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Thiago de Mello nasceu na cidade de Barreirinha, no coração do Amazonas, no dia 30 demarço de 1926. Em Manaus, capital do Estado, fez seus primeiros estudos. Mudou-se para oRio de Janeiro (RJ), onde cursou a Faculdade de Medicina até o quarto ano. Acabou optandopor deixar os estudos médicos e dedicou-se à poesia. Conhecido internacionalmente por sualuta em prol dos direitos humanos, pela ecologia e pela paz mundial, o autor foi perseguidopela ditadura militar implantada no Brasil em 1964. Foi obrigado a deixar sua terra, tendo seexilado no Chile, até a queda de Salvador Allende. Seus trabalhos foram publicados no Chile,

Portugal, Uruguai, Estados Unidos da América, Argentina, Alemanha, Cuba, França e outrosmais. Traduziu para o português obras de Pablo Neruda, T. S. Elliot, Ernesto Cardenal, César Vallejo, Nicolas Guillén e Eliseo Diego.Tem obras traduzidas para mais de trinta idiomas. Preso durante a ditadura (1964-1985),exilou-se no Chile, encontrando em Pablo Neruda um amigo e colaborador. Um traduziu a obrado outro e Neruda escreveu ensaios sobre o amigo. No exílio, morou na Argentina, Chile,Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou a sua grande cidade natal,Barreirinha, onde vive até hoje.

Seu poema mais conhecido é Os Estatutos do Homem, onde o poeta chama a atenção doleitor para os valores simples da natureza humana. Seu livro Poesia Comprometida com aMinha e a Tua Vida rendeu-lhe, em 1975, ainda durante o regime militar, prêmio concedidopela Associação Paulista dos Críticos de Arte e tornou-o conhecido internacionalmente comoum intelectual engajado na luta pelos Direitos Humanos.

Em homenagem aos seus 80 anos, completados em 2006, foi lançado, pela Karmim, o CDcomemorativo A Criação do Mundo, contendo poemas que o autor produziu nos últimos 55anos, declamados por ele próprio e musicados por seu irmão, Gaudêncio Thiago de Mello.

Suas obrasPoesia

* Silêncio e Palavra, 1951* Narciso Cego, 1952* A Lenda da Rosa, 1956* Faz Escuro, mas eu Canto, 1966* Poesia comprometida com a minha e a tua vida, 1975* Os Estatutos do Homem, 1977* Horóscopo para os que estão Vivos, 1984* Mormaço na Floresta, 1984* Vento Geral – Poesia, 1981* Num Campo de Margaridas, 1986* De uma Vez por Todas, 1996

Prosa

* A Estrela da Manhã, 1968;* Arte e Ciência de Empinar Papagaio, 1983* Manaus, Amor e Memória, 1984* Amazonas, Pátria da Água, 1991* Amazônia — A Menina dos Olhos do Mundo, 1992* O Povo sabe o que Diz, 1993* Borges na Luz de Borges, 1993

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Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.agora vale a vida,e de mãos dadas,marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II

Fica decretado que todos os dias da semana,inclusive as terças-feiras mais cinzentas,têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III

Fica decretado que, a partir deste instante,haverá girassóis em todas as janelas,que os girassóis terão direitoa abrir-se dentro da sombra;e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV

Fica decretado que o homemnão precisará nunca maisduvidar do homem.Que o homem confiará no homemcomo a palmeira confia no vento,como o vento confia no ar,como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:O homem, confiará no homemcomo um menino confia em outro menino.

Artigo V

Fica decretado que os homensestão livres do jugo da mentira.Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncionem a armadura de palavras.O homem se sentará à mesacom seu olhar limpoporque a verdade passará a ser servidaantes da sobremesa.

Artigo VI

Fica estabelecida, durante dez séculos,a prática sonhada pelo profeta Isaías,e o lobo e o cordeiro pastarão juntose a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

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Artigo VII

Por decreto irrevogável fica estabelecidoo reinado permanente da justiça e da claridade,e a alegria será uma bandeira generosapara sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIIIFica decretado que a maior dor sempre foi e será semprenão poder dar-se amor a quem se amae saber que é a águaque dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX

Fica permitido que o pão de cada diatenha no homem o sinal de seu suor.Mas que sobretudo tenhasempre o quente sabor da ternura.

Artigo X

Fica permitido a qualquer pessoa,qualquer hora da vida,uso do traje branco.

Artigo XI

Fica decretado, por definição,que o homem é um animal que amae que por isso é belo,muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII

Decreta-se que nada será obrigadonem proibido,tudo será permitido,inclusive brincar com os rinocerontese caminhar pelas tardescom uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:Só uma coisa fica proibida:amar sem amor.

Artigo XIII

Fica decretado que o dinheironão poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras.Expulso do grande baú do medo,o dinheiro se transformará em uma espada fraternalpara defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

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Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade,a qual será suprimida dos dicionáriose do pântano enganoso das bocas.A partir deste instantea liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,e a sua morada será sempreo coração do homem.

Santiago do Chile, abril de 1964

Fio de vida

Já fiz mais do que podiaNem sei como foi que fiz.Muita vez nem quis a vidaa vida foi quem me quis.

Para me ter como servo?Para acender um tiçãona frágua da indiferença?Para abrir um coração

no fosso da inteligência?Não sei, nunca vou saber.Sei que de tanto me ter,acabei amando a vida.

Vida que anda por um fio,diz quem sabe. Pode andar,contanto (vida é milagre)que bem cumprido o meu fio.

A fruta aberta

Agora sei quem sou.Sou pouco, mas sei muito,porque sei o poder imensoque morava comigo,mas adormecido como um peixe grandeno fundo escuro e silencioso do rioe que hoje é como uma árvoreplantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisa como são.Sei porque a água escorre meigae porque acalanto é o seu ruídona noite estreladaque se deita no chão da nova casa.Agora sei as coisas poderosas

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que valem dentro de um homem.

Aprendi contigo, amada.Aprendi com a tua beleza,com a macia beleza de tuas mãos,teus longos dedos de pétalas de prata,

a ternura oceânica do teu olhar,verde de todas as corese sem nenhum horizonte;com tua pele fresca e enluarada,a tua infância permanente,tua sabedoria fabuláriabrilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,com as espigas douradas no vento,com as chuvas de verãoe com as linhas da minha mão.Contigo aprendique o amor repartemas sobretudo acrescenta,e a cada instante mais aprendocom o teu jeito de andar pela cidadecomo se caminhasses de mãos dadas com o ar,com o teu gosto de erva molhada,com a luz dos teus dentes,tuas delicadezas secretas,a alegria do teu amor maravilhado,e com a tua voz radiosaque sai da tua bocainesperada como um arco-írispartindo ao meio e unindo os extremos da vida,e mostrando a verdadecomo uma fruta aberta.

O animal da floresta

De madeira lilás (ninguém me crê)se fez meu coração. Espécie escassade cedro, pela cor e porque abrigaem seu âmago a morte que o ameaça.Madeira dói?, pergunta quem me vêos braços verdes, os olhos cheios de asas.Por mim responde a luz do amanhecer que recobre de escamas esmaltadasas águas densas que me deram raçae cantam nas raízes do meu ser.No crepúsculo estou da ribanceiraentre as estrelas e o chão que me abençoaas nervuras.Já não faz mal que doameu bravo coração de água e madeira.

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Filho da floresta, água e madeira

Filho da floresta,água e madeiravão na luz dos meus olhos,e explicam este jeito meu de amar as estrelas

e de carregar nos ombros a esperança.Um lanho injusto, lama na madeira,a água forte de infância chega e lava.

Me fiz gente no meio de madeira,as achas encharcadas, lenha verde,minha mãe reclamava da fumaça.

Na verdade abri os olhos vendo madeira,o belo madeirame de itaúbada casa do meu avô no Bom Socorro,onde meu pai nasceue onde eu também nasci.

Fui o último a ver a casa erguida ainda,íntegros os esteios se inclinavam,morada de morcegos e cupins.

Até que desabada pelas águas de muitas cheias,a casa se afogounum silêncio de limo, folhas, telhas.

Mas a casa só morreu definitivamentequando ruíram os esteios da memóriade meu pai,neste verão dos seus noventa anos.

Durante mais de meio século,sem voltar ao lugar onde nasceu,a casa permaneceu erguida em sua lembrança,as janelas abertas para as manhãsdo Paraná do Ramos,a escada de pau-d’arcoque ele continuava a descer para pisar o capim orvalhadoe caminhar correndopelo campo geral coberto de mungubeirasaté a beira florida do Lago Grandeonde as mãos adolescentes aprendiamos segredos dos úberes das vacas.

Para onde ia, meu pai levava a casae levava a rede armada entre acariquaras,onde, embalados pela surdina dos carapanãs,ele e minha mãe se abraçavam,cobertos por um céu insuportavelmenteestrelado.

Uma noite, nós dois sozinhos,num silêncio hoje quase impossívelnos modernos frangalhos de Manaus,meu pai me perguntou se eu me lembrava

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de um barulho no mato que ele ouviude manhãzinha clara ele chegandono Bom Socorro aceso na memória,depois de muito remo e tantas águas.

Nada lhe respondi. Fiquei ouvindomeu pai avançar entre as mangueiras

na direção daquele baque, aquelebaque seco de ferro, aquele cantode ferro na madeira — era a tua mãe,os cabelos no sol, era a Maria,o machado brandindo e abrindo em achasum pau mulato azul, duro de bronze,batida pelo vento, ela sozinhano meio da floresta.

Todas essas coisas ressurgiame de repente lhe sumiam na memória,enquanto a casa ruína se faziano abandono voraz, capim-agulha,e o antigo cacaual desenganadodava seu fruto ao grito dos macacose aos papagaios pândegas de sol.

Enquanto minha avó Safira, solitária,última habitante real da casa,acordava de madrugada para esperar uma canoa que não chegaria nunca mais.

Safira pedra das águas,que me dava a bênção comoquem joga o anzol pra puxar um jaraqui na poronga,sempre vestida de escuroa voz rouca disfarçandouma ternura de estrelasno amanhecer do Andirá.

Filho da floresta, água e madeira,voltei para ajudar na construçãodo morada futura. Raça de âmagos,um dia chegarão as proas claraspara os verdes livrar da servidão.

Poema perto do fim

A morte é indolor.O que dói nela é o nadaque a vida faz do amor.Sopro a flauta encantadae não dá nenhum som.Levo uma pena levede não ter sido bom.E no coração, neve.

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Sugestão

Antes que venham ventos e te levemdo peito o amor — este tão belo amor,que deu grandeza e graça à tua vida —,faze dele, agora, enquanto é tempo,

uma cidade eterna — e nela habita.Uma cidade, sim. Edificadanas nuvens, não — no chão por onde vais,e alicerçada, fundo, nos teus dias,de jeito assim que dentro dela caibao mundo inteiro: as árvores, as crianças,o mar e o sol, a noite e os passarinhos,e sobretudo caibas tu, inteiro:o que te suja, o que te transfigura,teus pecados mortais, tuas bravuras,tudo afinal o que te faz viver e mais o tudo que, vivendo, fazes.

Ventos do mundo sopram; quando sopram,ai, vão varrendo, vão, vão carregandoe desfazendo tudo o que de humanoexiste erguido e porventura grande,mas frágil, mas finito como as dores,porque ainda não ficando — qual bandeirafeita de sangue, sonho, barro e cântico —no próprio coração da eternidade.Pois de cântico e barro, sonho e sangue,faze de teu amor uma cidade,agora, enquanto é tempo.

Uma cidadeonde possas cantar quando o teu peitoparecer, a ti mesmo, ermo de cânticos;onde posssas brincar sempre que as praçasque percorrias, dono de inocências, já se mostrarem murchas, de gangorrasrecobertas de musgo, ou quando as relvasda vida, outrora suaves a teus pés,brandas e verdes já não se vergaremà brisa das manhãs.

Uma cidadeonde possas achar, rútila e doce,a aurora que na treva dissipaste;onde possas andar como uma criançaindiferente a rumos: os caminhos,gêmeos todos ali, te levarãoa uma aventura só — macia, mansa —e hás de ser sempre um homem caminhandoao encontro da amada, a já bem-vindamas, porque amada, segue a cada instantechegando — como noiva para as bodas.

Dono do amor, és servo. Pois é deleque o teu destino flui, doce de mando:A menos que este amor, conquanto grande,seja incompleto. Falte-lhe talvez

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um espaço, em teu chão, para cravar os fundos alicerces da cidade.

Ai de um amor assim, vergado ao vínculode tão amargo fado: o de albatroznascido para inaugurar caminhosno campo azul do céu e que, entretanto,

no momento de alçar-se para a viagem,descobre, com terror, que não tem asas.

Ai de um pássaro assim, tão malfadadoa dissipar no campo exíguo e escuroonde residem répteis: o que trouxeno bico e na alma — para dar ao céu.

É tempo. Fazetua cidade eterna, e nela habita:antes que venham ventos, e te levemdo peito o amor — este tão belo amor que dá grandeza e graça à tua vida.

Aprendiz do espanto

Não deflorei ninguém.A primeira mulher que eu vi desnuda(ela era adulta de alma e de cabelos)foi a primeira a me mostrar os astros,mas não fui o primeiro a quem mostrou.Eu vi o resplendor de suas nádegasde costas para mim, era morena,mas quando se virou ficou dourada.Sorriu porque os seus peitos me assombraramo olhar de adolescente desafeitoà glória da beleza corporal.Era manhã na mata, mas estrelasnasciam dos seus braços e subiampelo pescoço, eu lembro, era o pescoçoque me ensinava a soletrar segredosguardados na clavícula.

Pedia já estirada de bruços me chamando,que eu passeasse meus lábios pelas pétalasorvalhadas da nuca, eram lilazes,com as gemas de leve eu alisasseas espáduas de espumas e esmeraldas,queria a minha mão lhe percorrendo,mas indo e vindo, o vale da coluna,cuidadosa de mim, trés doucement.Ela me inaugurou o contentamentoinefável de dar felicidade.Tanto conhecimento só podiaser de nascença, hoje eu calculo.

Nãoera um saber de experiências feito,mas quanta ciência para transmiti-lo.Ela era de outras águas, a fontana

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de trinta anos, que veio lá do Senacom a sina de me dar a beber na aurora dos seus olhos, nos seus peitos,na boca musical, no mar do ventre,no riso de açucena, na voz densa,nas sobrancelhas e no vão das pernas -o mel antigo da sabedoria

de que a libido cresce quando atende,de que a tesão se acende na ternura,que as ante-salas se prolonguem vastasaté estar pronto para entrar no céu.

Freguesia do Andirá, fim de 97

Ninguém me habita

Ninguém me habita. A não ser o milagre da matéria

que me faz capaz de amor,e o mistério da memóriaque urde o tempo em meus neurônios,para que eu, vivendo agora,possa me rever no outrora.Ninguém me habita. Sozinhoresvalo pelos declivesonde me esperam, me chamam(meu ser me diz se as atendo)feiúras que me fascinam,belezas que me endoidecem.

Canto do meu canto

Escrevi no chão do outrorae agora me reconheço:pelas minhas cercaniaspasseio, mal me freqüento.Mas pelo pouco que seide mim, de tudo que fiz,posso me ter por contente,cheguei a servir à vida,me valendo das palavras.Mas dito seja, de uma vez por todas,que nada faço por literatura,que nada tenho a ver com a história,mesmo concisa, das letras brasileiras.Meu compromisso é com a vida do homem,a quem trato de servir com a arte do poema. Sei que a poesiaé um dom, nasceu comigo.Assim trabalho o meu verso,com buril, plaina, sintaxe.Não basta ser bom de ofício.Sem amor não se faz arte.

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Trabalho que nem um mouro,estou sempre começando.Tudo dou, de ombros e braços,e muito de coração,na sombra da antemanhã,empurrando o batelãopara o destino das águas.

(O barco vai no banzeiro,meu destino no porão.)

Nada criei de novo.Nada acrescentei às formatradicionais do verso.Quem sou eu para criar coisas novas,pôr no meu verso, Deus me livre, uma

invenção.

Arte de amar

Não faço poemas como quem chora,nem faço versos como quem morre.Quem teve esse gosto foi o bardo Bandeiraquando muito moço; achava que tinhaos dias contados pela tísicae até se acanhava de namorar.Faço poemas como quem faz amor.É a mesma luta suave e desvairadaenquanto a rosa orvalhadase vai entreabrindo devagar.A gente nem se dá conta, até acha bom,o imenso trabalho que amor dá para fazer.

Perdão, amor não se faz.Quando muito, se desfaz.Fazer amor é um dizer (a metáfora é falaz)de quem pretende vestir com roupa austera a belezado corpo da primavera.O verbo exato é foder.A palavra fica nuapara todo mundo ver o corpo amante cantandoa glória do seu poder.

Flor de açucena

Quando acariciei o teu dorso,campo de trigo dourado,minha mão ficou pequenacomo uma flor de açucenaque delicada desmaiasob o peso do orvalho.Mas meu coração cresceu

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e cantou como um meninodeslumbrado pelo brilhoestrelado dos teus olhos.

92, Porantim

Os astros íntimos

Consulto a luz dos meus astros,cada qual de cada vez.Primeiro olho o do meu peito:um sol turvo é o meu defeito.A minha amada adormecedesgostosa do que sou:a estrela da minha frontede descuidos se apagou.

Ela sonha mal do rumoque minha galáxia tomou.

Não sabe que uma esmeraldase esconde na dor que dou.

A cara consigo ver,sem tremor e sem temor,da treva engolindo a flor.Percorre a mata um espanto.

A constelação que outroraardente cruzava o campoda vida, hoje mal demorano fulgor de um pirilampo.

Mas vale ver que perdura

serena em seu resplendor,mesmo de luz esgarçada,a nebulosa do amor.

Barreirinha, Ponta da Gaivota, 97

A Rosa Branca

Não me inquieta se o caminhoque me coube - por secretodesígnio - jamais floresce.Dentro de mim, sei que existe,oculta, uma rosa branca.Incólume rosa. E branca.

Não pude colhê-la: malnascera e logo perdi-menos labirintos do tempo,onde desde então pervagoapenas entressonhandoaquilo que sou - e viveno recôncavo da rosa.

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Sem conhecer-me, padeçoo mistério de existir em amargo desencontrocomigo mesmo. No entanto,pesar tão largo se apagaquando pressinto: na rosa,mistério não há. Nenhum.

Sem medo de trair-me a face,posso morrer amanhã.Extinto o jugo do tempo,olhos nem boca haverá- para a queixa e para a lágrima -se em vez de rosa, de pétalacinza de pétala, apenasexistir a escuridão.O vazio. Nada mais.

As Ensinanças da Dúvida

Tive um chão (mas já faz tempo)todo feito de certezastão duras como lajedos.

Agora (o tempo é que fez)tenho um caminho de barroumedecido de dúvidas.

Mas nele (devagar vou)me cresce funda a certezade que vale a pena o amor

A Vida Verdadeira

Pois aqui está a minha vida.Pronta para ser usada.Vida que não guardanem se esquiva, assustada.Vida sempre a serviçoda vida.Para servir ao que valea pena e o preço do amor

Ainda que o gesto me doa,

não encolho a mão: avançolevando um ramo de sol.Mesmo enrolada de pó,dentro da noite mais fria,a vida que vai comigoé fogo:está sempre acesa.

Vem da terra dos barrancoso jeito doce e violentoda minha vida: esse gostoda água negra transparente.

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A vida vai no meu peito,mas é quem vai me levando:tição ardente velando,girassol na escuridão.

Carrego um grito que cresceCada vez mais na garganta,

cravando seu travo tristena verdade do meu canto.

Canto molhado e barrentode menino do Amazonasque viu a vida crescer nos centro da terra firme.Que sabe a vinda da chuvapelo estremecer dos verdese sabe ler os recadosque chegam na asa do vento.Mas sabe também o tempoda febre e o gosto da fome.

Nas águas da minha infânciaperdi o medo entre os rebojos.Por isso avanço cantando

Estou no centro do rioestou no meio da praça.Piso firme no meu chãosei que estou no meu lugar,como a panela no fogoe a estrela na escuridão.

O que passou não conta ?, indagarãoas bocas desprovidas.Não deixa de valer nunca.que passou ensinacom sua garra e seu mel.

Por isso é que agora vou assimno meu caminho. Publicamente andandoNão, não tenho caminho novo.O que tenho de novoé o jeito de caminhar.Aprendi(o que o caminho me ensinou)a caminhar cantandocomo convéma mime aos vão comigo.Pois já não vou mais sozinho.

Aqui tenho a minha vida:feita à imagem do meninoque continua varandoos campos geraise que reparte o seu cantocomo o seu avôrepartia o cacaue fazia da colheitauma ilha do bom socorro.

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Feita à imagem do meninomas a semelhança do homem:com tudo que ele tem de primaverade valente esperança e rebeldia.

Vida, casa encantada,

onde eu moro e mora em mim,te quero assim verdadeiracheirando a manga e jasmim.Que me sejas deslumbradacomo ternura de moçarolando sobre o capim.

Vida, toalha limpavida posta na mesa,vida brasa vigilantevida pedra e espumaalçapão de amapolas,sol dentro do mar,estrume e rosa do amor:a vida.

Há que merecê-la

Canto do Meu Canto

Escrevi no chão do outrorae agora me reconheço:pelas minhas cercaniaspasseio, mal me freqüento.Mas pelo pouco que seide mim, de tudo que fiz,posso me ter por contente,cheguei a servir à vida,me valendo das palavras.Mas dito seja, de uma vez por todas,que nada faço por literatura,que nada tenho a ver com a história,mesmo concisa, das letras brasileiras.Meu compromisso é com a vida do homem,a quem trato de servir com a arte do poema. Sei que a poesiaé um dom, nasceu comigo.Assim trabalho o meu verso,com buril, plaina, sintaxe.Não basta ser bom de ofício.Sem amor não se faz arte.

Trabalho que nem um mouro,estou sempre começando.Tudo dou, de ombros e braços,e muito de coração,na sombra da antemanhã,empurrando o batelãopara o destino das águas.(O barco vai no banzeiro,meu destino no porão.)

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Nada criei de novo.Nada acrescentei às formatradicionais do verso.Quem sou eu para criar coisas novas,pôr no meu verso, Deus me livre, umainvenção.

Leão

(21 de Julho a 20 de Agosto)

Leão é fogo, sonhos cerrados,a rosa de amor feita de brasa.A vida te será amável,companheiro que avançassob o sortilégio do Sol.

A menos que sejas um Leãocujos dias se cumprem

em certos pedaços de chão como o do Nordesteda minha pátria, sob o sol da injustiça.Mas é desgraça demasiadapara tão pouco horóscopo.De resto, trata o meu zodíaco da vida,que não é precisamente o que tu levas,companheiro camponês.Contudo, algo te digo: não te submetas,dentes de esmeralda já se cravamna entranha do latifúndio.

Quanto a ti, Leão poderoso,sei que não calculas os momentos que vives,não calculas nem medes,confias nos teus átomos,te encantam as turquesas,ostentas a gordura,esbanjas as suavidades.Tuas razões terás, e são das fortes,porque se nutrem da alheia desventura.Mas não posso ocultar-teque vejo fluidos escurosbaixando sobre tua cabeça.Enquanto caminhas confiante,levado por tua extrema ganância,Saturno está só te olhandocom seu olho implacável.Te recomendo, para começar,empinar um papagaio agora mesmo,pelo menos uma tarde por mês,e publicamente.Queres que eu te diga tudo?Haverá um instante de invernoem que sete astros se unirãoà esquerda da tua indiferença.Sete astros, sete ventos,sete nebulosas verdes,sete segredos reunidoscontra tua força de homem,

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que sempre foste sozinho,que apenas contas contigo.Vais ver enfim como te odeiaa multidão que te adula.Vê se descobres um irmão,vê se ainda podes ser irmão,talvez possas, ainda é tempo.

Depende do teu coração,se é que ainda o levas.

E tu, doce mulher de Leão,não abandones assim tanto a cozinha:inventa um guisado,com aipo, ternura e orégano,em fogo bem brando,para o teu homem.

(Transcrito de Horóscopo para os que estão vivos, Martins Fontes)

Memória da Esperança

Na fogueira do que façopor amor me queimo inteiro.Mas simultâneo renasçopara ser barro do sonhoe artesão do que serei.Do tempo que me devorame nasce a fome de ser.Minha força vem da frágilflor ferida que se entreabreresgatada pelo orvalhoda vida que já vivi.Qual a flama que dareipara acender o caminhoda criança que vai chegar?Não sei. Mas sei que já dança,canção de luz e sombra,Na memória da esperança.

Narciso Cego

Tudo o que de mim se perdeacrescenta-se ao que sou.Contudo, me desconheço.Pelas minhas cercaniaspasseio - não me freqüento.

Por sobre fonte erma e esquivaflutua-me íntegra, a face.Mas nunca me vejo: e sigocom face mal disfarçada.Oh que amargo é o não poder rosto a rosto contemplar aquilo que ignoto sou;distinguir até que pontosou eu mesmo que me levoou se um nume irrevelável

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que (para ser) vem morar comigo, dentro de mim,mas me abandona se rolopelos declives do mundo.

Desfaço-me do que sonho:faço-me sonho de alguém

oculto. Talvez um Deussonhe comigo, cobiceo que eu guardo e nunca usei.

Cego assim, não me decifro.E o imaginar-me sonhadonão me completa: a ganânciade ser-me inteiro prossegue.E pairo - pânico mudo -entre o sonho e o sonhador.

Notícia da Manhã

Eu sei que todos virame jamais esquecerão.Mas é possível que alguém,denso de noite, estivesseprofundamente dormido.E aos dormidos - e tambémaos que estavam muito longee não puderam chegar,aos que estavam perto e pertopermaneceram sem vê-la;aos moribundos nos catrese aos cegos de coração -a todos que não a viramcontratei desta manhã- manhã é céu derramadoé cristal de claridão -que reinou, de leste a oeste,de morro a mar - na cidade.

Pois dentro desta manhãvou caminhando. E me vou tão feliz como a criançaque me leva pela mão.Não tenho nem faço rumo:vou no rumo da manhã,levado pelo menino( ele conhece caminhose mundos, melhor do que eu) .

Amorosa e transparente,esta é a sagrada manhãque o céu inteiro derramasobre os campos, sobre as casas,sobre os homens, sobre o mar.Sua doce claridade já se espalhou mansamentepor sobre todas as dores.Já lavou a cidade. Agora,vai lavando corações( não o do menino; o meu,

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que é cheio de escuridões ) .

Por verdadeira, a manhãvai chamando outras manhãssempre radiosas que existem( e às vezes tarde despontamou não despontam jamais)

dentro dos homens e das coisas:na roupa estendida à corda,nos navios chegando,nas torres das igrejas,nos pregões dos peixeiros,na serra circular dos operários,nos olhos da moça que passa, tão bonita!A manhã está no chão, está nas palmeiras,está no quintal dos subúrbios,está nas avenidas centrais,está nos terraços dos arranha-céus.( Há muita, muita manhãno menino; e um pouco em mim. )

A beleza mensageiradesta radiosa manhãnão se resguardou no céunem ficou apenas no espaço,feita de sol e de vento,sobrepairando a cidade.Não: a manhã se deu ao povo.

A manhã é geral.

As árvores da rua,a réstia do mar,as janelas abertas,o pão esquecido no degrau,as mulheres voltando da feira,os vestidos coloridos,o casal de velhos rindo na calçada,o homem que passa com cara de sono,a provisão de hortaliças,o negro na bicicleta,o barulho do bonde.Os passarinhos namorando- ah! pois todas essas coisasque minha ternura encontranum pedacinho de rua,dão eterno testemunhoda amada manhã que avançae de passagem derramaaqui uma alegria,ali entrega uma frase( como o dia está bonito! )à mulher que abre a janela,além deixa uma esperança,mais além uma coragem,e além, aqui e alipelo campo e pela serra,aos mendigos e aos sovinas,aos marinheiros, aos tímidos,aos desgarrados, aos prósperos,

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aos solitários, aos mansos,às velhas virgens, às purase às doidivanas também,a manhã vai derramandoama alegria de viver,vai derramando um perdão,vai derramando uma vontade de cantar.

E de repente a manhã- manhã é céu derramado,é claridão, claridão -foi transformando a cidadenuma praça imensa praça,e dentro da praça o povoo povo inteiro cantando,dentro do povo o meninome levando pela mão

Para Os Que Virão

Como sei pouco, e sou pouco,faço o pouco que me cabeme dando inteiro.Sabendo que não vou ver o homem que quero ser.

Já sofri o suficientepara não enganar a ninguém:principalmente aos que sofremna própria vida, a garrada opressão, e nem sabem.

Não tenho o sol escondido

no meu bolso de palavras.Sou simplesmente um homempara quem já a primeirae desolada pessoado singular - foi deixando,devagar, sofridamentede ser, para transformar-se- muito mais sofridamente -na primeira e profunda pessoado plural.

Não importa que doa: é tempode avançar de mão dadacom quem vai no mesmo rumo,

mesmo que longe ainda estejade aprender a conjugar o verbo amar.

É tempo sobretudode deixar de ser apenasa solitária vanguardade nós mesmos.Se trata de ir ao encontro.( Dura no peito, arde a límpidaverdade dos nossos erros. )

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Se trata de abrir o rumo.

Os que virão, serão povo,e saber serão, lutando.

Quem É Quem

Posso dizer: estou prontopara me dar ao que vier.Posso errar, mas não por medode me ser no que fizer.Quem me pode responder que sabe ser, sendo inteirofiel e simples, sendo a tudoque faz e não quer fazer?

Silêncio E Palavra

I

A couraça das palavrasprotege o nosso silêncioe esconde aquilo que somos

Que importa falarmos tanto?Apenas repetiremos.

Ademais, nem são palavras.Sons vazios de mensagem,

são como a fria mortalhado cotidiano morto.Como pássaros cansados,que não encontraram pousocertamente tombarão.

Muitos verões se sucedem:o tempo madura os frutos,branqueia nossos cabelos.Mas o homem noturno esperaa aurora da nossa boca.

II

Se mãos estranhas romperema veste que nos esconde,acharão uma verdadeem forma não revelável.(E os homens têm olhos sujos,não podem ver através.)

Mas um dia chegaráem que a oferenda dos deuses,dada em forma de silêncio,em palavra transfaremos.

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E se porventura a dermosao mundo, tal como a flor que se oferta - humilde e pura - ,teremos então cumpridoa missão que é dada ao poeta.E como são onda e mar,

seremos palavra e homem.

Sonho Domado

Sei que é preciso sonhar.

Campo sem orvalho, secaA frente de quem não sonha.

Quem não sonha o azul do vôoperde seu poder de pássaro.

A realidade da relva

cresce em sonho no serenopara não ser relva apenas,mas a relva que se sonha.

Não vinga o sonho da folhase não crescer incrustadono sonho que se fez árvore.

Sonhar, mas sem deixar nuncaque o sol do sonho se arrastepelas campinas do vento.

É sonhar, mas cavalgandoo sonho e inventando o chãopara o sonho florescer".

Temo Por meus Olhos

Temo por meus olhosdiante das puras vestes.E no entretanto, desejo.

Temor que sugere o epílogode ser cântaro partidoao lado de fonte pródiga.

A não contemplar, prefirodefinitiva cegueira.

Não como os homens cegos,mas como os pés das criançasque são cegos, caminhando.

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As pontes são como pássaros

Como nasce um vôo de pássarosúbito e simples(ninguém – talvez nem o próprio pássaro- sabe jamais em que instante vai se erguer),

nascem também as pontes do coraçãoentre as criaturas humanas.Nem sabem que vão nascer.

Pontes que são como os vôosdos grandes pássaros belos,são como os vôos das águias,que certeiras e alto voam,Perenes de sortilégios,São como o vôo serenodo condor pastando alturas

Também são como o dos suaves passarinhos,em peleja pelo pão de cada dia;vôo alegre e cristalino das asas amanhecendo,Antes de tudo essas pontessão como os vôos que chegam.Chegam sempre.

Ainda que algumas se façam tardas, jamais se fazem retardatárias,Não sofrem de tempo as coisasnascidas do coração.

Nascem as pontes e se alçam,Certeiras de seus destinosComo as águias de seus rumos- e se vão, levando alvuras,aconchegos, mansidões:pontes de amor sobre um mundo já quase alheio a milagres,como um vôo de alvas asascontra o azul já anoitecendo.

Por mais que muitos desabem(acaso por desamadas),embora tantas se calem(talvez porque recusadas)mesmo que muitas se percamdepois de perdido o pouso,- nenhuma ponte de amor se estende jamais em vão.Pois algo sempre perdurade tudo a que ela deu rumo:seja um resto de recado,um fragmento de cançãoleve lembrança de alvura,ou sejas apenas a sombra

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de uma ternura. Pois algodas pontes – feitas de infânciae de amor – sempre perdura.

Como contra o sol, o vôode um pássaro cuja sombra

se projeta e vai cavando,bem de suave, um rastro eterno,no manso verde do mar.

Alguns tercetos de Thiago de Mello:

Cresce a erva do tempo, devagar,brota do chãoe me devora.

Esqueço sempre, mas o corpo lembra:em breveserá dezembro.

O corpo é um caminho:ponte, e neste efêmero abraçobusco transpor o abismo.

O mar, sempre desperto,na verde esperada barca mensageira.

O silêncio é um campoplantado de verdadesque aos poucos se fazem palavras.

O vento é o tempo:sopra varre levanta lambedesfaz o que foi feito.

Que verdades conhecia o morto?Quem estrangulousua palavra?

Tendo a ser, mas pouco:resta ainda um tempoque me espera e reclama.

Velho pássaro, este mundodorme como um meninoe se renova cada manhã.

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Cresce a erva do tempo, devagar,brota do chãoe me devora.

A ponte é um pássarode certeiro vôo: sua sombraperdura na lembrança.

Esqueço sempre, mas o corpo lembra:em breveserá dezembro.

O corpo é um caminho:ponte, e neste efêmero abraçobusco transpor o abismo.

O silêncio é um campoplantado de verdadesque aos poucos se fazem palavras.

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