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E preciso aprender a conversar com as bonecas

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Quem vê e ouve aquela mulher batendo um papo legal com bonecas pode pensar que se trata de uma doida. Aparentemente só doido faria isso. E, no entanto, de doida Izabel Terezinha Croth não tem nada, ao contrário, tem é muita sensibilidade. A sensibilidade de quem já criou, desenhou, fez, vestiu e desvestiu para tornar a vestir para mais de cem mil bonecas. Isso mesmo. Para se ter uma ideia, cem mil bonecas representariam, no mínimo, uma cidade de bonecas com pouco mais da metade da população de Atibaia. Já se viu que a intimidade de Terezinha, como é chamada, com as bonecas é de unha e carne. “Converso com elas sim. Às vezes até choro quando elas vão embora...”, confirma.

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E preciso aprender a conversar com as bonecas

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Quem vê e ouve aquela mulher ba-tendo um papo legal com bonecas pode pensar que se trata de uma doida. Aparentemente só doido fa-

ria isso. E, no entanto, de doida Izabel Terezi-nha Croth não tem nada, ao contrário, tem é muita sensibilidade. A sensibilidade de quem já criou, desenhou, fez, vestiu e desvestiu para tornar a vestir para mais de cem mil bonecas. Isso mesmo. Para se ter uma ideia, cem mil bonecas representariam, no mínimo, uma ci-dade de bonecas com pouco mais da metade da população de Atibaia. Já se viu que a inti-midade de Terezinha, como é chamada, com as bonecas é de unha e carne. “Converso com elas sim. Às vezes até choro quando elas vão embora...”, confirma.

Terezinha é a maior “bonequeira” - se é que exis-te o termo - da cidade, da região, ou do Estado. Tal-vez do país. E já não se diga do mundo porque, nesse mundo doido pode até haver pessoa mais doida que ela, cuidando de criar, vestir, fazer bonecas e bone-cos que vão encantar e alegrar a vida de milhões, tal-vez bilhões de crianças nesse mundo tão adulto e às vezes tão insensível.

Tem-se a impressão de que Atibaia inteira conhe-ce Terezinha, a “bonequeira”, pois lida com bonecas há mais de trinta anos. “O começo? Foi quando me encantei com umas bonecas que vi num shopping lá em São Paulo. Logo pensei em enfeitar o quarto das minhas filhas, então quase recém-nascidas. Fiz um curso lá na capital e estou nessa vida até hoje. Quan-do as amigas vinham em casa, viam as bonecas fica-vam naquela “pedição”, faz uma pra mim, faz uma pra mim. Fui fazendo. Fiquei 23 anos no Casarão, ali

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na Praça da Matriz. Minha loja se chamava: “Dama Antiga- Bonecas”.

Não foi fácil aprender a “bonecar” – se é, também, que exista o termo. “Eu já morava em Atibaia e tinha que deixar meus filhos Marcos Cesar, hoje gerente de banco em São Paulo; Tatiana Regina, hoje psicó-loga e Ana Paula, hoje bancária. para aprender a fa-zer bonecas lá na Capital.” E sabem porquê sua loja se chamava “Dama Antiga”? Porque esse era o nome da primeira boneca que Terezinha teve na vida.

E é neste momento que Terezinha entra em sua própria história. “Isso de fazer bonecas talvez tenha sido um pouco por desrecalque. Como toda menina eu sempre quis ter uma boneca, mas era só sonho. As coisas eram bem difíceis no meu tempo de criança lá em Rio Claro, onde nasci. Só fui ganhar a “Dama Antiga” quando tinha 8 anos. Guardo até hoje.”

Dia destes apareceu uma cliente em sua loja pe-dindo que ela consertasse uma “Dama Antiga” igual à sua. “Consertar não, eu dei uma renovada. Era uma boneca de 55 anos. Arrumei, lavei, fiz um ca-belo novo, roupas novas, quando a dona veio buscar nem reconheceu. A boneca havia pertencido à sua avó.”

Terezinha confessa que sua “Dama Antiga” está guardada, “Está sem roupa, peladinha, a coitada, dentro de uma caixa. Fico triste comigo mesma. Um pedaço da minha infância largado, jogado. Qualquer dia eu dou um jeito nela.” Escondendo uma lágrima conta que casou-se com José Carlos Croth, e o casal teve três filhos. “Meu marido trabalhava na CESP, uma empresa de eletricidade que operava em todo o Estado e nós éramos obrigados a mudar de cida-de constantemente. Parecíamos ciganos, íamos de lugar para lugar, Rio Claro, Franco da Rocha, Caiei-

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ras, Atibaia, Franco da Rocha, de novo, Atibaia final-mente...”

Já não aguentando tanta mudança ela ri quando fala de Franco da Rocha. “A cidade tinha muitos lou-cos. Abrigava um manicômio e vez por outra alguns doentes escapavam e ficavam pelas ruas. Era comum viaturas do hospital passarem pelas ruas avisando: “Tem um doente mental nas ruas. Ele não é agres-sivo, mas convém tomar cuidado”, anunciavam. E todo mundo se assustava...”

Um dia o “Casarão”, local que abrigava as artes e tantas coisas bonitas que artesãos da cidade produ-ziam acabou fechando. “Um grupo de artistas deci-diu ficar em um espaço ali atrás da igreja. Fui, mas fi-quei pouco tempo, pois o espaço era muito pequeno. Resolvi então trabalhar em casa fazendo bonecas para vender nas lojas. Não gostei, pois tinha jornada tripla... Um dia eu passei aqui na rua José Lucas e vi este lugarzinho agradável e resolvi ficar. Já estou há três anos. Faço bonecas, faço pintura, faço as roupi-nhas, vestidinhos. Adoro isso.”

As crianças de hoje são bem diferentes, reclama ela. “A internet diminuiu o gosto das meninas pelas bonecas. Além da Barbie, tão famosa sempre, surgi-ram novas ideias, mas a Barbie nunca cai de moda. Eu já não quero trabalhar tanto, já fiz demais. Gra-ças a Deus nunca dependi disso para viver. Mas deu até para comprar um carrinho que eu tanto queria”, ri. E faz questão de mostrar “o carrinho” parado à porta da loja. É um “carrinho” importado, um luxo...

As bonecas mais caras que já fez foram as “Damas Antigas”, vendidas a 115, 120 reais. “Por incrível que pareça, minhas bonecas quase sempre são mais ba-ratas que aquelas vendidas nas lojas. E, modéstia à parte, as minhas são muito mais bonitas...” Todo

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mundo concorda.Tablets, internet, celular, a criançada não quer

mais saber de bonecas. “Fiquei feliz um dia destes quando uma neta minha me pediu uma Barbie”, sor-riu. Quem atrapalha mais? “Os pais. Os pais se es-quecem que criança é criança, não é adulto. Criança tem que ser criança para não se sentir criança quan-do for adulta.”

Como já se disse, Terezinha conversa com suas bo-necas. “Quando eu gosto muito de uma boneca que fiz, fico rezando para ninguém comprar. Já cheguei a fazer bonecas e colocar bem escondidas na vitrine para ninguém ver e comprar. Tem cabimento uma coisa dessas?” E vem a história que prova e compro-va o que ela está dizendo. “Lembro uma vez, quando ainda estava lá no Casarão e fiz uma “Dama Antiga” linda de morrer, vestida com toques e paramentos de uma bailarina espanhola. Tão linda que fiquei apai-xonada por ela. Coloquei a boneca na vitrine com um cartaz ao lado: “Esta boneca é a mascote da loja e não está à venda”. Um dia chegou um senhor muito bem vestido, olhou para a boneca e perguntou num portunhol muito enrolado: “Quanto usted quiere por esta muñeca?” Eu respondi: “Meu senhor, essa boneca não está à venda.” Mas ele insistiu: “Todavia se a senhora quisiera vender quanto custaria?” Para não ser mal educada eu falei que a boneca custaria um X. Um X que seria o dobro da boneca mais cara que eu já tinha feito na vida. Pois o senhor tirou a carteira do bolso, juntou todo o dinheiro que eu ha-via dito e disse: “É minha. Voy a llevar para mi espo-sa...” Eu ainda tentei insistir e dizer que não e não, mas ele disse: “Estoy pagando lo que usted disse que valeria...”. E levou a boneca... Juro que fiquei cho-rando quando ela foi embora...

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Terezinha tem tantas historinhas... “Eu dava aula no Casarão e nós ficávamos numa sala pequena , am-biente fechado, quase sem ventilação. Comprei um tipo de algodão errado, que deixava alguma coisa no ar que “pinicava” o nariz da gente, não sei explicar. Todo mundo espirrava e passava mal. Resolvi com-prar umas máscaras dessas que se usa nos hospitais e todo mundo começou a usar. Eu lembro que meu marido resolveu brincar e fez um desenho muito le-gal no computador, onde estava escrito: “Materni-dade das bonecas”. A gente colocou esse desenho na entrada da sala de aula. Um dia um casal entrou na sala olhou e viu todo mundo usando máscaras, ficou encantado. Tiraram fotos, inclusive do desenho e da inscrição “Maternidade das bonecas” e o comentá-rio foi: “Vocês levam à risca o que fazem...” Sim, com aquelas máscaras, parecia que as mulheres que fre-quentavam o curso estavam parindo as bonecas na-quela sala. Demoramos para entender o que o casal disse, depois todo mundo caiu na gargalhada.”

Outra historinha vivida por Terezinha? “Eu fiz um “pierrô” muito bonito. Vestido de um azul, lin-do. Pensei: vai vender na hora que for para a vitrine. Vendeu nada. O tempo passava e ele ficava. Vendia de tudo e o “pierrô” não saia. Um dia eu cismei, ti-rei o babado do “pierrô”, reformei tudo coloquei um material bem mais colorido. Para mim ele ficou até mais feio, mas eu coloquei na vitrine para vender. No mesmo dia entrou um senhor com uma menina na loja e ele disse: “É seu aniversário, escolhe uma boneca...” Advinhe? Ela se apaixonou pelo “pierrô”. A menina foi embora e eu fiquei pensando: ele es-tava preparado e esperando essa pequena colombi-na... Esperou que eu mexesse nele para que ficasse bonito do jeito dele e do jeito da menina, a sua co-

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lombina. Fiquei comovida. Eu sempre fico comovi-da... E converso sim com as minhas bonecas os meus bichos. Às vezes eu dou essa de louca. Se alguém já me pegou conversando com elas? Já. Na minha casa. Eu faço assim. Fico brava com as bonecas que ficam “encalhadas” e fico triste quando uma ou outra vai embora. Enfim, eu queria ter todas as bonecas só pra mim...”

O que era diversão virou uma maneira até de ga-nhar alguma coisa, garante. E diz com todas as le-tras: “Atibaia? Eu amo. Não troco por nada. Repito que não tenho ideia de quantas bonecas já fiz. Se lembrar é capaz de começar a chorar...”

Ao final da história Terezinha se emociona mesmo e diz que suas bonecas continuam ainda no “Casa-rão”, hoje quase desmoronando escandalosamente na outrora tão linda Praça da Matriz. “Sim, as bone-cas continuam lá, pelo menos espiritualmente. Vou contar um segredo: tenho uma amiga espírita que um dia me ajudou, pois eu estava vivendo um mo-mento ruim, nada me agradava, nada me satisfazia, estava mal da cabeça, sabe quando acontecem es-sas coisas? Pois é, foi então que convidei essa amiga para ir no meu canto, no “Casarão”. Na hora que ela entrou disse que o clima espiritual dali não estava bem. Muita inveja, muito ciúme, muitas pessoas ne-gativas. “Mas jamais desista”, disse ela. Eu que le-vantasse a cabeça e continuasse o meu trabalho. Ela disse que isso seria muito importante. E explicou: “Quando entrei aqui senti um monte de espíritos de crianças em volta de sua mesa e das bonecas que es-tavam ali. Espíritos de crianças brincando com suas bonecas, alegres com o produto do seu trabalho. Nunca deixe de fazer bonecas para essas crianças, elas continuam à sua volta, à volta com suas bone-

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cas”, concluiu ela.”Mesmo longe do “Casarão”, mesmo sem precisar

trabalhar tanto, Terezinha nunca deixou de fazer suas bonecas, de conversar com elas, de lembrar suas histórias. Mais que isso, nunca deixou de lem-brar dos espíritos das criancinhas brincando com suas bonecas no “Casarão”.

Terezinha terminou sua história e chorou. O re-pórter também. ■