sou nordestina

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VERGONHA QUE NÃO TENHO DE SER NORDESTINA Sheila Raposo – Jornalista Inês Vieira Sheila Raposo - Jornalista Automático

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Page 1: Sou nordestina

VERGONHA QUE NÃO TENHO DE SER NORDESTINA

Sheila Raposo – Jornalista

Inês Vieira Sheila Raposo - Jornalista

Automático

Page 2: Sou nordestina

Cultivado entre os cascalhos do chão seco e as cercas de aveloz que se perdem no horizonte,

cresceu, forte e robusto, o meu orgulho de pertencer a esse pedaço de terra

chamado Nordeste.

Page 3: Sou nordestina

Sou nordestina.

Nasci e me criei no coração do

Cariri paraibano, correndo de boi brabo,

brincando com boneca de pano, comendo goiaba do pé e

despertando com o primeiro canto do galo para, ainda com os olhos

tapados de remela, desabar pro curral

e esperar pacientemente, o vaqueiro encher

o meu copo de leite, morninho e espumante, direto das tetas da vaca

para o meu bucho.

Page 4: Sou nordestina

Sou nordestina.

Falo oxente, vôte e danou-se. Vige, credo, Jesus-Maria - José!

Proseio com minha língua ligeira, que engole silabas e atropela

a ortoépia das palavras. O meu falar é o mais fiel retrato. Os amigos acham até engraçado

e dizem sempre que eu “saí do mato,

mas o mato não saiu de mim”. Não saiu mesmo!

E olhe: acho que não vai sair é nunca!

Page 5: Sou nordestina

Sou nordestina.

Lambo os beiços quando me deparo com uma mesa farta,

atarracada de comida. Pirão, arroz-de-festa, galinha de capoeira,

feijão de arranca com toucinho, buchada, carne de sol…

E mais uma ruma de comida boa, daquela que, quando a gente termina de engolir,

o suor já está pingando pelos quatro cantos. E depois ainda me sirvo de

um bom pedaço de rapadura ou uma cumbuca de doce de mamão,

que é pra adoçar a língua. E no outro dia, de manhãzinha,

me esbaldo na coalhada, no cuscuz, na tapioca, no queijo de coalho, no bolo de mandioca,

na tigela de umbuzada, na orêa de pau com café torrado em casa!

Page 6: Sou nordestina

Sou nordestina.

Choro quando escuto a voz de Luiz Gonzaga

ecoar no teatro de minhas memórias. De suas músicas guardo

as mais belas recordações. As paisagens, os bichos, os personagens, a fé e

a indignação com que ele costurava as suas cantigas

e que também são minhas. Também estavam (e estão) presentes

em todos os meus momentos, pois foi em sua obra que se firmou

a minha identidade cultural.

Page 7: Sou nordestina

Sou nordestina. Me emociono quando assisto

a uma procissão e observo aqueles rostos sofridos,

curtidos de sol do meu povo. Tudo é belo neste ritual.

A ladainha, o cheiro de incenso. Os pés descalços,

o véu sobre a cabeça, o terço entre os dedos.

O som dos sinos repicando na torre da igreja.

A grandeza de uma fé que não se abala.

Page 8: Sou nordestina

Sou nordestina.

Gosto de me lascar numa farra boa, ao som do xote ou do baião.

Sacolejo e me pergunto: pra quê mais instrumento nesse grupo

além da sanfona, do triangulo e da zabumba? No máximo, um pandeiro ou uma rabeca.

Mas dançar ao som desse trio é bom demais.E fico nesse rela-bucho até o dia amanhecer,

sem ver o tempo passar e tampouco sentir os quartos se arriando,

as canelas se tremelicando, o espinhaço se quebrando

e os pés se queimando em brasa. Ô negócio bom!

Page 9: Sou nordestina

Sou nordestina.

Admiro e me emociono com a minha arte,

com o improviso do poeta popular, com a beleza da banda de pífanos,

com o colorido do pastoril, com a pegada forte do côco-de-roda,

com a alegria da quadrilha junina. O artista nordestino é um herói,

e nos cordéis do tempo se registra a sua história.

Page 10: Sou nordestina

Sou nordestina. E não existe música mais bonita

para meus ouvidos do que a tocada por São Pedro,

quando ele se invoca e mete a mãozona

nas zabumbas lá do céu, fazendo uma trovoada bonita que se alastra pelo Sertão,

clareando o mundo e inundando de esperança

o coração do matuto. A chuva é bendita.

Page 11: Sou nordestina

Sou nordestina.

Sou apaixonada pela minha terra, pela minha cultura,

pelos meus costumes, pela minha arte,

pela minha gente. Só não sou apaixonada

por uma pequena parcela dessa mesma gente

que se enche de poderes e promete resolver os

problemas de seu povo, mentindo, enganando,

ludibriando, apostando no analfabetismo

de quem lhe pôs no poder, tirando proveito da seca

e da miséria para continuar enchendo

os próprios bolsos de dinheiro.

Page 12: Sou nordestina

Mas, apesar de tudo, eu ainda sou nordestina,

e tenho orgulho disso. Não me envergonho

da minha história, não disfarço o meu sotaque,

não escondo as minhas origens. Eu sou tudo o que escrevi,

sou a dor e a alegria dessa terra. E tenho pena, muita pena,

dos tantos nordestinos que vejo por aí, imitando chiados

e fechando vogais,envergonhados de sua nordestinidade.

Para eles, ofereço estas linhas.

Page 13: Sou nordestina

Música: Xote das meninas e Qui nem Jiló

Marco Pereira e Hamílton Holanda

Imagens: Internet

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