six. Ele era lindo. Assustador, maslindo.Six rola imediatamente para ficar de frente paramim, conseguindo bater com o cotovelo justo nomesmo olho que golpeou alguns minutos atrás.— O quê?! — grita ela bem alto, ignorando queeu esteja com a mão no olho, gemendo mais umavez. Ela se senta na cama e afasta minha mão dorosto. — O quê?! — grita ela outra vez. — Sério?Continuo deitada de costas e tento mandar a dordo meu olho latejante para o fundo da mente.— Pois é. Assim que olhei para ele, foi como semeu corpo inteiro tivesse derretido no chão. Ele era...uau.— Você falou com ele? Pegou o telefone dele?Ele a convidou para sair?Nunca vi Six tão entusiasmada. Está ficandoanimada demais para meu gosto, não sei se aprovoisso.— Caramba, Six. Calma aí.Ela baixa o olhar e franze a testa.— Sky, faz quatro anos que me preocupo comvocê, achando que isso jamais aconteceria. Por mimnão teria problema algum se você fosse lésbica. Nemse só gostasse de caras magros, baixinhos e nerds.Até se só se sentisse atraída por homens bem maisvelhos e enrugados, com pênis ainda mais enrugados,eu não veria problema algum. Só me preocupava quevocê nunca experimentasse a luxúria. — Ela volta ase deitar, sorrindo. — Luxúria é o melhor dospecados capitais.Eu rio e balanço a cabeça.— Discordo. Luxúria é um saco. Acho que vocêtem exagerado sua importância durante todos essesanos. Ainda considero a gula o melhor de todos. —Após dizer isso, tiro um pedaço de chocolate dobolso e o coloco na boca.— Preciso saber os detalhes.Chego mais para trás até encostar na cabeceira.— Não sei como descrever. Depois que olheipara ele, não queria mais parar. Podia ter passado odia inteiro o encarando. Mas aí, quando ele olhoupara mim, fiquei apavorada. Ele me olhou como seestivesse furioso só por eu ter percebido suapresença. Em seguida, me seguiu até o carro e fezquestão de saber meu nome. Parecia até que estavacom raiva de mim. Como se eu o estivesseincomodando. Perdi a vontade de lamber suascovinhas e passei a querer sair em disparada para

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longe dele.— Ele seguiu você? Até o carro? — pergunta elaceticamente.Confirmo com a cabeça e conto todos os últimosdetalhes da minha ida ao mercado, inclusive o fato deele ter esmurrado um carro.— Caramba, que bizarro — comenta ela,quando termino de falar. Ela se senta e fica na mesmaposição que eu, encostada na cabeceira. — Temcerteza de que ele não estava dando em cima devocê? Tentando conseguir seu telefone? Fala sério, jávi como você fica perto dos garotos, Sky. Você sabefazer o joguinho, mesmo quando não está interessadano cara. Sei que você sabe interpretar o que osgarotos querem, mas acho que por ter ficado atraídapor ele, talvez isso tenha atrapalhado sua intuição.Não acha?Dou de ombros. Pode ser que Six tenha razão.Talvez eu tenha interpretado as ações dele damaneira errada, e minha própria reação negativatenha feito com que desistisse de me convidar parasair.— Pode ser. Mas independentemente do queera, se deteriorou com a mesma rapidez. Ele desistiudo colégio, é temperamental, esquentado e...simplesmente... é um caso perdido. Não sei qual émeu tipo de garoto, mas sei que não quero queHolder faça meu tipo.Six aperta minhas bochechas, espremendo-as, evira meu rosto para ela.— Você acabou de dizer Holder? — perguntaela, com a sobrancelha extremamente bem-feitaarqueada de curiosidade.Meus lábios estão esmagados, pois ela continuaapertando minhas bochechas, então faço que simcom a cabeça em vez de responder com palavras.— Dean Holder? Cabelo castanho bagunçado?Ardentes olhos azuis? Tão esquentado que parecesaído do Clube da luta?Dou de ombros.— Parexe xer ele xim — digo, com as palavraspraticamente inaudíveis graças ao aperto em meurosto. Ela me solta, e repito o que tinha dito: —Parece ser ele sim. — Levo a mão à face emassageio as bochechas. — Você o conhece?Ela se levanta e joga as mãos no ar.— Por quê, Sky? De todos os garotos quepoderia achar atraentes, por que diabos DeanHolder?Ela parece desapontada. Por que está tão

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desapontada? Nunca a ouvi falar de Holder, entãonão é porque já ficou com ele. Por que diabosparece que isso deixou de ser algo empolgante parase tornar algo... muito, muito ruim?— Preciso saber os detalhes — digo.Ela vira a cabeça e põe as pernas para fora dacama. Vai até o armário e pega uma calça jeans deuma caixa, em seguida a veste por cima da calcinha.— É um canalha, Sky. Estudava no colégio, masfoi preso assim que as aulas começaram no anopassado. Não o conheço muito bem, mas conheço osuficiente para saber que ele não é para namorar.Sua descrição de Holder não me surpreende.Gostaria de dizer que não fiquei desapontada, mas émentira.— E desde quando alguém é para namorar ounão? — Acho que Six nunca teve um namoro quedurou mais de uma noite.Ela olha para mim e dá de ombros.— Touché. — Six veste uma camisa e vai até apia do banheiro. Ela pega uma escova de dentes,espreme pasta por cima e volta para o quartoescovando os dentes.— Por que ele foi preso? — pergunto, sem tercerteza se realmente quero saber a resposta.Six tira a escova da boca.— Eles o prenderam por causa de um crime deódio... bateu num garoto gay do colégio. Tenhocerteza de que tinha antecedentes, e isso foi a gotad’água. — Ela coloca a escova de volta na boca evai até a pia para cuspir.Um crime de ódio? Sério? Sinto o maior frio doestômago, mas dessa vez não de um jeito bom.Six volta para o quarto após prender o cabelonum rabo de cavalo.— Que merda — diz ela, mexendo em suasjoias. — E se essa for a única vez em que você sentiutesão por um cara e jamais experimentar isso denovo?Faço uma careta devido à escolha de palavrasdela.— Não senti tesão por ele, Six.Ela balança a mão no ar.— Tesão. Atração. É tudo igual — diz ela de umjeito desaforado, voltando para a cama. Ela deixa umbrinco no colo e põe o outro na orelha. — Acho quedevíamos estar aliviadas por descobrirmos que aindahá esperança para seu caso. — Six estreita os olhose se inclina na minha direção. Ela segura meu queixo,virando meu rosto para a esquerda. — O que diabos

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aconteceu com seu olho?Rio e desço da cama, fugindo do perigo.— Você aconteceu. — Vou para a janela. —Preciso espairecer um pouco. Vou correr. Quer vircomigo?Six enruga o nariz.— Hum... não. Divirta-se.Estou com uma perna por cima do peitoril dajanela quando ela me chama.— Depois vou querer saber todos os detalhes doseu primeiro dia de aula. E tenho um presente paravocê. Mais tarde passo na sua casa.

Segunda-feira, 27 deagosto de 201217h25Meus pulmões estão doendo; meu corpo ficoudormente faz tempo, na Aspen Road. Deixei deinspirar e expirar ritmicamente e passei a soltararfadas descontroladamente. Costuma ser esse omomento em que mais gosto na corrida. Quandotodas as células do meu corpo trabalham para mefazer seguir em frente, permitindo que me concentreapenas no próximo passo e nada mais.No próximo passo.Nada mais.Jamais corri até tão longe. Costumo pararquando sei que completei meus dois quilômetros emeio, o que foi há algumas quadras atrás, mas dessavez não. Apesar do desespero familiar do meu corponeste momento, não estou conseguindo fazer a mentese desligar. Continuo correndo na esperança de queisso aconteça, mas hoje está demorando bem maisque o normal. A única coisa que me faz decidir pararé o fato de que vou ter de correr exatamente amesma distância na volta para casa. Minha águatambém está acabando.Paro no início de um jardim e me apoio na caixade correio, abrindo a tampa da garrafa de água.Enxugo o suor da testa com o dorso do braço e levoa garrafa aos lábios, conseguindo tomar umas quatrogotas antes de ela acabar. Já bebi uma garrafa inteirapor causa do calor do Texas. Eu me repreendosilenciosamente por ter decidido não ir correr pelamanhã. Sou a maior molenga no calor.Temendo ficar desidratada, decido voltar paracasa andando, e não correndo. Acho que me forçar echegar ao ponto da exaustão física não deixariaKaren muito contente. Só por eu correr sozinha já a

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deixo nervosa.Começo a andar quando ouço uma voz familiaratrás de mim.— Oi, você.Como se meu coração não estivesse acelerado osuficiente, me viro devagar e vejo Holder meencarando, sorrindo, com as covinhas aparecendo nocanto da boca. Seu cabelo está molhado de suor, e éóbvio que ele também estava correndo.Pisco duas vezes, quase acreditando que é umamiragem causada pelo cansaço. O instinto está medizendo para gritar e sair correndo, mas meu corpoquer se jogar nos braços brilhantes e suados dogaroto.Meu corpo é um maldito traidor.Por sorte, ainda não me recuperei do trecho queacabei de correr, então ele não vai perceber queminha respiração está inconstante porque o estouvendo de novo.— Oi — digo, ofegante.Faço meu melhor para continuar olhando paraseu rosto, mas não consigo evitar que meus olhos sedirijam para abaixo de seu pescoço. Por isso, passoa observar somente meus próprios pés para evitar ofato de que ele só está de bermuda e tênis de corrida.A maneira como a bermuda cai no seu quadril érazão suficiente para eu perdoar todas as coisasnegativas que descobri sobre ele. Desde que melembro, nunca fui o tipo de garota que fica todaencantada por um menino devido à sua aparência.Estou me sentindo superficial. Ridícula. Babaca, até.E um pouco irritada comigo mesma por deixar ele meafetar assim.— Você corre? — pergunta ele, apoiando ocotovelo na caixa de correio.Faço que sim com a cabeça.— Costumo correr de manhã. Não lembravacomo era quente à tarde. — Tento olhar de voltapara ele, levando a mão até os olhos para protegêlosdo sol que brilha em cima de sua cabeça como sefosse uma auréola.Que irônico.Ele estende o braço, e eu me contorço antes deperceber que está apenas me entregando sua garrafade água. A maneira como ele está pressionando oslábios, segurando-se para não sorrir, deixa na caraque notou o quanto estou nervosa por estar pertodele.— Beba isso. — Ele inclina a garrafa pelametade para mim. — Você parece exausta.

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Normalmente eu não aceitaria água de estranhos.Muito menos de pessoas que sei que são sinônimo deencrenca, mas estou com sede. Com tanta sede.Pego a garrafa de suas mãos e inclino a cabeçapara trás, dando três goles enormes. Estou morrendode vontade de tomar o resto, mas não posso deixá-losem nada.— Obrigada — digo, devolvendo a garrafa.Limpo a boca com a mão e olho para a calçada atrásde mim. — Bem, tenho mais dois quilômetros e meiode volta, então é melhor eu ir.— Está mais para quatro quilômetros — diz ele,olhando para minha barriga.Ele pressiona a boca na garrafa sem limpar abeirada, mantendo os olhos fixos em mim enquantoinclina a cabeça para trás e toma o resto da água.Não consigo deixar de ficar observando seus lábioscobrirem o gargalo da garrafa onde os meusacabaram de encostar. Estamos praticamente nosbeijando.Balanço a cabeça.— Hã? — Não sei se ele falou algo em voz altaou não. Estou mais concentrada no suor pingando noseu peito.— Eu disse que está mais para quatroquilômetros. Você mora na Conroe, que fica a quasequatro quilômetros daqui. São quase oitoquilômetros, ida e volta — diz ele, como se estivesseimpressionado.Lanço um olhar curioso para ele.— Sabe em que rua eu moro?— Sei.Ele não entra em detalhes. Fico o encarando, emsilêncio, esperando alguma explicação.Holder percebe que não estou satisfeita com o“sei” e suspira.— Linden Sky Davis, nascida em 29 desetembro. Conroe Street, 1455. 1,60m. Doadora.Dou um passo para trás, subitamente vendo meuassassinato próximo se desenrolando pelas mãos domeu lindo perseguidor. Será que eu devia parar deproteger minha visão do sol para poder observá-lomelhor caso eu consiga fugir? Talvez precisedescrevê-lo para um desenhista na polícia.— Sua identidade — explica ele ao ver a misturade terror e confusão no meu rosto. — Você memostrou sua identidade mais cedo. No mercado.Por alguma razão, essa justificativa não diminuiminha apreensão.— Você a olhou por dois segundos.

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Ele dá de ombros.— Tenho boa memória.— E persegue as pessoas — digoinexpressivamente.Ele ri.— Eu persigo? É você que está na frente daminha casa. — E aponta por cima do ombro para acasa atrás dele.Aquela casa é dele? Qual a probabilidade deisso acontecer?Ele endireita a postura e tamborila os dedos nasletras na frente da caixa de correio.Família Holder.Sinto o sangue fluindo para as bochechas, masisso não importa. Depois de uma corrida no meio datarde, no calor do Texas e com pouca água, tenhocerteza de que meu corpo inteiro está vermelho.Tento não olhar novamente para a casa dele, mascuriosidade é meu fraco. É uma casa simples, nãomuito chamativa. Combina com a vizinhança declasse média. Assim como o carro na entrada dagaragem. Será que é o carro dele? Pela conversacom a fulana de tal do mercado, dá para deduzir queele é da minha idade, então deve morar com os pais.Mas como é que eu nunca o tinha visto antes? Comoé que eu não sabia que morava a menos de 5quilômetros do único garoto do planeta que consegueme provocar ondas de calor e frustração?Limpo a garganta.— Bem, obrigada pela água. — Não tem nadaque eu queira mais no mundo que fugir desseconstrangimento. Aceno brevemente e começo acorrer.— Espere aí — grita ele atrás de mim. Nãodesacelero, então ele passa por mim e se vira,correndo para trás contra o sol. — Deixe eu enchersua garrafa. — Ele estende o braço e pega a garrafade minha mão esquerda, encostando sua mão emminha barriga. Congelo mais uma vez. — Já volto —diz dele, correndo para dentro de casa.Estou perplexa. Que ato de bondade maiscontraditório. Será que é mais um efeito dotranstorno de múltiplas personalidades? É provávelque ele seja um mutante, como o Hulk. Ou como emO médico e o monstro. Será que Dean é apersonalidade boazinha e Holder, a assustadora?Com certeza foi Holder que vi no mercado maiscedo. Acho que gosto bem mais de Dean.Fico um pouco constrangida de esperar, entãovolto para perto da casa dele, parando às vezes para

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olhar o caminho que vai dar na minha. Não faço ideiado que fazer. Sinto que qualquer decisão que eutomar a essa altura vai para o lado da balança quemede as burrices.Será que devo ficar?Será que devo correr?Será que devo me esconder nos arbustos antesque ele volte com algemas e uma faca?Antes que eu tenha a oportunidade de saircorrendo, a porta da casa se escancara, e eleaparece com a garrafa cheia. Dessa vez o sol estáatrás de mim, por isso não tenho tanta dificuldade emenxergá-lo. O que também não é uma coisa boa, poistudo o que quero fazer é ficar encarando o garoto.Argh! Odeio muito a luxúria.O-dei-o.Cada célula sabe que ele não é uma boa pessoa,mas meu corpo parece não dar a mínima para isso.Ele me entrega a garrafa, e, na mesma hora,tomo mais um gole. Já odeio o calor do Texasnaturalmente, mas, combinado a Dean Holder,parece que estou nas profundezas do Inferno.— Então... mais cedo... no mercado... — diz ele,fazendo uma pausa nervosa. — Se a deixeiconstrangida, peço desculpas.Meus pulmões estão implorando por ar, mas, dealguma maneira, consigo dar um jeito de responder:— Você não me deixou constrangida.Você meio que me deixou apavorada.Holder estreita os olhos para mim por algunssegundos, me observando. Hoje descobri que nãogosto de ser observada... prefiro não ser percebida.— Também não estava tentando dar em cima devocê — afirma ele. — Só achei que fosse outrapessoa.— Está tudo bem. — Forço um sorriso, masnão está tudo bem. Por que de repente estou sendoconsumida pelo desapontamento de ele não tertentado dar em cima de mim? Devia estar contente.— O que não quer dizer que eu não daria emcima de você — acrescenta ele sorrindo. — Só nãoestava fazendo isso naquele momento.Ah, obrigada, meu Deus. O esclarecimento mefaz sorrir, apesar de todos os meus esforços emcontrário.— Quer que eu corra com você? — perguntaele, apontando com a cabeça em direção à calçadaatrás de mim.Sim, por favor.— Não, está tudo bem.

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Ele balança a cabeça.— Bem, eu estava indo naquela direção dequalquer jeito. Corro duas vezes ao dia e ainda tenhoalguns... — Ele para de falar no meio da frase e dáum passo para perto de mim rapidamente. Emseguida, segura meu queixo e inclina minha cabeçapara trás. — Quem fez isso com você? — A mesmafrieza que vi em seus olhos no mercado reaparece.— Seu olho não estava assim mais cedo.Afasto meu queixo e rio.— Foi um acidente. Jamais interrompa o cochilode uma garota.Ele não sorri. Em vez disso, se aproxima mais,me observa atentamente e passa o dedão embaixodo meu olho.— Você contaria para alguém, não é? Sefizessem isso com você?Quero responder. Quero mesmo. Mas nãoconsigo. Ele está tocando meu rosto. Sua mão estána minha bochecha. Não consigo pensar, nãoconsigo falar, não consigo respirar. A intensidadeproveniente de toda sua existência suga o ar dosmeus pulmões e a força dos meus joelhos. Balanço acabeça de maneira não muito convincente. Ele franzea testa e afasta a mão.— Vou correr com você — afirma ele, pondo asmãos nos meus ombros e me virando na direçãooposta para me dar um leve empurrão. Ele entra nomesmo ritmo que eu, e passamos a correr emsilêncio.Quero conversar com ele. Quero perguntarsobre o ano que passou na prisão, por que desistiudo colégio, o porquê daquela tatuagem... mas tenhomedo das respostas. Sem falar que estoucompletamente sem fôlego. Em vez disso, corremosem total silêncio até chegarmos a minha casa.Ao nos aproximarmos da entrada, começamos aandar. Não faço ideia de como terminar isso.Ninguém jamais corre comigo, então não sei o quemanda a etiqueta quando dois corredores sedespedem. Eu me viro e dou um breve aceno paraele.— Então até qualquer hora?— Com certeza — diz ele, me encarando.Sorrio constrangida e me viro. Com certeza?Fico pensando nisso enquanto cruzo a entrada. Oque ele quis dizer com isso? Nem tentou pegar onúmero do meu telefone, apesar de não saber quenão tenho um. Não perguntou se eu queria corrercom ele de novo. Mas disse com certeza como se

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tivesse absoluta certeza, e eu meio que espero queisso seja mesmo verdade.— Sky, espere. — A maneira como sua vozpronuncia meu nome me faz desejar que a únicapalavra de todo seu vocabulário fosse Sky. Eu meviro, rezando para que ele não mande mais umadaquelas cantadas bregas. Porque agora eutotalmente cairia.— Pode me fazer um favor?Qualquer coisa. Faço qualquer coisa que mepedir enquanto estiver sem camisa.— Sim?Ele joga sua garrafa de água para mim. Eu apego e olho para a garrafa vazia, sentindo-meculpada por não ter me oferecido para enchê-la.Balanço-a no ar e faço que sim com a cabeça, emseguida subo os degraus correndo e entro em casa.Karen está enchendo o lava-louça quando irrompona cozinha. Assim que a porta da frente se fechaatrás de mim, arfo para poder dar aos meus pulmõeso ar pelo qual estavam implorando.— Meu Deus, Sky. Parece até que vai desmaiar.Sente-se. — Ela pega a garrafa das minhas mãos eme obriga a sentar. Deixo que ela a encha enquantoinspiro pelo nariz e expiro pela boca. Ela se vira,entrega-a para mim, e fecho a tampa. Em seguida,me levanto e corro lá para fora até Holder.— Obrigado — diz ele. Fico parada,observando-o pressionar aqueles mesmos lábioscarnudos na boca da garrafa.Estamos praticamente nos beijando de novo.Não consigo distinguir o efeito da minha corridade quase 8 quilômetros do efeito que Holder provocaem mim. As duas coisas fazem com que me sintaprestes a desmaiar por falta de oxigênio. Ele fecha atampa da garrafa, e seus olhos percorrem meu corpo,parando por tempo demais em minha barriga àmostra antes de me olhar nos olhos.— Você faz atletismo?Cubro a barriga com o braço esquerdo e ponhoas mãos na cintura.— Não. Mas estou pensando em tentar entrarpara a equipe.— Devia mesmo. Mal consegue respirar emesmo assim acabou de correr quase oitoquilômetros — diz ele. — Você está no último ano?Ele não faz ideia do esforço que estouprecisando fazer para não desabar na calçada e ficarchiando por falta de ar. Jamais corri tanto de uma sóvez e estou usando todas as minhas forças para

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aparentar que isso não foi nada de mais. Pelo jeitoestá dando certo.— Já devia saber que estou no último ano, não?Suas habilidades de perseguidor estão deixando adesejar.Quando as covinhas dele reaparecem, fico comvontade de cumprimentar a mim mesma.— Bem, é meio difícil perseguir você — diz ele.— Não a encontrei nem no Facebook.Ele acabou de admitir que me procurou noFacebook. Eu o conheci há menos de duas horas,então o fato de ele ter ido direto para casa e meprocurado no Facebook me deixa um poucolisonjeada. Um sorriso involuntário surge no meurosto, e fico com vontade de esmurrar esse ridículoarremedo de garota que tomou conta do meu sernormalmente indiferente.— Não estou no Facebook. Não uso internet —explico.Holder lança um olhar para mim e abre umsorriso sarcástico, como se não estivesse acreditandoem nada disso. Ele afasta o cabelo da testa.— E seu celular? Não dá para usar internet nocelular?— Não tenho celular. Minha mãe não é fã dessasnovas tecnologias. Também não tenho televisão.— Caraca. — Ele ri. — Está falando sério? Oque faz para se divertir?Sorrio para ele e dou de ombros.— Eu corro.Holder me observa mais uma vez, focando aatenção por um breve instante na minha barriga. Vourepensar essa história de sair de top de ginástica.— Bem, então por acaso você não saberia ohorário em que uma certa pessoa se levanta paracorrer de manhã, saberia? — Ele me olha, e nãoconsigo ver de jeito nenhum a pessoa que Sixdescreveu para mim. A única coisa que vejo é umgaroto flertando com uma menina, o olhar um pouconervoso e cativante.— Não sei se você ia gostar de acordar tãocedo — digo. A maneira como ele está me olhando eo calor do Texas fazem minha vista se embaçar derepente, então respiro fundo, com o intuito deaparentar qualquer coisa diferente de exaustão eagitação.Ele inclina a cabeça para perto da minha eestreita os olhos.— Você não tem ideia do quanto eu queroacordar tão cedo assim. — Ele abre aquele sorriso

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com as covinhas, e eu desmaio.Sim... literalmente. Desmaiei.E, pela dor no meu ombro e o cascalho e terragrudados na minha bochecha, não foi uma quedabonita e graciosa. Apaguei e bati no chão antesmesmo que ele tivesse qualquer chance de mesegurar. Tão diferente dos heróis nos livros.Estou deitada no sofá, presumivelmente onde eleme deixou após ter me carregado para dentro decasa. Karen está parada ao meu lado com um copod’água, e Holder, atrás dela, observando odesenrolar do momento mais vergonhoso de minhavida.— Sky, tome um pouco d’água — diz Karen,erguendo minha nuca e me pressionando em direçãoao copo. Bebo um gole, encosto no travesseiro efecho os olhos, querendo mais que tudo desmaiaroutra vez. — Vou pegar um pano úmido.Abro os olhos, esperando que Holder tenhadecidido ir embora despercebido depois que Karensaiu do cômodo, mas ele continua aqui. E agora estámais perto de mim. Ele se ajoelha no chão ao meulado e estende a mão para meu cabelo, tirando o queimagino ser cascalho ou alguma sujeira.— Tem certeza de que está bem? Você caiubem feio. — Seus olhos estão cheios depreocupação, e ele limpa algo da minha bochechacom o polegar, depois apoia a mão ao meu lado nosofá.— Ah, meu Deus — digo, cobrindo os olhoscom o braço. — Mil desculpas. Estou morrendo devergonha.Holder segura meu punho e afasta meu braço dorosto.—Shh. — A preocupação nos olhos delediminui, e um sorriso brincalhão toma conta de suasfeições. — Meio que estou curtindo isso.Karen volta para a sala— Aqui está o pano, querida. Quer algo para ador? Está enjoada? — Em vez de entregá-lo paramim, ela o deixa com Holder e volta para a cozinha.— Devo ter um pouco de extrato de calêndula ou debardana.Ótimo. Como se eu já não estivesse morrendode vergonha, ela está prestes a piorar ainda mais asituação me obrigando a tomar uma de suas misturascaseiras bem na frente dele.— Estou bem, mãe. Não estou com dor alguma.Delicadamente, Holder põe o pano na minhabochecha, limpando-a.

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— Talvez não esteja sentindo dor agora, masdepois vai sentir, sim — diz ele, baixinho demais paraque Karen escutasse. Ele para de examinar minhabochecha e olha nos meus olhos. — Você deviatomar alguma coisa, só para garantir.Não sei por que a sugestão parece maissimpática quando sai de sua boca e não da de Karen,mas concordo com a cabeça. E engulo em seco. Eprendo a respiração. E aperto as coxas uma contra aoutra. Também tento me sentar, porque ficar deitadano sofá com ele tão perto de mim está quase mefazendo desmaiar de novo.Quando ele vê o esforço para me sentar, segurameu cotovelo e me ajuda. Karen volta para a sala eme entrega um pequeno copo de suco de laranja.Suas misturas são amargas demais, por isso tenho detomar com suco para não acabar cuspindo tudo.Pego o copo da mão dela, bebendo tudo o maisrapidamente que já tomei algo na vida, eimediatamente o devolvo. Só quero que ela voltepara a cozinha.— Desculpe — diz ela, estendendo a mão paraHolder. — Meu nome é Karen Davis.Holder se levanta e aperta a mão dela.— Dean Holder. Meus amigos me chamam deHolder.Fico com inveja por ela estar tocando na mãodele. Quero pegar uma senha e entrar na fila.— De onde você e Sky se conhecem? —pergunta ela.Holder olha para mim na mesma hora em queergo o olhar para ele. Seu lábio mal se curva,formando um sorriso, mas eu percebo.— Na verdade, não nos conhecemos — diz ele,olhando para ela. — Acho que eu estava no lugarcerto na hora certa, só isso.— Bem, agradeço por tê-la ajudado. Não seipor que ela desmaiou. Ela nunca havia desmaiado. —Karen olha para mim. — Você comeu alguma coisahoje?—Um pedaço de frango no almoço —respondo, sem mencionar o Snickers que comi antesda corrida. — A comida do refeitório é um lixo.Ela revira os olhos e ergue as mãos para o ar.— Por que foi correr sem antes comer?Dou de ombros.— Esqueci. Não costumo correr à tarde.Ela volta para a cozinha com o copo e suspirafundo.—Não quero que corra mais, Sky. O que

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poderia ter acontecido se estivesse sozinha? Alémdisso, você corre demais.Ela só pode estar brincando. Não posso pararde correr de jeito nenhum.— Olhe — diz Holder, observando o resto decor se esvair do meu rosto. Ele olha para Karen nacozinha. — Moro aqui perto, na Ricker, e passocorrendo por aqui todas as tardes. — (Ele estámentindo. Eu teria percebido). — Se isso a deixarmais tranquila, seria ótimo correr com ela na próximasemana ou durante as manhãs. Costumo correr naspistas do colégio, mas não tem problema. Só paragarantir que isso não vai acontecer de novo.Ah. Uma luzinha se acende em minha cabeça.Claro que esse abdômen me pareceu familiar.Karen volta para a sala e olha para mim, depoispara ele. Ela sabe o quanto gosto de minhas corridassolitárias, mas dá para ver em seus olhos que ficariamais tranquila se eu tivesse um parceiro de corrida.— Por mim tudo bem — assegura ela, olhandopara mim. — Se Sky gostar da ideia.Sim, sim, gosto. Mas só se meu novo parceirode corrida estiver sem camisa.— Gosto — confirmo. Eu me levanto e, ao fazerisso, fico tonta mais uma vez. Acho que também ficopálida, pois Holder põe a mão no meu ombro emmenos de um segundo, me fazendo voltar para osofá.— Calma — pede ele, e olha para Karen. —Você tem algum biscoito? Talvez ajude.Karen vai até a cozinha, e Holder olha de novopara mim, os olhos cheios de preocupação.— Tem certeza de que está bem? — Ele alisaminha bochecha com o dedo.Estremeço.Um sorriso diabólico surge em seu rosto aoperceber minha tentativa de cobrir os braçosarrepiados. Ele olha para Karen na cozinha e depoisvolta a me encarar.— Que horas você quer que eu venha perseguilaamanhã? — sussurra ele.— 6h30? — digo baixinho, olhando para ele,impotente.— 6h30 está ótimo.— Holder, você não precisa fazer isso.Os olhos azuis hipnotizantes ficam observandomeu rosto por vários segundos, em silêncio, e nãoconsigo deixar de encarar a boca igualmentehipnotizante enquanto ele fala.— Sei que não preciso fazer isso, Sky. Faço o

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que quero fazer. — Ele se aproxima do meu ouvido ebaixa a voz, passando a sussurrar. — E eu querocorrer com você. — Ele se afasta e fica meobservando. Devido a todo o caos em minha cabeçae estômago, não consigo responder.Karen volta com os biscoitos.— Coma — diz ela, colocando-os na minhamão. Holder levanta-se, despede-se de Karen edepois se volta para mim.— Se cuida. Vejo você de manhã?Faço que sim com a cabeça e o observoenquanto ele se vira para ir embora. Não consigotirar os olhos da porta depois que ele a fecha. Estouperdendo a cabeça. Perdi totalmente qualquerresquício de autocontrole. Então é isso que Six ama?Isso é luxúria?Odeio a luxúria. Sem dúvida alguma. Odeiototalmente essa sensação linda e mágica.— Ele é tão legal — diz Karen. — E bonito. —Ela se vira para mim. — Você não o conhece?Dou de ombros.— Já ouvi falar dele — digo. E é tudo o querevelo.Se ela soubesse o quanto meu “parceiro decorrida” é um caso perdido, acabaria surtando.Quanto menos ela souber sobre Dean Holder, melhorpara nós duas.

Segunda-feira, 27 deagosto de 201219h10— O que diabos aconteceu com seu rosto? — Jacksolta meu queixo e passa por mim indo em direção àgeladeira.Jack está presente na vida de Karen há cerca deum ano e meio. Janta conosco algumas vezes porsemana e, como hoje é o jantar de despedida de Six,ele nos deu a honra de sua presença. Por mais quegoste de pegar no pé de Six, sei que também vaisentir sua falta.— Briguei na rua hoje — respondo.Ele ri.— Então foi isso o que aconteceu com a rua.Six escolhe uma fatia de pão e abre o pote deNutella. Pego o prato e me sirvo com a mais recenteinvenção vegana de Karen. Sua culinária é uma coisaà qual é preciso se acostumar, algo que Six ainda nãoconseguiu depois de quatro anos. Jack, por outrolado, é o gêmeo encarnado de Karen, então não se

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incomoda com a comida. O menu de hoje é algo cujonome nem consigo pronunciar, mas não tem nenhumaderivação animal, como sempre. Karen não meobriga a consumir apenas comidas vegana, entãoexperimento o que quero quando não estou em casa.Tudo o que Six come serve apenas comocomplemento ao seu prato principal — a Nutella.Hoje ela escolheu um sanduíche de queijo comNutella. Não sei se eu seria capaz de me acostumar aisso.— Então, quando vai se mudar para cá? —pergunto a Jack.Ele e Karen têm discutido o próximo passo narelação, mas jamais conseguem concordar quanto àrigorosa regra antitecnologia dela. Bem, Jack nãoconsegue aceitar isso. Já Karen está muito bemresolvida com esse assunto.— Quando sua mãe ceder e assinar a ESPN —diz Jack.Eles não discutem sobre isso. Acho que os doisestão satisfeitos com a situação atual, então nenhumdeles está com muita pressa de sacrificar as opiniõesdivergentes em relação à tecnologia moderna.— Sky desmaiou na rua hoje — diz Karen,mudando de assunto. — Um garotinho encantadorcarregou ela para dentro de casa.Eu acho graça.— Um cara, mãe. Por favor, não diga garotinho.Do outro lado da mesa Six me fulmina com oolhar e percebo que não lhe contei da minha corridaessa tarde. Nem sobre meu primeiro dia de aula.Hoje foi um dia movimentado. Para quem será quevou confidenciar o que acontece comigo depois queela for embora? Fico apavorada só de pensar queSix vai estar do outro lado do mundo daqui a doisdias. Espero que Breckin consiga ocupar o lugardela. Bem, ele provavelmente adoraria isso.— Você está bem? — pergunta Jack. — Deveter caído bem feio para ficar com esse olho aí.Estendo a mão até o rosto e faço uma careta.Tinha me esquecido completamente do olho roxo.— Isso não foi por causa do desmaio. Six medeu uma cotovelada. Duas vezes.Fico esperando que pelo menos um dos doispergunte a Six por que ela me atacou, mas nenhumdeles faz isso. O que mostra o quanto eles amamminha amiga. Nem se importam se ela bate em mim;provavelmente diriam que mereci.— Você não fica irritada por seu nome ser umnúmero? — pergunta Jack para ela. — Nunca

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entendi isso. É como quando os pais colocam no filhoo nome de um dos dias da semana. — Ele faz umapausa com o garfo no ar e olha para Karen. —Quando tivermos um filho, não vamos fazer isso comele. Qualquer palavra que puder ser encontrada numcalendário está proibida.Karen o encara com uma expressão gélida. Seeu tivesse de adivinhar por sua reação, diria que é aprimeira vez que Jack falou em ter filhos. Se eutivesse de adivinhar pelo olhar em seu rosto, diria queter filhos não é algo que ela esteja planejando para ofuturo. Nem para nunca.Jack volta sua atenção para Six.— Seu verdadeiro nome não é Seven ouThirteen ou algo assim? Não entendo por queescolheu Six. Acho que é o pior número que podiater escolhido.— Vou aceitar seus insultos — diz Six. — É só amaneira de disfarçar o quanto está arrasado comminha partida.Jack ri.— Pode aceitar. Terei mais deles quando vocêvoltar daqui a seis meses.Depois que Jack e Six vão embora, ajudo Karen nacozinha com os pratos. Desde que Jack falou sobreter filhos, ela ficou quieta demais.— Por que isso a enlouqueceu tanto? —pergunto a ela, entregando um prato para ela lavar.— O quê?— Quando ele fez aquele comentário sobre osfilhos de vocês. Você tem trinta e poucos anos. Aspessoas têm filhos o tempo todo nessa idade.— Foi tão óbvio assim?— Para mim, foi.Ela pega outro prato para lavar e depois suspira.— Amo Jack. Mas também amo eu e você.Gosto de como as coisas são entre nós duas e nãosei se estou pronta para mudar isso, muito menospara inserir outro filho nessa história. Mas Jack quertanto essas coisas.Fecho a torneira e enxugo as mãos na toalha.— Vou fazer 18 anos em algumas semanas, mãe.Por mais que você queira que as coisas entre nóscontinuem as mesmas... isso não vai acontecer. Voume mudar para a faculdade depois do próximosemestre, e você vai ficar morando aqui sozinha.Talvez não seja tão ruim considerar a ideia de pelomenos deixar ele se mudar para cá.Ela sorri para mim, mas é um sorriso aflito, omesmo que aparece toda vez que toco no assunto da

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faculdade.— Tenho considerado essa ideia, Sky. Podeacreditar. Só que esse é um passo importante quenão pode ser desfeito depois que a decisão já foitomada.— Mas e se for um passo que você não queiraque seja desfeito? E se for um passo que só vai fazervocê ter mais vontade de dar outro passo, e depoismais outro, até acabar correndo em disparada?Ela ri.— É exatamente disso que tenho medo.Enxugo o balcão e lavo o pano na pia.— Às vezes não entendo você.— E eu também não a entendo — diz ela,cutucando meu ombro. — Sou incapaz de entenderpor que quis tanto estudar num colégio. Sei que disseque foi até divertido, mas me conte o que realmenteachou.Dou de ombros.— Foi legal — minto. Minha teimosia semprefala mais alto. Jamais vou revelar a ela o quanto odieiir à escola hoje, mesmo sabendo que ela nunca diria“eu avisei”.Ela seca as mãos e sorri para mim.— Que bom. Quem sabe quando eu perguntarde novo amanhã, você me conte a verdade.Tiro da mochila o livro que Breckin me deu e o deixoem cima da cama. Leio apenas duas páginas antes deSix entrar pela janela.— Colégio primeiro, presente depois — diz ela,se acomodando ao meu lado na cama enquantocoloco o livro na mesinha de cabeceira.— O colégio foi um saco. Graças a você e suainabilidade de simplesmente dizer não aos garotos,herdei sua péssima reputação. Mas por intervençãodivina, fui resgatada por Breckin, o adotado mórmongay que não sabe cantar nem atuar, mas ama ler e émeu melhor amigo no mundo inteiro.Six faz beicinho.— Nem fui embora ainda e você já mesubstituiu? Que cruel. E, só para constar, não souincapaz de dizer não aos garotos. Apenas nãoentendo as consequências morais do sexo antes docasamento. De muito e muito sexo antes docasamento.Ela põe uma caixa no meu colo. Uma caixadesembrulhada.— Sei o que está pensando — diz ela. — Masfique sabendo que a falta de embrulho não demonstrao que sinto por você. Foi só preguiça.

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Pego a caixa e a balanço.— É você que está indo embora, sabia? Eu quedevia estar dando um presente para você.— É, devia mesmo. Mas você é péssima em darpresentes e não acho que vá mudar só por minhacausa.Ela tem razão. Sou péssima em dar presentes,mas isso acontece principalmente porque odeio muitoreceber presentes. É quase tão constrangedor quantopessoas chorando. Viro a caixa e encontro a aba.Levanto-a e, então, abro. Removo o papel crepom, eum celular cai na minha mão.— Six — digo. — Sabe que não posso...— Cale a boca. Jamais iria para o outro lado domundo sem ter como me comunicar com você. Vocênão tem nem e-mail.— Eu sei, mas não posso... não tenho emprego.Não tenho como pagar por isso. E Karen...— Relaxe. É um celular pré-pago. Coloqueicréditos que cobrem minutos suficientes para que agente possa trocar uma mensagem por dia enquantoeu estiver longe. Não tenho dinheiro para fazerligações internacionais, então quanto a isso você nãodeu sorte. E, só para não desobedecer os valoresparentais cruéis e distorcidos de sua mãe, não temnem internet nessa porcaria. Só dá para enviarmensagem de texto.Ela pega o celular e liga o aparelho e, emseguida, coloca suas informações nos contatos.— Se acabar arranjando um namorado gatoenquanto eu estiver longe, pode muito bemacrescentar minutos a mais. Mas, se ele usar meusminutos, corto o saco dele fora.Ela me devolve o celular, e pressiono o botãohome. Seu nome nos contatos aparece como Suamelhor, MELHOR amiga no mundo inteiro.Sou péssima em receber presentes e sou muitopior com despedidas. Guardo o telefone de volta nacaixa e me curvo para pegar minha mochila. Tiro oslivros, coloco-os no chão, me viro e balanço amochila em cima de Sky, observando todas as notascaírem em seu colo.— Aqui tem 37 dólares — digo. — Para vocêsobreviver até voltar. Feliz dia do intercâmbio.Ela enche a mão com as notas e as joga no ar, e,em seguida, se joga na cama.— Primeiro dia no colégio e as vacas jáencheram seu armário? — Ela ri. — Impressionante.Coloco em seu peito o cartão de despedida queescrevi, e apoio a cabeça em seu ombro.

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— Achou isso impressionante? Devia ter vistomeu pole dance no refeitório.Ela pega o cartão e passa os dedos por ele,sorrindo. Não o abre, porque sabe que não gostoquando as coisas ficam constrangedoramenteemotivas. Ela encosta o cartão no peito mais uma veze apoia a cabeça no meu ombro.— Você é a maior vagabunda — diz elabaixinho, tentando conter as lágrimas, pois somosteimosas demais para chorar.— Pois é, foi o que me disseram.

Terça-feira, 28 de agostode 20126h15O alarme soa, e imediatamente penso em deixar paralá a corrida de hoje, até que lembro quem está meesperando lá fora. Eu me visto com a maior rapidezdesde que aprendi a me vestir sozinha e vou até ajanela. Há um cartão grudado na parte de dentro dovidro com a palavra “vagabunda” escrita com a letrade Six. Sorrio, tiro o cartão da janela e o jogo naminha cama antes de sair de casa.Ele está sentado no meio-fio, alongando aspernas. Está de costas para mim, o que é bom. Casocontrário, teria me visto franzir a testa ao perceberque estava de camisa. Ao escutar meus passos, elese vira na minha direção.— Oi, você. — Ele sorri e se levanta. Ao fazerisso, percebo que sua camisa já está encharcada. Eleveio correndo até aqui. Correu mais de 3 quilômetrosaté aqui, está prestes a correr mais 5 comigo edepois mais 3 para voltar para casa. Não consigoentender por que está fazendo tudo isso. Ou por queestou permitindo. — Precisa se alongar primeiro? —pergunta ele.— Já me alonguei.Ele estende o braço e toca minha bochecha como polegar.— Não está tão ruim — diz ele. — Está sentindodor?Nego com a cabeça. Ele realmente espera queeu verbalize uma resposta enquanto seus dedosencostam em meu rosto? É muito difícil falar eprender a respiração ao mesmo tempo.Ele afasta a mão e sorri.— Ótimo. Está pronta?Solto o ar.— Estou.

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E então nós corremos. Corremos lado a lado porum tempo até o caminho se estreitar e ele passar acorrer atrás de mim, o que me deixa incrivelmenteconstrangida. Costumo me sentir bem solta quandocorro, mas dessa vez estou atenta a todos osdetalhes, como o cabelo, o comprimento do short,cada gota de suor que escorre pelas costas. Ficoaliviada quando o caminho fica mais largo e ele voltapara meu lado.— Você devia mesmo tentar entrar para aequipe de atletismo. — A voz dele está normal e nãoparece de jeito algum que ele já correu 6,5quilômetros naquela manhã. — Tem mais resistênciaque a maioria do pessoal da equipe do ano passado.— Não sei se quero — digo, ofegante e nem umpouco atraente. — Não conheço ninguém no colégio.Pensei em tentar, mas até agora a maioria daspessoas foi meio... malvada. Não quero ficar sujeita aeles ainda mais tempo por causa de uma equipe.— Você só teve um dia de aula na escola.Espere mais um pouco. Depois de passar a vidainteira estudando dentro de casa, não dá paraesperar que chegue no colégio e faça vários amigosno primeiro dia.Paro imediatamente. Ele dá mais alguns passosantes de perceber que não estou mais ao seu lado.Ao se virar e me ver parada na rua, corre para pertode mim e agarra meus ombros.— Você está bem? Ficou tonta?Balanço a cabeça e afasto as mãos dele dosombros.— Estou bem — digo, com uma irritação bemaudível na voz.Ele inclina a cabeça.— Eu disse algo de errado?Começo a andar na direção da minha casa, entãoele me acompanha.— Um pouco — respondo, dando uma olhadanele. — Estava meio que brincando com a história deestar me perseguindo ontem, mas você admitiu queme procurou no Facebook logo depois de meconhecer. E depois insistiu em correr comigo, apesarde não ser seu caminho. E agora descubro que dealguma maneira você sabe há quanto tempo estudona escola? E que eu estudava em casa antes? Nãovou mentir, é um pouco assustador.Fico esperando uma explicação, mas tudo o queele faz é estreitar os olhos e me observar. Aindaestamos andando para a frente, mas ele fica meolhando em silêncio até dobrarmos a próxima

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esquina. Quando finalmente fala alguma coisa, aspalavras são antecedidas por um longo suspiro.— Perguntei por aí — diz ele, por fim. — Moroaqui desde os 10 anos, então tenho muitos amigos.Estava curioso sobre você.Fico olhando-o por mais alguns passos, emseguida desvio o olhar para a calçada. De repentenão sou mais capaz de olhar para ele, pensando noque mais esses “amigos” disseram sobre mim. Seique os boatos têm se espalhado desde que Six e eunos tornamos próximas, mas é a primeira vez que mesenti um pouco envergonhada ou na defensiva porcausa disso. O fato de ele estar gastando tantaenergia para correr comigo só pode significar umacoisa. Ficou sabendo dos boatos e está torcendopara que sejam verdade.Ele percebe que estou constrangida, então agarrameu cotovelo e me faz parar.— Sky.Nós ficamos de frente um para o outro, masmeus olhos estão grudados no concreto. Hoje nãoestou só de top de ginástica, mas cruzo os braçospor cima da camisa de qualquer jeito e me abraço.Não tem nada à mostra para ser coberto, mas poralguma razão estou me sentindo totalmente exposta.— Acho que ontem começamos as coisas com opé esquerdo no mercado — diz ele. — E aquelepapo de perseguir você, juro que foi brincadeira.Não quero que fique constrangida perto de mim. Sesentiria melhor se soubesse mais sobre mim?Pergunte alguma coisa que eu respondo. Qualquercoisa.Espero mesmo que ele esteja sendo sinceroporque já consigo perceber que não é o tipo de carapelo qual uma garota tem uma simples quedinha. É otipo de cara pelo qual a gente se apaixonaloucamente, e isso me deixa apavorada. Não querode jeito algum me apaixonar loucamente por alguém,muito menos por alguém que só está perdendo seutempo porque acha que sou fácil. Também não querome apaixonar por alguém que já se considera umcaso perdido. Porém estou curiosa. Tão curiosa.— Se eu fizer uma pergunta, você vai sersincero?Ele inclina a cabeça para mim.— Isso serei sempre.A maneira como ele abaixa a voz ao falar fazminha cabeça rodopiar, e, por um segundo, fico commedo de acabar desmaiando outra vez se elecontinuar falando assim. Por sorte, ele dá um passo

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para trás e fica esperando minha pergunta. Queroperguntar sobre seu passado. Quero saber por quefoi preso, por que fez tudo aquilo e por que Six nãoconfia nele. Mais uma vez, no entanto, ainda não seise quero saber a verdade.— Por que desistiu do colégio?Holder suspira como se essa fosse uma dasperguntas que estava querendo evitar. Ele começa adar alguns passos para a frente, e, dessa vez, sou euque vou atrás dele.— Tecnicamente, ainda não desisti.— Bem, é óbvio que faz mais de um ano vocênão aparece. Para mim isso é desistir.Ele se vira e parece estar se sentindo dividido,como se quisesse me contar alguma coisa. Abre aboca, mas a fecha em seguida, após hesitar. Odeionão conseguir interpretá-lo. É fácil interpretar amaioria das pessoas. Elas são simples. Holder é todoconfuso e complicado.— Eu me mudei de volta para cá só faz algunsdias — diz ele. — O ano passado foi péssimo paraminha mãe e eu, então fui morar por um tempo commeu pai em Austin. Estava estudando por lá, massenti que era hora de voltar para casa. Então aquiestou.O fato de ele não ter mencionado o tempo naprisão me faz questionar a capacidade dele de sersincero. Entendo que esse provavelmente não é umassunto do qual queira falar, mas ele não deviaafirmar que vai ser sempre sincero quandoobviamente não é isso o que está fazendo.— Nada disso explica por que você preferiudesistir em vez de pedir transferência para cá.Ele dá de ombros.— Não sei. Para falar a verdade, ainda estoudecidindo o que quero fazer. Este ano tem sido foda.Sem falar que eu odeio a escola daqui. Cansei detodas as palhaçadas e às vezes penso que seria maisfácil fazer outra coisa.Paro de andar e me viro para ele.— Que desculpa de merda.Ele ergue a sobrancelha para mim.— É uma desculpa de merda eu odiar o colégio?— Não. É uma desculpa de merda você deixarum ano ruim determinar o resto de sua vida. Faltamnove meses para a formatura e vai desistir? É só... éburrice.Ele ri.— Bem, se está explicando com tantaeloquência.— Pode rir o quanto quiser. Sair do colégio é

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simplesmente desistir. Está dando razão a quem querque tenha duvidado de você. — Olho para baixo ereparo na tatuagem em seu braço. — Vai desistir emostrar ao mundo que é mesmo um caso perdido?Que maneira de enfrentá-los.Ele acompanha meu olhar até a tatuagem e aencara por um instante, cerrando os dentes. Nãoqueria ter mudado de assunto, mas não se importarcom os estudos é um assunto delicado para mim.Culpo Karen pelos anos enfiando em minha cabeçaque sou a única responsável pelo meu futuro.Holder desvia o olhar da tatuagem que estamosencarando, olha para cima e indica minha casa com acabeça.— Chegamos — diz ele, sem expressão alguma.Ele se vira sem nem sequer sorrir ou acenar.Fico parada na calçada, observando-odesaparecer ao dobrar a esquina sem olhar para trásnenhuma vez.E eu achando que hoje conversaria com apenasuma das personalidades dele. Não mesmo.

Terça-feira, 28 de agostode 201207h55No primeiro horário, entro na sala de aula e Breckinestá sentado mais no fundo com todo seu glamourrosa-choque. Realmente não entendo como não pudeperceber esses sapatos rosa-choque e o garotodentro deles antes do almoço de ontem.— Oi, gatão — digo ao me sentar ao lado dele.Tiro o copo de café de suas mãos e tomo um gole.Ele aceita, pois ainda não me conhece tão bem parareclamar. Ou talvez esteja permitindo por saber asconsequências de interromper uma viciada emcafeína.— Ontem à noite descobri muita coisa a seurespeito — diz ele. — Pena que sua mãe não liberaseu acesso à internet. É um lugar incrível para vocêdescobrir coisas sobre si mesma que nem você sabia.Eu rio.— E será que quero saber? — Inclino a cabeçapara trás, termino o café e devolvo o copo emseguida. Ele olha para o copo vazio e o deixa emcima da minha carteira.— Bem — diz ele. — De acordo com minhasbuscas no Facebook, alguém chamado DanielWesley foi para sua casa na sexta à noite, semeandoo medo de uma possível gravidez. No sábado, você

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transou com alguém chamado Grayson e depois oexpulsou. Ontem... — Ele tamborila os dedos noqueixo. — Ontem você foi vista correndo com umcara chamado Dean Holder depois da aula. O queme preocupa um pouco, pois de acordo com osboatos... ele não é muito fã de mórmons.Às vezes fico contente por não ter acesso àinternet como as outras pessoas.— Vejamos — digo, pensando na lista deboatos. — Nem sei quem é Daniel Wesley. Nosábado, Grayson foi, sim, a minha casa, mas aquelepinguço mal me tocou antes que eu o expulsasse. E,sim, ontem corri com um cara chamado Holder, masnão faço ideia de quem ele é. Foi pura coincidênciaestarmos correndo na mesma hora, e ele não moramuito longe de mim, então...Na mesma hora, me sinto culpada por terminimizado a importância da corrida com Holder. Éque ainda não entendi muito bem quem ele é, e nãosei se já estou pronta para que alguém se infiltre naminha aliança de 24 horas com Breckin.— Se isso serve de consolo, descobri por umatal de Shayna que sou herdeiro de uma enormefortuna — diz ele.Acho graça.— Ótimo. Assim você não vai ter problema emtrazer café para mim todos os dias.A porta da sala de aula se abre, e nós doiserguemos o olhar no instante em que Holder entravestindo camisa branca casual e calça jeans escura,com o cabelo recém-lavado depois de nossa corrida.Assim que o vejo, o vírus estomacal/onda decalor/frio na minha barriga volta.— Merda — murmuro.Holder vai até a escrivaninha do Sr. Mulligan,deixa ali um formulário e segue para o fundo da sala,mexendo no celular o tempo inteiro. Ele se senta nacarteira bem na frente de Breckin e nem nota minhapresença. Depois, diminui o volume do celular e oguarda no bolso.Estou chocada demais para falar com ele. Seráque de alguma maneira consegui fazer com quemudasse de ideia sobre se matricular? Será que estoufeliz por talvez ter feito ele mudar de ideia? Porque eumeio que só estou sentindo arrependimento.O Sr. Mulligan entra na sala, deixa suas coisas naescrivaninha, segue para o quadro e escreve seunome e a data. Não sei se ele realmente acha que jáesquecemos quem é desde ontem, ou sesimplesmente quer nos lembrar que nos considera

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burros.— Dean — diz ele, ainda de frente para oquadro. Ele se vira e fixa o olhar em Holder. —Bem-vindo de volta, com um dia de atraso. Presumoque não vai causar confusão esse semestre?Fico boquiaberta com o comentáriocondescendente tão imediato. Se é esse tipo demerda que Holder precisa aturar quando está aqui,não é de surpreender que ele não quisesse voltar.Pelo menos são só os alunos que pegam no meu pé.Professores jamais deveriam ser condescendentes,com aluno algum. Essa devia ser a primeira regra nomanual dos professores. A segunda devia ser que osprofessores não têm permissão para escrever o nomeno quadro depois da terceira série.Holder muda de posição na cadeira e responde ocomentário do Sr. Mulligan com o mesmo tom deprovocação.— Presumo que não vai dizer nada que me façacausar confusão esse semestre, Sr. Mulligan?Tudo bem, obviamente o “não estou nem aí paraessa merda” é uma via de mão dupla. Depois deconvencê-lo a voltar ao colégio, talvez minha próximalição deva ser ensinar a Holder um salutar respeitopor autoridades.O Sr. Mulligan inclina o queixo para trás efulmina Holder com o olhar por cima da armação dosóculos.— Dean. Por que não vem para a frente da salae se apresenta aos seus colegas? Com certeza hánovos rostos desde sua saída no ano passado.Holder não reclama, o que com certeza era oque o Sr. Mulligan esperava que fizesse. Em vezdisso, ele praticamente salta da cadeira e vaidepressa até a frente da sala. O movimento brusco echeio de energia faz o Sr. Mulligan dar um rápidopasso para trás. Holder vira-se, ficando de frentepara a sala, sem um pingo de insegurança ouhesitação.— Com alegria — diz Holder, lançando um olharpara o Sr. Mulligan. — Meu nome é Dean Holder.As pessoas me chamam de Holder. — Ele desvia oolhar do Sr. Mulligan para a sala. — Estudo aquidesde o primeiro ano, com exceção de um semestree meio de período sabático. E, de acordo com o Sr.Mulligan, gosto de causar confusão, então essamatéria vai ser bem divertida.Vários alunos riem do comentário, mas nãoentendo qual foi a graça. Já estava duvidando delepor causa de tudo que ouvi, e agora ele está

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mostrando quem realmente é pela maneira como estáagindo. Holder abre a boca para continuar suaapresentação, mas um sorriso surge em seu rostoassim que me vê no fundo da sala. Ele dá umapiscadela para mim, e imediatamente tenho vontadede me esconder debaixo da carteira. Dou um rápidosorriso tenso e fixo o olhar na minha mesa assim queos outros alunos começam a se virar para ver paraquem ele está olhando.Uma hora e meia atrás, ele se afastou de mimtodo mal-humorado. Agora está sorrindo, como setivesse acabado de ver sua melhor amiga pelaprimeira vez em anos.Pois é. Ele tem problemas.Breckin inclina-se por cima da carteira.— O que diabos foi isso? — sussurra ele.— Conto no almoço — digo.— É essa sabedoria que quer compartilharconosco hoje? — pergunta o Sr. Mulligan a Holder.Holder concorda com a cabeça e volta para suacarteira, sem desviar o olhar do meu nem por umsegundo. Ele se senta e vira o pescoço, ficando defrente para mim. O Sr. Mulligan começa a aula, etodo mundo volta a prestar atenção na frente da sala.Todo mundo menos Holder. Baixo o olhar para meulivro e o abro no capítulo em que estamos, esperandoque ele faça o mesmo. Quando ergo novamente oolhar, vejo que ainda está me encarando.— O que foi? — articulo com os lábios,erguendo as palmas no ar.Ele estreita os olhos e fica me observando emsilêncio por um instante.— Nada — diz ele, por fim, virando-se nacadeira e abrindo o livro.Breckin bate o lápis nas juntas dos meus dedos,olha para mim interrogativamente e volta a atençãopara o livro. Se está esperando uma explicação parao que acabou de acontecer, vai ficar desapontadoquando souber que não sou capaz de explicar nada.Nem eu sei o que foi que acabou de acontecer.Durante a aula, lanço vários olhares para Holder,que passa o resto da aula sem se virar. Quando osinal toca, Breckin salta da cadeira e tamborila osdedos na minha carteira.— Eu. Você. Almoço — decreta ele, erguendo asobrancelha para mim.Ele sai da sala, e eu desvio o olhar para Holder,que está observando, com um olhar intenso, a portada sala pela qual Breckin acabou de sair.Pego minhas coisas e saio pela porta antes que

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Holder tenha a oportunidade de puxar papo. Estoufeliz de verdade que ele tenha se rematriculado, masfiquei perturbada com a maneira como me olhou,como se fôssemos melhores amigos. Não quero queBreckin nem ninguém ache que não vejo problemaalgum nas coisas que Holder faz. Prefirosimplesmente não manter nenhuma ligação, mas sintoque ele não vai aceitar isso muito bem.Vou até o armário e troco os livros, pegando ode inglês. Fico me perguntando se Shayna/Shayla vaifalar comigo na sala hoje. É mais provável que não,aquilo foi 24 horas atrás. Duvido que ela tenhacélulas suficientes no cérebro para se lembrar deinformações tão antigas.— Oi, você.Aperto os olhos apreensivamente, fechando-os,sem querer me virar e vê-lo parado com toda suabeleza.— Você veio. — Ajeito os livros no armário eme viro para ele, que sorri e se apoia no armário aolado do meu.— Você fica bonita quando se arruma — diz ele,me olhando de cima a baixo. — Mas sua versãosuada também não é nada mal.Ele também fica bonito quando se arruma, maseu é que não vou dizer isso a ele.— Está aqui para me perseguir ou serematriculou mesmo?Ele sorri maliciosamente e tamborila os dedos noarmário.— Os dois.Preciso mesmo parar com essas piadinhas deperseguição. Seria mais engraçado se eu não achasseque ele realmente é capaz de fazer isso.Olho para o corredor que está se esvaziando.— Bem, preciso ir — digo. — Bem-vindo devolta. Ele estreita os olhos para mim, quase como sepudesse perceber meu constrangimento.— Você está estranha.Reviro os olhos com o julgamento. Como elepode saber o jeito que estou me comportando? Nemsequer me conhece. Volto meu olhar para o armárioe tento disfarçar os verdadeiros pensamentos queexplicam minha “estranheza”. Pensamentos como:por que seu passado não me assusta tanto quantodeveria? Por que ele é tão esquentado a ponto defazer o que fez com aquele pobre garoto no anopassado? Por que está gastando tanta energia paracorrer comigo? Por que saiu perguntando por aísobre mim? Em vez de admitir que essas perguntas

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estão na minha cabeça, dou de ombros e digo:— Estou surpresa por ver você aqui, só isso.Ele apoia o ombro no armário ao lado do meu ebalança a cabeça.— Não. É alguma outra coisa. O que há deerrado?Suspiro e encosto no armário.— Quer que eu seja sincera?— É tudo que sempre quero que seja.Aperto os lábios, formando uma linha firme, econcordo com a cabeça.— Tudo bem — digo. Viro o ombro,encostando no armário, e fico de frente para ele. —Não quero que fique com uma impressão errada dascoisas. Você dá em cima de mim e diz coisas comose tivesse certas intenções comigo, só que eu nãoquero que a recíproca seja verdadeira. E você é... —Paro, procurando a palavra correta.— Sou o quê? — diz ele, me analisandoatentamente.— Você é... intenso. Intenso demais. E instável.E um pouco assustador. E tem mais outra coisa —digo, sem revelar qual é. — Não quero que fiquecom uma impressão errada.— Que outra coisa? — pergunta ele, como sesoubesse exatamente a que estou me referindo, masquisesse me desafiar a dizê-lo em voz alta.Solto o ar e pressiono as costas no armário,encarando meus pés.— Você sabe — digo, sem querer mencionarseu passado, assim como ele provavelmente tambémnão quer.Holder aproxima-se, põe a mão no armário aolado da minha cabeça e se inclina para perto de mim.Ergo o olhar e vejo que ele está me encarando, amenos de 15 centímetros de meu rosto.— Eu não sei, porque você está evitando falarqual é esse problema que tem comigo, como setivesse medo demais de dizer o que é. Fale logo.Ao olhar para Holder então, me sentindoencurralada, o mesmo pânico de quando ele foiembora, após a primeira vez que nos encontramos,reaparece em meu peito.— Ouvi falar do que você fez — digoabruptamente. — Sei que bateu em um cara. Sei quefoi preso. Sei que, nesses dois dias desde que nosconhecemos, me deixou bastante apavorada pelomenos três vezes. E, como estamos sendo sinceros,também sei que se andou perguntando por aí sobremim, então é claro que ouviu falar da minha

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reputação, assim é mais do que provável que sóesteja gastando essa energia toda comigo por causadisso. Odeio ter de desapontá-lo, mas não voutransar com você. Não quero que fique achando quevai acontecer algo entre nós além do que já estáacontecendo. Corremos juntos. Só isso.Vejo que sua mandíbula está retesada, mas aexpressão em seu rosto continua a mesma. Ele abaixao braço e dá um passo para trás, dando espaço paraque eu recupere o fôlego. Não entendo por que ficosem ar toda vez que ele entra no meu espaçopessoal. E entendo menos ainda por que gosto dessasensação.Pressiono os livros no peito e vou passando porele, mas um braço cerca minha cintura e me puxapara longe de Holder. Olho para o lado e vejoGrayson observando Holder de cima a baixo,segurando minha cintura com mais força.— Holder — diz Grayson friamente. — Nãosabia que ia voltar.Holder nem percebe a presença de Grayson. Elecontinua me encarando por vários segundos,desviando o olhar apenas para a mão de Graysonagarrada à minha cintura. Ele balança um pouco acabeça e sorri, como se tivesse acabado de perceberalguma coisa, e olha mais uma vez para mim.— Pois é, estou de volta — diz ele secamente,sem olhar para Grayson.O que diabos é isso? De onde foi que Graysonsurgiu, e por que ele está com o braço em volta daminha cintura como se fosse seu direito?Holder desvia o olhar e se vira, mas para derepente. Gira o corpo de volta e olha para mim.— Os testes para a equipe de atletismoacontecem na quinta depois das aulas — diz ele. —Você devia ir.E então ele vai embora.Pena que Grayson não fez o mesmo.— Tem alguma coisa para fazer no sábado? —diz Grayson no meu ouvido, puxando-me para ele.Empurro seu peito e afasto meu pescoço.— Pare — digo, irritada. — Acho que fuibastante clara no fim de semana passado.Bato a porta do armário e vou embora, meperguntando como diabos escapei desses dramas avida inteira para agora conseguir material para umlivro inteiro em apenas dois dias.Breckin senta-se na minha frente e me entrega umrefrigerante.— Não tinha café, mas consegui cafeína.

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Sorrio.— Obrigada, melhor amigo do mundo inteiro.— Não me agradeça, trouxe isso com másintenções. Quero suborná-la para descobrir ospodres de sua vida amorosa.Rio e abro a latinha.— Bem, vai ficar desapontado, pois minha vidaamorosa é inexistente.Ele abre o próprio refrigerante e sorri.— Ah, duvido. Não com o bad boy aliencarando você daquele jeito. — Ele aponta com acabeça para a direita.Holder está a três mesas de distância, olhandopara mim. Está sentado com vários garotos do timede futebol, que parecem animados por tê-lo de volta.Estão dando tapinhas em suas costas e falando aoseu redor, sem perceberem, nem por um instante,que Holder não está participando da conversa. Eletoma um gole d’água, sem desviar os olhos de mim.Depois pousa a bebida de volta na mesa, exagerandoum pouco na força, e aponta com a cabeça para adireita ao se levantar. Olho para a direita e vejo asaída do refeitório. Ele está indo para lá, esperandoque eu o siga.— Hum — digo, mais para mim do que paraBreckin.— Pois é. Hum. Vá ver o que diabos ele quer edepois venha me contar tudo o que aconteceu.Tomo mais um gole de refrigerante e o coloco namesa.—Sim, senhor.Meu corpo quer se levantar e ir atrás dele, masdeixo o coração na mesa. Tenho certeza de que elepulou para fora do peito assim que vi Holder mechamando. Posso esconder isso tudo de Breckin oquanto quiser, mas, caramba, seria bom se eu fossecapaz de controlar meus órgãos; pelo menos umpouquinho.Holder está vários metros a minha frente. Eleempurra as portas, que se fecham após suapassagem. Coloco a mão nas portas ao alcançá-las,e hesito por um instante antes de sair para ocorredor. Acho que preferia cumprir uma suspensãoa ter de ir conversar com ele. Meu estômago está tãoembrulhado que mais parece um presente.Olho para os dois lados, mas não o vejo. Doualguns passos até chegar ao fim dos armários e dar avolta. Ele está encostado num deles, com o joelhodobrado e o pé apoiado na porta. Os braços estãocruzados no peito, e ele está olhando direto para

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mim. O tom azul-claro de seus olhos não tem nem abondade de disfarçar a raiva que há por trás deles.— Você está saindo com Grayson?Reviro os olhos, vou até os armários na frentedele para me apoiar ali. Já estou cansando de suasvariações de humor, e olha que acabei de conhecêlo.— Isso importa?Estou curiosa para saber por que isso é da contadele. Holder faz aquela pausa silenciosa que, peloque percebi, antecede quase tudo o que ele diz.— Ele é um babaca.— Às vezes você também é — digo depressa,sem precisar de tanto tempo quanto ele pararesponder.— Ele não vai fazer bem para você.Solto uma risada exasperada.— E você vai? — pergunto, devolvendo oargumento dele imediatamente. Se estivéssemosmarcando a pontuação, diria que está dois a zeropara mim.Ele abaixa os braços e se vira para os armários,batendo num deles com a palma da mão. O som dapele contra o metal reverbera pelo corredor, vindoparar direto no meu estômago.— Não me inclua nisso — diz ele, virando-se devolta. — Estou falando sobre Grayson, não sobremim. Você não devia estar com ele. Não faz ideia dotipo de pessoa que ele é.Eu rio. Não porque ele é engraçado... masporque está falando sério. Esse cara que malconheço está mesmo me dizendo com quem devo ounão sair? Encosto a cabeça no armário, sendodominada pela frustração.— Dois dias, Holder. Conheço você há apenasdois dias. — Eu me distancio dos armários e vou atéele. — Nesses dois dias, já vi cinco personalidadesdiferentes suas, e somente uma delas era agradável.O fato de você achar que tem o direito até mesmo dedar sua opinião sobre mim ou minhas decisões é umabsurdo. É ridículo.Holder cerra os dentes e fica me encarando, comos braços firmemente cruzados. Ele dá um passodesafiador em minha direção. Os olhos dele estão tãofrios e intensos que estou começando a achar que oque estou vendo agora é uma sexta personalidade.Uma ainda mais furiosa, mais possessiva.— Não gosto dele. E quando vejo coisas dessetipo? — Ele leva a mão até meu rosto e passa odedo delicadamente embaixo do machucadochamativo em meu olho. — E depois o vejo com o

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braço a seu redor? Me desculpe se fico mecomportando de uma maneira um pouco ridícula.As pontas de seus dedos encostando em minhamaçã do rosto me deixam sem ar. Preciso meesforçar bastante para não fechar os olhos e meinclinar em direção à palma da sua mão, mascontinuo firme. Estou construindo uma certaimunidade contra esse garoto. Ou... pelo menosestou tentando. Enfim, essa é minha nova meta.Dou um passo para longe até a mão dele deixarde encostar no meu rosto. Ele dobra os dedos,cerrando o punho, e deixa a mão ao lado do corpo.— Você acha que devo ficar longe de Graysonporque tem medo de que ele seja esquentado? —Inclino a cabeça para o lado e estreito os olhos paraele. — Isso é um pouco hipócrita, não acha?Após mais alguns segundos me observando, elesolta um breve suspiro e revira os olhos quaseimperceptivelmente. Desvia o olhar e balança acabeça, segurando a nuca. Depois fica parado nessaposição por vários segundos, de costas para mim.Após se virar devagar, não me olha nos olhos. Cruzaos braços mais uma vez e olha para o chão.— Ele bateu em você — diz ele, sem nenhumainflexão na voz e com a cabeça ainda direcionadapara o chão, mas olha para mim por entre os cílios.— Ele já bateu em você alguma vez?Lá vai ele de novo, induzindo minha submissãocom uma simples mudança de comportamento.— Não — digo baixinho. — E não. Já disse...foi um acidente.Ficamos nos encarando em total silêncio até osinal para o segundo almoço tocar e o corredor seencher de alunos. Sou a primeira a desviar o olhar.Volto para o refeitório sem virar para trás.

Quarta-feira, 29 de agostode 20126h15Corro há quase três anos. Não lembro por quecomecei nem por que passei a gostar tanto a pontode me tornar tão disciplinada. Acho que tem muito aver com o fato de eu ser tão frustrantementeprotegida. Tento ficar otimista quanto a isso, mas édifícil ver as interações e os relacionamentos que osoutros alunos têm no colégio, mas eu não. Não teracesso à internet enquanto estivesse no ensino médionão seria algo tão relevante alguns anos atrás, masagora é praticamente um suicídio social. Não que eu

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me importe com o que as pessoas pensam.Não vou negar, tive uma vontade imensa deinvestigar Holder na internet. Antes, quando queriadescobrir mais sobre alguma pessoa, eu e Sixusávamos a conexão da casa dela. Mas agora Sixestá num voo transatlântico, então não posso pedir aela. Em vez disso, fico sentada na cama, pensando noassunto. Será que ele é mesmo tão mau quanto suareputação? Será que provoca em outras garotas omesmo efeito que tem em mim? Quem serão os paisdele, será que tem irmãos, será que está namorandoalguém? Por que quer ficar com raiva de mim otempo inteiro se a gente acabou de se conhecer? Eleé sempre tão charmoso quando não está tãoocupado com a própria raiva? Odeio que ele sejasempre uma coisa ou outra, sem ter um meio-termo.Seria tão bom ver um lado seu mais calmo erelaxado. Será que ele tem esse meio-termo? Ficome perguntando essas coisas... porque é tudo o queposso fazer. Fazer essas perguntas para mim mesmaem silêncio a respeito do caso perdido que de algumamaneira se entocou bem no meio dos meuspensamentos e que não quer sair de maneira alguma.Saio do meu transe e termino de calçar o tênis decorrida. Pelo menos, nosso desentendimento davéspera, no corredor, não foi resolvido. Por causadaquilo, ele não vai correr comigo hoje, o que medeixa bastante aliviada. Preciso do meu temposozinha mais que nunca. Não sei por qual motivo,mas vou ficar o tempo inteiro imaginando coisas.Sobre ele.Abro a janela do quarto e saio. Está mais escuroque o normal para essa hora da manhã. Olho paracima e vejo que o céu está nublado, refletindo comperfeição meu humor. Observo a direção das nuvense olho para o céu à esquerda, curiosa para ver setenho tempo suficiente para correr antes da chuvatorrencial começar.— Você sempre sai pela janela ou estava apenastentando me evitar?Eu me viro ao ouvir sua voz. Ele está na beiradada calçada, de bermuda e tênis de corrida. E dessavez sem camisa.Droga.— Se estivesse tentando evitá-lo, teriasimplesmente ficado na cama. — Ando até ele comconfiança, esperando disfarçar que vê-lo fez com quemeu corpo inteiro entrasse em curto-circuito. Umapequena parte de mim está desapontada por ele teraparecido hoje, mas a maior parte está ridiculamente,

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pateticamente feliz. Passo por ele e me abaixo nacalçada para me alongar. Abro as pernas e me inclinopara a frente, me apoiando no tênis e enterrando acabeça no joelho — em parte para alongar omúsculo, mas também para evitar olhar para ele.— Não sabia se você viria. — Ele se abaixa efica na minha frente na calçada.Eu me levanto e olho para ele.— Por que eu não viria? Não sou eu aproblemática. Além disso, nenhum de nós é dono darua. — Eu praticamente vocifero com ele. Sem nemsaber o motivo.Mais uma vez ele faz aquilo de ficar meencarando e pensando, o olhar intenso me deixandosem reação. Repete tanto isso que quase fico comvontade de batizar esse hábito. É como se eleestivesse me prendendo com os olhos enquantopensa em silêncio, sem trair nenhuma indicação depropósito na expressão. Nunca conheci ninguém quepensasse tanto nas próprias falas. A maneira comoele fica refletindo enquanto prepara sua resposta —parece até que as palavras são limitadas e que ele sóquer usar as que forem de extrema necessidade.Paro de me alongar e me viro para ele, semvontade de ceder nessa disputa visual. Não voudeixar que faça seus truquezinhos mentais de Jedicomigo, não importa o quanto queira ser capaz defazer algo assim com ele. Holder é completamenteincompreensível e ainda mais imprevisível. Isso medeixa furiosa.Ele alonga as pernas na minha frente.— Me dê as mãos. Também preciso me alongar.Ele está sentado com as mãos estendidas naminha frente como se fôssemos brincar de adoleta.Se alguém passar de carro, dá para imaginar osboatos surgindo. Só de pensar, começo a rir. Ponhoas mãos nas suas, e ele me puxa para a frente, emsua direção, por vários segundos. Quando ele relaxa,também o puxo para a frente e ele se alonga, masnão olha para baixo. Em vez disso, continua com oolhar fixo e debilitante nos meus olhos.— Só para constar — diz ele. — Ontem não fuieu o problemático.Eu o puxo com força redobrada, mais pormalícia que por desejo de ajudá-lo a se alongar.— Está insinuando que eu sou a problemática?— E não é?— Esclareça — digo. — Não gosto de coisasvagas.Ele ri, mas é uma risada irritante.

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— Sky, se tem uma coisa que deve saber sobremim é que não sou vago. Já disse que vou ser sempresincero com você, e, para mim, ser vago é a mesmacoisa que ser desonesto. — Ele puxa minha mãomais para a frente e se inclina para trás.— Acabou de me dar uma resposta bastantevaga — saliento.— Você não me perguntou nada. Já disse que sequiser saber alguma coisa, é só me perguntar. Pareceque você acha que me conhece, quando na verdadenunca me perguntou nada.— Eu não conheço você.Ele ri de novo, balança a cabeça e solta minhasmãos.—Deixe para lá. — Ele se levanta e começa ase afastar.— Espere. — Eu me levanto do concreto e vouatrás dele. Se alguém aqui tem o direito de estar comraiva, esse alguém sou eu. — O que foi que acabeide dizer? Que não conheço você. Por que está todoirritado comigo de novo?Ele para de andar, vira-se e dá alguns passos emminha direção.— Achei que depois de passar um tempo juntosnos últimos dias, você teria uma reação um poucodiferente no colégio. Já dei várias oportunidades parame perguntar o que quiser, mas, por algum motivo,prefere acreditar no que ouve por aí, apesar de nãoter ouvido nada da minha boca. E, vindo de alguémque também é vítima de vários boatos, imaginei quenão seria tão rápida em julgar.Vítima de vários boatos? Se ele acha que vaiganhar pontos comigo por termos algo em comum,errou feio.— Então é isso? Você achou que a periguetenovata se identificaria com o babaca que bate emgays? Ele solta um gemido e passa a mão pelo cabelo,frustrado.— Não faça isso, Sky.— Não fazer o quê? Chamar você de babacaque bate em gays? Está bem. Vamos colocar emprática essa sua sinceridade. Você deu ou não deuuma surra tão grande num aluno no ano passado e,por isso, acabou sendo preso?Ele põe as mãos no quadril e balança a cabeça.Em seguida olha para mim com o que parece ser umaexpressão de desapontamento.— Quando eu disse não faça isso, não estavame referindo a me insultar. Estava me referindo ainsultar a si mesma. — Ele dá um passo à frente,

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diminuindo a distância entre nós. — E sim. Bati tantoque por pouco ele não morreu, e, se aquele canalhaaparecesse na minha frente agora, eu faria tudo denovo.Seus olhos estão tomados pela raiva, e fico commedo demais para continuar falando sobre o assunto.Ele pode até ter dito que seria sincero... mas suasrespostas me apavoram mais que a ideia de fazermais perguntas. Dou um passo para trás, e ele faz omesmo. Nós dois ficamos em silêncio, e me perguntocomo chegamos a esse ponto.— Não quero correr com você hoje — digo.— Também não estou muito a fim de correr comvocê.Com isso, nos viramos em direções opostas. Elesegue para sua casa, eu, em direção à minha janela.Não tenho nem vontade de correr sozinha.Entro pela janela assim que a chuva começa acair, e, por um instante, fico com pena por ele ter decorrer até sua casa. Mas só por um instante, pois ocarma não deixa nada passar e, com certeza, agoraestá retaliando Holder. Fecho a janela e vou até acama. Meu coração está tão disparado que pareceque acabei de correr os 5 quilômetros. Só que, emvez disso, está disparando porque estou incrivelmentefuriosa.Conheci esse garoto faz apenas uns dias, masjamais discuti tanto com alguém na minha vida. Se eusomasse todas as discussões que Six e eu tivemosnos últimos quatro anos, o resultado não chegarianem perto das últimas 48 horas com Holder. Não seinem por que ele se importa. Acho que depois dehoje é provável que não se importe mais.Pego o envelope na minha mesinha de cabeceirae o abro. Tiro a carta de Six, me encosto notravesseiro e a leio, querendo fugir do caos em minhacabeça.Sky,Espero que quando estiver lendo isso (poissei que você não vai ler na mesma hora),eu já esteja loucamente apaixonada pelomeu namorado italiano gato e não estejamais pensando em você nem por umsegundo.Mas sei que não é verdade, pois voupensar em você o tempo inteiro.Vou pensar em todas as noites queficamos acordadas com nossos sorvetes,nossos filmes e nossos garotos. Mais quetudo, vou ficar pensando em você e emtodas as razões pelas quais a amo.

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Só para citar algumas: amo o fato devocê ser péssima com despedidas,sentimentos e emoções, pois também souassim. Amo como sempre pega a parte demorango e de baunilha do sorvete porsaber o quanto amo a parte de chocolate,apesar de você também amar. Amo o fatode não ser estranha e desajeitada apesarde estar tão isolada da sociedade a pontode fazer os Amish parecerem fashion.Mais que tudo, amo o fato de você nãome julgar. Amo que, nos últimos quatroanos, jamais questionou minhas escolhas(por mais que tenham sido ruins) nem osgarotos com quem fiquei nem o fato de eunão acreditar em namoro. Eu poderia dizerque é fácil você não me julgar poistambém é uma piranha safada. Mas nósduas sabemos que isso é mentira. Entãoobrigada por ser uma amiga livre dejulgamentos. Obrigada por nunca sercondescendente nem me tratar como sevocê fosse melhor que eu (apesar de nósduas sabermos que você é). Por mais queeu consiga rir das coisas que as pessoasfalam sobre nós pelas costas, fico arrasadapor dizerem essas coisas sobre vocêtambém. E por isso peço desculpas. Masnem tanto, pois sei que se você tivesse deescolher entre ser minha melhor amigapiranha ou a santinha, você daria paratodos os caras do mundo. Pois você meama muito. E eu permitiria isso, porquetambém a amo tanto assim.E só mais uma coisa que amo em vocêantes de eu calar a boca, pois estou aapenas 2 metros de distância enquantoescrevo esta carta e está sendo bem difícilnão sair pela minha janela e ir apertarvocê.Amo sua indiferença. E o fato de vocênão estar nem aí para o que as pessoaspensam. Amo como você está focada noseu futuro e todo o resto que se dane. Amoo fato de que, quando contei que ia para aItália depois de convencê-la a sematricular no meu colégio, vocêsimplesmente sorriu e deu de ombrosquando isso teria destruído a amizade dequase todas as melhores amigas. Deixeivocê na mão para ir atrás do meu sonho, e

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você não deixou que isso a chateasse. Nempegou no meu pé por causa disso.Amo que (última coisa, prometo)quando vimos Forças do Destino e SandraBullock foi embora no final e eu fiqueigritando com a televisão por causa dessefim horroroso, você simplesmente deu deombros e disse: “É realista, Six. Você nãopode ficar com raiva de um final realista.Alguns são horrorosos mesmo. São osfinais felizes superfalsos que deviam irritarvocê.”Nunca vou me esquecer daquilo, poisvocê tinha razão. E sei que não estavatentando me ensinar uma lição, mas foiisso o que acabou acontecendo. Nem tudovai dar certo no meu caminho e nem todomundo ganha um final feliz. A vida érealista, e, às vezes, as coisas ficam feias esó nos resta aprender a lidar com elas. Vouaceitar isso com uma dose da suaindiferença e seguir em frente.Então. Enfim. Já chega. Só queriadizer que vou sentir sua falta e avisar que émelhor esse seu novo melhor amigo domundo inteiro cair fora quando eu voltardaqui a seis meses. Espero que perceba oquanto você é incrível, mas, caso não note,vou mandar todos os dias uma mensagempara que se lembre. Prepare-se para serbombardeada nos próximos seis meses commensagens irritantes e sem fim, contendoapenas elogios a Sky.Amo você,6Dobro a carta e sorrio, mas não choro. Ela nãoesperaria que eu chorasse com a carta, não importa oquanto tenha me deixado com vontade de fazer isso.Estendo o braço até a mesinha de cabeceira e pegona gaveta o celular que ela me deu. Tenho duasmensagens que não vi.Já disse o quanto você é incrível alguma vezrecentemente? Saudades.É o segundo dia, é melhor me responder. Precisocontar sobre Lorenzo. Além disso, você é inteligentede uma maneira repugnante.

Sorrio e respondo a mensagem. Preciso de umascinco tentativas para descobrir como fazer isso.Tenho quase 18 anos e é a primeira mensagem queenvio na vida? Isso precisa entrar para o Guinness.Posso me acostumar com esses elogios diários. Não se

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esqueça de me lembrar o quanto sou bonita, o quantomeu gosto musical é impecável, e que sou a corredoramais rápida do mundo. (Só algumas ideias paracomeçar). Saudades também. E não vejo a hora desaber mais sobre Lorenzo, sua piranha.

Sexta-feira, 31 de agostode 201211h20Os próximos dias no colégio são parecidos com osdois primeiros. Cheios de drama. Meu armárioparece ter se tornado um centro de post-its e bilhetesgrosseiros, apesar de eu jamais ver nada sendocolocado na porta ou dentro dele. Não consigoentender o que as pessoas ganham com isso se nemassumem a autoria. Como o bilhete que estavacolado no meu armário hoje de manhã. Tudo o quedizia era: “puta”.Sério? Cadê a criatividade? Não dava parajustificar isso com uma história interessante? Talvezalguns detalhes da minha indiscrição? Se vou ler essamerda todo dia, o mínimo que podem fazer é tornar asituação mais interessante. Se eu fosse me rebaixarao nível de deixar um bilhete injustificado no armáriode alguém, pelo menos faria a gentileza de entreterquem vai lê-lo. Escreveria algo interessante como:“Peguei você na cama com meu namorado ontemà noite. Não curti você ter passado óleo demassagem nos meus pepinos. Sua puta.”Acho graça, e é estranho rir em voz alta de meuspróprios pensamentos. Olho ao redor e vejo que nãotem mais ninguém no corredor. Em vez de arrancaros post-its do armário, que provavelmente é o que eudevia fazer, pego minha caneta e os torno um poucomais criativos. De nada, transeunte.Breckin põe a bandeja na frente da minha. Agoracada um buscava sua própria bandeja, pois eleparece achar que só quero comer salada. Sorri paramim como se soubesse que vou querer saber dosegredo que ele está guardando. Mas se for mais umboato, dispenso.— Como foram os testes para entrar na equipede atletismo ontem? — pergunta ele.Dou de ombros.— Não fui.— Pois é, eu sei.— Então por que perguntou?Ele ri.— Porque primeiro gosto de esclarecer as coisascom você antes de acreditar nelas. Por que não foi?

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— Dou de ombros mais uma vez. — E que história éessa de ficar dando de ombros? É tique nervoso?Repito o dar de ombros.— Só não estou a fim de fazer parte de umaequipe com as pessoas daqui. Perdi o interesse.Ele franze a testa.— Para começar, atletismo é um dos esportesmais individuais de todos. Segundo, achei que vocêtinha dito que estava aqui por causa das atividadesextracurriculares.— Não sei por que estou aqui — digo. —Talvez estivesse sentindo necessidade de testemunharuma boa dose do pior da natureza humana antes deentrar no mundo real. Assim o choque não vai ser tãogrande.Ele aponta para um aipo e ergue a sobrancelha.— É verdade. Uma introdução gradual aosperigos da sociedade vai ajudar a amortecer ochoque. Não podemos soltá-la sozinha no meio domato depois que passou a vida inteira sendo mimadanum zoológico.— Bela analogia.Ele pisca para mim e morde o aipo.— Por falar em analogias, o que é aquilo no seuarmário? Ele estava coberto de analogias e metáforassexuais.Eu rio.— Gostou? Demorei um tempinho, mas estavame sentindo criativa.Ele concorda com a cabeça.— Gostei especialmente do que dizia “Você étão puta que deu para Breckin, o mórmon.”Balanço a cabeça.— Esse daí não foi de minha autoria. Foiverdadeiro. Mas eles ficaram mais divertidos, não é?Agora que estão com mais sacanagem?— Bem, eles eram divertidos. Não estão maislá. Vi Holder rasgando-os ainda agora.Olho imediatamente para ele, que está sorrindocom certa malícia mais uma vez. Acho que era esse osegredo que não estava conseguindo segurar.— Que estranho.Estou curiosa para saber por que Holder se dariao trabalho de fazer uma coisa dessas. Nós nemcorremos juntos desde que nos falamos pela últimavez. Na verdade, nem interagimos mais. Agora ele sesenta do outro lado da sala na primeira aula, e eu nãoo vejo durante o resto do dia, só no almoço. E,mesmo assim, ele se senta do outro lado dorefeitório, com os amigos. Pensei que depois do

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nosso impasse estávamos nos evitando e fim dehistória, mas pelo jeito estava errada.— Posso perguntar uma coisa? — diz Breckin.Dou de ombros novamente, mais para irritá-lo.— Os boatos sobre ele são verdadeiros? Sobreser esquentado? E sobre a irmã?Tento não parecer surpresa com o comentário,mas é a primeira vez que ouço falar de uma irmã.— Não faço ideia. Mas passei tempo suficientecom ele para saber que me assusta o bastante e, porisso, não quero mais passar tempo com ele.Estou louca para perguntar sobre o comentárioda irmã, mas não tenho voz ativa quando minhateimosia fala mais alto. Por alguma razão, investigar avida de Dean Holder é um desses momentos.— Oi — diz uma voz atrás de mim.Imediatamente sei que não é Holder, pois a voz nãosurtiu efeito algum em mim. Quando me viro,Grayson põe a perna ao meu lado no banco e sesenta. — Tem planos para depois da escola?Mergulho o aipo no molho ranch e dou umamordida.— Provavelmente.Grayson balança a cabeça.— Não gostei dessa resposta. Encontro você noseu carro depois da última aula.Ele se levanta e vai embora antes que eu possacontestar. Breckin dá um sorriso sarcástico.Eu só dou de ombros.Nem imagino o que Grayson quer falar comigo, masele precisa de uma lobotomia se pensa que vai passarna minha casa amanhã à noite. Estou me sentindomais que pronta a abdicar dos garotos pelo resto doano. Especialmente se não tenho mais Six para tomarsorvete comigo depois que vão embora. O sorveteera a única parte boa de ficar com eles.Pelo menos ele cumpre o que disse e estáesperando no meu carro, encostado na porta domotorista, quando chego no estacionamento.— Oi, princesa — diz ele.Não sei se é o tom de voz ou o fato de teracabado de me dar um apelido, mas suas palavrasme fazem estremecer. Vou até lá e me apoio no carroao seu lado.— Nunca mais me chame de princesa.Ele ri e desliza o corpo para minha frente,segurando minha cintura.— Tudo bem. Que tal linda?— Que tal Sky mesmo?— Por que sempre está com raiva?

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Ele estende as mãos para meu rosto, toca minhasbochechas e me beija. Tristemente, eu deixo ele fazerisso. Em boa parte porque acho que merece, apósme aguentar por um mês inteiro. No entanto, não temdireito a tantos favores assim, então afasto meu rostoapenas alguns segundos depois.— O que você quer?Ele põe os braços ao redor da minha cintura eme puxa para perto.— Você. — Ele começa a beijar meu pescoço,então o empurro, e ele se afasta. — O que foi?— A ficha ainda não caiu? Eu disse que não voudormir com você, Grayson. Não estou tentando fazerjoguinhos nem querendo que fique correndo atrás demim o tempo inteiro, como outras garotas doentias eesquisitas fazem. Você quer mais, e eu não, entãoacho que precisamos aceitar o impasse e seguir emfrente.Ele fica me encarando, suspira e me puxa paraperto, me abraçando.— Não preciso de nada mais, Sky. Está bomdesse jeito mesmo. Não vou insistir de novo. É quegosto de ir para sua casa e gostaria de passar láamanhã à noite. — Ele lança para mim aquele sorrisoarranca-calcinha. — Agora pare de ficar com raivade mim e venha aqui. — Ele puxa meu rosto paraperto e me beija novamente.Por mais irritada e furiosa que esteja, não deixode sentir um alívio assim que seus lábios encontramos meus; é a irritação diminuindo por causa doentorpecimento que toma conta de mim. Só por essemotivo, deixo que ele continue me beijando. Ele meaperta contra o carro, passa a mão no meu cabelo edepois beija meu queixo e meu pescoço. Apoio acabeça no carro e ergo o punho atrás dele para ver ahora no meu relógio. Karen vai viajar a trabalho,então preciso ir ao mercado comprar doces paratodo o fim de semana. Não sei por quanto tempo elevai continuar me apalpando, mas sorvete estácomeçando a parecer algo tentador. Reviro os olhose abaixo o braço. Na mesma hora, meu batimentocardíaco triplica e meu estômago se revira e sintotodas as coisas que uma garota deve sentir quandoos lábios de um gato a estão beijando. Mas nãoestou reagindo ao cara bonito cujos lábios estão mebeijando. E sim ao cara bonito que está mefulminando com o olhar do outro lado doestacionamento.Holder está parado ao lado do carro dele, com ocotovelo apoiado na porta, nos observando.

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Imediatamente, empurro Grayson para longe de mime me viro para entrar no carro.— Então está combinado amanhã à noite? —pergunta ele.Entro no carro, ligando o motor, e depois olhopara ele.— Não. A gente já era.Fecho a porta e saio da vaga de ré, sem saber seestou furiosa, envergonhada ou apaixonada. Comoele é capaz de fazer isso? Como é que me faz sentiressas coisas lá do outro lado do estacionamento?Acho que estou precisando de uma intervenção.

Sexta-feira, 31 de agostode 201216h50— Jack vai com você? — Abro a porta do carropara Karen poder jogar a última mala no banco detrás.— É, vai sim. Nós voltamos... eu volto para casano domingo — diz ela, corrigindo-se. Fica aflitaquando diz “nós” se referindo a Jack. Odeio que elasinta isso, pois realmente gosto de Jack e sei que eleama Karen, então não entendo sua preocupação. Elateve alguns namorados nos últimos 12 anos, masassim que começa a ficar sério, ela foge.Karen fecha a porta e se vira para mim.— Sabe que confio em você, mas por favor...— Não engravide — interrompo. — Eu sei, eusei. Você disse isso cada vez que viajou nos últimosdois anos. Não vou engravidar, mãe. Só vou ficardopada e doidona.Ela ri e me abraça.— Boa garota. E bêbada. Não se esqueça deficar bem bêbada.— Não vou esquecer, prometo. E vou alugaruma televisão pelo fim de semana para poder mesentar, tomar sorvete e ver porcarias nos canais acabo. Ela para e me fulmina com o olhar.— Já isso não é engraçado.Eu rio e dou outro abraço nela.— Divirta-se. Espero que venda muitas coisinhasde ervas, sabonetes e tinturas e sei lá o que maisvocê faz.— Amo você. Se precisar de mim, sabe quepode usar o telefone da casa de Six.Reviro os olhos ao ouvir as mesmas instruçõesque recebo toda vez que ela viaja.— Tchau — digo.

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Ela entra no carro e sai pela entrada da casa,deixando-me sem nenhum adulto por perto pelo fimde semana. A maioria dos adolescentes pegaria otelefone bem nesse momento e postaria um convitepara a festa mais imperdível do ano. Mas eu não.Nada disso. Entro em casa e decido assar cookies,pois é a coisa mais rebelde que consigo pensar emfazer.Adoro assar doces, mas não posso dizer que soumuito boa nisso. Normalmente acabo com maisfarinha e chocolate no rosto e no cabelo que nopróprio prato. Hoje não foi uma exceção. Já fiz umafornada de cookies de chocolate, uma de brownies eoutra de uma coisa que não sei exatamente o que é.Estou colocando farinha na mistura para preparar umbolo caseiro de chocolate alemão quando acampainha toca.Tenho certeza de que era para eu saber o quefazer numa situação como essa. Campainhas tocam otempo inteiro, não é? Mas não aqui em casa. Ficoencarando a porta, sem entender o que estouesperando que ela faça. Quando a campainha tocapela segunda vez, deixo o copo de medidas nobalcão, afasto o cabelo dos olhos e vou até a porta.Ao abri-la, nem fico surpresa ao ver Holder. Tudobem, estou surpresa. Mas não muito.— Oi — cumprimento. Não consigo pensar emmais nada para dizer. Mesmo se conseguisse pensarem alguma outra coisa, provavelmente não seriacapaz porque mal estou respirando, porra!Ele está no último degrau da entrada, com asmãos nos bolsos da calça jeans. O cabelo continuaprecisando de um corte, mas, depois que Holderergue a mão e o afasta dos olhos, a ideia de elecortar o cabelo começa a me parecer a pior domundo.— Oi.Ele está sorrindo desajeitadamente, parecenervoso, e tudo é muito atraente. Também está debom humor. Pelo menos por enquanto. Quem sabequando ele vai ficar furioso e querer discutir mais umavez.— Hum — digo, constrangida.Sei que o próximo passo é convidá-lo paraentrar, mas só se eu realmente quisesse que eleentrasse na minha casa, e, para ser sincera, ainda nãome decidi quanto a isso.— Está ocupada? — pergunta ele.Olho para a cozinha e para a bagunçaimpressionante que fiz.

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— Mais ou menos. — Não é mentira. Estoumeio que incrivelmente ocupada.Ele desvia o olhar e balança a cabeça. Emseguida, aponta para seu carro mais atrás.— OK. Acho que... vou embora. — Ele descedo último degrau.— Não — digo, rápido demais e um decibel emexcesso. É quase um não desesperado, e mecontorço de vergonha. Por mais que eu não saiba porque ele está aqui ou por que continua se dando otrabalho de vir atrás de mim, minha curiosidade falamais alto. Dou um passo para o lado e abro mais aporta. — Pode entrar, mas pode ser que precise meajudar.Holder hesita e sobe o degrau novamente. Eleentra, e fecho a porta atrás de nós. Antes que asituação fique mais constrangedora, vou até acozinha, pego o copo de medidas e volto a cozinhar,como se não houvesse um cara gato e temperamentalparado no meio da minha casa.— Vai fazer doces para vender? — Ele dá avolta na bancada e avista a enorme quantidade desobremesas no balcão.— Minha mãe vai passar o fim de semana fora.Ela é contra o consumo de açúcar, então dou umaenlouquecida quando não está aqui.Ele ri e pega um cookie, mas primeiro olha paramim pedindo permissão.— Pode se servir — digo. — Mas vou logoavisando: só porque gosto de assar doces nãosignifica que sejam bons. — Peneiro o resto dafarinha e coloco na tigela.— Então fica com a casa inteira para você epassa a noite de sexta cozinhando? Que adolescentemais típica — diz ele, zombando de mim.— O que posso dizer? — Dou de ombros. —Sou uma rebelde.Ele se vira, abre um armário, vê o que tem dentroe o fecha em seguida. À esquerda, abre outroarmário e pega um copo.— Tem leite? — pergunta ele indo até ageladeira. Paro de mexer e o observo tirar o leite dogelo e se servir como se estivesse em casa. Ele tomaum gole, vira-se, vê que o estou encarando e sorri.— Não devia oferecer cookies sem leite, sabia? Éuma péssima anfitriã. — Ele pega mais um cookie,vai com o leite até a bancada e se senta.— Tento guardar a hospitalidade para aspessoas que foram convidadas — digosarcasticamente, virando-me para a bancada.

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— Essa doeu. — Ele ri.Ligo o mixer entre a velocidade média e alta,conseguindo uma desculpa para não precisar falarcom ele por três minutos. Tento me lembrar da minhaprópria aparência, sem que fique claro que estouprocurando uma superfície refletora. Tenho certezade que tem farinha por todo o meu corpo. Sei quemeu cabelo está preso com um lápis e que estouvestindo a mesma calça de moletom pela quarta noiteseguida. Sem lavar. Tento limpar casualmentequaisquer vestígios visíveis de farinha, mas sei quesou uma causa perdida. Bem, pelo menos éimpossível eu estar pior do que quando estavadeitada no sofá com cascalho grudado na bochecha.Desligo o mixer e aperto o botão para soltar aslâminas. Levo uma até a boca e a lambo, depois levoa outra para onde ele está sentado.— Quer? É chocolate alemão.Ele pega a lâmina da minha mão e sorri.— Quanta hospitalidade.— Cale a boca e lamba, ou vou ficar com issopara mim. — Vou até o armário e pego minhaprópria xícara, mas me sirvo de água. — Quer umpouco d’água ou prefere continuar fingindo queaguenta essa merda vegana?Ele ri, enruga o nariz e empurra o copo pelabancada até mim.— Estava tentando ser educado, mas nãoaguento nem mais um gole, seja lá o que isso for.Sim, água. Por favor.Rio, lavo seu copo e lhe entrego um com d’água.Eu me sento na cadeira na frente dele e ficoobservando-o enquanto mordo um pedaço debrownie. Espero que explique por que está aqui, masisso não acontece. Simplesmente fica sentado naminha frente, me vendo comer. Não pergunto porque ele está aqui porque eu meio que gosto dosilêncio entre nós. As coisas funcionam melhorquando calamos a boca, pois todas as nossasconversas costumam acabar numa discussão.Holder levanta-se e vai até a sala sem darmaiores explicações. Olha ao redor com curiosidade,as fotos nas paredes chamando sua atenção. Ele seaproxima delas e analisa cada uma devagar. Eu meencosto na cadeira e fico observando ele dar uma deintrometido.Ele nunca tem pressa com nada, e cadamovimento parece ser cheio de segurança. É comose todos os seus pensamentos e ações fossemmeticulosamente planejados com dias de

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antecedência. Consigo imaginá-lo no quarto dele,escrevendo as palavras que planeja usar no diaseguinte, pois é tão seletivo com elas.— Sua mãe parece ser bem jovem — diz ele.— Ela é.— Você não se parece com ela. Se parece comseu pai? — Ele se vira para mim.Dou de ombros.— Não sei. Não me lembro da aparência dele.Ele se vira de volta para as fotos e passa o dedonuma delas.— Seu pai faleceu? — Ele fala de maneira tãofranca que tenho quase certeza de que sabe que meupai não está morto, caso contrário não teriaperguntado desse jeito. Tão sem tato.— Não sei. Não o vejo desde que tinha 3 anos.Ele volta para a cozinha e se senta à minha frente.— É só isso? Não vai me contar nenhumahistória?— Ah, tenho uma história, sim. Só não estou afim de contá-la. Tenho certeza de que há umahistória... só não sei qual é. Karen não sabe nadasobre minha vida antes que me colocassem paraadoção, e nunca tive motivos para tentar descobriressas coisas. O que são alguns anos esquecidosquando se teve 13 anos maravilhosos?Ele abre outro sorriso, mas é um sorrisocuidadoso, acompanhado de um olhar confuso.— Seus cookies estavam bons — diz ele,mudando de assunto habilidosamente. — Não deviafalar mal de sua habilidade culinária.Ouço um bip e pulo da cadeira, correndo até ofogão. Eu o abro, mas o bolo não está nem perto deficar pronto. Quando me viro, Holder está segurandomeu celular.— Você recebeu uma mensagem. — Ele ri. —Seu bolo está bem.Jogo a luva de cozinha por cima do balcão evolto para meu lugar. Ele está vendo as mensagensdo meu celular sem nenhum pingo de respeito pelaminha privacidade. Mas não me importo nem umpouco, então deixo ele fazer isso.— Achei que você não podia ter telefone — dizele. — Ou foi só uma desculpa ridícula para não medar seu número?— Eu não posso. Minha melhor amiga me deuisso há alguns dias. Ele não faz nada, só manda erecebe mensagens de texto.Ele vira a tela para mim.— Que tipo de mensagens são essas? — Ele vira

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o telefone e lê uma delas. — “Sky, você é linda. Ébem possível que você seja a criatura maisencantadora de todo o universo e se algumapessoa contestar isso, caio na porrada com ela.”— Ele ergue a sobrancelha e olha para mim, depoispara o telefone. — Ai, meu Deus. São todas assim.Por favor não me diga que você manda essasmensagens para si mesma como uma espécie demotivação diária.Acho graça, estendo o braço por cima dabancada e pego o celular da mão dele.— Pare. Você está acabando com a graça dabrincadeira.Ele inclina a cabeça para trás e ri.— Meu Deus, é sério? Foi você mesma quemandou todas essas mensagens?— Não! — digo na defensiva. — São de Six.Ela é minha melhor amiga e está do outro lado domundo com saudades de mim. Não quer que eu fiquetriste, então me manda mensagens legais todos osdias. Acho meigo.— Ah, não acha mesmo. Você acha irritante eprovavelmente nem lê.Como ele sabe disso?Deixo o telefone na bancada e cruzo os braços.— A intenção é boa — digo, ainda sem admitirque as mensagens estão me irritando para caramba.— Elas vão arruinar você. Essas mensagens vãoinflar tanto seu ego que você vai acabar explodindo.— Ele pega meu celular e tira o dele do bolso. Mexenas telas dos dois e aperta alguns números notelefone dele. — Precisamos corrigir essa situaçãoantes que você comece a ter ilusões de grandeza. —Ele me devolve o meu e digita alguma coisa nopróprio celular, guardando-o no bolso em seguida.Meu telefone toca, indicando uma mensagem nova.Olho para a tela e rio.Seus cookies são péssimos. E você não é tão bonitaassim.

— Melhorou? — diz ele, brincando. — O egodesinflou o bastante?Eu rio, deixo o celular na bancada e me levanto.— Você sabe mesmo dizer o que uma garota querouvir. — Vou até a sala e me viro para ele. — Querconhecer o resto da casa?Holder se levanta e me segue enquanto contofatos entediantes e mostro bugigangas, cômodos efotos, mas é claro que está assimilando tudo comlentidão, sem pressa em momento algum. Ele precisaparar e analisar cada detalhezinho, sem fazer

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comentário algum.Finalmente chegamos no meu quarto, e abro aporta.—Meu quarto — digo, fazendo minha pose deVanna White. — Pode entrar e dar uma olhada, mas,como não tem ninguém de 18 anos ou mais na casa,fique longe da cama. Não posso engravidar esse fimde semana.Ele para enquanto passa pela porta e inclina acabeça na minha direção.— Só nesse fim de semana? Está planejandoengravidar no próximo, é?Entro no meu quarto depois dele.— Que nada. Provavelmente vou esperar maisalgumas semanas.Ele inspeciona o quarto, virando-se devagar atéficar de frente para mim.— Eu tenho 18 anos.Inclino a cabeça para o lado, sem entender porque ele quis ressaltar esse fato aleatório.— Que legal?Ele lança um olhar para a cama e depois paramim.— Você disse que eu precisava ficar longe desua cama porque não tinha 18 anos. Só estouconfirmando que tenho 18 anos.Não gosto da maneira como meus pulmões secomprimiram quando ele olhou para minha cama.— Ah. Bem, na verdade eu quis dizer 19.Ele vira-se e anda devagar até a janela aberta.Depois se abaixa e põe a cabeça para fora,trazendo-a em seguida de volta para dentro doquarto.— Então essa é a famosa janela, hein?Ele não olha para mim, o que provavelmente éalgo bom, pois, se olhares matassem, ele estariamorto. Por que diabos tinha de dizer uma coisadessas? Estava até gostando da sua companhia dessavez. Ele se vira para mim, e vejo que a expressãobrincalhona desapareceu, sendo substituída por outradesafiadora, que já vi vezes demais.Suspiro.— O que você quer, Holder? — Ou ele explicapor que está aqui ou então vai ter de ir embora. Elecruza os braços por cima do peito e estreita os olhospara mim.— Eu disse algo de errado, Sky? Ou algumamentira? Talvez algo infundado? — Peloscomentários provocadores está na cara que ele sabiao que estava insinuando ao mencionar a janela. Não

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estou a fim de participar de seus joguinhos; tenhobolos para assar. E comer.Vou até a porta e a seguro.— Você sabe exatamente o que disse econseguiu a reação que queria. Está contente? Agorapode ir embora.Mas ele não vai. Abaixa os braços, vira-se e vaiaté a mesinha de cabeceira. Pega o livro que Breckinme deu e o analisa como se os últimos trintasegundos nunca tivessem acontecido.— Holder, estou pedindo com o máximo deeducação possível. Por favor, vá embora.Ele põe o livro no lugar com delicadeza e, emseguida, deita-se na minha cama. Literalmente sedeita na minha cama. Holder está na minha malditacama.Reviro os olhos, vou até ele e puxo suas pernaspara fora da cama. Se for preciso removê-lofisicamente de casa, farei isso. Quando seguro seuspunhos e os levanto, ele me puxa num movimentorápido demais para que minha mente compreenda oque está acontecendo. Ele me vira, me fazendo ficardeitada, e prende meus braços no colchão. Foi tudotão inesperado que nem tive tempo de me debater. E,ao erguer o olhar para ele agora, percebo quemetade de mim não quer se debater. Não sei sedevo gritar por ajuda ou arrancar minhas roupas.Ele solta meus braços e leva uma das mãos atémeu rosto. Depois passa o dedo pelo meu nariz e ri.— Farinha — diz ele, limpando. — Estava meincomodando.Ele se senta encostado na cabeceira e põe os pésna cama novamente. Ainda estou deitada no colchão,encarando as estrelas do teto. Pela primeira vez, sintoalguma coisa enquanto as observo, em vez de umnada.N ão posso nem me mexer porque tenho umpouco de medo de que ele seja louco. Estouquerendo dizer literal e clinicamente insano. É a únicaexplicação lógica para sua personalidade. E o fato deque continuo achando-o tão atraente só podesignificar uma coisa: também sou insana.— Não sabia que era gay.Isso mesmo, ele é louco.Eu me viro para ele, mas não digo nada. O quese deve dizer afinal para um maluco que literalmentese recusa a ir embora de sua casa e depois começa afalar besteiras aleatórias?— Bati nele porque ele era um babaca. Nãofazia ideia de que era gay.Ele está apoiando os cotovelos nos joelhos e

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olhando fixo para mim, esperando uma reação minha.Ou uma resposta. Mas não vai obter nada disso poralguns segundos, pois preciso de tempo paraassimilar o que ele disse.Olho para as estrelas outra vez, ganhando tempopara analisar a situação. Se ele não é louco, entãocom certeza está tentando provar alguma coisa. Maso quê? Ele vem até minha casa, sem ser convidado,para defender a própria reputação e insultar a minha?Por que ele perderia tempo com isso? Sou só umapessoa, por que minha opinião importa?A não ser, é claro, que goste de mim. Essepensamento literalmente me faz sorrir, e eu me sintoindecente e errada por querer que um lunático gostede mim. Mas isso já era previsto. Jamais devia terdeixado ele entrar aqui em casa estando sozinha. Eagora ele sabe que vou passar o fim de semanainteiro assim. Se eu tivesse de pesar as decisõesdessa noite, é provável que isso pendesse tanto parao lado das coisas erradas que a balança quebraria.Imagino que isso pode terminar de duas maneirasdistintas. Ou vamos chegar a um acordo mútuo arespeito um do outro, ou ele vai me matar e cortarmeu corpo em pedacinhos, e colocá-los para assarcom os cookies. Seja como for, fico triste por toda asobremesa que não está sendo comida agora.— Bolo! — grito, pulando da cama.Corro até a cozinha bem na hora de sentir ocheiro do meu último desastre. Pego a luva decozinha, tiro o bolo do forno e o deixo no balcão,desapontada. Não está tão queimado assim.Provavelmente consigo salvá-lo se eu o afogar emcalda.Fecho o forno e decido que vou começar umhobby novo. Talvez possa fazer bijuterias. Não deveser muito difícil. Pego mais dois cookies, volto parameu quarto e entrego um deles a Holder. Em seguida,me deito ao seu lado.— Acho que chamar você de babaca que bateem gays foi precipitado de minha parte então, não é?Você não é um homofóbico preconceituoso quepassou o último ano na cadeia, é?Ele sorri, aproxima-se de mim na cama e olhapara as estrelas.— Não. De jeito algum. Passei o último anointeiro morando com meu pai em Austin. Não seinem de onde tiraram essa história de que fui preso.— Por que não se defende dos boatos se elesnão são verdadeiros?Ele vira a cabeça para mim em cima do

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travesseiro.— Por que você não faz isso?Aperto os lábios e balanço a cabeça.— Touché.Nós dois ficamos sentados em silêncio na cama,comendo os cookies. Algumas das coisas que eledisse nos últimos dias estão passando a fazer sentido,e começo a me sentir cada vez mais como as pessoasque desprezo. Ele me disse diretamente queresponderia a qualquer coisa que eu perguntasse, e,mesmo assim, preferi acreditar nos boatos. Não é desurpreender que estivesse tão irritado comigo. Eu oestava tratando da mesma maneira como todo mundome trata.— E seu comentário mais cedo sobre a janela?— digo. — Estava apenas querendo provar essaquestão dos boatos? Não estava tentando sermalvado?— Não sou malvado, Sky.— Você é intenso. Disso eu sei.— Posso ser intenso, mas malvado, não.— Bem, e eu não sou uma puta.— Não sou um babaca que bate em gays.— Então agora tudo ficou claro?Ele ri.— É, acho que sim.Inspiro fundo e depois expiro, me preparandopara fazer algo que não faço com muita frequência.Pedir desculpas. Se não fosse tão teimosa, atéadmitiria que nessa semana exagerei no meujulgamento, de uma maneira completamentevergonhosa, e ele estava com toda a razão do mundode sentir raiva de mim por ter sido tão ignorante. Masem vez disso, meu pedido de desculpas é breve emeigo.—Desculpe-me, Holder — digo baixinho.Ele suspira pesado.— Eu sei, Sky. Eu sei.E assim ficamos sentados em silêncio pelo queparece uma eternidade, mas também não parecetempo suficiente. Está ficando tarde, e estou commedo de que ele diga que precisa ir embora por nãotermos mais nada a dizer, mas não quero que vá.Estar aqui com ele agora me parece certo. Não seipor quê, simplesmente parece.— Preciso perguntar uma coisa — diz ele,finalmente interrompendo o silêncio.Não respondo, porque não parece que ele estáesperando por isso. Está apenas aproveitando um deseus momentos para preparar o que quer que queira

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me perguntar. Ele inspira e rola para o lado, ficandode frente para mim. Então apoia a cabeça nocotovelo, e sinto que está olhando para mim, mascontinuo encarando as estrelas. Holder está pertodemais para que eu olhe para ele agora, e, apropósito, meu coração já está disparado no peito;tenho medo de que, se eu me aproximar mais, possaacabar morrendo. Não me parece possível que aluxúria seja capaz de fazer um coração bater tantoassim. É pior que correr.— Por que deixou Grayson fazer aquilo comvocê no estacionamento?Quero ir para debaixo das cobertas e meesconder. Tinha esperança de que não tocasse nesseassunto.— Já disse. Ele não é meu namorado e não foiele que me deixou com o olho roxo.— Não estou perguntando por causa de nadadisso. Estou perguntando porque vi como vocêreagiu. Estava irritada com ele. Até parecia um poucoentediada. Só queria saber por que deixa ele fazeressas coisas se está na cara que não quer que eleencoste em você.Suas palavras me deixam confusa e, de repente,me sinto claustrofóbica e suada. Não fico à vontadefalando sobre isso. Ele me interpretar tão bem medeixa inquieta, mas não sou capaz de captar nada aseu respeito.— Minha falta de interesse era tão óbvia assim?— pergunto.— Sim. E a 50 metros de distância. Só mesurpreende ele não ter se ligado.Eu me viro para ele sem pensar e apoio a cabeçano braço.— É mesmo, não é? Eu o rejeitei tantas vezes,mas ele simplesmente não para. É muito ridículo. Enada atraente.— Então por que deixa ele fazer isso? —pergunta ele, me olhando atento. Estamos numaposição comprometedora agora, um de frente para ooutro na mesma cama. A maneira como está meencarando e direcionando o olhar para meus lábiosme faz deitar de costas. Não sei se ele está sentindoisso também, mas faz o mesmo.— É complicado.— Não precisa explicar — diz ele. — Só estavacurioso. Mas não é da minha conta.Coloco as mãos atrás da cabeça e olho para asestrelas que contei incontáveis vezes. Estou na camacom Holder há mais tempo que já estive com

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qualquer outro garoto, e percebo que em momentoalgum tive vontade de contar uma estrela sequer.— Você já teve algum namoro sério?— Já — responde ele. — Mas espero que nãoqueira perguntar mais sobre isso, pois não toco nesseassunto.Balanço a cabeça.— Não é por isso que estou perguntando. —Paro por alguns segundos, querendo usar as palavrascertas. — Quando você a beijava, o que sentia?Ele faz uma breve pausa, provavelmente achandoque é alguma pegadinha.— Quer uma resposta sincera, não é? —pergunta ele.— É tudo o que sempre vou querer.Vejo-o sorrir pelo canto dos olhos.— Tudo bem. Acho que me sentia... com tesão.Tento parecer indiferente por ter ouvido aquelasduas últimas palavras saírem de sua boca, mas...caramba. Cruzo as pernas, esperando que issominimize as ondas de calor que atravessam meucorpo.— Então você sente frio na barriga, as palmasdas mãos suadas, o coração acelerado e todas essascoisas?Ele dá de ombros.— Sinto. Não com todas as garotas com quemjá fiquei, mas com a maioria.Inclino a cabeça na sua direção, tentando nãoanalisar a maneira como pronunciou a frase. Ele viraa cabeça para mim e sorri.— Não foram tantas assim. — Ele sorri, e suacovinha é ainda mais charmosa de perto. Por uminstante, me perco nela. — Onde quer chegar comisso?Encontro seu olhar por um breve instante e viro orosto para o teto mais uma vez.— Estou querendo dizer que não sinto nadadisso. Quando fico com garotos, não sintoabsolutamente nada. Apenas apatia. Então, às vezes,deixo Grayson fazer essas coisas comigo não porquecurto, mas porque gosto de não sentir absolutamentenada. — Ele não responde, e seu silêncio me deixaconstrangida. Não posso deixar de pensar que deveestar me achando louca. — Sei que não faz sentido,e, não, não sou lésbica. É só que nunca me sentiatraída por ninguém antes de você, e não sei explicarisso.Assim que digo isso, ele vira a cabeça na minhadireção no mesmo segundo em que aperto os olhos e

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tapo o rosto com o braço. Não acredito que acabeide admitir, em voz alta, que me sinto atraída por ele.Eu toparia morrer bem agora e mesmo assim já seriatarde demais.Sinto a cama se mover, e ele segura meu pulso,tirando meu braço de cima dos olhos. Relutante, abroos olhos e vejo que ele está apoiado na mão,sorrindo para mim.— Você se sente atraída por mim?— Ai, meu Deus — digo, gemendo. — Essa é aúltima coisa que seu ego precisa ouvir.— É verdade. — Ele ri. — É melhor me insultarlogo, antes que meu ego fique tão grande quanto oseu.— Está precisando cortar o cabelo — digodepressa. — Urgentemente. Ele fica caindo nosolhos, e você os aperta e também fica afastando afranja deles, como se fosse o Justin Bieber. Issodistrai muito a pessoa.Ele passa a mão no cabelo e franze a testa, emseguida cai de volta na cama.— Caramba. Isso me magoou mesmo. E, pelovisto, você está com isso na cabeça há um tempo.— Só desde segunda — admito.— Você me conheceu na segunda. Entãotecnicamente tem pensado no quanto odeia meucabelo desde que nos conhecemos?— Não o tempo inteiro.Ele fica quieto por um instante e depois abre umsorriso.— Não acredito que você me acha atraente.— Cale a boca.— Você provavelmente fingiu que desmaiounaquele dia só para ser carregada nos meus lindosbraços másculos e suados.— Cale a boca.— Aposto que fica fantasiando comigo durante anoite, bem aqui nesta cama.— Cale a boca, Holder.— Você já deve até...Estendo o braço e tapo sua boca com a mão.— Você é bem mais atraente quando não estáfalando.Quando ele finalmente cala a boca, tiro a mão e acoloco atrás da cabeça mais uma vez. Ficamos denovo um tempo sem falar. Ele deve estar se gabandoem silêncio do fato de eu ter admitido que me sintoatraída por ele enquanto fico me remoendo emsilêncio por tê-lo deixado saber disso.— Estou entediado — diz ele.

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— Então vá para casa.— Não quero. O que você faz quando ficaentediada? Aqui não tem internet nem televisão.Passa o dia inteiro pensando no quanto sou gostoso?Reviro os olhos.— Eu leio — digo. — Muito. Às vezes cozinho.Outras vezes corro.— Ler, cozinhar e correr. E fantasiar comigo.Que vida empolgante.— Gosto dela.— Eu também meio que gosto dela — diz ele,rolando para o lado para pegar o livro na mesinha decabeceira. — Tome, leia isso.Pego o livro de suas mãos e abro onde estámarcado, na página dois. Até onde li.— Quer que eu leia em voz alta? Está tãoentediado assim?— Entediado para caramba.— É um romance — aviso.— Já disse. Estou entediado para caramba. Leia.Levanto o travesseiro, apoiando-o na cabeceirapara ficar mais confortável, e começo a ler.Pela manhã, se alguém tivesse me dito que euleria um romance para Dean Holder à noite, eu ochamaria de louco. Mas, pensando bem, quem soueu para chamar alguém de louco.Quando abro os olhos, imediatamente deslizo a mãoaté o outro lado da cama, mas está vazio. Eu mesento e olho ao redor. A luz está apagada, e eu,coberta. O livro repousa, fechado, sobre a cabeceira,então o pego. O marcador está quase em trêsquartos do livro.Li até pegar no sono? Ah, não, peguei no sono.Tiro as cobertas de cima de mim e vou até a cozinha.Acendo a luz e olho ao redor, chocada. A cozinhainteira parece impecável, e todos os cookies ebrownies estão embrulhados em papel filme. Localizomeu telefone no balcão e vejo uma nova mensagemao pegá-lo.Você pegou no sono bem na hora em que ela estavaquase descobrindo o segredo da mãe. Como se atrevea fazer isso? Volto amanhã à noite para você terminarde ler para mim. E, a propósito, seu hálito é péssimo,e você ronca alto demais.

Acho graça. Também estou sorrindo como umaidiota, mas por sorte ninguém está por perto paratestemunhar a cena. Olho para o relógio no fogão evejo que são duas e pouco da manhã, então voltopara o quarto e me deito, esperando que elerealmente apareça à noite. Não sei como esse casoperdido conseguiu entrar na minha vida de forma tão

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astuta nessa semana, mas tenho certeza de que nãoquero que ele saia dela.

Sábado, 1º de setembrode 201217h05Aprendi uma lição importantíssima sobre a luxúria:causa o dobro do trabalho. Tomei dois banhos hojeem vez de um. Troquei de roupa quatro vezes em vezdas duas de sempre. Limpei a casa uma vez (o que jáé uma a mais do que costumo fazer) e chequei a horano relógio umas mil vezes. Devo ter conferido setinha alguma mensagem nova no meu celular a mesmaquantidade de vezes.Infelizmente, na mensagem da véspera ele nãodisse a que horas chegaria, então às 17h estousentada esperando. Não tenho muita coisa parafazer, pois já assei doces suficientes para o anointeiro e corri nada menos que 6,5 quilômetros.Pensei em preparar um jantar para nós, mas não façoideia da hora em que ele vai chegar, então não seiquando a comida teria de ficar pronta. Estou sentadano sofá, tamborilando com as unhas no assento,quando recebo uma mensagem dele.Que horas posso ir praí? Não que esteja ansioso oualgo assim. Você é muito, muito chata.

Ele me mandou uma mensagem. Por que nãopensei nisso? Devia ter mandado uma mensagempara ele algumas horas antes, perguntando a quehoras chegaria. Teria me poupado toda essainquietação desnecessária e ridícula.Chegue às 19 horas. E traga alguma coisa para comer.Não vou cozinhar para você.

Deixo o telefone no sofá e fico olhando para ele.Faltam uma hora e quarenta e cinco minutos. Eagora? Olho ao redor da sala de estar vazia, e, pelaprimeira vez na vida, o tédio começa a me afetar deforma negativa. Até semana passada estava bemcontente com minha vida medíocre. Será que ter sidoexposta às tentações da tecnologia me deixouquerendo mais? Ou talvez ter sido exposta àstentações de Holder? Provavelmente os dois.Estendo as pernas em cima da mesa de centro naminha frente. Estou de calça jeans e camiseta apósfinalmente decidir dar uma folga para o moletom.Também estou com o cabelo solto, mas só porqueHolder sempre me viu de rabo de cavalo. Não queesteja tentando impressioná-lo.É óbvio que estou tentando impressioná-lo.Pego uma revista e a folheio, mas minha perna

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está tremendo e estou tão inquieta que não consigome concentrar. Leio a mesma página três vezesseguidas, então jogo a revista de volta na mesa eencosto a cabeça no sofá. Fico encarando o teto. Edepois a parede. Em seguida os dedos dos pés, efico me perguntando se devo pintá-los outra vez.Estou enlouquecendo.Por fim, acabo soltando um gemido, pego meucelular e mando outra mensagem para ele.Agora. Venha agora. Estou surtando de tanto tédio e,se você não vier agora mesmo, vou terminar de ler olivro sozinha antes de você chegar.

Fico segurando o telefone na mão e vejo a telapular para cima e para baixo apoiada em meu joelho.Ele me responde na mesma hora.Lol. Estou comprando comida para você, suamandona. Chego em vinte minutos.

Lol? O que diabos significa isso? Lots of love(“muito amor”)? Ai, meu Deus, espero que não.Assim vou expulsá-lo mais rápido que Matty. Mas,sério, o que isso significa?Paro de pensar no assunto e me concentro nasúltimas palavras. Vinte minutos. Ai, merda, derepente isso me parece rápido demais. Corro até obanheiro e checo o cabelo, as roupas, o hálito. Douuma conferida em toda a casa, fazendo uma limpezapela segunda vez. Quando a campainha finalmentetoca, dessa vez sei o que fazer. Abrir a porta.Ele está com os dois braços cheios de sacolas,parecendo bem domesticado. Olho para as comprasde maneira suspeita. Ele ergue as sacolas e dá deombros.— Um de nós precisa cuidar da hospitalidade.— Ele passa por mim, vai até a cozinha e deixa assacolas no balcão. — Espero que goste de espaguetecom almôndegas, pois é isso o que vai comer. — Elecomeça a tirar as compras das sacolas e utensílios decozinha dos armários.Fecho a porta da frente e vou até a bancada.— Vai cozinhar para mim?— Na verdade, vou cozinhar para mim, maspode comer um pouco se quiser. — Ele me olha porcima do ombro e sorri.— Você é sempre tão sarcástico? — pergunto.Ele dá de ombros.— Você é?— Você sempre responde com outrasperguntas?— Você faz isso?Pego uma toalha de mão na bancada e aarremesso nele. Holder desvia e vai até a geladeira.

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— Quer beber alguma coisa? — pergunta ele.Coloco os cotovelos na bancada e apoio oqueixo nas mãos, observando-o.— Está me oferecendo algo para beber na minhaprópria casa?Ele dá uma olhada nas prateleiras da geladeira.— Quer leite que tem gosto de bunda ourefrigerante?— E temos refrigerante? — Tenho quase certezade que bebi todos que comprei ontem.Ele se afasta da geladeira e arqueia asobrancelha.— Será que não somos capazes de dizer algumacoisa que não seja uma pergunta?Eu rio.— Não sei, somos?— Por quanto tempo acha que a gente conseguefazer isso? — Ele encontra um refrigerante e pegadois copos. — Quer gelo?— Você vai querer gelo? — Não vou parar defazer perguntas, até que ele pare. Sou extremamentecompetitiva.Ele se aproxima de mim e põe os copos nobalcão.— Você acha que eu devia querer gelo? —pergunta ele, com um sorriso desafiador.— Você gosta de gelo? — desafio-o de volta.Ele faz que sim com a cabeça, impressionado poreu o estar acompanhando.— Seu gelo é bom?— Bem, você prefere gelo em cubo ou geloesmagado?Ele estreita os olhos para mim, percebendo queacabei de encurralá-lo. Não vai conseguir responderessa com uma pergunta. Ele abre a tampa e começaa me servir refrigerante.— Você não vai ganhar gelo.— Há! — exclamo. — Ganhei.Ele ri e volta para o fogão.— Deixei você ganhar porque fiquei com pena.Uma pessoa que ronca tanto quanto você merece umdesconto de vez em quando.Abro um sorriso sarcástico para ele.— Sabe, os insultos só são engraçados quandocifrados. — Ergo o copo e tomo um gole. A bebidaprecisa mesmo de gelo. Vou até o freezer, pegoalguns cubos e os coloco no meu copo.Quando me viro, ele está bem na minha frente,me encarando. A expressão em seus olhos tem umaleve malícia, mas também tem seriedade suficiente

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para fazer meu coração palpitar. Ele dá um passo àfrente, se aproximando até me encurralar contra ageladeira. Casualmente, ele ergue o braço e põe amão na porta, ao lado da minha cabeça.Não sei como não estou afundando no chãoagora mesmo. Parece que meus joelhos estão prestesa ceder.— Sabe que estou brincando, não é? — diz elebaixinho. Seus olhos estão observando meu rosto, eele está sorrindo o mínimo necessário para que ascovinhas apareçam.Faço que sim com a cabeça e espero mesmo queele se afaste de mim, pois estou prestes a ter umataque de asma e isso porque nem tenho asma.— Ótimo — diz ele, aproximando-se mais algunscentímetros. — Porque você não ronca. Naverdade, fica bem bonitinha dormindo.Holder não devia mesmo dizer coisas desse tipo.Especialmente quando está assim tão perto de mim.Ele dobra o braço e, de repente, fica mais próximoainda. Inclina-se para perto do meu ouvido, e inspirocom força.— Sky — sussurra ele sedutoramente no meuouvido. — Eu preciso de você... longe da porta dageladeira. Preciso abri-la. — Ele se afasta devagar econtinua olhando nos meus olhos, esperando minhareação. Um sorriso aparece nos cantos da sua boca,e ele tenta contê-lo, mas acaba caindo na gargalhada.Empurro seu peito e passo por debaixo de seubraço.— Você é um grande babaca!Ele abre a geladeira, ainda rindo.— Desculpe-me, mas caramba. Sua atração pormim é tanta que fica difícil não provocar você.Sei que ele está brincando, mas fico morrendo devergonha. Eu me sento de novo à bancada e apoio acabeça nas mãos. Estou começando a odiar a garotaem que estou me transformando por causa dele.Claro que seria muito mais fácil ficar perto de Holderse eu não tivesse confessado, sem querer, que mesinto atraída por ele. E também seria muito mais fácilse ele não fosse tão engraçado. E meigo, quandoquer ser. Além de gostoso. Acho que é isso quetorna a luxúria algo tão agridoce. O sentimento élindo, mas o esforço necessário para negá-lo égrande demais.— Quer saber de uma coisa? — pergunta ele.Ergo o olhar, e ele está encarando a panela à suafrente, mexendo.— Provavelmente não.Ele olha para mim por alguns segundos e depois

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baixa o olhar para a panela.— Talvez faça você se sentir melhor.— Duvido.Ele lança um outro olhar para mim e o sorrisobrincalhão desaparece de seus lábios. Ele estende amão para um armário de onde pega uma panela, emseguida vai até a pia e a enche de água. Ele voltapara o fogão e volta a mexer.— Talvez eu também me sinta um pouco atraídopor você — revela ele.Inspiro de forma imperceptível e exalo lenta econtroladamente, tentando não parecer tão surpresacom o comentário.— Só um pouco? — pergunto, fazendo o que seifazer melhor: encher momentos constrangedores comsarcasmo.Ele sorri, mas mantém os olhos fixos na panela àsua frente. O cômodo fica em silêncio por váriosminutos. Ele está focado na panela, e eu, nele.Observo-o se movimentar pela cozinha com muitanaturalidade e fico impressionada ao ver o quanto eleestá à vontade. Mesmo na minha casa, estou maisnervosa do que Holder. Não consigo parar de memexer, inquieta, e queria que ele dissesse algumacoisa. Não parece estar incomodado com o silêncio,mas é algo que está se avultando no ar ao meu redore preciso me livrar disso.— O que significa lol?Ele ri.— Sério?— É sério. Você digitou isso na mensagem maiscedo.—Significa laugh out loud: “Rir em voz alta.”— Usamos quando achamos alguma coisaengraçada.Não consigo negar o alívio por não ser lots oflove.—Hum — digo. — Que idiotice.— Pois é, é bem idiota. Mas é apenas costume,e as abreviações fazem a pessoa digitar bem maisrápido depois que se pega o jeito. Tipo PQP, ABÇSe BJS...— Ai, meu Deus, pare com isso — digo,interrompendo-o antes que cite mais siglas. — Vocêfalando de abreviações não é nada atraente.Ele se vira para mim, me dá uma piscadela e vaiaté o forno.— Então nunca mais vou fazer isso.E então acontece de novo... o silêncio. Navéspera, o silêncio entre nós dois era aceitável, mas,

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por alguma razão, agora isso é incrivelmenteconstrangedor. Pelo menos para mim. Estoucomeçando a achar que é só nervosismo em relaçãoao que vai acontecer no resto da noite. É claro quepela química entre nós, vamos acabar nos beijandoem algum momento. Mas é muito difícil meconcentrar no aqui e agora, e engatar uma conversaquando a única coisa na minha cabeça é esse beijo.Não suporto não saber quando é que ele vai fazerisso. Será que vai esperar até depois do jantar,quando meu hálito estiver fedendo a alho e cebola?Será que vai esperar até a hora de ir embora? Ou vaime beijar quando eu menos estiver esperando? Estouquase com vontade de me livrar logo disso. Ir diretoao ponto para que o inevitável seja deixado de lado ea gente possa seguir em frente com a noite.— Você está bem? — pergunta ele. Volto aolhar para ele, que está do outro lado da bancada, naminha frente. — Onde você estava? Ficou distraídapor um tempinho.Balanço a cabeça e volto para a conversa.— Estou bem.Ele pega a faca e começa a fatiar um tomate. Atéa habilidade para fatiar tomates é algo natural. Seráque tem algo que esse garoto não faça bem? A facaainda está em cima da tábua, e olho para ele. Está meencarando, sério.— Onde você estava, Sky? — Ele fica meobservando por alguns segundos, esperando minharesposta. Como não respondo, volta a olhar para atábua de corte.— Promete que não vai rir? — pergunto.Ele estreita os olhos e fica pensando na minhapergunta para, em seguida, balançar a cabeça.— Já disse que sempre serei sincero, então, não.Não posso prometer que não vou rir porque você émeio engraçada e assim vai acabar pegando mal paramim.— Você é sempre tão difícil?Ele abre um sorriso, mas não responde, econtinua me olhando como se estivesse medesafiando a dizer o que está mesmo em minhacabeça. Infelizmente, não sou de fugir de desafios.— OK, tudo bem. — Endireito a postura nacadeira e respiro fundo, libertando todos ospensamentos de uma vez. — Não sou nada boanisso de encontro, não sei nem se isso é um encontro,mas pelo menos sei que é mais que apenas doisamigos passando algum tempo juntos, e saber dissome faz pensar em mais tarde, na hora de você ir para

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casa, e se está planejando me beijar ou não, e sou otipo de pessoa que odeia surpresas então nãoconsigo deixar de ficar constrangida com isso porquequero que me beije e, talvez, esteja sendopresunçosa, mas acho que você também quer mebeijar, então estava pensando o quanto seria maisfácil se nós simplesmente nos beijássemos logo paravocê poder continuar cozinhando e eu poder pararde mapear mentalmente como será o resto da noite.— Inspiro uma quantidade incrível de ar, como senão tivesse ar algum em meus pulmões.Ele parou de fatiar no meio da minha fala, não seimuito bem em que momento. Está me olhando umpouco boquiaberto. Respiro fundo e exalo devagar,pensando que talvez eu tenha acabado de fazer ogaroto querer sair correndo pela porta. E,tristemente, não o culparia se fizesse isso.Holder pousa a faca com delicadeza em cima datábua de corte e coloca as palmas no balcão nafrente dele, sem desviar o olhar do meu. Apoio asmãos no colo e espero uma reação. É tudo o queposso fazer.— Essa — diz ele enfaticamente — foi a frasemais longa que já ouvi na vida.Reviro os olhos e me encosto na cadeira,cruzando os braços no peito. Praticamente imploreipara que me beijasse, e ele critica minha gramática?— Relaxe — diz ele sorrindo.Ele desliza os tomates da tábua de corte paradentro da panela, levando-a em seguida para ofogão. Ajusta a temperatura de uma das bocas e põea massa na água fervendo. Depois que tudo estápronto, seca as mãos na toalha e dá a volta nabancada para se aproximar de mim.— Levante-se — instrui ele.Olho para ele com cautela, mas obedeço.Lentamente. Quando já estou de pé, de frente paraele, Holder põe as mãos nos meus ombros e dá umaolhada ao redor.— Hum — diz ele, pensando em voz alta. Olhapara a cozinha, desliza a mão pelos meus ombros esegura meus punhos. — Eu meio que gostei de ter ageladeira como fundo. — Ele me leva até a cozinha eme posiciona de costas para a geladeira como se eufosse uma marionete. Apoia as duas mãos na porta,nas laterais da minha cabeça, e olha para mim.Não é a maneira mais romântica que o imagineime beijando, mas acho que dá para o gasto. Sóquero resolver isso logo. Especialmente agora queestá fazendo a maior cena. Ele começa a se

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aproximar, então respiro fundo e fecho os olhos.Fico esperando.E esperando.Mas nada acontece.Abro os olhos, e ele está tão perto que mecontorço, o que só o faz rir. No entanto, não seafasta, e seu hálito brinca com meus lábios como sefossem dedos. Ele cheira à menta e refrigerante;nunca pensei que os dois combinados fossem ter umbom resultado, mas têm sim.— Sky? — diz ele baixinho. — Não estouquerendo torturá-la nem nada do tipo, mas já medecidi antes de vir para cá. Não vou beijá-la hoje.As palavras dele fazem meu estômago afundardevido ao peso do desapontamento. Minhaautoconfiança acabou de escapar pela janela, e estoumesmo precisando de uma mensagem de Sixelevando meu ego bem agora.— Por que não?Ele abaixa uma das mãos devagar e a leva atémeu rosto, depois começa a passar os dedos pelaminha bochecha. Tento não estremecer com seutoque, mas é necessário usar cada partícula de minhaforça de vontade para não parecer totalmenteatordoada. Seus olhos acompanham a mão quedesce sem pressa pelo meu queixo e meu pescoço,parando no meu ombro. Ele conduz o olhar de voltaaos meus olhos, e há neles uma quantidade inegávelde luxúria. Ver essa expressão em seus olhosameniza um pouquinho meu desapontamento.— Quero beijar você — diz ele. — Acredite emmim, quero mesmo. — Ele abaixa os olhos até meuslábios e leva a mão de volta a minha bochecha,cobrindo-a. Dessa vez eu me inclino de propósitopara perto de sua palma. Praticamente deixei ocontrole nas suas mãos desde o instante em que eleentrou pela porta. Estou totalmente à sua mercê.— Mas, se você quer, então por que não vai mebeijar? — Estou apavorada achando que ele vaimandar uma desculpa para cima de mim, algo quetenha a palavra namorada.Ele envolve meu rosto com ambas as mãos e oinclina para perto do seu. Acaricia minhas maçãs dorosto com os polegares, e consigo sentir seu peitodescendo e subindo encostado ao meu.— Porque — sussurra ele — tenho medo de quevocê não vá sentir.Inspiro rapidamente e prendo a respiração. Eume lembro da conversa que tivemos ontem na minhacama e percebo que nunca devia ter contado a ele

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nada daquilo. Jamais devia ter falado que só sintoapatia quando beijo as pessoas, pois ele é a exceçãoabsoluta a essa regra. Levo minha mão até a dele emminha bochecha, cobrindo-a.Eu vou sentir, Holder. Já sinto. Quero dizeressas palavras em voz alta, mas não consigo. Em vezdisso, só balanço a cabeça.Ele fecha os olhos, inspira e depois me afasta dageladeira, puxando-me para seu peito. Cerca minhascostas com um braço e apoia a outra mão em minhacabeça. Meus braços ainda estão caídosdesajeitados nas laterais do corpo, então, comrelutância, os levanto e os coloco ao redor de suacintura. Ao fazer isso, ofego em silêncio com a pazque me consome ao estar envolta por seus braços.Nos aproximamos simultaneamente, e ele beija otopo de minha cabeça. Não é o beijo que eu estavaesperando, mas com certeza adorei do mesmo jeito.Estamos na mesma posição quando o timer doforno toca. Ele não me solta de imediato, o que mefaz sorrir. Quando começa a soltar os braços, olhopara o chão, sem conseguir encará-lo. De algumjeito, minha tentativa de corrigir o constrangimento dobeijo só deixou as coisas ainda mais constrangedoraspara mim.Como se estivesse sentindo minha vergonha, elesegura minhas mãos e entrelaça nossos dedos.— Olhe para mim. — Ergo os olhos, tentandodisfarçar o desapontamento de ter percebido quenossa atração mútua está em níveis diferentes. —Sky, não vou beijá-la hoje porque, acredite em mim,jamais quis tanto beijar uma garota. Então pare deachar que não me sinto atraído porque você não fazideia do quanto estou. Pode segurar minha mão,pode passar a mão pelo meu cabelo, pode ficar emcima de mim enquanto dou espaguete em sua boca,mas não vai ganhar um beijo hoje à noite. Eprovavelmente nem amanhã. Preciso disso. Precisoter certeza de que está sentindo o mesmo que eu noinstante em que meus lábios encostarem nos seus.Porque quero que seu primeiro beijo seja o melhorprimeiro beijo na história dos primeiros beijos. — Eleleva minha mão até a boca e a beija. — Agora parede ficar emburrada e me ajude com as almôndegas.Sorrio, porque com certeza essa foi a melhordesculpa para ter sido rejeitada. Ele pode me rejeitartodos os dias pelo resto da minha vida, contanto queuse essa desculpa.Ele balança nossas mãos entre nós, olhando paramim.

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— Tudo bem? — diz ele. — Isso é suficientepara você aguentar mais alguns encontros?Faço que sim com a cabeça.— É. Mas você está errado sobre uma coisa.— Que coisa?— Você disse que quer que meu primeiro beijoseja o melhor primeiro beijo de todos, mas esse nãovai ser meu primeiro beijo. Sabe disso.Ele estreita os olhos, afasta as mãos das minhas esegura meu rosto mais uma vez. Me empurra para ageladeira e aproxima perigosamente os lábios dosmeus. O sorriso desapareceu de seus olhos e ésubstituído por uma expressão bem séria. Umaexpressão tão intensa que me faz prender arespiração.Ele se aproxima de uma maneirainsuportavelmente lenta até seus lábios quase tocaremos meus, e a expectativa de senti-los já basta parame deixar paralisada. Não fecha os olhos, entãotambém não faço isso. Holder me mantém nessaposição por um instante, deixando nossas respiraçõesse misturarem. Nunca me senti tão impotente, semconseguir me controlar, e, se ele não fizer algo nospróximos três segundos, é bem provável que mejogue em cima dele.Ele olha para meus lábios, o que me leva aprender o lábio inferior com os dentes. Se não fizesseisso, acabaria mordendo o garoto.— Vou lhe avisar uma coisa — diz ele baixinho.— Assim que meus lábios encostarem nos seus, vaiser, sim, seu primeiro beijo. Porque, se nunca sentiunada enquanto alguém a beijava, então ninguémjamais a beijou de verdade. Não da maneira comoeu planejo beijá-la.Então solta as mãos e continua olhando para mimenquanto anda de costas até o fogão. Vira-se paraconferir a massa, como se não tivesse acabado deme arruinar para todos os outros garotos pelo restoda minha vida.Não consigo sentir minhas pernas, então faço aúnica coisa que posso. Deslizo, me arrastando nageladeira até a bunda encostar no chão, e inspiro.

Sábado, 1º de setembrode 201219h15— Seu espaguete é péssimo. — Dou mais umagarfada e fecho os olhos, saboreando o quepossivelmente é a melhor massa que já comi.

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— Você está adorando e sabe muito bem disso— diz ele. Ele se levanta da mesa, pega doisguardanapos e me entrega um ao voltar. — Agoralimpe o queixo. Tem molho do espaguete péssimogrudado em toda parte.Depois do incidente na geladeira, a noitepraticamente voltou ao normal. Ele me entregou umcopo d’água, me ajudou a levantar da mesa, me deuum tapa na bunda e me obrigou a ajudá-lo. Era tudoo que eu precisava para deixar o constrangimento delado. Um belo tapa na bunda.— Já brincou alguma vez de Questionário doJantar? — pergunto para ele.Ele balança a cabeça devagar.— Será que quero brincar disso?Faço que sim com a cabeça.— É uma boa maneira de se conhecer. Depoisdo nosso próximo encontro, vamos passar a maiorparte do tempo nos agarrando, então é melhor noslivrarmos logo de todas as perguntas.Ele ri.— Tudo bem. Como se brinca?— Faço alguma pergunta bem pessoal econstrangedora, e você só pode beber ou comer algodepois que responder com sinceridade. E vice-versa.— Parece fácil — diz ele. — E se a pessoa nãoresponder?— Ela morre de fome.Ele tamborila os dedos na mesa e pousa o garfo.— Topo.Eu provavelmente já devia estar com asperguntas preparadas, mas, considerando queinventei esse jogo há trinta segundos, teria sido meiodifícil. Tomo um gole do que sobrou do meurefrigerante com gelo derretido, e penso. Fico umpouco nervosa, com medo de ser curiosa demais,pois isso sempre acaba mal.— Pronto, tenho uma pergunta. — Deixo o copona mesa e me encosto na cadeira. — Por que meseguiu até o carro no mercado?— Como já disse, achei que era outra pessoa.— Eu sei, mas quem?Constrangido, ele muda de posição e limpa agarganta. Sem pensar, estende o braço para pegar ocopo, mas eu o interrompo.— Nada de beber. Primeiro responda.Ele suspira, mas depois cede.— Não tinha certeza de quem você melembrava, simplesmente parecia com alguém. Sódepois percebi que era com minha irmã.

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Enrugo o nariz.— Eu o lembro de sua irmã? — Estremeço. —Isso é um pouco perturbador, Holder.Ele ri, depois faz uma careta.— Não, não desse jeito. Não desse jeitomesmo. Você é bem diferente dela. Mas tinha algoem você que me fez pensar nela. E não sei por que tesegui. Foi tudo tão surreal. Toda aquela situação foium pouco bizarra, e, depois, encontrá-la na frente daminha casa mais tarde... — Ele interrompe a frase eolha para a mão enquanto passa os dedos na bordado prato. — Foi como se fosse predestinado.Respiro fundo e assimilo sua resposta, tomandoum cuidado extra com a última frase. Ele ergue oolhar para mim com uma expressão nervosa, epercebo que está pensando que a resposta pode terme assustado. Sorrio para tranquilizá-lo e apontopara seu copo.— Pode beber agora — digo. — Sua vez de mefazer uma pergunta.— Ah, essa é fácil — diz ele. — Quero saberquem foi que andei irritando. Recebi uma mensagemmisteriosa hoje. Tudo que dizia era: “Se está saindocom minha menina, compre seus próprios minutospré-pagos e pare de desperdiçar os meus, babaca.”Eu rio.— Foi Six. A fonte das minhas doses diárias deelogios.Ele balança a cabeça.— Achei mesmo que fosse dizer isso. — Ele seinclina para a frente e estreita os olhos para mim. —Porque sou muito competitivo e, se tivesse sidoenviada por um garoto, minha resposta não teria sidotão boazinha.— Você respondeu? O que disse?— É essa sua pergunta? Porque, se não for, voudar outra mordida.— Sossegue o facho e responda a pergunta —digo.—Sim, respondi a mensagem. Eu disse: “Comocompro mais minutos”?Meu coração amoleceu completamente, e estoutentando não sorrir. É mesmo muito ridículo e triste.Balanço a cabeça.— Estava brincando, essa não foi minhapergunta. Ainda é minha vez.Ele apoia o garfo de novo e revira os olhos.— Minha comida está esfriando.Ponho os cotovelos na mesa e cruzo as mãosdebaixo do queixo.

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— Quero saber sobre sua irmã. E por que vocêse referiu a ela no passado.Ele inclina a cabeça para trás e ergue o olhar,massageando o próprio rosto.— Argh. Você pergunta mesmo sobre as coisasmais sérias, não é?— Essa é a brincadeira. Não fui eu que inventeias regras.Ele suspira outra vez e sorri para mim, mas há umpouco de tristeza em seu sorriso, o queimediatamente me faz querer voltar atrás na pergunta.— Se lembra de quando contei que o anopassado foi foda para minha família?Faço que sim com a cabeça.Ele limpa a garganta e começa a passar os dedosna borda do prato novamente.— Ela morreu 13 meses atrás. Ela se matou,apesar de minha mãe preferir usar o termo “overdoseproposital”.Ele não desvia o olhar enquanto fala, então façoo mesmo para mostrar respeito, apesar de estarsendo bem difícil encará-lo agora. Não faço ideia doque dizer, mas é culpa minha por ter tocado noassunto.— Qual era o nome dela?— Lesslie. Eu a chamava de Less.Ouvir o apelido faz uma tristeza surgir dentro demim e, de repente, perco o apetite.— Ela era mais velha que você?Ele inclina-se para a frente e ergue o garfo,girando-o em seguida na tigela. Ele leva o talher cheiode espaguete até a boca.— Éramos gêmeos — diz ele inexpressivamente,antes de pôr a comida na boca.Meu Deus. Estendo o braço para pegar meucopo, mas ele o tira da minha mão e balança acabeça.— Minha vez — diz ele de boca cheia. Eletermina de mastigar, bebe um gole e limpa a bocacom o guardanapo. — Quero saber sobre seu pai.Dessa vez, sou eu que fico resmungando. Cruzoos braços em cima da mesa e aceito meu castigo.— Como já disse, não o vejo desde que tinha 3anos. Não tenho nenhuma lembrança dele. Pelomenos acho que não. Nem lembro como ele é.— Sua mãe não tem nenhuma foto dele?Quando faz essa pergunta, percebo que nemsabe que sou adotada.— Lembra quando você comentou que minhamãe parecia bem jovem? Bem, é porque ela é

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mesmo. Ela me adotou.Ser adotada nunca chegou a ser um estigma queprecisei superar. Nunca me senti constrangida, nemtive vergonha nem senti necessidade de esconderisso. No entanto, pela maneira como Holder está meolhando agora, parece que acabei de dizer que nascicom um pênis. Está me encarando de uma maneirabem desconfortável, o que me deixa inquieta.— O que foi? Jamais conheceu ninguém quetenha sido adotado?Ele leva mais alguns segundos para se recuperar,mas então esconde a expressão confusa e a substituipor um sorriso.— Você foi adotada quando tinha 3 anos? PorKaren?Balanço a cabeça.— Fui colocada com uma família de acolhimentotemporário quando tinha 3 anos, depois que minhamãe biológica morreu. Meu pai não conseguia mecriar sozinho. Ou não queria me criar sozinho. Sejacomo for, não ligo. Dei sorte de encontrar Karen enão tenho a mínima vontade de tentar entender issotudo. Se ele quisesse saber onde estou, teria vindoatrás de mim.Percebo que ele ainda tem mais perguntas pelaexpressão nos seus olhos, mas estou louca paracomer e fazer minhas próprias perguntas.Aponto para seu braço com o garfo.— O que sua tatuagem significa?Ele estende o braço, e eu passo os dedos porcima dela.— É um lembrete. Fiz depois que Less morreu.— Um lembrete de quê?Ele ergue o copo e desvia o olhar do meu. É aúnica pergunta que não está conseguindo responderme olhando nos olhos.— É para eu me lembrar das pessoas quedesapontei na vida. — Ele toma um gole e põe ocopo na mesa, ainda sem conseguir fazer contatovisual.—Essa brincadeira não é tão divertida, não é?Ele ri baixinho.— Não mesmo. É péssima. — Ele olha paramim e sorri. — Mas a gente precisa continuar porquetenho mais perguntas. Você se lembra de algumacoisa antes de ser adotada?Nego com a cabeça.— Não muito. Uma ou outra coisa, mas chegaum momento em que você simplesmente perde todasas lembranças quando não tem ninguém para validálas.

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A única coisa que guardo de antes da adoçãosão algumas joias, e não faço ideia de onde vieram.Não sou capaz de distinguir o que era realidade,sonho ou algo que vi na televisão.— Você se lembra de sua mãe?Paro por um instante e fico pensando napergunta. Não me lembro dela. De nada mesmo. É aúnica coisa do meu passado que me entristece.— Karen é minha mãe — respondo secamente.— Minha vez. Última pergunta e partimos para asobremesa.— Você acha que temos sobremesa suficiente?— brinca ele.Fulmino-o com o olhar e faço minha últimapergunta.— Por que você bateu nele?Pela mudança em sua expressão, percebo quenão precisa que eu detalhe mais a pergunta. Elebalança a cabeça e afasta a tigela de si.— Essa resposta você não quer saber, Sky.Prefiro o castigo.— Mas quero saber, sim.Ele inclina a cabeça para o lado, leva a mão aoqueixo e, em seguida, estala o pescoço. Mantém amão no rosto e apoia o cotovelo na mesa.— Já contei. Bati nele porque ele era um babaca.Estreito os olhos.— Essa resposta foi vaga. Você disse que não évago.Sua expressão não muda, e ele continua olhandobem nos meus olhos.— Era minha primeira semana de volta aocolégio depois da morte de Less — conta ele. — Elaestudava lá também, então todo mundo sabia o quetinha acontecido. Escutei o cara falando alguma coisasobre Less quando passei por ele no corredor.Discordei do que falou e demonstrei isso. Fui longedemais, e chegou um momento em que eu estava emcima dele e não me importava mais. Estava batendonele, sem parar nem por um segundo, e nem ligava. Aparte mais perturbadora é que o garotoprovavelmente vai passar o resto da vida surdo doouvido esquerdo e, mesmo assim, continuo nãoligando.Ele está me encarando, mas sem olhar para mimde verdade. É o olhar frio e intenso que já vi em seusolhos. Não gostei quando o vi da outra vez e nãoestou gostando agora... mas pelo menos consigocompreendê-lo melhor.— O que ele disse sobre Less?Ele se encosta na cadeira e foca os olhos num

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ponto vazio da mesa entre nós.— Eu o escutei rindo, dizendo para o amigo queLess escolheu a saída mais fácil e egoísta. Disse queela teria aguentado mais se não fosse tão covarde.— Aguentado o quê?Ele dá de ombros.— A vida — responde ele, com indiferença.— Você não acha que ela escolheu a saída maisfácil — digo, com o final da frase soando mais comouma afirmação do que como uma pergunta.Holder inclina-se para a frente e estende o braçopor cima da mesa, segurando minha mão entre assuas. Ele alisa minha palma com os polegares einspira fundo, exalando depois.— Less era a pessoa mais corajosa que jáconheci, porra. Precisou de muita coragem para fazero que fez. Acabar com tudo, sem saber o que iaacontecer em seguida? Sem saber se havia algumacoisa em seguida? É mais fácil viver a vida semmotivo algum para continuar vivendo quesimplesmente ligar o “foda-se” e partir. Ela foi umadas poucas pessoas que disse “foda-se” e pronto. Eaplaudo o que ela fez todos os dias de minha vida,porque morro de medo de fazer o mesmo.Ele aperta minha mão entre as dele, e é sóquando faz isso que percebo que estou tremendo.Ergo o olhar para ele e vejo que está me encarando.Não existem palavras para responder ao que eleacabou de dizer, então nem me arrisco. Ele beija otopo de minha cabeça, me solta e vai até a cozinha.— Quer brownies ou cookies? — pergunta elepor cima do ombro, como se não tivesse acabado deme deixar perplexa demais para falar.Ele olha de volta para mim, e eu ainda o estouencarando, chocada. Não sei nem o que dizer. Seráque ele acabou de admitir que tem tendênciassuicidas? Será que estava apenas sendo metafórico?Melodramático? Não faço ideia do que fazer comessa bomba que ele acabou de jogar no meu colo.Ele traz um prato com cookies e brownies para amesa e se ajoelha na minha frente.— Ei — diz ele com calma, segurando meurosto. Está com uma expressão serena. — Nãoqueria assustá-la. Não tenho tendências suicidas, se éisso que a está perturbando. Não sou ruim dacabeça. Não sou pirado. Não estou sofrendo detranstorno de estresse pós-traumático. Sou apenasum irmão que amava a irmã mais que a própria vida,então fico um pouco intenso quando penso nela. E eulido melhor com isso se penso que o que ela fez foi

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algo nobre, apesar de não ter sido, então é só issoque estou fazendo. Apenas tentando lidar com asituação. — Ele está segurando meu rosto comfirmeza, me olhando com desespero, querendo queeu entenda suas razões. — Porra, eu amava muitoaquela menina, Sky. Preciso acreditar que o que fezera a única opção que restava para ela, pois, se issonão for verdade, nunca vou me perdoar por não tê-laajudado a encontrar alguma outra solução. — Elepressiona a testa na minha. — OK?Balanço a cabeça e afasto suas mãos do meurosto. Não posso deixar que me veja fazendo isso.— Preciso ir ao banheiro.Ele se afasta, corro para o banheiro e fecho aporta. Em seguida, faço algo que não fazia desde quetinha 5 anos. Eu choro.Não choro desesperadamente. Não soluço e nãofaço barulho algum. Uma única lágrima escorre pelaminha bochecha, o que já é demais, então a enxugodepressa. Pego um lenço e seco meus olhos tentandoevitar que outras lágrimas se formem.Ainda não sei o que dizer para ele, mas sintocomo se tivesse encerrado o assunto e decido deixarisso para lá por enquanto. Balanço as mãos e inspirofundo, depois abro a porta. Ele está em pé mais noinício do corredor, os pés cruzados na altura dostornozelos e as mãos no bolso. Ele endireita apostura e se aproxima de mim.— Está tudo bem conosco? — pergunta ele.Abro meu melhor sorriso e faço que sim com acabeça, em seguida, inspiro fundo outra vez.— Já disse que considero você bem intenso. Issoacaba de provar meu ponto.Holder sorri e me dá um pequeno empurrão emdireção ao quarto. Ele me abraça por trás e apoia oqueixo no topo da minha cabeça enquanto andamosaté meu quarto.— Já pode engravidar?Eu rio.— Não. Não neste fim de semana. Além disso, épreciso beijar a garota antes de engravidá-la.— Será que alguém não teve aula de educaçãosexual quando estudava em casa? — pergunta ele.— Porque é óbvio que posso engravidá-la sem darum único beijo em você. Quer que mostre como?Pulo na cama e pego o livro, abrindo-o ondeparamos ontem.— Não precisa, acredito em você. Além disso,acho que estamos prestes a ter uma boa dose deeducação sexual antes de chegarmos à última página.

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Holder deita na cama, e eu me deito ao ladodele. Ele põe o braço ao meu redor e me puxa paramais perto, então apoio a cabeça em seu peito ecomeço a ler.Sei que ele não está fazendo de propósito, mas estáme distraindo totalmente enquanto leio. Fica olhandopara mim, observando minha boca enquanto leio,enrolando meu cabelo com as pontas dos dedos.Toda vez que viro uma página, olho para ele e vejoque sempre está com a mesma expressãoconcentrada. Uma expressão tão concentrada emminha boca que me diz que ele não está prestando amenor atenção em nenhuma das palavras que leio.Fecho o livro e o coloco em cima da barriga. Achoque ele nem percebeu que fiz isso.— Por que parou de falar? — pergunta ele, semmudar a expressão nem desviar o olhar de minhaboca.—De falar? — repito, curiosa. — Holder, euestou lendo. Existe uma diferença entre essas duascoisas. E, pelo jeito, você não estava prestando amenor atenção.Ele me olha nos olhos e sorri.— Ah, eu estava prestando atenção, sim —afirma ele. — Na sua boca. Talvez não nas palavrasque saíam dela, mas na sua boca com certeza.Ele me tira de cima do seu peito e faz com queme deite, esticando-se ao meu lado em seguida. Suaexpressão não mudou; ele está me encarando comose quisesse me devorar. E eu meio que queria quefizesse isso.Holder leva os dedos até meus lábios e começa apercorrê-los lentamente. A sensação é tão incrível.Tenho medo de respirar porque não quero que pare.Juro que é como se seus dedos estivessemconectados com todas as áreas sensíveis do meucorpo.—Você tem uma boca bonita — elogia ele. —Não consigo parar de olhar para ela.— Devia sentir o gosto dela — digo. — É muitobom. Ele aperta os olhos e solta um gemido, emseguida se aproxima e pressiona a cabeça em meupescoço.— Pare com isso, sua malvada.Eu rio e balanço a cabeça.— De jeito algum. Você criou essa regra idiota,por que eu deveria apoiá-la?— Porque sabe que tenho razão. Não possobeijá-la hoje porque o beijo vai levar a outra coisa,que vai levar a outra, e, pela nossa velocidade,

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vamos ter todas as primeiras vezes no próximo fim desemana. Não quer que nossas primeiras vezes seestendam mais um pouco? — Ele afasta a cabeça domeu pescoço e olha para mim.— Primeiras vezes? — pergunto. — Quantasprimeiras vezes existem?— Não muitas, e, por isso, precisamos espaçálas.Já passamos por várias desde que nosconhecemos.Inclino a cabeça para o lado para poder encarálo.— Quais primeiras vezes já tivemos?— As mais fáceis. O primeiro abraço, o primeiroencontro, a primeira vez que dormimos juntos, apesarde eu não ter dormido. Agora não nos resta quasenada. O primeiro beijo. A primeira vez que dormimosjuntos os dois, sem ninguém pegar no sono antes dahora. Que casamos. Que temos um filho. Depoisdisso já era. Nossas vidas vão ficar entediantes e semgraça e vou ter de me divorciar para me casar comuma mulher vinte anos mais jovem só para ter muitasoutras primeiras vezes e vai sobrar para você criarnossos filhos. — Ele toca minha bochecha e sorri. —Então está vendo, querida? Só estou fazendo issopelo seu bem. Quanto mais eu esperar para beijá-la,mais tempo vai demorar para que seja obrigado aabandoná-la.Eu rio.— Sua lógica me apavora. Meio que não mesinto mais atraída por você.Ele desliza para cima de mim, apoiando opróprio peso nas mãos.— Você meio que não se sente mais atraída pormim? Isso também significa que você meio que meacha atraente.Balanço a cabeça.— Não o acho nada atraente. Você érepugnante. Na verdade, acho bom nem me beijar,pois tenho certeza de que acabei de vomitarinternamente.Ele ri e passa a se apoiar em um braço só, aindaem cima de mim. Leva a boca até minha têmpora epressiona os lábios em meu ouvido.— Você é uma mentirosa — sussurra ele. —Você sente muita atração por mim, e vou provarisso agora mesmo.Fecho os olhos e arfo no instante em que seuslábios encostam em meu pescoço. Ele me beija deleve, bem abaixo da orelha, e é como se o quartointeiro começasse a rodopiar loucamente. Devagar,ele leva os lábios de volta ao meu ouvido e sussurra:

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— Sentiu isso?Nego com a cabeça, mas só um pouco.— Quer que eu faça isso de novo?Balanço a cabeça por teimosia, mas estoutorcendo para que ele saiba telepatia e consigaescutar o que estou gritando dentro da cabeça,porque, caramba, gostei muito. Caramba, quero quefaça isso de novo.Ele ri quando balanço a cabeça, e aproxima oslábios de minha boca. Beija minha bochecha econtinua dando beijos suaves até chegar ao meuouvido, onde para e sussurra outra vez:— E isso?Ai, meu Deus, nunca me senti tão não entediadaantes. Ele nem está me beijando e já é o melhor beijoda minha vida. Balanço a cabeça de novo emantenho os olhos fechados, pois gosto de não sabero que vai acontecer em seguida. Como a mão que foicolocada na parte externa de minha coxa e que estásubindo até minha cintura. Ele desliza a mão pordebaixo da minha camisa até seus dedos encostarembem de leve no cós de minha calça, e deixa a mão lá,movendo devagar o polegar para a frente e para trásna minha barriga. Estou percebendo tudo tãointensamente que nesse momento tenho quase certezade que seria capaz de identificar sua impressão digitalentre várias.Holder percorre a linha de meu queixo com onariz, e o fato de estar respirando tão pesado quantoeu prova que nunca vai conseguir esperar até outrodia para me beijar. Pelo menos é o que estoutorcendo desesperadamente para que aconteça.Ao alcançar meu ouvido, não fala nada. Em vezdisso, ele o beija, e nenhuma terminação nervosa domeu corpo deixa de sentir esse beijo. Meu corpointeiro grita da cabeça aos dedos dos pés, ansiandopor sua boca.Ponho a mão em seu pescoço, e, ao fazer isso,seus pelos se arrepiam. Aparentemente, esse únicogesto derrete sua determinação por um instante, e,durante um rápido segundo, sua língua encosta emmeu pescoço. Solto um gemido, e o som o faz delirarpor completo.Ele tira a mão de minha cintura e a coloca aolado da minha cabeça, puxando meu pescoço parasua boca, sem se conter mais. Abro os olhos,chocada por perceber o quanto seu comportamentomudou tão depressa. Ele me beija, me lambe eprovoca cada centímetro de meu pescoço, parandopara respirar só quando é absolutamente necessário.

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Quando noto as estrelas acima da minha cabeça, nãotenho tempo de contar nenhuma delas antes derevirar os olhos e sufocar os ruídos que tenhovergonha de emitir.Ele leva os lábios para longe do meu pescoço,aproximando-se do meu peito. Se não tivéssemosuma quantidade tão limitada de primeiras vezes,arrancaria minha camisa agora mesmo e faria eleseguir em frente. Em vez disso, ele nem me dá essaopção. Vai percorrendo o caminho de volta combeijos até meu pescoço e meu queixo, e tambémbeija de leve ao redor de toda minha boca, tomandocuidado para não tocar nos meus lábios uma únicavez sequer. Meus olhos estão fechados, mas consigosentir sua respiração em minha boca e sei que está sesegurando para não me beijar. Abro os olhos e, aoolhá-lo, percebo que está encarando meus lábiosmais uma vez.— Eles são tão perfeitos — diz ele, ofegante. —Parecem corações. Eu poderia até passar diasencarando seus lábios sem ficar entediado.— Não. Não faça isso. Se ficar só encarando,eu é que vou ficar entediada.Ele faz uma careta, e está na cara que estáachando muito, muito difícil não me beijar. Não sei oque tem de especial em ficar encarando meus lábiosassim, mas com certeza é a coisa que mais mexecomigo em toda essa situação atual. Faço algo queprovavelmente não devia fazer. Passo a língua noslábios. Bem devagar.Ele geme outra vez e pressiona sua testa naminha. Seu braço cede, e ele solta o peso em cimade mim, pressionando seu corpo contra o meu. Cadaparte dele. Todo ele. Gememos simultaneamente noinstante em que nossos corpos encontram essaconexão perfeita, e, de repente, tudo fica maisintenso. Estou agarrando sua camisa, e ele está dejoelhos, me ajudando a tirá-la por cima da cabeça.Depois que a descartamos, ponho as pernas ao redorda sua cintura e o prendo, pois nada poderia ser piorque nos soltarmos agora.Holder aproxima a testa da minha, e nossoscorpos se juntam mais uma vez, fundindo-se como asduas últimas peças de um quebra-cabeça. Devagar,ele se balança apoiado em mim, e, toda vez que fazisso, seus lábios chegam cada vez mais perto, atéroçarem de leve nos meus. Ele não fecha o espaçoentre nossas bocas, apesar de eu estar necessitandodemais disso. Nossos lábios estão simplesmenteparados juntos, sem se beijar. Toda vez que se move

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encostando-se em mim, ele solta um suspiro queengulo, ávida, pois parece que preciso disso parasobreviver a esse momento.Mantemos esse ritmo por vários minutos, porquenenhum de nós quer ser o primeiro a iniciar o beijo. Éóbvio que nós dois queremos, mas também está claroque alguém é tão teimoso quanto eu.Holder segura a lateral de minha cabeça epressiona a testa na minha, mas afasta os lábios parapoder lambê-los. Quando eles voltam a encostar nosmeus, a sensação dos lábios molhados faz com queeu me afogue por completo, e duvido que eu sejacapaz de voltar à superfície.Ele muda de posição, e não sei o que acontecequando faz isso, mas, por alguma razão, jogo acabeça para trás e as palavras “Ai, meu Deus”escapam de minha boca. Não queria me afastar desua boca quando me inclinei para trás, pois estavaadorando a posição, mas agora estou gostando maisainda de onde estou indo parar. Coloco os braços aoredor de suas costas e encosto a cabeça em seupescoço para ter alguma estabilidade, pois pareceque a Terra inteira saiu do eixo e que Holder passoua ser o centro.Percebo o que está prestes a acontecer e dentrode mim começo a entrar em pânico. Exceto por suacamisa, continuamos completamente vestidos e nemestamos nos beijando... mas o quarto estácomeçando a girar devido ao efeito que osmovimentos rítmicos de Holder estão provocando emmeu corpo. Se não parar, vou me desfazer e derreterbem debaixo dele, o que provavelmente seria omomento mais vergonhoso de minha vida. Mas, se eupedir para ele parar, ele vai me obedecer, e acreditoque esse seria o momento mais frustrante da minhavida.Tento acalmar minha respiração e minimizar ossons que escapam de meus lábios, mas perdi todo oautocontrole. É óbvio que meu corpo está gostandoum pouco demais dessa fricção sem-beijo e que nãotenho forças para parar. Vou tentar a segunda melhoropção. Vou pedir para ele parar.— Holder — digo sem ar, sem querer que elepare, mas esperando que se toque e pare mesmoassim. Preciso que pare. Tipo dois minutos atrás.Mas ele não faz isso. Continua beijando meupescoço e movendo o corpo em cima do meu deuma maneira que alguns garotos já fizeram comigoantes, mas dessa vez é diferente. É tão incrivelmentediferente e maravilhoso que me deixa bastante

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apavorada.— Holder. — Tento dizer o nome dele mais alto,mas não tenho força suficiente.Ele beija minha têmpora e desacelera, mas nãopara.—Sky, se me pedir para parar, eu paro. Masespero que não faça isso, porque realmente nãoquero parar, então, por favor. — Ele se afasta e meolha nos olhos, ainda movendo de leve o corpo sobreo meu. Seus olhos estão cheio de aflição epreocupação, e ele fala ofegante. — Não vamosfazer nada além disso, prometo. Mas, por favor, nãome peça para interromper o que estamos fazendoagora. Preciso observar e escutar você, porque ofato de eu saber que está mesmo sentindo isso agoraé tão incrível. É incrível sentir você, isso tudo e porfavor. Só... por favor.Leva a boca até a minha e me dá o selinho maisleve imaginável. É só uma prévia de como vai ser obeijo de verdade, e só de pensar nisso estremeço.Ele para de se mover sobre mim e se apoia naspróprias mãos, esperando que eu decida.No instante em que se afasta de mim, sinto umpeso no peito por causa de tamanho desapontamentoe quase tenho vontade de chorar. Não porque eleparou nem porque não sei o que fazer em seguida...mas porque nunca imaginei que duas pessoaspudessem ter uma ligação tão íntima e que seriapossível sentir o quanto isso é certo de uma maneiratão avassaladora. É como se o propósito de toda ahumanidade estivesse centrado nesse momento; aoredor de nós dois. Tudo o que já aconteceu ou queacontecerá no mundo é simplesmente o cenário doque está acontecendo entre nós agora, e não queroque isso pare. Não quero. Balanço a cabeça,olhando para seus olhos suplicantes, e tudo queconsigo fazer é sussurrar:— Não. Faça qualquer coisa, mas não pare.Ele desliza a mão para minha nuca e abaixa acabeça, pressionando a testa na minha.— Obrigado — diz ele baixinho, acomodandoseem cima de mim com delicadeza mais uma vez,recriando a conexão entre nós.Ele beija os cantos da minha boca várias vezes,chegando perto dos meus lábios, descendo peloqueixo e alcançando meu pescoço. Quanto maisrápido ele respira, mais rápido eu respiro. Quantomais rápido eu respiro, mais rápido ele beija todo omeu pescoço. Quanto mais rápido ele beija todo omeu pescoço, mais depressa nos movemos juntos —

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criando um ritmo hipnotizante que, de acordo commeu pulso, não vai durar tanto tempo mais.Afundo os calcanhares na cama e as unhas emsuas costas. Ele para de beijar meu pescoço e olhapara mim com intensidade no olhar, me observando.Foca a atenção em minha boca mais uma vez, e, pormais que eu queira vê-lo me encarando desse jeito,não consigo manter os olhos abertos. Eles se fechamde forma involuntária assim que a primeira onda dearrepios se espalha pelo meu corpo, como seavisasse o que está por vir.— Abra os olhos — diz ele com firmeza.Eu abriria se pudesse, mas não consigo fazerabsolutamente nada.— Por favor.É tudo que preciso ouvir para que meus olhosobedeçam. Ele está me encarando com um desejotão intenso que é quase mais íntimo do que seestivéssemos realmente nos beijando agora. Por maisque seja difícil fazer isso, continuo com o olhar fixono dele enquanto abaixo os braços, agarro os lençóiscom ambos os punhos e agradeço ao carma portrazer esse caso perdido para minha vida. Porque atéesse momento — até as primeiras ondas da maispura compreensão tomarem conta de mim —, eu nãofazia ideia do que estava perdendo.Começo a estremecer debaixo dele, e Holdernão desvia o olhar nem por um segundo. Nãoconsigo mais manter os olhos abertos por mais quetente, então permito que se fechem. Sinto seus lábiosdeslizarem com delicadeza até os meus, mas eleainda não me beija. Nossas bocas ficamteimosamente juntas enquanto ele mantém o mesmoritmo, deixando meus últimos gemidos e arfadas, etalvez até uma parte do meu coração, saírem de mimpara ele. Lenta e alegremente, volto para a Terra, eele termina parando, deixando eu me recuperar deuma experiência que ele conseguiu fazer com que nãofosse nada vergonhosa para mim.Quando estou bastante desgastada e drenadaemocionalmente, com o corpo tremendo, ele continuabeijando meu pescoço e meus ombros e todos oslocais mais próximos do lugar onde eu mais queriaser beijada — minha boca.Mas claro que ele prefere manter a determinaçãoque ceder, pois ele desgruda os lábios do meuombro, aproxima o rosto do meu e continua serecusando a me beijar. Ele ergue o braço e passa amão pela minha testa, afastando um fio de cabelo.— Você é incrível — sussurra ele, olhando

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apenas para meus olhos dessa vez, e não para minhaboca. Suas palavras compensam a teimosia, e nãoconsigo deixar de sorrir. Ele cai na cama ao meulado, ainda ofegante, enquanto se esforçaconscientemente para conter o desejo que sei queainda percorre seu corpo.Fecho os olhos e escuto o silêncio que surgeentre nós à medida que nossas respirações ofegantesse transformam em respirações suaves e calmas. Estátudo quieto e tranquilo, e é bem possível que minhamente jamais tenha sentido tamanha paz.Holder aproxima a mão de mim, deixando-aentre nós dois, e enrosca o dedo mindinho no meucomo se não tivesse força para segurar minha mãointeira. Mas é gostoso, porque já ficamos de mãosdadas antes, mas não demos os dedos mindinhos... epercebo que foi mais uma primeira vez. E perceberisso não me deixa desapontada, pois sei que essaquestão de primeira vez não importa com ele. Elepode me beijar pela primeira vez, pela vigésima vez,pela milionésima vez... e não me importaria se fosse aprimeira vez ou não, porque tenho certeza de queacabamos de quebrar o recorde de melhor primeirobeijo na história dos primeiros beijos — sem nem nosbeijarmos.Após um longo período de silêncio perfeito, elerespira fundo, senta-se na cama e olha para mim.— Preciso ir. Não posso ficar nessa cama comvocê nem mais um segundo.Inclino a cabeça para ele e o observodesanimada enquanto se levanta e veste a camisa.Holder sorri ao me ver fazendo bico e se curva paraa frente até ficar com a cabeça em cima da minha,perigosamente perto dela.— Quando eu disse que você não ia ser beijadahoje, estava falando sério. Mas caramba, Sky. Nãoimaginava o quanto você ia tornar isso difícil.Ele põe a mão na minha nuca, e eu arfo baixinho,obrigando meu coração a continuar dentro do peito.Ele beija minha bochecha e sinto a hesitaçãoconforme se afasta com relutância.Dá um passo para trás em direção à janela,olhando para mim o tempo inteiro. Antes de sair,pega o celular, passa os dedos pela tela por algunssegundos e depois o guarda no bolso. Sorri paramim, sai pela janela e a fecha.De alguma maneira, encontro forças para pularda cama e correr até a cozinha. Pego o telefone eclaro que tem uma mensagem dele. Mas é só umapalavra.

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Incrível.

Sorrio, porque foi mesmo. Foi absolutamenteincrível.Treze anos antes— Oi. Mantenho a cabeça enterrada nos braços.Não quero que ele me veja chorando outra vez.Sei que não vai rir de mim — nenhum delesjamais riria de mim. Mas nem sei por que estouchorando e queria que isso simplesmente parasse,mas não para, e não aguento e odeio isso, odeio,odeio.Ele se senta na calçada ao meu lado, e ela sesenta do meu outro lado. Continuo sem erguer oolhar e continuo triste, mas não quero vê-los indoembora porque é bom tê-los aqui.— Talvez isso faça você se sentir melhor —diz ela. — Fiz uma para mim e uma para você naescola hoje. — Ela não pede para eu olhar paracima, então não faço isso, mas sinto quando elacoloca algo no meu joelho.Não me mexo. Não gosto de ganhar presentese não quero que ela me veja olhando para o queme deu.Continuo de cabeça baixa, chorando edesejando saber o que há de errado comigo. Temalgo de errado comigo, caso contrário eu nãoficaria assim toda vez que aquilo acontece.Porque é para aquilo acontecer. É o que meupapai me diz, pelo menos. Aquilo deve acontecer,e tenho de parar de chorar porque ele fica tão,tão triste quando choro.Eles ficam sentados do meu lado por muito,muito tempo, mas não sei quanto tempo, pois nãofaço ideia se horas são mais longas que minutos.Ele inclina-se para perto de mim e sussurra nomeu ouvido:— Não se esqueça do que eu lhe disse. Vocêse lembra do que precisa fazer quando fica triste?Faço que sim com a cabeça escondida nobraço, mas não olho para ele. Tenho feito o queele disse que eu devia fazer quando ficasse triste,mas, às vezes, continuo triste do mesmo jeito.Eles ficam comigo por mais algumas horas ouminutos, mas então ela se levanta. Queria queficassem por mais um minuto ou mais duas horas.Nunca me perguntam o que há de errado, e é porisso que gosto tanto deles e que queria queficassem mais.Ergo o cotovelo, dou uma olhada por debaixo

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dele e vejo os pés dela se afastando de mim. Pegoo presente dela no meu joelho e passo os dedosnele. Ela fez uma pulseira para mim. É deelástico, roxa e tem a metade de um coração. Eua coloco no pulso e sorrio, apesar de ainda estarchorando. Levanto a cabeça, e ele ainda estáaqui, olhando para mim. Parece triste, e eu mesinto mal porque sei que sou eu que o deixo triste.Ele se levanta e se vira para minha casa. Olhapara ela por um bom tempo sem dizer nada.Sempre pensa muito e toda vez isso me deixacuriosa sobre seus pensamentos. Ele para deolhar para a casa e dirige o olhar para mim.— Não se preocupe — diz ele, tentando sorrirpara mim. — Ele não vai viver para sempre. —Então se vira e volta para sua casa. Fecho osolhos e torno a encostar a cabeça nos braços.Não sei por que ele disse isso. Não quero quemeu papai morra... só quero que pare de mechamar de Princesa.

Segunda-feira, 3 desetembro de 201207h20Não a pego com muita frequência, mas por algumarazão quero olhá-la hoje. Acho que falar sobre opassado com Holder, no sábado, me deixou umpouco nostálgica. Sei que disse a ele que jamaisprocuraria meu pai, mas, às vezes, ainda sinto certacuriosidade. Não consigo deixar de pensar em comoum pai pode criar a filha por vários anos e depois,simplesmente, dar a criança. Nunca vou entender etalvez não precise fazer isso. É por isso que nuncaforço nada. Nunca faço perguntas a Karen. Nuncatento separar as lembranças dos sonhos e não gostode tocar no assunto... porque, afinal, não precisofalar dele.Tiro a pulseira da caixa e a coloco no pulso. Nãosei quem me deu isso, e não me importo. Tenhocerteza de que ganhei muitas coisas dos meus amigosnos dois anos que vivi com uma família deacolhimento. Mas o que esse presente tem dediferente é que está relacionado com minha únicalembrança daquela vida. A pulseira torna a lembrançaalgo verdadeiro. E saber que ela é verdadeira validao fato de que eu era outra pessoa antes de ser eumesma. Uma garota totalmente diferente de quemsou hoje.Um dia vou jogar fora a pulseira porque é

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necessário. Mas hoje estou a fim de usá-la.Ontem Holder e eu decidimos dar uma respirada umdo outro. E digo uma respirada porque, depois danoite de sábado, ficamos um bom tempo na minhacama sem respirar. Além disso, Karen vai voltar paracasa e a última coisa que quero é apresentá-lanovamente ao meu novo... seja lá o que ele for. Nãochegamos a definir o que está acontecendo entre nós.Parece que não o conheço há tempo suficiente parachamá-lo de namorado, considerando que nem nosbeijamos ainda. Mas, caramba, como fico furiosa aopensar em seus lábios beijando outra pessoa. Então,independente de estarmos saindo ou não, declaroque estamos namorando. É possível namorar semnem beijar primeiro? E sair com a pessoa e namorarsão coisas mutuamente exclusivas?Às vezes rio em voz alta de minhas própriasbobagens. Ou seja, lol.Quando acordei ontem de manhã, tinha recebidoduas mensagens. Estou mesmo gostando dessahistória de mensagens. Fico toda contente quandorecebo uma e não consigo imaginar o quanto viciantedevem ser os e-mails, o Facebook e todas as outrascoisas relacionadas à tecnologia. Uma das mensagensera de Six, falando sem parar sobre minhasimpecáveis habilidades culinárias e, depois, dandoinstruções rigorosas para eu ligar da casa dela nodomingo à noite a fim de atualizá-la a respeito detudo. Foi o que fiz. Conversamos por uma hora, e elaficou tão chocada quanto eu por Holder não sermesmo como esperávamos que fosse. Pergunteisobre Lorenzo, e ela nem sabia sobre quem estavame referindo, então ri e mudei de assunto. Sinto suafalta e odeio o fato de ela estar longe agora, mascomo está se divertindo por lá, fico feliz.A segunda mensagem que recebi foi de Holder.Tudo que dizia era: A última coisa que quero é vêlano colégio na segunda. Última mesmo.Correr costumava ser a melhor parte do meu dia,mas agora é receber as mensagens com insultos deHolder. E, por falar em correr e em Holder, nãovamos mais fazer isso. Pelo menos juntos, não.Depois de trocarmos várias mensagens, decidimosque, provavelmente, é melhor se não corrermosjuntos todos os dias, porque talvez seja cedo demaispara tanta intensidade. Disse a ele que não querianada estranho entre nós. Além disso, fico bemconstrangida quando estou suada, arfando, com onariz escorrendo e fedendo, então prefiro corrersozinha.

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Agora estou encarando meu armário, numaespécie de transe, meio que enrolando porque nãoquero ir à aula. É a primeira aula, a única que tenhoem comum com Holder, então estou bem nervosapara saber o que vai acontecer. Tiro o livro deBreckin, e os outros dois livros que trouxe para ele,da mochila e guardo o resto das coisas no armário.Entro na sala e vou para meu lugar, mas Breckin nãochegou ainda, nem Holder. Eu me sento e ficoolhando para o chão, sem saber por que estou tãonervosa. É só que é tão diferente vê-lo aqui e não emcasa. O colégio público é... público demais.A porta se abre e Holder entra, e, logo atrás,vem Breckin. Os dois começam a vir para o fundo dasala. Holder sorri para mim, andando por umcorredor. Breckin também sorri para mim, vindo pelooutro corredor, segurando dois copos de café.Holder chega à carteira ao meu lado e começa acolocar ali a mochila na mesma hora em que Breckina alcança e começa a pousar os cafés em cima dela.Olham um para o outro e, depois, olham para mim.Que constrangedor.Faço a única coisa que sei fazer em situaçõesconstrangedoras — encho-as de sarcasmo.— Parece que temos um grande dilema aqui,meninos. — Sorrio para os dois e olho para o cafénas mãos de Breckin. — Estou vendo que o mórmontrouxe sua oferenda de café para a rainha. Muitoimpressionante. — Olho para Holder e ergo asobrancelha. — Você vai mostrar sua oferenda,garoto-caso-perdido, para que eu possa decidirquem irá me acompanhar no trono da sala de aulahoje? Breckin olha para mim como se eu tivesseenlouquecido. Holder ri e tira a mochila da carteira.— Pelo jeito alguém está precisando de umamensagem para diminuir esse ego aí. — Ele leva amochila para a carteira vazia na frente de Breckin ese senta.Breckin ainda está parado, segurando os doiscafés com um olhar incrivelmente confuso no rosto.Estendo o braço e pego os copos.— Parabéns, cavalheiro. Hoje você é oescolhido da rainha. Pode se sentar. O fim de semanafoi bem movimentado.Breckin começa a se sentar, coloca o café nacarteira e tira a mochila do ombro, olhando-me deforma suspeita o tempo inteiro. Holder está sentadode lado, me encarando. Faço um gesto na direção deHolder.— Breckin, esse é Holder. Holder não é meu

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namorado, mas, se eu o encontrar tentando quebraro recorde de melhor primeiro beijo com outra garota,logo vai virar meu não-namorado morto.Holder ergue a sobrancelha, e um sutil sorrisoaparece no canto de sua boca.— Igualmente. — Suas covinhas estão meprovocando, e tenho de me obrigar a olhar diretopara seus olhos, caso contrário seria forçada a fazeralgo que me faria ser suspensa.Faço um gesto para Breckin.— Holder, esse é Breckin. Breckin é meu novomelhor amigo de todos no mundo inteiro.Breckin lança um olhar para Holder, que sorri devolta e estende a mão. Breckin aperta a mão deHolder relutantemente, a afasta e se vira para mim,estreitando os olhos.— O seu não-namorado sabe que soumórmon?Faço que sim com a cabeça.— Na verdade, Holder não tem nenhumproblema com mórmons. Só com babacas.Breckin ri e se vira para Holder.— Bem, nesse caso, bem-vindo à Aliança.Holder dá um meio sorriso para ele, mas ficaencarando o café na carteira de Breckin.— Achava que mórmons não podiam tomarcafeína.Breckin dá de ombros.— Decidi desobedecer essa regra na manhã emque acordei gay.Holder ri, e Breckin abre um sorriso, e tudo estábem no mundo. Ou pelo menos no mundo daprimeira aula. Eu me encosto na cadeira e sorrio. Issonão vai ser nada difícil. Na verdade, acho que estoucomeçando a adorar o colégio.Holder me acompanha até o armário depois da aula.Não dizemos nada. Pego uns livros e deixo outrosenquanto ele arranca mais insultos da porta. Haviaapenas dois post-its depois da aula, o que meentristece um pouco. Estão desistindo tão facilmente,e é apenas a segunda semana de aula.Ele esmaga os papéis e dá um peteleco neles.Fecho o armário e me viro para ele. Nós doisestamos encostados nos armários, de frente um parao outro.— Você cortou o cabelo — digo, percebendopela primeira vez.Ele passa a mão pelos fios e sorri.— Pois é. Uma garota aí não parava de reclamardele. Estava ficando bem irritante.

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— Eu gostei.Ele sorri.— Que bom.Pressiono os lábios e fico me balançando para afrente e para trás nos calcanhares. Ele está sorrindopara mim com uma aparência encantadora. Se nãoestivéssemos num corredor com várias outraspessoas agora, agarraria sua camisa e o puxaria paraperto de mim para poder demonstrar o quanto oestou achando encantador. Em vez disso, afastoessas imagens da cabeça e sorrio.— Acho que temos de ir para a aula.Ele balança a cabeça devagar.— Pois é — diz ele, sem ir embora.Ficamos parados por mais uns trinta segundosaté que dou uma risada, desencosto do armário ecomeço a me afastar. Ele agarra meu braço e mepuxa para trás tão depressa que me faz suspirar.Antes que perceba, estou colada ao armário, e eleestá na minha frente, bloqueando-me com os braços.Ele lança um sorriso diabólico para mim e inclina meurosto na direção do dele. Holder leva a mão direitaaté minha bochecha e a desliza por debaixo do meuqueixo, me envolvendo o rosto. Delicadamente,acaricia meus lábios com o dedo, e preciso lembrarmais uma vez que estamos em público e que nãoposso agir com base em meus impulsos. Pressiono ocorpo nos armários, tentando emprestar algumasolidez para compensar a falta de suporte de meusjoelhos.— Queria ter beijado você no sábado à noite —diz ele, baixando o olhar até meus lábios, o polegarainda os acariciando. — Não consigo parar depensar em como deve ser seu gosto. — Elepressiona o polegar com firmeza no centro de meuslábios e depois, por um breve instante, encosta aboca na minha sem tirar o dedo da frente. Seus lábiossomem, e o polegar some, e tudo acontece tãorápido que só percebo que ele sumiu quando ocorredor para de girar e consigo endireitar a postura.Não sei quanto tempo mais vou aguentar essahistória. Eu me lembro da minha explicação nervosano sábado, quando queria que ele simplesmenteresolvesse logo o assunto e me beijasse na cozinha. Enão fazia a menor ideia do que me aguardava.— Como?É apenas uma palavra, mas, assim que coloco abandeja na frente de Breckin, sei exatamente tudoque engloba. Rio e decido vomitar todos os detalhesantes que Holder apareça na nossa mesa. Se ele

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aparecer na nossa mesa. Além de não discutirmos adefinição do nosso relacionamento, também nãodiscutimos onde vamos sentar na hora do almoço.— Ele apareceu na minha casa na sexta, e,depois de vários mal-entendidos, acabamosconcordando que tínhamos uma visão distorcida umdo outro. Então assamos uns doces, li indecênciaspara ele, que depois foi para casa. Voltou no sábadoà noite e cozinhou para mim. Então fomos para meuquarto e...Paro de falar quando Holder se senta ao meulado.—Pode continuar — diz Holder. — Adorariaouvir o que fizemos em seguida.Reviro os olhos e volto a me virar para Breckin.— Em seguida, quebramos o recorde de melhorprimeiro beijo da história dos primeiros beijos semnem nos beijarmos.Breckin concorda com a cabeça de formacuidadosa, ainda me observando com olhos cheiosde ceticismo. Ou curiosidade.— Impressionante.— Foi um fim de semana insuportavelmenteentediante — diz Holder para Breckin.Eu rio, mas Breckin olha para mim como se eutivesse enlouquecido mais uma vez.— Holder adora o tédio — asseguro-lhe. — Ocomentário foi algo positivo.Breckin fica olhando para nós dois, balança acabeça e se inclina para a frente, pegando o garfo.— Poucas coisas me deixam confuso — diz ele,apontando o talher para nós. — Vocês dois são umadessas coisas.Balanço a cabeça, concordando totalmente.Continuamos almoçando e nós três interagimosde uma maneira bastante normal e educada. Holder eBreckin começam a falar sobre o livro que ele meemprestou, e só o fato de Holder estar discutindo umromance já é divertido, mas estar conversando sobreo enredo com Breckin é nauseantemente encantador.De vez em quando, ele põe a mão na minha perna,massageia minhas costas ou beija minha têmpora, efaz essas coisas como por instinto, mas percebo cadauma delas.Estou tentando processar a mudança da semanapassada para a atual e não consigo deixar de lado aimpressão de que talvez o que nós temos seja bomdemais. O que quer que seja, o que quer que a genteesteja fazendo, parece bom demais, certo demais eperfeito demais, e assim fico pensando em todos os

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livros que li e em como, quando as coisas ficam boasdemais, certas demais e perfeitas demais, é sóporque alguma reviravolta horrorosa ainda não seinfiltrou na situação maravilhosa e, de repente...— Sky — diz Holder, estalando os dedos naminha frente. Olho para ele, que está me observandocuidadosamente. — Onde você estava?Balanço a cabeça e sorrio, sem saber o que foique iniciou meu miniataque interno de pânico. Eledesliza a mão até embaixo da minha orelha e passa opolegar na maçã de meu rosto.— Precisa parar de ficar viajando assim. Isso medeixa um pouco assustado.— Desculpe-me — digo, dando de ombros. —É que me distraio fácil. — Ergo a mão e afasto a deledo meu pescoço, apertando seus dedos paratranquilizá-lo. — É sério, estou bem.Ele olha para minha mão, torce-a e puxa minhamanga. Depois fica virando meu pulso para cima epara baixo.— Onde arranjou isso? — diz ele, olhando parameu pulso.Olho para baixo para ver do que ele estáfalando, e percebo que ainda estou com a pulseiraque coloquei de manhã. Ele olha para mim, e dou deombros. Não estou muito a fim de explicar. Écomplicado, ele vai querer fazer perguntas, e oalmoço está quase acabando.— Onde arranjou isso? — repete ele, dessa vezde um jeito um pouco mais autoritário. Aperta meupulso com mais força e fica me olhando friamente,esperando uma explicação. Afasto o braço, semgostar do rumo que a conversa está tomando.— Acha que foi um garoto que me deu? —pergunto, confusa com sua reação. Não achei quefizesse o tipo ciumento, mas isso não me parececiúmes. E sim insanidade.Ele não me responde. Continua me fulminandocom o olhar como se eu tivesse uma grande confissãoa fazer, e não quisesse. Não sei o que ele estáesperando, mas o mais provável é que seucomportamento acabe me fazendo dar-lhe um tapaem vez de uma explicação.Breckin muda de posição no banco,constrangido, e limpa a garganta.— Holder. Calma aí, cara.A expressão de Holder não muda. Pelocontrário, se torna ainda mais fria. Ele se inclina paraa frente alguns centímetros e abaixa o tom de voz aofalar.—

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Quem lhe deu essa maldita pulseira, Sky?As palavras dele se transformam num pesoinsuportável em cima do meu peito, e os mesmossinais de alerta que apitaram na minha cabeça assimque o conheci começam a apitar outra vez, só queagora estão bem mais barulhentos. Fico boquiaberta,de olhos arregalados, mas me sinto aliviada por saberque a esperança não é algo concreto, pois senãotodos ao meu redor veriam a minha sedespedaçando.Ele fecha os olhos e se vira para a frente,colocando os cotovelos na mesa. Pressiona aspalmas na testa e respira fundo. Não sei se inspiroupara se acalmar ou para se distrair e não gritarcomigo. Ele passa a mão no cabelo e segura a nuca.— Merda! — diz ele. Sua voz é rude, e me fazvacilar.Ele se levanta e vai embora inesperadamente,deixando a bandeja na mesa. Meus olhos oacompanham pelo refeitório, e ele não se viranenhuma vez. Espalma as portas do refeitório comambas as mãos e desaparece. Não pisco nemrespiro, até que as portas param de balançar e de semexer.Eu me volto para Breckin e só consigo imaginar aexpressão de choque em meu rosto. Fico piscando,balançando a cabeça e relembrando os últimos doisminutos na minha cabeça. Breckin estende o braçopor cima da mesa e segura minha mão sem dizernada. Não há nada a ser dito. Ficamos sem palavrasno instante em que Holder desapareceu por aquelasportas.O sinal toca, e o refeitório vira um turbilhão decomoção, mas não consigo me mexer. Todos ao meuredor estão andando pelos cantos, esvaziandobandejas e limpando mesas, mas o mundo da nossamesa continua paralisado. Breckin finalmente soltaminha mão, recolhe nossas bandejas e depois voltapara buscar a de Holder, esvaziando a mesa. Elepega minha mochila e segura minha mão de novo, melevantando. Põe minha mochila por cima do ombro eme acompanha até sairmos do refeitório. Ele não meacompanha até meu armário nem até minha sala deaula. Em vez disso, segura minha mão e vai mepuxando até deixarmos o colégio. Atravessamos oestacionamento, e ele abre a porta e me empurrapara dentro de um carro desconhecido. Breckin sesenta no banco do motorista, liga o carro e se vira naminha direção.— Não vou nem contar minha opinião sobre o

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que acabou de acontecer lá dentro. Mas sei que foiuma merda e não entendo como não está chorandoagora, mas sei que está magoada, talvez até com oorgulho ferido. Então foda-se o colégio. Vamostomar sorvete. — Ele dá ré e sai da vaga.Não sei como foi capaz de fazer isso, porque euestava prestes a cair em prantos, soluçar e sujar todoseu carro, mas depois que essas palavras saíram desua boca até esboço um sorriso.— Adoro sorvete.O sorvete ajudou, mas acho que não muito, poisBreckin acabou de me deixar no meu carro e estousentada no banco do motorista, sem conseguir memexer. Estou triste, com medo, furiosa e sentindotodas as coisas que tenho direito de sentir depois doque acabou de acontecer, mas não estou chorando.E não vou chorar.Ao chegar em casa, faço a única coisa que seique vai me ajudar. Corro. No entanto, quando voltoe entro no chuveiro, percebo que, assim como osorvete, a corrida também não ajudou muito.Faço as mesmas coisas que faria em qualqueroutra noite da semana. Ajudo Karen com a comida,janto com ela e Jack, faço o dever de casa, leio umlivro. Tento me comportar como se aquilo não mechateasse nem um pouco, pois queria muito que issofosse verdade, mas, no instante em que deito e apagoa luz, minha mente começa a fazer algumas perguntas.Dessa vez ela não faz muitas perguntas — naverdade, é só uma coisa, uma única coisa. Por quediabos ele não pediu desculpas?Eu meio que esperava que ele estivesse meaguardando no meu carro quando Breckin e euvoltamos da sorveteria, mas não. Quando cheguei emcasa, esperava que estivesse ali na frente, prontopara se humilhar, implorar e me dar pelo menos umasimples explicação, mas não. Fiquei com o telefoneescondido no bolso (porque Karen ainda não sabeque tenho um celular) e o conferi toda vez que pude,mas a única mensagem que recebi foi de Six, e aindanem a li.Então agora estou na minha cama, abraçandomeu travesseiro, incrivelmente culpada por não sentirvontade de jogar ovos na casa dele nem de furar ospneus de seu carro ou de chutar seu saco. Pois seique é o que eu queria estar sentindo. Queria estarfuriosa, rancorosa e revoltada, porque seria bemmelhor que me sentir desapontada por perceber queo Holder que esteve comigo no fim de semana... nãoera o Holder de jeito algum.

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Terça-feira, 4 de setembrode 201206h15Abro os olhos e só saio da cama após contar aestrela número 76 do teto. Tiro as cobertas e visto aroupa de corrida. Mas ao sair pela janela, paro.Ele está na calçada, de costas para mim. Asmãos estão juntas no topo da cabeça, e consigo veros músculos de suas costas se contraindo devido àrespiração ofegante. Está no meio de uma corrida enão sei se está me esperando ou se decidiu descansarum pouco, então continuo parada na frente da janela,aguardando, torcendo para que ele volte a correr.Mas isso não acontece.Após alguns minutos, finalmente crio coragempara ir até o jardim. Ao ouvir meus passos, ele sevira. Paro de andar quando nossos olhares seencontram, e sustento o olhar. Não estou com raivanem franzindo a testa, muito menos sorrindo. Estouapenas o encarando.A expressão em seus olhos é nova para mim, e aúnica palavra que posso usar para descrevê-la éarrependimento. Mas ele não diz nada, o que significaque não pede desculpas, o que significa que nãotenho tempo agora para tentar entender o que fez.Tudo que preciso é correr.Passo por ele, indo até a calçada, e começo acorrer. Após alguns passos, escuto-o correndo atrásde mim, mas continuo olhando para a frente. Ele nãopassa a correr ao meu lado, e faço questão de nãodesacelerar porque quero que continue atrás de mim.Em algum momento, começo a correr cada vez maisrápido até ficar a toda velocidade, mas ele segue meuritmo, sempre algumas passadas atrás. Quandochegamos ao local onde costumo parar e voltar, façoquestão de não olhar para ele. Eu me viro, passo porele e volto para casa, e toda a segunda metade dacorrida é exatamente como a primeira. Silenciosa.Estamos a menos de duas quadras de minhacasa. Sinto raiva só de ele ter aparecido aqui hoje emais raiva ainda por ainda não ter me pedidodesculpas. Começo a correr cada vez mais rápido,provavelmente o mais rápido que já corri na vida, eele continua acompanhando minha velocidade, passoa passo. Isso me deixa ainda mais irritada, então,quando chegamos à minha rua, consigo de algumamaneira aumentar mais a velocidade e corro paracasa o mais rápido possível, o que ainda não é rápido

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o suficiente, pois ele continua atrás de mim. Meusjoelhos estão cedendo, e estou ficando tão exauridaque mal consigo respirar, mas faltam só uns 5 metrosaté minha janela.Só consigo percorrer três.Assim que meus tênis tocam a grama, caio dequatro e respiro fundo várias vezes. Nunca, nemmesmo quando corria 6,5 quilômetros, fiquei tãoexausta. Rolo para deitar de costas na grama aindaúmida de orvalho, mas é uma sensação gostosa napele. Meus olhos estão fechados, e estou arfando tãoalto que mal consigo ouvir a respiração de Holder.Mas consigo escutá-la, está por perto, e sei que estáno relvado ao meu lado. Nós dois ficamos deitados,imóveis e ofegantes, e me lembro de algumas noitesatrás, quando estávamos na mesma posição emminha cama, nos recuperando do que provocou emmim. Acho que ele também se lembra disso, poissinto seu dedo mindinho entre nós, enroscando-se nomeu. Mas dessa vez, quando ele faz isso, não sorrio.Estremeço.Afasto a mão, rolo para o lado e me levanto.Ando os 3 metros restantes até minha casa, entro noquarto e fecho a janela.

Sexta-feira, 28 desetembro de 201212h05Hoje completam quatro semanas. Ele nunca apareceupara correr comigo outra vez nem pediu desculpas.Não se senta perto de mim na sala de aula nem norefeitório. Não me manda mensagens com insultosnem aparece na minha casa no fim de semana comouma pessoa diferente. A única coisa que faz, ou pelomenos acho que é ele que faz, é remover os post-itsdo meu armário. Estão sempre amassados no chãodo corredor, aos meus pés.Continuo existindo, e ele continua existindo, masnão existimos juntos. Só que os dias se passamindependentemente de com quem eu existo. E,quanto mais dias se passam entre o presente e aquelefim de semana com ele, as perguntas em minhacabeça só aumentam, mas sou teimosa demais paraperguntar.Quero saber por que ele perdeu a cabeçanaquele dia. Quero saber por que ele nãosimplesmente deixou para lá em vez de sair furiosocomo fez. Quero saber por que ele nunca me pediudesculpas, porque tenho quase certeza de que eu

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teria dado a ele pelo menos mais uma chance. O quefez foi uma maluquice, algo estranho e um poucopossessivo, mas, se fosse para colocar aquilo numabalança junto com todas as coisas maravilhosas, seique aquele incidente não teria tanta relevância.Breckin nem tenta mais analisar o que aconteceu,e também tento não fazê-lo. Mas a verdade é quefaço sim, e o que mais me corrói é que tudo o queaconteceu entre nós está começando a parecer algosurreal, como se tivesse sido apenas um sonho. Àsvezes me surpreendo pensando se aquele fim desemana realmente aconteceu ou não, ou se é apenasmais uma lembrança invalidada que talvez não tenhasido real.Durante todo o mês, o que ocupou minha cabeçamais que tudo (e sei que isso é bastante ridículo) foique nunca cheguei a beijá-lo. Estava com umavontade tão grande de beijá-lo que saber que nãovou me dá uma sensação de que há um buracogigante em meu peito. A facilidade com queinteragimos, a maneira como ele me tocou como sefosse o que devia fazer, os beijos que dava em meucabelo — eram pequenas partes de algo tão maior.De algo grande o suficiente para merecer que eleadmita que aconteceu, apesar de não termos nosbeijado. Que mereça certo respeito. Ele trata o quequer que estivesse prestes a acontecer entre nóscomo algo errado, e isso me magoa. Porque sei queele sentiu aquilo. Sei que sim. E se ele sentiu a mesmacoisa que eu, sei que o sentimento ainda existe.Não estou de coração partido e ainda nãoderramei uma lágrima sequer por causa de toda essasituação. Não consigo ficar de coração partidoporque, por sorte, ainda não tinha dado a ele essaparte de mim. Mas não sou orgulhosa demais paraadmitir que estou um pouco triste com tudo isso, e seique vou precisar de um tempo porque eu gostavamuito, muito dele. Resumindo, estou bem. Um poucotriste e imensamente confusa, mas bem.— O que é isso? — pergunto para Breckin, olhandopara a mesa. Ele acabou de colocar uma caixa naminha frente. Uma caixa muito bem embrulhada.— Apenas um pequeno lembrete.Olho para ele com uma expressão interrogativa.— De quê?Ele ri e empurra a caixa para perto de mim.— É um lembrete de que amanhã é seuaniversário. Agora abra.Suspiro, reviro os olhos e empurro-a para olado.—

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Tinha esperança de que você pudesseesquecer.Ele pega o presente e o empurra de volta paramim.— Abra o maldito presente, Sky. Sei que odeiareceber presentes, mas eu amo dar, então para deser essa vaca depressiva e abra o presente, gostedele, me dê um abraço e me agradeça.Curvo os ombros, empurro a bandeja vazia parao lado e puxo a caixa para minha frente.— Você embrulha bem — comento. Desamarroa fita e abro um lado da caixa, em seguida tiro opapel. Olho para a imagem na caixa e ergo umasobrancelha. — Você comprou uma televisão paramim?Breckin ri e balança a cabeça, erguendo a caixaem seguida.— Não é uma televisão, boba. É um e-reader.— Ah — digo. — Não faço ideia do que sejaum e-reader, mas tenho quase certeza de que nãodevia ter um. Aceitaria da mesma maneira que aceiteio celular que Six me deu, mas isso é grande demaispara eu conseguir esconder no bolso.— Está brincando, não é? — Ele se inclina paramim. — Não sabe o que é um e-reader?Dou de ombros.— Para mim parece uma televisão em miniatura.Ele ri ainda mais alto e abre a caixa, tirando o ereader.Ele o liga e o entrega para mim.— É um aparelho eletrônico capaz de armazenarmais livros do que você jamais vai conseguir ler.Ele aperta um botão, e a tela se acende, emseguida ele desliza o dedo na frente, pressionando-oem alguns lugares até toda a tela se acender comdúzias de pequenas imagens de livros. Toco numadas imagens, e a tela muda, e então a capa do livroenche a tela inteira. Ele desliza o dedo por cima delafazendo com que a página vire virtualmente e, comisso, posso olhar para o capítulo um.Na mesma hora, começo a tocar a tela e observocada página passar sem nenhum esforço, uma após aoutra. É com toda a certeza a coisa mais incrível quejá vi. Aperto mais botões, clico em mais livros, passopor mais capítulos e, para ser sincera, não sei se já vialguma invenção mais magnífica e prática.— Uau — sussurro.Continuo encarando o e-reader, na esperança deque não esteja tentando fazer alguma brincadeiracruel comigo, pois, se ele ameaçar tirar isso dasminhas mãos, vou sair correndo.

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— Gostou? — pergunta ele, orgulhoso. —Baixei cerca de duzentos livros gratuitos, então vocêtem o suficiente por um bom tempo.Ergo o olhar para ele, que está com um sorrisode orelha a orelha. Coloco o e-reader na mesa, mejogo por cima dela e aperto seu pescoço. É o melhorpresente que já ganhei e estou sorrindo e o apertandocom tanta força que não estou nem ligando se soupéssima em receber presentes. Breckin retribuiu oabraço e me dá um beijo na bochecha. Quando soltoseu pescoço e abro os olhos, olho involuntariamentena direção da mesa para a qual tenho evitado dirigir oolhar há quase quatro semanas.Holder está virado, observando nós dois. Eleestá sorrindo. Não é um sorriso louco, sedutor ouassustador. E sim um cativante, e, logo quandopercebo isso, as ondas de tristeza se esmagam emmeu âmago, e desvio o olhar de volta para Breckin.E volto a me sentar e pego o e-reader de novo.— Sabe, Breckin. Você é mesmo incrível.Ele sorri e pisca para mim.— É meu lado mórmon. Somos um povofantástico.

Sexta-feira, 28 desetembro de 201223h50É meu último dia com 17 anos. Karen está fora dacidade, trabalhando no mercado de pulgas mais umavez. Ela tentou cancelar a viagem porque se sentiamal por estar longe no meu aniversário, mas nãodeixei que fizesse isso. Em vez disso, comemoramosmeu aniversário ontem à noite. Ela me deu bonspresentes, mas nada se compara ao e-reader. Nuncafiquei tão entusiasmada em passar um fim de semanasozinha.Não assei tantos doces como da última vez emque Karen viajou. Não porque não estava comvontade de comê-los, mas porque tenho quasecerteza de que meu vício por leitura atingiu um nívelcompletamente novo. É quase meia-noite, e meusolhos não querem ficar abertos, mas já li quase doislivros inteiros e preciso terminar esse de qualquerjeito. Pego no sono, acordo de repente e tento lermais um parágrafo. Breckin tem um ótimo gosto paraliteratura, e fico um pouco chateada por terdemorado um mês inteiro para me falar sobre esse.Sei que não sou muito fã de finais felizes, mas se osdois personagens desse livro não tiverem um, vou

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entrar no e-reader e trancá-los dentro da malditagaragem para sempre.Minhas pálpebras se fecham devagar e continuotentando forçá-las a ficarem abertas, mas as palavrasestão começando a se embaralhar na tela e nada maisfaz sentido. Por fim, desligo o e-reader, apago a luz epenso em como meu último dia com 17 anos deviater sido tão melhor do que foi.Meus olhos se abrem rapidamente, mas não memexo. Ainda está escuro e continuo na mesmaposição de antes, então sei que acabei de pegar nosono. Respiro de forma mais silenciosa e tentoescutar o mesmo barulho que me acordou — obarulho da minha janela sendo aberta.Escuto as cortinas roçando no suporte e alguémentrando. Sei que devia gritar, sair correndo para aporta, ou procurar algum objeto que possa usarcomo arma. Em vez disso, continuo paralisadaporque, quem quer que seja, não está tentando deforma alguma entrar no meu quarto de maneirasilenciosa, então sou obrigada a presumir que éHolder. Mas mesmo assim, meu coração estádisparado e todos os músculos do meu corpo seretesam quando o colchão se move quando ele sedeita. Quanto mais perto chega, mais certeza tenhode que é ele, pois nenhuma outra pessoa é capaz defazer meu corpo reagir como está reagindo agora.Aperto os olhos e levo as mãos até o rosto ao sentiras cobertas serem erguidas. Estou totalmenteapavorada. Estou apavorada porque não sei qualHolder está deitando em minha cama neste momento.O braço dele desliza por baixo do meutravesseiro, e seu outro braço me envolve o corpoapós encontrar minhas mãos. Ele me puxa para seupeito e entrelaça os dedos nos meus, enterrando emseguida a cabeça no meu pescoço. Estou bem cientede que não estou vestindo nada além de uma regata euma calcinha, mas tenho certeza de que ele não veiopor causa disso. Ainda não sei por que ele está aqui,pois apesar de ele não falar nada, sabe que estouacordada. Sei que ele sabe que estou acordadaporque, no instante em que seus braços mecercaram, arfei. Ele me abraça o mais forte que podee, de vez em quando, encosta os lábios no meucabelo e me beija.Estou com raiva dele por vir aqui, mas fico commais raiva ainda de mim mesma por querê-lo aqui.Não importa o quanto queira gritar com ele e obrigáloa ir embora; percebo que sempre quero que meaperte um pouco mais. Quero que tranque os braços

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ao meu redor e jogue a chave fora, pois aqui é seulugar e tenho medo de que me solte de novo.Odeio o fato de existirem tantos lados dele quenão compreendo, e nem sei se quero continuartentando entendê-los. Há partes dele que amo, partesque odeio, partes que me apavoram e partes que meimpressionam. Mas há uma parte dele que só medecepciona... e com certeza essa é a mais difícil deaceitar.Ficamos deitados sem dizer nada pelo queparece ser cerca de meia hora, mas não tenhocerteza. Tudo que sei é que ele não me soltou nemum pouco nem tentou se explicar. Mas o que há denovo nisso? Nunca vou conseguir nada dele a não serque comece a fazer minhas perguntas. Mas, nessemomento, não estou a fim de fazer nenhuma.Ele solta meus dedos e leva a mão até o topo daminha cabeça. Pressiona os lábios no meu cabelo edobra o braço que está debaixo do travesseiro.Holder fica me ninando, enterrando o rosto no meucabelo. Seus braços começam a tremer, e ele estáme apertando com tanta intensidade e desespero queé de partir o coração. Meu peito arqueja, minhasbochechas ardem, e a única coisa que impede aslágrimas de escorrerem pelo meu rosto é meus olhosestarem fechados com tanta firmeza que não asdeixam escapar.Não aguento mais o silêncio e, se eu não dissertudo o que considero totalmente necessário, possoaté gritar. Sei que minha voz vai soar carregada demágoa e tristeza, e que mal vou conseguir falarenquanto tento conter as lágrimas, mas respiro fundode qualquer maneira e digo a coisa mais honesta deque sou capaz:— Estou com muita raiva de você.Como se fosse possível, ele consegue me apertarainda mais forte e leva a boca até meu ouvido,beijando-o.— Eu sei, Sky — sussurra ele. Sua mão deslizapor debaixo da minha camiseta, e ele pressiona apalma aberta na minha barriga, puxando-me paramais perto. — Eu sei.É incrível o que o som de uma voz que estamosloucos para ouvir faz com nosso coração. Ele acaboude dizer cinco palavras, mas, no tempo que levoupara falar essas cinco palavras, meu coração foidespedaçado, moído e retornou ao meu peito, comose devesse saber como voltar a bater outra vez.Deslizo os dedos pela mão que está firmementeapoiada em mim e a aperto, sem nem saber o que

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isso significa, mas cada parte do meu corpo quertocá-lo, apertá-lo e confirmar que ele está mesmoaqui. Preciso saber que ele está aqui e que isso não éapenas mais um sonho vívido.Ele encosta a boca em meu ombro e separa oslábios, beijando-me com delicadeza. A sensação desua língua em minha pele faz com que um calor seespalhe imediatamente por mim, da barriga até asbochechas.— Eu sei — sussurra ele outra vez, explorandosem pressa minha clavícula e meu pescoço com oslábios.Fico de olhos fechados porque a aflição em suavoz e a ternura em seu toque estão fazendo minhacabeça rodar. Estendo o braço e passo a mão emseu cabelo, pressionando-o mais ainda no meupescoço. O hálito quente em minha pele fica cada vezmais intenso, assim como os beijos. Nossarespiração acelera à medida que ele percorre cadacentímetro do meu pescoço duas vezes.Ele se apoia no braço e me deita de costas, emseguida leva a mão até meu rosto e me afasta ocabelo dos olhos. Vê-lo tão de perto faz todos ossentimentos que já nutri por esse garoto voltarem...os bons e os ruins. Não entendo como pode me fazerpassar pelo que passei quando a mágoa em seusolhos é tão perceptível. Não sei se é porque não seiinterpretá-lo nem um pouco ou se eu o interpretobem demais, mas ao olhá-lo agora sei que estásentindo o mesmo que eu... o que torna suas atitudesainda mais confusas.— Sei que está com raiva de mim — diz ele, meolhando. Seus olhos e palavras estão cheios deremorso, mas mesmo assim não pede desculpas. —Preciso que fique com raiva de mim, Sky. Mas achoque preciso ainda mais que continue me querendoaqui.Sinto um peso no peito ao ouvir essas palavras epreciso de um esforço extremo para continuarenchendo meus pulmões de ar. Balanço a cabeça deleve, porque sou capaz de concordar plenamentecom ele. Estou furiosa, mas quero muito mais que elefique aqui do que quero que vá embora. Holderencosta a testa na minha, e seguramos o rosto um dooutro, um olhando desesperado nos olhos do outro.Não sei se ele está prestes a me beijar. Não sei nemse está prestes a se levantar e ir embora. A únicacoisa de que tenho certeza é que depois dessemomento, nunca mais serei a mesma. Sei, pelamaneira como sua existência é um ímã para meu

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coração, que se ele me magoar de novo algum dia,não vou ficar nada bem. Vou ficar acabada.Nossos peitos sobem e descem como se fossemum só enquanto o silêncio e a tensão aumentam.Sinto em todas as partes do corpo a firmeza com queele segura meu rosto, é quase como se estivesse meagarrando de dentro para fora. A intensidade domomento traz lágrimas aos meus olhos, e estoucompletamente surpresa com minhas emoçõesinesperadas.— Estou mesmo com raiva de você, Holder —digo com uma voz trêmula, mas segura. — Mas, nãoimporta o quanto fiquei irritada, nunca deixei dedesejar que estivesse ao meu lado, nem por umsegundo.De alguma maneira, ele sorri e franze o rosto nomesmo momento que eu.— Caramba, Sky. — O rosto dele passa umalívio incrível agora. — Senti tanto sua falta. —Imediatamente, ele abaixa a boca e pressiona oslábios nos meus. Já estava mais que na hora desentirmos isso; não sobrou paciência em nenhum denós. Reajo na mesma hora, separando os lábios edeixando ele me preencher com o gosto doce dementa e refrigerante. Ele é tudo o que sempreimaginei e mais um pouco. Delicado, firme,cuidadoso, egoísta. Nesse único beijo, sinto maissuas emoções do que em todas as palavras que ele jádisse. Nossos lábios finalmente estão se entrelaçandopela primeira vez, pela vigésima ou pela milionésimavez. Não importa que vez é — qualquer que seja, éalgo perfeito demais. É incrível, excelente e quasevaleu a pena passar por tudo que passamos parachegar a esse momento.Nossos lábios se movem de forma apaixonadaenquanto tentamos nos aproximar mais, esperandoencontrar entre nossos corpos a ligação perfeita queacabamos de encontrar com nossas bocas. Ele mexea boca contra a minha delicadamente, mas comfirmeza, e eu o acompanho em cada movimento.Solto vários gemidos, arquejo várias vezes e, emcada uma dessas vezes, ele inspira com a boca.Nós nos beijamos sem parar em todas asposições possíveis, tentando nos conter até ondenosso desejo permitia. Nos beijamos até eu nãoconseguir mais sentir meus lábios e até ficar tãocansada e exaurida que nem sei se ainda estamos nosbeijando quando ele pressiona sua cabeça na minha.E é exatamente assim que pegamos no sono —com as testas grudadas e os corpos envoltos, em

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silêncio. Pois nada mais foi dito entre nós. Nem umpedido de desculpas.

Sábado, 29 de setembrode 201208h40Eu me viro para investigar a cama, meio quepensando que os acontecimentos da noite passadaforam um sonho. Holder não está aqui, mas em seulugar há uma caixinha embrulhada. Eu me encosto nacabeceira e pego o presente. Fico encarando-o porum bom tempo antes de finalmente abrir a tampa econferir o conteúdo. É algo que parece um cartão decrédito, então o pego e leio.Ele comprou para mim um cartão de telefonecom minutos para mensagens. Muitos minutos.Sorrio, pois sei a importância desse cartão. É porcausa da mensagem de Six. Ele está planejandoroubar a menina dela, além de usar muitos de seusminutos. O presente me faz sorrir e na mesma horaestendo o braço até a mesinha de cabeceira parapegar o celular. Recebi uma mensagem de Holder.Está com fome?

A mensagem é breve e simples, mas é suamaneira de me avisar que ainda está aqui. Em algumcanto. Será que está preparando um café da manhãpara mim? Vou ao banheiro antes de seguir para acozinha e escovo os dentes. Tiro a regata, coloco umvestido de alcinha e prendo meu cabelo num rabo decavalo. Olho meu reflexo no espelho e vejo umamenina desesperada para perdoar um garoto. Maspara isso ele vai ter de implorar muito primeiro.Ao abrir a porta do quarto, sinto o cheiro debacon e escuto o barulho da gordura chiando nafrigideira. Vou até o corredor, dou a volta e paro.Fico encarando-o por um tempo. Ele está de costaspara mim, mexendo no fogão, cantarolando sozinho.Está descalço, vestindo uma calça jeans e umacamiseta branca. Mais uma vez, já está se sentindoem casa, e não sei muito bem o que acho disso.— Saí cedo hoje de manhã — diz ele, ainda decostas para mim —, porque estava com medo deque sua mãe aparecesse e achasse que estoutentando engravidar você. Então, quando fui correr,passei pela sua casa outra vez e percebi que o carrodela nem estava na garagem e lembrei que você disseque ela tira esses fins de semana de venda no iníciodo mês. Então decidi comprar comida porque queriafazer um café da manhã para você. Também quase

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comprei coisas para o almoço e jantar, mas achei quetalvez fosse melhor se a gente pensasse em umarefeição de cada vez. — Ele se vira para mim e meolha lentamente dos pés à cabeça. — Felizaniversário. Gostei muito desse vestido. Comprei leitede verdade, quer?Vou até a bancada e fixo os olhos nele, tentandoprocessar a pletora de palavras que acabou de sairda sua boca. Pego uma cadeira e me sento. Ele meserve um pouco de leite, apesar de eu não ter ditoque queria, e desliza o copo para mim com umsorriso enorme no rosto. Antes que eu tome um gole,se aproxima e segura meu queixo.— Preciso dar um beijo em você. Sua bocaestava tão, mas tão perfeita ontem que fiquei commedo, achando que tudo tinha sido um sonho. — Eleleva a boca até a minha, e, assim que a língua deleacaricia a minha, percebo que isso vai ser umproblema.Os lábios, a língua e suas mãos são tãoincrivelmente perfeitos que nunca vou ser capaz deficar com raiva de Holder enquanto ele for capaz deusá-los contra mim dessa maneira. Agarro a suacamisa e pressiono minha boca na dele com maisforça ainda. Ele geme e cerra os punhos no meucabelo, depois me solta de forma abrupta e se afasta.— Não — diz ele, sorrindo. — Não foi umsonho.Ele volta para o fogão, desliga as bocas etransfere o bacon para um prato que já tem torrada eovos. Ele o leva até a bancada e começa a encher oprato na minha frente com comida. Holder se senta ecomeça a comer. Fica sorrindo o tempo inteiro, e, derepente, percebo uma coisa.Eu sei. Sei qual é seu problema. Sei por que elefica feliz, irritado, temperamental e todo inconstante,e finalmente tudo faz todo o sentido.— Podemos brincar de Questionário do Jantar,apesar de ser café da manhã? — pergunta ele.Tomo um gole do leite e faço que sim com acabeça.— Só se eu puder fazer a primeira pergunta.Ele apoia o garfo no prato e sorri.— Estava pensando justamente em deixá-la fazertodas as perguntas.— Só preciso saber a resposta de uma.Ele suspira, encosta-se na cadeira e olha para aspróprias mãos. Pela maneira como está evitando meuolhar, percebo que já sabe que eu sei. Ele reagecomo quem tem culpa. Eu me inclino para a frente na

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cadeira e o fulmino com o olhar.— Há quanto tempo usa drogas, Holder?Ele lança um olhar para mim, com uma expressãoestoica. Fica me encarando por um tempo, econtinuo firme, querendo que saiba que só vou pararquando ele contar a verdade. Holder aperta oslábios, formando uma linha fina, e volta a olhar paraas mãos. Por um segundo, fico achando que está sepreparando para sair correndo pela porta só paraevitar falar do assunto, mas então vejo algo em seurosto que não estava esperando encontrar de maneiraalguma. Uma covinha.Está fazendo uma careta, tentando manter aexpressão séria, mas os cantos de sua boca cedem eo sorriso vira uma gargalhada.Ele está gargalhando, gargalhando muito, o queme deixa bastante furiosa.— Drogas? — pergunta ele durante o ataque derisos. — Acha que estou usando drogas? —Continua rindo até perceber que não estou achandonenhuma graça. Após um tempo ele para, inspirafundo, estende o braço por cima da mesa e seguraminha mão. — Não uso drogas, Sky. Juro. Não seide onde tirou isso, mas juro que não.— Então o que diabos há de errado com você?Sua expressão fica séria com a pergunta, e elesolta minha mão.— Dá para ser um pouco menos vaga? — Eleencosta-se na cadeira e cruza os braços.Dou de ombros.— Claro. O que aconteceu entre nós e por queestá agindo como se nada tivesse acontecido?Seu cotovelo está apoiado na mesa, e ele baixa oolhar para o braço. Lentamente, percorre cada letrada tatuagem com os dedos, pensativo. Sei que osilêncio não é considerado um som, mas, nessemomento, o silêncio entre nós é o som mais alto domundo. Ele tira o braço da mesa e olha para mim.— Não queria desapontá-la, Sky. Desaponteitodas as pessoas que me amaram na vida e, depoisdaquele dia no almoço, soube que também a tinhadesapontado. Então... fui embora antes que pudessecomeçar a me amar. Senão qualquer esforço quefizesse para tentar não desapontá-la seria inútil.As palavras estão cheias de desculpa,arrependimento e tristeza, mas ainda assim ele não écapaz de se desculpar. Ele exagerou, e o ciúme faloumais alto, mas se simplesmente tivesse dito duaspalavras, isso teria nos poupado desse mês inteiro desofrimento emocional. Estou balançando a cabeça,

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porque não consigo entender. Não entendo por queele não foi capaz de dizer me desculpe.— Por que você não conseguiu dizer, Holder?Por que não foi capaz de pedir desculpas?Ele se inclina para a frente por cima da mesa esegura minha mão, olhando-me bem nos olhos.— Não vou pedir desculpas... porque não queroque me perdoe.A tristeza em seus olhos deve estar espelhando aminha, e não quero que ele a veja. Não quero queme veja triste, então fecho os olhos. Ele solta minhamão, e eu o escuto dar a volta na mesa até seusbraços me envolverem e ele me levantar. Ele me põeem cima da bancada para nossos olhos ficarem nomesmo nível, afasta o cabelo do meu rosto e me fazabrir os olhos outra vez. Suas sobrancelhas estãounidas, e o sofrimento em seu rosto é franco, real ede partir o coração.— Linda, fiz merda. Vacilei mais de uma vez, seidisso. Mas acredite em mim, o que aconteceunaquele dia no almoço não foi ciúme, raiva nem nadaque deva assustar você. Queria poder contar o queaconteceu, mas não posso. Um dia vou lhe contar,mas agora não posso e preciso que aceite isso. Porfavor. Não estou pedindo desculpas porque nãoquero que esqueça o que aconteceu, e você nuncadeve me perdoar por aquilo. Nunca. Nunca arranjedesculpas para o que faço, Sky.Inclina-se e me dá um beijo breve, depois seafasta e continua falando:— Disse a mim mesmo que devia ficar longe devocê, que devia deixá-la com raiva de mim, poistenho muitos problemas e ainda não estou prontopara compartilhá-los. E me esforcei ao máximo paraficar afastado, mas não consigo. Não tenho forçasuficiente para continuar negando seja lá o que existeentre nós. E ontem, no refeitório, quando você estavaabraçando Breckin e rindo com ele? Foi tão bom vêlafeliz, Sky. Mas queria tanto que fosse eu queestivesse fazendo você rir daquela maneira. Fiqueiarrasado por achar que estava pensando que não meimportava conosco, ou que aquele fim de semanacom você não foi o melhor da minha vida. Porque eume importo sim e aquele foi mesmo o melhor fim desemana de todos. Porra, foi o melhor fim de semanana história de todos os finais de semana.Meu coração está batendo loucamente, quasetão rápido quanto as palavras que saem de sua boca.Ele solta meu rosto e passa as mãos no meu cabelo,abaixando-as até minha nuca. Ele as mantém lá,

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acalma-se respirando fundo e prossegue:— Isso está me matando, Sky — diz ele, com avoz bem mais calma e baixa. — Está me matandoporque não quero passar mais nenhum dia sem quenão saiba o que sinto por você. E não estou prontopara dizer que estou apaixonado por você, pois nãoestou. Ainda não. Mas seja lá o que for isso queestou sentindo... é bem mais que gostar. É muitomais. E nas últimas semanas venho tentando entenderesse sentimento. Estava tentando entender porquenão existe palavra alguma capaz de descrevê-lo.Quero que saiba exatamente o que sinto, mas nãoexiste nenhuma maldita palavra no dicionário inteiroque descreva esse ponto entre gostar e amar, maseu preciso dessa palavra. Preciso dela porquepreciso que você me ouça dizê-la.Ele puxa meu rosto para perto de si e me beija.São beijos rápidos, mais selinhos, só que ele me beijainúmeras vezes, afastando-se após cada beijo,esperando minha reação.— Diga alguma coisa — implora ele.Estou olhando fixo em seus olhos apavorados epela primeira vez desde que nos conhecemos... achoque realmente o entendo. Todo ele. Ele não reagedessa forma porque tem cinco personalidadesdiferentes. Reage assim porque só existe um lado deDean Holder.O lado apaixonado.Ele é apaixonado pela vida, pelo amor, por suaspalavras, por Less. E não vou ficar fora dessa lista dejeito algum. A intensidade que ele transmite não éirritante... é linda. Passei tanto tempo tentandoencontrar maneiras de me sentir apática toda vez quepodia, mas ao ver o entusiasmo que há por trás deseus olhos agora... fico com vontade de sentir todasas coisas possíveis da vida. As boas, as ruins, asbonitas, as feias, o prazer, a dor. Eu quero isso.Quero começar a sentir a vida da mesma maneiraque ele. E meu primeiro passo nessa direção vai sercom esse garoto desesperado na minha frente, queestá abrindo o coração, em busca da palavraperfeita, querendo de todo jeito me ajudar a voltar asentir alguma coisa.A gamar.E, de repente, a palavra surge na minha cabeçacomo se estivesse lá o tempo inteiro, guardada entreo gostar e o amar no dicionário.— Gamar.O desespero em seus olhos se ameniza umpouco, e ele solta uma risada breve e confusa.

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— O quê? — Ele balança a cabeça, tentandoentender minha resposta.— Gamar. Se misturarmos as letras de gostar eamar, temos gamar. Você pode usar essa palavra.Ele ri novamente, mas dessa vez é uma risada dealívio. Põe os braços ao meu redor e me beija comum alívio gigantesco.— Eu gamo você, Sky — diz ele encostando emmeus lábios. — Gamo tanto você.

Sábado, 29 de setembrode 201209h20Não tenho ideia de como ele fez isso, mas eu operdoei completamente, passei a ficar encantada porele e agora não consigo parar de beijá-lo, e tudo issoaconteceu em quinze minutos. Ele com certeza sabeusar bem as palavras. Estou começando a não meincomodar com o fato de ele demorar tanto tempopara pensar nelas. Ele se afasta da minha boca esorri, passando as mãos ao redor da minha cintura.— Então, o que quer fazer no seu aniversário?— pergunta ele, tirando-me do balcão. Ele me dámais um selinho e vai até a sala onde estão suacarteira e chaves.— Não precisamos fazer nada. Não precisa meentreter só porque é meu aniversário.Ele põe as chaves no bolso da calça e olha paramim. Sua boca forma um sorriso malicioso e ele nãopara de me encarar.— O que foi? — pergunto. — Parece culpado.Ele ri e dá de ombros.— Só estava pensando em todas as maneirasque poderia entreter você se a gente ficasse por aquihoje. E é exatamente por isso que temos que sairdaqui.E é exatamente por isso que quero ficar aqui.— Podemos ir ver minha mãe — sugiro.— Sua mãe? — Ele olha para mim com cautela.— É. Ela tem uma barraca de ervas no mercadode pulgas. É onde trabalha em alguns finais desemana. Nunca a acompanho porque ela passa aliumas 14 horas e eu ficaria entediada. Mas é um dosmaiores mercados de pulga do mundo e eu semprequis dar uma olhada. Fica a apenas uma hora e meiadaqui. Lá tem bolo de funil — acrescento, tentandotornar a sugestão mais interessante.Holder vem até mim e põe os braços ao meuredor.

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— Se quer ir ao mercado de pulgas, então épara lá que vamos. Vou só passar em casa paratrocar de roupa e fazer algo que preciso fazer. Possovir buscá-la daqui a uma hora?Concordo com a cabeça. Sei que é apenas ummercado de pulgas, mas estou animada. Não sei oque Karen vai achar de eu aparecer de surpresa comHolder. Não contei nada a ela sobre ele, então mesinto meio mal por surpreendê-la assim. Mas é culpadela. Se não tivesse banido a tecnologia, eu poderialigar para avisá-la.Holder me dá mais um selinho e vai até a porta— Ei — digo, quando ele está prestes a sair. Elese vira e olha para mim. — É meu aniversário e osúltimos dois beijos que me deu foram bem ridículos.Se espera que eu passe o dia com você, sugiro quecomece a me beijar como um namorado beija a...A palavra escapa da minha boca, eimediatamente interrompo a frase. Ainda nemdiscutimos definições de nada e, por termos acabadode fazer as pazes na última meia hora, meu uso casualda palavra namorado se torna algo que o coitado doMatty teria feito comigo.— Quero dizer... — gaguejo, e depois acabodesistindo e calo a boca. Não dá para me recuperardepois dessa.Ele está virado para mim, ainda parado perto daporta. Não está sorrindo. Em vez disso, me olha comaquela expressão outra vez, com os olhos fixos nosmeus, sem falar. Ele inclina a cabeça para mim eergue as sobrancelhas demonstrando curiosidade.— Acabou de se referir a mim como seunamorado?Ele não está sorrindo por eu ter acabado de mereferir a ele como meu namorado, e, ao perceberisso, estremeço. Nossa, isso parece tão infantil.— Não — respondo com teimosia, cruzando osbraços. — Apenas garotas bregas de 14 anos fazemisso.Ele dá alguns passos na minha direção semalterar a expressão no rosto. Para a meio metro demim e imita minha postura.— Que pena. Porque quando achei que vocêtinha se referido a mim como seu namorado, fiqueimorrendo de vontade de dar o maior beijão em você.— Ele estreita os olhos, e há um jeito brincalhão emseu olhar que ameniza na mesma hora o frio na minhabarriga. Holder se vira e segue para a porta. — Vejovocê daqui a uma hora. — Então abre a porta e sevira antes de sair, passando devagar por ela,

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provocando-me com seu sorriso brincalhão e suascovinhas lambíveis.Suspiro e reviro os olhos.Ele para e encosta-se orgulhosamente nobatente.— Acho bom você dar um beijo de despedidana sua namorada — digo, sentindo-me tão bregaquanto o que acabei de falar.Seu rosto é tomado pela vitória, e ele volta paraa sala. Leva a mão até minha lombar e me puxa paraperto de si. É nosso primeiro beijo sem nada pertoda gente, e amo como ele está me protegendo com obraço apoiado em minhas costas. Os dedos alisamminha bochecha e chegam ao meu cabelo, e ele levaos lábios para perto dos meus. No entanto, não estáencarando minha boca. Está olhando bem nos meusolhos, e os seus estão cheios de alguma coisa quenão sei identificar. Não é luxúria desta vez; está maispara um olhar de gratidão.Continua me encarando sem fechar o espaço quehá entre nossas bocas. Não está me provocando nemtentando fazer com que o beije primeiro. Está apenasme olhando com gratidão e afeto, o que faz meucoração derreter feito manteiga. Minhas mãos estãonos ombros dele, então bem devagar as levo até seupescoço e seu cabelo, curtindo o que quer que sejaesse momento silencioso acontecendo entre nós. Opeito dele sobe e desce, desafiando o ritmo do meu,e seus olhos começam a observar meu rosto,analisando todas as feições. A maneira como me olhadeixa todo o meu corpo mais fraco, e me sinto gratapor saber que seu braço continua na minha cintura.Ele abaixa a testa até tocar a minha e solta umlongo suspiro, olhando para mim com uma expressãoque logo se transforma em algo que parecesofrimento. Isso me faz deslizar a mão até seu rosto,e o acaricio com os dedos, querendo que seja lá oque estiver por trás desses olhos desapareça.— Sky — diz ele, concentrando-se em mimatentamente. Ele fala isso como se depois fossedeclarar algo profundo, mas meu nome acaba sendoa única coisa que articula.Sem pressa, aproxima a boca da minha, e nossoslábios se encontram. Ele respira fundo enquantopressiona os lábios fechados nos meus, inspirandomepara dentro de si. Holder se afasta e olha outravez para meus olhos por mais vários segundos,alisando minha bochecha. Nunca fui tão saboreadaassim, é algo absolutamente lindo.Ele abaixa a cabeça de novo e apoia os lábios

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nos meus, deixando meu lábio superior entre os dele.Ele me beija com o máximo de delicadeza possível,tratando minha boca como se ela pudesse sequebrar. Abro os lábios e permito que deixe o beijomais intenso, o que ele faz, mas mesmo assimcontinua sendo delicado. É um beijo cheio de afeto,suave, e ele fica com a mão na minha nuca e a outrano meu quadril enquanto sente e provoca devagartodas as partes da minha boca. O beijo é exatamentecomo ele — analisado e sem pressa alguma.Depois que minha mente sucumbiu ao fato de euestar toda cercada por ele, seus lábios param, e elese afasta aos poucos. Meus olhos pestanejam e soltoum suspiro que talvez tenha saído junto com aspalavras:— Meu Deus.Ver minha reação ofegante o faz abrir um sorrisoconvencido.— Esse foi nosso primeiro beijo oficial como umcasal.Fico esperando o pânico surgir, mas ele nãovem.— Casal — repito, baixinho.— Isso aí. — Ele ainda está com a mão na minhalombar e continua me apertando, enquanto observoseus olhos focados em mim. — E não se preocupe— acrescenta ele. — Eu mesmo aviso a Grayson. Seeu o vir tentando encostar em você daquele jeito, vaiter outra conversinha com meu punho.Sua mão deixa minhas costas e vai até minhabochecha.— Agora vou mesmo embora. Vejo você daquia uma hora. Gamo você. — Ele me dá um breveselinho nos lábios, afasta-se e segue em direção àporta.—Holder? — digo assim que inspiro o suficientepara conseguir falar. — Como assim outraconversinha? Você e Grayson já brigaram antes?Holder fica inexpressivo, apertando os lábios, efaz que sim com a cabeça de forma bem sutil.— Já lhe disse. Ele não é boa pessoa. — Aporta se fecha quando ele sai e me deixa com maisperguntas ainda. Mas o que há de novo nisso?Decido não tomar banho para poder ligar paraSix. Tenho muitas coisas para contar. Corro até meuquarto e saio pela janela, deslizando em seguida peladela, e entro em seu quarto. Pego o telefone ao ladoda cama e meu celular para ver a mensagem que elaenviou do número internacional. Quando começo adiscar, recebo uma mensagem de Holder.

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Não estou com a menor vontade de passar o dia comvocê. Acho que não vai ser nada divertido. E tambémesse seu vestido fica horroroso em você, mas emhipótese alguma deve trocar de roupa.

Sorrio. Droga, realmente gamo esse casoperdido.Disco o número de Six e deito em sua cama. Elaresponde meio grogue no terceiro toque.— Oi — digo. — Estava dormindo?Consigo escutá-la bocejando.— Claro que não. Mas você precisa começar alevar em consideração o fuso horário.Eu rio.— Six? Está de tarde aí. Mesmo se eu levasseem consideração o fuso, isso não ia fazer diferençapara você.— Tive uma manhã difícil — diz ela na defensiva.— Sinto falta da sua cara. O que aconteceu?— Não muita coisa.— Está mentindo. Parece irritantemente feliz.Aposto que você e Holder já se resolveram emrelação ao que aconteceu naquele dia no colégio, nãoé?— Pois é. E você é a primeira a saber que eu,Linden Sky Davis, sou agora uma mulhercomprometida.Ela solta um gemido.— Não entendo por que alguém se submeteria aesse tipo de sofrimento. Mas fico feliz por você.— Obri... — Estava prestes a dizer obrigada,mas minhas palavras foram interrompidas por um:— Meu Deus! — disse Six bem alto.— O que foi?— Eu me esqueci. É seu aniversário, caramba, eeu me esqueci! Feliz aniversário, Sky, e puta merda,sou a pior melhor amiga do mundo.— Tudo bem. — Eu rio. — Fico até feliz quetenha esquecido. Você sabe que odeio presentes,surpresas e tudo o que tem a ver com aniversários.— Ah, espere. Acabei de lembrar o quanto souincrivelmente legal. Dê uma olhada atrás de suacômoda.Reviro os olhos.— Era de se imaginar.— E diga para seu novo namorado comprar osminutos dele, porra.— Pode deixar. Tenho de ir, sua mãe vai surtarquando chegar a conta telefônica.— Pois é, não é... Ela devia ser mais conectadaà Terra como sua mãe.Acho graça.

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— Amo você, Six. Cuide-se, OK?— Também amo você. E, Sky?— Oi?— Você parece feliz. Fico feliz por você estarfeliz.Sorrio, e a ligação chega ao fim. Volto para meuquarto e, por mais que odeie presentes, sou humanae curiosa por natureza. Vou logo até minha cômoda eolho atrás dela. No chão há uma caixa embrulhada,então me abaixo e a pego. Vou até a cama, me sentoe abro a tampa. É uma caixa cheia de Snickers.Caramba, como eu amo Six.

Sábado, 29 de setembrode 201210h25Estou em pé perto da janela, esperando impaciente,quando Holder finalmente para o carro em frente àminha casa. Saio pela porta e a tranco, me virandoem seguida para o veículo e acabo ficandoparalisada. Ele não está sozinho. A porta do caronase abre, e um cara sai lá de dentro. Quando ele sevira, tenho certeza de que a expressão no meu rostoé algo entre OMG e PQP. Estou aprendendo.Breckin está segurando a porta do carona comum sorriso enorme no rosto.— Espero que não se incomode se eu ficar devela hoje. Meu segundo melhor amigo do mundointeiro me convidou para vir.Chego até a porta do carona, confusa pracaramba. Breckin espera até eu entrar, abre a portade trás e entra também. Eu me inclino para a frente eviro a cabeça para Holder, que está gargalhandocomo se tivesse acabado de contar o final de umapiada muito engraçada. Uma piada que não escutei.— Será que um de vocês pode me explicar oque diabos está acontecendo? — pergunto.Holder segura minha mão e a leva até seuslábios, beijando os nós dos dedos.— Vou deixar Breckin explicar. Ele fala maisrápido, afinal de contas.Eu me viro no banco enquanto Holder começa adar ré. Ergo a sobrancelha para Breckin.Ele me lança um olhar nítido de culpa.— Eu meio que estava mantendo uma aliançadupla nessas duas últimas semanas — diz ele umpouco encabulado.Balanço a cabeça, tentando assimilar suaconfissão. Fico olhando de um para o outro.

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— Duas semanas? Vocês têm conversado háduas semanas? Sem mim? Por que não mecontaram?— Eu tive de prometer que não ia contar nada— revela Breckin.— Mas...— Vire-se e ponha o cinto — diz Holder paramim.Fulmino-o com o olhar.— Espere um pouco. Estou tentando entenderpor que você fez as pazes com Breckin duassemanas atrás e esperou até hoje para ficar de bemcomigo.Ele olha para mim e depois dirige o olhar para arua à sua frente.— Breckin merecia um pedido de desculpas. Agifeito um babaca naquele dia.— E eu não merecia um?Ele olha para mim imediatamente desta vez.— Não — diz ele firme, voltando a olhar para arua. — Você não merece palavras, Sky. Mereceações.Fico encarando-o, imaginando quanto tempo eleficou acordado durante a noite para formar essa fraseperfeita. Ele olha de volta para mim, solta minha mãoe faz cócegas na parte da frente da minha coxa.— Deixe de ser tão séria. Seu namorado e seumelhor amigo do mundo inteiro estão levando vocêpara um mercado de pulgas.Eu rio e dou um tapa para afastar sua mão.— Como posso ficar feliz se se infiltraram naminha aliança? Vocês dois vão ter de me bajular pracaramba hoje.Breckin apoia o queixo no topo do encosto domeu banco e olha para mim.— Acho que fui eu quem mais sofreu com essaexperiência terrível. Seu namorado arruinou minhasduas últimas sextas se lamentando e reclamandosobre o quanto queria você, mas como não queriadesapontá-la e blá-blá-blá. Foi difícil não reclamarcom você sobre isso todos os dias no almoço.Holder volta a cabeça para Breckin.— Bem, agora vocês dois podem reclamar oquanto quiserem de mim. A vida voltou a ser comodevia. — Ele desliza os dedos entre os meus e apertaminha mão. Sinto um formigamento na pele e não seise é por causa do toque ou das palavras dele.— Ainda acho que mereço ser mimada hoje —digo para os dois. — Quero que comprem para mimtudo o que eu quiser no mercado de pulgas. Não me

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importo com o preço nem com o tamanho ou com opeso.—Isso aí — diz Breckin.Solto um gemido.— Ai, meu Deus, Holder já está contagiandovocê. Breckin ri, estende o braço por cima do meubanco, segura minhas mãos e depois me puxa nadireção dele.— Deve ser mesmo, pois estou louco para meaconchegar com você aqui no banco de trás — dizBreckin.— Não estou contagiando você tanto assim seacha que tudo o que eu faria é me aconchegar comela no banco de trás — afirma Holder. Ele dá umtapa no meu bumbum logo antes de eu cair no bancode trás com Breckin.— Não pode estar falando sério — diz Holder,segurando o saleiro que acabei de colocar nas mãosdele.Estamos andando pelo mercado de pulgas hámais de uma hora e continuo firme com meu plano.Eles estão comprando tudo que peço. Fui enganadae vou precisar de muitas compras aleatórias para mesentir melhor.Olho para a estatueta em suas mãos e balanço acabeça.— Tem razão. Eu devia comprar o conjunto.Pego o pimenteiro e o entrego a ele. Não que eurealmente queira essas coisas. Não entendo comoqualquer pessoa pode querer isso. Quem é que fazpimenteiros e saleiros de cerâmica no formato deintestinos delgado e grosso?— Aposto que pertenciam a algum médico —diz Breckin, admirando-os comigo. Enfio a mão nobolso de Holder, tiro a carteira dele e me viro para ohomem atrás da mesa.— Quanto custa?Ele dá de ombros.— Não sei — responde ele sem entusiasmo. —Um dólar cada um?— Que tal um dólar pelos dois? — pergunto. Elepega o dólar das minhas mãos e concorda com acabeça.— Bela barganha — diz Holder, balançando acabeça. — Acho bom ver isso na mesa da suacozinha da próxima vez que visitá-la.— Eca, não — digo. — Quem é que vai quererolhar para intestinos durante a refeição?Desvendamos mais alguns pavilhões atéchegarmos ao de Karen e Jack. Quando alcançamos

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a barraca, Karen fica espantada, observando Breckine Holder.— Oi — digo, estendendo as mãos. —Surpresa!Jack levanta-se em um salto e dá a volta nabarraca, me dando um breve abraço. Karen faz omesmo e fica me encarando com cautela o tempointeiro.— Relaxe — digo, após perceber que estáolhando preocupada para Holder e Breckin. —Nenhum dos dois vai me engravidar esse fim desemana.Ela ri e finalmente me abraça.— Feliz aniversário. — Ela se afasta e seusinstintos maternais vêm à tona com quinze segundosde atraso. — Espere. Por que está aqui? Está tudobem? Você está bem? A casa está bem?— Está tudo bem. Estou bem. Só fiqueientediada e convidei Holder para vir fazer comprascomigo.Holder está atrás de mim, apresentando-se paraJack. Breckin passa por mim e abraça Karen.— Eu me chamo Breckin — diz ele. — Estounuma aliança com sua filha para dominar o sistema docolégio público e todos os seus lacaios.— Estava — esclareço, olhando para ele. —Estava numa aliança comigo.— Já gostei de você — diz Karen, sorrindo paraBreckin. Ela olha para Holder e aperta sua mão. —Holder — cumprimenta ela com educação. — Comovai?— Bem — responde ele, com cautela.Olho para ele, que parece constrangido aoextremo. Não sei se é pelo pimenteiro e saleiro queestá segurando ou porque encontrar Karen agora édiferente pois está namorando a filha dela. Tentodisfarçar me virando e perguntando a Karen se elatem alguma sacola que possamos usar para guardarnossas coisas. Ela enfia o braço debaixo da mesa eestende uma sacola para Holder. Ele coloca opimenteiro e o saleiro ali dentro enquanto Karen olhapara a bolsa e depois para mim, interrogativamente.— Nem pergunte — digo.Pego a sacola com ela e a abro para que Breckinpossa guardar a outra compra. É uma imagem dapalavra “derretido”, escrita com caneta preta em umpapel branco, numa moldura de madeira. Custou 25centavos e não faz o menor sentido, então claro quetive de comprar.Alguns clientes aproximam-se da mesa, então

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Jack e Karen a circundam e passam a ajudá-los. Eume viro e vejo que Holder está encarando os doiscom um olhar intenso. Não o vejo com essaexpressão desde aquele dia no refeitório. Fico umpouco aborrecida com isso, então ando até ele edeslizo um braço pelas suas costas, querendodesesperadamente que aquele olhar desapareça.— Ei — digo, fazendo-o prestar atenção emmim. — Você está bem?Ele faz que sim com a cabeça e beija minha testa.— Estou bem — responde ele, pondo um braçoao redor da minha cintura e abrindo um sorriso parame tranquilizar. — Você me prometeu bolo de funil— diz ele, acariciando minha bochecha.Faço que sim com a cabeça, aliviada por ver queele está bem. Não quero mesmo que Holder tenhaum de seus momentos intensos logo agora, bem nafrente de Karen. Não sei se ela vai compreender suamaneira apaixonada de viver; ainda estou começandoa entender.— Bolo de funil? — pergunta Breckin. —Alguém falou em bolo de funil?Eu me viro, e o cliente de Karen foi embora. Elaestá imóvel ao lado da mesa, observando o braço deHolder ao redor da minha cintura. Parece estarpálida.Por que todo mundo está com esses olharesestranhos hoje, hein?— Você está bem? — pergunto a ela. Não écomo se ela nunca tivesse me visto com umnamorado antes. Matt praticamente morou na nossacasa durante todo o mês em que namoramos.Ela olha para mim e lança um rápido olhar paraHolder.— Só não sabia que estavam namorando.— Pois é. Sobre isso... — digo. — Até teriacontado para você, mas só começamos a namorar háquatro horas.— Ah — diz ela. — Bem... formam um belocasal. Será que posso conversar com você? — Elaaponta a cabeça para trás, indicando que querprivacidade. Afasto o braço de Holder e aacompanho até uma distância onde ninguém nosescute. Ela se vira e balança a cabeça.— Não sei o que pensar sobre isso — sussurraela.— Pensar sobre quê? Tenho 18 anos e estounamorando. Não é nada de mais.Ela suspira.— Eu sei, é que... e o que vai acontecer hoje à

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noite? Quando eu não estiver em casa? Como vousaber que ele não vai passar a noite toda com você?Dou de ombros.— Não tem como saber. Precisa confiar em mim— digo, me sentindo culpada imediatamente pelamentira. Se ela soubesse que ele já passou a vésperacomigo, acho que meu namorado não estaria maisvivo.—É que é estranho, Sky. Nunca chegamos adiscutir as regras para os garotos quando não estoupresente. — Ela parece estar muito nervosa, entãofaço o que posso para tranquilizá-la.— Mãe? Confie em mim. Nós literalmenteacabamos de decidir que estamos namorando faz sóalgumas horas. De jeito algum vai acontecer algumacoisa entre nós que você tem medo de que aconteça.Ele vai embora à meia-noite, prometo.Ela balança a cabeça de maneira não muitoconvincente.— É só que... não sei, não. Ver vocês doisabraçados agora? A maneira como estavaminteragindo? Não é como um casal recente se olha,Sky. Fiquei surpresa porque achei que estava saindocom ele há um tempo e só não tinha me contado.Quero que seja capaz de conversar comigo sobrequalquer coisa.Seguro a mão dela e a aperto.— Eu sei, mãe. E, acredite em mim, se hoje nãotivéssemos vindo para cá juntos, amanhã eu teria lhecontado tudo sobre ele. Contaria tudo até você secansar de ouvir. Não estou escondendo nada, OK?Ela sorri e me dá um breve abraço.— Ainda quero que me conte tudo amanhã, atéme cansar de ouvir.

Sábado, 29 de setembrode 201222h15— Sky, acorde.Ergo a cabeça do braço de Breckin e enxugo ababa na lateral de minha bochecha. Ele olha para acamisa molhada e faz uma careta.— Foi mal. — Eu rio. — Não devia ter ficadotão confortável.Chegamos à sua casa após passarmos oito horasandando e olhando tranqueiras. Holder e Breckinacabaram participando da brincadeira, e todos nósficamos um pouco competitivos, vendo quemconseguia encontrar o objeto mais sem sentido. Acho

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que meu pimenteiro e saleiro em forma de intestinoainda ganham, mas Breckin chegou perto com oquadro de veludo de um cachorrinho montado nascostas de um unicórnio.— Não se esqueça do seu quadro — digo,quando ele sai do carro. Ele se curva, pega o quadrono chão e beija minha bochecha.— Até segunda — diz ele para mim, e então olhapara Holder. — Nem pense em se sentar na minhacarteira na primeira aula só porque ela é suanamorada.Holder ri.— Não sou eu que levo café para ela todo dia.Ela nunca me deixaria destituir você.Breckin fecha a porta, e Holder espera ele entrarem casa antes de ir embora.— O que acha que está fazendo aí atrás? —pergunta ele, sorrindo para mim pelo retrovisor. —Venha para cá.Balanço a cabeça e continuo parada.— Meio que gosto de ter um chofer.Ele para o carro, solta o cinto e se vira.— Venha aqui — diz ele, alcançando meusbraços. Ele segura meus pulsos e me puxa para afrente até nossos rostos ficarem a apenas centímetrosde distância. Então leva a mão até meu rosto ebelisca minhas bochechas como se eu fosse umacriança. E dá um selinho barulhento nos meus lábiosdistorcidos. — Eu me diverti hoje. Você é meioestranha.Ergo a sobrancelha, sem saber se foi um elogioou não.— Valeu?— Gosto de estranheza. Agora venha logo paraa frente antes que eu decida ir para o banco de trás enão me aconchegar com você. — Ele puxa meubraço, vou para o banco da frente e coloco o cinto.— O que vamos fazer agora? Vamos para suacasa? — pergunto.Ele balança a cabeça.— Não. Temos mais uma parada.— Minha casa?Ele balança a cabeça novamente.— Você vai ver.Vamos dirigindo até os arredores da cidade.Reconheço que estamos no aeroporto local quandopara o carro no acostamento. Ele sai sem dizer nadae dá a volta para abrir minha porta.— Chegamos — diz ele, acenando a mão para apista no campo à nossa frente.

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— Holder, esse é o menor aeroporto num raiode 300 quilômetros. Se está querendo ver um aviãopousar, vamos ter de passar dois dias aqui.Ele puxa minha mão e me conduz por umapequena colina.— Não estamos aqui para ver os aviões. — Elecontinua andando até chegar à grade que cerca oaeroporto. Ele a balança para conferir se está firme esegura minha mão outra vez. — Tire os sapatos,assim fica mais fácil — diz ele. Olho para a grade edepois para ele.— Está achando que vou subir nessa coisa?— Bem — diz ele, olhando para a grade. —Posso muito bem erguê-la e jogá-la por cima dela,mas talvez isso doa um pouco mais.— Estou de vestido! Você não me avisou queíamos pular grades hoje. Além do mais, isso é ilegal.Holder mexe a cabeça e me empurra para agrade.—Não é ilegal quando meu padrasto administrao aeroporto. E não, não contei que íamos pulargrades porque não queria que trocasse o vestido.Seguro na grade e começo a testá-la quando,com um único movimento rápido, ele põe as mãos naminha cintura e me ergue, já me fazendo passar porcima dela.— Caramba, Holder! — grito, pulando do outrolado.—Eu sei. Fui rápido demais. Eu me esqueci dedar uma apalpada. — Ele ergue-se na grade, passa aperna por cima e salta. — Venha — diz ele,segurando minha mão e me puxando para a frente.Andamos até a pista. Paro e dou uma olhada nocomprimento gigante. Nunca andei de avião e só depensar nisso eu meio que fico apavorada.Especialmente quando vejo que tem um lago no fimda pista.— Algum avião já pousou naquele lago?— Só um — afirma ele, me puxando. — Masera um pequeno Cessna, e o piloto estava drogado.Ele ficou bem, mas o avião continua no fundo dolago. — Ele se senta na pista e puxa minha mão,querendo que eu faça o mesmo.— O que vamos fazer? — pergunto, ajeitando ovestido e tirando os sapatos.— Shh — diz ele. — Deite-se e olhe para cima.Encosto a cabeça no chão e ergo o olhar, emseguida solto uma arfada. Em cima de mim, em todasas direções, há um cobertor com as estrelas maisbrilhantes que já vi na vida.

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— Uau — digo. — No meu quintal elas não sãoassim.—Eu sei. Por isso trouxe você aqui. — Ele põeo braço entre nós e enrosca o dedo mindinho nomeu.Ficamos sentados por um bom tempo sem falarnada, mas é um silêncio confortável. De vez emquando, ele ergue o mindinho e alisa a lateral daminha mão, mas isso é tudo. Ficamos lado a lado, emeu vestido é de acesso razoavelmente fácil, mas elenem sequer tenta me beijar. Fica claro que não metrouxe aqui para o meio do nada só para se agarrarcomigo. Ele me trouxe aqui para compartilhar essaexperiência comigo. Mais uma coisa pela qual éapaixonado.Tem tanta coisa sobre Holder que mesurpreende, especialmente as coisas das últimas 24horas. Ainda não sei direito o que o chateou tanto norefeitório naquele dia, mas ele parece saber muitobem o que fez e que aquilo nunca mais vai se repetir.E tudo que posso fazer agora é confiar e deixar asituação em suas mãos. Só espero que ele saiba queé toda a confiança que me restou. Tenho certezaabsoluta de que, se me magoar outra vez como jáaconteceu, vai ser a última vez que me magoa navida.Inclino a cabeça em sua direção e ficoobservando-o encarar o céu. Suas sobrancelhasestão unidas, e é óbvio que está pensando em algo.Parece que ele sempre está pensando em algumacoisa, e fico curiosa para saber se algum dia sereicapaz de atravessar essa barreira. Ainda há tantascoisas que quero saber sobre seu passado, sua irmã,sua família. Mas mencionar isso enquanto ele está tãoconcentrado o tiraria de onde quer que sua menteesteja agora. E não quero fazer isso. Sei o local exatoonde está e o que está fazendo enquanto olha para oespaço ao seu redor. Sei porque é exatamente o quefaço quando fico olhando para as estrelas no teto domeu quarto.Fico observando-o por um bom tempo, depoisdesvio o olhar de volta para o céu e começo a meentregar a meus próprios pensamentos. Então nessemomento ele interrompe o silêncio com uma perguntaque surge do nada.— Você teve uma vida boa? — pergunta elebaixinho.Fico pensando na pergunta, mas em boa partepor querer saber no que ele estava pensando ao meperguntar isso. Será que estava mesmo pensando na

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minha vida ou será que era na dele?— Sim — respondo com honestidade. — Tive,sim.Ele suspira pesadamente e segura toda a minhamão.—Que bom.Não falamos mais nada até meia hora depois,quando diz que está pronto para ir embora.Chegamos à minha casa alguns minutos antes dameia-noite. Nós dois saímos do carro, ele pega assacolas com as compras aleatórias e me acompanhaaté a porta. Mas então para e põe as bolsas no chão.— Não vou entrar — afirma ele, pondo as mãosnos bolsos.— Por que não? Você é um vampiro? Precisa depermissão para entrar?Ele sorri.— Só acho que não devia ficar.Vou até ele, coloco os braços ao seu redor e lhedou um beijo no queixo.— Por que não? Está cansado? Podemos nosdeitar, sei que mal dormiu ontem. — Não queromesmo que vá embora. Dormi melhor em seusbraços que em qualquer outra noite.Ele reage ao meu abraço pondo os braços aoredor dos meus ombros e me puxando para seupeito.—Não posso — diz ele. — São várias coisas,na verdade. O fato de que minha mãe vai me encherde perguntas quando eu chegar em casa, querendosaber por onde ando desde ontem à noite. Porqueouvi você prometer à sua mãe que eu iria emboraantes da meia-noite. E também porque passei o diainteiro vendo você andando por aí com esse vestidoe não consegui parar de pensar no que tem embaixodele.Ele leva a mão até meu rosto e fica encarandominha boca. Suas pálpebras ficam pesadas, e elecomeça a sussurrar:— Sem falar nesses lábios — diz ele. — Vocênão tem ideia do quanto foi difícil prestar atenção emcada palavra que você disse hoje, pois eu sóconseguia pensar no quanto são macios. No quanto ogosto é incrível. No quanto se encaixam comperfeição nos meus. — Ele se inclina, me beija deleve e se afasta no instante em que começo a mederreter em cima dele. — E esse vestido — continuaele, passando a mão pelas minhas costas edeslizando-a delicadamente por cima do meu quadrile pela parte da frente da minha coxa. Estremeço

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debaixo das pontas dos dedos dele. — Esse vestidoé o principal motivo pelo qual não vou entrar nessacasa.Pela maneira como meu corpo está reagindo,concordo de imediato com sua decisão de ir embora.Por mais que eu adore ficar com ele e adore beijá-lo,já consigo perceber que eu realmente não conseguiriame conter, e acho que ainda não estou pronta paratermos essa primeira vez.Suspiro, mas tenho vontade de gemer. Por maisque concorde com o que ele está dizendo, meucorpo está totalmente furioso por eu não estarimplorando para ele ficar. É estranho como passar odia com Holder só aumentou minha necessidade deficar perto dele o tempo todo.— Isso é normal? — pergunto, olhando-o nosolhos, que estão cheios de desejo de uma maneiraque nunca vi. Sei por que ele está indo embora, poisestá claro que também está desejando essa primeiravez.— O que é normal?Pressiono a cabeça em seu peito para evitar terde olhar para ele enquanto falo. Às vezes digo coisasque me deixam envergonhada, mas preciso dizê-lasmesmo assim.— O que nós sentimos um pelo outro é normal?Não nos conhecemos há tanto tempo assim. A maiorparte desse tempo passamos nos evitando. Mas nãosei, é que parece diferente com você. Acho quequando a maioria das pessoas namora, os primeirosmeses servem para construir uma ligação entre ocasal. — Ergo a cabeça do peito dele para olhá-lo.— Sinto como se eu tivesse isso com você desde oinstante em que nos conhecemos. Com a gente tudoé tão natural. Parece que já chegamos a esse nível, eque agora estamos tentando cumprir com essespassos que vêm antes. Como se estivéssemostentando nos conhecer novamente, fazendo tudomais devagar. Não acha estranho?Ele afasta o cabelo do meu rosto e olha para mimcom uma expressão muito diferente. A luxúria e odesejo foram substituídos por uma angústia, e, ao verisso, sinto um aperto no coração.— Seja lá o que isso for, não quero ficaranalisando. Também não quero que fique fazendoisso, está bem? Vamos apenas agradecer por eufinalmente ter encontrado você.Acho graça da última frase.— Você diz isso como se estivesse meprocurando antes.Ele franze a testa, unindo as sobrancelhas, e põe

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as mãos nas laterais da minha cabeça, inclinando meurosto para mais perto do dele.— Passei a vida inteira procurando você.Sua expressão está firme e determinada, e eleune nossas bocas assim que termina de dizer a frase.Ele me beija com força e com mais paixão do que fezo dia inteiro. Estou prestes a puxá-lo para dentro decasa comigo, mas ele me solta e se afasta quandoseguro seu cabelo.— Gamo você — diz ele, forçando-se a desceros degraus. — Até segunda.— Gamo você também.Não pergunto por que não vou vê-lo amanhã,pois sei que vai ser bom ter um tempo para processaras últimas 24 horas. Vai ser bom para Karentambém, porque estou mesmo precisando atualizá-lasobre minha nova vida amorosa. Ou melhor, minhanova vida gamorosa.

Segunda-feira, 22 deoutubro de 201212h05Faz quase um mês que eu e Holder assumimos onamoro. Até o momento, não descobri nele nenhumaidiossincrasia que me irrite. Pelo contrário, seuspequenos hábitos só me deixam ainda maisencantada. Feito a maneira que ele me olha, como seestivesse me estudando, e a forma como estala amandíbula quando está irritado, e como lambe oslábios toda vez que ri. Na verdade, isso é até umpouco sensual. E não vou nem mencionar ascovinhas.Por sorte, estou com o mesmo Holder desde anoite em que ele entrou pela janela e se deitou emminha cama. Não vi nem sombra do Holdertemperamental e instável desde então. Estamos atéficando cada vez mais sintonizados conformepassamos mais tempo juntos, e sinto que agora seiinterpretá-lo quase tão bem quanto ele me interpreta.Com Karen em casa todos os finais de semana,não ficamos muito a sós. Passamos a maior parte donosso tempo juntos no colégio ou em encontros nosfins de semana. Por alguma razão, ele não se sente àvontade em ir ao meu quarto se Karen está em casa,e sempre inventa desculpas quando sugiro que agente vá para sua casa. Então temos assistido amuitos filmes. Também saímos algumas vezes comBreckin e o novo namorado, Max.Holder e eu temos nos divertido muito juntos,

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mas não temos nos divertido tanto juntos. Estamoscomeçando a ficar um pouco frustrados com a faltade lugares decentes para nos agarrar. O carro dele émeio pequeno, mas demos um jeito. Acho que tantoeu quanto ele estamos contando as horas para Karenviajar no próximo fim de semana.Eu me sento à mesa com Breckin e Max, esperandoque Holder chegue com nossas bandejas. Max eBreckin se conheceram numa galeria de arte local háumas duas semanas, sem nem saber que estudavamno mesmo colégio. Fico feliz por Breckin porquecomeçava a ter a impressão de que ele estavaachando que só ficava de vela, quando na verdadenão era nada disso. Adoro a companhia dele, masvê-lo focar a atenção no próprio namoro facilitoumuito as coisas.— Você e Holder já têm planos para essesábado? — pergunta Max, quando me sento.— Acho que não. Por quê?— Tem uma galeria de arte no centro que vaiexpor um dos meus quadros na exposição de artelocal. Quero vocês dois lá.— Parece legal — diz Holder, sentando-se aomeu lado. — Que quadro vai expor?Max dá de ombros.— Ainda não sei. Estou tentando decidir entredois.Breckin revira os olhos.— Sabe qual quadro deve escolher e não énenhum desses dois.Max olha para Breckin.— Moramos no leste do Texas. Duvido que umquadro gay vá ser bem recebido por aqui.Holder olha de um para o outro.— E quem é que se importa com o que aspessoas daqui pensam?O sorriso de Max desaparece, e ele ergue ogarfo.—Meus pais — responde ele.— Seus pais sabem que você é gay? —pergunto.Ele faz que sim com a cabeça.— Sabem. Eles me apoiam bastante, sim, mascontinuam torcendo para que nenhum amigo da igrejadescubra. Não querem que as pessoas sintam penapor eles terem um filho que está condenado aoInferno.Balanço a cabeça.— Se Deus é o tipo de cara que condenariaalguém ao Inferno só por amar alguém, então não

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quero passar a eternidade com ele.Breckin ri.— Aposto que tem bolo de funil no Inferno.— Que horas vai ser no sábado? — perguntaHolder. — Nós vamos, mas Sky e eu temos planospara depois.— Acaba às 21 horas — diz Breckin.Olho para Holder.— Nós temos planos? O que vamos fazer?Ele sorri para mim, põe o braço ao redor do meuombro e suspira no meu ouvido.— Minha mãe vai sair no sábado à noite. Queromostrar meu quarto para você.Os pelos do meu braço ficam arrepiados, e, derepente, começo a imaginar coisas que sãoimpróprias demais para o refeitório do colégio.— Não quero nem saber o que ele disse parafazer você corar assim — diz Breckin, rindo.Holder afasta o braço e põe a mão na minhaperna. Dou uma mordida na comida e olho paraMax.—Como devemos nos vestir para a exposição?Estava pensando em usar um vestido, mas não émuito formal. — Holder aperta minha coxa, e eusorrio, sabendo exatamente o tipo de pensamentoque acabei de colocar em sua cabeça.Max está começando a me responder quandoum garoto numa mesa atrás da nossa diz algo paraHolder que não consigo escutar. Seja lá o que elefalou, foi algo que chamou de imediato a atenção deHolder, fazendo-o se virar por completo, ficando defrente para o garoto.— Pode repetir o que disse? — perguntaHolder, fulminando-o com o olhar.Não me viro. Prefiro não ver quem é o garotoresponsável por trazer o Holder temperamental devolta em menos de dois segundos.— Talvez precise falar mais claramente — diz ogaroto, erguendo a voz. — Eu disse que se não écapaz de espancá-los até a morte, então é melhor sejuntar a eles.Holder não reage de imediato, o que é bom.Assim tenho tempo de segurar seu rosto e prendersua atenção em mim.— Holder — digo, firme. — Ignore. Por favor.— Isso aí, ignore — diz Breckin. — Ele só estátentando encher seu saco. Max e eu ouvimos essasmerdas o tempo inteiro, já estamos acostumados.Holder tensiona o queixo, inspirando devagarpelo nariz. A expressão em seus olhos se acalma aos

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poucos, e ele segura minha mão. Ele se vira semolhar de novo para o rapaz.— Estou bem — diz ele, querendo maisconvencer a si próprio do que a nós. — Estou bem.Assim que Holder se vira para a frente, asrisadas da mesa atrás de nós se espalham pelorefeitório. Os ombros de Holder se retesam, entãoponho a mão na sua perna e a aperto, desejando quecontinue calmo.— Que legal — diz o cara atrás de nós. —Deixe a vagabunda convencê-lo a não defender seusnovos amigos. Acho que não são tão importantespara você quanto Lesslie era, caso contrário euestaria tão ferrado quanto Jake depois da surra quevocê deu nele no ano passado.Preciso de toda a minha força para não pular dobanco e bater no garoto com minhas próprias mãos,então sei que o autocontrole de Holder já se esgotoupor completo. Ele começa a se virar com o rostoinexpressivo. Nunca o vi tão sério — é apavorante.Sei que algo terrível está prestes a acontecer, e nãofaço ideia de como evitar. Antes que ele seja capazde pular para o outro lado da mesa e encher o carade porrada, faço algo que choca até a mim mesma.Dou o maior tapão na cara de Holder. Na mesmahora, ele leva a mão à bochecha e olha para mim,completamente perplexo. Mas está olhando paramim, o que é bom.— Corredor — digo com determinação, assimque consigo sua atenção. Eu o empurro até ele sairdo banco e mantenho as mãos em suas costas, emseguida continuo até que comece a andar em direçãoà saída do refeitório. Quando chegamos ao corredor,ele esmurra o armário mais próximo, me fazendosoltar o ar bem alto. A força de seu punho deixa aporta bem amassada, e fico aliviada por não ter sidoo garoto do refeitório o alvo dessa força.Holder está enfurecido. Seu rosto está vermelho,e nunca o vi tão transtornado antes. Ele começa aandar de um lado para o outro no corredor, parandopara encarar as portas do refeitório. Não estouconvencida de que ele não vai voltar, então decidolevá-lo para ainda mais longe.— Vamos para seu carro.Empurro-o em direção à saída, e ele me deixafazer isso. Andamos até o carro, e ele passa o tempointeiro fumegando em silêncio. Ele se senta no bancodo motorista, e eu, no do carona. Nós dois fechamosas portas. Não sei se ainda está prestes a voltarcorrendo para o colégio para terminar a briga que

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aquele babaca estava tentando começar, mas voufazer tudo o que puder para mantê-lo longe até seacalmar.O que acontece em seguida não é nada do queeu estava esperando. Ele estende o braço, me puxapara perto de si com firmeza e começa a estremecerincontrolavelmente. Seus ombros estão tremendo, eele está me apertando, enterrando a cabeça no meupescoço.Está chorando.Coloco os braços ao seu redor e deixo ele meabraçar enquanto põe para fora o que quer queestivesse reprimindo. Ele me desliza para seu colo eme aperta forte. Ajeito as pernas até ficarem do seulado e o beijo de leve na têmpora, várias vezes. Elequase não está fazendo barulho, e o pouco que faz éabafado pelo meu ombro. Não faço ideia do que fezcom que se descontrolasse, mas nunca vi nada quepartisse tanto meu coração. Continuo beijando o ladoda sua cabeça, subindo e descendo as mãos pelassuas costas. Faço isso por vários minutos até elefinalmente ficar em silêncio, apesar de ainda estar mesegurando forte.— Quer conversar sobre isso? — sussurro,alisando seu cabelo.Eu me afasto, ele encosta a cabeça no apoio doassento e olha para mim. Seus olhos estão vermelhose repletos de mágoa, e por isso preciso beijá-los.Beijo cada pálpebra delicadamente, em seguida meafasto mais uma vez e espero ele falar.— Eu menti — diz ele. Suas palavras perfurammeu coração, e fico morrendo de medo do que elevai dizer. — Disse que repetiria o que fiz. Disse quedaria a maior surra em Jake de novo se tivesse aoportunidade. — Ele toca minhas bochechas com aspalmas das mãos e olha para mim desesperado. —Não faria isso. Ele não mereceu o que fiz com ele,Sky. E aquele garoto lá dentro? É o irmão mais novode Jake. Ele me odeia pelo que fiz e tem todo odireito de sentir isso. Tem todo o direito de dizerqualquer merda que quiser para mim, pois eumereço. Mereço, sim. Era essa a única razão pelaqual não queria voltar para o colégio, porque sabiaque mereceria ouvir qualquer coisa que alguémdissesse para mim. Mas não posso permitir que elefale sobre você e Breckin daquele jeito. Pode dizer amerda que quiser sobre mim ou Less, porque nósmerecemos, mas vocês, não. — Seus olhos estãodesfocados mais uma vez, e ele está sofrendoimensamente, segurando meu rosto.

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— Está tudo bem, Holder. Não precisa defenderninguém. E você não merece isso. Jake não devia terdito aquilo sobre sua irmã no ano passado, e o irmãodele não devia ter dito o que disse hoje.Ele balança a cabeça, discordando.— Jake tinha razão. Sei que ele não devia terdito aquilo, e tenho certeza de que eu não devia terencostado nenhum dedo nele, mas ele tinha razão. Oque Less fez não foi corajoso nem nobre ou valente.O que ela fez foi algo egoísta. Ela nem tentousuperar. Não pensou em mim, não pensou nos meuspais. Só estava pensando em si mesma e não deu amínima para nós. E eu a odeio por isso. Porra, aodeio por isso e estou cansado de odiá-la, Sky.Estou tão cansado de odiá-la porque isso estáacabando comigo e me transformando numa pessoaque não quero ser. Ela não merece ser odiada. Éminha culpa ela ter feito tudo aquilo. Devia terajudado, mas não ajudei. Não sabia. Eu amavaaquela garota mais do que já amei qualquer pessoa enão fazia ideia do quanto ela estava mal.Enxugo sua lágrima com o dedo e faço a únicacoisa em que consigo pensar, pois não tenho ideia doque dizer. Eu o beijo. Eu o beijo desesperadamente etento acabar com o sofrimento da única maneira quesei. Nunca tive de encarar a morte de ninguém assim,então nem tento entender pelo que está passando.Ele põe as mãos no meu cabelo e me beija com tantaforça que quase chego a sentir dor. Nós nosbeijamos por vários minutos até a tensão irdiminuindo aos poucos.Afasto meus lábios dos dele e olho bem em seusolhos.—Holder, você tem todo o direito de odiar suairmã pelo que ela fez. Mas também tem todo o direitode amá-la apesar disso. A única coisa que não tem odireito de fazer é se culpar. Nunca vai entender porque ela fez isso, então precisa parar de se recriminarpor não ter todas as respostas. Ela escolheu o queachava ser melhor, apesar de ter feito a escolhaerrada. Mas é isso que precisa lembrar... foi ela queescolheu. Não você. E não pode se culpar por nãodescobrir o que ela não lhe contou. — Eu dou umbeijo em sua testa e ergo meu olhar até o dele. —Você precisa se livrar disso. Pode manter o ódio, oamor e até a amargura, mas precisa se livrar daculpa. É isso que está acabando com você.Ele fecha os olhos e puxa minha cabeça até seuombro, expirando trêmulo. Sinto-o balançar acabeça, se acalmando. Ele beija meu cabelo, e

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ficamos abraçados em silêncio. Toda a proximidadeque pensávamos ter... não se compara a essemomento. Independentemente do que acontecerconosco nessa vida, esse momento acabou de unirparte de nossas almas. É algo que sempre teremos, e,de certa maneira, é reconfortante saber disso.Holder olha para mim e ergue a sobrancelha.— Afinal, por que você me deu um tapa na cara?Eu rio e beijo a bochecha que levou o tapa. Maldá para ver as marcas dos meus dedos agora, masainda estão lá.— Desculpe-me. É que precisava tirar você dali,e não consegui pensar em mais nada que pudessefazer. Ele sorri.— Funcionou. Não sei se qualquer outra pessoateria sido capaz de dizer ou fazer alguma coisa parame afastar daquilo. Obrigado por saber exatamentecomo lidar comigo, pois às vezes nem eu sei direito.Dou um beijo delicado nele.— Acredite em mim. Não faço ideia de comolidar com você, Holder. Vou levando uma cena decada vez.

Sexta-feira, 26 de outubrode 201215h40— Que horas acha que vai estar de volta? —pergunto.Holder está com os braços ao meu redor, eestamos encostados no meu carro. Não conseguimospassar muito tempo juntos desde o que aconteceu nocarro dele durante o almoço na segunda-feira. Aindabem que o cara que tentou começar a confusão nãofalou mais nada. Foi uma semana razoavelmentepacífica, considerando o início dramático.— Só vamos voltar bem tarde. As festas deHalloween da empresa deles costumam durarbastante. Mas amanhã você vai me ver. Se quiser,posso buscá-la na hora do almoço e assim ficamosjuntos o dia inteiro antes de irmos para a exposição.Balanço a cabeça.— Não posso. É aniversário de Jack, e vamossair para almoçar porque à noite ele trabalha. Entãová me buscar às 18 horas mesmo.— Sim, senhora — diz ele.Em seguida, me beija e abre a porta para euentrar. Dou tchau enquanto ele se afasta, e pego ocelular na mochila. Recebi uma mensagem de Six, oque me deixa feliz. Não tenho recebido minhas

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mensagens diárias como ela havia prometido. Nãoachei que fosse sentir falta delas, mas agora, que sórecebo uma a cada três dias, fico um pouco triste.Agradeça a seu namorado por finalmente tercolocado mais minutos no seu telefone. Já transoucom ele? Saudades.

Rio da franqueza dela e respondo:Não, ainda não transamos. Mas já fizemos quase todoo resto, então tenho certeza de que sua paciência vaise esgotar logo. Faça de novo essa pergunta depois deamanhã, talvez a resposta seja diferente. Muitassaudades.

Aperto enviar e fico encarando o telefone. Nãopensei se estou pronta ou não para ter essa primeiravez, mas acho que acabei de admitir para mimmesma que sim. Será que Holder não me convidoupara a casa dele para descobrir exatamente isso: seestou pronta?Dou ré, e meu telefone apita. Eu o pego, e é umamensagem de Holder.Não vá embora. Estou voltando para seu carro.

Paro o carro na vaga outra vez e abaixo a janelaquando ele se aproxima.— Oi — diz ele, inclinando-se para dentro deminha janela. Ele evita meu olhar e fica admirando,nervoso, o interior do carro. Odeio essa suaexpressão de constrangimento, pois isso sempresignifica que está prestes a dizer algo que não queroouvir. — Hum... — Ele volta a olhar para mim, e osol está brilhando bem atrás dele, destacando todasas suas belas feições. Os olhos estão bem claros eolham para os meus como se nunca mais quisessemolhar para outro lugar. — Você, hum... você acaboude me mandar uma mensagem que tenho certeza queera para Six.Ai, meu Deus, não. Na mesma hora, pego meucelular para ver se ele está falando a verdade.Infelizmente, está. Jogo o telefone no banco dopassageiro e cruzo os braços em cima do volante,enterrando o rosto nos cotovelos.— Ai, meu Deus — digo gemendo.— Olhe pra mim, Sky — instrui ele. Ignoro-o efico esperando que um buraco de minhoca apareça eme sugue de todas essas situações vergonhosas emque me meto. Sinto sua mão na minha bochecha, eele puxa meu rosto para perto. Está olhando paramim com bastante sinceridade. — Se for amanhã ouno ano que vem, posso prometer que vai ser amelhor noite da minha vida. Mas garanta que vaitomar essa decisão só por sua causa e não por maisninguém, OK? Sempre vou querer você, mas só voume permitir ficar com você quando tiver 100% de

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certeza de que me quer da mesma maneira. E nãodiga nada agora. Vou me virar e voltar para meucarro, e podemos fingir que essa conversa nuncaaconteceu. Senão acho que suas bochechas vão ficarcoradas para sempre. — Ele se inclina janela adentroe me dá um beijo rápido. — Você é linda pra cacete,sabia disso? Mas precisa mesmo aprender a mexernesse telefone. — Ele pisca para mim e vai embora.Encosto a cabeça no apoio do assento e me xingoem silêncio.Odeio a tecnologia.Passo o resto da noite fazendo o meu melhor paratirar a mensagem vergonhosa da cabeça. AjudoKaren a empacotar as coisas para o próximomercado de pulgas e depois me deito com meu ereader.Assim que o ligo, meu celular acende namesinha de cabeceira.Estou indo para sua casa agora. Sei que é tarde e quesua mãe está em casa, mas não consigo esperar atéamanhã para dar mais um beijo em você. Confira se ajanela está destrancada.

Quando termino de ler a mensagem, pulo dacama e tranco a porta do quarto, feliz por Karen terido dormir cedo, há umas duas horas. Imediatamente,vou até o banheiro, escovo os dentes e o cabelo,desligo as luzes e volto para a cama. Já passa dameia-noite, e ele nunca entrou escondido aqui comKaren em casa. Estou nervosa, mas é um nervosismoempolgante. Como não me sinto nem um poucoculpada por ele estar a caminho, tenho isso comoprova de que vou para o Inferno. Sou a pior filha detodas.Vários minutos depois, minha janela é levantada,e eu o escuto entrar. Fico tão entusiasmada ao vê-loque corro até a janela, ponho os braços ao redor deseu pescoço e pulo, fazendo com que me segureenquanto o beijo. Suas mãos seguram firme minhabunda, e ele anda até a cama, onde me solta comdelicadeza.— Bem, oi para você também — diz ele, comum sorriso enorme.Ele cambaleia um pouco, cai em cima de mim eleva os lábios até os meus. Está tentando tirar ossapatos, mas não consegue e começa a rir.— Você está bêbado? — pergunto.Ele pressiona os dedos nos meus lábios e tentaparar de rir, mas não consegue.— Não. Sim.— Muito bêbado?Ele leva a cabeça até meu pescoço e passa aboca suavemente pela minha clavícula, fazendo uma

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onda de calor atravessar meu corpo.— Bêbado o suficiente para querer fazer coisasimorais com você, mas não bêbado o bastante parafazer isso bêbado — afirma ele. — Mas bêbado osuficiente para conseguir lembrar amanhã caso fizessemesmo isso.Eu rio, confusa demais com a resposta, mas aomesmo tempo excitada demais com ela.— É por isso que veio andando até aqui? Porque bebeu?Ele balança a cabeça.— Andei até aqui porque queria um beijo deboa-noite e, felizmente, não achei minhas chaves.Mas queria muito um beijo seu, linda. Senti tanto suafalta hoje. — Ele me beija, e sua boca tem gosto delimonada.— Por que está com gosto de limonada?Ele ri.— Tudo que tinham lá eram umas bebidasfrutadas cheias de frufru. Acho que me embebedeicom bebidas frutadas cheias de frufru, feitas paramulheres. É muito triste e nada atraente, eu sei.— Bem, está com um gosto ótimo — digo,puxando sua boca para a minha, fazendo-o gemer.Ele pressiona seu corpo contra o meu, afundandomais a língua na minha boca. Assim que nossoscorpos se encontram na cama, ele se afasta e selevanta, deixando-me ofegante e sozinha no colchão.— Hora de ir — diz ele. — Já consigo ver queisso está tomando um rumo que não devia por causada bebida. Vejo você amanhã à noite.Pulo da cama e corro até ele, bloqueando ajanela antes que ele possa ir embora. Holder para naminha frente e cruza os braços.— Fique aqui — peço. — Por favor. Só fiquedeitado na cama ao meu lado. Podemos fazer umabarreira de travesseiros, e prometo não tentar seduzirvocê, porque, afinal, está bêbado. Fique só umahorinha, não quero que vá embora ainda.Na mesma hora, ele se vira e volta para a cama.— Tudo bem — diz ele simplesmente, sejogando no colchão e tirando as cobertas de baixodele.Isso foi fácil.Volto para a cama e me deito ao seu lado.Nenhum de nós faz o muro de travesseiros. Em vezdisso, jogo o braço por cima de seu peito e entrelaçominhas pernas nas dele.— Boa noite — diz ele, jogando meu cabelopara trás.

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Ele beija minha testa e fecha os olhos. Acomodoa cabeça em seu peito e escuto seu coração bater.Após alguns minutos, a respiração e o coração delese acalmam, e ele dorme. Não consigo sentir maismeu braço, então o removo com delicadeza de baixodele e me viro em silêncio. Assim que me ajeito notravesseiro, ele desliza o braço por cima da minhacintura e apoia as pernas em cima das minhas.— Amo você, Hope — murmura ele.Hum...Respire, Sky.Apenas respire.Não é tão difícil.Respire.Aperto os olhos e tento me convencer de quenão acabei de ouvir o que acho que ouvi. Mas elefalou com muita clareza. E, para ser sincera, não sei oque mais parte meu coração — se é o fato de ele terchamado o nome de outra pessoa, ou de ele ter ditoamar em vez de gamar.Tento me convencer a não rolar para longe eesmurrar seu maldito rosto. Ele está bêbado e estavameio que adormecido quando disse aquilo. Nãoposso presumir que significou alguma coisa para elequando pode muito bem ter sido só um sonho. Mas...quem diabos é Hope? E por que ele a ama?Treze anos antesEstou suando porque está quente debaixo dascobertas, mas não quero tirá-las de cima dacabeça. Sei que se a porta se abrir, não vai fazerdiferença se estou ou não embaixo das cobertas,mas me sinto mais segura assim. Ponho os dedospara fora e levanto a parte da coberta que estána frente dos meus olhos. Olho para a maçanetacomo faço todas as noites.Não gire. Não gire. Por favor, não gire.Meu quarto é sempre muito silencioso, e odeioisso. Às vezes, ouço coisas, acho que é amaçaneta girando, e meu coração começa a baterbem forte e bem rápido. Agora, só de olhar para amaçaneta, meu coração já está batendo bem fortee bem rápido, mas não consigo desviar o olhar.Não quero que ela gire. Não quero que a portaabra, não quero.Está tudo tão quieto.Tão quieto.A maçaneta não gira.Meu coração para de bater tão rápido porquea maçaneta nunca gira.

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Meus olhos ficam bem pesados, e finalmenteos fecho.Estou tão feliz por essa não ser uma dasnoites em que a maçaneta gira.Está tudo tão quieto.Tão quieto.E, de repente, não está mais, pois a maçanetagira.

Sábado, 27 de outubro de2012Algum momento no meioda madrugada— Sky.Estou me sentindo tão pesada. Tudo está tãopesado. Não gosto dessa sensação. Não tem nadafísico em cima do meu peito, mas sinto uma pressãodiferente que nunca senti antes. E uma tristeza. Umatristeza avassaladora está me consumindo, e não façoideia do motivo. Meus ombros tremem e ouçosoluços vindo de algum lugar do quarto. Quem estáchorando?Sou eu que estou chorando?— Sky, acorde.Sinto seu braço ao meu redor. Ele estápressionando a bochecha na minha e está atrás demim, apertando firme meu peito. Seguro seu pulso eafasto seu braço de cima de mim. Eu me sento nacama e dou uma olhada ao redor. Lá fora estáescuro. Não entendo. Estou chorando.Ele se senta ao meu lado e me vira para ele,passando os dedos pelos meus olhos.— Você está me assustando, linda. — Ele estáolhando para mim, preocupado.Aperto os olhos e tento recuperar o controle,pois não faço ideia do que está acontecendo e nãoconsigo respirar. Consigo me escutar chorando, masnão sou capaz de inspirar por causa disso.Olho para o relógio na cabeceira, que marca trêshoras da manhã. As coisas começam a ganhar foco,mas... por que estou chorando?— Por que está chorando? — pergunta Holder.Ele me puxa para perto, e eu o deixo fazer isso. Eume sinto segura com ele. Eu me sinto em casaquando estamos abraçados. Ele me abraça emassageia minhas costas, beijando a minha têmporade vez em quando. Fica repetindo o tempo inteiro: —Não se preocupe. — E me abraça pelo que parece

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uma eternidade.Aos poucos, o peso vai saindo do meu peito, atristeza se dissipa, e, após um tempo, não estou maischorando.Porém, estou assustada, pois é a primeira vezque algo assim acontece comigo. Nunca na minhavida senti uma tristeza tão insuportável, então como éque consegui sentir isso de forma tão real numsonho?— Você está bem? — sussurra ele.Faço que sim apoiada em seu peito.— O que aconteceu?Balanço a cabeça.— Não sei. Acho que tive um pesadelo.— Quer conversar sobre isso? — Ele acariciameu cabelo com as mãos.Nego com um gesto.— Não. Não quero lembrar.Ele me abraça por um bom tempo e beija minhatesta.—Não quero deixá-la sozinha, mas preciso irembora. Não quero criar problemas para você.Concordo com a cabeça, mas não o solto. Sintovontade de implorar para ele não me deixar sozinha,mas não quero parecer desesperada e apavorada. Aspessoas têm pesadelos o tempo inteiro; não sei porque estou reagindo assim.— Volte a dormir, Sky. Está tudo bem, foi só umpesadelo.Eu me deito novamente e fecho os olhos. Sintoseus lábios tocarem minha testa, e depois ele vaiembora.

Sábado, 27 de outubro de201220h20Abraço Breckin e Max no estacionamento da galeria.A exposição acabou, e Holder e eu vamos voltarpara a casa dele. Sei que devia estar nervosa peloque pode acontecer entre nós, mas não estou nemum pouco. Com ele, tudo parece certo. Bem, tudomenos a frase que fica se repetindo na minha cabeça.Amo você, Hope.Quero perguntar o que foi isso, mas não consigoencontrar o momento adequado. Claro que não davapara mencionar o assunto durante a exposição.Agora parece ser uma boa hora, mas toda vez queabro a boca acabo fechando-a logo em seguida.Acho que tenho mais medo de saber quem ela é e

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qual sua importância na vida dele do que de criarcoragem para falar sobre isso. Quanto mais adio,mais tempo tenho antes de ser obrigada a descobrir averdade.— Quer parar e comer alguma coisa? —pergunta ele, saindo do estacionamento.— Quero — digo depressa, aliviada por ele terinterrompido meus pensamentos. — Umcheeseburger parece ótimo. E fritas com queijo. Equero também um milk-shake de chocolate.Ele ri e segura minha mão.— Não está sendo um pouco exigente, princesa?Solto sua mão e me viro para ele.— Não me chame assim — exclamo.Ele olha para mim e é mais do que provável queesteja conseguindo ver a raiva no meu rosto, mesmono escuro.— Ei — diz ele para me acalmar, segurandominha mão de novo. — Não a acho exigente, Sky.Foi uma piada.Balanço a cabeça.— Exigente, não. Não me chame de princesa.Odeio essa palavra.Ele me lança um olhar de soslaio e volta a prestaratenção na rua.— Tudo bem.Fico olhando para a janela, tentando tirar apalavra da cabeça. Não sei por que odeio tantoapelidos, só sei que é assim. E sei que minha reaçãoagora foi exagerada, mas ele não pode me chamardisso nunca mais. Também não deve me chamar pelonome de nenhuma ex-namorada. Ele devia mechamar somente de Sky... É bem mais seguro.Dirigimos em silêncio, e fico cada vez maisarrependida por ter agido daquele forma. Acho atéque devia estar mais chateada por ele ter mechamado do nome de outra garota do que deprincesa. É quase como se eu estivesse depositandominha raiva em outra coisa por ter muito medo demencionar o que realmente está me incomodando.Para ser sincera, tudo que quero hoje é uma noitesem drama algum. Vou ter tempo de sobra paraperguntar sobre Hope algum outro dia.— Desculpe-me, Holder.Ele aperta minha mão e a põe no colo, sem dizermais nada.Quando chegamos na entrada da casa dele, saiodo carro. Não paramos para comer, mas nem estoua fim de mencionar isso agora. Ele me encontra pertoda porta do carona, me abraça, e eu retribuo. Ele

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anda comigo até eu me encostar no carro, epressiono a cabeça em seu ombro, inspirando seucheiro. O constrangimento do caminho até aqui aindaestá entre nós, então tento relaxar meu corpoencostado no dele para que saiba que não estou maispensando naquilo. Ele está passando os dedos nosmeus braços delicadamente, me deixando todaarrepiada.— Posso perguntar uma coisa? — diz ele.— Sempre.Ele suspira, afasta-se e olha para mim.— Eu a assustei demais na segunda? No meucarro? Pois, se assustei, peço desculpas. Não sei oque aconteceu comigo. Não sou um mariquinha, juro.Não choro desde que Less morreu, e nunca queriater feito isso na sua frente.Inclino a cabeça no peito dele e o abraço commais força.— Sabe ontem à noite, quando acordei com opesadelo?— Sei.— Foi a segunda vez que chorei desde que tinha5 anos. A única outra vez foi quando você me contouo que aconteceu com sua irmã. Chorei enquantoestava no banheiro. Foi só uma lágrima, mas já conta.Vai ver que quando estamos juntos nossas emoçõesficam um pouco avassaladoras demais e nós doisviramos mariquinhas.Ele ri e beija o topo da minha cabeça.— Tenho a impressão de que em breve vouparar de gamar você. — Ele me dá outro beijorápido e pega minha mão. — Está pronta para ogrande tour?Sigo ele até a casa, mas não consigo parar depensar que ele acabou de dizer que em breve vaiparar de me gamar. Se parar de me gamar, significaque vai começar a me amar. Ele acabou de confessarque está se apaixonando por mim sem dizer isso comtodas as palavras. E o mais chocante nessa confissãoé que eu a adorei.Entramos na casa, que não é nada como euimaginava. Não parece muito grande de fora, mastem um vestíbulo. Casas normais não têm vestíbulos.À direita, uma arcada leva à sala de estar. Todas asparedes estão cobertas de livros e nada mais, e sintocomo se eu tivesse morrido e ido para o céu.— Uau — digo, olhando para as estantes dasala. Os livros estão agrupados em prateleiras dochão ao teto, em cada uma das paredes.— Pois é — diz ele. — Minha mãe ficou furiosa

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quando inventaram o e-reader.Eu rio.— Acho que já estou gostando da sua mãe.Quando vou poder conhecê-la?Ele balança a cabeça.— Não apresento garotas à minha mãe. — Avoz dele está tão inexpressiva quanto suas palavras,e, assim que acaba de falar, ele percebe que acaboume magoando. — Não, não. Não é isso que quisdizer. Não estou dizendo que você é como as outrasgarotas que namorei. Eu me expressei errado.Tudo bem, mas estamos namorando há um certotempo e, ainda assim, ele não está convencido de queo que temos é real o bastante para me apresentar àmãe? Será que vai mesmo chegar o dia em que issoentre nós vai ser real o bastante para que meapresente à mãe?— Hope a conheceu? — Sei que não devia terdito isso, mas não consegui mais me segurar.Especialmente agora, quando o escutei falar sobre“outras garotas”. Não sou maluca; sei que elenamorou outras pessoas antes de me conhecer. Sónão gosto de ouvi-lo falando sobre isso. Muitomenos que me chame pelo nome de alguma delas.— O quê? — pergunta ele, abaixando as mãos.Está se afastando de mim. — Por que disse isso? —Ele está ficando pálido, e me arrependoimediatamente do que disse.— Deixe para lá. Não é nada. Não precisoconhecer sua mãe. — Só quero que isso acabe logo.Sabia que não ia estar muito a fim de conversar sobreisso hoje. Quero voltar ao tour da casa e esquecerque essa conversa aconteceu.Ele segura minha mão e repete:— Por que disse isso, Sky? Por que disse essenome?Balanço a cabeça.— Não é nada de mais. Você estava bêbado.Ele estreita os olhos para mim, e fica claro quenão vou ter como escapar dessa conversa. Suspiro ecedo relutante, limpando a garganta antes de falar.— Ontem à noite, quando você estava pegandono sono... disse que me amava. Mas me chamou deHope, então não era comigo que estava falando deverdade. Você tinha bebido e estava meio queadormecido, então não preciso de uma explicação.Não sei nem se realmente quero saber por que disseaquilo.Ele leva as mãos até o cabelo e geme.— Sky. — Ele se aproxima de mim, me

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abraçando. — Desculpe-me, de verdade. Deve tersido algum sonho idiota. Eu nem conheço ninguémque se chame assim e, com certeza, nunca tive umaex-namorada com esse nome, se é isso que estavapensando. Desculpe por isso ter acontecido. Nuncadevia ter ido bêbado para sua casa. — Ele olha paramim, e, por mais que meus instintos digam que estámentindo, seus olhos parecem totalmente sinceros.— Precisa acreditar em mim. Vou ficar arrasado sevocê pensar por um segundo sequer que sinto algumacoisa por outra pessoa. Nunca senti isso porninguém.Todas as palavras que saem de sua boca estãocheias de sinceridade e honestidade. Considerandoque nem lembro por que acordei chorando, épossível que o que ele falou dormindo tenha sidocausado por um sonho aleatório. E escutar tudo oque acabou de dizer mostra o quanto as coisas estãoficando sérias entre nós.Olho para ele, tentando preparar alguma espéciede resposta para tudo que confessou. Separo oslábios e espero as palavras saírem, mas isso nãoacontece. De repente sou eu que preciso de maistempo para processar meus pensamentos.Ele está com as mãos no meu rosto, esperandoque eu interrompa o silêncio entre nós. Aproximidade de nossas bocas sabota sua paciência.— Preciso dar um beijo em você — diz elecomo se pedisse desculpas, puxando meu rosto paraperto. Ainda estamos no vestíbulo, mas ele me erguesem esforço algum e me põe na escada que vai darnos quartos do primeiro andar. Eu me inclino paratrás, ele volta a tocar meus lábios com os seus e põeas mãos nos degraus de madeira ao lado da minhacabeça.Devido à nossa posição, ele é obrigado a abaixaro joelho entre minhas coxas. Não é nada de mais, anão ser que se leve em consideração o vestido queestou usando. Seria muito fácil ele me ter bem aqui naescada, mas espero que a gente pelo menos chegueao seu quarto primeiro, antes que ele comece atentar. Eu me pergunto se ele está esperando mesmoalguma coisa, especialmente depois da mensagemque enviei por acidente. Ele é um garoto, então claroque está esperando alguma coisa. Eu me pergunto sesabe que sou virgem. Será que devia contar? Achoque sim. Mas é provável que já tenha percebido.— Sou virgem — digo sem pensar, encostadaem sua boca. Imediatamente me pergunto o quediabos estou fazendo ao falar isso em voz alta bem

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agora. Não devia ter permissão de falar nunca maisna minha vida. Alguém devia me privar da voz,porque é óbvio que não sei controlá-la quando minhadefesa sexual está inativa.Na mesma hora, ele para de me beijar e afasta orosto lentamente, olhando nos meus olhos.— Sky — começa ele, sendo direto. — Estoubeijando você porque, às vezes, não consigo nãobeijá-la. Você sabe o quanto sua boca mexe comigo.Não estou esperando nada além disso, OK?Enquanto puder beijá-la, as outras coisas podemesperar. — Ele põe meu cabelo atrás das orelhas eolha para mim com sinceridade.— Só achei que você devia saber. Acho quedevia ter escolhido um momento melhor para contarisso, mas, às vezes, simplesmente falo as coisas sempensar. É um hábito péssimo e que eu odeio porquecostuma surgir nos momentos mais inoportunos e ésempre vergonhoso. Como agora.Ele ri e balança a cabeça.— Não, não pare de fazer isso. Adoro quandovocê fala as coisas sem pensar. E também quandosolta tiradas longas, nervosas e ridículas. É meiosensual.Eu coro. Ser chamada de sensual é mesmo...sensual.— Sabe o que mais é sensual? — pergunta ele,inclinando-se para perto de mim mais uma vez.O jeito brincalhão em sua expressão faz minhavergonha desaparecer.— O quê?Ele sorri.— A gente tentar não se agarrar enquanto vemosum filme. — Ele se levanta, me ajuda a me levantar eme leva até o quarto lá em cima.Ele abre a porta e entra primeiro. Depois se virae pede para eu fechar os olhos. Em vez disso, eu osreviro.—Não gosto de surpresas — digo.— Você também não gosta de presentes e decertos termos comuns que só demonstram carinho.Estou aprendendo. Mas queria lhe mostrar uma coisalegal... não é nenhum presente. Então dê um jeito efeche os olhos.Obedeço, e ele me puxa para dentro do quarto.Já estou adorando esse lugar porque tem o mesmocheiro que ele. Holder me acompanha por algunspassos e põe as mãos nos meus ombros.— Sente-se — diz ele, empurrando-me parabaixo. Eu me sento no que parece ser uma cama,

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mas de repente estou deitada e ele está levantandomeus pés. — Continue de olhos fechados.Sinto-o colocar meus pés na cama e me encostarnum travesseiro. Sua mão segura a bainha do meuvestido, e ele o puxa para baixo, garantindo que vaificar no lugar.— Tenho de deixar você coberta. Não podeficar me mostrando a coxa quando está deitadaassim.Eu rio, mas continuo de olhos fechados. Derepente, ele começa a engatinhar do meu lado,tomando cuidado para não me dar uma joelhada.Sinto-o se acomodar ao meu lado no travesseiro.— Pronto. Abra os olhos e prepare-se para ficarimpressionada.Estou com medo. Lentamente, abro os olhos.Hesito em adivinhar o que estou vendo, pois quaseacho que é uma televisão. Mas normalmente astelevisões não ocupam 2 metros da parede. Essacoisa é gigantesca. Ele aponta o controle remoto, e atela se acende.— Uau — digo, impressionada. — Mas quecoisa enorme.— É o que todas dizem.Dou-lhe uma cotovelada na lateral do corpo,fazendo-o rir. Ele aponta o controle para a tela.— Qual seu filme preferido de todos? TenhoNetflix.Inclino a cabeça em sua direção.— Net o quê?Ele ri e balança a cabeça, desapontado.— Sempre esqueço que você tem deficiênciastecnológicas. É parecido com um e-reader, mas comfilmes e programas de televisão em vez de livros. Dápara assistir praticamente qualquer coisa, é só apertaros botões.— Tem comercial?— Não — diz ele orgulhoso. — Então, o que vaiser?— Você tem O panaca? Adoro esse filme.Ele põe o braço em cima do peito, aperta umbotão no controle e desliga a televisão. Ele fica emsilêncio por vários longos segundos e depois suspiraenergicamente. Se vira para o lado, deixa o controlena mesinha de cabeceira e rola, ficando de frentepara mim. — Não quero mais ver televisão.Ele está fazendo bico? O que foi que eu dissede errado?— Tudo bem. Não precisamos ver O panaca.Pode escolher outra coisa, bebezão. — Eu rio.

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Ele fica um tempo sem responder e continua meencarando sem expressão. Depois levanta a mão,passando-a por minha barriga e cercando minhacintura. Em seguida, me segura com força e me puxapara ele.— Sabe — diz ele, estreitando os olhosenquanto eles percorrem meu corpometiculosamente. Holder contorna a estampa do meuvestido com o dedo, alisando com delicadeza minhabarriga. — Posso lidar com o que esse vestidoprovoca em mim. — Olha da minha barriga até minhaboca. — Posso lidar até com ter de olhar para seuslábios o tempo inteiro, mesmo quando não possobeijá-los. Consigo lidar com o som da sua risada ecom o quanto ela me dá vontade de cobrir sua bocacom a minha e inspirar tudo.Sua boca está se aproximando da minha, e amaneira como baixou o tom de voz, ficando numaespécie de oitava lírica e divina faz meu coraçãomartelar dentro do peito. Ele leva os lábios até minhabochecha e a beija de leve, o hálito quente colidindocom minha pele quando ele fala:— Sei lidar até com as milhões de vezes em querelembrei nosso primeiro beijo nesse último mês.Como você se sentiu. Como foi escutar você. Comome olhou logo antes de meus lábios encostarem nosseus. Ele rola para cima de mim e põe meus braçosacima da minha cabeça, segurando-os com as mãos.Estou prestando atenção em cada palavra que diz,sem querer perder um único segundo do que querque esteja fazendo agora. Ele se senta em cima daminha cintura, apoiando-se nos joelhos.— Mas sabe com o que não sei lidar, Sky? Sabeo que me deixa louco e me dá vontade de colocar asmãos e a boca em todos os centímetros do seucorpo? Você ter acabado de dizer que O panaca éseu filme preferido de todos. Isso? — Ele leva aboca até a minha, e nossos lábios se tocam. — Issosim é incrivelmente sensual, e tenho certeza de que agente precisa se agarrar agora.Seu jeito brincalhão me faz rir, e sussurro deforma sedutora contra seus lábios.— Ele odeia essas latas.Ele geme, me beija e depois se afasta.— De novo. Por favor. Ouvir você falar frasesde filme é tão mais sensual que beijá-la.Eu rio e falo outra frase.— Fique longe das latas!Ele geme no meu ouvido de uma maneirabrincalhona.

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— Essa é minha garota. Mais uma vez. Outrafrase.—É tudo de que preciso — digo brincando. —O cinzeiro, a raquete e o controle remoto e oabajur... e é tudo de que preciso. Não preciso denenhuma outra coisa, nenhuma.Agora ele está rindo em voz alta. Six e eu vimosesse filme inúmeras vezes, então ele vai ficar surpresoquando descobrir que sei várias outras frases.— É tudo de que precisa? — diz eleespirituosamente. — Tem certeza, Sky? — A vozdele está calma e sedutora, e, se eu estivesse em pé,com certeza minha calcinha estaria no chão.Balanço a cabeça, e meu sorriso desaparece.— E você — sussurro. — Preciso do abajur, docinzeiro, da raquete, do controle remoto... e de você.É tudo de que preciso.Ele ri, mas sua risada some assim que olha paraminha boca mais uma vez. Ele a fica observando,mais do que provavelmente planejando o que vaifazer com ela pela próxima hora.— Preciso beijá-la agora. — Sua boca colidecom a minha, e, neste momento, ele é mesmo tudode que preciso.Ele está de quatro, beijando-me com intensidade,mas preciso que fique em cima de mim. Minhas mãosainda estão acima da cabeça, e minha boca nãoconsegue formar palavras quando está sendoprovocada assim. A única coisa que consigo fazer éerguer o pé e chutar seu joelho para que ele caia emcima de mim, então é o que faço.No instante em que sinto seu corpo no meu, soltoo ar. Fazendo barulho. Não tinha considerado que,ao levantar a perna, a bainha do meu vestido subiria.Bastante. Isso somado ao tecido áspero da calçajeans fariam qualquer um arfar.— Puta merda, Sky — diz ele entre os instantessem ar em que extasia minha boca com a dele. Jáestá sem fôlego, e não estamos fazendo isso há maisde um minuto. — Nossa, como é incrível sentir você.Obrigado por usar esse vestido. — Ele está mebeijando, murmurando esporadicamente dentro deminha boca. — Eu gosto... — Ele beija minha boca ebaixa os lábios para meu queixo até chegar no meiodo meu pescoço. — Gosto mesmo dele. Do vestido.Está tão ofegante que mal consigo entender seussussurros. Ele desce um pouco mais na cama paraque seus lábios fiquem na altura do meu pescoço.Inclino a cabeça para trás para dar-lhe acesso total,pois agora seus lábios são muito bem-vindos em

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qualquer parte do meu corpo. Ele solta minhas mãospara poder levar a boca mais para perto do meupeito. Uma de suas mãos chega até minha coxa, masele sobe com ela devagar, afastando o que restou dovestido de cima das minhas pernas. Ao alcançar otopo da minha coxa, sua mão para, e ele aperta forte,como se estivesse obrigando os próprios dedos anão irem mais além.Contorço o corpo debaixo dele, esperando queentenda a indireta de que sua mão pode ir aondequiser. Não quero que duvide do que está fazendonem que pense que estou relutando em seguir emfrente, nem por um segundo. Só quero que faça oque quiser, pois preciso que continue. Preciso queconquiste quantas primeiras vezes puder hoje, pois,de repente, estou me sentindo gananciosa e queroque passemos por todas elas.Holder entende minhas indiretas físicas eaproxima a mão da parte interna da minha coxa. Só aexpectativa de ele encostar em mim faz todos osmúsculos abaixo de minha cintura se contorcerem.Seus lábios finalmente descem da base do meupescoço e chegam ao meu peito. Sinto que seupróximo passo vai ser remover meu vestido de umavez para poder tocar o que está embaixo do tecido,mas, para isso, ele precisaria usar a outra mão, eestou gostando muito do lugar onde ela está agora.Preferiria se ela estivesse alguns centímetros além,mas não quero de jeito algum que ela se afaste.Levo as mãos até seu rosto e o obrigo a mebeijar com mais força, em seguida toco suas costas.Ele ainda está de camisa.Isso não é nada bom.Ponho a mão na barriga dele e puxo a camisapor cima de sua cabeça, mas não percebo que,fazendo isso, ele é obrigado a afastar a mão da minhacoxa. Pode ser que eu tenha resmungado um pouco,pois ele sorri e beija o canto da minha boca.Ficamos nos olhando, e, delicadamente, ele alisameu rosto com as pontas dos dedos, percorrendotodas as partes. Ele não desvia o olhar em instantealgum e mantém os olhos grudados nos meus, mesmoquando abaixa a cabeça para beijar os cantos dosmeus lábios. A maneira como me olha me faz sentir...tento procurar um adjetivo para completar essepensamento, mas não encontro nenhum. Elesimplesmente me faz sentir. É o único garoto que jáse importou se eu estava ou não sentindo algumacoisa, e, só por isso, deixo ele roubar mais umpedacinho do meu coração. Mas não parece o

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bastante, pois de repente quero dar meu coraçãointeiro para ele.— Holder — digo baixinho. Ele sobe a mão pelaminha cintura e se aproxima mais.— Sky — diz ele, com o mesmo tom de voz.Sua boca encosta nos meus lábios, e ele enfia alíngua no meio deles. Ela é doce e quente, e sei quenão faz muito tempo que senti esse gosto, mas estavacom saudade. Suas mãos estão nas laterais da minhacabeça, mas ele está tomando cuidado para nãoencostar em mim com as mãos nem com o corpo.Apenas com a boca.— Holder — murmuro, me afastando. Levo amão até a bochecha dele. — Eu quero. Hoje. Agora.Sua expressão não muda. Ele fica me encarandocomo se não tivesse me escutado. Talvez não tenhame escutado, pois com certeza não estáconcordando com minha sugestão.— Sky... — A voz está cheia de hesitação. —Não precisamos. Quero ter certeza absoluta de que éo que você quer. Está certo? — Ele começa aacariciar minha bochecha. — Não quero apressá-la.— Sei disso. Mas estou dizendo que quero fazerisso. Jamais quis com ninguém, mas com você, sim.Ele está com os olhos fixos nos meus,assimilando cada palavra que eu disse. Ou está emestado de negação ou em choque, e nenhum dessesdois casos é bom para mim. Levo as mãos até seurosto, aproximando em seguida seus lábios dos meus.— Isso não sou eu dizendo sim, Holder. Sou eudizendo por favor.Com isso, ele esmaga os lábios nos meus egeme. Escutar esse som vindo lá do fundo do peitodele me dá mais certeza ainda sobre minha decisão.Preciso dele e preciso agora.— Vamos mesmo fazer isso? — pergunta eledentro da minha boca, ainda me beijandoempolgado.— É. Vamos mesmo fazer isso. Nunca tive tantacerteza de algo na vida.Sua mão sobe pela minha coxa, em seguida ele adesliza entre meu quadril e minha calcinha, e começaa tirá-la.— Só preciso que me prometa uma coisaprimeiro — digo.Ele me beija suavemente, afasta a mão da minhacalcinha (droga) e concorda com a cabeça.— Qualquer coisa.Seguro a mão dele e a coloco bem onde estavaantes, no meu quadril.

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— Quero fazer isso, mas só se me prometer quevamos quebrar o recorde de melhor primeira vez nahistória das primeiras vezes.Ele sorri para mim.— Quando se trata de nós dois, Sky... não temcomo ser diferente.Ele serpenteia o braço por debaixo das minhascostas e me ergue com ele. Suas mãos chegam nosmeus braços, e ele põe os dedos por baixo das alçasfinas do meu vestido, afastando-as dos meus ombros.Fecho os olhos com firmeza e pressiono a bochechana dele, agarrando seu cabelo. Sinto sua respiraçãono ombro e, depois, seus lábios. Ele mal o beija, masé como se tivesse ligado todas as partes do meucorpo de dentro para fora com esse único beijo.— Vou tirar isso — informa ele.Meus olhos continuam fechados, e não sei se eleestá me avisando ou pedindo minha permissão paratirar meu vestido, mas balanço a cabeça de todojeito. Ele levanta o vestido e o puxa por cima daminha cabeça — minha pele nua formigando debaixode seu toque. Ele me encosta com delicadeza notravesseiro, e abro os olhos, encarando-o, admirandosua beleza incrível. Depois de me olhar intensamentepor vários segundos, ele fita a mão que está ao redorda minha cintura.Sem pressa, observa meu corpo inteiro.— Puta merda, Sky. — Ele passa as mãos pelaminha barriga, inclina-se e dá um beijo suave nela. —Você é incrível.Nunca fiquei tão exposta na frente de alguémantes, mas a maneira como ele está me admirando sóme dá mais vontade de ficar tão exposta assim. Eledesliza a mão até meu sutiã e passa o polegar bemembaixo dele, separando meus lábios e fazendo meusolhos se fecharem outra vez.Meu Deus, como eu o desejo. Muito, muitomesmo. Seguro seu rosto e o puxo para perto,prendendo minhas pernas ao redor de seu quadril.Ele geme, afasta a mão do meu sutiã para colocá-lana minha cintura outra vez. Holder desce minhacalcinha, me obrigando a desvencilhar as pernas paraque possa tirá-la de vez. Meu sutiã também édescartado logo depois, e, assim que todas as minhasroupas são removidas, ele afasta as pernas de cimada cama e meio que se levanta, inclinando-se porcima de mim. Ainda estou segurando-lhe o rosto, econtinuamos nos beijando loucamente enquanto eletira a calça e volta para a cama, abaixando-se emcima de mim. Agora estamos sentindo a pele um do

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outro pela primeira vez, tão perto que nem o arpassaria entre nós, e, ainda assim, não parecepróximo o suficiente. Ele estende o braço, e sua mãomexe em alguma coisa na cabeceira. Tira umacamisinha da gaveta e a deixa na cama, abaixando-seem cima de mim mais uma vez. A rigidez e o pesodele fazem minhas pernas se abrirem mais. Estremeçoao perceber que a expectativa em minha barriga derepente começa a se transformar em pavor.E náusea.E medo.Meu coração está acelerado, e minha respiraçãose transforma em curtas arfadas. Lágrimas brotam emmeus olhos enquanto a mão dele se move ao nossolado, procurando a camisinha. Ele a encontra, e eu oescuto abrindo o envelope, mas estou apertando osolhos. Consigo senti-lo se afastar e ficar de joelhos.Sei que ele a está colocando e sei o que vem emseguida. Conheço a sensação, sei o quanto dói e queisso vai me fazer chorar quando acabar.Mas como sei disso? Como sei se nunca fizisso antes?Meus lábios começam a tremer quando ele secoloca entre minhas pernas outra vez. Tento pensarem alguma coisa para afastar o medo, então visualizoo céu, as estrelas e o quanto são bonitos, tentandodiminuir o pânico. Se eu me lembrar de que o céusempre é bonito e focar nesse pensamento, possoesquecer o quanto isso é feio. Não quero abrir osolhos, então começo a contar em silêncio dentro dacabeça. Visualizo as estrelas em cima da minha cama,começo com as que ficam mais embaixo e vousubindo.1, 2, 3...Eu conto e conto e conto.22, 23, 24...Prendo a respiração e me concentro mais e maisnas estrelas.57, 58, 59...Quero que ele acabe logo. Só quero que saia decima de mim.71, 72, 7...— Que droga, Sky! — grita Holder.Ele está afastando meu braço dos olhos. Nãoquero que me obrigue a olhar, então continuosegurando o braço em cima do rosto com firmeza,para que tudo fique escuro e eu possa continuarcontando em silêncio.De repente, minhas costas estão sendo erguidas,e não estou mais encostada no travesseiro. Meus

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braços estão moles, e os dele estão me abraçandocom firmeza, mas não consigo me mover. Meusbraços estão fracos demais, e estou soluçando muito.Estou chorando tanto, e Holder está me movendo,mas não entendo o motivo e, então, abro os olhos.Estou indo para a frente e para trás e para a frente epara trás, e, por um segundo, fico em pânico e apertoos olhos, achando que ainda não acabou. Masconsigo sentir as cobertas ao meu redor e seu braçoapertando minhas costas, além de estar tocando meucabelo e sussurrando em meu ouvido.— Linda, está tudo bem. — Ele estápressionando os lábios em meu cabelo, balançandomepara a frente e para trás com ele. Volto a abrir osolhos, e as lágrimas embaçam minha visão. —Desculpe-me, Sky. Desculpe-me de verdade.Ele está beijando minha têmpora várias vezesseguidas enquanto me balança, pedindo desculpas.Está se desculpando por alguma coisa. Alguma coisapela qual ele quer que eu o perdoe dessa vez.Ele se afasta e vê que meus olhos estão abertos.Os dele estão vermelhos, mas não vejo nenhumalágrima. Contudo, está tremendo. Ou talvez seja euque estou tremendo. Acho que na verdade somosnós dois.Ele está me olhando nos olhos, procurandoalguma coisa. Me procurando. Começo a relaxar nosseus braços, pois quando estão ao meu redor nãosinto como se estivesse despencando da face daTerra.— O que aconteceu? — pergunto para ele. Nãoentendo de onde isso surgiu.Ele balança a cabeça, com os olhos cheios dearrependimento, medo e aflição.— Não sei. De repente você começou a contar,a chorar e a tremer, e fiquei tentando fazê-la parar,Sky. Mas você não parava. Estava apavorada. Oque foi que eu fiz? Pode me dizer, porque estoumuito arrependido. Estou tão, tão arrependido. Quemerda eu fiz?Balanço a cabeça, pois não tenho uma resposta.Ele faz uma careta e encosta a testa na minha.— Desculpe-me. Não devia ter deixado ascoisas chegarem tão longe. Não sei o que diabosaconteceu, mas você ainda não está pronta, OK?Ainda não estou pronta?— Então a gente não... a gente não transou?Ele me liberta de seu abraço, e sinto todo o seucomportamento mudar. A expressão em seus olhos éde frustração e confusão. As sobrancelhas se

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separam, e ele franze o rosto, segurando minhasbochechas.— Onde você estava, Sky?Balanço a cabeça, confusa.— Bem aqui. Estou ouvindo.— Não, quero dizer antes. Onde você estava?Comigo não era, pois, não, nada aconteceu. Davapara ver no seu rosto que tinha algo de errado, entãonão fiz nada. Mas agora precisa pensar bastante paradescobrir em onde estava dentro dessa sua cabeça,porque você ficou em pânico. Estava histérica, epreciso saber o motivo para garantir que isso nuncamais aconteça.Holder beija minha testa e solta minhas costas.Ele se levanta, veste a calça jeans e pega meuvestido. Ele o sacode, vira do avesso e o deslizapelas mãos. Em seguida, se aproxima de mim e ocoloca por cima da minha cabeça. Ergue meusbraços e me ajuda a colocá-los dentro do vestido,puxando-o depois para baixo, me cobrindo.— Vou pegar um pouco d’água para você. Jávolto.Ele me beija com relutância, quase como seestivesse com medo de encostar em mim. Após sairdo quarto, encosto a cabeça na parede e fecho osolhos.N ão faço ideia do que acabou de acontecer, maso medo de perdê-lo por causa disso é justificável.Acabei de transformar uma das coisas mais íntimasimagináveis num desastre. Fiz com que ele se sentisseum nada, como se tivesse feito algo de errado, eagora ele está se sentindo mal por causa disso.Provavelmente quer que eu vá embora, e não oculpo. Não o culpo nem um pouco. Também querofugir de mim mesma.Afasto as cobertas e me levanto, abaixando ovestido em seguida. Nem me dou o trabalho deprocurar a calcinha e o sutiã. Preciso encontrar obanheiro e me recompor para que ele possa me levarpara casa. É a segunda vez nesse fim de semana quecaio em prantos sem nem saber o porquê — e nasduas vezes ele precisou me resgatar. Não vou fazerisso com ele de novo.Quando passo pela escada procurando obanheiro, olho para a cozinha por cima do corrimão eo vejo inclinado para a frente com os cotovelos nabancada, o rosto enterrado nas mãos. Estásimplesmente parado, parecendo arrasado echateado. Não consigo mais olhá-lo, então abro aprimeira porta à minha direita, presumindo que seja obanheiro.

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Mas não é.É o quarto de Lesslie. Começo a fechar a porta,mas desisto. Em vez disso, eu a abro mais, entro e afecho. Não importa se estou num banheiro, quarto oucloset... só preciso de paz e silêncio. Tempo para merecompor do que diabos está acontecendo comigo.Estou começando a achar que talvez seja mesmolouca. Nunca perdi a noção das coisas de forma tãograve, e isso me apavora. Minhas mãos aindatremem, então eu uno ambas à frente do corpo etento me concentrar em alguma outra coisa para meacalmar.Dou uma olhada ao redor e acho o quarto umtanto perturbador. A cama não está feita, o que meparece estranho. A casa inteira de Holder éimpecável, mas a cama de Lesslie não está arrumada.Há duas calças jeans no meio do chão, e parece queela acabou de tirá-las. Fico observando ao redor, eesse é um quarto típico de uma adolescente.Maquiagem na cômoda, iPod na cabeceira. Pareceque ainda mora aqui. Pela aparência do quarto, nãoparece de jeito nenhum que ela se foi. Está na caraque ninguém encostou aqui desde que ela morreu. Asfotos ainda estão penduradas nas paredes e coladasno espelho. Todas as roupas ainda estão no closet,algumas empilhadas no chão. Segundo ele, já fazmais de um ano que ela faleceu, e aposto queninguém da família aceitou isso.É estranho estar aqui dentro, mas assim minhamente não pensa no que está acontecendo. Vou até acama e olho para as fotos penduradas na parede. Amaioria é de Lesslie com seus amigos, e, só emalgumas, ela aparece com Holder. É muito parecidacom o irmão, tem olhos azul-claros e intensos, ecabelo castanho-escuro. O que mais me surpreendeé o quanto parece feliz. Parece tão alegre e cheia devida em todas as fotos que é difícil imaginar o queestava realmente se passando por sua cabeça. Nãosurpreende que Holder não fizesse ideia do quantoela se sentia desolada. É mais que provável que nãotenha deixado ninguém saber disso.Pego uma foto abandonada na mesinha decabeceira. Ao virá-la para mim, fico boquiaberta. Nafoto, ela aparece beijando Grayson na bochecha, eos dois estão abraçados. A foto me deixa perplexa epreciso me sentar na cama para me recompor. É porisso que Holder o odeia tanto? É por isso que ele nãoqueria que Grayson encostasse em mim? Fico meperguntando se ele não culpa Grayson pelo que Lessfez.

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Estou segurando a foto, ainda sentada na cama,quando a porta do quarto se abre. Holder apareceno vão.— O que está fazendo? — Ele não parece bravocomigo por estar ali. No entanto, parececonstrangido, provavelmente por causa do que fiz elesentir há pouco.— Estava procurando o banheiro — respondobaixinho. — Desculpe. Só precisava de um minutosozinha.Ele se encosta no batente e cruza os braçosenquanto os olhos percorrem o quarto. Estáassimilando tudo, assim como eu. É como se para eletudo fosse novo.— Ninguém entrou aqui? Desde que ela...— Não — diz ele apressado. — De queadiantaria? Ela se foi.Balanço a cabeça e deixo a foto de Lesslie eGrayson de volta na cabeceira, virada para baixoassim como a garota a havia deixado.— Estavam namorando?Ele dá um passo hesitante para dentro do quartoe se aproxima da cama. Ele se senta ao meu lado eapoia os cotovelos nos joelhos, unindo as mãos nafrente do corpo. Lentamente, dá uma olhada noquarto, sem responder minha pergunta de imediato.Olha para mim, põe o braço ao redor do meu ombroe me puxa para perto. O fato de estar sentado aquicomigo agora, ainda querendo me abraçar, me dávontade de chorar.— Terminou com ela na véspera de ela ter feitoisso — diz ele baixinho.Tento não soltar uma arfada, mas suas palavrasme deixam chocada.— Acha que foi por causa dele que ela fez isso?É por isso que o odeia tanto?Ele balança a cabeça.— Já o odiava antes de Grayson terminar comela. Ele a fez passar por muita merda, Sky. E não,não acho que foi por causa dele. Talvez tenha sido agota d’água para ela tomar uma decisão que estavaquerendo há muito tempo. Less tinha seus problemasbem antes de Grayson aparecer. Então não, não oculpo. Nunca o culpei. — Ele se levanta e seguraminha mão. — Vamos. Não quero mais ficar aqui.Dou uma última olhada no quarto e me levantopara segui-lo. No entanto, paro antes de chegar àporta. Ele se vira e me flagra analisando as fotos nacômoda dela. Há uma de Holder e Lesslie numporta-retratos, de quando os dois eram crianças.

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Pego-a para observá-la mais de perto. Vê-lo tãonovinho me faz sorrir por alguma razão. Ver os doistão novos... é revigorante. É como se houvesse umainocência neles, antes que as realidades feias da vidaos atingisse. Estão na frente de uma casa de estruturabranca, e Holder colocou o braço ao redor dopescoço dela, apertando-a. Ela está com os braçosao redor da cintura dele, e os dois sorriem para acâmera.Meus olhos vão dos rostos dos dois para a casaatrás deles. É uma casa branca com detalhesamarelos, e, se desse para ver o interior, a salaapareceria pintada de dois tons diferentes de verde.Fecho os olhos no mesmo instante. Como seidisso? Como sei a cor da sala?Minhas mãos começam a tremer e tento inspirar,mas não consigo. Como conheço essa casa? Masconheço a casa como se conhecesse as crianças dafoto. Como sei que tem um balanço verde e branconos fundos? E a 3 metros do balanço há um poçoseco que precisa ficar coberto porque o gato deLesslie caiu ali uma vez.— Você está bem? — pergunta Holder. Eletenta tirar a foto de minhas mãos, mas eu a agarro eolho para ele. Seu olhar transmite preocupação, e eledá um passo para mais perto de mim. Dou um passopara trás.De onde eu o conheço?De onde conheço Lesslie?Por que sinto como se tivesse saudade deles?Balanço a cabeça, olhando para a foto, em seguidapara Holder, e depois outra vez para a foto. E agorao pulso de Lesslie chama minha atenção. Ela estáusando uma pulseira. Uma pulseira idêntica à minha.Quero perguntar sobre a pulseira mas nãoconsigo. Tento, mas não emito palavra alguma, entãosó ergo a foto. Ele balança a cabeça, e o rosto ficasério, como se seu coração estivesse se partindo.— Sky, não — diz ele, implorando.— Como? — Minha voz falha, e mal dá paraescutá-la. Olho outra vez para a foto em minhasmãos. — Há um balanço. E um poço. E... seu gato.Ficou preso no poço. — Lanço um olhar para ele, eos pensamentos surgem um atrás do outro. —Holder, conheço aquela sala de estar. É verde, e acozinha tem um balcão que era alto demais para nóse... sua mãe. O nome dela é Beth. — Faço umapausa e tento respirar, pois as lembranças nãoparam. Elas não param de surgir, e não consigorespirar. — Holder... o nome de sua mãe é Beth?

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Holder franze o rosto e passa a mão pelo cabelo.— Sky... — diz ele, mas não consegue nemolhar para mim. A expressão está dividida e confusa,e ele... ele tem mentido para mim. Está escondendoalguma coisa e tem medo de me contar seja o quefor.Ele me conhece. Mas afinal como me conhece epor que não me contou?De repente, me sinto nauseada. Passo correndopor ele e abro a porta do outro lado do corredor,que por acaso é um banheiro, graças a Deus. Trancoa porta, jogo o porta-retratos na bancada e caiodireto no chão.As imagens e lembranças começam a inundarminha mente como se tivessem rompido os diques.Lembranças dele, dela, de nós três juntos.Lembranças de nós três brincando, eu jantando nacasa deles, eu e Lesslie inseparáveis. Eu a amava. Euera tão nova e tão pequena, e nem sei como osconhecia, mas eu os amava. Os dois. A lembrançasurge junto com o luto por saber que a Lesslie que euconhecia e amava quando criança se foi. De repentefico triste e depressiva por ela ter morrido, mas nãopor minha causa. Não por Sky. Fico triste pelagarotinha que fui, e, de alguma forma, o luto pelaperda de Lesslie está surgindo dentro de mim.Como é que eu não sabia? Como não melembrei dele na primeira vez que o vi?— Sky, abra a porta, por favor.Eu me encosto na parede. É demais. Aslembranças, as emoções e o luto... é coisa demaispara assimilar de uma só vez.— Linda, por favor. Precisamos conversar, enão posso fazer isso daqui de fora. Por favor, abra aporta.Ele sabia. Sabia desde a primeira vez que me viuno mercado. E quando viu minha pulseira... sabia queeu a tinha ganhado de Lesslie. Ele me viu usando, esabia disso.Meu luto e minha confusão logo se transformamem raiva, e eu me levanto do chão e vou rapidamenteaté a porta do banheiro, que destranco e escancaro.As mãos dele estão nos dois lados do caixilho, e eleestá olhando fixo para mim, mas sinto como se nemsequer soubesse quem ele é. Não sei mais o que éreal entre nós e o que não é. Não sei quaissentimentos são por causa de sua vida comigo agora,nem quais são por causa da vida que tinha com agarotinha que eu era.Preciso saber. Preciso saber quem ela era. Quem

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eu era. Engulo o medo e faço a pergunta cujaresposta temo já saber.— Quem é Hope?Sua expressão insensível não muda, entãopergunto de novo, mais alto dessa vez:— Quem diabos é Hope?Ele mantém o olhar fixo no meu, e as mãos firmesno batente, mas não responde. Por alguma razão,não quer que eu saiba. Ele não quer que eu lembrequem eu era. Respiro fundo e tento conter aslágrimas. Estou com muito medo de dizer o que acho,porque não quero saber a resposta.— Sou eu? — pergunto, com a voz trêmula echeia de trepidação. — Holder... eu sou Hope?Ele expira rapidamente ao olhar para o teto,quase como se estivesse se segurando para nãochorar. Fecha os olhos e encosta a testa no braço,depois inspira fundo antes de olhar de volta paramim.— É.O ar ao meu redor fica espesso. Denso demaispara ser inspirado. Fico parada, bem na frente dele,incapaz de me mexer. Tudo fica quieto, excetodentro da minha cabeça. Há tantos pensamentos,perguntas, lembranças e tudo tenta ficar em primeiroplano ao mesmo tempo, e não sei se preciso chorar,gritar, correr ou dormir.Preciso sair. Sinto como se Holder, o banheiro etoda essa maldita casa estivessem me sufocando,então preciso sair daqui para ter espaço para quetudo dentro de minha cabeça possa sair. Quero quetudo escape.Empurro-o para trás, e ele tenta segurar meubraço, mas eu o empurro.— Sky, espere — grita ele atrás de mim.Continuo correndo até alcançar a escada e desço omais rápido que posso, dois degraus por vez.Escuto-o me seguindo, então acelero, e meu pé vaimais para a frente do que eu pretendia. Solto ocorrimão e caio para a frente, aterrissando na baseda escada. — Sky! — berra ele.Antes que possa tentar me levantar, ele mealcança e fica de joelhos com os braços ao meuredor. Dou um safanão, querendo que ele me soltepara que eu simplesmente possa sair da casa. Masele não se mexe.— Lá fora — digo, ofegante e fraca. — Sópreciso ir lá para fora. Por favor, Holder.Sinto-o se debatendo interiormente, sem quererme soltar. Relutante, me afasta de seu peito e olha

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para mim, procurando meus olhos.— Não corra, Sky. Saia, mas por favor não váembora. Precisamos conversar.Concordo com a cabeça, ele me solta e meajuda a levantar. Quando saio da casa e piso nagrama, uno as mãos por trás da cabeça e inspirofundo o ar frio. Inclino a cabeça para trás e olho paraas estrelas, desejando mais que tudo estar lá em cimae não aqui em baixo. Não quero que as lembrançascontinuem voltando, porque cada lembrança confusavem junto com uma pergunta ainda mais confusa.Não entendo como o conheço. Não entendo por queescondeu isso de mim. Não compreendo como meunome pode ter sido Hope se só me lembro de serchamada de Sky. Não sei por que Karen me diriaque Sky é meu nome de nascença se isso não éverdade. Tudo que eu achava que entendia apóstodos esses anos está se desemaranhando, revelandocoisas que nem quero saber. Estão mentindo paramim, e estou morrendo de medo de descobrir o queé que as pessoas estão escondendo.Fico lá fora pelo que parece uma eternidade,tentando compreender isso sozinha sendo que nemfaço ideia do que estou tentando compreender.Preciso conversar com Holder para descobrir o quesabe, mas estou magoada. Não quero vê-lo apóscompreender que, durante todo esse tempo, eleestava guardando esse segredo. Isso faz com quetudo o que achei que estava acontecendo entre nósnão passe de uma ilusão.Estou exaurida emocionalmente e tive todas asdescobertas que aguento em uma só noite. Tudo quequero é ir para casa e me deitar. Preciso dormir antesque comecemos a discutir por que ele não me contouque me conhecia quando criança. Não entendo porque isso era algo que achou que devia esconder demim.Eu me viro e vou andando de volta para a casa.Ele está na entrada, me observando e se afasta paraeu passar. Vou até a cozinha e abro a geladeira.Pego uma garrafa d’água, abro-a e tomo váriosgoles. Minha boca está seca, e ele acabou nãotrazendo para mim a água que disse que ia buscar.Deixo a garrafa na bancada e olho para ele.— Me leve para casa.Ele não protesta. Holder se vira, pega a chave namesa do hall e gesticula para que o siga. Deixo aágua na bancada e o acompanho em silêncio até ocarro. Depois que entro, ele dá ré e segue para a ruasem dizer nada.

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Passamos pelo meu entroncamento, e fica nacara que ele não tem a menor intenção de me levarpara casa. Olho para ele, que está concentrado narua.— Me leve para casa — repito.Ele olha para mim com uma expressãodeterminada.— Precisamos conversar, Sky. Tem perguntaspara fazer, sei que tem.Tenho. Tenho um milhão de perguntas, mas tinhaesperança de que ele fosse me deixar dormir paraque pudesse tentar compreendê-las e respondersozinha quantas conseguisse. Mas está na cara que aessa altura ele não se importa com o que prefiro.Relutante, tiro o cinto e me viro no banco,encostando na porta para ficar de frente para ele. Senão quer me dar tempo para assimilar melhor tudoisso, vou jogar todas as perguntas de uma só vez.Mas vou fazer isso depressa pois quero que me levepara casa.— Está bem — concordo por teimosia. —Vamos resolver logo isso. Por que passou esses doismeses mentindo para mim? Por que minha pulseira odeixou tão furioso a ponto de não conseguir falarcomigo por semanas? Ou por que não me dissequem achava que eu realmente era no dia em que nosencontramos no mercado? Porque você sabia,Holder. Você sabia quem eu era, e, por algumarazão, achou que seria engraçado ficar me iludindoaté que eu descobrisse a verdade. Você sequergosta de mim? Valeu a pena me magoar, mais doque já fui magoada a vida inteira, só por causa dessejoguinho que está fazendo? Pois foi isso queaconteceu — digo, tão furiosa que chego a tremer.Finalmente me rendo às lágrimas porque essa ésó mais uma coisa que está tentando sair de mim ecansei de lutar contra elas. Enxugo-as com o dorsoda mão e abaixo o tom de voz.— Você me magoou, Holder. Tanto. Prometeuque sempre seria sincero comigo. — Não estou maiserguendo a voz. Na verdade, estou falando tãobaixinho que nem sei se ele consegue me escutar.Ele continua encarando a rua como o babaca queé. Aperto os olhos, cruzo os braços e volto a mesentar direito no banco. Fico olhando pela janela docarona e xingo o carma. Xingo o carma por tertrazido esse caso perdido para minha vida só paraque ele a arruinasse.Quando ele continua dirigindo sem responder anenhuma palavra que fiz, tudo que sou capaz de fazer

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é soltar uma pequena risada ridícula.— Você é mesmo um caso perdido — murmuro.Treze anos antes— Preciso fazer xixi — diz ela, rindo.Estamos agachadas debaixo do pórtico,esperando que Dean nos encontre. Gosto debrincar de pique esconde, mas gosto de meesconder. Não quero que saibam que ainda nãosei contar, e sempre me pedem para fazer isso.Dean sempre diz para eu contar até vinte quandovão se esconder, mas não sei fazer isso. Então sófico de olhos fechados fingindo que estoucontando. Os dois já estão na escola, e eu só vouentrar ano que vem, então não sei contar tão bemquanto eles.— Ele está vindo — avisa ela, engatinhandoum pouco para trás.A terra debaixo do pórtico está fria, entãotento evitar encostar ali com as mãos como elaestá fazendo, mas minhas pernas estão doendo.— Less! — grita ele. Ele se aproxima dopórtico e segue direto para os degraus. Estamosnos escondendo há um bom tempo, e parece queele se cansou de nos procurar. Ele se senta nosdegraus, que estão quase bem na frente da gente.Quando inclino a cabeça, consigo ver seu rosto.— Cansei de procurar!Eu me viro e olho para Lesslie para ver seestá preparada para sair correndo. Ela balança acabeça e leva o dedo aos lábios.— Hope! — grita ele, ainda sentado nosdegraus. — Desisto!Ele dá uma olhada no pátio e suspira emsilêncio. Depois murmura e chuta o cascalho, oque me faz rir. Lesslie me dá um murro no braço,me dizendo para ficar quieta.Ele começa a rir, e na hora acho que é porqueestá ouvindo a gente, mas depois percebo queestá apenas falando sozinho.— Hope e Less — diz ele baixinho. —Hopeless. — Ele ri de novo e se levanta. — Estãome ouvindo? — grita ele, pondo as mãos ao redorda boca. — Vocês duas juntas são um casoperdido [hopeless]!Escutá-lo fazer essa brincadeira com nossosnomes faz Lesslie rir, e ela sai de baixo dopórtico. Vou atrás dela e me levanto no instanteem que Dean se vira e a vê. Ele sorri e olha paranós duas, que estamos com os joelhos cobertos de

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terra e temos teias de aranha no cabelo. Elebalança a cabeça e repete:— Um caso perdido.

Sábado, 27 de outubro de201223h20A lembrança é tão vívida; não entendo por que sóagora está surgindo. Como fui capaz de ver suatatuagem tantas vezes, ouvi-lo me chamar de Hope efalar sobre Less e mesmo assim não lembrar?Estendo a mão, agarro seu braço e levanto a mangada camisa. Sei que está ali. Sei o que diz. Mas é aprimeira vez que olho para ela sabendo seuverdadeiro significado.— Por que fez essa tatuagem? — Ele já mecontou, mas agora quero saber o motivo real. Eledesvia o olhar da rua e o direciona para mim.— Já disse. Quero me lembrar das pessoas quedecepcionei na vida.Fecho os olhos e me endireito no banco,balançando a cabeça. Ele me disse que não é vago,mas não consigo pensar em uma explicação maisvaga que essa. Como pode ter me desapontado? Ofato de achar que me desapontou de alguma maneiraquando eu era tão novinha nem faz sentido. E ele searrepender tanto a ponto de transformar isso numatatuagem críptica é algo muito além de qualquersuposição que sou capaz de imaginar neste momento.Não sei mais o que dizer ou fazer para ele me levarde volta para casa. Não respondeu nenhumapergunta minha e agora voltou com esses joguinhospsicológicos, dizendo apenas coisas em códigos quenão são respostas. Só quero ir para casa.Ele para o carro, e espero que dê a volta. Emvez disso, desliga o motor e abre a porta. Olho pelajanela e percebo que estamos no aeroporto outravez. Fico irritada. Não quero ficar aqui observando-oencarar as estrelas novamente enquanto pensa.Quero respostas ou então prefiro ir para casa.Escancaro a porta do carro e o sigorelutantemente até a grade, esperando que me dêalguma explicação rápida se eu fizer o que ele querpela última vez. Ele me ajuda a passar pela gradeoutra vez, nós dois voltamos para nossos lugares nomeio da pista e nos deitamos.Olho para cima na esperança de ver algumaestrela cadente. Estou mesmo precisando fazer um oudois desejos agora. Desejaria voltar dois meses no

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tempo e não entrar no mercado naquele dia.— Está pronta para as respostas? — perguntaHolder.Viro a cabeça para ele.— Só se você estiver planejando ser sincero deverdade dessa vez.Ele se apoia no braço e se vira para o lado, meolhando. Faz aquela coisa de novo, de ficar meencarando em silêncio. Está mais escuro que daúltima vez que estivemos aqui, então é difícilidentificar a expressão em seu rosto. No entanto, dápara ver que está triste. Seus olhos jamais conseguemesconder a tristeza. Ele inclina-se para a frente eergue a mão, levando-a até minha bochecha.— Preciso beijar você.Quase caio na gargalhada, mas tenho medo deque, se eu fizer isso, vou dar uma gargalhada insana,o que me deixa apavorada, pois já acho que estouenlouquecendo. Balanço a cabeça, chocada por elesequer pensar que o deixaria me dar um beijo agora.Não depois de descobrir que passou os dois últimosmeses mentindo para mim.— Não — afirmo.Ele mantém o rosto perto do meu e a mão emminha bochecha. Odeio o fato de que, apesar detoda a minha raiva ter sido causada por suasmentiras, meu corpo ainda reage ao seu toque. É umabatalha interna um tanto estranha quando a pessoanão consegue decidir se quer esmurrar a boca a 10centímetros de seu rosto ou sentir o gosto dela.— Preciso beijar você — repete ele, soandodesesperado dessa vez. — Por favor, Sky. Tenhomedo de que depois do que vou contar... nuncapoderei beijar você de novo. — Ele chega mais pertode mim e acaricia minha bochecha com o polegar,sem desviar os olhos dos meus nem por um segundo.— Por favor.Faço que sim com a cabeça ligeiramente, semsaber por que minha fraqueza está falando mais alto.Ele abaixa a boca até a minha e me beija. Fecho osolhos e me permito senti-lo, pois grande parte demim também está com medo de que essa seja aúltima vez em que vou sentir sua boca na minha.Tenho medo de que essa seja a última vez que vousentir alguma coisa, pois foi só com Holder que quissentir algo.Ele se ajeita até ficar de joelhos, segurando meurosto com uma das mãos e apoiando a outra noconcreto ao lado da minha cabeça. Ergo a mão e apasso em seu cabelo, puxando-o para minha boca

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com urgência. Sentir-lhe o gosto e o hálito semisturando com o meu momentaneamente me faz nãopensar em nada do que aconteceu essa noite. Nessemomento, estou concentrada nele, no meu coração eem como este está acelerando e se partindo aomesmo tempo. Quando penso que o que sinto porele não é justificável nem verdadeiro, sinto dor. Sintodor em toda parte. Na cabeça, na barriga, no peito,no coração, na alma. Antes, achava que o beijo deleera capaz de me curar. Agora parece que seu beijoestá criando uma angústia terminal dentro de mim.Ele sente que estou ficando frustrada conformeos soluços começam a sair da minha garganta. Eleleva os lábios até minha bochecha e depois até aorelha.— Desculpe-me — diz ele, me abraçando. —Desculpe-me, de verdade. Não queria que soubesse.Fecho os olhos e o afasto de mim, depois mesento e respiro fundo. Enxugo as lágrimas com odorso da mão e puxo as pernas para cima,abraçando-as com força. Enterro o rosto nos joelhospara não ter de olhar para ele mais uma vez.— Só quero que fale logo, Holder. Pergunteitudo que queria no caminho para cá. Preciso que meresponda agora para que eu possa voltar para casalogo. — Minha voz soa frustrada e saturada.Sua mão toca a parte de trás da minha cabeça, eele fica passando os dedos ali enquanto pensa numaresposta. Em seguida, limpa a garganta.— Não tinha certeza de que era mesmo Hope naprimeira vez que a vi. Estava tão acostumado a vê-lano rosto de todas as desconhecidas da nossa idadeque há alguns anos tinha desistido de tentar encontrála.Mas, quando a vi no mercado e olhei nos seusolhos, tive a sensação de que era mesmo ela.Quando me mostrou a identidade e percebi queestava errado, fiquei me sentindo ridículo. Como seesse tivesse sido o alerta final de que precisava parafinalmente deixar a lembrança dela para trás.Ele para de falar, passa a mão devagar pelo meucabelo e a apoia nas minhas costas, onde fazpequenos círculos com o dedo. Tenho vontade deafastar a mão, mas quero ainda mais que fique ondeestá.— Fomos vizinhos de você e seu pai por umano. Você, eu e Less... nós éramos melhores amigos.Mas é tão difícil se lembrar dos rostos de tantotempo atrás. Achei que você fosse Hope, mastambém pensei que se fosse mesmo ela, eu nãoduvidaria. Achava que, se a visse novamente algum

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dia, teria certeza de que era ela.“Quando saí do mercado naquele dia, fui logopesquisar na internet o nome que me deu. Nãoconsegui descobrir nada a seu respeito, nem mesmono Facebook. Passei uma hora inteira procurando efiquei tão frustrado que fui correr para me acalmar.Quando dei a volta na esquina e a vi na frente daminha casa, não consegui respirar. Estava lá parada,exausta da corrida e... meu Deus, Sky. Estava tãolinda. Ainda não sabia se era Hope ou não, masnaquele momento isso nem passou pela minhacabeça. Não me importava com quem você era;simplesmente precisava conhecê-la melhor.“Depois de passar mais tempo com você naquelasemana, não pude deixar de aparecer na sua casanaquela sexta à noite. Não fui com intenção deinvestigar seu passado nem com esperança de quealgo acontecesse entre nós. Fui à sua casa porquequeria que conhecesse quem realmente sou, nãoquem as pessoas pensam que sou. Depois de passarmais tempo com você naquela noite, não conseguipensar em mais nada, só no que fazer parapassarmos mais tempo juntos. Nunca tinha conhecidoninguém que me entendia como você. Ainda meperguntava se era possível... se era possível que fosseela. Fiquei mais curioso ainda depois que me contouque era adotada, mas, de novo, achei que podia sercoincidência.“Mas quando vi a pulseira...”Ele para de falar e afasta a mão das minhascostas. Ele desliza o dedo por debaixo do meuqueixo, afastando meu rosto dos joelhos e mefazendo olhar em seus olhos.— Fiquei magoado, Sky. Não queria que vocêfosse ela. Queria que dissesse que ganhou a pulseirade uma amiga, que a encontrou ou que comprou.Depois de tantos anos a procurando em todos osrostos que via por aí, finalmente tinha encontradovocê... e fiquei arrasado. Não queria que fosseHope. Só queria que você fosse você.Balanço a cabeça, ainda tão confusa quantoantes.—Mas por que não me contou? Por que seriatão difícil admitir que a gente se conhecia? Nãoentendo por que tem mentido sobre isso.Ele me olha por um instante enquanto procurauma resposta adequada e afasta o cabelo dos meusolhos.—O que se lembra da sua adoção?Balanço a cabeça.

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— Pouca coisa. Sei que fiquei com uma famíliade acolhimento temporário depois que meu pai meentregou. Sei que Karen me adotou e que nosmudamos para cá de outro estado quando tinha 5anos. Fora isso e algumas lembranças aleatórias, nãosei de mais nada.Ele fica com a postura igual à minha e põe asmãos nos meus ombros com firmeza, como seestivesse ficando frustrado.— Tudo isso foi Karen que lhe contou. Querosaber o que você lembra. O que você lembra, Sky?Dessa vez, balanço a cabeça devagar.— De nada. As lembranças mais antigas quetenho são com Karen. A única coisa que lembroantes de Karen é de ganhar a pulseira, mas isso é sóporque ainda a tenho e a lembrança ficou grudada emminha cabeça. Nem sei quem foi que me deu.Holder segura meu rosto e leva os lábios atéminha testa. Ele mantém os lábios ali, segurando-meem sua boca como se estivesse com medo de seafastar por não querer mais falar. Ele não quer ter decontar o que quer que saiba.— Diga logo — sussurro. — Diga o que é quepreferia não ter de me contar.Ele afasta a boca e pressiona a testa na minha.Os olhos estão fechados, e ele está segurando meurosto com firmeza. Parece tão triste, o que me fazquerer abraçá-lo apesar de eu estar tão frustradacom ele. Ponho os braços ao seu redor e o abraço.Ele retribui o abraço e me põe no colo. Coloco aspernas ao redor da sua cintura, e nossas testascontinuam unidas. Ele está me segurando, mas dessavez parece que está fazendo isso porque a Terra lhesaiu do eixo e eu sou seu centro.— Conte logo, Holder.Ele passa as mãos na minha lombar e abre osolhos, afastando a testa da minha para poder meolhar enquanto fala.— No dia em que Less lhe deu a pulseira, vocêestava chorando. Eu me lembro de todos os detalhescomo se tivesse sido ontem. Você estava no jardim,de costas para sua casa. Less e eu ficamos sentadoscom você por um bom tempo, mas você não paravade chorar. Ela voltou para nossa casa depois de lhedar a pulseira, mas não consegui fazer isso. Eu mesentia mal em deixá-la sozinha, porque pensei quepodia estar com raiva do seu pai de novo. Estavasempre chorando por causa dele, o que me faziaodiá-lo. Não me lembro de nada sobre ele, só que euo odiava por fazer você se sentir daquele jeito. Eu só

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tinha 6 anos, então nunca sabia o que dizer quandovocê chorava. Acho que naquele dia eu disse algocomo: “Não se preocupe...”— Ele não vai viver para sempre — digo,terminando a frase. — Eu me lembro daquele dia. DeLess me dando a pulseira e de você me dizendo queele não viveria para sempre. São dessas duas coisasque sempre me lembrei. Só não sabia que era você.— É, foi o que disse para você. — Ele leva asmãos até minhas bochechas e continua falando. — Edepois fiz algo de que me arrependo diariamente.Balanço a cabeça.— Holder, você não fez nada. Só foi embora.— Exatamente — diz ele. — Voltei para ojardim da minha casa apesar de saber que devia terficado ao seu lado na grama. Fiquei parado nojardim, observando você chorar apoiada nospróprios braços, quando devia estar chorando nosmeus. Tudo o que fiz foi ficar parado... observando ocarro estacionar. Vi abaixarem a janela do carona, eescutei alguém chamar seu nome. Vi você olhar parao carro e enxugar os olhos. Você se levantou, limpouo short e foi até o carro. Vi quando entrou e sabiaque, o que quer que estivesse acontecendo, nãodevia simplesmente ficar parado. Mas tudo que fiz foiobservar quando eu devia ter ficado do seu lado.Nunca teria acontecido se eu tivesse ficado do seulado.O medo e o arrependimento em sua voz fazemmeu coração disparar no peito. De alguma maneira,encontro forças para falar, apesar do medo que meconsome.— Não devia ter acontecido o quê?Ele beija minha testa de novo, e seus polegaresalisam delicadamente as maçãs do meu rosto. Holderolha para mim como se estivesse com medo de memagoar.— Eles levaram você. Quem quer que estivessenaquele carro levou você do seu pai, de mim, deLess. Está desaparecida há 13 anos, Hope.

Sábado, 27 de outubro de201223h57Uma das coisas que amo nos livros é que elesconseguem definir e condensar certos momentos davida de um personagem em capítulos. É intrigante,pois na vida real é impossível fazer isso. Não dá paraterminar um capítulo, pular as coisas pelas quais apessoa não quer passar e simplesmente começar um

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capítulo que melhor se encaixa com sua vontade. Avida não pode ser dividida em capítulos... só emminutos. Os acontecimentos da vida de uma pessoaestão todos aglomerados um minuto após o outro,sem nenhum intervalo de tempo, páginas em brancoou pausas de capítulo, porque não importa o queaconteça, a vida simplesmente continua, segue emfrente, as palavras são ditas, e as verdades sempresurgem, quer você queira ou não, e a vida nuncadeixa você fazer uma pausa apenas para recuperar aporra do fôlego.Preciso de uma dessas pausas de capítulo. Tudoque quero é recobrar o fôlego, mas não tenho ideiade como fazer isso.— Diga alguma coisa — diz ele. Ainda estousentada em seu colo, com as pernas ao seu redor.Minha cabeça está encostada no seu ombro, e meusolhos, fechados. Ele põe a mão na parte de trás daminha cabeça e leva a boca até meu ouvido, meabraçando mais. — Por favor. Diga algo.Não sei o que quer que eu diga. Será que querque eu demonstre surpresa? Choque? Quer que euchore? Que grite? Não consigo fazer nada disso poisainda estou tentando entender o que está dizendo.“Você está desaparecida há 13 anos, Hope.”As palavras se repetem na minha cabeça semparar, como um disco arranhado.“Desaparecida.”Espero que esteja dizendo desaparecida nosentido figurado, que nem quando as pessoas dizem“quanto tempo não nos vemos, você desapareceu!”.Mas duvido que seja isso. Vi a expressão em seusolhos quando falou aquelas palavras, aquelas que nãoqueria dizer de maneira alguma. Sabia o que elasprovocariam em mim.Talvez ele queira mesmo dizer no sentido literal eesteja confuso. Éramos muito novos; é provável quenão se lembre corretamente da sequência deacontecimentos. Mas os últimos dois meses sepassaram rápido demais diante dos meus olhos, etudo sobre ele... todas as personalidades, variaçõesde humor e palavras crípticas posso finalmentecompreender. Como a noite em que estava na minhaporta e disse que passou a vida inteira meprocurando. Estava falando no sentido literal.Ou na nossa primeira noite bem aqui nesta pista,quando perguntou se minha vida tinha sido boa. Elepassou os últimos 13 anos preocupado com o quetinha acontecido comigo. Estava sendo bem literalnaquele momento, querendo saber se tinha sido feliz

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onde tinha ido parar.Ou quando se recusou a pedir desculpas pelamaneira como agiu no refeitório, explicando quesabia o que o deixou chateado mas que não podiame contar ainda. Não questionei aquilo na hora, poisparecia ter sido sincero sobre querer me explicaralgum dia. Nunca em um milhão de anos eu teriaadivinhado o motivo que o deixou tão chateado aome ver usando a pulseira. Ele não queria que eu fosseHope por saber que a verdade me deixaria magoada.E tinha razão.“Você está desaparecida há 13 anos, Hope.”A última palavra me faz sentir um calafrio nascostas. Devagar, levanto o rosto, ficando longe deseu ombro, e olho para ele.— Você me chamou de Hope. Não me chameassim. Esse não é meu nome.Ele balança a cabeça.— Desculpe-me, Sky.A última palavra dessa frase também me fazsentir um calafrio nas costas. Saio de cima dele e melevanto.— Também não me chame disso — digo comdeterminação.Não quero ser chamada de Hope, de Sky ou deprincesa nem de nada que me separe de qualqueroutra parte de mim mesma. De repente me sintocomo se fosse pessoas completamente diferentesaglomeradas numa só. Alguém que não sabe quem énem onde é seu lugar, e isso é perturbador. Nuncame senti tão isolada na vida; como se não houvesseuma única pessoa no mundo inteiro em que pudesseconfiar. Nem eu mesma. Não posso confiar nem nasminhas próprias lembranças.Holder se levanta e segura minhas mãos, olhandopara mim. Está me observando, esperando minhareação. Mas vai ficar desapontado, pois não voureagir. Não aqui. Não agora. Parte de mim querchorar enquanto ele me abraça e sussurra “não sepreocupe” no meu ouvido. Parte de mim quer gritar,berrar e bater nele por ter me enganado. Parte demim quer deixar que continue se culpando por nãoter impedido o que afirma ter acontecido 13 anosantes. Mas a maior parte de mim só quer que tudodesapareça. Quero voltar a não sentir nada. Tenhosaudade do entorpecimento.Solto minhas mãos das dele e começo a andarem direção ao carro.— Preciso da pausa de um capítulo — digo,mais para mim mesma.

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Ele vem atrás de mim.— Nem sei o que isso significa. — A voz delesoa frustrada e confusa.Ele segura meu braço para me parar, e mais doque provavelmente para perguntar o que estousentindo, mas eu o empurro para longe e me viropara ele mais uma vez. Não quero que me pergunte oque estou sentindo, pois não faço a menor ideia.Estou atravessando uma gama inteira de sentimentosagora, alguns que nunca tive antes. Raiva, tristeza,medo e descrença acumulam-se dentro de mim, equero que isso pare. Só quero parar de sentir tudoisso, então ergo o braço, seguro seu rosto epressiono meus lábios nos dele. Beijo-o com força erapidez, querendo que reaja, mas ele não faz isso.Não retribui o beijo. Ele se recusa a fazer minha dordesaparecer assim, e, então, minha raiva fala maisalto, me fazendo afastar meus lábios e lhe dar umtapa. Ele mal se contorce, o que me deixa furiosa.Quero que ele sofra, assim como eu. Quero que sintao que suas palavras fizeram comigo. Dou outro tapa,e ele permite. Quando vejo que continua nãoreagindo, empurro seu peito. Empurro várias vezesseguidas — tentando devolver cada grama desofrimento que acabou de infiltrar na minha alma.Cerro os punhos, bato em seu peito e, quando vejoque isso não funciona, começo a gritar, a bater nele ea tentar me desvencilhar dos seus braços, pois agoraestão em volta de mim. Ele me vira, para que minhascostas se apoiem em seu peito e nossos braçosfiquem juntos, dobrados na minha barriga.— Respire — sussurra ele no meu ouvido. —Acalme-se, Sky. Sei que está confusa e assustada,mas estou aqui. Estou bem aqui. Apenas respire.A voz é calma e reconfortante, e fecho os olhospara assimilar tudo. Ele simula uma respiração funda,movendo o peito no mesmo ritmo do meu, meobrigando a inspirar e fazer o mesmo. Inspiro lenta eprofundamente várias vezes, acompanhando-o.Quando paro de me debater em seus braços, ele mevira devagar e me puxa para seu peito.— Não queria que você sofresse tanto assim —sussurra ele, balançando minha cabeça nas mãos. —Por isso não tinha contado nada.Percebo agora que nem estou chorando. Nãochorei desde que a verdade saiu de seus lábios, efaço questão de conter as lágrimas que estãoquerendo correr. Lágrimas não vão me ajudar nessemomento. Só vão me deixar mais fraca.Coloco as palmas das mãos no peito dele e o

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empurro de leve. Sinto como se estivesse maisvulnerável às lágrimas enquanto ele me abraçaporque sua presença é muito reconfortante. Nãopreciso que ninguém me conforte. Preciso aprender adepender somente de mim mesma para ser forte,porque sou a única pessoa em que posso confiar —mas não sei nem se eu mesma sou confiável. Tudoque eu achava que sabia era mentira. Não sei quemestá por dentro disso nem quem sabe a verdade, epercebo que não sobrou mais confiança alguma emmeu coração. Nem em Holder, ou em Karen... nemem mim mesma, na verdade.Afasto-me e olho-o nos olhos.— Você planejava me contar quem eu sou emalgum momento? — pergunto, fulminando-o com oolhar. — E se nunca me lembrasse? Você teria mecontado a verdade alguma hora? Tinha medo de queeu fosse abandoná-lo e que fosse perder aoportunidade de trepar comigo? É por isso quepassou esse tempo inteiro mentindo para mim?Ele fica bastante ofendido no instante em que aspalavras saem dos meus lábios.— Não. Não foi nada disso. Não é nada disso.Não contei porque tenho medo do que podeacontecer com você. Se eu denunciar para a polícia,vão tirar você de Karen. É mais do que provável queela seja presa e que você seja obrigada a voltar amorar com seu pai até completar 18 anos. Quer queisso aconteça? Você ama Karen, e é feliz aqui. Nãoqueria estragar tudo isso.Solto uma breve gargalhada e balanço a cabeça.O raciocínio nem faz sentido. Nada disso faz sentido.— Para começar — digo —, não prenderiamKaren porque garanto que ela não sabe nada sobreisso. Em segundo lugar, tenho 18 anos desdesetembro. Se não estava sendo honesto comigo porcausa da minha idade, devia ter me contado emalgum momento depois do meu aniversário.Ele aperta minha nuca e olha para o chão. Nãogosto do nervosismo que está demonstrando. Pelamaneira como está reagindo, percebo que asconfissões ainda não acabaram.— Sky, tem tanta coisa que ainda precisoexplicar. — Ele volta a me olhar nos olhos. — Seuaniversário não foi em setembro. Você faz aniversáriodia 7 de maio. E só completa 18 anos daqui a seismeses. E Karen? — Ele dá um passo na minhadireção, agarrando minhas mãos. — Ela tem desaber, Sky. Ela tem de saber. Pare para pensar.Quem mais poderia ter feito isso?

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Imediatamente, solto minhas mãos e me afasto.Sei que é bem provável que guardar esse segredotenha sido uma tortura para ele. Vejo em seus olhosque está sofrendo por me contar tudo isso. Mastenho dado o benefício da dúvida a ele desde oinstante em que nos conhecemos, e qualquercompaixão que sentia por ele acabou dedesaparecer, porque agora está tentando me dizerque minha própria mãe estava envolvida nisso.— Me leve para casa — exijo. — Não queroouvir mais nada. Não quero descobrir mais nadahoje. Ele tenta segurar minhas mãos outra vez, mas asafasto com tapas.— ME LEVE PARA CASA! — grito.Começo a voltar para o carro. Já ouvi osuficiente. Preciso de minha mãe. Tudo que preciso évê-la, abraçá-la e saber que não estou totalmentesozinha, pois é bem assim que estou me sentindo.Chego à grade antes de Holder e tento subi-lasozinha, mas não consigo. Minhas mãos e braçosestão fracos e tremendo. Ainda estou tentandoescalar sozinha quando ele se aproxima por trás demim e me levanta. Salto para o outro lado e ando atéo carro.Ele se senta no banco do motorista e fecha aporta, mas não liga o carro. Fica encarando o volantecom a mão imóvel na ignição. Observo suas mãoscom emoções conflitantes, pois quero tanto senti-lasao meu redor. Quero essas mãos ao meu redor,massageando minhas costas e meu cabelo enquantoele me diz que tudo vai ficar bem. Mas também asolho com nojo, pensando em todas as formas íntimascomo ele me tocou e me abraçou, sabendo o tempointeiro que estava me enganando. Como pôde ficarcomigo, sabendo de tudo aquilo, e me deixaracreditar em todas as mentiras? Não sei se sou capazde perdoá-lo por isso.— Sei que é muita coisa para assimilar — diz elebaixinho. — Sei que é. Vou levá-la para casa, masprecisamos conversar sobre isso amanhã. — Ele sevira para mim com um olhar insensível. — Sky, vocênão pode contar isso a Karen. Está entendendo?Não até nós dois encontrarmos uma explicação paratudo.Concordo com a cabeça, só para tranquilizá-lo.Não é possível que realmente ache que não vou falarcom ela sobre isso.Ele vira todo o corpo na minha direção e seinclina, colocando a mão no meu apoio de cabeça.— Estou falando sério, linda. Sei que não achaque ela é capaz de fazer algo assim, mas até

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descobrirmos mais coisas, precisa guardar essesegredo. Se contar para alguém, sua vida inteira vaimudar. Dê um tempo para conseguir processar tudo.Por favor. Por favor me prometa que vai esperar atédepois de amanhã. Até depois de conversarmosoutra vez.O tom apavorado perfura meu coração e façoque sim com a cabeça de novo, mas desta vez estousendo sincera.Ele fica me observando por vários segundos,então, se vira devagar e liga o carro, seguindo para arua. Ele dirige os 6 quilômetros até minha casa, enada é dito até chegarmos. Umas das minhas mãosestá na maçaneta da porta, e estou prestes a sair docarro quando ele segura a outra mão.— Espere — diz ele. Faço isso, mas não meviro. Fico com um pé dentro do carro e o outro nojardim, olhando para a porta. Ele toca minha têmporae põe um fio de cabelo atrás da minha orelha. — Vaificar bem hoje?Suspiro com a simplicidade da pergunta.— Como? — Volto para o banco e me viropara ele. — Como posso ficar bem depois de hoje?Ele fica me encarando e continua alisando meucabelo.— Está acabando comigo... ter de deixá-la irembora. Não quero deixá-la sozinha. Posso voltardaqui a uma hora?Sei que está pedindo para entrar pela minhajanela e se deitar do meu lado, mas balanço a cabeçano mesmo instante.— Não dá — digo, com a voz falhando. — Estásendo difícil demais ficar perto de você agora. Sópreciso pensar. Podemos nos ver amanhã, está bom?Ele concorda com a cabeça, leva a mão daminha bochecha para o volante e me observa sair docarro e me afastar.

Domingo, 28 de outubrode 201200h37Ao passar pela porta e entrar na sala, espero serenglobada pela sensação de conforto de que estouprecisando desesperadamente. A familiaridade e asensação de pertencimento é algo de que necessitopara me acalmar, para acabar com a vontade dechorar. Aqui é a casa onde moro com Karen... umamulher que me ama e que faria qualquer coisa pormim, independentemente do que Holder acha.

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Fico parada no meio da sala escura, esperando asensação me envolver, mas isso não acontece. Ficoolhando ao redor cheia de suspeita e dúvida, e odeioestar observando agora minha vida de umaperspectiva completamente diferente.Atravesso a sala de estar e paro perto da portado quarto de Karen. Penso em ir me deitar com ela,mas a luz lá dentro está apagada. Jamais preciseitanto estar com ela quanto agora, mas não sou capazde abrir a porta do quarto. Talvez ainda não estejapronta para enfrentá-la. Em vez disso, sigo pelocorredor em direção ao meu quarto.Vejo que a luz do meu quarto está acesa porbaixo da porta. Coloco a mão na maçaneta e a viro,abrindo a porta devagar. Karen está sentada naminha cama. Olha para mim quando ouve a porta seabrir e se levanta no mesmo instante.— Onde você estava? — Ela parecepreocupada, mas há uma certa raiva em sua voz. Outalvez desapontamento.— Com Holder. Você não falou a hora que euprecisava voltar.Ela aponta para a cama.— Sente-se. Precisamos conversar.Tudo nela está parecendo diferente agora. Ficoobservando-a com cautela. Sinto como se estivessefingindo ser a filha obediente enquanto concordo coma cabeça. É como se estivesse numa cena de umfilme dramático do canal Lifetime. Vou até a cama eme sento, sem saber o que a deixou tão irritada.Estou torcendo um pouco para que tenha descobertoo que eu descobri esta noite. Assim seria muito maisfácil contar tudo.Ela senta-se do meu lado e se vira para mim.— Não pode mais sair com ele — diz ela comfirmeza.Pisco duas vezes, mais por estar chocada com otema da conversa. Não imaginava que tinha a vercom Holder.— O quê? — digo, confusa. — Por quê?Ela põe a mão no bolso e tira meu celular.— O que é isso? — pergunta ela rangendo osdentes.Olho para meu telefone sendo segurado comfirmeza pelas mãos de Karen. Ela aperta um botão eergue a tela para que eu veja.— E o que diabos são essas mensagens, Sky?Elas são péssimas. Ele diz coisas horríveis e malvadaspara você. — Ela deixa o telefone na cama e estendeo braço, segurando minhas mãos. — Por que você

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se permite ficar com alguém que a trata assim? Não acriei assim.Ela não está mais erguendo o tom de voz. Agoraestá apenas fazendo o papel de mãe preocupada.Aperto suas mãos para tranquilizá-la. Sei que émais do que provável que eu esteja encrencada porcausa do telefone, mas preciso que saiba que asmensagens não são nada do que está pensando. Naverdade, me sinto até um pouco boba por estarmostendo essa conversa. Quando a comparo com osnovos problemas da minha vida, isso fica parecendoum pouco infantil.— Mãe, ele não está falando sério. Ele mandaessas mensagens de brincadeira.Ela solta uma risada desanimada e balança acabeça, discordando.— Há algo de errado com ele, Sky. Não gostocomo olha para você. Não gosto como olha paramim. E o fato de ele ter comprado um telefone paravocê sem respeitar nem um pouco as minhas regrassó mostra o tipo de respeito que ele tem pelaspessoas. Não importa se as mensagens são debrincadeira ou não, não confio nele. E acho que vocêtambém não devia confiar.Fico encarando-a. Ela continua falando, mas ospensamentos na minha cabeça estão ficando cada vezmais barulhentos, bloqueando quaisquer que sejam aspalavras que está tentando enfiar no meu cérebro. Aspalmas das minhas mãos começam a suar nesseinstante, e sinto o batimento do meu coração nostímpanos. Todas as crenças, escolhas e regras deKaren estão surgindo na minha mente e tento separálase colocá-las em seus devidos capítulos, mas estátudo misturado. Tiro o primeiro pensamento da pilhade perguntas e sou direta com ela.— Por que não posso ter um celular? —sussurro. Não tenho nem certeza se perguntei alto osuficiente para que me escutasse, mas ela para demexer a boca, então sei que deu para escutar. — Einternet — acrescento. — Por que não quer que euuse a internet?As questões passam a envenenar minha cabeça esinto como se precisasse colocá-las para fora. Tudoestá começando a se encaixar, mas espero que nãopasse de uma coincidência. Espero que ela tenha meisolado porque me ama e quer me proteger. Porém,lá no fundo, está ficando bem claro que me excluiudurante toda minha vida porque estava meescondendo.— Por que me fez estudar em casa? —

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pergunto, dessa vez bem mais alto.Seus olhos estão arregalados, e é óbvio que elanão faz nem ideia do motivo que me levou a fazeressas perguntas agora. Ela se levanta e olha paramim.— Não vai virar isso tudo contra mim, Sky.Você mora na minha casa e segue minhas regras. —Ela pega o telefone na cama e vai até a porta. —Está de castigo. O celular já era. Seu namorado jáera. Amanhã conversamos sobre isso.Ela bate a porta, e imediatamente me jogo nacama, me sentindo mais desesperada que antes deentrar em casa.Não pode ser. É apenas uma coincidência. Nãopode ser. Ela não seria capaz de fazer algo assim.Aperto os olhos para conter as lágrimas e me recusoa acreditar nisso. Precisa haver alguma outraexplicação. Talvez Holder esteja confuso. TalvezKaren esteja confusa.Sei que eu estou confusa.Tiro o vestido, visto uma camisa, desligo a luz evou para debaixo das cobertas. Estou torcendo paraacordar amanhã e perceber que tudo não passou deum pesadelo. Se não for isso, não sei quanto maisvou aguentar antes que minhas forças se esgotem devez. Fico encarando as estrelas brilhando acima daminha cabeça e começo a contá-las. Afasto tudo etodos da mente e me concentro cada vez mais nelas.Treze anos antesDean volta para seu jardim e se vira para meolhar. Enterro a cabeça de novo no braço e tentoparar de chorar. Sei que eles provavelmentequerem brincar de pique esconde de novo antesque eu precise voltar para casa, então tenho deparar de ficar triste para podermos brincar.— Hope!Ergo o olhar para Dean, mas ele não estámais olhando para mim. Achei que tinha mechamado, mas está olhando para um carro, queestá estacionado na frente da minha casa com ajanela aberta.— Venha aqui, Hope — diz a moça.Está sorrindo e me pedindo para ir até ajanela. Sinto como se a conhecesse, mas não seiseu nome. Eu me levanto para ver o que quer.Limpo a terra do short e ando até o carro. Elaainda está sorrindo e parece bem legal. Quandochego ao carro, ela aperta o botão que destravaas portas.

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— Está pronta para ir, querida? Seu pai querque a gente vá logo.Não sabia que eu devia ir a algum lugar.Papai não falou que a gente ia sair hoje.— Para onde a gente vai? — pergunto paraela.Ela sorri, põe a mão na maçaneta e abre aporta para mim.— No caminho eu conto. Entre e ponha ocinto, não podemos nos atrasar.Ela não quer mesmo chegar atrasada nolugar para onde estamos indo. Não quero que seatrase, então me sento no banco e fecho a porta.Ela sobe a janela e começa a dirigir para longeda casa.Olha para mim, sorri e estica o braço para obanco de trás. Ela me entrega uma caixinha desuco, então pego e abro o canudo.— Meu nome é Karen — diz ela. — E você vaificar comigo por um tempinho. Vou contar tudoquando chegarmos lá.Tomo um gole do meu suco. É de maçã.Adoro suco de maçã.— Mas e meu papai? Ele também vai?Karen balança a cabeça.— Não, querida. Vamos ser só nós duasquando chegarmos lá.Ponho o canudo de volta na boca pois nãoquero que ela me veja sorrindo. Não quero quesaiba que estou contente porque papai não vaiconosco.

Domingo, 28 de outubrode 201202h45Eu me sento.Foi um sonho.Foi só um sonho.Sinto meu coração batendo loucamente em todasas partes do meu corpo. Está batendo tão forte queconsigo escutá-lo. Estou ofegante e toda suada.Foi só um sonho.Tento me convencer disso. Quero acreditar comtodo o meu coração que a lembrança que acabei deter não foi real. Não pode ser.Mas é. Eu me lembro nitidamente, como setivesse sido ontem. Toda vez que tenho me lembradode alguma coisa nos últimos dias, uma nova memóriaaparece logo em seguida. Coisas que estava

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reprimindo, ou de que não me lembrava por ser novademais, estão voltando com força total. Coisas quenão quero lembrar. Coisas que preferia não saber.Tiro as cobertas de cima de mim e estendo obraço para ligar o abajur. O quarto se acende, e douum grito ao perceber que tem mais alguém na minhacama. Assim que o grito escapa, ele acorda e selevanta de repente.— O que diabos está fazendo aqui? — sussurroalto.Holder olha para o relógio e esfrega os olhoscom as palmas das mãos. Quando ele acorda osuficiente para reagir, põe a mão no meu joelho.— Não fui capaz de deixá-la sozinha. Precisavagarantir que estava bem. — Ele encosta no meupescoço, bem abaixo da orelha, e alisa meu queixocom o polegar. — Seu coração — diz ele, sentindomeu pulso com as pontas dos dedos. — Você estácom medo.Vê-lo na minha cama, cuidando de mim comoestá fazendo agora... não tenho como ter raiva dele.Não posso culpá-lo. Quero sentir raiva, mas nãoconsigo. Se ele não estivesse aqui comigo agora parame consolar após o que acabei de perceber, não seio que faria. Ele não fez nada além de culpar a sipróprio por todas as coisas que aconteceramcomigo. Estou começando a aceitar que talvez eleprecise de tanto consolo quanto eu. Por isso, deixoele roubar mais um pedaço do meu coração. Seguroa mão que está no meu pescoço e a aperto.— Holder... eu me lembro. — Minha voz tremeenquanto falo e sinto as lágrimas querendo cair.Engulo em seco e as contenho com toda a minhaforça.Ele se aproxima de mim na cama e me vira paraque eu fique totalmente de frente para ele. Ele põe asmãos no meu rosto e sustenta meu olhar.— O que você lembra?Sacudo a cabeça, sem querer contar. Ele não mesolta e me convence com os olhos, balançando acabeça com sutileza, garantindo que não temproblema algum eu contar. Sussurro o mais baixinhoque posso, com medo de falar em voz alta.— Era Karen no carro. Foi ela. Foi ela que melevou.Suas feições são tomadas pela aflição eaceitação, e ele me puxa para perto do seu peito, meabraçando.— Eu sei, linda — diz ele no meu cabelo. — Eusei.

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Agarro sua camisa e me seguro nele, querendonadar no consolo que seus braços fornecem. Fechoos olhos, mas só por um segundo. Ele me afastaassim que Karen abre a porta do quarto.— Sky?Eu me viro na cama e a vejo na porta, fulminandoHolder. Ela desvia o olhar para mim.— Sky? O que... o que está fazendo? —Confusão e desapontamento lhe encobrem o rosto.Lanço um rápido olhar para Holder.— Me leve embora daqui — digo baixinho. —Por favor.Ele concorda com a cabeça e vai até meu closet.Abre a porta enquanto me levanto, pego uma calçajeans na cômoda e a visto.— Sky? — diz Karen, observando nós dois daporta. Não olho para ela. Não consigo olhar paraela.Ela dá alguns passos para dentro do quarto noinstante em que Holder abre uma bolsa de lona e acoloca na cama.— Coloque algumas roupas aqui dentro. Voupegar o que você precisa do banheiro. — O tom devoz está calmo e tranquilo, o que ameniza um poucoo pânico que percorre meu corpo. Vou até o closet ecomeço a puxar as camisas dos cabides.— Você não vai a lugar algum com ele.Enlouqueceu? — A voz de Karen está quase empânico, mas mesmo assim não olho para ela.Continuo jogando roupas na bolsa. Vou até acômoda, abro a gaveta de cima e pego um monte demeias e roupas íntimas. Vou até a cama, mas Karenme interrompe, pondo as mãos nos meus ombros eme forçando a olhar para ela.— Sky — diz ela, atônita. — O que estáfazendo? O que há de errado com você? Não vaiembora com ele.Holder volta para o quarto com a mão cheia deprodutos de higiene, passa direto por Karen e colocatudo na bolsa.— Karen, sugiro que você a solte — diz ele como máximo de calma cabível em uma ameaça.Karen zomba de Holder e se vira em suadireção.— Você não vai levá-la. Se sair dessa casa comela, chamo a polícia.Holder não responde. Olha para mim, pega ascoisas na minha mão, vira-se e as coloca na bolsaantes de fechar o zíper.— Está pronta? — pergunta ele, segurando

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minha mão.Faço que sim com a cabeça.— Não estou brincando! — grita Karen.Lágrimas começam a lhe escorrer pelo rosto, e elaestá bem agitada, olhando para nós doisalternadamente. Ver seu sofrimento quebra meucoração, porque ela é minha mãe e eu a amo, masnão posso ignorar o quanto estou furiosa e me sintoenganada devido aos últimos 13 anos da minha vida.— Vou ligar para a polícia — grita ela. — Você nãotem o direito de levá-la!Ponho a mão no bolso de Holder, tiro o celular edou um passo na direção de Karen. Fito os olhosdela com o máximo de calma possível e estendo otelefone.— Tome — digo. — Ligue.Ela olha para o telefone nas minhas mãos edepois para mim.— Por que está fazendo isso, Sky? — Agora elaestá aos prantos.Seguro sua mão e coloco ali o telefone, mas elase recusa a segurá-lo.— Ligue! Ligue para a polícia, mãe! Por favor.— Agora estou implorando. Implorando para elaligar para a polícia, para provar que estou errada,provar que não tem nada a esconder, provar que eunão sou o que ela tem a esconder. — Por favor —repito baixinho. Todo o meu coração e minha almaquerem que ela pegue o telefone e ligue para apolícia, pois assim vou saber que estou errada.Ela dá um passo para trás na mesma hora emque inspira. Depois, começa a balançar a cabeça, etenho quase certeza de que sabe que eu sei, mas nãovou ficar aqui tempo suficiente para descobrir.Holder segura minha mão e me leva até a janelaaberta. Ele me deixa sair primeiro e depois me segue.Escuto Karen chamando meu nome, mas só paro deandar quando chego no carro dele. Nós doisentramos, e vou embora com Holder. Vou embora,deixando para trás a única família que conheci navida.

Domingo, 28 de outubrode 201203h10— Não podemos ficar aqui — diz ele, parando ocarro em casa. — Karen pode aparecer atrás devocê. Vou entrar rapidinho para pegar algumascoisas e já volto.

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Ele se inclina e puxa meu rosto para perto de si.Ele me beija e sai do carro. O tempo inteiro quepassa dentro de casa, eu fico com a cabeçaencostada no apoio do assento, olhando pela janela.Hoje não tem uma única estrela no céu para eucontar. Apenas relâmpagos. Parece apropriado paraa noite que tive.Holder retorna ao carro vários minutos depois ejoga a própria bolsa no banco de trás. Sua mãe estána entrada da casa, observando-o. Ele caminha atéela e segura seu rosto, assim como costuma fazercomigo, e diz alguma coisa, mas não sei o que é. Elabalança a cabeça e o abraça. Por fim, Holder voltapara o carro e entra.— O que disse a ela?Ele segura minha mão.— Disse que você e sua mãe brigaram e que voulevá-la para a casa de um parente seu em Austin.Avisei que ficaria com meu pai alguns dias e que logoestaria de volta. — Ele olha para mim e sorri. — Estátudo bem, infelizmente ela já se acostumou comigopartindo. Não está preocupada.Eu me viro e olho pela janela enquanto ele saicom o carro bem no instante em que a chuva começaa bater no para-brisa.— A gente vai mesmo ficar com seu pai?— Podemos ir para onde você quiser. Masduvido que queira ir para Austin.Olho para ele.— Por que eu não ia querer ir para lá?Ele aperta os lábios e liga os limpadores do parabrisa.Depois, põe a mão no meu joelho e faz umcarinho com o dedo.— Você é de lá — diz ele baixinho.Volto a olhar pela janela e suspiro. Tem tantascoisas que não sei. Tantas. Pressiono a testa no vidrofrio e fecho os olhos, permitindo que todas asperguntas reprimidas voltem à tona.— Meu pai ainda está vivo? — pergunto.— Está, sim.— E minha mãe? Morreu mesmo quando eutinha 3 anos?Ele limpa a garganta.— Sim. Num acidente de carro alguns mesesantes de a gente se mudar para a casa ao lado dasua.— Ele ainda mora na mesma casa?— Mora.— Quero ver essa casa. Quero ir até lá.Ele não responde de imediato. Em vez disso,

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inspira lentamente e expira.— Não acho uma boa ideia.Eu me viro para ele.— Por que não? É provável que eu pertença aessa casa mais que a qualquer outro lugar. Eleprecisa saber que estou bem.Holder para o carro no acostamento. Ele se virapara mim com uma expressão não muito boa.— Linda, não é uma boa ideia porque faz sóalgumas horas que você descobriu isso tudo. É muitacoisa para você assimilar, e é melhor não tomardecisões precipitadas. Se seu pai a vir e areconhecer, Karen vai ser presa. Precisa pensarbastante nisso. Pense na mídia. Nos repórteres.Acredite em mim, Sky. Quando você desapareceu,ficaram instalados no seu jardim por meses. A políciame entrevistou mais de vinte vezes no período dedois meses. Sua vida inteira está prestes a mudarindependentemente do que decidir. Mas quero quedecida sozinha o que achar melhor. Respondoqualquer pergunta que tiver. Levo-a para onde quiserdaqui a alguns dias. Se quiser ver seu pai, é para láque iremos. Se quiser ir à polícia, é isso que vamosfazer. Se preferir apenas fugir de tudo, é o quefaremos. Mas, por enquanto, quero apenas que vocêcomece a assimilar isso tudo. Essa é sua vida. Oresto da sua vida.Suas palavras me fazem sentir um aperto no peitocomo se fossem um torno. Não sei o que estavapensando. Não sei se estava pensando. Ele analisoua situação de várias perspectivas diferentes e nãotenho ideia do que fazer. Não tenho nenhuma ideia,porra.Escancaro a porta e saio para o acostamento, nomeio da chuva. Fico andando de um lado para ooutro, tentando me concentrar em alguma coisa paraevitar a hiperventilação. Está frio, e o que cai do céunão é mais uma chuva qualquer, é um aguaceiro.Gotas enormes golpeiam minha pele, e não consigomanter os olhos abertos por causa do impacto.Assim que Holder dá a volta no carro, vou depressaaté ele e jogo os braços ao redor de seu pescoço,enterrando o rosto na sua camisa já encharcada.— Não consigo fazer isso! — grito por cima dobarulho da chuva atingindo o pavimento. — Nãoquero que minha vida seja assim!Ele beija o topo da minha cabeça e se abaixapara falar ao meu ouvido.— Também não quero que sua vida seja assim— diz ele. — Desculpe-me. Desculpe-me por ter

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deixado isso acontecer com você.Ele desliza o dedo para baixo do meu queixo eme faz olhar para ele. Sua altura impede a chuva deatingir meus olhos, mas as gotas estão escorrendopelo rosto dele, passando por cima dos lábios edescendo pelo pescoço. O cabelo está encharcado egrudado na testa, então afasto um fio dos olhos dele.Já está precisando de um novo corte.— Não vamos deixar que essa seja sua vida hoje— diz ele. — Vamos voltar para o carro e fingir queestamos indo embora porque queremos... nãoporque precisamos. Podemos fingir que estoulevando você a um lugar incrível... um lugar quesempre quis conhecer. Pode se aconchegar em mim evamos conversando sobre o quanto estamosanimados, falando sobre tudo que faremos quandochegarmos lá. Podemos deixar as coisas importantespara depois. Mas hoje... não vamos deixar que essaseja sua vida.Puxo sua boca para a minha e o beijo. Eu o beijopor sempre saber exatamente o que dizer. Eu o beijopor sempre estar ao meu lado. Eu o beijo por apoiarqualquer que seja a decisão que eu talvez tenha detomar. Eu o beijo por ser tão paciente comigoenquanto tento entender tudo. Eu o beijo porque nãoconsigo pensar em nada melhor para fazer que voltarpara dentro do carro com ele e conversar sobre tudoo que faremos quando chegarmos ao Havaí.Separo minha boca da dele e, de algumamaneira, no meio do pior dia da minha vida, encontroforças para sorrir.— Obrigada, Holder. Mesmo. Não conseguiriapassar por isso sem você.Ele beija minha boca delicadamente mais umavez e sorri de volta.— Sim. Conseguiria, sim.

Domingo, 28 de outubrode 201207h50Os dedos dele têm mexido lentamente no meucabelo. Apoiei a cabeça em seu colo, e estamosdirigindo há mais de quatro horas. Ele desligou otelefone em Waco após receber mensagensdesesperadas de Karen, usando meu telefone,querendo que me levasse de volta para casa. Oproblema disso é o seguinte: nem sei mais onde éminha casa.Por mais que eu ame Karen, não faço ideia de

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como posso compreender o que fez. Não existenenhuma situação no mundo que justifique o roubode uma criança, então talvez jamais queira voltar paraela. Planejo descobrir o máximo possível sobre o queaconteceu antes de tomar qualquer decisão sobre oque fazer. Sei que a coisa certa seria ligar para apolícia imediatamente, mas nem sempre o correto é amelhor solução.— Acho que a gente não devia ficar na casa domeu pai — diz Holder. Tinha presumido que eleachava que eu estava dormindo, mas é óbvio quesabe que estou bem acordada. — Vamos ficar numhotel hoje e amanhã vemos o que fazer. Não saí dacasa dele de maneira muito pacífica no verão, e nãoqueremos mais drama.Concordo com a cabeça apoiada em seu colo.— Faça o que quiser. Só sei que preciso de umacama, estou exausta. Nem sei como ainda consegueficar acordado. — Eu me sento e estendo os braçosna minha frente enquanto Holder entra noestacionamento de um hotel.Depois de fazer nosso check-in, ele me dá a chavedo quarto e, em seguida, vai estacionar o carro epegar nossas coisas. Deslizo a chave na fechaduraeletrônica, abro a porta e entro no quarto. Só temuma cama, como presumi. Já dormimos na mesmacama várias vezes, então seria bem mais estranho setivesse pedido camas separadas.Ele chega no quarto alguns minutos mais tarde epõe nossas bolsas no chão. Remexo na minhaprocurando alguma roupa para dormir. Infelizmente,não trouxe nenhum pijama, então pego uma camisetacomprida e roupas íntimas.— Preciso de uma ducha.Pego os poucos itens de higiene que trouxe, oslevo para o banheiro e tomo um banho extremamentelongo. Quando termino, tento secar o cabelo, masestou cansada demais. Em vez disso, prendo-o numrabo de cavalo molhado e escovo os dentes. Quandosaio do banheiro, Holder está tirando as coisas denossas malas e pendurando nossas camisas noarmário. Ao olhar para mim, se espanta ao ver queestou só de camiseta e roupa íntima. Ele me observapor um segundo e desvia o olhar, constrangido. Estátentando me respeitar, considerando o dia que tive.Não quero que me trate como se eu fosse frágil. Emqualquer outro dia, ele faria algum comentário sobreo que estou vestindo, e suas mãos não levariam doissegundos para agarrar minha bunda. Mas ele vira decostas para mim e tira as últimas coisas de dentro da

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bolsa.—Vou tomar uma ducha rápida — avisa ele. —Enchi o balde de gelo e comprei algumas bebidas.Não sabia se ia preferir refrigerante ou água, entãotrouxe os dois. — Ele pega uma cueca boxer e passapor mim na direção do banheiro, tomando cuidadopara não me olhar. Assim que passa ao meu lado,seguro seu pulso. Ele para e se vira, olhando-mecuidadosamente nos olhos, e em nenhum outro lugar.— Pode me fazer um favor?— Claro, linda — diz ele, com sinceridade.Deslizo a mão na dele e a levo até a boca. Douum leve beijo na palma e a encosto na minhabochecha.— Sei que está preocupado comigo. Mas, se oque está acontecendo em minha vida faz com que sesinta constrangido com a atração por mim a ponto denão conseguir me olhar quando estou seminua, vai memagoar. Você é a única pessoa que sobrou em minhavida, Holder. Por favor, não me trate de um jeitodiferente.Ele olha para mim propositadamente e afasta amão de meu rosto. Seu olhar desce até meus lábios,e um pequeno sorriso se insinua no canto de suaboca.—Está me dando permissão para admitir quecontinuo a desejando mesmo depois que sua vidavirou uma merda?Faço que sim com a cabeça.— Saber que me deseja é mais necessário agoraque antes de minha vida virar uma merda.Ele sorri, leva os lábios até os meus, e sua mãoacaricia minha cintura, chegando até a lombar. Aoutra mão está firme na parte de trás de minhacabeça, guiando-a enquanto me beija comintensidade. O beijo é justamente o que eu estavaprecisando. É a única coisa que me faria sentir algumbem num mundo onde só há coisas ruins.— Preciso mesmo tomar uma ducha — diz eleentre nossos beijos. — Mas agora que tenhopermissão para tratá-la do mesmo jeito... — Eleagarra minha bunda e me puxa para perto. — Nãocaia no sono enquanto eu estiver lá dentro, pois,quando sair, vou demonstrar o quanto a estouachando linda.— Ótimo — sussurro na sua boca. Ele me soltae vai até o banheiro. Eu me deito na cama no instanteem que escuto a água correr.Tento ver televisão por um tempo, pois nuncative a oportunidade de fazer isso, mas nada consegue

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prender minha atenção. Essas 24 horas foram bemdesgastantes, o sol já nasceu, e nós ainda nem fomosdormir. Fecho as cortinas e as persianas, volto para acama e tapo os olhos com um travesseiro. Assim quecomeço a pegar no sono, sinto Holder se deitar aomeu lado. Ele desliza um braço por baixo do meutravesseiro e um por cima do meu corpo. Consigosentir o peito quente em minhas costas e a força dosseus braços ao meu redor. Ele desliza as mãos entreas minhas e dá um beijo suave na parte de trás deminha cabeça.— Eu gamo você — sussurro para ele.Ele beija minha cabeça outra vez e suspira nomeu cabelo.— Acho que não gamo mais você. Tenho quasecerteza de que já passei dessa fase. Na verdade,tenho certeza absoluta de que já passei dessa fase,mas ainda não estou pronto para dizer o que sinto.Quando eu disser, quero que seja em outro dia, nãohoje. Não vou querer que você associe a lembrançaao dia de hoje.Puxo a mão dele até minha boca e a beijo deleve.— Nem eu.E mais uma vez, no meu novo mundo cheio demágoas e mentiras, esse caso perdido encontra umamaneira de me fazer sorrir.

Domingo, 28 de outubrode 201217h15Dormimos durante o período do café da manhã e doalmoço. De tarde, Holder aparece com comida, eestou faminta. Faz mais de 24 horas que não como.Ele puxa duas cadeiras para perto da mesa e tira ascomidas e bebidas das sacolas. Comprou exatamenteo que eu disse que queria depois da exposição deontem, quando não chegamos a comer. Tiro a tampado milk-shake de chocolate e dou um grande gole,em seguida tiro a embalagem do cheeseburger. Aofazer isso, um pequeno pedaço de papel cai em cimada mesa. Eu o pego e leio.Só porque você não tem mais um telefone esua vida é o maior drama não significa queeu queira que seu ego exploda. Vocêestava totalmente sem graça de camiseta ecalcinha. Espero mesmo que compre umpijama de pezinho hoje, para que eu nãoprecise mais passar a noite inteira vendo

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suas pernas de galinha.Quando coloco o papel na mesa e olho para ele, vejoque está sorrindo para mim. Suas covinhas são tãoencantadoras que dessa vez eu realmente me inclino elambo uma delas.— O que foi isso? — diz ele, rindo.Mordo um pedaço do sanduíche e dou deombros.— Estava querendo fazer isso desde o dia emque o vi no mercado.Ele abre um sorriso convencido e se encosta nacadeira.— Você queria lamber meu rosto desde aprimeira vez que me viu? É isso que costuma fazerquando está atraída por alguém?Balanço a cabeça.— Seu rosto, não, sua covinha. E não. Você é oúnico garoto que já tive vontade de lamber.Ele sorri para mim com confiança.— Ótimo. Pois você é a única garota que já tivevontade de amar.Puta merda. Ele não disse que me amavadiretamente, mas escutar essa palavra sair de suaboca faz meu coração se expandir dentro do peito.Dou uma mordida no cheeseburger para disfarçarmeu sorriso e deixo a frase no ar. Não quero quedesapareça ainda.Terminamos de comer em silêncio. Eu melevanto, tiro as coisas da mesa, vou até a cama ecalço os sapatos.— Aonde você vai?Ele está me observando amarrar os cadarços.Não respondo de imediato, pois não tenho certezado local aonde vou. Só quero sair desse quarto dehotel. Depois de amarrar os sapatos, me levanto, vouaté ele e lhe dou um abraço.— Quero dar uma caminhada — digo. — Equero que vá comigo. Estou pronta para começar afazer perguntas.Ele beija minha testa, estende o braço e pega achave do quarto na mesa.— Então vamos. — Ele abaixa o braço esticadoe entrelaça meus dedos nos dele.Nosso hotel não fica perto de nenhum parque outrilha, então acabamos indo para o pátio. Há várioslugares para nos sentarmos ao redor da piscina,todos vazios, e ele me leva para um deles. Nós nossentamos e encosto a cabeça no ombro dele,olhando para a piscina. Estamos em outubro, mas oclima está bem ameno. Puxo os braços pelas mangas

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da camisa e me abraço, aconchegando-me nele.— Quer que eu conte o que lembro? —pergunta ele. — Ou tem perguntas específicas?— Os dois. Mas primeiro quero ouvir suahistória.Seu braço está por cima dos meus ombros. Osdedos acariciam a parte superior do meu braço, e elebeija minha têmpora. Não importa quantas vezes façaisso, sempre parece que é a primeira.— Você tem de entender o quanto isso é surrealpra mim, Sky. Pensei no que aconteceu com vocêtodos os dias dos últimos 13 anos. E quando pensoque estava morando a 3 quilômetros de distância hásete anos? Eu mesmo ainda acho difícil assimilar issotudo. E agora, finalmente posso ter você ao meu ladoe contar tudo o que aconteceu...Ele suspira, e sinto sua cabeça se encostar nacadeira. Holder para por um breve momento e entãoprossegue:— Depois que o carro foi embora, entrei emcasa e contei para Less que a vi indo embora comalguma pessoa. Ela ficou me perguntando com quem,mas eu não sabia responder. Minha mãe estava nacozinha, então fui até ela e contei. Ela não prestoumuita atenção em mim. Estava fazendo o jantar, eéramos apenas crianças. Minha mãe tinha aprendidoa não prestar muita atenção em nós. Além disso, euainda não sabia se tinha mesmo acontecido algumacoisa que não devia, então não estava em pânico nemnada. Ela só me mandou ir lá fora brincar com Less.Sua tranquilidade me fez pensar que estava tudobem. Com 6 anos, tinha certeza de que os adultossabiam de tudo, então não toquei mais no assunto.Less e eu fomos brincar do lado de fora, e maisalgumas horas se passaram até seu pai sair de casa,chamando você. Assim que o ouvi chamando seunome, fiquei paralisado. Parei no meio do jardim efiquei observando-o no pórtico, chamando você. Foinaquele instante que percebi que ele não fazia ideiade que você tinha ido embora com outra pessoa.Percebi que tinha feito algo de errado.— Holder — interrompo. — Você era apenasum garotinho.Ele ignora meu comentário e continua:— Seu pai veio até nosso jardim e me perguntouse eu sabia onde você estava.Ele faz uma pausa e limpa a garganta. Esperopacientemente que prossiga, mas parece que eleprecisa se concentrar. Ouvi-lo contar o queaconteceu naquele dia parece mais como se

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escutasse uma história. Não parece de jeito nenhumque o que ele está dizendo tem a ver com minha vidaou comigo.— Sky, você precisa entender uma coisa. Eutinha medo do seu pai. Mal completara 6 anos, massabia que tinha feito algo terrivelmente errado aodeixá-la sozinha. Então seu pai chefe de políciaestava em pé ao meu lado, com a arma aparecendopor cima da farda. Entrei em pânico. Corri paradentro de casa, direto para meu quarto e tranquei aporta. Ele e minha mãe passaram meia hora batendo,mas estava assustado demais para abri-la e admitirque sabia o que tinha acontecido. Minha reaçãodeixou os dois preocupados, então na mesma horaele chamou reforços pelo rádio. Quando escutei asviaturas chegando, achei que tinham ido me buscar.Ainda não conseguia entender o que tinha acontecidocom você. Quando minha mãe conseguiu me tirar doquarto, três horas já haviam se passado desde quevocê fora embora no carro.Ele ainda está massageando meu ombro, masagora com mais firmeza. Passo os braços pelasmangas da camisa para poder segurar sua mão.— Fui levado para a delegacia e ficaram meinterrogando durante horas. Queriam saber se tinhareparado na placa, no modelo do carro, como era apessoa, o que tinha dito a você. Sky, eu não sabia denada. Não conseguia me lembrar nem da cor docarro. Tudo que soube dizer com precisão era o quevocê estava vestindo, pois a única coisa queconseguia visualizar era você. Seu pai ficou furiosocomigo. Escutei seus gritos no corredor da delegacia,dizendo que, se eu tivesse avisado alguémimediatamente do que tinha acontecido, eles a teriamencontrado. Ele me culpou. Quando um policial culpaalguém pelo desaparecimento da filha, a pessoa tendea acreditar que ele sabe do que está falando. Lesstambém escutou os gritos, então também ficouachando que a culpa era minha. Passou dias sem nemfalar comigo. Nós dois estávamos tentando entendero que tinha acontecido. Por seis anos tínhamos vividonum mundo perfeito, onde os adultos sempre tinhamrazão e onde coisas ruins não aconteciam compessoas boas. Então, num único minuto, você foilevada, e tudo que achávamos que sabíamos acabouse transformando numa imagem falsa da vida quenossos pais tinham construído para nós. Percebemosnaquele dia que até os adultos fazem coisas terríveis.Crianças desaparecem. Melhores amigas são levadasembora, e quem fica para trás não sabe nem se

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continua viva.“Nós ficávamos vendo o noticiário o tempointeiro, esperando informações. Sua foto ficouaparecendo na televisão por semanas. A foto maisrecente que tinham de você era de logo antes de suamãe morrer, quando tinha apenas 3 anos. Eu melembro de ficar furioso com aquilo, me perguntandocomo é que quase dois anos tinham se passado semque alguém tirasse uma foto sua. Eles mostravamfotos da sua casa e, às vezes, da nossa também. Devez em quando, mencionavam o garoto que era seuvizinho e tinha visto o que aconteceu, mas que não selembrava de nenhum detalhe. Eu me lembro de umanoite... a última noite em que minha mãe deixou agente ver a cobertura na televisão... um dosrepórteres mostrou nossas casas. Eles mencionarama única testemunha, mas se referiram a mim como “Ogaroto que perdeu Hope”. Aquilo deixou minha mãetão brava, que a fez correr lá para fora e começou aberrar com os repórteres, gritando para que nosdeixassem em paz. Para que me deixassem em paz.Meu pai precisou arrastá-la para dentro de casa.“Meus pais fizeram o possível para nossas vidasvoltarem ao normal. Após alguns meses, osrepórteres pararam de aparecer. As várias idas àdelegacia para mais perguntas finalmente acabaram.Aos poucos, as coisas começaram a voltar ao normalpara toda a vizinhança. Para todo mundo, menosLess e eu. Era como se toda nossa esperança tivessesido levada junto com nossa Hope.”Escutar as palavras e a desolação em sua voz mefazem sentir culpada. Seria de se esperar que otrauma do que aconteceu comigo afetasse mais a mimmesma que as pessoas ao meu redor. No entanto,mal consigo me lembrar daquilo. Na minha vida nãofoi um acontecimento muito especial, mas foi algo quepraticamente arruinou Holder e Lesslie. Karen eracalma e agradável, e encheu minha cabeça commentiras sobre adoção e famílias de acolhimento,coisas que nunca questionei. Como Holder disse,com aquela idade a criança acredita que os adultossão tão honestos e confiáveis que questioná-los nempassa pela cabeça.— Passei tantos anos odiando meu pai por terdesistido de mim — digo baixinho. — Não acreditoque ela simplesmente me tirou dele. Como foi capazde fazer isso? Como é que alguém pode ser capazde fazer isso?— Não sei, linda.Endireito a postura e me viro para encará-lo nos

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olhos.—Preciso ver a casa — digo. — Quero maislembranças, mas não tenho nenhuma porque agoraestá difícil de lembrar. Não consigo me lembrar dequase nada, muito menos dele. Só quero passar porlá de carro. Preciso vê-la.Ele massageia meu braço e concorda com acabeça.— Agora?— Sim. Quero ir antes que escureça.Passo o caminho inteiro em silêncio. Minhagarganta está seca e sinto o maior frio na barriga.Estou com medo. Com medo de ver a casa. Commedo de que ele esteja lá e eu acabe vendo meu pai.Não quero vê-lo ainda; só quero ver meu primeirolar. Não sei se isso vai me ajudar a lembrar, mas seique preciso fazer isso.Ele desacelera o carro e para no meio-fio. Ficoobservando a fileira de casas do outro lado da rua,com medo de desviar o olhar da minha janela, pois étão difícil me virar e encarar.— Chegamos — diz ele baixinho. — Parece quenão tem ninguém em casa.Viro a cabeça devagar e olho pela janela para aprimeira casa onde morei. É tarde, e o dia está sendoengolido pela noite, mas o céu continua claro osuficiente para eu poder enxergar a casa. Parecefamiliar, mas vê-la não traz nenhuma lembrança deimediato. A casa é marrom-claro, com detalhes maisescuros, mas as cores não me parecem nadafamiliares. Como se Holder tivesse lido minha mente,diz:— Antes era branca.Eu me viro no banco e fico de frente para a casa,tentando me lembrar de alguma coisa. Tento meimaginar entrando pela porta e vendo a sala, mas nãoconsigo. É como se tudo sobre aquela casa e aquelavida tivesse sido apagado da minha mente por algumarazão.—Como consigo me lembrar da sua sala e dasua cozinha e das minhas não?Ele não me responde, pois é mais do queprovável que ele saiba que não estou querendo umaresposta. Ele só coloca a mão em cima da minha,segurando-a enquanto ficamos olhando para as casasque alteraram os rumos das nossas vidas parasempre.Treze anos antes— Seu papai vai dar uma festa de aniversário

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para você? — pergunta Lesslie.Balanço a cabeça.— Não tenho festas de aniversário.Lesslie franze o rosto, senta-se na minhacama e pega uma caixa desembrulhada que estáno meu travesseiro.— Este é seu presente de aniversário? —pergunta ela.Pego a caixa da mão dela e a coloco de voltano travesseiro.— Não. Meu papai compra presentes paramim o tempo inteiro.— Você vai abrir? — pergunta ela.Balanço a cabeça novamente.— Não. Não quero.Ela une as mãos no colo, suspira e dá umaolhada no quarto.— Você tem vários brinquedos. Por que agente nunca vem brincar aqui? A gente semprevai para minha casa, e lá é chato.Eu me sento no chão e pego meus tênis paracalçá-los. Não conto que odeio meu quarto. Nãoconto que odeio minha casa. Não conto quesempre vamos para a casa dela porque lá mesinto mais segura. Enrosco o cadarço entre osdedos e me aproximo dela na cama.— Você sabe amarrar?Ela pega meu pé e o apoia em cima do joelho.— Hope, você precisa aprender a amarrarseus sapatos. Eu e Dean aprendemos a amarrarquando tínhamos 5 anos. — Ela se acomoda nochão e se senta na minha frente. — Presteatenção — diz ela. — Está vendo esse cordão?Estenda-o assim.Ela põe os cordões nas minhas mãos e memostra como mexê-los e puxá-los até que fiquemamarrados como deveriam. Após me ajudar aamarrar os dois, ela os desamarra e diz para eufazer tudo de novo sozinha. Tento me lembrar doque ela ensinou. Ela se levanta e vai até acômoda enquanto faço meu melhor para formarum laço com o cadarço.— Essa era sua mãe? — pergunta ela, memostrando uma foto. Olho para a foto e depoisvolto o olhar para meus sapatos.— Era.— Você tem saudades dela?Faço sim que com a cabeça e continuotentando amarrar o sapato e não pensar noquanto sinto falta dela. Sinto muitas saudades.

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— Hope, você conseguiu! — grita Lesslie. Elase senta outra vez no chão na minha frente e meabraça. — Você conseguiu sozinha. Agora já sabeamarrar os sapatos.Olho para meus sapatos e sorrio.

Domingo, 28 de outubrode 201219h10— Lesslie me ensinou a amarrar os sapatos — digobaixinho, ainda encarando a casa.Holder olha para mim e sorri.— Você se lembra que ela lhe ensinou isso?— Lembro.— Ela ficou tão orgulhosa — diz ele,direcionando o olhar para o outro lado da rua.Ponho a mão na maçaneta da porta, abro-a esaio do carro. O ar está ficando mais frio, entãoestendo o braço para o banco, pego meu moletom eo visto pela cabeça.— O que está fazendo? — pergunta Holder.Sei que ele não vai entender e realmente nãoquero que tente me convencer do contrário, entãofecho a porta e atravesso a rua sem responder. Elevem logo atrás de mim, chamando meu nome assimque piso na grama.— Preciso ver meu quarto, Holder. — Continuoandando e, de alguma maneira, sei para que lado dacasa ir, mesmo sem ter nenhuma memória concretado interior.— Sky, não pode fazer isso. Não tem ninguémaqui. É muito arriscado.Acelero até começar a correr. Vou fazer issoquer ele aprove ou não. Quando chego à janela quecom certeza é a janela de onde antes ficava meuquarto, me viro e olho para ele.— Preciso fazer isso. Há coisas da minha mãe ládentro que eu quero, Holder. Sei que prefere quenão faça isso, mas preciso fazer.Ele põe as mãos nos meus ombros, e seu olhardemonstra preocupação.— Você não pode invadir a casa, Sky. Ele épolicial. O que vai fazer, quebrar a porcaria dajanela?— Tecnicamente essa casa ainda é minha. Nãovou estar invadindo — respondo. Mas o argumentodele é bom. Como é que vou entrar? Aperto oslábios, penso e estalo os dedos. — A casa depassarinho! Tem uma casa de passarinho no pórtico

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de trás com uma chave dentro.Eu me viro, corro até o quintal e fico chocada aover que lá tem mesmo uma casa de passarinho. Enfioos dedos dentro dela e, claro, encontro uma chave.Como nossa mente é maluca.— Sky, não faça isso. — Ele está praticamenteimplorando para eu não seguir em frente.— Vou entrar sozinha — afirmo. — Sabe ondeé meu quarto. Fique esperando perto da janela e meavise se vir alguém chegando.Ele solta um suspiro pesado e segura meu braçoassim que coloco a chave na fechadura da porta dosfundos.— Por favor, não deixe muito óbvio que esteveaqui. E seja rápida — diz ele. Depois me abraça efica esperando eu entrar. Viro a chave e confiro se aporta foi destrancada.A maçaneta vira.Entro e fecho a porta. A casa está escura e umpouco aterrorizante. Viro à esquerda e atravesso acozinha, sabendo, de alguma maneira, exatamenteonde é a porta do meu quarto. Prendo a respiração etento não pensar na seriedade nem nasconsequências do que estou fazendo. A ideia de serpega em flagrante é assustadora, pois ainda nãotenho certeza se quero ser encontrada. Faço o queHolder pede, e ando com cautela, sem querer deixarnenhum sinal de que estive aqui. Ao chegar à minhaporta, respiro fundo, ponho a mão na maçaneta,girando-a. Quando a porta se abre e o quarto setorna visível, acendo a luz para enxergar melhor.Com a exceção de algumas caixas empilhadasnum canto, tudo me parece familiar. Ainda parece oquarto de uma criança, intocado por 13 anos. Issome faz lembrar do quarto de Lesslie e de comoninguém encostou nele desde que morreu. Deve serdifícil deixar para trás as lembranças físicas daspessoas que amamos.Passo os dedos pela cômoda e deixo uma linhano meio da poeira. Ao ver o rastro do meu dedo, derepente me lembro de que não quero deixar nenhumaevidência de que estive aqui, então ergo a mão,abaixo-a ao lado do corpo e apago o rastro com acamisa.A foto da minha mãe biológica não está nacômoda como eu me lembrava. Dou uma olhada noquarto, esperando encontrar algo que tenha sido delae que eu possa levar. Não tenho nenhuma lembrança,então uma foto é mais do que eu poderia pedir. Sóquero algo capaz de ligar nós duas. Preciso ver como

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ela era, e espero que isso me faça lembrar de coisasàs quais possa me ater.Vou até a cama e me sento. O tema do quarto éo céu, o que é irônico, considerando o nome queKaren me deu. Há nuvens e luas nas cortinas e nasparedes, e o edredom é coberto de estrelas. Háestrelas por todo canto. Daquelas grandonas deplástico que grudam nas paredes e nos tetos, e quebrilham no escuro. O quarto está coberto delas,assim como o teto do meu quarto na casa de Karen.Eu me lembro de implorar para Karen comprá-lasquando as vi numa loja alguns anos atrás. Ela asconsiderava infantis, mas eu precisava tê-las. Nãosabia nem por que eu queria tanto comprá-las, masagora está ficando claro. Eu devia adorar estrelasquando era Hope.O nervosismo em minha barriga se intensificaquando me deito no travesseiro e olho para o teto.Uma onda familiar de medo toma conta de mim, e eume viro para a porta do quarto. É a mesma maçanetaque eu estava rezando para não girar no pesadeloque tive na outra noite.Inspiro e aperto os olhos, querendo que alembrança desapareça. De alguma maneira, conseguimantê-la escondida por 13 anos, mas ao me deitaraqui nessa cama... não dá mais para escondê-la. Alembrança me agarra como uma teia, e não consigome soltar. Uma lágrima quente escorre pelo meurosto, e eu me arrependo de não ter escutadoHolder. Nunca devia ter voltado aqui. Se nuncativesse voltado, nunca teria me lembrado.Treze anos antesAntes, prendia a respiração para que ele pensasseque eu estava dormindo. Mas não funciona, poisele não se importa se estou dormindo ou não.Uma vez, tentei prender a respiração, naesperança de que achasse que eu estava morta.Também não funcionou, pois ele nem sequerpercebeu que estava prendendo a respiração.A maçaneta se vira, mas não tenho maisnenhum truque e tento pensar em algum outrobem depressa, mas não consigo. Ele fecha a portaapós entrar, e escuto seus passos se aproximando.Ele se senta do meu lado na cama, mas prendo arespiração mesmo assim. Não porque ache quedessa vez vai funcionar, mas porque isso meajuda a não perceber o tamanho do meu medo.— Oi, Princesa — diz ele, pondo meu cabeloatrás da orelha. — Trouxe um presente para

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você.Aperto os olhos porque quero um presente.Amo presentes, e ele sempre compra os melhorespresentes porque me ama. Mas odeio quando meentrega os presentes durante a noite, pois nuncaos recebo na hora. Ele sempre me faz agradecerprimeiro.Não quero esse presente. Não quero.— Princesa?A voz do meu papai sempre faz minha barrigadoer. Ele sempre fala comigo de uma maneira tãomeiga, que me faz sentir falta de minha mamãe.Não me lembro de como era a voz dela, maspapai diz que se parecia com a minha. Papaitambém diz que mamãe ficaria triste se euparasse de aceitar os presentes dele, porque elanão está mais aqui para receber seus presentes.Isso me deixa triste e fico me sentindo muito mal,então rolo para o lado e olho para ele.— Posso ganhar o presente amanhã, papai?— Não quero que ele fique triste, mas não queroreceber a caixa essa noite. Não quero.Papai sorri para mim e afasta meu cabelo.— Claro que pode ganhar amanhã. Mas nãoquer agradecer ao papai por ter comprado estepresente?Meu coração começa a bater bem alto e odeioquando isso acontece. Não gosto do que estousentindo no coração e nem da sensaçãoassustadora em minha barriga. Paro de olharpara meu papai e, em vez disso, encaro asestrelas, esperando que consiga ficar pensando noquanto são bonitas. Se eu continuar pensando nasestrelas e no céu, talvez isso ajude meu coração anão bater tão rápido e a minha barriga a parar dedoer tanto.Tento contá-las, mas toda vez paro nonúmero 5. Não lembro que número vem depois do5, então tenho de começar de novo. Tenho decontar as estrelas várias vezes seguidas, esomente 5 de cada vez, pois não quero sentir meupapai agora. Não quero senti-lo, cheirá-lo nemescutá-lo e tenho de contá-las e contá-las e contálase contá-las até não conseguir mais senti-lo,escutá-lo nem cheirá-lo.Então, quando papai finalmente para de meobrigar a agradecer, ele puxa minha camisolapara baixo e sussurra:— Boa noite, Princesa.Rolo para o lado, puxo as cobertas por cimada cabeça, aperto os olhos e tento não chorar

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outra vez, mas acabo chorando. Choro e é o quefaço toda vez que papai me traz um presente ànoite. Odeio ganhar presentes.

Domingo, 28 de outubrode 201219h29Levanto e olho para a cama, prendendo a respiraçãocom medo dos sons que estão surgindo do fundo deminha garganta.Não vou chorar.Não vou chorar.Ajoelhando-me lentamente, apoio as mãos nabeirada da cama e passo os dedos nas estrelasamarelas espalhadas pelo azul-escuro do edredom.Fico encarando as estrelas até começarem a desfocarpor causa das lágrimas que embaçam minha visão.Aperto os olhos e afundo a cabeça na cama,agarrando o cobertor. Meus ombros começam atremer enquanto os soluços que tentava conterirrompem de mim violentamente. Com um movimentorápido, eu me levanto, grito e arranco o cobertor dacama, jogando-o do outro lado do quarto.Cerro os punhos e olho ao redor freneticamente,procurando mais alguma outra coisa para atirar. Pegoos travesseiros da cama e os arremesso no reflexo doespelho, na garota que não conheço mais. Ficoobservando a menina do espelho me encarar devolta, soluçando de forma patética. A fraqueza desuas lágrimas me deixa furiosa. Começamos a correruma em direção à outra até nossos punhos colidiremno vidro, quebrando o espelho. Vejo-a se desfazerem um milhão de pedacinhos brilhantes sobre ocarpete.Agarro as bordas da cômoda e a empurro para olado, soltando outro grito que estava preso há muitotempo. Após o móvel cair, abro uma das gavetas earremesso o conteúdo pelo quarto, rodopiando,jogando e chutando tudo o que encontro pela frente.Agarro as cortinas azuis e as puxo até o suportequebrar e estas caírem ao meu redor. Estendo obraço para as caixas empilhadas no canto do quartoe, sem nem saber o que tem dentro delas, pego a queestá no topo e a lanço na parede com tanta forçaquanto meu corpo de 1,60m consegue reunir.— Odeio você! — grito. — Odeio você, odeiovocê, odeio você!Estou jogando tudo o que encontro pela frenteem cima de tudo o que está na minha frente. Toda

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vez que abro a boca para gritar, sinto o gosto de saldas lágrimas que me escorrem pelas bochechas.De repente, os braços de Holder me segurampor trás e me prendem com tamanha firmeza que ficoimobilizada. Eu me balanço, me viro e grito maisainda até parar de pensar no que estou fazendo.Passo a reagir apenas.— Pare — diz ele calmamente em meu ouvido,sem querer me soltar. Escuto o que ele diz, mas finjoque não ouvi. Ou simplesmente não me importo.Continuo me debatendo em seus braços, que meapertam mais.— Não encoste em mim! — grito o mais altoque posso, arranhando-lhe os braços. Mas Holdernão liga para isso.Não encoste em mim. Por favor, por favor,por favor.A pequena voz ecoa na minha cabeça, eimediatamente amoleço o corpo em seu abraço. Ficomais fraca conforme minhas lágrimas se fortalecem eme consomem. Eu me transformo num merorecipiente para as lágrimas que não param de cair.Sou fraca e estou deixando ele vencer.O aperto de Holder fica mais fraco, e ele põe asmãos nos meus ombros. Em seguida, me vira paraele. Não consigo nem sequer encará-lo. Eu mederreto em seu peito de tanta exaustão e frustração,agarrando sua camisa enquanto soluço, a bochechaencostada em seu coração. Sua mão toca a parte detrás de minha cabeça, e ele leva a boca até meuouvido.— Sky. — A voz dele está calma, inabalada. —Você precisa sair daqui. Agora.Não consigo me mexer. Meu corpo estátremendo tanto que tenho medo de não conseguirmover as pernas quando quiser. Como se soubessedisso, ele me põe nos braços e me tira do quarto.Holder me carrega para o outro lado da rua e meacomoda no banco do carona. Ele segura minhamão, olha para ela e pega a jaqueta no banco de trás.— Tome. Use isso para limpar o sangue. Vouvoltar lá dentro e ajeitar o que conseguir.A porta se fecha, e ele atravessa a rua correndo.Olho para minha mão e fico surpresa ao notar queestá ferida. Não consigo nem sentir. Enrolo a mangada jaqueta de Holder na mão, puxo os joelhos paracima do banco e os abraço enquanto choro.Não olho para ele quando volta ao carro. Meucorpo inteiro está tremendo por causa dos soluçosque ainda saem aos montes de dentro de mim. Ele

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liga o motor, sai dirigindo e põe a mão na parte detrás da minha cabeça, alisando meu cabelo emsilêncio durante todo o caminho de volta ao hotel.Ele me ajuda a sair do carro e me acompanha atéo quarto do hotel, sem perguntar nenhuma vez seestou bem. Sabe que não estou; nem adiantaperguntar. Quando a porta do quarto se fecha atrásde nós, ele me acompanha até a cama, e eu mesento. Em seguida, empurra meus ombros para trás,até eu ficar deitada, e tira meus sapatos. Depois, vaiaté o banheiro, volta com um pano molhado e ergueminha mão para limpá-la. Ele confere para ver se temalgum caco de vidro, leva minha mão até a boca e abeija.—Foram só alguns arranhões — diz ele. —Nada muito profundo.Ele me ajeita no travesseiro, tira os própriossapatos e se deita ao meu lado. Ele estica a cobertapor cima de nós e me puxa para perto, acomodandominha cabeça em seu peito. Depois, me abraça e nãopergunta nenhuma vez por que estou chorando.Exatamente como fazia quando éramos crianças.Tento tirar as imagens da minha cabeça, aslembranças do que acontecia comigo à noite no meuquarto, mas não somem de jeito nenhum. Como umpai é capaz de fazer isso com a própria filhinha... éalgo além de minha compreensão. Fico repetindopara mim mesma que nada disso aconteceu, que éapenas minha imaginação, mas cada parte de mimsabe que é verdade. Cada parte de mim lembra porque fiquei feliz ao entrar no carro com Karen. Cadaparte de mim se lembra de todas as noites em quefiquei com garotos na minha cama sem sentirabsolutamente nada enquanto fitava as estrelas. Cadaparte de mim que teve aquele ataque de pânico nanoite em que Holder e eu quase transamos. Cadapequena parte de mim se lembra, e eu faria de tudopara esquecer. Não quero me lembrar de como eraescutar ou sentir meu pai à noite, mas, a cadasegundo que passa, as lembranças ficam cada vezmais nítidas, fazendo com que parar de chorar setorne cada vez mais difícil.Holder beija minha têmpora, dizendo-me maisuma vez que tudo vai ficar bem, que eu não devia mepreocupar. Mas ele não faz ideia. Não faz ideia doquanto lembro e de como isso está afetando meucoração, minha alma, minha mente e minha fé nahumanidade em geral.Saber que essas coisas foram feitas comigo pelasmãos do único adulto que eu tinha na vida... Não é

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de espantar que estivesse bloqueando tudo. Nãotenho quase lembrança alguma do dia em que fuilevada por Karen, e agora entendo o motivo. Nãosenti que estava no meio de um período terrível noinstante em que me roubou da minha vida. Para umagarotinha que tinha pavor da própria vida, tenhocerteza de que pareceu mais que Karen estava mesalvando.Olho para Holder, que está me encarando devolta. Está sofrendo por mim; dá para ver em seusolhos. Ele enxuga minhas lágrimas com o dedo e mebeija delicadamente nos lábios.— Desculpe. Nunca devia tê-la deixado entrarlá.Ele está se culpando mais uma vez. Sempre achaque fez algo terrível, quando na verdade sinto comose ele fosse meu herói. Esteve ao meu lado durantetudo isso, sempre ficando do meu lado durante meusataques de pânico e surtos até que eu me acalmasse.Não fez nada além de ficar comigo, mas, por algumarazão, continua achando que é culpa dele.— Holder, você não fez nada de errado. Pare depedir desculpas — digo entre as lágrimas. Elebalança a cabeça e põe um fio de cabelo atrás daminha orelha.— Eu não devia ter levado você até lá. É muitacoisa para assimilar depois de ter descoberto tudo.Eu me apoio no cotovelo e olho para ele.— Não foi só porque estar lá dentro era demaispara assimilar. O que lembrei era demais paraassimilar. Você não tinha nenhum controle das coisasque meu pai fazia comigo. Pare de se culpar por tudode ruim que acontece com as pessoas ao seu redor.Ele desliza a mão pelo meu cabelo com um olharde preocupação.— Do que está falando? Que coisas ele faziacom você? — As palavras saem de sua boca commuita relutância, pois é mais do que provável que jásaiba. Acho que nós dois sabíamos o que aconteciacomigo quando era criança, só que estávamos emnegação.Abaixo o braço, apoio a cabeça no peito dele enão respondo. As lágrimas voltam com tudo, e elepõe um dos braços ao redor das minhas costas comfirmeza, segurando a parte de trás da minha cabeçacom o outro. E pressiona a bochecha no topo daminha cabeça.— Não, Sky — sussurra ele. — Não — diz eleoutra vez, sem querer acreditar no que nem sequerestou dizendo.

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Agarro sua camisa com ambas as mãos e sóconsigo chorar enquanto ele me abraça com tantaconvicção, me fazendo amá-lo por odiar meu paitanto quanto eu.Ele beija o topo da minha cabeça e continua meabraçando. Ele não diz que lamenta nem perguntacomo pode consertar isso, pois nós dois sabemosque é perda de tempo. Não temos ideia do que fazerem seguida. Tudo que sei a essa altura é que nãotenho nenhum lugar para ir. Não posso voltar para opai que tem minha custódia legal. Não posso voltarpara a mulher que me sequestrou indevidamente. E,após descobrir mais sobre meu passado e que naverdade ainda sou menor de idade, não posso nemsequer ser independente. Holder é a única coisa naminha vida que não me faz perder todas asesperanças.E, apesar de me sentir protegida nos seusbraços, as imagens e as lembranças não escapam deminha cabeça, e não consigo parar de chorar demaneira alguma, não importa o que eu faça ou oquanto me esforce. Ele me abraça silenciosamente, enão consigo parar de pensar que preciso que issopare. Preciso que Holder faça todos essessentimentos e emoções desaparecerem por umtempinho porque não aguento mais. Não gosto de melembrar do que acontecia todas as noites que meu paientrava no meu quarto. Eu o odeio. Odeio aquelehomem com todas as minhas forças por ter roubadoessa minha primeira vez.Eu ergo o corpo, apoiando o rosto em cima deHolder. Ele põe a mão em minha têmpora, e seusolhos procuram os meus, querendo saber se estoubem.Não estou.Deslizo o corpo para cima do dele e o beijo,querendo que ele faça meus sentimentosdesaparecerem. Prefiro não sentir nada que o ódio ea tristeza que estão me consumindo. Agarro suacamisa e tento tirá-la por cima de sua cabeça, masHolder me faz sair de cima dele e me deitar. Ele seapoia no braço e olha para mim.— O que está fazendo? — pergunta.Deslizo a mão por sua nuca e puxo seu rostopara perto de mim, pressionando meus lábios nosseus. Se eu o beijar bastante, ele vai ceder e retribuiro beijo. E, assim, tudo vai desaparecer.Ele põe a mão na minha bochecha e retribui obeijo momentaneamente. Solto sua cabeça e começoa tirar minha camisa, mas ele me faz afastar as mãos evolta a abaixar minha camisa.

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— Pare. Por que está fazendo isso?Seus olhos estão cheios de confusão epreocupação. Não consigo responder por que estoufazendo isso, pois não sei direito. Sei que quero queo sentimento desapareça, só que é mais que isso. Émuito mais que isso, porque sei que se ele não forcapaz de sumir com o que aquele homem fez comigo,tenho a sensação de que nunca mais vou ser capazde rir, sorrir ou respirar outra vez.Só preciso que Holder faça isso desaparecer.Inspiro fundo e olho bem nos olhos dele.— Transe comigo.Sua expressão continua inflexível, e ele está meencarando com bastante intensidade agora. Ele seergue, sai da cama e fica andando de um lado para ooutro. Depois, passa as mãos no cabelo, nervoso, evolta para perto da cama, parando em pé perto dabeirada.— Sky, não posso fazer isso. Não sei nem porque está me pedindo isso.Eu me sento na cama, sentindo um medorepentino de que ele não vá topar. Vou até a beiradada cama onde ele está, e me sento em cima dosjoelhos, agarrando-lhe a camisa.— Por favor — imploro. — Por favor, Holder,preciso disso.Ele afasta minhas mãos da camisa e dá doispassos para trás. Depois, balança a cabeça, aindatotalmente confuso.— Não vou fazer isso, Sky. Nós não vamosfazer isso. Você está em choque ou algo assim... nãosei. Não sei nem o que dizer agora.Eu me afundo na cama de novo, frustrada. Aslágrimas voltam a escorrer, e olho para ele emcompleto desespero.— Por favor. — Olho para as minhas mãos e ascoloco no colo, incapaz de olhar para ele enquantofalo. — Holder... ele é o único que já fez issocomigo. — Devagar, ergo os olhos outra vez eencontro os dele. — Preciso que você tire isso dele.Por favor.Se palavras fossem capazes de partir almas, achoque as minhas acabaram de partir a dele ao meio.Seu rosto fica sério, e seus olhos se enchem delágrimas. Sei o que estou pedindo e odeio estarfazendo isso com ele, mas é algo de que preciso.Preciso fazer o que puder para minimizar osofrimento e o ódio dentro de mim.— Por favor, Holder.Ele não quer que nossa primeira vez seja assim.

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Eu preferia que não fosse, mas, às vezes, outrosfatores além do amor acabam decidindo pela pessoa.Fatores como o ódio. Às vezes, para se livrar doódio, a pessoa fica desesperada. Ele conhece o ódioe o sofrimento, e sabe o quanto estou precisandodisso agora, independentemente de concordar ounão.Ele volta para perto da cama e se ajoelha nochão à minha frente, o olhar nivelado ao meu. Seguraminha cintura, me puxa para a beirada da cama,desliza as mãos para a parte de trás dos meus joelhose põe minhas pernas ao seu redor. Tira minha camisapor cima da cabeça, sem desviar o olhar do meunenhuma vez. Após tirar minha camisa, tira a dele.Põe os braços ao meu redor e se levanta, meerguendo junto com ele e indo até a lateral da cama.Ele me deita delicadamente e se abaixa em cima demim, colocando as palmas da mão no colchão naslaterais da minha cabeça e olhando para mim comincerteza. Seu dedo enxuga uma lágrima que escorrepela minha têmpora.— Tudo bem — diz ele com firmeza, apesar deseus olhos não refletirem isso.Ele fica de joelhos e alcança a carteira namesinha de cabeceira. Pega uma camisinha e tira acalça, sem desviar o olhar do meu. Fica meobservando como se estivesse esperando ver algumsinal de que mudei de ideia. Ou talvez me observepor estar com medo de que eu vá ter outro ataque depânico. Nem sei se isso vai acontecer, mas preciso irem frente. Não posso deixar meu pai ser dono dessaparte de mim nem por mais um segundo.Os dedos de Holder seguram o botão da minhacalça jeans, desabotoando-a para, em seguida, tirá-lade vez. Ergo o olhar para o teto, me sentindo ficarcada vez mais distante a cada passo.Fico me perguntando se estou arruinada. Sealgum dia serei capaz de sentir prazer ao ficar comele dessa maneira.Ele não pergunta se tenho certeza de que é issoque quero. Sabe que já me decidi, então essapergunta não é feita. Ele abaixa os lábios até os meuse me beija enquanto tira meu sutiã e minha calcinha.Fico contente por estar me beijando, pois assimtenho uma desculpa para fechar os olhos. Não gostoda maneira como está olhando para mim... pareceque preferia estar em qualquer outro lugar que nãoali. Continuo de olhos fechados quando seus lábiosse separam dos meus para que possa colocar acamisinha. Quando volta para cima de mim, eu o

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puxo para meu corpo, querendo que faça isso antesque mude de ideia.— Sky.Abro os olhos e vejo dúvida em seu rosto, entãobalanço a cabeça.— Não, não pense. Só faça, Holder.Ele fecha os olhos e enterra a cabeça no meupescoço, incapaz de olhar para mim.— É que não sei lidar com tudo isso. Não sei seisso é errado ou se é mesmo o que está precisando.Tenho medo de seguir em frente e piorar ainda maisas coisas para você.As palavras vão direto ao meu coração, pois seiexatamente o que ele quer dizer. Não sei se é dissoque preciso. Não sei se vai arruinar as coisas entrenós. Mas agora estou tão desesperada para tirar issodo meu pai que sou capaz de arriscar tudo. Meusbraços, que estão firmes ao redor dele, começam atremer, e eu choro. Ele mantém a cabeça enterradano meu pescoço e balança meu rosto na sua mão,mas assim que escuta minhas lágrimas não conseguemais conter as próprias. O fato de isso o estardeixando tão aflito quanto eu me faz perceber que eleentende. Encosto a cabeça em seu pescoço e melevanto, apoiando-me em seu corpo, implorando emsilêncio para que faça exatamente o que estoupedindo.E ele faz. Holder se posiciona, apoiando-se emmim, beija minha têmpora e me penetra devagar.Não solto um pio, apesar da dor.Nem sequer respiro, apesar de precisar de ar.Nem sequer penso no que está acontecendoentre nós agora, pois não estou pensando em nada.Só consigo imaginar as estrelas no meu teto. Searrancar aquelas porcarias, será que nunca mais vouprecisar contá-las?Consigo me manter distante do que está fazendoaté ele parar de repente em cima de mim, com acabeça ainda enterrada em meu pescoço. Estáofegante e, após um instante, suspira e se separatotalmente de mim. Ele me olha, fecha os olhos e sevira para o lado, sentando-se na beirada da cama decostas para mim.— Não consigo — diz ele. — Não parece certo,Sky. Não parece certo porque é tão bom sentirvocê, mas não tem um segundo que se passe semque me arrependa do que estou fazendo. — Ele selevanta, veste a calça, pega a camisa e a chave doquarto em cima da cômoda. Nem olha para mim e saido quarto do hotel sem dizer nada.

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Imediatamente levanto da cama e entro no banhoporque me sinto suja. Eu me sinto culpada por tê-loobrigado a fazer o que acabou de fazer, e espero quede alguma maneira a água consiga levar embora aminha culpa. Esfrego cada centímetro do corpo como sabonete até machucar a pele, mas não adianta.Consegui estragar mais um momento íntimo nosso. Via vergonha em seu rosto ao sair. Quando passou pelaporta, se recusando a olhar para mim.Desligo o chuveiro e, após me secar, pego oroupão atrás da porta do banheiro e o visto. Escovoo cabelo e coloco meus itens de higiene nanécessaire. Não quero ir embora sem avisar aHolder, mas não posso ficar aqui. Também nãoquero que se sinta na obrigação de lidar comigodepois do que acabou de acontecer. Posso chamarum táxi para me levar até a estação de ônibus e nãoestar mais aqui quando ele voltar.Se é que planeja voltar.Abro a porta do banheiro e volto para o quarto,mas não esperava encontrá-lo sentado na cama comas mãos entre os joelhos. Ele ergue o olhar deencontro ao meu assim que vê a porta do banheiro seabrir. Paro e o fico encarando. Seus olhos estãovermelhos, e ele improvisou um curativo com acamisa, já ensanguentado, ao redor da mão. Corroaté ele e seguro sua mão, desenrolando a camisapara ver o machucado.— Holder, o que foi que você fez? — Viro amão dele de um lado para o outro e observo o corteque atravessa as juntas de seus dedos. Ele afasta amão e a envolve outra vez com uma parte da camisa.— Estou bem — afirma ele, acenandodesdenhosamente.Ele se levanta, e dou um passo para trás,imaginando que ele vai sair do quarto de novo. Emvez disso, ele fica parado na minha frente, olhandopara mim.— Mil desculpas — sussurro, olhando para ele.— Não devia ter pedido para você fazer aquilo. Eusó precisava...Ele segura meu rosto e pressiona os lábios nosmeus, interrompendo meu pedido de desculpas.— Cale a boca — diz ele, olhando-me nosolhos. — Não tem nenhum motivo para pedirdesculpas. Não saí do quarto porque estava comraiva de você. Saí porque estava com raiva de mimmesmo.Eu me afasto de Holder e me viro para a cama,sem querer ficar observando ele se culpar mais ainda.

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— Tudo bem. — Volto para a cama e ergo ascobertas. — Não posso esperar que me desejeagora. Foi errado, egoísta e totalmente inapropriadoimplorar que você fizesse isso, e peço desculpas. —Eu me deito na cama e me viro de costas para ele,pois não quero que veja minhas lágrimas. — Vamossó dormir, está bem?Minha voz está bem mais calma do que euesperava. Não quero que ele se sinta mal, pois nãofez nada além de ficar ao meu lado durante tudo isso,e não fiz nada em troca. A melhor coisa que possofazer a essa altura é acabar tudo para que ele não sesinta obrigado a ficar comigo durante essa situação.Não me deve nada.— Acha que não consegui porque não a desejo?— Ele se aproxima do lado da cama para o qualestou virada e se ajoelha. — Sky, não conseguiporque tudo que aconteceu com você está acabandocomigo, porra, e não faço ideia de como ajudá-la.Quero ficar ao seu lado e ajudá-la a passar por issotudo, mas todas as palavras que saem da minha bocaestão erradas. Toda vez que encosto em você ou abeijo, tenho medo de que você não queira que eufaça isso. E agora está pedindo para eu transar comvocê porque quer tirar isso dele, e eu entendo.Entendo totalmente, mas não dá para fazer amor comvocê quando nem sequer consegue olhar nos meusolhos. Eu sofro com isso porque você não mereceque as coisas sejam assim. Não merece essa vida, enão posso fazer porra nenhuma para melhorar asituação. Quero melhorar a situação, mas nãoconsigo e me sinto tão inútil.De alguma maneira, enquanto falava, eleconseguiu se sentar na cama e me puxar para pertosem que eu percebesse, de tão atenta que estava àssuas palavras. Ele me abraça, me põe no colo ecoloca minhas pernas ao seu redor. Em seguida,segura meu rosto e me olha nos olhos.— E, embora eu tenha parado, não devia nemter começado sem antes dizer o quanto amo você. Euamo tanto você. Não mereço tocar em você até quetenha certeza absoluta de que estou fazendo issoporque a amo e não por nenhuma outra razão.Ele pressiona os lábios nos meus, sem me dar aoportunidade de dizer que também o amo. Eu o amotanto que chega a doer. Agora só consigo pensar noquanto amo esse garoto, no quanto ele me ama e emcomo, apesar de tudo que está acontecendo naminha vida, eu não queria estar em nenhum outrolugar nem com nenhuma outra pessoa, que não ele.

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Tento demonstrar tudo que sinto pelo meu beijo,mas não é suficiente. Eu me afasto e beijo o queixodele, depois o nariz, a testa e, em seguida, beijo alágrima que escorre por sua bochecha.— Também amo você. Não sei o que faria agorase não tivesse você, Holder. Amo tanto você e peçomil desculpas. Queria que minha primeira vez fossecom você e lamento que ele tenha impedido isso.Holder balança a cabeça com firmeza e me calacom um beijo rápido.— Nunca mais diga isso. Nunca mais pense isso.Seu pai tirou essa sua primeira vez de uma maneirainimaginável, mas posso garantir que foi só isso enada mais. Porque você é forte, Sky. Você é incrível,engraçada, inteligente e tão cheia de força e coragem.O que ele fez não anula suas melhores qualidades.Você sobreviveu a ele uma vez e vai sobreviver denovo. Sei que vai.Ele põe a palma da mão no meu coração e leva aminha até o dele. Abaixa os olhos até os meus, paragarantir que estou ali com ele, prestando totalatenção.— Fodam-se todas as primeiras vezes, Sky. Aúnica coisa que importa para mim com você são ospara sempre.Dou um beijo nele. Puta merda, como poderianão fazer isso. Eu o beijo com cada pingo de emoçãoque está passando por mim. Ele balança minhacabeça com a mão, me faz deitar novamente e vempara cima de mim.— Amo você — diz ele. — Amo você há tantotempo, só não podia dizer ainda. Não pareciacorreto permitir que você retribuísse esse amorenquanto eu estava escondendo tanta coisa.As lágrimas estão mais uma vez escorrendo pelaminha bochecha e, apesar de serem as mesmaslágrimas saindo dos mesmos olhos, para mim sãototalmente novas. Não são lágrimas de mágoa nemde raiva... são lágrimas provocadas pela sensaçãoincrível que está me dominando agora, após ouvi-lodizer o quanto me ama.— Não acho que você podia ter escolhido ummomento melhor para dizer que me ama. Ficocontente por ter esperado.Ele sorri, olhando fascinado para mim. Ele abaixaa cabeça e me beija, enchendo minha boca com seugosto. Ele me beija suave e carinhosamente,deslizando a boca por cima da minha com delicadezaenquanto desamarra meu roupão. Arquejo quandosua mão vai para baixo do meu roupão, alisando

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minha barriga com as pontas dos dedos. Agora estousentindo seu toque de uma maneira bastante diferentecomparado a quinze minutos atrás. Essa é umasensação que quero sentir.— Meu Deus, eu amo você — diz ele, movendoa mão da minha barriga para minha cintura. Devagar,ele desce os dedos pela minha coxa, e eu gemo nasua boca, fazendo o beijo ficar ainda maisdeterminado. Ele põe a palma da mão na parteinterna da minha coxa e faz uma pequena pressão,querendo pressionar seu corpo no meu, mas eu mecontorço e fico tensa. Ele é capaz de sentir meumomento involuntário de hesitação, por isso afasta oslábios dos meus e olha para mim. — Lembre-se...estou tocando em você porque a amo. Não é pornenhum outro motivo.Balanço a cabeça e fecho os olhos, aindatemendo que o mesmo medo e entorpecimentoestejam prestes a me consumir mais uma vez. Holderbeija minha bochecha e fecha meu roupão.— Abra os olhos — diz ele, com gentileza.Quando abro, ele estende a mão e seu dedoacompanha uma lágrima minha. — Você estáchorando.Sorrio para tranquilizá-lo.— Está tudo bem. Essas lágrimas são boas.Ele concorda com a cabeça, mas não sorri. Ficame observando por um instante, segura minha mão eentrelaça nossos dedos.— Quero fazer amor com você, Sky. E acho quevocê também quer. Mas primeiro preciso queentenda uma coisa. — Ele aperta minha mão e securva para beijar mais uma lágrima que escapa dosmeus olhos. — Sei que é difícil para você se permitirsentir isso. Passou tanto tempo se treinando parabloquear os sentimentos e as emoções toda vez quealguém encostava em você. Mas quero que saiba queo que seu pai fez com você fisicamente não era arazão do seu sofrimento quando era criança. Foi oque ele fez com sua fé nele que a magoou. Vocêpassou por uma das piores coisas pelas quais umacriança pode passar, e quem fez isso foi seu herói... apessoa que idolatrava... não consigo nem imaginarcomo deve ter sido isso. Mas lembre que as coisasque ele fez com você não têm nada a ver com nósdois quando estamos juntos assim. Quando toco emvocê, estou fazendo isso porque quero vê-la feliz.Quando a beijo, faço isso porque tem a boca maisincrível que já vi e não consigo deixar de beijá-la. Equando faço amor com você... estou fazendo

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exatamente isso. Estou fazendo amor com vocêporque estou apaixonado. O sentimento negativo quevocê tem associado ao toque durante toda a sua vidanão se aplica a mim. Não se aplica a nós. Estoutocando você porque estou apaixonado, não pornenhum outro motivo.Suas meigas palavras inundam meu coração e meacalmam. Ele me dá um beijo delicado, e eu relaxodebaixo de sua mão — mão que está tocando emmim por puro amor. Reajo me dissolvendo porcompleto dentro dele, deixando meus lábios semoverem com os dele, minhas mãos se entrelaçaremàs dele, meu ritmo acompanhar o seu. Eu me envolvodepressa, ficando pronta para senti-lo porque quero,não por nenhum outro motivo.— Amo você — sussurra ele.Durante todo o tempo em que toca em mim,investigando meu corpo com as mãos, lábios e olhos,ele não para de dizer o quanto me ama. E, dessa vez,fico completamente presente no momento, querendosentir todos os detalhes do que está fazendo edizendo. Por fim, após jogar a embalagem para longee se acomodar em mim, ele me olha, sorri e depoisalisa a lateral do meu rosto com as pontas dos dedos.— Diga que me ama — pede ele.Olho nos olhos dele com uma confiançainabalável, querendo que ele sinta a sinceridade deminhas palavras.— Eu amo você, Holder. Tanto. E só paraconstar... Hope também amava.Suas sobrancelhas se afastam, e ele solta o ardepressa, como se estivesse guardando aquilo há 13anos, esperando ouvir exatamente essas palavras.— Queria que você pudesse sentir o que acaboude provocar em mim.Imediatamente, cobre meus lábios com os dele, esua mistura familiar e doce se infiltra na minha bocano mesmo instante em que ele entra em mim, e não ésó ele que vem para dentro de mim. É suasinceridade, o amor que sente por mim e, por uminstante... é uma parte dos nossos para sempre.Agarro seus ombros e me movo com ele, sentindotudo. Sentindo todas as coisas mais belas.

Segunda-feira, 29 deoutubro de 201209h50Rolo para o lado, e Holder está sentado ao meu ladona cama, encarando o celular. Ele volta a atenção

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para mim quando me espreguiço, abaixa-se para mebeijar, mas eu movo a cabeça rapidamente.— Hálito matinal — murmuro, saindo da cama.Holder ri e volta a prestar atenção no telefone.Vesti minha camisa durante a noite, mas nem lembroquando isso aconteceu. Eu a tiro e entro no banheiropara tomar banho. Após terminar, volto para oquarto e vejo que ele está guardando nossas coisas.— O que está fazendo? — pergunto,observando-o dobrar minha camisa e colocá-ladentro da bolsa. Ele lança um breve olhar para mim edepois volta a se concentrar nas roupas espalhadaspela cama.— Não podemos ficar aqui para sempre, Sky.Precisamos resolver o que quer fazer.Dou alguns passos em sua direção, o coraçãoacelerando no peito.— Mas... mas não sei ainda. Eu nem tenho umlugar para ir.Ele percebe o pânico na minha voz, dá a volta nacama e põe os braços ao meu redor.— Você tem a mim, Sky. Acalme-se. Podemosvoltar para minha casa até decidirmos o que fazer.Além disso, ainda estamos no colégio. Não podemossimplesmente parar de frequentar as aulas e, comcerteza, não podemos morar num hotel para sempre.A ideia de voltar para aquele lugar, a apenas 3quilômetros de Karen, me deixa apreensiva. Tenhomedo de que a proximidade me deixe com vontadede confrontá-la, e ainda não estou pronta para isso.Só quero mais um dia. Quero ver minha antiga casauma última vez na esperança de que isso me façarecuperar mais lembranças. Não quero depender deKaren para saber da verdade. Quero descobrir omáximo possível sozinha.— Só mais um dia — peço. — Por favor, vamosficar só mais um dia, depois a gente volta. Precisotentar entender as coisas e, para isso, vou precisar iraté lá mais uma vez.Holder se separa de mim e fica me olhando,balançando a cabeça.— De jeito nenhum — diz ele com firmeza. —Não vou fazê-la passar por isso de novo.Ponho as mãos em suas bochechas paratranquilizá-lo.— Eu preciso, Holder. Juro que não vou sair docarro dessa vez. Juro. Mas preciso ver a casa maisuma vez antes de irmos embora. Eu me lembrei detanta coisa enquanto estava lá. Só quero maisalgumas lembranças antes de me levar de volta e eu

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decidir o que fazer.Ele suspira e fica andando de um lado para ooutro, sem querer concordar com minha súplicadesesperada.— Por favor — imploro, sabendo que ele nãoserá capaz de dizer não se eu continuar insistindo. Elevira-se para a cama lentamente, pega as bolsas quetrouxemos e as joga no closet.— Está bem. Eu disse que faria qualquer coisaque você achasse necessária. Mas não vou pendurartodas as roupas de novo — diz ele, apontando paraas bolsas.Eu rio e corro até ele, jogando os braços aoredor do seu pescoço.— Você é o melhor namorado de todos e o maiscompreensivo do mundo inteiro.Ele suspira e retribui meu abraço.— Não, não sou — diz ele, pressionando oslábios em minha têmpora. — Sou o namorado maisdomesticado do mundo inteiro.

Segunda-feira, 29 deoutubro de 201216h15De todos os minutos do dia, claro que escolhemosos mesmos dez para ficarmos parados na frente daminha casa que meu pai escolhe para chegar decarro. Assim que ele estaciona na garagem, Holderleva a mão à ignição.Estendo a mão, trêmula, e a coloco em cima dadele.— Não vá embora — digo. — Preciso vercomo ele é.Holder suspira e força a cabeça no apoio,sabendo muito bem que devíamos ir embora, massabendo também que eu nunca o deixaria fazer isso.Paro de encarar Holder e olho para a viaturaestacionada na frente da casa do outro lado da rua.A porta se abre, e um homem sai, de farda. Está decostas para nós, segurando um celular no ouvido.Está no meio de uma ligação, por isso para no jardime continua conversando, sem entrar na casa. Vê-lonão causa a menor reação em mim. Não sintoabsolutamente nada até o instante em que se vira, evejo seu rosto.— Ai, meu Deus — sussurro alto. Holder olhapara mim sem entender, e eu só consigo balançar acabeça. — Não é nada — digo. — É que eleparece... familiar. Eu não tinha nenhuma imagem na

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cabeça, mas, se o visse na rua, o reconheceria.Nós dois continuamos o observando. As mãosde Holder seguram o volante, e os nós de seus dedosestão brancos. Olho para minhas próprias mãos epercebo que estou segurando o cinto de segurançada mesma maneira.Meu pai acabou afastando o telefone da orelha eo guardando no bolso. Começa a vir na nossadireção, e as mãos de Holder voltam imediatamentepara a ignição. Solto o ar baixinho, esperando queele não tenha percebido de alguma maneira que oestamos observando. Ao mesmo tempo notamos queele está apenas indo até a caixa de correspondênciano início do jardim e relaxamos na mesma hora.— Já basta? — pergunta Holder, rangendo osdentes. — Pois não consigo ficar aqui mais umsegundo sequer sem sair desse carro e enchê-lo deporrada.— Quase — respondo, sem querer que ele façaalguma idiotice, mas também não quero ir emboraainda. Fico observando meu pai conferir as cartasque recebeu enquanto volta para casa e, então, pelaprimeira vez, penso em uma coisa.E se ele tiver se casado de novo?E se tiver outros filhos?E se estiver fazendo aquilo com outra pessoa?Minhas palmas começam a suar no materialescorregadio do cinto, então eu o solto e esfrego asmãos na calça. Elas começam a tremer ainda mais.De repente, só consigo pensar que ele não pode sesafar. Não posso deixá-lo ir embora sabendo quepode estar fazendo isso com outra pessoa. Precisosaber. Preciso garantir que não é mais o monstromalvado das minhas lembranças, pois devo isso amim mesma e a todas as outras crianças com quemele mantém contato. Para ter certeza disso, sei quepreciso vê-lo. Preciso falar com ele. Preciso saberpor que fez tudo aquilo comigo.Depois que meu pai destranca a porta da casa eentra, Holder exala fundo.— Agora? — diz ele, virando-se para mim.Não tenho nenhuma dúvida de que ele se jogariaem cima de mim agora mesmo se soubesse o queestou prestes a fazer. Então não dou pista alguma,forço um sorriso e concordo com a cabeça.— Sim, agora podemos ir.Ele põe a mão na ignição. No mesmo instante emque gira o pulso, solto o cinto, escancaro a porta esaio correndo. Corro pela rua e atravesso o jardimdo meu pai, chegando até o pórtico. Nem escuto

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Holder vindo atrás de mim. Ele não faz o menor ruídoenquanto põe os braços ao meu redor e me ergue,carregando-me e descendo os degraus. Ele aindaestá me carregando, e eu o chuto, tentando tirar seusbraços da minha barriga.— O que diabos acha que está fazendo? — Elenão me põe no chão, simplesmente continua mesegurando e me carregando pelo jardim.— Me solte agora mesmo, Holder, ou vou gritar!Juro por Deus que vou gritar!Com a ameaça, ele me vira em sua direção ebalança meus ombros, fulminando-me com um olharbastante desapontado.— Não faça isso, Sky. Não precisa lidar comisso de novo, não depois do que ele fez. Quero quedê mais tempo para si mesma.Encaro-o com uma mágoa no coração que, comcerteza, é capaz de ver em meus olhos.— Preciso saber se ele está fazendo isso comalguma outra pessoa. Tenho de saber se tem outrosfilhos. Não posso deixar isso de lado sabendo doque ele é capaz. Preciso vê-lo. Preciso falar com ele.Para saber que não é mais aquele homem antes devoltar ao carro e ir embora.Holder balança a cabeça.— Não faça isso. Ainda não. Podemos fazeralgumas ligações. Vamos descobrir mais coisas sobreele na internet primeiro. Por favor, Sky.Holder desliza as mãos dos meus ombros atémeus braços e tenta me fazer ir até o carro. Hesito,ainda certa de que preciso ficar cara a cara com ele.Nada que eu possa descobrir na internet vai me dizero que posso captar por sua voz ou olhar.— Tem alguma coisa de errado acontecendoaqui?Holder e eu viramos as cabeças bruscamente nadireção da voz. Meu pai surge na base dos degrausdo pórtico. Está olhando para Holder, que continuasegurando meus braços com firmeza.— Jovem, esse homem está machucando você?Só o som de sua voz é o suficiente para fazermeus joelhos cederem. Holder sente que estouficando mais fraca e me puxa para perto do peito.— Vamos embora — sussurra ele, pondo obraço ao meu redor e me conduzindo para a frente,de volta para o carro dele.— Não se mexam!Paro na mesma hora, mas Holder continuatentando me empurrar para a frente com maisurgência.

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— Virem-se! — Desta vez a voz de meu pai soamais autoritária. Agora Holder para junto comigo,pois sabemos as consequências de se ignorar asordens de um policial.— Tente disfarçar — diz Holder no meu ouvido.— Talvez ele não a reconheça.Balanço a cabeça e inspiro fundo. Nós nosviramos bem devagar. Meu pai está a vários metrosda casa, aproximando-se de nós. Está me olhandoatentamente, vindo para perto de mim com a mão nocoldre. Baixo os olhos para o chão, porque seu rostoestá indicando um certo reconhecimento e isso medeixa apavorada. Ele para a vários metros de nós ehesita. Holder me segura com mais força, e continuoolhando para o chão com tanto medo que nemconsigo respirar.— Princesa?

Segunda-feira, 29 deoutubro de 201216h35— Não se atreva a encostar nela, porra!Holder está gritando e fazendo pressão nos meusbraços. A voz está bem perto, então sei que está mesegurando. Solto as mãos nas laterais do corpo esinto a grama entre os dedos.— Linda, abra os olhos. Por favor. — A mão deHolder está acariciando meu rosto. Lentamente, abroos olhos e ergo o olhar. Ele está olhando para mim,com meu pai em pé bem ao seu lado. — Está tudobem, você acabou de desmaiar. Preciso que selevante. Temos de ir embora.Ele me ajuda a me levantar e não tira o braço daminha cintura, praticamente segurando todo o meupeso. Agora meu pai está bem na minha frente, meencarando.— É mesmo você — diz ele, olhando paraHolder e depois para mim. — Hope? Se lembra demim? — Seus olhos estão cheios d’água.Os meus não.— Vamos — diz Holder mais uma vez.Eu resisto à sua força e me solto. Olho para meupai... um homem que agora está demonstrandoemoções como se tivesse me amado um dia. Deixede mentira, porra.— Você se lembra? — repete ele, dando maisum passo para perto de mim. Holder me puxa umpouco para trás a cada passo que meu pai dá. —Hope, você se lembra de mim?

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— Como eu poderia esquecer?A ironia é que eu o esqueci sim. Completamente.Esqueci de tudo sobre ele, das coisas que fez comigoe da vida que tive aqui. Mas não quero que saibadisso. Quero que saiba que eu me lembro dele e detodas as coisas que fez comigo.— É você — diz ele, mexendo a mãonervosamente ao lado do corpo. — Você está viva.Você está bem.Ele pega o rádio, para relatar o caso, presumo.Mas antes que seu dedo pressione o botão, Holderestende o braço e derruba o rádio da mão dele. Oaparelho cai no chão, meu pai se abaixa, o pega e dáum passo defensivo para trás, apoiando a mão nocoldre mais uma vez.— Se fosse você, não avisaria a ninguém que elaestá aqui — diz Holder. — Duvido que queira ver ofato de que não passa de um pervertido filho da putaestampado nas primeiras páginas dos jornais.Meu pai fica completamente pálido de repente eolha para mim com medo nos olhos.— O quê? — Ele olha para mim sem acreditar.— Hope, quem quer que tenha levado você... essapessoa mentiu. Disse coisas sobre mim que não eramverdade. — Agora ele está mais perto, os olhosdesesperados e suplicantes. — Quem foi que alevou, Hope? Quem foi?Dou um passo confiante em sua direção.— Eu me lembro de tudo o que você fez comigo.E, se me der o que quero, juro que vou embora enunca mais vai ouvir falar de mim.Ele continua balançando a cabeça, sem acreditarque a própria filha está bem diante dele. Tenhocerteza de que também está tentando processar queagora sua vida está correndo risco. A carreira, areputação, a liberdade. Como se fosse possível, seurosto fica ainda mais pálido no instante em quepercebe que não é possível continuar negando. Elesabe que eu sei.— O que você quer?Olho para a casa e depois para ele mais uma vez.— Respostas — digo. — E quero tudo queainda tem de minha mãe.Holder está segurando firme minha cintura maisuma vez. Estendo o braço e seguro sua mão,precisando me assegurar de que não estou sozinhanesse momento. Minha confiança se esvaecedepressa a cada minuto que passo na presença domeu pai. Tudo a respeito dele — a voz, asexpressões faciais, os movimentos — faz meu

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estômago doer.Meu pai lança um breve olhar para Holder e sevira outra vez para mim.— Podemos conversar lá dentro — afirma elebaixinho, olhando rapidamente para as casas aoredor. O fato de estar demonstrando nervosismo sóprova que analisou suas opções e percebeu que nãotem muita escolha. Ele inclina a cabeça para a porta ecomeça a subir os degraus.— Deixe a arma — diz Holder.Meu pai para, mas não se vira. Devagar, põe amão ao lado do corpo e retira a arma do coldre. Elea coloca nos degraus do pórtico e começa a subi-los.— As duas — exige Holder.Meu pai para novamente antes de chegar àporta. Ele se curva até o tornozelo, levanta a pernada calça e pega a outra arma. Depois que as duasestão fora do seu alcance, entra em casa e deixa aporta aberta para nós. Antes de eu entrar, Holder mevira para si.— Vou ficar bem aqui, com a porta aberta. Nãoconfio nele. Só vá até a sala.Balanço a cabeça e lhe dou um beijo rápido eforte antes que ele me solte. Entro na sala, e meu paiestá sentado no sofá, as mãos na frente do corpo.Está encarando o chão. Vou até o sofá mais próximoe me sento na beirada, me recusando a relaxar. Estardentro dessa casa, na presença dele, deixa minhamente confusa e meu peito apertado. Respiro fundovárias vezes, tentando acalmar o medo.Uso o momento de silêncio entre nós paraencontrar algo em suas feições que pareça com asminhas. A cor do cabelo, talvez? Ele é bem mais altoque eu, e, quando ele consegue olhar para mim, vejoque seus olhos são verde-escuros, diferente dosmeus. Tirando a cor caramelo do cabelo, não mepareço em nada com ele. Sorrio com essaconstatação.Meu pai ergue os olhos até os meus e suspira,mudando de posição, constrangido.— Antes que diga qualquer coisa — começa ele—, precisa saber que eu a amava e que mearrependo do que fiz cada segundo da minha vida.Não respondo verbalmente ao que ele diz, maspreciso me conter para não reagir fisicamente a tantamerda. Ele poderia passar o resto da vida pedindodesculpas, mas nunca será o suficiente para apagarnenhuma das noites em que a maçaneta girou.— Quero saber por que fez aquilo — digo coma voz trêmula. Odeio estar soando tão ridiculamente

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fraca. Pareço mais a garotinha que implorava para eleparar. Não sou mais aquela garotinha e não quero dejeito algum parecer fraca na frente dele.Ele se encosta no assento e esfrega as mãos nosolhos.—Não sei — diz ele, irritado. — Depois quesua mãe morreu, voltei a beber muito. Só foiacontecer um ano depois, quando bebi demais numanoite e acordei no dia seguinte sabendo que tinhafeito algo terrível. Estava esperando que tivesse sidoapenas um sonho horroroso, mas, quando fui acordálanaquela manhã, você estava... diferente. Não eramais a garotinha feliz de antes. Da noite para o dia, setornou alguém que morria de medo de mim. Passei ame odiar. Nem sabia ao certo o que tinha feito, poisestava bêbado demais para lembrar. Mas sabia quetinha sido algo horrendo e peço mil desculpas. Issonunca se repetiu e fiz de tudo para compensar. Passeia comprar presentes o tempo inteiro e dava tudo oque você desejava. Não queria que se lembrassedaquela noite.Seguro meus joelhos numa tentativa de não pularaté o outro lado da sala e estrangulá-lo. O fato deestar tentando fingir que só aconteceu uma vez me fazodiá-lo mais que antes, se é que isso é possível. Estátratando aquilo como se tivesse sido um acidente.Como se tivesse quebrado uma caneca ou arranhadoa porra do carro.— Era noite... após noite... após noite — digo.Estou tendo de juntar todo o controle que tenho paranão gritar do fundo do peito. — Eu tinha medo deme deitar, medo de acordar, medo de ir tomar banhoe medo de falar com você. Eu não era uma garotinhacom medo de monstros dentro do armário oudebaixo da cama. Morria de medo do monstro quedevia me amar! Enquanto você devia estar meprotegendo de pessoas como você!Agora Holder está do meu lado, segurando meubraço enquanto grito com o homem do outro lado dasala. Todo o meu corpo está tremendo, e eu meinclino para perto de Holder, pois preciso sentir suacalma. Ele massageia meu braço e beija meu ombro,me deixando colocar para fora as coisas que precisodizer, sem tentar me impedir nenhuma vez.Meu pai afunda mais no sofá, e lágrimascomeçam a escorrer-lhe dos olhos. Ele não sedefende, pois sabe que tenho razão. Não temabsolutamente nada para me dizer. Só é capaz decobrir o rosto com as mãos e chorar, lamentando porestar, enfim, sendo confrontado, mas sem se lamentar

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de nada do que fez.— Você tem outros filhos? — pergunto,fulminando aqueles olhos tão envergonhados que nemconseguem se virar para mim. Ele abaixa a cabeça epressiona a mão na testa, mas não me responde. —Tem? — grito. Preciso saber se não fez isso commais ninguém. Se ele não continua fazendo isso.Ele balança a cabeça.— Não. Não me casei de novo. — Sua vozparece devastada, e, pelo jeito, ele também está sesentindo assim.— Só fez aquilo comigo?Ele mantém os olhos fixos no chão, evitandominhas perguntas com pausas longas.— Você me deve a verdade — digo com calma.— Fez aquilo com alguém antes de mim?Percebo-o ficar inexpressivo. A insensibilidadeem seus olhos deixa claro que não tem nenhumaintenção de revelar mais nada. Apoio a cabeça nasmãos, sem saber o que fazer em seguida. Parece tãoerrado ir embora e deixá-lo viver sua vida, mastambém tenho muito medo do que pode acontecer seeu o denunciar. Tenho medo do quanto minha vidapode mudar, de que ninguém acredite em mim, poisjá faz tantos anos. No entanto, o que me deixa maisapavorada é o medo de que eu o ame demais paraquerer arruinar o resto da sua vida. Estar com ele nãome faz lembrar apenas de todas as coisas terríveisque fez comigo, mas também do pai que era, foratudo isso. Ficar dentro dessa casa está fazendo umfuracão de emoções rodopiar dentro de mim. Olhopara a mesa da cozinha e começo a me lembrar dascoisas boas, de conversas que tivemos sentados ali.Vejo a porta dos fundos e me lembro de correr até láfora para ver o trem passar no campo atrás da nossacasa. Tudo ao meu redor está me enchendo dememórias conflitantes, e não gosto de amá-lo tantoquanto o odeio.Enxugo as lágrimas dos olhos e fixo o olhar nelemais uma vez, que está encarando o chãosilenciosamente. E, por mais que não queira, começoa enxergar vislumbres do meu papai. Vejo o homemque me amava da maneira como me amava... bemantes de eu começar a ter medo da maçaneta girar.Catorze anos antes— Shh — diz ela, pondo o cabelo atrás dasminhas orelhas.Nós duas estamos deitadas na cama, e elaestá atrás de mim, me aconchegando em seu

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peito. Passei a noite inteira acordada por estardoente. Não gosto de ficar doente, mas adorocomo minha mamãe toma conta de mim quandofico assim.Fecho os olhos e tento dormir para me sentirmelhor. Estou quase pegando no sono quandoescuto a maçaneta virar, então abro os olhos.Meu papai entra e sorri para mamãe e para mim.No entanto, seu sorriso some ao me ver, pois elepercebe que não estou me sentindo bem. Meupapai não gosta quando fico doente porque eleme ama, então fica triste.Ele se senta nos joelhos ao meu lado e tocameu rosto.— Como está minha garotinha? — perguntaele.— Não me sinto bem, papai — sussurro. Elefranze a testa quando digo isso. Devia ter dito queme sentia bem para ele não franzir a testa.Ele olha para minha mamãe, deitada atrás demim, e sorri para ela. Ele toca o rosto dela damesma forma como tocou o meu.— Como está minha outra garota?Sinto ela tocando a mão dele enquanto falacom ela.— Cansada — diz ela. — Passei a noiteacordada com ela.Ele se levanta e puxa sua mão até ela tambémse levantar. Fico observando-o pôr os braços aoredor dela e abraçá-la, e depois a beija nabochecha.— Eu assumo a partir de agora — diz ele,passando a mão no cabelo dela. — Vá descansarum pouco, está bem?Minha mamãe concorda com a cabeça, dáoutro beijo nele e sai do quarto. Meu papai dá avolta na cama e deita na mesma posição em quemamãe estava. Põe os braços ao meu redor assimcomo ela e começa a cantar sua música preferida.Ele diz que é sua música preferida porque é sobremim.“Já perdi muito na minha longa vida.Sim, já vi sofrimento e já vi conflitos.Mas nunca vou desistir; nunca vou me entregar.Porque sempre terei meu raio de esperança”.Sorrio, apesar de não estar me sentindo bem. Meupapai continua cantando para mim até eu fecharos olhos e pegar no sono.

Segunda-feira, 29 de

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outubro de 201216h57É a primeira lembrança que tenho de antes de todasas coisas ruins começarem. Minha única lembrançade antes de minha mãe morrer. Mas não consigo melembrar da aparência dela porque a lembrança eramais um borrão, mas me lembro do que senti. Eu osamava. Os dois.Meu pai ergue o olhar para mim agora com orosto tomado pelo sofrimento. Não sinto a mínimapena dele agora porque... quando foi que ele sentiupena de mim? Sei que está numa posição vulnerável,e, se eu puder usar isso para conseguir arrancar maiscoisa dele, então é o que vou fazer.Eu me levanto, e Holder tenta segurar meubraço, então olho para ele e balanço a cabeça.— Está tudo bem — asseguro-lhe.Ele balança a cabeça e me solta relutantemente,deixando que me aproxime do meu pai. Quandochego perto dele, me ajoelho e olho em seus olhoscheios de arrependimento. Ficar tão próxima deleestá fazendo meu corpo se retesar e a raiva seacumular dentro do meu coração, mas sei quepreciso fazer isso para ele me dar as respostas deque preciso. Ele tem de acreditar que estou mecompadecendo.— Eu estava doente — digo, com calma. —Minha mãe e eu... nós estávamos na cama, e vocêchegou do trabalho. Ela havia passado a noite todaacordada comigo e estava cansada, então você disseque ela podia ir descansar.Uma lágrima escorre pela bochecha do meu pai,e ele faz que sim com a cabeça sutilmente.— Você ficou me abraçando naquela noite comoum pai deve abraçar a filha. E cantou para mim.Lembro que costumava cantar uma música para mimsobre seu raio de esperança. — Enxugo as lágrimasdos meus olhos e continuo olhando para ele. —Antes de minha mãe morrer... antes de você ter deenfrentar todo aquele sofrimento... nem sempre fezaquelas coisas comigo, não é?Ele balança a cabeça e toca meu rosto.— Não, Hope. Eu amava tanto você. Aindaamo. Amava você e sua mãe mais que minha própriavida, mas quando ela morreu... o melhor de mimmorreu com ela.Cerro os punhos, recuando de leve ao sentir aspontas dos seus dedos na minha bochecha. Mas

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consigo aguentar e, de alguma maneira, mantenho acalma.—Lamento que tenha passado por isso — digocom firmeza. E lamento mesmo por ele. Eu melembro do quanto amava minha mãe e,independentemente de como ele lidou com o luto,meu desejo é que nunca tivesse precisado lidar com aperda dela. — Sei que a amava. Eu me lembro. Massaber disso não faz com que seja mais fácil perdoá-lopelo que fez. Não sei por que o que tem dentro devocê é tão diferente do que existe nas outraspessoas... a ponto de se permitir fazer aquelas coisascomigo. Mas, apesar disso, sei que me ama. E pormais que seja difícil admitir... eu também amava você.Amava todo o seu lado bom.Eu me levanto e dou um passo para trás, aindafitando seus olhos.— Sei que não é totalmente mau. Eu sei disso.Mas se me ama como diz que ama... se realmenteamava minha mãe... então vai fazer tudo que puderpara me ajudar a superar isso. Você me deve isso.Tudo que quero é que seja sincero para que eu possair embora daqui com um pouco de paz. É só por issoque estou aqui, OK? Só quero paz.Agora ele está aos prantos, balançando a cabeçaque está coberta pelas mãos. Volto para o sofá, eHolder me abraça forte, ainda ajoelhado ao meulado. Os tremores continuam se espalhando pelo meucorpo, então coloco os braços ao redor de mimmesma. Holder está sentindo como tudo isso está meafetando, então desliza os dedos por baixo do meubraço até encontrar meu dedo mindinho e enroscar odele ao redor do meu. É um gesto bem pequeno, masnão podia ter decidido fazer nada mais perfeito parame encher com uma sensação de segurança, pois éexatamente disso que estou precisando.Meu pai suspira fundo e abaixa as mãos.— Quando comecei a beber... foi apenas umavez. Fiz algo com minha irmã mais nova... mas foi sóuma vez. — Ele fixa o olhar em mim, e seus olhoscontinuam cheios de vergonha. — Foi anos antes deeu conhecer sua mãe.Sinto um aperto no coração com sua honestidadebrutal, mas sinto um aperto ainda maior por ele acharque não tem problema já que foi somente uma vez.Engulo o nó da minha garganta e continuo com asperguntas.— E depois de mim? Fez aquilo com alguémdepois que fui levada?Seus olhos se fixam no chão, e ver a culpa que

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ele está demonstrando é como levar um murro bemna barriga. Solto o ar, contendo as lágrimas.— Quem? Quantas?Ele balança a cabeça sutilmente.— Foi só mais uma. Parei de beber há algunsanos e não encostei em ninguém depois disso. — Eleolha para mim, os olhos desesperados eesperançosos. — Juro. Só foram três e nos pioresmomentos da minha vida. Quando estou sóbrio,consigo controlar minhas vontades. Por isso nãobebo mais.— Quem era ela? — pergunto, querendo quelide com a verdade por mais alguns minutos antes queeu saia da sua vida para sempre.Ele aponta a cabeça para a direita.— Ela morava na casa aqui ao lado. Eles semudaram quando ela estava com uns 10 anos, entãonem sei o que aconteceu com a menina. Foi anosatrás, Hope. Não faço isso há anos, e essa é averdade. Juro.De repente meu coração passa a pesar umatonelada. Não sinto mais o aperto no meu braço evejo Holder ficar devastado diante dos meuspróprios olhos.Seu rosto revela uma quantidade insuportável desofrimento, e ele se vira de costas para mim, pondoas mãos no cabelo.— Less — sussurra ele aflito. — Ah, meu Deus,não. — Ele pressiona a cabeça no batente,segurando firme a nuca com ambas as mãos.Na mesma hora, me levanto, vou até ele e colocoas mãos em seus ombros, com medo de que ele váexplodir. Holder começa a tremer e a chorar, semfazer barulho algum. Não sei o que fazer nem o quedizer. Ele só fica repetindo “não” várias vezesseguidas, balançando a cabeça. Meu coração estásofrendo por ele, mas não faço ideia de como ajudálo.Entendo agora o que quis dizer quando comentouque só fala as coisas erradas para mim, pois agoranão tem absolutamente nada que posso dizer paraajudá-lo. Em vez disso, pressiono a cabeça na dele.Holder se vira e fica me balançando com o braço.Pela maneira como seu peito está agitado,percebo que está tentando conter a raiva. Ele passa ainspirar e expirar com certa intensidade, tentandoficar mais calmo. Eu o seguro com mais força, naesperança de que ele consiga não liberar sua raiva.Por mais que eu queira que faça isso... por mais queeu queira que seja capaz de retaliar fisicamente o quemeu pai fez com Less e comigo, temo que nesse

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momento Holder esteja sentindo ódio demais e nãoconsiga parar depois que começar.Ele me solta e leva as mãos até meus ombros,afastando-me dele. A expressão em seus olhos é tãosombria que me sinto na defensiva de imediato. Douum passo para ficar entre ele e meu pai, sem saber oque mais posso fazer para impedi-lo de atacar, mas écomo se eu nem estivesse aqui. Quando Holder olhapara mim, é como se nem estivesse me vendo.Escuto meu pai se levantar atrás de mim e vejo osolhos de Holder acompanhá-lo. Eu me viro,preparando-me para dizer ao meu pai que saiaimediatamente da sala, mas Holder segura meusbraços e me empurra, me tirando do caminho.Tropeço e caio no chão, vendo em câmera lentameu pai alcançar algo atrás do sofá e se virar comuma arma na mão, apontando-a para Holder. Nãoconsigo falar. Não consigo gritar. Não consigo memover. Não consigo nem fechar os olhos. Souobrigada a ficar observando.Meu pai leva o rádio até a boca, segurando comfirmeza a arma, com uma expressão fria nos olhos.Ele pressiona o botão sem desviar os olhos deHolder e fala:— Policial caído em Oak Street trinta e cincovinte e dois.Meus olhos imediatamente se direcionam paraHolder e depois voltam para meu pai. O rádio caidas mãos dele e para no chão à minha frente. Eu melevanto, ainda sem conseguir gritar. Os olhosarrasados do meu pai encontram os meus enquantoele vira a arma devagar.— Me desculpe mesmo, Princesa.O som explode, enchendo a sala inteira. É tãoalto. Aperto os olhos e tapo os ouvidos, sem sabernem de onde o ruído vem. É um barulho agudo,como um grito. Parece uma garota berrando.Sou eu.Eu que estou berrando.Abro os olhos e vejo o corpo sem vida do meupai a alguns metros de mim. As mãos de Holdertapam minha boca, ele me ergue e me leva para forada casa. Ele nem está tentando me carregar. Meuscalcanhares se arrastam pela grama, e ele tapa minhaboca com uma das mãos e segura minha cintura como outro braço. Ao chegarmos no carro, mantém amão firme tapando minha boca, abafando meu grito.Ele olha ao redor freneticamente, para garantir queninguém está testemunhando o caos se desenrolando.Meus olhos estão arregalados, e balanço a cabeça,

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esperando que o último minuto da minha vidasimplesmente desapareça se eu me recusar aacreditar nele.— Pare. Preciso que pare de gritar. Agora.Balanço a cabeça com firmeza, conseguindosilenciar o som involuntário que estava saindo daminha boca. Tento respirar e consigo ouvir o arentrando e saindo depressa pelo meu nariz. Meupeito está agitado e, quando vejo o sangue espalhadona lateral do rosto de Holder, tento não gritar outravez.— Está escutando? — pergunta Holder. — Sãosirenes, Sky. Eles vão chegar aqui em menos de umminuto. Vou tirar minha mão da sua boca e precisoque entre no carro e fique o mais calma possívelporque a gente precisa sair daqui.Faço que sim com a cabeça mais uma vez, eletira a mão da minha boca e me empurra para dentrodo carro. Ele corre até o lado do motorista, entradepressa, liga o carro e segue pela rua. Nós viramosa esquina bem no instante em que duas viaturasaparecem na esquina na outra extremidade da rua,atrás de nós. Vamos embora, e eu coloco a cabeçaentre os joelhos, tentando respirar. Nem sequerpenso no que acabou de acontecer. Não consigo.Não aconteceu. Não pode ter acontecido. Eu meconcentro no fato de que isso tudo não passa de umpesadelo terrível e em respirar. Respiro para garantirque ainda estou viva, pois de forma alguma isso separece com minha vida.

Segunda-feira, 29 deoutubro de 201217h29Entramos no quarto de hotel como zumbis. Nem melembro de sair do carro e entrar no quarto. Aoalcançar a cama, Holder se senta e tira os sapatos.Só consegui andar alguns metros, parando na portado quarto. Minhas mãos estão ao lado do corpo, eminha cabeça está inclinada. Fico olhando para ajanela do outro lado do quarto. As cortinas estãoabertas, deixando à mostra apenas a paisagemdeprimente de um prédio de tijolos que fica a algunsmetros do hotel. Só uma parede inteira feita detijolos, sem janelas ou portas. Apenas tijolos.Olhar pela janela e ver a parede de tijolos écomo me sinto em relação à minha vida. Tentoenxergar o futuro, mas não consigo ver mais nadadepois desse momento. Não faço ideia do que está

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por vir, com quem vou morar, do que vai ser deKaren, se vou contar para a polícia o que acabou deacontecer. Não consigo nem dar um palpite. Háapenas uma parede entre esse momento e o seguinte,não existe sequer uma pista pichada de spray.Nos últimos 13 anos, minha vida não passou deuma parede de tijolos que dividia os primeiros anosdo restante. Uma barreira sólida, separando minhavida como Sky de minha vida como Hope. Já ouvifalar de pessoas que bloqueiam lembrançastraumáticas, mas sempre achei que isso era mais umaescolha. Nos últimos 13 anos, não tinha mesmo amínima ideia de quem eu era antes. Sabia que eranova quando me tiraram daquela vida, mas mesmoassim era de se esperar que guardasse algumaslembranças. Acho que, no instante em que fui emboracom Karen, de alguma maneira tomei uma decisãoconsciente, mesmo sendo tão nova, de nunca melembrar daquelas coisas. Depois que Karen começoua me contar histórias da minha “adoção”, deve tersido mais fácil para minha mente aceitar as mentirasindefesas do que se lembrar da verdade terrível.Sei que na época eu não era capaz de explicar oque meu pai estava fazendo comigo, pois eu não tinhacerteza. Só sabia que odiava aquilo. Quando não setem certeza do que é aquilo que você odeia ou porque sequer odeia alguma coisa, é difícil se ater aosdetalhes... a pessoa se prende somente aossentimentos. Sei que nunca tive muita curiosidade deinvestigar meu passado. Nunca tive muita curiosidadede descobrir quem era meu pai ou por que ele “mecolocou para adoção”. Agora sei que é porque, emalgum canto da minha mente, eu ainda guardava ódioe medo daquele homem, então era mais fácil erguer aparede de tijolos e nunca mais olhar para trás.Continuo sentindo ódio e medo dele, mesmosabendo que não pode mais encostar em mim. Aindao odeio e ainda morro de medo dele e, mesmo assim,estou arrasada por ele ter morrido. Eu o odeio porinserir acontecimentos tão terríveis na minha memóriae ainda assim conseguir fazer com que eu sofra suaperda no meio de todas essas coisas ruins. Nãoquero sofrer a perda. Quero ficar alegre com isso,mas não consigo.Meu casaco está sendo removido. Desvio oolhar da parede de tijolos que me provoca do ladode fora da janela, viro a cabeça e vejo Holder atrásde mim. Ele deixa meu casaco na cadeira e tira minhacamisa manchada de sangue. Uma tristeza intensa meconsome ao perceber que tenho os mesmos genes do

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sangue sem vida que cobre meu rosto e minhasroupas. Holder vem para minha frente, encosta nobotão da minha calça e a desabotoa.Está de cueca boxer. Nem percebi que tirou aroupa. Meus olhos se erguem até seu rosto, que tempequenas manchas de sangue na bochecha direita, aque estava virada para meu pai no momento de seuato covarde. Os olhos estão tristes, focados na calçaenquanto ele a desce pelas minhas pernas.— Preciso que você dê um passo para foradelas, linda — diz ele baixinho ao chegar aos meuspés.Eu me seguro nos ombros dele e tiro um pé dedentro da calça, depois o outro. Mantenho as mãosnos seus ombros e os olhos fixos no sangueespalhado por seu cabelo. Mecanicamente, estendoo braço e passo os dedos por uma mecha de cabelo,em seguida aproximo a mão para analisá-la. Esfregoo sangue entre as pontas dos dedos, mas agora estágrosso. Está mais grosso do que sangue deveria ser.É porque não é apenas o sangue do meu pai queestá nos cobrindo.Começo a passar os dedos na barriga, tentandodesesperadamente tirar isso de mim, mas acaboespalhando mais. Minha garganta se fecha e nãoconsigo gritar. É como os sonhos que tive em queuma coisa era tão apavorante que eu perdia todaminha capacidade de emitir sons. Holder ergue oolhar, e eu quero gritar, berrar e chorar, mas sóconsigo arregalar os olhos, balançar a cabeça econtinuar limpando as mãos no meu corpo. Ao mever em pânico, ele se levanta, me ergue e me carregadepressa até o chuveiro. Ele me deixa do ladooposto do boxe, entra comigo e abre a torneira.Depois, fecha a cortina quando a água fica quente,vira-se para mim e segura meus pulsos que continuamtentando limpar as manchas vermelhas. Ele me puxapara perto de si e nos vira na direção do jato quentede água. Quando a água bate nos meus olhos, solto oar, inspirando fundo depois.Holder estende o braço para a lateral dabanheira e pega o sabonete, rasgando a embalagemde papel encharcada. Ele se inclina para fora dabanheira e volta para dentro segurando uma pequenatoalha. Meu corpo inteiro está tremendo, mesmo coma água quente. Ele passa sabão e água na toalha edepois a pressiona na minha bochecha.— Shh — sussurra ele, encarando meus olhoscheios de pânico. — Vou tirar isso de você, estábem? Ele começa a limpar meu rosto com delicadeza, e

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aperto os olhos, fazendo que sim com a cabeça. Ficode olhos fechados, pois não quero ver a toalhamanchada de sangue quando ele a afastar do meurosto. Coloco os braços ao redor do meu corpo efico o mais imóvel possível, mas os tremores ainda seespalham pelo meu corpo. Ele leva vários minutospara limpar o sangue do meu rosto, dos meus braçose da minha barriga. Quando termina, põe a mão atrásda minha cabeça e tira meu elástico de cabelo.— Olhe para mim, Sky. — Eu obedeço e elepõe os dedos de leve no meu ombro. — Vou tirarseu sutiã agora, está bem? Preciso lavar seu cabelo enão quero que nada o deixe sujo.Que nada o deixe sujo?Quando percebo que ele está se referindo ao queprovavelmente está espalhado pelo meu cabelo,começo a ficar em pânico outra vez, abaixo as alçasdo sutiã e acabo tirando-o por cima da cabeça.— Tire logo — digo baixinho e depressa,inclinando a cabeça na direção da água, tentandoencharcar meu cabelo passando os dedos neledebaixo da água. — Tire logo isso de mim. —Minha voz soa mais em pânico dessa vez.Ele segura meus pulsos de novo, afasta-os domeu cabelo e os coloca ao redor de sua cintura.— Vou tirar. Segure-se em mim e tente relaxar.Já vou tirar.Pressiono a cabeça em seu peito e me segurocom mais firmeza. Consigo sentir o cheiro doshampoo enquanto ele o coloca na mão e leva olíquido até meu cabelo, espalhando-o com as pontasdos dedos. Ele nos aproxima um pouco mais da águaaté esta cair na minha cabeça, que está pressionandoseu ombro. Holder massageia e esfrega meu courocabeludo, enxaguando-o várias vezes seguidas. Nempergunto por que ele o enxágua tantas vezes; sópermito que enxágue quantas vezes precisar.Quando termina, nos vira para ficarmos debaixoda água e passar shampoo no próprio cabelo. Soltosua cintura e me afasto para evitar sentir outras coisasem cima de mim. Baixo o olhar para minha barriga epara minhas mãos, e não vejo resquício algum domeu pai em mim. Olho de novo para Holder, queestá esfregando o rosto e o pescoço com uma toalhalimpa. Fico parada, observando-o limpar os indíciosdo que aconteceu com a gente há menos de umahora. Ao terminar, ele abre os olhos tristes e focalizaosem mim.— Sky, preciso que confira se tirei tudo, OK?Preciso que você me limpe se tiver alguma coisa que

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eu não tenha visto.Está falando comigo com tanta calma; pareceque está tentando evitar que me descontrole. É suavoz que me faz perceber que é isso que está tentandofazer. Ele tem medo de que eu esteja prestes aperder o controle, surtar ou entrar em pânico.Temo que possa estar certo, então pego a toalhadas suas mãos e me obrigo a ser forte e investigar-lheo corpo. Ainda tem um pouco de sangue acima daorelha direita, então pego a toalha e limpo. Afasto-ae olho para a última mancha de sangue que sobrouem nós dois, passo-a debaixo da água e vejo-adesaparecer.— Foi tudo embora — sussurro. Nem sei seestou me referindo ao sangue.Holder pega a toalha da minha mão e a joga nabeirada da banheira. Olho para ele, que está com osolhos mais vermelhos que antes, mas não sei se estáchorando, pois a água escorre por seu rosto damesma maneira que lágrimas escorreriam. É nessemomento então, após todos os vestígios físicos domeu passado terem sido levados pela água, que melembro de Lesslie.Meu coração se parte completamente de novo,dessa vez por Holder. Um soluço sai de mim, ecubro a boca com a mão, mas os ombros continuamtremendo. Ele me puxa para perto de seu peito epressiona os lábios no meu cabelo.— Holder, sinto muito. Meu Deus, sinto muitomesmo.Estou chorando e me abraçando a ele, desejandoque a falta de esperança pudesse ser levada pelaágua assim como o sangue. Ele me abraça tão forteque mal consigo respirar. Mas ele precisa disso.Precisa que eu sinta seu sofrimento agora, da mesmaforma preciso que sinta o meu.Penso em todas as palavras que meu pai medisse hoje e tento chorar para que saiam de mim.Não quero me lembrar do seu rosto. Não quero melembrar da sua voz. Não quero lembrar o quanto euo odeio e, mais que tudo, do quanto eu o amava.Não existe nada como a culpa que sentimos quandopercebemos que nosso próprio coração é capaz deamar o mal.Holder leva a mão até a parte de trás da minhacabeça e puxa meu rosto de encontro ao ombro. Suabochecha pressiona o topo da minha cabeça, e agoraconsigo escutar seu choro. É baixinho, e ele está seesforçando muito para contê-lo. Holder estásofrendo tanto por causa do que meu pai fez com

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Lesslie, e não consigo evitar um pequeno sentimentode culpa. Se eu estivesse por perto, ele nunca teriaencostado em Lesslie e ela nunca teria sofrido. Se eununca tivesse entrado naquele carro com Karen,Lesslie talvez ainda estivesse viva.Curvo as mãos atrás dos braços de Holder eseguro seus ombros. Ergo a bochecha e viro a bocana direção do seu ombro, beijando-o suavemente.— Desculpe-me. Ele nunca teria tocado nela seeu...Holder segura meus braços e me afasta comtanta força que meus olhos ficam arregalados, e eume contorço quando ele fala:— Nem se atreva a dizer isso. — Ele me solta e,depressa, leva as mãos até meu rosto, segurando-mecom firmeza. — Não quero nunca que peçadesculpas pelo que aquele homem fez. Está meescutando? Não é culpa sua, Sky. Prometa quenunca mais vai deixar esse pensamento passar pelacabeça. — Seus olhos estão desesperados e cheiosde lágrimas.Concordo com a cabeça.— Juro — digo com sinceridade.Ele não desvia o olhar e fica investigando meusolhos para tentar descobrir se estou dizendo averdade. Sua reação fez meu coração acelerar de tãochocada que fiquei ao ver a rapidez com quedescartou a possibilidade de que eu pudesse terqualquer culpa. Queria que descartasse a culpa queacha que tem com a mesma rapidez, mas isso ele nãofaz.Não posso tirar a culpa em seu olhar, então jogoos braços ao redor de seu pescoço e o abraço. Eleretribui meu abraço com mais força, com umdesespero sofrido. A verdade sobre Lesslie e arealidade do que acabamos de testemunhar atingemnós dois, e ficamos nos abraçando com todas asforças que temos. Ele não está mais tentando serforte por mim. O amor que tinha por Lesslie e a raivaque está sentindo por causa do que aconteceuemanam dele com intensidade.Sei que Lesslie precisaria que ele sentisse osofrimento dela, então nem tento consolá-lo compalavras. Nós dois choramos por ela agora, poisnaquela época Less não tinha ninguém para chorarpor ela. Beijo sua têmpora, minhas mãos segurandoseu pescoço. Cada vez que meus lábios encostamnele, ele me aperta com um pouco mais de força. Suaboca roça pelo meu ombro, e logo estamos nosbeijando para tentar nos livrar de todo esse

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sofrimento que nenhum de nós merece. Sinto adeterminação de seus lábios enquanto beija meupescoço com mais força e mais velocidade, tentandodesesperadamente encontrar alguma forma deescapismo. Ele se afasta e me olha nos olhos, osombros subindo e descendo a cada vez que respiracom dificuldade.Em um rápido movimento, ele leva os lábios paracima dos meus com uma urgência intensa, agarrandomeu cabelo e minhas costas com mãos trêmulas. Eleempurra minhas costas na parede do banheiroenquanto desliza as mãos pelas minhas coxas. Possosentir seu desespero ao me erguer e colocar minhaspernas ao redor da sua cintura. Ele quer que essa dordesapareça e precisa da minha ajuda para isso.Assim como precisei dele ontem.Coloco os braços ao redor do seu pescoço,puxando-o para mim e deixando-o me consumir paraque passe um tempo sem sentir aquela mágoa.Permito isso, pois sei que preciso desse tempo tantoquanto ele. Quero esquecer de todo o resto.Não quero que essa seja nossa vida hoje.Com seu corpo me pressionando na parede dobanheiro, ele agarra as laterais do meu rosto,segurando-me, enquanto nossas bocas procuramdesesperadamente na outra qualquer consolo paranossa realidade. Estou segurando suas costasenquanto sua boca desce empolgada pelo meupescoço.— Me diga que não tem problema — diz ele,ofegando na minha pele. Ele ergue o rosto para omeu, procurando, nervoso, por meus olhos enquantofala. — Me diga que não tem problema querer ficardentro de você agora... porque, depois de tudo quepassamos hoje, parece errado desejá-la como estoufazendo agora.Agarro seu cabelo e o puxo mais para perto demim, cobrindo sua boca com a minha, beijando-ocom tanta convicção que nem preciso dizer nada. Elegeme, me afasta da parede do banheiro, me leva paraa cama, e vou enroscada nele durante todo ocaminho. Ele não está sendo nada delicado aoarrancar as duas peças de roupa que sobraram nosnossos corpos e ao se apoderar da minha boca coma dele, mas, para ser sincera, não sei se meu coraçãoseria capaz de aceitar delicadeza nesse momento.Ele está em pé na beirada da cama, com a bocagrudada na minha. Ele se separa por um instante paracolocar a camisinha, agarra minha cintura e meempurra para a beirada da cama junto a ele. Ergue

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minha perna por trás do joelho e a leva para o lado,em seguida, desliza a mão por baixo do meu braço eagarra meu ombro. Assim que seus olhos encontramos meus, ele me penetra sem nenhuma hesitação.Solto o ar ao sentir sua repentina força, chocada como prazer intenso que substitui a dor momentânea.Coloco os braços ao seu redor e me mexo com eleenquanto aperta minha perna com mais força e cobreminha boca com a sua. Fecho os olhos e deixo minhacabeça se afundar mais no colchão enquanto usamosnosso amor para amenizar temporariamente aangústia.As mãos dele alcançam minha cintura, e ele mepuxa para ele, enfiando os dedos no meu quadril acada movimento frenético e ritmado. Seguro seusbraços e relaxo o corpo, permitindo que me guie damaneira que for ajudá-lo. Sua boca se separa daminha, e ele abre os olhos no mesmo instante em queabro os meus. Os olhos ainda estão lacrimosos,então o solto e levo as mãos até seu rosto, tentandoamenizar o sofrimento em suas feições com meutoque. Ele continua olhando para mim, mas vira acabeça para beijar a palma da minha mão e sai decima de mim, parando de repente.Estamos ofegantes, e consigo senti-lo dentro demim, ainda precisando de mim. Ele mantém os olhosfixos nos meus enquanto passa os braços por baixodas minhas costas e me puxa para perto, erguendonós dois. Não nos separamos enquanto nos vira edesliza até o chão encostando-se à cama, comigo porcima. Ele me puxa para perto e me beija. Um beijodelicado dessa vez.A maneira como está me abraçando, de formaprotetora agora, beijando meus lábios e queixo — équase como se fosse um Holder diferente daqueleque estava comigo trinta segundos atrás, masigualmente apaixonado. Num minuto, é alvoroçado eintenso... no outro, carinhoso e lisonjeador. Estoucomeçando a apreciar e a amar sua imprevisibilidade.Consigo sentir que quer que eu assuma ocontrole agora, mas estou nervosa. Nem tenhocerteza se sei fazer isso. Ele sente meuconstrangimento e leva as mãos à minha cintura,guiando-me devagar, movendo-me de maneira bemsutil em cima dele. Fica me observando atentamente,conferindo se ainda estou aqui com ele.E estou. Estou totalmente presente nestemomento e não consigo pensar em mais nada.Ele leva a mão para meu rosto, ainda me guiandocom a outra mão na minha cintura.

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— Sabe o que sinto por você — diz ele. —Sabe o quanto a amo. Sabe que eu faria de tudo paraacabar com seu sofrimento, não é?Faço que sim com a cabeça, pois sei, sim. E, aoolhar nos olhos dele agora, ao ver a honestidadeintensa que há neles, sei que sentia isso por mim hámuito tempo.— Estou precisando tanto disso, Sky. Precisosaber que você também me ama assim.Tudo a respeito dele, desde a voz até aexpressão em seu rosto, é tomado pela aflição. Eufaria qualquer coisa que pudesse para tirar isso dedentro dele. Entrelaço nossos dedos e cubro nossoscorações com nossas mãos, reunindo coragem paramostrar o tamanho incrível do amor que sinto por ele.Fico olhando-o bem nos olhos enquanto me levantoum pouco, voltando a me abaixar depois em cimadele.Ele geme profundamente, fecha os olhos e inclinaa cabeça para trás, deixando-a encostar no colchãoatrás dele.— Abra os olhos — sussurro. — Quero quefique me olhando.Ele levanta a cabeça e me observa com os olhossemicerrados. Continuo a assumir o controledevagar, querendo mais que tudo que ele escute,sinta e veja o quanto é importante para mim. Estar nocontrole é uma sensação completamente diferente,mas não deixa de ser boa. A maneira como está meobservando me faz sentir que ele precisa de mim detal forma que nunca senti antes com ninguém. Decerta maneira, me faz sentir necessária. Como se sóminha existência fosse necessária para suasobrevivência.— Não desvie o olhar de novo — digo, meerguendo. Quando me abaixo outra vez em cimadele, sua cabeça se vira sutilmente por causa daintensidade da sensação e deixo um gemido escapar,mas ele mantém os olhos aflitos bem fixos nos meus.Não estou mais precisando de sua orientação, e meucorpo se transforma num reflexo ritmado do dele. —Sabe a primeira vez que me beijou? — pergunto. —Aquele instante em que seus lábios encostaram nosmeus? Você roubou um pedaço do meu coraçãonaquela noite. — Mantenho o ritmo enquanto ele meobserva ardentemente. — Na primeira vez que disseque me gamava porque ainda não estava pronto paradizer que me amava? — Pressiono minha mão commais força no peito dele e me aproximo, querendoque sinta todas as partes do meu corpo. — Aquelas

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palavras roubaram mais um pedaço do meu coração.Ele abre a mão que está tocando meu peito até apalma estar toda encostada na minha pele. Faço omesmo com ele.— Na noite em que descobri que era Hope?Disse que queria ficar sozinha no meu quarto e,quando acordei e vi que você estava lá comigo nacama, tive vontade de chorar, Holder. Queria chorarporque precisava tanto de você ali. Foi naquelemomento que percebi que estava apaixonada porvocê. Estava apaixonada pela maneira como você meamava. Quando pôs os braços ao meu redor e meabraçou, soube que, independentemente do queacontecesse com minha vida, meu lar era você. Vocêroubou a maior parte do meu coração naquela noite.Abaixo a boca até a dele e beijo-odelicadamente. Ele fecha os olhos e começa aencostar a cabeça na cama outra vez.— Fique com eles abertos — sussurro,afastando-me dos lábios dele. — Ele os abre,olhando-me com uma intensidade que bate direto nocentro do meu ser. — Quero que fique de olhosabertos... porque preciso que veja eu lhe entregar aúltima parte do meu coração.Ele exala fundo, e é quase como se eu pudesseliteralmente ver a dor escapar dele. Suas mãosapertam mais as minhas enquanto a expressão emseus olhos muda imediatamente de um desesperointenso para um desejo ardente. Ele começa a semover junto comigo, e nos olhamos. Aos poucos,viramos um só ao expressarmos em silêncio comnossos corpos, mãos e olhos o que palavras sãoincapazes de demonstrar.Continuamos numa cadência sintonizada até oúltimo instante, quando os olhos dele ficam sérios. Elejoga a cabeça para trás, consumido por tremores quedominam sua ejaculação. Quando seu coraçãocomeça a se acalmar, ainda encostado na minhapalma, ele consegue me olhar nos olhos de novo,então afasta as mãos das minhas, segura a parte detrás da minha cabeça e me beija com uma paixãoimplacável. Ele se inclina para a frente enquanto medeita no chão, passando a assumir o controle outravez e me beijando, completamente entregue aomomento.Passamos o resto da noite alternando nossasexpressões de amor sem dizer uma única palavra.Quando enfim ficamos exaustos, abraçados, começoa pegar no sono, sendo dominada por uma onda deincredulidade. Acabamos de nos entregar

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completamente um ao outro, de coração e alma.Jamais achei que seria capaz de confiar em umhomem a ponto de compartilhar meu coração, muitomenos de entregá-lo por completo.

Segunda-feira, 29 deoutubro de 201223h35Holder não está do meu lado quando rolo para olado e tateio em busca dele. Eu me sento na cama, eestá escuro lá fora, então estendo o braço paraacender o abajur. Seus sapatos não estão onde osdeixou após tirá-los, então me visto e saio atrás dele.Passo pelo pátio, sem avistá-lo em nenhuma dascadeiras. Estou prestes a me virar e voltar para oquarto quando o vejo deitado no concreto ao lado dapiscina, com as mãos atrás da cabeça, encarando asestrelas. Parece estar tão em paz que prefiro ficarnuma das cadeiras e não atrapalhar o momento.Eu me sento e coloco os braços dentro domoletom, jogando a cabeça para trás enquanto oobservo. A lua está cheia, então ele está sendoiluminado pelo suave luar, que o deixa com umaaparência quase angelical. Ele está concentrado nocéu com uma expressão de serenidade no rosto, mefazendo sentir gratidão por ele ter encontrado umpouco de paz dentro de si para superar o dia dehoje. Sei o quanto Lesslie era importante para ele esei pelo que seu coração está passando nesse dia.Sei exatamente o que está sentindo porque agoranosso sofrimento é compartilhado. Tudo pelo que elepassar vou sentir. Tudo pelo que eu passar ele vaisentir. É o que acontece quando duas pessoas viramuma só: elas passam a compartilhar mais do queamor. Também compartilham todo o sofrimento,mágoa, dor e aflição.Apesar da calamidade que está minha vida nestemomento, há uma sensação cálida de conforto mecercando após ter ficado com ele há pouco. Nãoimporta o que acontecer, tenho certeza de queHolder estará do meu lado durante cada segundo,talvez até me ajudando a seguir em frente de vez emquando. Ele provou que nunca mais vou sentir queminha esperança se esgotou enquanto ele estiver naminha vida.— Venha deitar comigo — diz ele, sem desviaros olhos do céu.Sorrio, me levanto e vou até ele. Ao chegarperto, Holder tira o casaco e o coloca por cima de

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mim enquanto me deito no concreto frio e meaconchego em seu peito. Ele alisa meu cabeloenquanto ficamos encarando o céu, observando emsilêncio as estrelas.Partes de uma memória começam a surgir emminha mente, então fecho os olhos, querendo mesmome lembrar dessa vez. Parece ser uma memória feliz,e essas sempre vou aceitar. Abraço-o com firmeza eme entrego completamente a ela.Treze anos antes— Por que você não tem televisão? — perguntopara ela.Já faz vários dias que estamos juntas. Ela ébem legal, e eu gosto daqui, mas sinto falta de vertelevisão. Mas sinto mais falta ainda de Dean eLesslie.— Não tenho televisão porque as pessoasacabaram ficando dependentes da tecnologia e setornaram preguiçosas — diz Karen.Não sei o que ela quer dizer, mas finjo que sei.Gosto muito de sua casa e não quero dizer nadaque possa fazer com que ela queira me levar devolta para minha casa e para meu papai. Aindanão estou pronta para voltar para lá.— Hope, você se lembra de que uns dias atráseu disse que tinha algo bem importante para lhefalar?Não lembro, mas faço que sim com a cabeça efinjo que não esqueci. Ela aproxima a cadeira daminha na mesa, chegando mais perto de mim.— Quero que preste atenção em mim, estácerto? Isso é muito importante.Balanço a cabeça. Espero que não me digaque vai me levar para casa. Não estou prontapara isso. Estou com saudade de Dean e Lesslie,mas não quero de jeito nenhum voltar para casa epara meu papai.— Você sabe o que adoção significa? —pergunta ela.Nego com a cabeça porque nunca ouvi essapalavra.— Adoção é quando alguém ama tanto umacriança que quer que ela seja seu filho ou filha.Então a pessoa adota essa criança para virar suamamãe ou seu papai. — Ela segura minha mão ea aperta. — Amo tanto você que vou adotá-lapara que seja minha filha.Sorrio para ela, mas na verdade não entendoo que está dizendo.

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— Você vai morar comigo e com papai?Ela balança a cabeça.— Não, querida. Seu papai a ama muitomesmo, mas ele não pode mais cuidar de você.Ele precisa que eu cuide de você de agora emdiante, pois quer ter certeza de que você seráfeliz. Então, em vez de morar com seu papai, vocêvai morar comigo e eu vou ser sua mamãe.Acho que estou com vontade de chorar, masnão sei o motivo. Gosto muito de Karen, mastambém amo meu papai. Gosto da casa dela,gosto da comida dela e gosto do meu quarto.Quero muito mesmo ficar aqui, mas não consigosorrir porque minha barriga está doendo.Começou a doer quando ela disse que meu papainão podia mais cuidar de mim. Será que ele ficoubravo comigo? Mas não pergunto se ele ficoubravo comigo. Fico com medo de que pense queainda quero morar com meu papai, que ela meleve de volta para morar com ele. Eu o amo deverdade, mas morro de medo de voltar a ter demorar com ele.— Está feliz porque vou adotá-la? Quermorar comigo?Quero morar com ela, mas estou triste porquedemorou muitos minutos ou horas parachegarmos até aqui. O que significa que estamoslonge de Dean e Lesslie.— E meus amigos? Vou ver meus amigos denovo?Karen inclina a cabeça para o lado, sorri paramim e põe meu cabelo atrás da orelha.— Querida, você vai fazer muitos outrosamigos.Sorrio para ela, mas minha barriga dói. Nãoquero novos amigos. Quero Dean e Lesslie. Estoucom saudade deles. Sinto meus olhos ardendo etento não chorar. Não quero que ela ache que nãoestou feliz com ela me adotando, pois estou.Karen se aproxima e me abraça.— Querida, não se preocupe. Um dia você vaivoltar a ver seus amigos. Mas agora não podemosvoltar, então vamos fazer novos amigos aqui, estábem?Concordo, e Karen beija o topo da minhacabeça enquanto olha para a pulseira na minhamão. Toco o coração na pulseira e espero queLesslie saiba onde estou. Espero que saibam queestou bem, pois não quero que se preocupemcomigo.— Tem mais uma coisa — diz ela. — Você vai

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adorar.Karen se encosta na cadeira e coloca umpedaço de papel e um lápis bem na frente dela.— A melhor parte de ser adotada é que podeescolher seu próprio nome. Sabia disso?Balanço a cabeça. Não sabia que as pessoaspodiam escolher os próprios nomes.— Antes de escolhermos seu nome,precisamos saber quais nomes não podemos usar.Não podemos usar o nome que você tinha antesnem apelidos. Você tem algum apelido? Seu paichama você de alguma coisa?Faço que sim com a cabeça, mas não falonada.—Ele a chama de quê?Olho para as mãos e limpo a garganta.— Princesa — digo baixinho. — Mas nãogosto desse apelido.Ela parece ficar triste quando digo isso.— Bem, então a gente nunca mais vai chamarvocê de Princesa, está certo?Concordo com a cabeça. Fico feliz por elatambém não gostar do apelido.— Quero que me diga algumas coisas que adeixam contente. Coisas bonitas e que você ama.Talvez a gente possa escolher um nome entreessas coisas.Nem preciso que ela anote, pois só me sintoassim em relação a uma coisa.— Amo o céu — digo, pensando no que Deanfalou que eu devia lembrar para sempre.— Então você vai se chamar Sky — diz ela,sorrindo. — Adorei esse nome. Acho perfeito.Agora vamos pensar em mais um nome, pois todomundo precisa de dois. O que mais você ama?Fecho os olhos e tento pensar em algumaoutra coisa, mas não consigo. O céu é a únicacoisa que amo que é bonita e que me alegra. Abroos olhos e a encaro.— O que você ama, Karen?Ela sorri e segura o queixo com a mão,apoiando o cotovelo na mesa.— Amo muitas coisas. Mas o que mais amo épizza. Podemos chamá-la de Sky Pizza?Eu rio e balanço a cabeça.— Esse nome é bobo.— Está bem, me deixe pensar — diz ela. —Que tal ursinhos de pelúcia? Podemos chamá-lade Ursinho de Pelúcia Sky?Rio e balanço a cabeça novamente.

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Ela tira o queixo da mão e se inclina paraperto de mim.— Quer saber o que eu amo de verdade?— Quero — respondo.— Amo ervas. Ervas são plantas medicinais, eeu amo cultivá-las para encontrar maneiras defazer as pessoas se sentirem melhor. Um diaquero poder vender minhas próprias ervas.Talvez, para dar sorte, a gente possa escolher onome de uma erva. Há centenas delas, e algumastêm nomes bem bonitos. — Ela se levanta, vai atéa sala, pega um livro e o traz até a mesa. Ela oabre, aponta para uma das páginas e pergunta,dando uma piscadela. — Que tal tomilho?Eu rio e balanço a cabeça.— E... calêndula?Balanço a cabeça de novo.— Nem consigo dizer essa palavra.Ela enruga o nariz.— Bem lembrado. Você precisa ser capaz dedizer o próprio nome. — Ela olha mais uma vezpara a página e lê mais alguns nomes em voz alta,mas não gosto deles. Ela vira a página de novo ediz: — Que tal Linden [tília]? É mais uma árvoredo que uma erva, mas as folhas têm formato decoração. Gosta de corações?Faço que sim com a cabeça.— Linden — digo. — Gostei desse nome.Ela sorri, fecha o livro e se aproxima de mim.— Bem, então vai ser Linden Sky Davis. Eacho que devia saber que agora tem o nome maisbonito do mundo. Não vamos pensar nunca maisnos seus nomes antigos, está bem? Me prometaque, de agora em diante, só vai pensar no seubelo nome novo e na sua bela vida nova.— Prometo — digo. E prometo mesmo. Nãoquero pensar nos meus nomes antigos, nem nomeu quarto antigo nem em todas as coisas quemeu papai fazia comigo quando eu era a princesadele. Amo meu novo nome. Amo meu quartonovo, onde não tenho de me preocupar se amaçaneta vai girar.Estendo o braço para cima, dando um abraçoem Karen, e ela retribui. Sorrio, pois éexatamente assim que eu achava que ia me sentirtoda vez que desejava que minha mamãeestivesse viva para me abraçar.

Terça-feira, 30 de outubro

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de 201212h10Estendo a mão até o rosto e enxugo uma lágrima.Nem sei por que elas estão escorrendo; a memóriana verdade não foi triste. Acho que é porque foi umdos primeiros momentos em que comecei a amarKaren. Pensar no quanto a amo me faz sofrer porcausa do que ela fez. Sofro porque parece que nem aconheço. Parece que tem um lado dela que eu nemsequer sabia que existia.No entanto, não é isso o que mais me assusta. Oque mais me assusta é o meu medo de que o únicolado dela que eu realmente conheço... talvez nemexista.—Posso perguntar uma coisa? — diz Holder,quebrando o silêncio.Faço que sim com a cabeça apoiada no peitodele, enxugando a última lágrima da bochecha. Elepõe ambos os braços ao meu redor, tentando memanter aquecida ao sentir que estou tremendo no seupeito. Ele massageia meu ombro e beija minhacabeça.— Você acha que vai ficar bem, Sky?Não é uma pergunta incomum. É uma perguntabem simples e direta, mas mesmo assim acho que é apergunta mais difícil que já precisei responder.Dou de ombros.— Não sei — respondo com sinceridade. Queropensar que vou ficar bem, especialmente sabendoque Holder estará do meu lado. Mas, para falar averdade, não sei se vou.— O que a deixa com medo?— Tudo — respondo depressa. — Morro demedo do passado. Morro de medo das memóriasque surgem na minha mente toda vez que fecho osolhos. Estou assustada com o que vi hoje e com aforma que isso vai me afetar nas noites em que vocênão estiver comigo para distrair meus pensamentos.Tenho medo de não ter capacidade emocional delidar com o que pode acontecer com Karen. Receiopensar que não faço mais ideia de quem ela é. —Levanto a cabeça do seu peito e olho nos seus olhos.— Mas quer saber o que mais me deixa com medo?Ele passa a mão no meu cabelo e mantém o olharfixo no meu, querendo demonstrar que estáprestando atenção.— O quê? — pergunta ele, com a vozsinceramente preocupada.

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— Tenho medo do quanto me sintodesconectada de Hope. Sei que somos a mesmapessoa, mas sinto como se o que aconteceu com elanão tivesse acontecido comigo de verdade. Sintocomo se a tivesse abandonado. Como se a tivessedeixado lá, chorando naquela casa, apavorada portoda a eternidade, enquanto eu simplesmente entravano carro e ia embora. Agora sou duas pessoas muitodistintas. Sou essa garotinha que está sempreapavorada... mas também sou a garota que aabandonou. Eu me sinto tão culpada por erguer essaparede entre as duas vidas e tenho medo de quenenhuma dessas vidas ou dessas garotas possa voltara se sentir completa.Enterro a cabeça no peito dele, sabendo que ébem provável que eu não esteja fazendo o menorsentido. Ele beija o topo da minha cabeça, e eu ergoo olhar para o céu, perguntando-me se algum diaserei capaz de me sentir normal outra vez. Era tãomais fácil não saber a verdade.— Depois que meus pais se divorciaram — dizele —, minha mãe ficou preocupada conosco, entãocolocou Less e eu na terapia. Só durou uns seismeses... mas lembro que sempre fui muito rigorosocomigo mesmo, achando que tinham se divorciadopor minha causa. Sentia como se o que eu não fiz nodia em que a levaram tivesse deixado eles dois muitoestressados. Agora sei que a maior parte das coisaspela qual me culpava naquela época estava fora domeu controle. Mas meu terapeuta fez uma coisa umavez que me ajudou um pouco. Na hora foi meioconstrangedor, mas de vez em quando percebo queestou fazendo aquilo novamente em certas situações.Ele me fez visualizar a mim mesmo no passado,conversar com a versão mais nova de mim e dizertudo que eu precisava. — Ele levanta meu rosto mefazendo olhar para ele. — Acho que você deviatentar isso. Sei que parece bobagem, mas é sério.Acho que pode ajudá-la. Acho que precisa voltar notempo e dizer para Hope tudo que queria ter sidocapaz de dizer no dia em que a abandonou.Apoio o queixo no seu peito.— Como assim? Está dizendo para me imaginarfalando com ela?— Exatamente — diz ele. — Apenas faça isso.Feche os olhos.Obedeço. Não sei direito o que estou fazendo,mas faço mesmo assim.— Eles estão fechados?— Estão. — Ponho a mão em cima de seu

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coração e pressiono a têmpora em seu peito. — Masnão tenho certeza do que fazer.— Imagine você mesma como é agora. Imaginesedirigindo até a casa do seu pai e estacionando dooutro lado da rua. Mas imagine a casa como eranaquela época — diz ele. — Pense em como ela eraquando você era Hope. Consegue lembrar que acasa era branca?Aperto os olhos mais ainda, recuperandovagamente a lembrança da casa branca em algumlugar no fundo da minha mente.— Consigo.— Ótimo. Agora precisa encontrá-la. Conversecom ela. Conte o quanto ela é forte. Diga o quanto ébonita. Diga tudo que ela precisa ouvir de você, Sky.Tudo que você queria ter sido capaz de dizer para simesma naquele dia.Esvazio a mente e faço o que ele sugeriu. Eu meimagino como sou agora e o que aconteceria se eu defato fosse dirigindo até aquela casa. É bem provávelque estivesse com meu vestido de alcinha e com ocabelo preso num rabo de cavalo por causa do calor.Quase consigo sentir o sol atravessando o para-brisa,aquecendo minha pele.Eu me obrigo a sair do carro e atravessar a rua,apesar de hesitar em me aproximar da casa. Meucoração fica imediatamente acelerado. Não tenhocerteza se quero vê-la, mas faço o que Holdersugeriu e continuo andando. Assim que me viro parao lado da casa, eu a vejo. Hope está sentada nagrama, com os braços dobrados por cima dosjoelhos. Está chorando em cima deles, e a cenadespedaça completamente meu coração.Me aproximo devagar, paro e me abaixo comrelutância, sem conseguir desviar o olhar dessagarotinha tão frágil. Depois que me sento na gramabem na frente dela, a menina ergue a cabeça dosbraços cruzados e olha para mim. Ao fazer isso,minha alma desmorona porque não há nenhuma vidaem seus olhos castanho-escuros. Não tem a menoralegria neles. No entanto, tento sorrir para ela, poisnão quero que saiba o quanto ver seu sofrimento estáme afligindo.Estendo a mão para ela, mas paro a algunscentímetros antes. Seus olhos castanhos e tristes sefocam nos meus dedos e os encaram. Minhas mãoscomeçam a tremer, e ela percebe. Talvez por elaperceber que também estou com medo fique maisfácil conquistar sua confiança, pois ela ergue maisainda a cabeça, descruza os braços e põe a mão

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pequenina em cima da minha.Estou olhando para a mão da minha infânciasegurando a mão do meu presente, mas tudo quequero é segurar mais que a mão dela. Quero agarrartodo seu sofrimento e medo, e arrancá-los dela.Ao me lembrar das coisas que Holder disse queeu devia falar, olho para ela e limpo a garganta,apertando sua mão com firmeza.— Hope. — Ela continua olhando para mimpacientemente enquanto arranjo coragem lá no fundopara poder falar com ela... para dizer tudo queprecisa saber. — Sabia que você é uma dasgarotinhas mais corajosas que conheci?Ela balança a cabeça e baixa o olhar para agrama.— Não, não sou — diz ela baixinho, acreditandono que diz.Estendo o braço, seguro a outra mão dela e aencaro bem nos olhos.— Sim, é sim. Você é incrivelmente corajosa. Evai conseguir superar isso, pois tem um coraçãomuito forte. Um coração capaz de amar tantas coisasda vida e das pessoas de uma maneira que jamaisimaginou que um coração fosse capaz. E você élinda. — Pressiono a mão no seu coração. — Aquidentro. Seu coração é tão bonito, e um dia alguémvai amá-lo do jeito que ele merece.Ela afasta uma das mãos e enxuga os olhos.— Como sabe disso tudo?Eu me inclino para a frente e ponho os braçostotalmente ao redor dela. Ela retribui colocando seusbraços ao meu redor e permitindo que eu a abrace.Abaixo a cabeça e sussurro em seu ouvido:— Eu sei porque já passei exatamente pelo quevocê está passando. Sei o quanto seu coração dóipor causa do que seu papai faz com você porque eletambém fez isso comigo. Sei o quanto o odeia porcausa disso, mas também sei o quanto o ama por eleser seu papai. E não tem problema, Hope. Não temproblema amar as partes boas, porque ele não é detodo mau. Também não tem problema odiar aspartes ruins que a deixam tão triste. Tudo bem vocêsentir seja o que for que precisar sentir. Só meprometa que nunca, jamais vai se sentir culpada.Prometa para mim que nunca vai se culpar. Não éculpa sua. Você é apenas uma garotinha, e não éculpa sua se sua vida é bem mais difícil do que deviaser. E por mais que queira esquecer que tudo issoaconteceu com você, e por mais que queira esquecerque essa parte da sua vida existiu, preciso que se

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lembre dela.Sinto seus braços tremendo, e ela está chorandoem silêncio encostada no meu peito. Suas lágrimasfazem as minhas próprias escaparem.— Quero que lembre quem você é, apesar detodas as coisas ruins que estão acontecendo comvocê. Porque essas coisas ruins não são você. Sãoapenas coisas que aconteceram com você. Precisaaceitar que quem é e o que acontece com você sãoduas coisas diferentes.Levanto a cabeça do meu peito com gentileza evejo seus olhos castanhos e chorosos.— Prometa para mim que, não importa o queaconteça, nunca terá vergonha de ser quem é,independentemente do quanto queira sentir essavergonha. E talvez isso não faça sentido para vocêagora, mas quero que me prometa que nunca vaideixar que as coisas que seu papai faz com vocêdefinam quem você é e a separem da pessoa que é.Me prometa que nunca vai perder a Hope.Ela faz que sim com a cabeça enquanto enxugosuas lágrimas com os dedos.— Prometo — diz ela.Ela sorri para mim, e, pela primeira vez desdeque vi seus grandes olhos castanhos, há um certoânimo neles. Eu a puxo para o meu colo, e ela põe osbraços ao redor do meu pescoço enquanto a abraço,a balanço, e nós duas choramos nos braços uma daoutra.— Hope, prometo que daqui para a frente nuncavou deixá-la para trás. Vou levá-la comigo no meucoração para sempre. Nunca mais terá de ficarsozinha.Choro no cabelo de Hope, mas ao abrir os olhosvejo que estou chorando nos braços de Holder.— Falou com ela? — pergunta ele.Faço que sim com a cabeça.— Falei. — Nem estou tentando conter aslágrimas. — Disse tudo a ela.Holder começa a se sentar, então faço o mesmo.Ele se vira para mim e segura meu rosto.— Não, Sky. Você não disse tudo a ela... vocêdisse tudo para si mesma. Essas coisas aconteceramcom você, não com outra pessoa. Elas aconteceramcom Hope. Aconteceram com Sky. Aconteceramcom a melhor amiga que eu amava tantos anos atrás,e aconteceram com a melhor amiga que eu amo eque está olhando para mim nesse exato momento. —Ele pressiona os lábios nos meus, me beija e seafasta. É só quando olho para ele que percebo que

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está chorando comigo. — Você precisa ter orgulhode ter sobrevivido a tudo pelo que passou quandocriança. Não se afaste daquela vida. Aceite-a, poistenho um orgulho do cacete de você. Todo sorrisoque vejo no seu rosto me deixa embasbacado, poissei de quanta coragem e força você precisou quandocriança para garantir que essa sua partepermanecesse viva. E sua risada? Meu Deus, Sky.Pense no tanto de coragem foi preciso para voltar arir depois de tudo que lhe aconteceu. E seucoração... — diz ele, balançando a cabeça,incrédulo. — O fato de seu coração conseguirencontrar uma maneira de amar e confiar num homemnovamente prova que eu me apaixonei pela mulhermais corajosa que já conheci. Sei de quanta coragemprecisou para deixar eu me aproximar de vocêdepois do que seu pai fez. E juro que até meu últimosuspiro vou agradecer a você por se permitir meamar. Muito obrigado por me amar, Linden SkyHope.Ele pronuncia cada um dos meus nomeslentamente, sem nem tentar enxugar minhas lágrimas,pois são muitas. Jogo os braços ao redor de seupescoço e deixo ele me abraçar — abraçar todos osmeus 17 anos.

Terça-feira, 30 de outubrode 201209h05O sol está brilhando tanto que atravessa o cobertorque puxei para cima dos olhos. No entanto, não foi osol que me acordou. Foi a voz de Holder.— Olhe, você não faz ideia do que ela passounos últimos dois dias — diz Holder. Ele está tentandofalar baixinho, ou para não me acordar ou para queeu não escute a conversa. Não escuto ninguémrespondendo, então deve estar ao telefone. Mas comquem diabos está falando? — Entendo que precisadefendê-la. Acredite em mim, entendo mesmo. Masvocês sabem que ela não vai entrar naquela casasozinha.Há uma longa pausa antes de ele suspirarpesadamente no telefone.— Preciso garantir que ela coma alguma coisa,então dê um tempo para nós. Sim, prometo. Vouacordá-la assim que desligar. Sairemos daqui a umahora no máximo.Ele não se despede, mas escuto quando coloca otelefone na mesa. Após alguns segundos, a cama se

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afunda um pouco e ele desliza o braço ao meu redor.— Acorde — diz ele no meu ouvido.Não me mexo.— Estou acordada — digo por debaixo dascobertas. Sinto sua cabeça pressionar meu ombro.— Então você escutou? — pergunta elebaixinho.— Quem era?Ele muda de posição na cama e puxa as cobertasque cobrem minha cabeça.— Era Jack. Ele está alegando que Karenconfessou tudo para ele ontem. E está preocupado.Quer que você vá conversar com ela.Meu coração para imediatamente.— Ela confessou? — pergunto com certacautela, me sentando na cama.Ele confirma com a cabeça.— Não entramos em detalhes, mas ele parecesaber o que está acontecendo. Mas contei sobre seupai... só porque Karen queria saber se você tinha seencontrado com ele. Quando acordei hoje, o assuntoestava sendo noticiado. Concluíram que foi suicídio,porque foi ele mesmo quem telefonou para a viatura.Nem vai ter investigação. — Ele segura minha mão ea acaricia com o polegar. — Sky, Jack me pareceudesesperado para você voltar. Acho que tem razão...precisamos voltar e resolver isso. Você não vai estarsozinha. Vou estar lá e Jack também. E, pelo jeito,Karen está cooperando. Sei que é difícil, mas nãotemos escolha.Está falando comigo como se precisasse meconvencer, mas, na verdade, já me sinto pronta.Preciso estar cara a cara com ela para conseguirrespostas para minhas últimas perguntas. Saio debaixo das cobertas, me levanto da cama e meespreguiço.— Antes preciso escovar os dentes e trocar deroupa. E depois podemos ir. — Vou até o banheiro enão me viro, mas sinto certo orgulho emanar dele.Está orgulhoso de mim.Holder me entrega o celular quando estamos naestrada.— Tome. Breckin e Six estão preocupados comvocê. Karen pegou os números dos dois no seucelular e ficou ligando o fim de semana inteirotentando descobrir onde você estava.— Falou com algum deles?Ele faz que sim com a cabeça.— Falei com Breckin agora de manhã, logoantes de Jack ligar. Disse que você e sua mãe tinham

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brigado e que você queria passar alguns dias fora.Ele aceitou a explicação.— E Six?Ele olha para mim e abre um meio sorriso.— Talvez seja bom você mesma falar com ela.Trocamos alguns e-mails e tentei usar a mesmaexplicação que dei para Breckin, mas Six nãoacreditou. Disse que você e Karen nunca brigam eque eu preciso contar a verdade antes que ela tenhaque pegar um avião de volta ao Texas para meencher de porrada.Estremeço, sabendo que Six deve estar louca depreocupação comigo. Não mando mensagem algumapara ela há dias, então decido adiar a ligação paraBreckin e mandar logo um e-mail para ela.— Como se manda um e-mail para alguém? —pergunto. Holder ri, pega o telefone e aperta algunsbotões. Ele me devolve e aponta para a tela.— É só digitar aí o que precisa dizer, depois medevolva que envio para ela.Digito um e-mail curto, dizendo que descobrialgumas coisas sobre meu passado e que precisavapassar alguns dias fora. Prometo que vou ligar semfalta para explicar tudo nos próximos dias, mas aindanão tenho certeza se vou contar a verdade para ela.A essa altura, não sei se quero que mais alguém saibada minha situação. Pelo menos não até que eu tenhatodas as respostas.Holder envia o e-mail e entrelaça os dedos comos meus. Fixo o olhar na janela e fico encarando océu.— Está com fome? — pergunta ele após dirigirem silêncio por mais de uma hora. Balanço a cabeça.Estou nervosa demais para comer qualquer coisa,pois sei que logo mais vou confrontar Karen. Estounervosa demais até para conseguir manter umaconversa normal. Estou nervosa demais para fazerqualquer coisa que não seja ficar olhando pela janelae me perguntando onde vou estar quando acordaramanhã. — Você precisa se alimentar, Sky. Malcomeu nos últimos três dias, e, com essa suatendência a desmaiar, acho que uma comida agoranão seria uma má ideia.Ele não vai desistir até eu comer, então cedo.— Está bem — murmuro.Ele acaba escolhendo um restaurante mexicanona beira da estrada depois que não decidi sozinhaonde comer. Peço algo do menu de almoço só paraagradá-lo. É mais que provável que não consigacomer nada.

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— Quer brincar de Questionário do Jantar? —diz ele, mergulhando um nacho no molho.Dou de ombros. Não quero imaginar o que tereide lidar daqui a cinco horas, então talvez isso meajude a não pensar nessas coisas.— Acho que sim. Mas com uma condição. Nãoquero falar sobre nada que tenha a ver com osprimeiros anos da minha vida, com os últimos trêsdias nem com as próximas 24 horas.Ele sorri, parecendo estar aliviado. Talvez Holdertambém não queira pensar em nada disso.— Primeiro as damas — diz ele.— Então abaixe o nacho — digo, olhando para acomida que ele está prestes a colocar na boca.Ele olha para o nacho e franze a testa, como seestivesse sofrendo com isso.— Então faça uma pergunta rápida, estoufaminto.Aproveito que é minha vez para dar um gole norefrigerante e morder o nacho que acabei de tirar dasmãos dele.— Por que gosta tanto de correr? — pergunto.— Não sei — responde ele, recostando-se. —Comecei a correr quando tinha 13 anos. No inícioera uma forma de fugir de Less e de suas amigasirritantes. Às vezes, tudo que precisava era dar umasaída de casa. Os gritinhos e risadinhas de meninasde 13 anos podem ser extremamente dolorosos.Gostava do silêncio da corrida. Caso não tenhapercebido ainda, meio que gosto de ficar refletindosobre as coisas, pois assim elas ficam mais claras naminha cabeça.Eu rio.— Já percebi sim — digo. — Foi sempre assim?Ele sorri e balança a cabeça.— Essa já é outra pergunta. Minha vez. — Eletira da minha mão o nacho que eu estava prestes acomer, coloca-o na boca e toma um gole derefrigerante. — Por que você não fez o teste paraentrar na equipe de atletismo?Ergo a sobrancelha e rio.— Que pergunta estranha de se fazer agora. Issojá faz dois meses.Ele balança a cabeça e aponta um nacho paramim.— Não pode julgar minhas perguntas.— Tudo bem. — Dou uma risada. — Naverdade, não sei. O colégio não estava sendo comoeu imaginava. Não esperava que as outras garotasfossem tão malvadas. Todas elas só falavam comigo

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para me dizer que eu era a maior vadia. Breckin foi aúnica pessoa em toda a escola que fez algum esforçopara se aproximar de mim.— Não é verdade — diz Holder. — Está seesquecendo de Shayla.Eu rio.— Não quer dizer Shayna?— Tanto faz — diz ele, balançando a cabeça. —Sua vez. — Ele enfia outro nacho depressa na boca esorri para mim.— Por que seus pais se divorciaram?Ele abre um sorriso tenso e tamborila de leve osdedos na mesa antes de dar de ombros.— Acho que tinha chegado a hora deles — dizele, de maneira indiferente.— Tinha chegado a hora? — pergunto, confusacom a resposta vaga. — E hoje em dia oscasamentos têm prazo de validade, é?Ele dá de ombros.— Para algumas pessoas, sim.Fico interessada no raciocínio. Espero que elenão diga que minha pergunta já foi feita, pois queromesmo saber o que pensa sobre isso. Não que euesteja planejando me casar num futuro próximo. Masé por ele que estou apaixonada, então não vai fazermal saber sua opinião para eu não ficar tão chocadadaqui a alguns anos.— Por que acha que o casamento deles tinha umlimite de tempo? — pergunto.— Todos os casamentos têm limite de tempo seas pessoas se casam pelos motivos errados. Ocasamento não vai ficando mais fácil com o tempo...só fica mais difícil. Se decidir se casar com alguém naesperança de melhorar as coisas, é melhor marcarlogo o timer no segundo em que disser “sim”.— E quais foram os motivos errados para secasarem?— Eu e Less — diz ele, sendo direto. — Eles seconheciam há menos de um mês quando minha mãeengravidou. Meu pai se casou com ela achando queera a coisa certa a fazer, quando talvez a coisa certafosse não engravidá-la, em primeiro lugar.— Acidentes acontecem — digo.— Eu sei. E é por isso que agora eles estãodivorciados.Balanço a cabeça, triste por estar falando tãocasualmente sobre a falta de amor entre os pais. Masisso já tem oito anos. O Holder de 10 anos talveznão tenha aceitado tão casualmente o divórcioenquanto este se desenrolava.

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— Mas não acha que o divórcio é inevitável paratodos os casamentos?Ele cruza os braços por cima da mesa e inclinasepara a frente, estreitando os olhos.— Sky, se está se perguntando se tenhoproblemas em me comprometer com alguém, aresposta é não. Algum dia, num futuro muito, muito,muito distante... tipo num futuro depois dauniversidade... quando eu for pedir você emcasamento... algo que vou mesmo fazer um dia, poisnão vai se livrar de mim... não vou me casar comvocê na esperança de que nosso casamento dê certo.Quando você for minha, vai ser para sempre. Já lhedisse que a única coisa que importa para mim emrelação a você são os para sempre, e estava falandosério.Sorrio para ele, pois, de alguma maneira, consigoficar um pouco mais apaixonada do que há trintasegundos.— Uau. Não precisou de muito tempo parapensar nessas palavras.Ele balança a cabeça.— É porque tenho pensado no para sempre comvocê desde que a vi no mercado.Nossa comida não poderia ter chegado nummomento mais perfeito, pois não faço ideia de comoreagir a isso. Ergo o garfo para pegar um pedaço,mas ele estende o braço por cima da mesa e o tirarapidamente da minha mão.— Não vale trapacear — diz ele. — Nãoterminamos ainda, e estou prestes a fazer umapergunta bastante pessoal.Ele come um pouco da comida e a mastigadevagar enquanto espero que faça sua pergunta“bastante pessoal”. Após tomar um gole da bebida,ele dá mais uma mordida e sorri para mim,prolongando sua vez de propósito para poder comer.— Faça logo a maldita pergunta — digo comfalsa irritação.Ele ri, limpa a boca com o guardanapo e seinclina para a frente.— Você usa algum método contraceptivo? —pergunta ele baixinho.A pergunta dele me faz rir, pois não é nadapessoal quando é feita para a garota com quem seestá transando.— Não, não uso — admito. — Nunca tive razãopara usar antes de você entrar na minha vida sempedir licença.— Pois bem, quero que use — diz ele comdeterminação. — Marque uma consulta essa semana.

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Fico frustrada com o quanto ele foi rude.— Podia ter pedido isso com um pouco mais deeducação, sabe?Ele arqueia a sobrancelha enquanto toma um goleda bebida e a coloca de volta na mesa com calma.— Foi mal. — Ele sorri e mostra as covinhaspara mim. — Me deixe dizer de outra maneira então.— Ele transforma a voz num sussurro rouco. —Pretendo fazer amor com você, Sky. Muito.Praticamente em todas as oportunidades quetivermos, porque curti muito você nesse fim desemana, apesar das circunstâncias. Então, paracontinuarmos fazendo amor, eu ficaria muito grato sevocê usasse algum outro método contraceptivo paraque não acabemos nos metendo em um casamentocom data de validade por causa de uma gravidez.Acha que pode fazer isso por mim? Para que a gentepossa continuar transando muitas, muitas e muitasvezes?Continuo com o olhar fixo no dele enquantodeslizo o copo vazio para a garçonete que agora estáencarando Holder boquiaberta. Mantenho umaexpressão séria enquanto respondo.— Bem melhor — digo. — E sim. Acho queposso providenciar isso.Ele balança a cabeça uma vez e desliza o copopara perto do meu, encarando a garçonete. Elafinalmente sai do transe, enche nossos copos e vaiembora. Assim que ela vai embora, fulmino Holdercom o olhar e mexo a cabeça.— Como você é malvado, Dean Holder. — Eurio.— O quê? — diz ele de maneira inocente.— Devia ser ilegal as palavras “fazer amor” e“transar” saírem dos seus lábios na presença dealguma outra mulher que não seja aquela que fazessas coisas com você. Acho que não percebe oefeito que causa nas mulheres.Ele balança a cabeça e tenta ignorar meucomentário.— Estou falando sério, Holder. Não quero queseu ego exploda, mas devia saber que quase todas asmulheres com sinais vitais o acham incrivelmenteatraente. Quero dizer, pense só numa coisa. Nãoconsigo nem contar o número de garotos que conhecina vida, mas você foi o único por quem me sentiatraída. Explique isso.Ele ri.— Essa é fácil.— Por quê?

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— Porque — começa ele, olhando para mim depropósito — você já me amava antes de me ver nomercado naquele dia. Só porque me bloqueou dassuas memórias não quer dizer que tenha mebloqueado do seu coração. — Ele leva o garfo cheioaté a boca, mas faz uma pausa antes de comer. —Mas talvez tenha razão. Pode ter dado certo sóporque você queria lamber minhas covinhas — dizele, enfiando o garfo na boca.— Com certeza foram as covinhas — afirmo,sorrindo.Não consigo nem contar quantas vezes ele mefez sorrir nessa meia hora que estamos aqui, e, dealguma maneira, consegui comer metade da comidano meu prato. Só a presença dele já faz maravilhaspara uma alma sofrida.

Terça-feira, 30 de outubrode 201219h20Estamos a uma quadra da casa de Karen quandopeço que pare o carro. A ansiedade durante aviagem já foi tortura suficiente, mas estar de fatochegando é absolutamente apavorante. Não façoideia do que dizer para ela nem de como reagirquando entrar na casa.Holder vai para a lateral da rua e estaciona ocarro. Ele se vira para mim com um olharpreocupado.— Está precisando da pausa de um capítulo? —pergunta ele.Faço que sim com a cabeça, inspirando fundo.Ele estende o braço por cima do banco e seguraminha mão.— O que mais a assusta em vê-la outra vez?Mudo de posição no banco para ficar de frentepara ele.— Tenho medo de nunca ser capaz de perdoála,independentemente do que disser para mim hoje.Sei que minha vida acabou sendo melhor com ela doque teria sido se eu tivesse ficado com meu pai, masela não tinha como saber disso quando me roubou.Saber do que ela é capaz torna ainda mais impossívelperdoá-la. Se não consegui perdoar meu pai peloque ele fez comigo... acho que também não sereicapaz de perdoá-la.Ele acaricia a parte de cima da minha mão com opolegar.— Talvez você nunca a perdoe pelo que fez, mas

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pode apreciar a vida que ela lhe proporcionou depoisdisso. Ela tem sido uma boa mãe, Sky. Lembre-sedisso quando estiver conversando com ela, estábem? Exalo, nervosa.— É isso que não consigo deixar de lado —digo. — O fato de ela realmente ter sido uma boamãe, e eu a amo por isso. Eu a amo tanto e estoumorrendo de medo de perdê-la depois de hoje.Holder me puxa para perto e me abraça.— Também estou com medo por você, linda —diz ele, sem a ter a intenção de fingir que tudo vaificar bem quando isso não é possível. É o medo dodesconhecido. Nenhum de nós faz ideia do rumo queminha vida vai tomar depois que eu passar por aquelaporta, nem se nós dois poderemos tomar juntos esserumo.Eu me afasto dele e ponho as mãos nos joelhos,juntando coragem para resolver logo isso.— Estou pronta — digo. Ele balança a cabeça,manobra o carro de volta para a rua e vira naesquina, parando na frente da minha casa.Ver a casa faz minhas mãos começarem a tremerainda mais. Holder abre a porta do motorista quandoJack sai da casa e depois se vira para mim.— Fique aqui — diz ele. — Quero falar comJack primeiro.Holder sai do carro e fecha a porta. Fico paradacomo ele pediu porque, sinceramente, não estou coma mínima pressa de sair desse carro. Ficoobservando Holder e Jack conversarem por váriosminutos. Como Jack ainda está aqui apoiando Karen,me pergunto se ela contou mesmo toda a verdadesobre o que fez. Duvido que ele fosse continuar aquise soubesse a verdade.Holder volta para o carro, dessa vez para a portado carona, onde estou. Ele abre a porta e se ajoelhaao meu lado. Acaricia minha bochecha com a mão ealisa meu rosto com o dorso dos dedos.— Está pronta? — pergunta ele.Sinto minha cabeça balançando como seconcordasse, mas não sinto que estou controlando omovimento. Vejo meus pés saírem do carro e minhamão se estendendo para a de Holder, mas não seicomo sou capaz de me mexer se estouconscientemente me esforçando para continuarsentada no carro. Não estou pronta para entrar, masme afasto do carro nos braços de Holder de todojeito, e seguimos em direção à casa. Quando meaproximo de Jack, ele estende os braços para meabraçar. Assim que seus braços familiares me

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cercam, me recupero e respiro fundo.— Obrigado por voltar — diz ele. — Ela precisadessa oportunidade para explicar tudo. Me prometaque vai deixá-la fazer isso.Eu me afasto e olho-o nos olhos.— Sabe o que ela fez, Jack? Ela lhe contou?Ele faz que sim com a cabeça, aflito.— Eu sei e sei que é difícil para você. Mas agoraprecisa deixar que ela lhe conte o lado dela dahistória.Ele vira-se para a casa e mantém o braço aoredor dos meus ombros. Holder segura minha mão, eos dois me acompanham até a porta como se eufosse uma criança frágil.Eu não sou uma criança frágil.Paro nos degraus e me viro para eles.— Preciso conversar com ela a sós.Pensei que ia querer Holder ao meu lado, maspreciso ser forte por mim mesma. Amo a maneiracomo ele me protege, mas essa é a coisa mais difícilque já tive de fazer e quero ser capaz de dizer que afiz sozinha. Se eu conseguir enfrentar isso sozinha, seique terei coragem para enfrentar qualquer coisa.Nenhum dos dois se opõe, e me sinto muito grataao ver que têm fé em mim. Holder aperta minha mãoe me incentiva a seguir em frente com um olharconfiante.— Vou ficar bem aqui — diz ele.Respiro fundo e abro a porta da casa.Entro na sala, e Karen para de andar e se vira,assimilando o fato de estar me vendo. Assim quefazemos contato visual, ela perde o controle e vemcorrendo na minha direção. Não sei que expressãoeu esperava ver no seu rosto ao entrar por aquelaporta, mas de jeito algum era uma expressão dealívio.—Você está bem — diz ela, jogando os braçosao redor do meu pescoço. Ela pressiona a mão naparte de trás da minha cabeça e me puxa para pertoenquanto chora. — Sinto muito mesmo, Sky. Sintomuito mesmo por você ter descoberto antes que eutivesse a chance de lhe contar. — Ela está tentandofalar, mas começou a soluçar com força total. Ver oquanto ela está sofrendo me dá um aperto nocoração. Saber que mentiu para mim não apagaimediatamente os 13 anos em que a amei, então vê-lasofrendo só me faz sofrer também.Ela segura meu rosto e me olha nos olhos.— Juro que ia contar tudo assim que fizesse 18anos. Não fiquei feliz por você ter descoberto tudo

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sozinha. Fiz tudo que podia para evitar que issoacontecesse.Seguro suas mãos, afasto-as do meu rosto epasso por ela.— Não faço ideia de como reagir ao que estádizendo agora, mãe. — Eu me viro e a olho nosolhos. — Quero saber tanta coisa, mas estoumorrendo de medo de perguntar. Se você responder,como vou saber que está me dizendo a verdade?Como vou saber que não vai mentir para mim comofez nos últimos 13 anos?Karen vai até a cozinha e pega um guardanapopara enxugar os olhos. Ela inspira tremulamentealgumas vezes, tentando se controlar.— Sente-se aqui comigo, querida — diz ela,passando por mim para chegar ao sofá. Continuo empé enquanto a vejo se sentar na beirada. Ela ergue oolhar para mim com uma expressão de mágoaespalhada no rosto inteiro. — Por favor — pede ela.— Sei que não confia em mim, e você tem todo odireito de não confiar depois do que fiz, mas, se forcapaz de reconhecer que eu a amo mais que aprópria vida, vai me dar a oportunidade de meexplicar.Em seu olhar não havia nada além da verdade.Por causa disso, vou até o sofá e me sento do outrolado. Ela respira fundo e exala, controlando-se osuficiente para começar a explicação.— Para eu poder contar a verdade sobre o queaconteceu com você... primeiro preciso explicar averdade sobre o que aconteceu comigo. — Ela fazuma pausa de alguns minutos, segurando-se para nãocomeçar a chorar de novo. Vejo em seus olhos queseja lá o que esteja prestes a me dizer é quaseinsuportável para ela. Quero me aproximar e abraçála,mas não posso. Por mais que a ame, simplesmentenão consigo consolá-la.“Tive uma mãe maravilhosa, Sky. Você a teriaamado tanto. Seu nome era Dawn, e ela amava muitomeu irmão e eu. Meu irmão, John, era dez anos maisvelho, então nunca tivemos nenhuma rivalidadeenquanto crescíamos. Meu pai morreu quando eutinha 9 anos, então John foi mais uma figura paternaque um irmão para mim. Era meu protetor. Ele eraum irmão tão bom, e ela, uma mãe tão boa.Infelizmente, quando fiz 13 anos, o fato de John sercomo um pai para mim tornou-se a realidade dele nodia em que minha mãe faleceu.“John só tinha 23 anos e havia acabado de seformar na universidade. Eu não tinha nenhuma outra

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família disposta a me acolher, então ele fez o queprecisava ser feito. No início, não tivemos problemaalgum. Eu sentia falta da minha mãe mais do quedevia, e, para ser sincera, John estava achando bemdifícil lidar com tudo isso. Tinha acabado de começara trabalhar logo após se formar, e as coisas estavamcomplicadas para ele. Para nós dois. Quandocompletei 14 anos, o estresse do trabalho já o estavaafetando. Ele começou a beber, e eu passei a merebelar, ficando na rua até mais tarde do que deviaem várias ocasiões.“Uma noite, quando voltei para casa, ele estavacom muita raiva de mim. Nossa discussão logo setransformou numa luta física, e ele bateu em mimvárias vezes. Ele jamais tinha batido em mim, entãofiquei apavorada. Corri para meu quarto, e, algunsminutos depois, ele apareceu para pedir desculpas.Seu comportamento nos meses anteriores, devido aoexcesso de bebida, já estava me deixando commedo. E quando esse comportamento ficou tão gravea ponto de ele me bater... me fez ficar apavorada.”Karen muda de posição no sofá e estende obraço para tomar um gole d’água. Observo sua mãoenquanto ela leva o copo à boca, e percebo que seusdedos estão tremendo.— Ele tentou pedir desculpas, mas me recusei aescutá-lo. Minha teimosia o deixou com mais raivaainda, então me empurrou na cama e começou agritar comigo. Ele não parava de gritar, dizendo queeu tinha arruinado a vida dele. Disse que eu devia eraagradecer por tudo que ele estava fazendo por mim...que tinha uma dívida com ele, que trabalhava tantopara cuidar de mim.Karen limpa a garganta e novas lágrimas brotamem seus olhos enquanto se esforça para continuarcontando a verdade dolorosa de seu passado. Elaencontra meu olhar, e percebo que as palavras naponta de sua língua são quase difíceis demais paraserem ditas.— Sky... — diz ela, sofrendo. — Meu irmão meestuprou naquela noite. Não somente naquela noite;ele continuou fazendo aquilo comigo quase todas asnoites durante dois anos inteiros.Levo as mãos até a boca e solto o ar. O sanguese esvai da minha cabeça, mas sinto como se tambémestivesse se esvaindo do resto do meu corpo. Eu mesinto completamente vazia ao escutar aquelaspalavras, pois estou morrendo de medo do que achoque ela está prestes a me contar. O vazio em seuolhar é ainda maior que aquilo que estou sentindo.

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Em vez de esperar ela me contar, pergunto logo.— Mãe... John... ele era meu pai, não era?Ela não demora em concordar com a cabeçaenquanto lágrimas escorrem por seu rosto.— Sim, querida. Era. Lamento muito.Meu corpo inteiro treme com o soluço que sai demim, e os braços de Karen me cercam assim que asprimeiras lágrimas escapam dos meus olhos. Jogo osbraços ao seu redor e agarro sua camisa.— Sinto muito por ele ter feito isso com você —digo, chorando. Karen se senta ao meu lado, e nósficamos abraçadas enquanto choramos por causa dascoisas que um homem que amávamos com todo onosso coração fez conosco.— Tem mais — diz ela. — Quero contar tudo,está certo?Faço que sim com a cabeça enquanto ela seafasta de mim e segura minhas mãos.— Quando fiz 16 anos, contei para uma amiga oque ele estava fazendo comigo. Ela contou para amãe, que o denunciou à polícia. Naquela época, Johntrabalhava para a polícia há três anos e orespeitavam. Quando foi questionado sobre adenúncia, alegou que era invenção minha porque nãome deixava ver meu namorado. Ele acabou sendoinocentado, e o caso foi encerrado, mas eu sabia quenão conseguiria mais morar com ele. Fiquei morandocom alguns amigos até terminar o colégio dois anosdepois. Nunca mais falei com ele.“Seis anos se passaram antes que eu o vissenovamente. Eu tinha 21 anos e estava na faculdade.Dentro de um mercado, escutei a voz dele nocorredor ao lado. Fiquei paralisada, sem conseguirrespirar enquanto ouvia a conversa. Eu teria sidocapaz de lhe reconhecer a voz em qualquer canto. Háalgo na voz dele que me deixa apavorada, que atorna inesquecível.“Mas naquele dia não foi a voz dele que medeixou paralisada... foi a sua. Eu o escuteiconversando com uma garotinha e imediatamente melembrei de todas as noites em que ele me machucou.Eu me senti enjoada, pois sabia do que ele era capaz.Fiquei seguindo vocês a uma certa distância,observando-os interagirem. Num dado momento, elese afastou alguns metros do carrinho de compras, evocê me viu. Ficou me encarando por um bom tempoe era a garotinha mais linda que eu tinha visto. Mastambém era a garotinha mais triste que eu tinha visto.Soube, assim que olhei nos seus olhos, que ele estavafazendo com você exatamente o que tinha feito

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comigo. Eu vi o desespero e o medo nos seus olhosquando você me olhou.“Passei os próximos dias tentando descobrir tudosobre você e sobre seu relacionamento com ele.Descobri o que tinha acontecido com sua mãe e queele estava criando você sozinho. Por fim, crieicoragem para fazer uma denúncia anônima, naesperança de que ele finalmente fosse ter o quemerecia. Uma semana depois, fiquei sabendo queapós a entrevistarem, o caso foi arquivado na mesmahora pelo Serviço de Proteção à Criança. Não sei aocerto se foi por ele ter um cargo alto na polícia, mastenho quase certeza de que sim. Independentementedisso, era a segunda vez que ele se safava. Nãosuportava a ideia de deixá-la ficar com ele sabendo oque estava acontecendo com você. Tenho certeza deque havia outras maneiras de lidar com isso, mas euera jovem e estava morrendo de medo por você.Não sabia mais o que fazer, pois a lei já tinha falhadocom nós duas.“Alguns dias depois, tinha tomado minha decisão.Se ninguém mais ia ajudá-la a se afastar dele... entãoeu ia. No dia em que parei o carro na sua casa,nunca vou me esquecer daquela garotinha tristechorando nos próprios braços, sentada sozinha nagrama. Quando a chamei e você se aproximou demim e entrou no meu carro... nós fomos embora e eununca olhei para trás.”Karen aperta minhas mãos e olha séria para mim.— Sky, juro do fundo do meu coração que tudoque queria era proteger você. Fiz tudo que podiapara evitar que ele a encontrasse. Que você oencontrasse. Nunca mais falamos sobre ele, e fiz oque pude para você superar o que tinha acontecido eter uma vida normal. Sabia que não conseguiriaescondê-la para sempre. Sabia que chegaria o dia emque eu precisaria lidar com o que fiz... mas nadadisso importava para mim. Nada disso importa paramim ainda hoje. Só queria que ficasse em segurançaaté ser maior de idade e nunca mais tivesse que voltarpara ele.“Na véspera de eu levá-la, fui até sua casa e nãohavia ninguém ali. Entrei porque queria encontraralgumas coisas que pudessem confortá-la quandoestivesse em segurança comigo. Algo como umcobertor preferido ou um ursinho de pelúcia. Quandoentrei no seu quarto, percebi que nada naquela casaseria capaz de trazer algum conforto para você. Sevocê fosse como eu, tudo que tivesse a ver com seupai a lembraria do que ele fez com você. Então não

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peguei nada, pois não queria que se lembrasse doque ele tinha feito”.Ela se levanta, sai do cômodo em silêncio e voltacom uma pequena caixa de madeira, que coloca emminhas mãos.— Não consegui sair de lá sem isso. Sabia que,quando chegasse o dia de lhe contar a verdade, vocêtambém ia querer saber tudo sobre sua mãe. Nãoconsegui encontrar muita coisa, mas eu guardei o queachei.Lágrimas enchem meus olhos enquanto passo osdedos pela caixa de madeira que contém as únicasmemórias de uma mulher de quem eu achava quenunca teria a oportunidade de me lembrar. Não aabro. Não consigo. Preciso abri-la sozinha.Karen põe uma mecha do meu cabelo para trásda orelha, e eu ergo o olhar para ela.— Sei que o que fiz foi errado, mas não mearrependo. Se eu tivesse de fazer tudo de novo sópara garantir sua segurança, nem pensaria duasvezes. Também sei que você provavelmente meodeia por ter mentido. E aceito isso, Sky, pois seique a amo o bastante por nós duas. Nunca se sintaculpada pelo que fiz com você. Tenho planejado essaconversa e esse momento há 13 anos, então estoupreparada para qualquer coisa que fizer e qualquerdecisão que tomar. Quero que faça o que for melhorpara você. Ligo para a polícia agora mesmo se for oque você quiser que eu faça. Estou mais que dispostaa contar a eles tudo que acabei de contar para vocêse isso for ajudá-la a ficar em paz. Se precisar que euespere até seu verdadeiro aniversário de 18 anospara poder continuar morando aqui enquanto isso,farei isso. Eu me entrego no instante em que vocêpuder cuidar de si mesma legalmente e nunca vouquestionar sua decisão. Mas o que quer que escolha,Sky. O que quer que decida, não se preocupecomigo. Saber que agora você está segura é tudoque eu poderia pedir. O que quer que venhaacontecer comigo agora valeu todos os segundosdesses 13 anos que passei com você.Olho para a caixa e continuo chorando, sem ter amínima ideia do que fazer. Não sei o que é certo eerrado, e nem sei se o certo é errado nessa situação.Só sei que não posso responder agora. Com todasas coisas que ela acabou de me contar, sinto como setudo que soubesse sobre justiça tivesse me dado umagrande tapa na cara.Olho para ela e balanço a cabeça.— Não sei — sussurro. — Não sei o que quero

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que aconteça. — Eu não sei o que quero, mas sei doque estou precisando. Estou precisando da pausa deum capítulo.Eu me levanto, e ela continua sentada, meobservando enquanto vou até a porta. Não consigoolhá-la nos olhos ao abrir a porta.— Preciso pensar um pouco — digo baixinho,ao sair. Assim que a porta se fecha, os braços deHolder me envolvem. Balanço a caixa de madeira namão e ponho o outro braço ao redor do pescoçodele, enterrando minha cabeça em seu ombro. Chorona sua camisa, sem saber como começar a processartudo que acabei de descobrir. — O céu — digo. —Preciso olhar para o céu.Ele não faz nenhuma pergunta, pois sabeexatamente a que estou me referindo, então seguraminha mão e me leva para o carro. Jack volta paradentro de casa enquanto Holder e eu vamos embora.

Terça-feira, 30 de outubrode 201220h45Em momento algum Holder me perguntou o queKaren disse enquanto eu estava dentro de casa comela. Sabe que vou contar quando estiver pronta, masagora, nesse momento, acho que não consigo. Sóestarei pronta depois que souber o que quero fazer.Ele estaciona quando chegamos ao aeroporto, sóque num local mais longe que de costume. Quandoandamos até o portão, fico surpresa ao ver que estádestrancado. Holder levanta o trinco e o abre,gesticulando para que eu passe.— Existe um portão? — pergunto, confusa. —Por que a gente sempre teve de passar pela grade?Ele lança um sorriso malicioso para mim.— Você estava de vestido nas duas vezes emque viemos aqui. Passar por um portão não tem amínima graça.De alguma maneira, não sei como, encontroforças para rir. Passo pelo portão, e ele o fecha atrásde mim, mas fica do outro lado. Paro e estendo amão.—Quero que venha comigo — digo.— Tem certeza? Imaginei que fosse quererpensar sozinha hoje.Nego com a cabeça.— Gosto de ficar ao seu lado aqui. Ficariafaltando alguma coisa se estivesse sozinha.Ele abre o portão e segura minha mão. Vamos

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até a pista e ocupamos nosso lugar de sempredebaixo das estrelas. Coloco a caixa de madeira domeu lado, ainda sem saber se tenho coragemsuficiente para abri-la. Nesse momento, não tenhocerteza de nada. Fico deitada por mais de meia hora,pensando silenciosamente na minha vida... na vida deKaren... na vida de Lesslie... e sinto que a decisãoque tenho de tomar precisa ser em nome de nós três.— Karen é minha tia — digo em voz alta. —Minha tia biológica. — Não sei se estou dizendo emvoz alta por causa de Holder ou se é só porquequero dizer isso em voz alta para mim mesma.Holder enrosca o dedo mindinho ao redor domeu e vira a cabeça para mim.— Ela é irmã do seu pai? — pergunta ele,hesitante. Faço que sim com a cabeça, e ele fecha osolhos, entendendo o que isso significa em relação aopassado de Karen. — É por isso que ela a pegou —diz ele, entendendo tudo. Ele fala como se fizessetodo o sentido. — Ela sabia o que ele estava fazendocom você.Confirmo o que ele disse balançando a cabeça.— Ela quer que eu decida, Holder. Quer que eudecida o que vai acontecer em seguida. O problemaé que eu não sei qual é a escolha certa a fazer.Ele segura minha mão inteira, entrelaçandonossos dedos.— É porque não existe escolha certa — diz ele.— Às vezes, precisamos escolher entre um monte deescolhas erradas, sem a possibilidade de nenhumacerta. Você simplesmente tem de decidir pela escolhaerrada que parece menos errada.Fazer Karen pagar por algo que fez por puroaltruísmo é com certeza a pior escolha errada. Seiisso do fundo do meu coração, mas ainda é difícilaceitar que o que ela fez não devia ter nenhumaconsequência. Sei que não sabia disso na época, masKaren ter me levado do meu pai acabou provocandoo que aconteceu com Lesslie. É complicado ignorarque Karen ter me levado causou indiretamente o queaconteceu com minha melhor amiga — com a únicaoutra garota na vida de Holder que ele acha quedesapontou.— Preciso perguntar uma coisa — digo para ele.Ele fica em silêncio me esperando falar, então mesento e olho para ele. — Não quero que meinterrompa, está bem? Deixe só eu falar logo.Ele toca na minha mão e concorda com acabeça, então prossigo.— Sei que Karen apenas fez tudo aquilo porque

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estava tentando me salvar. A decisão que ela tomoufoi por amor... e não por ódio. Mas tenho medo deque se eu não disser nada... se nós guardarmos isso...vai acabar afetando você. Porque sei que meu pai sófez aquilo com Less porque eu não estava lá paraocupar o lugar dela. E sei que Karen não tinhamesmo como prever o que ele ia fazer. Sei que elatentou fazer a coisa certa e o denunciou antes de ficartão desesperada. Mas então o que acontece com agente? Com nós dois, quando tentarmos voltar aviver da mesma forma que antes? Tenho medo deque você odeie Karen para sempre... ou que um diacomece a se ressentir de mim por causa da escolhaque vou fazer hoje, qualquer que seja ela. E nãoestou dizendo que não quero que você sinta seja oque for que precise sentir. Se tiver de odiar Karenpelo que aconteceu com Less, eu entendo. Acho quesó preciso saber que, independentemente da minhaescolha... só preciso saber...Tento encontrar a maneira mais eloquente dedizer o que quero, mas não consigo. Às vezes, asperguntas mais simples são as mais difíceis de fazer.Aperto sua mão e olho nos seus olhos.— Holder... você vai ficar bem?Não consigo interpretar sua expressão enquantoele me observa. Ele entrelaça os dedos nos meus evolta a prestar atenção no céu acima de nós.— Esse tempo inteiro... — diz ele baixinho. —No último ano, tudo que fiz foi odiar e me ressentirde Less pelo que ela fez. Eu a odiava porquetínhamos exatamente a mesma vida. Tínhamos osmesmos pais que enfrentaram o mesmo divórcio.Tínhamos exatamente a mesma melhor amiga que foiarrancada de nossas vidas. Compartilhamosexatamente o mesmo luto pelo que aconteceu comvocê, Sky. Nós nos mudamos para a mesma cidadecom a mesma mãe e estudamos no mesmo colégio.As coisas que aconteciam na vida dela eramexatamente as mesmas que aconteciam na minha.Mas, às vezes, ela era muito mais afetada do que eu.De vez em quando, eu a escutava chorando à noite.Sempre ia me deitar ao lado dela e abraçá-la, masvárias vezes tudo que eu queria era gritar com minhairmã por ser tão mais fraca que eu.“Então naquela noite... quando descobri o quetinha feito... passei a odiá-la. Eu a odiava por terdesistido tão facilmente. Odiava o fato de ela acharque a vida dela era tão mais difícil que a minha,quando na verdade nossas vidas eram iguais.”Ele se senta e se vira para mim, segurando

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minhas mãos.— Agora eu sei a verdade. Sei que a vida delafoi um milhão de vezes mais difícil que a minha. E elaainda ser capaz de sorrir e de dar risada todos osdias nunca me deu pista alguma do tipo de merdapelo qual passou... Finalmente estou percebendo oquanto ela foi corajosa. E não foi culpa dela não terconseguido lidar com tudo aquilo. Eu queria quetivesse pedido ajuda ou contado a alguém o queaconteceu, mas cada pessoa lida com essas coisas demaneira diferente, especialmente quando acha queestá sozinha no mundo. Você conseguiu bloquear aslembranças e foi assim que lidou com a situação.Acho que ela tentou fazer isso, mas era bem maisvelha quando tudo aconteceu, então era impossível.Em vez de bloquear as lembranças e nunca maispensar nisso, sei que fez exatamente o oposto. Seique aquilo consumiu todas as partes da vida dela aténão aguentar mais.“E você não pode afirmar que a escolha deKaren tem relação direta com o que seu pai fez comLess. Se Karen nunca tivesse levado você, é maisque provável que ele tivesse feito aquelas coisas comLess mesmo assim, quer você estivesse lá ou não. Eleera desse jeito. É o que ele fazia. Então se está meperguntando se culpo Karen pelo que aconteceu, aresposta é não. A única coisa que queria que Karentivesse feito diferente... é que eu queria que elativesse levado Less também.”Ele põe os braços ao meu redor e leva a bocaaté meu ouvido.— O que você decidir... O que você achar quevai fazer seu coração se curar mais depressa... é oque quero para você. É o que Less quer para vocêtambém.Retribuo o abraço e enterro a cabeça em seuombro.— Obrigada, Holder.Ele me abraça em silêncio enquanto ficopensando na decisão que nem é mais tanto umadecisão. Após um tempo, afasto-me dele e ponho acaixa no colo. Passo os dedos no topo e vacilo antesde encostar no trinco. Pressiono-o e lentamentelevanto a tampa enquanto fecho os olhos, hesitandover o que tem dentro. Respiro fundo após a tampaestar levantada e abro os olhos para encontrar oolhar da minha mãe. Pego a foto entre os dedostrêmulos, vendo a mulher que com certeza foi a queme gerou. Minha boca, meus olhos, minhas maçãs dorosto... eu sou ela. Cada parte de mim é ela.

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Coloco a foto de volta na caixa e pego a queestá embaixo. Essa traz ainda mais emoções à tona,pois é uma foto de nós duas. Eu não devia ter maisque 2 anos e estou sentada no colo dela com osbraços ao redor de seu pescoço. Ela está me dandoum beijo na bochecha, e estou olhando para acâmera com um sorriso gigantesco. Lágrimas caemna foto que estou segurando, então as enxugo epasso as fotos para a mão de Holder. Preciso queveja o motivo pelo qual eu tinha de voltar à casa domeu pai.Tem mais um item na caixa. Eu o pego e passo ocolar entre os dedos. É um medalhão de prata emforma de estrela. Eu o abro e vejo uma foto minha dequando era bebê. Dentro do medalhão, do ladooposto da foto, está escrito: “Meu raio de esperança— Hope.”Abro o fecho do colar e o levo até a nuca.Holder estende a mão e segura o fecho enquantolevanto o cabelo. Ele o prende, eu solto meu cabelo,e ele beija minha têmpora.— Ela é linda. Assim como a filha. — Ele medevolve as fotos e me beija com carinho. Olha para omedalhão, abre-o e fica o encarando por váriosinstantes, sorrindo. Depois o fecha e olha nos meusolhos. — Está pronta?Coloco as fotos de volta na caixa, fecho a tampa,olho para ele confiante e respondo:— Estou.

Terça-feira, 30 de outubrode 201222h25Dessa vez, Holder entra na casa comigo. Karen eJack estão sentados no sofá, e ele apoia o braço aoredor dela, segurando sua mão. Ela olha para mimenquanto passo pela porta, e Jack se levanta,preparando-se para nos deixar a sós mais uma vez.— Está tudo bem — digo para ele. — Nãoprecisa ir. Não vou demorar.Minhas palavras o deixam preocupado, mas nãoresponde nada. Ele se afasta alguns metros de Karenpara que eu possa me sentar ao lado dela no sofá.Coloco a caixa na mesa na frente dela e me sento.Viro-me em sua direção, sabendo que ela não fazideia de como será seu futuro. Apesar de não terideia da escolha que fiz e do que vai acontecer comsua vida, ainda sorri para mim de maneiratranquilizadora. Quer que eu saiba que vai aceitar

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qualquer escolha que eu fizer.Seguro suas mãos e a olho bem nos olhos.Quero que ela sinta as palavras que estou prestes adizer e que acredite nelas, pois entre nós duas nãoquero que exista nada além da verdade.— Mãe — digo, olhando-a com o máximo deconfiança possível. — Quando me tirou do meu pai,você sabia as possíveis consequências da sua decisãoe fez aquilo mesmo assim. Arriscou toda a sua vidasó para salvar a minha, e eu nunca seria capaz dedesejar que você sofra por causa dessa escolha.Abrir mão da sua vida por mim é mais do que eujamais poderia pedir. Não vou julgá-la pelo que fez.A única coisa apropriada que posso fazer a essaaltura... é agradecer. Então, obrigada. Muitoobrigada por ter salvado minha vida, mãe.No seu rosto escorrem mais lágrimas que nomeu. Nós nos abraçamos e choramos. Choramos demãe para filha. Choramos de tia para sobrinha.Choramos de vítima para vítima. Choramos desobrevivente para sobrevivente.Não consigo imaginar a vida que Karen levou nosúltimos 13 anos. Toda escolha que fez foi apenaspara meu próprio bem. Ela presumiu que, quando eufizesse 18 anos, confessaria o que tinha feito e seentregaria para a polícia para arcar com asconsequências. Saber que me ama tanto a ponto deestar disposta a desistir de toda a sua vida por mimquase me faz sentir como se eu não merecesse issotudo, agora que sei que existem duas pessoas nomundo que me amam desse jeito. É quase demaispara que possa aceitar.No fim das contas, Karen quer mesmo dar opróximo passo em seu relacionamento com Jack,mas estava hesitante porque sabia que o magoariaquando contasse a verdade. O que ela não esperavaé que Jack a amasse incondicionalmente... da mesmamaneira como ela me ama. Escutar suas confissõesdo passado e as escolhas que fez só o deixou maiscerto sobre o amor que sente por ela. Aposto que elevai trazer todas as suas coisas para nossa casa até opróximo fim de semana.Karen passa a noite inteira respondendopacientemente todas as minhas perguntas. Minhadúvida principal era como eu tinha um nome legal edocumentos que provavam isso. Karen ri e explicaque, com dinheiro suficiente e os contatos certos, fuiconvenientemente “adotada” de outro país e obtiveminha cidadania quando tinha 7 anos. Nem peçopara saber mais detalhes porque tenho medo da

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resposta.A outra pergunta cuja resposta eu precisavasaber era a mais óbvia... agora a gente pode ter umatelevisão? E a verdade é que ela não odeia tantotecnologia quanto deu a entender durante todos essesanos. Tenho a sensação de que amanhã vamos fazeralgumas comprinhas no departamento de eletrônicos.Holder e eu explicamos para Karen como eledescobriu quem eu era. No início ela não conseguiuentender como podíamos ter tido uma ligação tãoforte quando éramos tão pequenos... tão forte aponto de ele se lembrar de mim. Mas depois de nosver interagindo por mais um tempo, acho que seconvenceu de que o que nós temos é verdadeiro.Infelizmente, também consigo ver preocupação nosolhos dela toda vez que ele se inclina para me beijarou põe a mão na minha perna. Afinal, ela é minhamãe.Após várias horas se passarem e todos nóstermos o momento de maior paz possível depois dofim de semana como esse, encerramos a noite.Holder e Jack despedem-se de nós, e Holder garantea Karen que nunca mais vai me mandar mensagensque diminuam meu ego. Mas, ao dizer isso, piscapara mim por cima do ombro dela.Karen me abraça mais do que já fui abraçada emum único dia. Depois do seu abraço final da noite,vou para meu quarto e me deito. Puxo as cobertas eponho as mãos por trás da cabeça, encarando asestrelas no meu teto. Pensei em arrancá-las de lá,achando que só serviriam para me lembrar de maiscoisas ruins. Mas acabei não tirando. Vou deixá-lasporque agora, quando olho para elas, me lembro deHope. Eu me lembro de mim e de tudo que preciseisuperar para chegar a esse momento da minha vida.E, por mais que eu pudesse ficar aqui sentada,sentindo pena de mim mesma e me perguntando porque tudo isso aconteceu comigo... não vou fazer isso.Não vou ficar desejando uma vida perfeita. As coisasque nos derrubam na vida são testes, e esses testesnos forçam a escolher entre desistir, ficar caída nochão ou sacudir a poeira e se levantar com aindamais firmeza que antes. Estou escolhendo melevantar com mais firmeza. Provavelmente vou serderrubada mais algumas vezes antes da vida secansar de mim, mas garanto que nunca vou ficarcaída no chão.Escuto uma leve batida na janela do quarto antesde a levantarem. Sorrio e chego mais para o lado nacama, esperando que ele se junte a mim.

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— Não vou ser recebido na janela hoje? —pergunta ele baixinho, puxando a janela para baixo.Ele vai até o lado dele da cama, puxa as cobertas ese aproxima de mim.— Você está congelando — digo,aconchegando-me em seus braços. — Veio andandoaté aqui?Ele balança a cabeça, me aperta e beija minhatesta.—Não, vim correndo. — Ele desliza a mão atéminha bunda. — Já faz mais de uma semana quenenhum de nós faz exercícios. Sua bunda estácomeçando a ficar gigante.Dou risada e bato no seu braço.— Tente se lembrar de que os insultos só sãoengraçados em mensagens.— Por falar nisso... quer dizer que vai poderficar com o celular?Dou de ombros.— Não quero aquele celular de volta. Tenhoesperanças de que meu namorado domesticado medê um iPhone de Natal.Ele ri e rola para cima de mim, encostando oslábios gélidos nos meus. As temperaturascontrastantes das nossas bocas o fazem gemer. Eleme beija até seu corpo inteiro esquentar outra vez.— Sabe de uma coisa? — Ele se apoia noscotovelos e olha para mim com suas covinhasencantadoras.— O quê?Sua voz volta a ficar naquela oitava lírica e divinamais uma vez.— Nunca vamos transar na sua cama.Penso nisso por meio segundo, balanço a cabeçae o faço se deitar de costas.— E vai ser assim enquanto minha mãe estiverdo outro lado do corredor.Ele ri, me segura pela cintura e me puxa paracima dele. Apoio a cabeça em seu peito, e ele colocaos braços ao meu redor com firmeza.— Sky?— Holder? — imito-o.— Quero que saiba de uma coisa — diz ele. —E não vou dizer isso como seu namorado nem comoseu amigo. Vou dizer porque isso precisa ser dito poralguém. — Ele para de alisar meu braço e deixa amão no meio das minhas costas. — Estou tãoorgulhoso de você.Aperto os olhos e sorvo suas palavras, enviandoasdiretamente para meu coração. Ele leva os lábios

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até meu cabelo e me beija pela primeira vez ou pelavigésima vez ou pela milionésima vez. Mas quem éque está contando?Eu o abraço com mais força e solto o ar.— Obrigada. — Levanto a cabeça e apoio oqueixo em seu peito, erguendo o olhar para ele, queestá sorrindo para mim. — E não é só pelo que vocêdisse agora que estou agradecendo, Holder. Precisoagradecer por tudo. Obrigada por me dar coragempara sempre fazer minhas perguntas, mesmo quandonão queria saber as respostas. Obrigada por meamar desse jeito. Obrigada por me mostrar que nãoprecisamos ser fortes o tempo inteiro para ajudar umao outro... não tem problema sermos fracos,contanto que estejamos juntos. E obrigada porfinalmente me encontrar depois de todos esses anos.— Passo os dedos no seu peito até alcançar seubraço. Percorro com eles cada letra da sua tatuagem,inclino-me para a frente, pressiono nela os lábios e abeijo. — E, acima de tudo, obrigada por ter meperdido tantos anos atrás... porque minha vida nãoteria sido a mesma se não tivesse me deixadosozinha.Meu corpo sobe e desce, pois ele estárespirando fundo. Ele segura meu rosto e tenta sorrir,mas seus olhos continuam aflitos.— Todas as vezes que imaginei como seriaencontrá-la um dia... nunca pensei que fosse acabarcom você me agradecendo por tê-la perdido.— Acabar? — pergunto, não gostando dapalavra que ele escolheu. Eu me levanto, dou umbeijo rápido em seus lábios e me afasto. — Esperoque esse não seja nosso fim.— De jeito nenhum que esse é nosso fim —afirma ele. Ele põe uma mecha do meu cabelo paratrás da orelha e fica com a mão ali. — E queriapoder dizer que vamos viver felizes para sempre, masnão posso. Nós dois ainda temos muita coisa pararesolver. Com tudo que aconteceu com você,comigo, com sua mãe, com seu pai e com o que seique aconteceu com Less... em alguns dias acho quenão vamos saber como sobreviver. Mas vamossobreviver. Vamos, sim, porque temos um ao outro.Então não estou preocupado conosco, linda. Nãoestou nem um pouco preocupado.Beijo sua covinha e sorrio.— Também não estou preocupada com a gente.E, só para constar, não acredito nisso de felizes parasempre.Ele ri.

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— Ótimo, porque você não vai ter nada disso.Tudo que vai ter sou eu.— É tudo de que preciso — digo. — Bem...preciso do abajur. E do cinzeiro. E do controleremoto. E da raquete. E de você, Dean Holder. Masisso é tudo de que preciso.Treze anos antes— O que ele está fazendo ali? — pergunto paraLesslie, olhando para Dean pela janela da sala.Ele está deitado no jardim, olhando para o céu.— Ele está encarando as estrelas — diz ela. —Faz isso o tempo inteiro.Eu me viro e olho para ela.— Como assim?Ela dá de ombros.— Não sei. Ele fica lá deitado, olhando umtempão para o céu.Olho pela janela outra vez e o ficoobservando por mais um tempinho. Não entendotão bem isso, mas parece algo de que eu ia gostar.Adoro estrelas. Sei que minha mãe tambémgostava delas, pois encheu meu quarto deestrelas.— Quero fazer isso — digo. — A gente pode irlá fazer também? — Olho para ela, que estátirando os sapatos.— Não quero. Mas pode ir, vou ajudar minhamãe a preparar a pipoca e o filme.Gosto dos dias em que durmo na casa deLesslie. Gosto de qualquer dia em que não precisoficar em casa. Saio do sofá, vou até a porta paracalçar os sapatos e saio da casa para me deitarao lado de Dean no jardim. Ele nem olha paramim quando eu me deito ao lado dele. Tudo quefaz é continuar olhando para o céu, então faço omesmo.Hoje as estrelas estão bem brilhantes. Nuncahavia olhado para elas assim. São tão maisbonitas que as estrelas do meu teto.— Uau. Isso é tão bonito.— Eu sei, Hope — diz ele. — Eu sei.Ficamos em silêncio por um bom tempo. Nãosei se ficamos observando as estrelas por muitosminutos ou horas, mas continuamos asobservando e não dizemos nada. Dean não é defalar muito. Ele é bem mais quieto que Lesslie.— Hope? Você me promete uma coisa?Viro a cabeça e olho para ele, que ainda estáencarando as estrelas. Nunca prometi nada para

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ninguém antes, a não ser para meu papai. Tive deprometer para ele que não contaria a ninguémcomo ele me faz agradecer e não quebrei apromessa, por mais que às vezes queira poderfazer isso. Se um dia eu quebrar a promessa quefiz para meu papai, iria contar para Dean, porquesei que ele nunca falaria para ninguém.— Prometo — digo para ele.Ele vira a cabeça e olha para mim, mas seusolhos parecem tristes.— Sabe como às vezes seu papai faz vocêchorar?Faço que sim com a cabeça e tento nãochorar só de pensar nisso. Não sei como Deansabe que é por causa do meu papai que sempreestou chorando, mas ele sabe.— Promete que vai pensar no céu quando eledeixar você triste?Não sei por que ele quer que eu prometa isso,mas concordo com a cabeça mesmo assim.— Mas por quê?— Porque sim. — Ele vira o rosto para asestrelas novamente. — O céu sempre é bonito.Mesmo quando está escuro, chuvoso ou nublado,ele sempre é bonito de se olhar. É minha coisapreferida porque sei que, se um dia eu me sentirperdido, sozinho ou assustado, é só olhar para ele,pois sempre estará lá, não importa o queaconteça... e sei que sempre estará bonito. Vocêpode pensar nisso quando seu pai deixar vocêtriste, assim não precisa pensar nele.Sorrio, apesar de o assunto da nossa conversaestar me deixando triste. Só quero continuarolhando para o céu como Dean, pensando no queele me disse. Meu coração fica feliz por agora terum lugar para ir quando não quiser continuar nolugar onde estou. Agora, quando estiverassustada, vou simplesmente pensar no céu e issotalvez me ajude a sorrir, pois sei que ele sempreestará bonito, não importa o que aconteça.— Prometo — sussurro.— Ótimo — diz ele, estendendo a mão eenroscando o dedo mindinho no meu.

AgradecimentosQuando escrevi meus primeiros dois livros, não useinenhum beta reader nem blogueiros. (Por ignorância,não por escolha.) Eu nem sabia o que era um ARC.Ah, como teria sido bom saber.Obrigada a TODOS os blogueiros que se

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esforçam tanto para compartilhar seu amor pelaleitura. Vocês com certeza são a salvação dosescritores, e agradecemos por tudo que fazem.Um obrigada muito especial a Maryse, TammaraWebber, Jenny e Gitte do totallybookedblog.com,Tina Reber, Tracey Garvis-Graves, Abbi Glines,Karly Blakemore-Mowle, Autumn doautumnreview.com, Madison do madisonsays.com,Molly Harper do toughcriticbookreviews.com,Rebecca Donovan, Nichole Chase, Angie Stanton,Sarah Ross, Lisa Kane, Gloria Green, CheriLambert, Trisha Rai, Katy Perez, Stephanie Cohen eTonya Killian por terem tido tempo de me dar umfeedback tão detalhado e incrivelmente útil. Sei quepassei dezembro inteiro irritando para cacete amaioria de vocês, então obrigada por terem aturadomeus muitos, muitos e muitos arquivos “atualizados”.E ERMAGHERD! Não tenho como agradecê-lao suficiente, Sarah Augustus Hansen. Não apenaspor fazer a capa mais bonita de todas, mas poratender aos meus milhões de pedidos de mudançaspara acabarmos usando sua capa original. Suapaciência comigo não tem limites. E, por isso, declaroque Holder é seu. Tudo bem.Agradeço ao meu marido, que insiste que deveser mencionado nos agradecimentos deste livro porter sugerido uma palavra que me ajudou a escreveruma frase naquele único parágrafo naquela únicacena. Sem aquela palavra (que era diques, pessoal),acho que não teria terminado este livro. Ele pediu queeu dissesse isso. Mas, de certa maneira, ele temrazão. Sem a palavra que ele sugeriu, é mais do queprovável que o livro tivesse seguido em frente semproblema algum. Só que sem o apoio, entusiasmo eincentivo dele, eu nunca teria escrito uma palavrasequer.Agradeço a minha família (especialmente Lin,pois ela precisa de mim mais que qualquer outrapessoa). Não me lembro muito bem da aparência detodo mundo e está sendo difícil lembrar a maioria dosnomes de vocês, mas, agora que este livro estácompleto, juro que vou atender as ligações,responder as mensagens, olhá-los nos olhos enquantofalam comigo (em vez de me distrair e entrar nomundo da ficção), ir para a cama antes das quatro damanhã e nunca, nunca mais, conferir meus e-mailsenquanto estou no telefone com vocês. Pelo menosnão até eu começar a escrever meu próximo livro.E agradeço aos três melhores filhos do mundointeiro. Sinto uma saudade do cacete de vocês. E,

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sim, meninos... mamãe acabou de falar coisa feia. Denovo.Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela DistribuidoraRecord de Serviços de Imprensa S.A.

Hopeless – Um caso perdidoSkoob do livrohttp://www.skoob.com.br/livro/379366-um_caso_perdidoResenha do livrohttp://www.burnbook.com.br/2014/05/20/resenha-um-casoperdido-hopeless-de-colleen-hoover/?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+com%2FcFJe+(Burn+Book)Site da autorahttp://colleenhoover.com/Good reads da autorahttp://www.goodreads.com/author/show/5430144.Colleen_HooverCapaObras da autora publicadas pela Galera RecordRostoCréditosDedicatóriaDomingo, 28 de outubro de 2012 | 19h29Sábado, 25 de agosto de 2012 | 23h50Segunda-feira, 27 de agosto de 2012 | 07h15Segunda-feira, 27 de agosto de 2012 | 15h55Segunda-feira, 27 de agosto de 2012 | 16h47Segunda-feira, 27 de agosto de 2012 | 17h25Segunda-feira, 27 de agosto de 2012 | 19h10Terça-feira, 28 de agosto de 2012 | 6h15Terça-feira, 28 de agosto de 2012 | 07h55Quarta-feira, 29 de agosto de 2012 | 6h15Sexta-feira, 31 de agosto de 2012 | 11h20Sexta-feira, 31 de agosto de 2012 | 16h50Sábado, 1º de setembro de 2012 | 17h05Sábado, 1º de setembro de 2012 | 19h15Treze anos antesSegunda-feira, 3 de setembro de 2012 | 07h20Terça-feira, 4 de setembro de 2012 | 06h15Sexta-feira, 28 de setembro de 2012 | 12h05Sexta-feira, 28 de setembro de 2012 | 23h50Sábado, 29 de setembro de 2012 | 08h40Sábado, 29 de setembro de 2012 | 09h20Sábado, 29 de setembro de 2012 | 10h25Sábado, 29 de setembro de 2012 | 22h15Segunda-feira, 22 de outubro de 2012 | 12h05Sexta-feira, 26 de outubro de 2012 | 15h40Treze anos antesSábado, 27 de outubro de 2012 | Algum momento no meio damadrugadaSábado, 27 de outubro de 2012 | 20h20Treze anos antesSábado, 27 de outubro de 2012 | 23h20Sábado, 27 de outubro de 2012 | 23h57Domingo, 28 de outubro de 2012 | 00h37Treze anos antesDomingo, 28 de outubro de 2012 | 02h45Domingo, 28 de outubro de 2012 | 03h10Domingo, 28 de outubro de 2012 | 07h50Domingo, 28 de outubro de 2012 | 17h15Treze anos antesDomingo, 28 de outubro de 2012 | 19h10Treze anos antesDomingo, 28 de outubro de 2012 | 19h29Segunda-feira, 29 de outubro de 2012 | 09h50

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Segunda-feira, 29 de outubro de 2012 | 16h15Segunda-feira, 29 de outubro de 2012 | 16h35Catorze anos antesSegunda-feira, 29 de outubro de 2012 | 16h57Segunda-feira, 29 de outubro de 2012 | 17h29Segunda-feira, 29 de outubro de 2012 | 23h35Treze anos antesTerça-feira, 30 de outubro de 2012 | 12h10Terça-feira, 30 de outubro de 2012 | 09h05Terça-feira, 30 de outubro de 2012 | 19h20Terça-feira, 30 de outubro de 2012 | 20h45Terça-feira, 30 de outubro de 2012 | 22h25Treze anos antesAgradecimentosColofãoSaiba mais__