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  • Texto n. 12

    0 trabalho cientfico basia-se em ideias preconcebidas e observa-es premeditadas

    [...] O mtodo experimental, considerado em si mesmo, nadamais que um raciocnio com a ajuda do qual submetemos meto-dicamente as nossas ideias experincia dos factos. [...]

    [...] uma ideia preconcebida sempre foi, e sempre ser, oprimeiro movimento de um esprito investigador. [...]

    [...] O metafsico, o escolstico e o experimentador procedemtodos por uma ideia a priori. A diferena consiste em que o esco-lstico impe a sua ideia como uma verdade absoluta que encon-trou e a partir da qual deduz, somente com a ajuda da lgica, todasas consequncias. O experimentador mais modesto, considera asua ideia, pelo contrrio, como uma questo, como uma interpre-tao antecipada da natureza, mais ou menos provvel, dondededuz logicamente consequncias que confronta, a cada instante,com a realidade, por meio da experincia. [...]

    A ideia experimental tambm, portanto, uma ideia a priori,mas uma ideia que se apresenta sob a forma de uma hiptesecujas consequncias devem estar submetidas ao critrio experi-mental, a fim de se poder ajuizar do seu valor. [...]

    [...] O experimentador no deve apegar-se sua ideia senocomo a um meio de solicitar uma resposta da natureza. Devesubmeter-lhe a ideia e estar pronto para a abandonar, modificarou transformar, segundo o que a observao dos fenmenos queprovocou lhe tiver mostrado.

    H, assim, duas operaes a considerar numa experincia.A primeira consiste em premeditar e realizar as condies daexperincia; a segunda, em verificar-lhe os resultados. No possvel instituir uma experincia sem ideia preconcebida; insti-tuir uma experincia, j dissemos, fazer uma pergunta; nuncase concebe uma pergunta sem a ideia que solicita a resposta. Con-sidero, pois, em princpio absoluto, que a experincia deve sersempre instituda em funo de uma ideia preconcebida, poucoimportando que esta seja mais ou menos vaga, mais ou menos defi-nida. Quanto verificao dos resultados da experincia, que no seno uma observao provocada, ponho igualmente como prin-cpio que deve ser realizada como qualquer observao, querdizer, sem ideia preconcebida. [...]

    Os que condenaram o emprego das hipteses e das ideias pre-concebidas no mtodo experimental erraram ao confundir a in-veno da experincia com a constatao dos seus resultados. correcto dizer ser necessrio constatar os resultados da expe-rincia com um esprito despojado de hipteses e de ideias pre-concebidas. Mas no possvel proscrever o uso das hipteses edas ideias quando se trata de instituir a experincia ou de imagi-nar meios de observao. Deve-se, pelo contrrio, dar livre curso

    8S8 imaginao; a ideia que o princpio de todo o raciocnio e

  • de toda a inveno, a ela que pertence toda a iniciativa. No sepoderia abaf-la, nem expuls-la, com o pretexto de que pode serprejudicial; no h seno que regul-la e fornecer-lhe um critrio,o que bem diferente.

    [...] a ideia em virtude da qual a experincia institudapode estar mais ou menos bem definida, segundo a natureza doassunto investigado e o estado de adiantamento da cincia noseio da qual se experimenta. Efectivamente, a ideia directriz daexperincia deve incluir tudo o que j se conhece sobre o assunto,a fim de guiar mais seguramente a pesquisa para os problemascuja soluo pode ser fecunda para o avano da cincia. Nas cin-cias j constitudas, como a fsica e a qumica, a ideia experi-mental deduz-se como uma consequncia lgica das teorias reinan-tes e est submetida, num sentido bem definido, ao controle daexperincia; mas, quando se trata de uma cincia na infncia,como a medicina, onde existem questes complexas ou obscurasainda no estudadas, a ideia experimental nem sempre surge comclareza de um assunto to vago. Que preciso ento fazer? Abs-termo-nos e esperar que as observaes, apresentando-se por simesmas, nos forneam ideias mais claras? Frequentemente, te-ramos de esperar muito tempo e at mesmo em vo; ganha-sesempre em experimentar. Porm, nestes casos, s nos poderemosguiar por uma espcie de intuio, segundo as probabilidades deque nos aperceberemos; e se o assunto est ainda completamenteobscuro e inexplorado, o fisiologista no dever sequer recear agirat um pouco ao acaso, a fim de tentar, seja-me permitido oemprego de uma expresso corriqueira, pescar em guas turvas.O que significa que pode ter a esperana de, entre as perturbaesfuncionais que produzir, ver surgir algum fenmeno imprevistoque lhe d uma ideia acerca da direco a imprimir s suas pes-quisas. Estas espcies de experincias de tacteio, que so extrema-mente frequentes em fisiologia, em patologia, em teraputica, porcausa do estado complexo e atrasado destas cincias, poderiam serchamadas experincias vara ver, porque so destinadas a fazersurgir uma primeira observao imprevista e antecipadamenteindeterminada, mas cujo aparecimento poder sugerir uma ideiaexperimental e abrir uma via de pesquisa.

    Como se v, h casos em que se experimenta sem propria-mente se ter uma ideia provvel para verificar. No entanto, a experi-mentao, nestes casos, nem por isso se destina menos a provocaruma observao; mas provoca-a com o objectivo de encontrar nelauma ideia que lhe indicar o caminho a seguir, ulteriormente, nainvestigao. Pode-se dizer que uma experincia desta natureza uma observao provocada com o objectivo de fazer nascer umaideia. [...]

    Dissemos anteriormente que o raciocnio experimental seexerce sobre fenmenos observados, quer dizer, sobre observaes;mas, na realidade, s se aplica s ideias que o aspecto de tais fen-menos despertou no nosso esprito. O princpio do raciocnio expe-rimental ser sempre, portanto, uma ideia que se torna necessrio 889

  • introduzir no raciocnio experimental para a submeter ao critriodos factos, ou seja, a experincia.

    Claude BERNARD, Introduction Vtude de Ia MdedneExprimentale (l.a ed., 1865); trad. portuguesa:Introduo Medicina Experimental, Lisboa, Gui-mares Edit, 1959, pp. 13, 41-43, 46-47, 51-52, 76(texto revisto, de acordo com o original francs,para este caderno).

    Texto n. 13

    a teoria que, pelas suas interrogaes, torna acessveis anlisecientfica os objectos (o exemplo da biologia)

    Aquilo que talvez mais profundamente transformou o estudodos seres vivos foi o acesso anlise de objectos novos. Mas nemsempre como consequncia do aparecimento de uma nova tcnicaque tenha vindo aumentar o equipamento sensorial. Antes comoresultado de uma mudana na maneira de olhar o organismo,de o interrogar, de formular as perguntas a que a observao deveresponder. Muito frequentemente, com efeito, tratou-se de umasimples mudana de iluminao aue fez desaparecer um obst-culo, que fez emergir da sombra algum aspecto de um objecto,uma dada relao at a invisvel. No foi um instrumento inditoque permitiu subitamente, em fins do sculo xvm, comparar apata do cavalo e a perna do homem e encontrar analogias de es-trutura e de funo. Entre a mo de PERNEL, aue criou a palavrafisiologia, e a de HARVEY, que tornou a circulao do sangue aces-svel experimentao, o escalpelo no mudou, nem de forma,nem de possibilidades. Entre aqueles que, ao longo do sculo XIX,se interessaram pela hereditariedade e MENDEL nada mais existeque uma leve diferena na escolha dos objectos de experincia,naquilo a que se presta ateno e sobretudo naquilo que se des-preza. E, se a obra de MENDEL permaneceu ignorada durante maisde trinta anos, foi porque nem os bilogos de profisso, nem oscriadores de gado, nem os horticultores estavam ainda em posiode adoptar a sua atitude. Aqueles que procuram Deus encontram--no, dizia PASCAL. Mas nunca se encontra seno o Deus que seprocura.

    Mesmo quando um instrumento vem subitamente aumentar opoder de determinao dos sentidos, ele representa semnre aaplicao prtica de uma concepo abstracta. O microscpio a reutilizao das teorias fsicas sobre a luz. E no basta verum corpo at a invisvel para o transformar em objecto de an-lise. Quando LEEUWENHOEK contempla pela primeira vez uma gotade gua atravs de um microscpio, encontra nela um mundo des-conhecido: formas que fervilham; seres que vivem; toda uma faunaimprevisvel que o instrumento, de um momento para o outro,torna acessvel observao. Mas o pensamento de ento no sabe

    8Ifi que fazer de todo esse mundo. No tem qualquer emprego a dar a

  • esses seres microscpicos, nenhuma relao para os ligar ao restodo mundo vivo. Essa descoberta permite apenas alimentar con-versas. Que seres assim to pequenos que a vista no conseguedistinguir pudessem viver, nadar, agitar-se, era, primeiro que tudo,algo que maravilhava toda a gente, algo que, caso ainda fossenecessrio, demonstrava o poder e a generosidade da natureza.Alm disso, era assunto de distraco para as salas de aula e paraos sales que se dedicavam cincia como divertimento. Final-mente, era tpico de escndalo para quem, como BUFFON, via nes-ses seres microscpicos uma espcie de ultraje a todo o mundovivo. Que uma gota de gua pudesse assim conter milhares decorpos vivos era um insulto a todos os seres e sobretudo ao maisnobre dentre eles. Quando, ao mesmo tempo, Robert HOOKE ob-serva um pedao de cortia ao microscpio, descobre a uma esp-cie de alvolos, aos quais chama clulas. MALPIGHI e outros encon-tram figuras semelhantes nos cortes de certos parnquimasvegetais. Mas no estavam aptos a tirar a mnima concluso acercada constituio das plantas. No final do sculo xvn, aquilo de quese tratava era de analisar a estrutura visvel dos seres vivos, e node os decompor em subunidades. O nico campo em que o pensa-mento estava apto a acolher as revelaes do microscpio era oda gerao. Os acontecimentos que acompanhavam a unio dassementes e o desenvolvimento do ovo tinham, at a, permanecidoocultos por falta de equipamento sensorial suficiente. Deste modo,quando LEEUWENHOEK e HARTSOEKER distinguem, no lquido es-permtico dos mais variados animais machos, animlculos quenadam febrilmente, estes encontram imediatamente um emprego.No o bom, no entanto, pois que durante muito tempo se procura,sobretudo, quer fazer desses animlculos os nicos artfices dagerao, quer, pelo contrrio, reduzir o seu papel ao de meroscomparsas. Para que um objecto se torne acessvel anlise nobasta aperceb-lo. necessrio que uma teoria esteja apta a aco-lh-lo. Na permuta entre a teoria e a experincia sempre a pri-meira que inicia o dilogo. ela que determina a forma da per-gunta, e portanto os limites da resposta. O acaso s favorece osespritos preparados, dizia PASTEUR. O acaso, aqui, significa quea observao foi feita por acidente, e no com o fito de verificaruma teoria. Mas a teoria, apta a interpretar o acidente, j l estava.

    Franois JACOB, La Logique du Vivant. Une Histoirede VHrdit, Paris, Gallimard, 1970, pp. 22-24(traduo portuguesa, revista para este caderno:A Lgica da Vida, Lisboa, Dom Quixote, 1971,pp. 28-30).

    841

  • mTEXTOS DE APLICAO

    Texto A

    Os inquritos e as anlises estatsticas, instrumentos da rupturacom as evidncias de senso comum e ideolgicas, condionecessria para a construo de explicaes cientficas

    [A familiaridade do social d origem j o sabemos a que o senso comum e as ideologias no encontrem dificul-dades para estabelecer quais so os factos sociais e paraos explicar com argumentos que se auto-apresentam comoevidentes. Os inquritos e a anlise estatstica dos dadosque atravs deles se obtm podem desempenhar um papel degrande relevo no processo de ruptura com essas evidn-cias, quer acerca dos prprios factos mediante a cons-tatao de que os factos sobre os quais o trabalho cien-tfico se ter de exercer so outros ou diferentes dos queo senso comum e as ideologias apresentam como eviden-tes , quer acerca das explicaes que, ao nvel do sensocomum ou da ideologia, igualmente se autodefinem em termosde evidncia. No entanto, seria ilusrio supor como sever nos textos B, C e D que o exacto significado dosdados estatsticos fica imediatamente determinado pelapura e simples constatao de resultados estatsticos.]

    As cincias sociais e as cincias da natureza tm por objectivocomum descobrir regularidades e detenninar critrios de signifi-cao. Verificam-se, no entanto, diferenas essenciais entre osdois campos de investigao. O mundo dos acontecimentos sociais muito menos visvel que o universo da natureza. A queda doscorpos, o quente e o frio, o ferro que enferruja, so coisas ime-diatamente evidentes, muito mais difcil darmo-nos conta de queas ideias sobre o bem e o mal variam de cultura para cultura;que os costumes podem ter uma funo diferente da que lhesatribuem as pessoas que os praticam; que os comportamentos deuma mesma pessoa podem ser muito diferentes no seu grupo fami-liar e num grupo profissional a que pertena. J a simples des-crio do comportamento humano, das suas variaes de grupopara grupo e das suas mudanas consoante as situaes, constituium vasto e difcil empreendimento. Esta tarefa que consisteem descrever, seleccionar e descobrir correlaes , so os inqu-rios que permitem lev-la a cabo. Todavia, ela prpria conduz,frequentemente, a deplorveis mal-entendidos. Com efeito, dif-cil descobrir uma forma de comportamento humano que no tenhasido j anteriormente observada. Por isso mesmo, quando, atravsde um inqurito, se verifica uma regularidade dominante (de certo

    1 Sendo cinco os textos de aplicao, a prpria prtica pedaggica dasdiferentes turmas indicar se ser mais vantajoso trabalhar sucessivamente

    8If2 sobre todos os textos ou apenas sobre alguns.

  • comportamento), muitos leitores reagem dizendo que tudo issoera evidente. Aparece assim, com muita frequncia, a ideia deque os inquritos apenas exprimem, dum modo complicado, ob-servaes que j eram evidentes para toda a gente.

    O leitor poder tomar mais facilmente conscincia desta atitudese tiver presentes algumas proposies que respondem a perguntasque muitos inquritos formulam e se, ao l-las, observar atenta-mente as suas prprias reaces. Apresento seguidamente umacurta lista de proposies deste gnero, fazendo-as acompanharde breves comentrios, para melhor evidenciar as reaces prov-veis de numerosos leitores:

    l.a Os indivduos com um nvel de instruo elevado apre-sentam mais sintomas psiconeurticos que aqueles cujo nvel deinstruo baixo. ( um facto frequentemente comentado a ins-tabilidade mental do intelectual, contrastante com a psicologiamenos sensvel do homem da rua.)

    2.a Durante o servio militar, os rurais mantm geralmenteum melhor moral no sentido de o moral das tropas queos citadinos. (Bem vistas as coisas, esto efectivamente habitua-dos a uma vida mais dura.)

    3.a Os soldados originrios do Sul dos Estados Unidos supor-tam melhor o clima quente das ilhas do Pacfico do que os solda-dos do Norte. (Evidentemente, os habitantes do Sul esto maishabituados ao calor.)

    4.a Os soldados rasos de raa branca tm mais aspiraes achegar a cabos ou sargentos que os soldados de raa negra. (Comono havia de ser assim, se a falta de ambio dos Negros quase proverbial?)

    5.a Os negros do Sul preferem os oficiais brancos do Sul aosdo Norte. (No do conhecimento geral que os brancos do Sultm uma atitude mais paternal para com os seus darkies?)

    6.a Os soldados americanos, na segunda guerra mundial, mos-travam-se mais impacientes por serem repatriados enquanto secombatia que aps a rendio alem. (No se pode estranhar queas pessoas no tenham vontade de se deixar matar.)

    Eis alguns exemplos de correlaes do tipo mais simples quaconstituem as pedras com que se constri uma sociologia em-prica. Mas, se elas so to evidentes, porque gastar tanto di-nheiro e energia para chegar a tais descobertas? No seria maissensato consider-las como dado e passar imediatamente a umtipo de anlise mais elaborado?

    Isto seria possvel se no houvesse que notar um pormenorinteressante a respeito da lista apresentada. que cada uma dasproposies que dela constam enuncia exactamente o contrriodos resultados realmente obtidos em inquritos. Na verdade, osinquritos efectuados levaram a concluir que o soldado de baixonvel de instruo estavam mais sujeito a neuroses que os de nvelde instruo elevado, que os habitantes do Sul no se adaptavammais facilmente ao clima tropical que os habitantes do Norte,que os negros eram mais vidos de promoo que os brancos, etc.

    Simplesmente, se tivssemos mencionado de incio os resul-tados reais desses inquritos, o leitor t-los-ia igualmente qualifi- 81fS

  • cado de evidentes. Asssim, o que evidente que h qualquercoisa que no funciona bem em todo este raciocnio (espontneo)sobre a evidncia. Seria, realmente, necessrio volt-lo do avesso,dado que, como se v, qualquer espcie de comportamento humano afinal concebvel como evidente, da maior importncia saberque comportamentos se produzem, de facto, mais frequentementee em que condies se verificam. S ento a cincia social poderavanar.

    Paul F. LAZARSFELD, The American Soldier: an Expo-sitory Review, in The Public Opinion Quarterly,XIII (3), 1949, pp. 378-380.

    Texto B

    O significado dos dados estatsticos depende dos quadros concep-tuais construtivos atravs dos quais so captados

    [Utilizando os dados respeitantes composio por pro-fisses da populao activa da Gr-Bretanha em 1955, dadosque constam do recenseamento geral da populao dessadata, G. H. COLE procurou traar o perfil da estrutura declasses do referido pas naquele ano. Com efeito, nenhumaindicao parece mais adequada para situar os indivduose os grupos na estrutura das relaes de produo e, porconseguinte, na das classes sociais do que a das respectivasprofisses. No entanto, ao autor depararam-se dificuldadesque, como o texto seguinte o revela, decorrem da forma comoos dados foram captados, ou seja, dos quadros concep-tuais utilizados na sua construo.]

    O nosso estudo deixou na sombra as importantes questestericas que levanta todo o esforo que se faa para religar asnoes de profisso e de classe social. Em certos casos, a profis-so do indivduo indica claramente a sua posio1 na estrutura declasses; por exemplo: operrio agrcola, carregador, mecnico delocomotiva, fiandeiro, tipgrafo, estivador, vendedor de comrcio,empregado bancrio, professor universitrio, perito-contabilista,director de mina, carteiro, rebitador, bispo, juiz de paz, almirante,varredor de ruas, parteira.

    Mesmo no interior destes grupos profissionais h diferenasde estatuto, assim como de rendimento, mas, utilizando aquelasdesignaes, damos pelo menos uma indicao geral respeitante classe social, ao mesmo tempo que profisso. Todavia, muitasdesignaes profissionais no proporcionam qualquer indicaoclara concernente classe social. o que sucede, no apenas quandono so suficientemente especficas por exemplo: quadro, ope-rrio ou empregado, sem qualquer outra referncia, mas tam-bm quando um certo termo correntemente utilizado em diver-sos sentidos diferentes ou quando uma profisso se estende sobrevrias classes sociais e no pode ser satisfatoriamente decom-posta com a ajuda de qualificativos que a precisem, de modo a

    844 distinguir nela subgrupos.

  • Padeiro, talhante ou alfaiate podem designar, quer umcomerciante, quer um operrio assalariado que efectua um tra-balho manual; engineer pode designar, quer um quadro intelec-tual formado numa das grandes escolas de Engenharia enge-nheiros civis, engenheiros mecnicos, etc. , quer um mecnicoqualificado trabalhando com metais.

    O outro tipo de dificuldades o que se refere a uma pro-fisso cujos membros podem pertencer a classes sociais muitodiferentes pode ser ilustrado com numerosos exemplos. O chefede estao de um grande entroncamento ferrovirio e o de umapequena estao de caminho-de-ferro situada num meio rural nopodem ser colocados na mesma classe social; outro tanto sucedecom os comerciantes em geral fou com os comerciantes de mer-cearias os comerciantes de tecido, os comerciantes de tabacos)e com os agricultores, os jornalistas, os artistas, os membros doensino. Corretor, representante e director de fbrica so outroscasos de profisses muito variveis que difcil decompor emgrupos correspondentes a classes sociais.

    G. D. COLE, La structure de classes de Ia Grande-Bre-tagne em 1951, in Cahiers Internationaux de Socio-logie, xvi, Paris, 1954, pp. 114-115.

    Texto C

    O que os dados estatsticos nos dizem depende das interrogaesa que os submetemos e das operaes que sobre eles efectuamos

    [ corrente dizer-se que os dados estatsticos falampor si mesmos afirmao errnea que, decerto, o texto Bj permitiu rectificar quanto a um primeiro aspecto, alisprimordial. Mostrou, com efeito, que aquilo que os dadosnos dizem depende do modo como procedemos para os cap-tar, isto , do modo como os construmos. Em rigor, todasas tcnicas de recolha de dados de que dispomos, quer nascincias da natureza, quer nas cincias sociais, so procedi-mentos de que nos podemos servir para conseguir que arealidade nos fale, nos diga mas atravs dos nossosprprios conceitos e operaes algo que responda s nossasinterrogaes. Assim, os dados ou os captados, con-forme LAING gostaria que dissssemos so efectiva-mente respostas a questes nossas, a perguntas que ns for-mulamos. Porm, essas respostas esses dados , umavez obtidas, podem, e devem, ser, por sua vez, objecto denovas interrogaes. Em primeiro lugar, porque os mesmosdados, quando submetidos a interrogaes diferentes, podemser levados a falar-nos de maneiras tambm diferentes,podem ser conduzidos a dizer-nos coisas muito distintas.E assim que, por exemplo, no caso do texto B, os mesmosdados podem responder, quer pergunta de economista:qual a composio por grandes categorias profissionaisda populao activa?, quer pergunta de socilogo: qual a estrutura de classes da sociedade? Em segundo lugar,porque consoante este texto C no-lo vai mostrar, ainda queem nvel de grande elementaridade, que nem por isso deixarde requerer algum esforo de reflexo a aceitao nointerrogada do que os dados parecem frequentemente dizer- 8If5

  • -nos faz correr o risco de acolher, como certas, respostaserradas, que, no entanto, interrogando de novo OS dadose sujeitando-os portanto a novas operaes, poderamos rec-tificar. Em suma, os dados estatsticos ou outros nofalam por si mesmos: ns que os fasemos falar.]

    Examinemos a comparao da idade com o facto de escutarmsica clssica, efectuada no quadro n. 1, proveniente de umestudo de Paul F. LAZARSFELD intitulado Radio and the PrintedVage:

    Percentagem de indivduos que ouvem msicaclssica, segundo a idade

    QUADRO N. 1

    ^ ^ - ~ ^ _ ^ ^ Idades

    (Nmero de casos)Ouvem msica clssica ...

    Menos de40 anos

    (603)64%

    40 anosou mais

    (676)64%

    Fonte: Paul F. LAZARSFELD, Radio and the Printed Page,Nova Iorque, Duell, Sloan & Pearce, 1940, p. 98.

    Em contrrio do que correntemente se supe, no se verificaneste quadro qualquer correlao entre a idade e o facto de ouvirmsica clssica. Incluamos, porm, na anlise o nvel educativodos indivduos como factor adicional. Obtm-se ento o quadron. 2:

    Percentagens de indivduos que ouvem msica clssica,segundo a idade e o nvel educacional

    QUADRO N.o 2^ - ^ Nvel educacio-

    ^ \ ^ ^ nnl e idade

    (Nmero de casos)Ouvem msica clssica ...

    Nvel educacional baixo

    Menos de40 anos

    (224)73%

    40 anosou mais

    (251)78%

    Nvel educacional elevado

    Menos de40 anos

    (379)6 1 %

    40 anosou mais

    (425)56%

    Fonte: vd. a do quadro n. 1.

    846

    A incluso do nvel educativo como factor adicional revela--nos que existe, efectivamente, uma certa correlao entre a idadee o facto de escutar msica clssica. Os indivduos com um nveleducacional elevado ouvem tanto mais frequentemente msicaclssica quanto mais avanada a sua idade (78 % contra 73 % ) ;mas sucede precisamente o contrrio com os indivduos de nveleducacional baixo: ouvem mais frequentemente msica clssicaos mais jovens (61 % contra 56 %). Se, no considerando o seu

  • nvel educacional, agrupamos os indviduos apenas segundo assuas idades, essas duas tendncias compensam-se reciprocamenteno conjunto, reduzindo a zero a diferena total, o que precisa-mente o que transparece no quadro n. 1.

    Encontramos uma situao anloga no quadro n. 3, extradode um estudo efectuado por Hadley CANTRIL com base nos dadosrespeitantes aos votos eleitorais pr ou anti-isolacionistas recolhidos e publicados, por ocasio da segunda guerra mundial,pelo Instituto Norte-Americano da Opinio Pblica:

    Percentagens de isolacionistas, segundo os diferentes nveis de rendimentoe as idades (Junho-Julho, 1940)

    QUADRO N. 3

    Idades

    Menos de 30 anos30 a 49 anos50 anos ou mais

    Total

    26%24%26%

    Nveis de rendimento

    Superior

    30%21%17%

    Mdio

    28%23%23%

    Inferior

    22%26%34%

    Fonte: Hadley CANTKIL, Gauging Public Opinion, Princeton, N. Y., PrincetonUniversity Press, 1944, p. 178.

    A julgar pela coluna do total, poderia concluir-se pela ine-xistncia de qualquer relao da idade com o facto de ser isola-cionista: com efeito, as percentagens variam nicamene de ma-neira insignificante (26 %, 24 %, 26 %). No entanto, examinandoseparadamente, para cada um dos trs nveis de rendimento con-siderados, a relao da idade com o isolacionismo, surge umaconcluso diferente. Na categoria de rendimentos superior, osjovens aparecem muito mais frequentemente isolacionistas queos indivduos de idade avanada (30% contra 17%); na cate-goria de rendimentos inferior verifica-se exactamente o contr-rio (22% contra 34%). Estas duas tendncias compensam-semutuamente na coluna do total, produzindo assim um falso tipode ausncia de correlao.

    Hans ZEIZEL, Say it with Figures, Nova Iorque-Lon-dres, Harper & Row, 5.a ed., 1968, pp. 123-126 (ver-so muito adaptada para este caderno).

    Texto D

    A correcta determinao do significado dos dados estatsticospressupe conhecimento do contexto social de onde foramcaptados

    [Nas cincias sociais recorre-se muito frequentementea anlises comparativas internacionais, que utilizam dadosestatsticos referentes a mltiplos pases. Este procedimentotem-se revelado muito fecundo e no h qualquer motivo que

  • obrigue a p-lo em causa enquanto tal. Sucede, e geralmentereconhecido pelos especialistas, que em muitos casos as com-paraes possveis se tm de considerar assaz grosseiras,devido nomeadamente a diferenas entre os quadros concep-tuais utilizados, nos diversos pases, para a sua construo.Noutros casos, porm, as comparaes podem ser, no apenasgrosseiras, mas enganosas, porque os dados disponveis,apesar de formalmente anlogos e portanto formalmente com-parveis, se revestem de significados muito distintos, queresultam de serem igualmente muito distintos os contextossociais as sociedades, digamos a que se referem. Otexto seguinte mostra precisamente, e este o ponto que aquiinteressa focar, que a correcta determinao do significadodos dados estatsticos pressupe conhecimento do contextosocial de onde foram captados.]

    [...] o pensamento tecnocrtico, baseando-se numa repre-sentao unvoca das fases e do sentido das transformaes so-ciais representao que supe extrada da prpria realidade ,consegue desse modo dotar-se de um meio para, de maneira tam-bm unvoca, hierarquizar as diferentes sociedades segundo o seugrau de desenvolvimento. Desta forma, fica inteiramente excludo,como se estivesse resolvido, o problema das condies e dos limitesda comparabilidade de sociedades distintas, uma vez que, reduzidaspor postulado as diferenas entre sociedades a meras desigualda-des de desenvolvimento, se dispe automaticamente de um padrouniversal para efectuar comparaes. Um mtodo como este des-tri, porm, o prprio objecto da comparao na sua significaocultural e na sua especificidade sociolgica, porquanto a compa-rabilidade s assim obtida custa de uma mutilao das reali-dades comparadas.

    [Seguidamente, os autores referem-se circunstnciade os estudos comparativos internacionais sobre desenvolvi-mento terem conduzido realizao de anlises comparativasda racionalidade dos sistemas educacionais dos diversospases, por se partir da hiptese de que existe uma relaoglobal entre o desenvolvimento do sistema econmico e o graude racionalidade do sistema educacional. E fazem notar queessa racionalidade definida tomando por modelo um sis-tema de educao que corresponderia, em condies ptimasde quantidade e qualidade e ao menor custo, composio daprocura efectiva de educao proveniente do sistema econ-mico. Examinam ento alguns dos indicadores mais frequen-temente utilizados da racionalidade assim definida.]

    Um indicador estatstico aparentemente to unvoco como apercentagem (por exemplo, no conjunto da populao activa) dediplomados de cada nvel em cada ramo do ensino no pode sercorrectamente interpretado (quando se efectuam comparaesentre pases) dentro da lgica puramente formal das equivaln-cias jurdicas internacionais dos diplomas. Com efeito, o rendi-mento econmico e social dos diferentes diplomas depende da suarelativa escassez (ou abundncia) na respectiva sociedade, bemcomo da posio e do peso relativo conferidos por esta ltima a

    8If8 cada subcategoria de diplomados. Assim, nos pases onde a taxa

  • de analfabetismo muito elevada, o simples facto de se saber lere escrever e, por maioria de razo, o ter obtido um diploma deestudos primrios bastam, s por si, para assegurar uma vanta-gem decisiva na competio profissional. Quanto a este ponto, aArglia constitui, confrontada com a Frana, um exemplo privi-legiado, devido equivalncia formal, do ponto de vista jurdicodos correspondentes sistemas e diplomas universitrios. Naquelepas, onde 57 % dos indivduos no dispem de qualquer diplomade ensino geral (estudos primrios) e 98 % de nenhum diploma deensino tcnico, a posse de um C. A. P. ou de um C. E. P.8 pro-porciona uma extraordinria vantagem na competio econmica:uma diferena de nvel nfimo como, por exemplo, a que separaum indivduo que sabe ler de um outro que sabe ler e escrever,diferena que pode resultar de apenas mais um ano de escolariza-o, determina uma diferena extraordinariamente maior no quese refere s oportunidades individuais de xito social. Resultamdaqui diversas consequncias: em primeiro lugar, as barreirascriadas pelas diferenas de instruo so muito mais fortementedemarcadas que nas nossas sociedades (isto , digamos, emFrana), sobretudo no sector das actividades modernas, onde, poraquele motivo, a progresso na hierarquia somente se opera porsaltos; em segundo lugar, os indivduos portadores de um di-ploma de ensino tcnico em geral e, mais amplamente, os traba-lhadores qualificados e altamente qualificados beneficiam de umprivilgio incomparvel: de um s golpe, so arrancados massados desprovidos de toda e qualquer qualificao e, visto no so-frerem concorrncia, dispem de todo um conjunto de garantias,seguranas e vantagens. Os principais beneficirios deste meca-nismo, atravs do qual uma parte diminuta da populao sepa-rada da grande massa, so evidentemente os indivduos possui-dores de diplomas: em razo do seu pequeno nmero, no se lhesdeparam dificuldades para ocupar todas as funes nobres, es-pecialmente os empregos administrativos, e o prestgio ligado aessas funes vem duplicar o que a sociedade onde vivem concedetradicionalmente aos letrados. O estilo de vida e a prpria exis-tncia desta sub-inteligentzia de pequenos burocratas, funcion-rios ou empregados, que adopta os sinais exteriores do intelectua-lismo e se serve frequentemente da sua competncia como de umatcnica carismtica, pressupe uma sociedade entregue ao analfa-betismo e mal informada acerca do cursus escolar e das hierar-quias que lhe esto associadas. V-se neste exemplo o que a com-parao abstracta dos produtos dos sistemas educacionais desociedades diferentes tem de fictcio: esquecer o contexto socialbasta para tornar iguais coisas desiguais e desiguais coisas iguais.

    Similarmente, levando em conta no s que as sociedades tra-dicionais excluem geralmente as mulheres da escolaridade, mas,outrossim, que a utilizao de todas as capacidades intelectuais

    8 C. A. P. = Certificai cTAptitude Professionnelle (diploma que sancionauma formao de trs anos obtida, aps os estudos primrios, num collgefenseignement technique, anlogo s escolas tcnicas portuguesas). C. E. P. == Certificai d'tudes Primaires. (Nota da traduo.) 81/9

  • (e, portanto, tambm das femininas) necessria ao desenvolvi-mento, e bem assim que a entrada das mulheres nas profissesmasculinas uma das principais transformaes sociais que acom-panham a industrializao, pode-se ser tentado a utilizar a taxade feminizao das universidades (percentagem de mulheres nototal da populao estudantil universitria) como um indicadorglobal da racionalidade e do desenvolvimento do sistema educa-cional. Na realidade, porm, a carreira escolar que as naes maisricas proporcionam s raparidas , frequentemente, apenas umavariante mais cara e luxuosa da educao tradicional: os exemplosda Frana e da Itlia, cujas populaes estudantis universitriasse apresentam fortemente feminizadas, mostram que uma percen-tagem muito elevada de raparigas entre os estudantes nos nodeve iludir: as percentagens de estudo inacabados e de vocaesmal definidas so muito maiores entre as alunas do que entre osalunos das universidades; alm disso, e em termos mais gerais,so numerosas as alunas acerca das quais se apercebe, de ml-tiplas maneiras, que no acreditam no seu futuro profissional.Por outro lado, evidente que uma baixa taxa de feminizaonum pas mulumano, cuja tradio exclua radicalmente dosestudos as mulheres, pode recobrir uma alterao culturalmuito mais importante que uma taxa significativamente maiselevada num pas como a Itlia, onde a escolaridade feminina,nada tendo de revolucionrio, se pode estender largamente, semtodavia implicar uma transformao do papel tradicional damulher. [...]

    Outro exemplo: quando se mede o rendimento do sistemaeducacional utilizando o indicador aparentemente mais especficoque a taxa de desperdcio indicador que se define como apercentagem dos estudantes que, relativamente ao total dos queem dado ano se matricularam pela primeira vez, no vm a obtero diploma com vista ao qual se inscreveram , no se deve igno-rar que a significao dessa taxa depende do contexto pedaggicoe institucional, assim como das funes que a sociedade globalconfere ao sistema educacional. No basta, por exemplo, contrapora elevada taxa de desperdcio das universidades francesas (40 %) fraca taxa de desperdcio das universidades inglesas (14 %) einvocar o desigual rigor da seleco entrada nas universidadesnos dois pases; com efeito, apesar de ter, como o ingls, umaseleco entrada, o sistema americano tem, como o francs, umataxa de desperdcio de 40 %, o que se explica como resultanteglobal dos diferentes rendimentos escolares de numerosas univer-sidades desigualmente selectivas e fortemente diversificadas. Poroutro lado, o diploma no constitui, s por si, um critrio adequadopara avaliar a rentabilidade social dos estudos: um sistema muitoaberto, como o francs, que apenas leva 60% dos estudantes aconcluir os estudos comeados, no tem forosamente um rendi-mento social inferior ao de um sistema muito fechado, como oingls, que decerto leva a terminar os seus estudos quase todos osestudantes nele admitidos, mas que, em contrapartida, impederadicalmente aos alunos recusados o acesso a essa quase escolari-

    850 dade superior (frequentar cursos superiores, sem, no entanto, os

  • concluir) que caracterstica dos sistemas mais abertos. [...]Ora, desde a segunda guerra mundial, os empregos em que justa-mente podem encontrar ocupao os semidiplomados ex-univer-sitrios tm-se multiplicado, devido ao crescimento do sector ter-cirio nos pases industrializados.

    Pierre BOURDIEU e Jean-Claude PASSERON, La compa-rabilit des systmes d'enseignement, no vol. orga-zado por Robert CASTEL e Jean-Claude PASSERON,ducation, Dveloppement et Dmocratie, Paris,Mouton, 1967, pp. 22-27 (verso adaptada).

    Texto E

    A interrogao fecunda da realidade, com vista sua explicao,exige a construo de esquemas tericos

    [Discorre-se hoje muito acerca da juventude, no rara-mente atribuindo ao que se designa por a juventude dehoje caractersticas idnticas ou muito semelhantes s deuma juventude de todos os tempos. Por vezes, pelo contr-rio, afirma-se que a juventude de hoje muito diferenteda dos outros tempos. No possvel a anlise sociolgicadas atitudes, comportamentos, grupos e movimentos sociaisjuvenis sem previamente romper com o pressuposto ideolgicofundamental de tais discursos: o pressuposto de que, emcada sociedade, em cada momento histrico, a juventude suma. Visando desmontar esta noo ideolgica de juventude,a anlise sociolgica tem precisamente de proceder a partirdo reconhecimento de que a diferenciao da estrutura socialem distintas classes, fraces de classe, estratos, meios sociais por exemplo: meios urbanos, meios rurais, meios uni-versitrios, etc. implica profundas clivagens sociais nascategorias demogrficas jovens, conduzindo formao eexistncia simultneas de mltiplas juventudes, cujas carac-tersticas se revelam muito diversas e frequentemente con-traditrias. Mas a ruptura com a ideologia apenas o pri-meiro passo para que a anlise sociolgica se torne possvel.No basta, com efeito, identificar diferentes tipos de juven-tude: jeunesse dore, juventude intelectual revolucionria,juventude camponesa tradicional, juventude delinquente debairros ricos, juventude delinquente de bairros pobres, etc. indispensvel que, para cada um desses tipos de juventude,se construam, inicialmente a ttulo de hipteses, esquemastericos que, relacionando as suas caractersticas com as dosrespectivos contextos sociais, aventem explicaes lgicas dasprimeiras em funo das segundas. E ser a partir de taisesquemas que depois se faro realidade as interrogaesdestinadas a verificar se essas explicaes resistem ou no prova dos factos. No texto seguinte, cujo carcter embrio-nrio se sublinha, tenta-se exactamente esboar insista-seem que se trata apenas de esboar um esquema dessanatureza referente jeunesse dore, denominando-o de mo-delo emprico porque na sua construo se recorreu muitomais a informaes empricas, recolhidas atravs de obser-vao directa, do que a conceitos e quadros tericos decor-rentes de uma prvia teoria sociolgica geral.]

    0 alto padro de vida e o elevado nvel de despesa que ajeunesse dore revela no parecem deixar dvidas acerca da sua 851

  • filiao social. Trata-se, manifestamente, de uma juventude en-quadrada nas mais elevadas fraces de classe da sociedade, Dis-pomos, assim, de uma primeira referncia para a situar sociolo-gicamente. A partir desta, outras podem ser encontradas. Arti-culando num esquema lgico como tentaremos fazer, ainda queapenas sob a forma de mero esboo no formalizado e provisrio essas vrias referncias, poderemos construir o modelo empricode uma determinada situao (e da sua dinmica funcional), a fimde verificar em que medida um tal modelo susceptvel de nosajudar a interpretar o tipo de comportamentos juvenis conside-rado.

    Ora, dado que estamos perante jovens ligados s mais ele-vadas fraces de classe da sociedade, uma segunda referncia,que se afigura essencial, diz respeito a um certo sistema de rela-es interfamiliares, que parece caracterstico dessas categoriassociais burguesas, aristocratizadas ou de estirpe propriamentearistocrtica, pelo menos num grande nmero de pases. Essesistema sustentado por uma estreita rede de laos de parentesco,de interesse e de convvio que ligam entre si as grandes famlias.Alis, por vezes, estas designam-se umas s outras por as fam-lias conhecidas e so, de facto, as famlias que mutuamente seconhecem e reconhecem como fazendo parte de um certo meio.

    No conjunto, constituem indiscutivelmente um meio sodaiextremamente bem caracterizado e demarcado, cujas fronteirascom o exterior ou seja, com as outras camadas sociais apa-recem perfeitamente ntidas queles que lhe pertencem. So, deresto, simbolizadas ao nvel dos comportamentos quotidianos por detalhes que, vistos de fora, se poderiam julgar insignifi-cantes 9, mas que se revelam, pelo contrrio, carregados de signi-ficao a quem, de dentro, os sabe ler e interpretar como sinaisde distino e de pertena ao meio.

    Uma das funes bsicas da educao familiar, tal como elaa se concebe, reside precisamente em inculcar criana e ao ado-lescente os princpios, modelos e normas que lhes ho-de permitir,no apenas distinguir-se e identificar-se claramente como membrosdo meio, mas tambm fazer sem hesitao a triagem entrequem do meio e quem no o . O manejo, nessa educao, denoes muito simples, mas fortemente pejorativas como as deordinrio e vulgar, para qualificar tudo o que, nos usos,costumes, actos e gostos de terceiros, se revele contrrio s nor-mas do meio parece facilitar singularmente a consecuo da-quela finalidade, uma vez que se afigura especialmente favorvel formao, na criana e no adolescente, de um grande nmero de

    9 Coisas como: darem-se as mulheres, ao saudarem-se, um s beijo naface, e no dois; usarem-se certas particularidades vocabulares; o beija-mo,mas s em determinadas circunstncias rigorosamente convencionadas; ostipos de tecidos e padres adoptados no vesturio masculino; a afectao davoz feminina, por exemplo atravs da infantilizao da pronncia e alonga-mento das vogais tnicas, nas jovens, ou mediante colocao num registoartificialmente grave e mesmo um pouco rouco, nas mulheres de mais

    852 idade, etc.

  • mecanismos, bem dirigidos e estabilizados, de rejeio psicolgica,cultural e social de tudo o que pejorativamente qualificado pelomeio. Assim, atravs da educao, o meio procura preservar--se da indistino10, proteger-se contra todo o possvel esbatimentono traado das suas fronteiras, banir o risco que lhe viria da pos-sibilidade de entradas ou sadas no rigorosamente controla-das; numa palavra: procura perpetuar a sua unidade, sem perigode que as novas geraes a comprometam. Ora neste aspecto queo sistema de relaes interfamiliares a que acima nos referimosparece desempenhar um papel que se afigura de excepcional im-portncia.

    Do ponto de vista que aqui nos interessa, o essencial parececonsistir em que, atravs desse sistema, as famlias enquadramespontaneamente os seus filhos num bem definido crculo socialque, se, por um lado, suficientemente amplo para, ao mesmotempo, lhes evitar, em princpio, a necessidade de procurar con-tactos e relaes no exterior e lhes consentir uma larga margemde liberdade na escolha dos seus afectos e companhias, por outrolado encontra-se suficientemente vigiado e controlado pelo con-junto das famlias (ou seja, pelo meio) para que eventuais pro-penses para a evaso, ou para usar indevidamente daquela liber-dade, possam ser facilmente detectadas e provoquem adequadasreaces neutralizantes. Simplesmente, de supor que o prprioalto nvel de despesa facultado por muitas famlias do meio aosseus filhos tende naturalmente a separ-los dos demais jovens,quer porque alimenta um padro de vida que estes no podem adop-tar e que, por conseguinte, contribui para os excluir do crculosocial onde aqueles evoluem, quer porque frequentemente estabe-lece uma tal diferena de condies e de hbitos entre os jovensdo meio e os outros, que relaes durveis de carcter pessoalentre aqueles e estes se podem tornar, para ambas as partes, muitopouco satisfatrias e relativamente impraticveis. Deste modo,ser sobre um conjunto de jovens que j de si mesmos tendem em consequncia de uma determinada educao e de um de-terminado nvel e estilo de vida a confinar-se num crculo derelaes sociais particularmente selectivo que ir ainda incidiruma aco colectiva espontnea (isto , que faz parte dos costu-mes normais do meio), da qual resulta enquadramento e con-trole pelo conjunto das famlias e acentuao da tendncia da-queles jovens para o confinamento social.

    O suporte sociolgico basilar de uma tal aco represen-tado, tudo o sugere, pela densa teia de relaes de parentesco ede convvio, que, ligando entre si as famlias, ligam tambm osseus filhos, facultando-lhes desde baixa idade uma convivncianumerosa, optativa e, no entanto, socialmente muito homognea,pois que limitada a crianas e adolescentes do prprio meio. Poroutro lado, a densidade daquelas relaes d motivo tambm

    10 O que leva, de resto, a fazer evoluir as suas normas, a fim de que adistino se mantenha, quando outras camadas sociais, demasiado prximasdo meio, copiam e adoptam alguma das normas que anteriormente eramexclusivas deste ltimo. 85S

  • tudo o indica a que se estabelea, no meio, um permanentecircuito interfamiliar de informao, atravs do qual cada umadas famlias recebe das demais indicaes que de outro modo lhefaltariam e que lhes permitem acompanhar e julgar a evoluomoral e social dos seus filhos. Essa informao seria, porm, rela-tivamente escassa e insegura no caso de a vida social dos jovensse no concentrar, em escala muito sensvel, no prprio quadrofsico do meio. O meio necessita, por conseguinte, de que umatal concentrao se efectue.

    Trs instituies fundamentais11 as festas, as frias ecertos colgios femininos (um pouco tambm, mas, ao que parece,menos, alguns colgios de rapazes) correspondem precisamentea essa necessidade. As festas e as frias so actividades sociaiscujos aspectos ldicos mais evidentes encobrem decerto outrasfunes de muito maior relevncia que efectivamente desempe-nham. As primeiras, organizadas ou controladas pelas famlias(mais exactamente, pelas mes), renem regularmente e comgrande frequncia, ao longo do ano, nas residncias familiares desucessivas jovens do meio, um nmero considervel de rapazese raparigas. As segundas estabelecem um convvio mais intensoe demorado em grupos de jovens de ambos os sexos que umamesma famlia convidou para a sua casa de campo ou de praia,ou cujas famlias se instalaram, para o veraneio, junto umas dasoutras. Em conjunto, tanto daquelas como destas resulta segura-mente que a vida social dos jovens se tende a concentrar noprprio quadro material do meio, o que, a suceder, torna poss-vel s famlias manterem colectivamente os seus filhos quase per-manentemente sob observao. Por outro lado, do certamentelugar a que os jovens do meio se conheam melhor, criem econsolidem relaes, estabeleam intercmbios de afecto e esco-lham livremente parceiro para um futuro casamento endogmico.Exercem, sendo assim, funes de controle social do meio so-bre os jovens e de preservao da unidade e continuidade do pr-prio meio

    Certos colgios femininos, no raro intencionalmente criadospara educar as jovens do meio, constituem, segundo toda averosimilhana, como que a placa giratria deste sistema de rela-es e actividades, mediante o qual, como atravs de outros pro-cessos sociais a que em parte j aludimos, o meio naturalmentese controla e preserva. Com efeito, se o contedo da educao aministrada importante, pois que confirma e refora, em termosabsolutos de moral, religio e cultura, os modelos, normas, valorese projectos prprios do meio, no menos importante se afigurao denso ncleo de relaes femininas juvenis que neles se forma.Para as festas ou frias em suas casas, as jovens convidam, noapenas, como lgico, as suas amigas de colgio, mas tambm osrespectivos irmos, primos ou amigos, que alis tiveram provavel-mente ocasio de conhecer quando foram convidadas para festas

    11 Em relao ao meio, trata-se verdadeiramente de instituies, naacepo antropolgica do termo.

  • ou frias em casa daquelas. Desta sorte, o colgio funciona, supo-mos, como ncleo dinmico de um amplo processo de aproximaoe relacionao dos jovens de ambos os sexos dentro do meio,ou, melhor, dentro do prprio quadro fsico do meio. , por-tanto, de admitir que, sociologicamente, o colgio, desde que fre-quentado essencialmente por jovens do meio, se transforma elemesmo num dos elementos mais importantes daquele quadro,transformando-se, do mesmo passo, num dos elementos mais im-portantes do sistema de controles socioculturais de que o meioespontaneamente se dota e que lhe permitem defender e assegurara sua unidade, distino e continuidade.

    Eis a o esboo de modelo emprico que procurvamos cons-truir a respeito da situao de certa categoria de jovens na socie-dade, considerada em alguns aspectos essenciais, tanto da suacondio especfica de jovens, como da sua condio de membrosda estrutura social. No cremos necessrio demonstrar longa-mente que a jeunesse dore, donde partimos para o construir, cor-responde ao tipo social de comportamento juvenil que nos serlcito esperar que surja de tal condicionalismo, no caso de este semanter e operar na sociedade, sem que factores exgenos ao meioperturbem seriamente o seu funcionamento ou alterem substancial-mente quaisquer dados importantes da sua estrutura ou do seu en-quadramento social. Com efeito, recorrendo a um conceito-chaveutilizado por Erik ERIKSON, somos levados a deduzir que, dentroda situao configurada no modelo, o jovem se encontra social-mente condicionado para no ter de enfrentar uma crise de iden-tidade 12 ou seja, que, tal como o jovem burgus ou o moo fi-dalgo de outrora, ele se acha desde o princpio identificado pelomeio homogneo em que evolui e desde muito cedo a si mesmose identifica, em termos suficientemente claros: e sabeque , tanto para o meio como para si prprio, um jovem domeio, predeterminado a ocupar e a dar continuidade s posiesde poder e prestgio que o meio detm na sociedade. Por outraspalavras: tudo lhe est propiciado, no meio, para no ter de seinterrogar acerca do mundo social que o rodeia (um mundo quede certo modo ele v do alto), nem, por conseguinte, acerca de simesmo como membro da sociedade, da sua posio e funo dentrodela, isto , da sua identidade.

    O tempo liberto de responsabilidades sociais directas (fa-miliares, profissionais) que lhe concedido, logicamente no pode,por conseguinte, revestir-se para ele, salvo por excepo, do sig-nificado, que ter para outros jovens, de um perodo de busca eadopo de imagens, valores e projectos a assumir como prprios

    12 Se quisssemos situar-nos em perspectiva estritamente sociolgica,diramos: o jovem no tem de enfrentar uma situao anmica. Entenda-seporm, que nos referimos aqui ao conceito de anomia tal como o utilizaTalcott PARSONS (Essays in Bociologicl Theory, edio revista, Free Pressof Glencoe, 1954, cap. vn): situao social em que os indivduos se encontramperante uma indeterminao de objectivos, uma incerteza das normas de con-duta, um conflito de expectativas, uma privao de referncias a smbolosbem definidos e estveis. A obra fundamental de Erik H. ERIKSON a seguinte:Adolescence et Crise. La Qute de Vldentit, trad. do ingls, Flammarion, 1972. 855

  • e caracterizadores da sua identidade. Que poder ento ser se-no um tempo de despreocupado desfrute da sua mesma liber-dade provisria? Evidentemente, no ficam excludos, assim,eventuais conflitos entre jovens e adultos no interior do meio,dado que este s pode consentir queles liberdade na medida emque ela se restrinja s formas e aos limites compatveis com a suaunidade, distino e perdurabilidade. Mas tratar-se- precisa-mente de conflitos acerca de normas interiores ao meio e, porisso, desprovidos de alcance ideolgico ou poltico para a sociedadeglobal.

    A. SEDAS NUNES, Sociologia e Ideologia do Desenvol-vimento, Lisboa, Moraes Edit, 2.a ed., 1969, pp. 105-110 (verso adaptada).

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