sócrates - resenha- a4
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Filosofia
História da Filosofia II
SÓCRATES E O PENSAMENTO FILOSÓFICO GREGO
Geraldo Natanael de Lima
Orientador: Giorgio Borghi
“Conhece-te a si mesmo”.
Preceito inscrito no Templo de Apolo em Delfos.
(Sócrates por Platão, apud, Ferrater, 2001:2724).
Salvador-Ba
Setembro de 2003
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SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................................... 02
Capítulo I - As origens do pensamento helênico........................................................... 04
1- Período antigo (século XX a.C.): mitologia, religião e o rei divino.............. 04
2- Idade média (século XII a.C.): a laicização do pensamento político e a
criação das cidades......................................................................................... 05
3- As condições para o nascimento da filosofia (século VIII a.C.):
a constituição do pensamento racional, o desvelar dos mistérios e o
surgimento da democracia.............................................................................. 05
4- O nascimento da filosofia (século VI a.C.): a razão no lugar do mito.......... 05
Capítulo II - O contexto histórico e cultural de Atenas................................................. 04
Capítulo III - A vida de Sócrates................................................................................... 06
Capítulo IV - Sócrates e os Sofistas.............................................................................. 08
Capítulo V - Os princípios socráticos........................................................................... 10
Capítulo VI - A condenação e a morte de Sócrates...................................................... 14
Conclusão..................................................................................................................... 16
Referências Bibliográficas............................................................................................ 16
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Introdução
“Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada
de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei,
tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio do que ele exatamente
por não supor que saiba o que não sei”.
(Sócrates nas palavras transcritas por Platão, apud H.F. -in Pensadores, 1999:43).
Este trabalho foi elaborado com o objetivo de abordar sumariamente a obra e a
vida de Sócrates (c.470/469 - 399 a.C.) e sua contribuição para a formação do
pensamento filosófico grego. Por se tratar de um campo bastante amplo, não é nossa
pretensão penetrarmos em questões filosóficas específicas, mas termos uma visão geral
da sua época que foi decisiva para a constituição da cultura ocidental.
A utilização do livro Sócrates de Rodolfo Mondolfo serviu como pilar de
nossa orientação para abordar a obra e a vida de Sócrates. O livro As Origens do
Pensamento Grego de Jean-Pierre Vernant foi utilizado para mostrar como foi
preparado e cultivado este ambiente que favoreceu o nascimento da filosofia.
Os livros Sócrates e a História da Filosofia da coleção Os Pensadores, Curso
de Filosofia de Antônio Rezende e A Morte de Sócrates de Zeferino Rocha foram
utilizados na pesquisa dos fatos históricos e na busca de um desvelar do pensamento
socrático. Para a investigação biográfica foram utilizados os dicionários de filosofia de
J. Ferrater Mora, Hilton Jupiassú, Denis Huisman e Simon Blackburn. Buscaremos
adotar o critério da metodologia científica no desenvolvimento deste trabalho que será
apresentado no formato de uma resenha.
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Capítulo I
As origens do pensamento helênico
1- Período antigo (século XX a.C.): mitologia, religião e o rei divino.
O livro “As origens do pensamento grego” de Jean-Pierre Vernant é iniciado a
partir do século XX a.C. no mar Mediterrâneo onde não havia divisão entre o ocidente
e oriente. Entre 2000 e 1900 a.C. os invasores mínios (região Sul da Rússia atual) irão
colonizar o litoral da Ásia Menor, Mediterrâneo ocidental e o Mar Negro, para
“constituir o mundo grego tal como o conhecemos na idade histórica” (1996: 10). Na
mesma época os hititas indo-europeus irão invadir a Ásia Menor e se expandir pelo
planalto Anatólio.
A cidade de Tróia existiu desde 3000 a.C. (Tróia I) e foi sendo destruída em
guerras até chegar a Tróia VI em 1900 a.C. que é edificada por parentes próximos dos
mínios da Grécia, sendo constituído o principado mais rico e poderoso da região, cuja
sua economia tinha como pontos fortes os tecidos e cavalos. A lenda épica de Tróia foi
elaborada quando os aqueus destruíram a cidade de Príamo (Tróia VII).
No ano de 1700 a.C. com a reconstrução pelos mínios dos palácios na ilha de
Creta, que foram destruídos em sucessivas guerras, houve o fortalecimento da vida
urbana que ocorria ao pé das fortalezas e o surgimento do carro puxado a cavalo. Em
1450 a.C. a civilização palaciana já estava consolidada na Grécia continental e a cidade
de Micênas povoada pelos aqueus estende seu reinado por todo o Mediterrâneo
oriental.
Nesta época o rei (ánax) representa o poder, e em torno do palácio é
centralizada a função religiosa, política, militar, administrativa e econômica do seu
reinado. A realeza burocrática (cidade) veio substituir a monarquia feudal (rural) e a
economia é coordenada pelo palácio, local em que circulam os produtos, trabalhos e
serviços, a base de troca. As sucessivas guerras acontecem “para apoderar-se do
tesouro que se organiza uma expedição guerreira e que se destrói uma cidade”.(Ibidem,
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19). A função religiosa do rei (rei divino) vai sendo diminuída com a constituição das
cidades.
A invasão do império micênico pelos dóricos faz com que haja o rompimento
do mundo grego com o oriente, imergindo-o em uma economia puramente agrícola e
abolindo o regime de reinado.
2- Idade média (século XII a.C.): a laicização do pensamento político e a
criação das cidades.
Com a expansão dos dórios no Peloponeso é inaugurada uma nova idade para a
civilização grega, marcada pela metalurgia do ferro que substitui à do bronze e o
distanciamento do mundo dos mortos que em vez de serem enterrados passam a serem
cremados. No século VII a.C. o rei divino desaparece definitivamente, o sistema
palaciano desmorona e com ele é instaurado um período de desordem com “uma
reflexão moral e especulações políticas que vão definir uma primeira forma de
‘sabedoria’ humana”.(Ibidem, 27).
Um estado aristocrático substitui a realeza micênica, sendo que Atenas é o
único ponto da Grécia em que a cultura micênica não foi destruída. Entretanto, o
comando (arché) se separa das funções sacerdotais (basileus) propiciando a iniciar um
estado laico onde os dirigentes são anualmente escolhidos por decisão humana através
de confrontos e discussões, propiciando o surgimento dos políticos e magistrados.
Em Atenas uma crise sucessória faz com que os poderes antes concentrados no
Pandião (arché) fossem divididos entre os seus dois filhos. “Erecteu recebe a basiléia
[poder guerreiro]; Butes, esposo de Ctônia, filha de seu irmão, fica com a hierosyne: o
sacerdócio”.(Ibidem, 30). O desaparecimento do reinado (ánax) que unificava e
ordenava os diversos elementos do reino cria uma disputa (agón) política através da
oratória, cujo palco é a praça pública (ágora) que é o mercado e se torna um lugar de
reunião política. A importância da palavra e do diálogo se torna evidenciada: “Os que
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se medem pela palavra, que opõem discurso a discurso, formam nessa sociedade
hierarquizada um grupo de iguais”.(Ibidem, 32). A concorrência e disputa de poderes
somente passou a existir através dessa possibilidade de igualdade.
Nesse momento o “Estado” vem ocupar o lugar do comando (arché), se
despojando de todo o caráter privado e introduzindo o valor do bem público. As casas
não são mais construídas ao redor dos palácios, mas centralizadas ao redor da praça
pública, onde também são edificados os templos religiosos que são abertos à
população, constituindo-se o que conhecemos atualmente como uma cidade, a polis. A
polis difere radicalmente do agrupamento de casas antigas (cidade grega
antiga).Vernant faz uma reflexão e afirma o seguinte:
“A cidade está agora centralizada na ágora, espaço comum, sede da
Hestia Koiné, espaço público em que são debatidos os problemas de
interesse geral. É a própria cidade que se cerca de muralhas,
protegendo e delimitando em sua totalidade o grupo humano que a
constitui”. (Ibidem, 33).
3- As condições para o nascimento da filosofia (século VIII a.C.): a
constituição do pensamento racional, o desvelar dos mistérios e o
surgimento da democracia.
Vernant ressalta no quarto capítulo do seu livro que “a palavra não é mais o
termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a
argumentação”.(Ibidem, 34). Neste momento a força da persuasão e a arte da oratória
se tornam instrumentos de interesse fundamental para que um discurso de um orador
assegure a vitória sobre o outro adversário político.Vejamos essa passagem nas
palavras do autor:
“Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vinculo
recíproco. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o
logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua
eficácia, através de sua função política”. (Ibidem, 35).
Na discussão de assuntos polêmicos que representam diversos interesses da
sociedade ateniense é necessário o uso da razão (logos) em um exercício de um jogo
intelectual em um processo de ordem da dialética. Para a difusão desses ideais era
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necessário o fortalecimento da escrita que foi tomada dos fenícios e modificada se
adaptando aos sons gregos e difundida livremente entre a população.
Com nascimento da cidade e o uso da ágora, foi necessário o estabelecimento
de regras gerais e do direito dos cidadãos. Aos basileis foram atribuídas as funções da
redação dessas regras que foram chamadas de leis.
O exercício do saber, da razão e a popularização da escrita propiciam a decisão
dos pensadores ou sábios dessa época em difundir suas idéias. Anaximandro de Mileto
(610 - 547 a.C.) junto com Ferecides foram os primeiros a escrever em forma de livros.
Heráclito (540 - 470 a.C.) realizou uma inscrição monumental em pedra (parápegma)
no templo de Átemis em Éfeso, sua cidade natal. Com isso as idéias deixam de serem
somente discutidas em lugares fechados das seitas para serem debatidas e julgadas pelo
público e se aceitas, reconhecidas e divulgadas.
Todos os sinais de investidura (sacra) que não eram expostos ao público por
serem perigosos e sagrados, símbolos religiosos, brasões e xóana de madeira que
estavam nos palácios e nas casas dos sacerdotes emigrarão para os templos públicos.
Este ato de despojamento dos símbolos sagrados colocará em questão os mistérios e os
paradigmas religiosos que eram secretos e que agora os sábios poderão iniciar o debate
público e buscar desvelar as verdades. Vernant ressalta uma contrapartida realizada
com esse progresso:
“A dessacralização de todo um plano da vida política tem como
contrapartida uma religião oficial que se distanciou das questões
humanas e que não está mais tão diretamente ligada às vicissitudes da
arché. (...) Além disso, no domínio da religião, desenvolvem-se, ä
margem da cidade e ao lado do culto público, associações fundadas
secretamente. (...) Organizados sob o modelo das sociedades de
iniciação, sua função é selecionar, através de uma série de provas, uma
minoria de eleitos que se beneficiarão com privilégios inacessíveis ao
comum. (...) [Entretanto] no quadro da cidade a iniciação não pode
mais trazer senão uma transformação ‘espiritual’, sem repercussão
política. (...) A promoção com que eles se beneficiam pertence a um
outro mundo (...) de salvação pessoal visando a transformar o indivíduo
independente da ordem social, a realizar nele uma espécie de novo
nascimento”. (Ibidem, 39/40).
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Os Sábios desse período inicial, como Pitágoras de Samos (580 - 497 a.C.)
dizia que as verdades que ele tinha encontrado eram revelações divinas, retomando os
ensinamentos das seitas religiosas.
Esparta no século VI é a primeira cidade a buscar a semelhança (Hómoioi) ou a
igualdade (isonomia) entre os seus cidadãos. Realizou uma partilha de terras (talvez a
primeira reforma agrária de um estado) e buscou um equilíbrio entre as classes sociais
e a unidade do Estado. A ordem é a primeira relação do poder que foi estabelecida e
limita o monopólio do comando (arché), pois colocaria em risco a própria existência
da cidade. Sob o comando da lei a cidade se tornará equilibrada e suas instituições
serão fortalecidas.
As cidades com seu caráter laico e partindo das transformações econômicas, irá
através do seu ordenamento criar melhorias éticas, morais e políticas. É instituída uma
legislação condenando o homicídio que passa de uma esfera pessoal para a
universalização da condenação do crime. O julgamento sofre uma profunda
transformação em que o juiz ocupa a função de árbitro e as testemunhas devem fazer o
relato dos fatos. “A atividade judiciária contribuirá para elaborar a noção de uma
verdade objetiva”. (Ibidem, 57).
A retomada do comércio com o Oriente que tinha sido interrompido com a
queda do império micênico irá propiciar o seu desenvolvimento e a comunicação com
outros povos. Esta abertura irá criar uma classe de novos ricos, a concentração de
riquezas (terras, servos, etc.) nas mãos de uma burguesia de artesãos e comerciantes. A
riqueza substitui os valores aristocráticos e “é o dinheiro que conta, o dinheiro que faz
o homem” (Ibidem, 59). A classe média exerce um papel moderador entre a minoria
dos ricos conservadores e uma multidão de pessoas pobres que necessitam e
reivindicam tudo.
Duas grandes correntes se contrapõem no mundo grego: a aristocrática e a
democrática. A de inspiração aristocrática defende a eunomia de Sólon em que a
cidade é como um cosmos feito de diversas partes. Cada indivíduo ocupa uma posição
com uma porção de poder de acordo com a sua própria virtude dentro de uma ordem
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hierárquica. “A igualdade realizada permanece proporcional ao mérito”.(Ibidem, 69).
Esta orientação é defendida pelo pitagorismo e posteriormente no sophrosyne em
Platão.
A corrente democrática tem como ideal a isonomia, em que todos os cidadãos
têm os mesmos direitos de participar da vida pública. Clístenes realizou uma reforma
das leis buscando “ordenar a Cidade para que ela seja uma na multiplicidade de seus
concidadãos, para que eles sejam iguais em sua necessária diversidade”. (Ibidem, 69).
Realizou uma organização administrativa que resultou na unificação do corpo social
onde a cidade (polis) se apresenta como um universo homogêneo, sem hierarquia. A
soberania e o comando devem passar de um indivíduo a outro, pois todos são
semelhantes uns aos outros.
4- O nascimento da filosofia (século VI a.C.): a razão no lugar do mito.
A filosofia tem sua “data de nascimento” no início do século VI a.C. quando
existe um declínio do pensamento mítico e o começo do pensamento racional. Surgem
os primeiros filósofos que observavam a natureza, por isso foram chamados de físicos
(physis). Surge um novo tipo de explicação, que não era a revelada, divina, nem
mística, mas do “espanto”.
Todos esses filósofos foram considerados pré-socráticos devido a importância
de Sócrates para a filosofia. Em Mileto surge a escola Jônica (atual litoral da Turquia)
que buscava o princípio único que poderia explicar tudo, é à busca da “arqué”. O
primeiro filósofo Tales (625 - 558 a.C.) afirmava que no início de tudo existia a água.
Anaximandro (610 - 547 a.C.) afirmou que o início de tudo existia o “Ápeíron”, o
ilimitado, infinito, físico, porém sem forma. Anaxímenes (585 - 528 a.C.) afirmou que
o ar é o princípio de tudo. Pitágora de Samos (580 - 497 a.C.) descobre a harmonia do
universo com suas leis matemáticas. Em Éfeso surge Heráclito (540 - 470 a.C.) onde
tudo é movimento, o devir. A escola Eleata (atual Nápoles na Itália) foi formada pelos
filósofos Xenófanes (570 - 528 a.C.), Parmênides (530 - 460 a.C.) que dá um novo
sentido a filosofia, afirmava que tudo é imóvel, Zenão de Eléia (c.464/61) e Melisso
(c.444/41 a.C.). A escola da Pluralidade formada pelos filósofos Empédocles (490 -
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435 a.C.), Anaxágoras (500 - 428 a.C.), Leucipo (c.500 a.C.) e Demócrito (460 - 370
a.C.).
Vernant na conclusão do seu livro realiza uma reflexão sobre a origem da
razão: “A escola de Mileto não viu nascer a Razão; ela construiu uma Razão, uma
primeira forma de racionalidade”.(Ibidem, 94). A Razão grega primeiramente se
formou no plano político pela construção das cidades e o declínio do mito. O
pensamento político foi a base da filosofia em que o homem não é separado do
cidadão. Vernant afirma que somente a partir de Parmênides é que a filosofia
encontrou seu próprio caminho na busca da natureza do Ser, do Saber e suas relações,
se desprendendo do problema inicial da ordem das coisas. Vernant vai mais longe e
insiste que a filosofia para resolver as questões levantadas e as aporias:
“teve de forjar para si uma linguagem, elaborar seus conceitos,
edificar uma lógica, construir sua própria racionalidade. Mas nessa
tarefa não se aproximou muito da realidade física; pouco tomou da
observação dos fenômenos naturais; não fez experiência. (...) A razão
grega é a que de maneira positiva, refletida, metódica, permite agir
sobre os homens, não transformar a natureza”. (Ibidem, 95).
Capítulo II
O contexto histórico e cultural de Atenas
“o apóstolo do conhecimento racional a priori”.
(Sócrates por Platão, apud, Ferrater, 2001:2726).
No livro sobre Sócrates, Rodolfo Mondolfo inicia afirmando que a vitória dos
Atenienses sobre os persas (Guerras Médicas) em 478 a.C. coloca a cidade de Atenas e
o regime democrático em evidência no mundo grego. Conforme foi visto no capítulo I,
o poder dominante era da aristocracia (os aristoi ou eupátrias) que era formada por
grandes proprietários de terra e era representado pelo Areópago constituído por um
Tribunal, assembléia de magistrados, sábios e literatos. Com as reformas de Efialtes e
Péricles foi aumentado o poder da Assembléia e do júri popular ocorrendo um
progresso da “polis” e da justiça social. “Era o famoso ‘século de Péricles’, idade de
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ouro da civilização ateniense. Graças à sua frota, Atenas domina os mares e chega a
criar uma verdadeira talassocracia” (Pessanha, 1999: 19). Atenas passa a ser o centro
do mundo grego, é chamada a “Hélade da Hélade”.
Péricles com a participação popular da democracia ateniense promove o
progresso cultural com o desenvolvimento da arte, poesia, pintura, escultura, se
destacando Fídias e Ictino nas artes, Anaxágoras e Protágoras como pensadores,
Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes no debate de questões religiosas, éticas,
políticas e morais. Atenas se torna a capital intelectual do mundo grego e graças ao seu
espírito democrático o exército conquistou grandes vitórias sobre seus adversários.
Com a consolidação da democracia e da ágora onde ocorriam as assembléias
do povo, surgiu a necessidade da arte de bem falar. Os ensinamentos (da retórica,
linguagem, eloqüência e gramática) foram realizados por professores, geralmente
estrangeiros, ou como eram chamados, sofistas que fundaram escolas particulares
voltadas para quem pudessem pagar. Destacaram-se: “Protágoras de Abdera, na Trácia;
Georgias de Leontium, na Sicília; Pródico de Ceos, nas Cícladas; Hípias de Elis, no
Peloponeso, Antifonte, da própria Atenas” (Ibidem, 11). Sócrates surge nesta época
não cobrando pelo ensino e falando que:
“aquele que vender a sua sabedoria por dinheiro a quem procurar,
chamar-se-á sofista, vale dizer ‘prostituto’. Ao contrário, se alguém
ensinar tudo de bom que sabe a quem julgue bastante disposto por
natureza e se torne seu amigo, cremos que esse cumpre com o dever do
cidadão ótimo”.(Sócrates, apud ibidem, 12).
O império ateniense cresce com as vitórias sobre outros povos até que em 413 -
412 a.C. com o desgaste sofrido pela guerra com Esparta e Siracusa os aristocratas
declaram guerra contra os democratas. Vejamos nas palavras de Rodolfo Mondolfo
como se dá essa passagem:
“os oligarcas aproveitam a grave situação bélica para aniquilar a
democracia e estabelecer a ditadura do Quatrocentos, logo derrubada
pelo furor popular; mas, como a sorte das armas não cessara de ser
adversa, a psicose de guerra leva a democracia a condenar à morte,
sem direito de defesa, os seus próprios generais, na batalha naval das
Arginusas; e é baldada a valente oposição de Sócrates a tamanho
crime”. (Mondolfo, 1963:6).
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Em 404 a.C., com o apoio de Esparta, os aristocratas voltam ao poder em
Atenas através da tirania dos Trinta, dirigida por Crítias. Sócrates estimula uma
reação popular contra os crimes desta tirania e do assassinato e tentativa de seqüestro
dos bens de Leon de Salamina. Uma insurreição comandada por Trasíbulo toma o
poder e decreta uma anistia geral.
Capítulo III
A vida de Sócrates.
“O trabalho não é vergonha; o ócio, sim é vergonha”.
(Sócrates citando Hesíodo, apud, Modolfo1 1963: 31).
Sócrates nasceu no subúrbio de Atenas em 470-469 a.C. e morreu aos 70 anos
em 399 a.C. Filho do escultor (trabalhador de pedra) Sofronisco com uma parteira
Fenareta, ele teve uma educação tradicional dos atenienses ricos, apesar de sua família
ter poucos recursos. “Era um membro da tribo de Antioquia, e, dentro dela fazia parte
do demos (circunscrição territorial) denominado Alopèke”.(Rocha, 2001: 95). Seu pai
era um cidadão conceituado, pois era “amigo de Lisímaco, filho do grande Aristides
que, juntamente com Temístocles, lutou para fazer de Atenas uma cidade democrática”
(Ibidem, 95).
Na sua juventude teve contato com músicos, artistas, intelectuais e
principalmente com os sofistas. “Seguiu durante algum tempo, a profissão paterna”
(Pessanha, 1999: 19) e estudou com filósofos como Arquelau, discípulo de Anaxágoras
que foi fundador da escola filosófica de Atenas e defendia que o princípio de todas as
coisas estava nos elementos ou “sementes” que combinados formavam todas as coisas.
Casou com Xantipa que “tinha fama de ser impulsiva e descontrolada (...) dela
fez ‘o símbolo da provação para a paciência e a impassibilidade do filósofo’”. (Rocha,
2001:74). Xantipa teve três filhos com Sócrates que quando morreu tinha um filho
ainda de “colo”.
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Sócrates tinha muitos amigos e discípulos. Pelos costumes gregos era comum
aos homens serem “pederastas” que era um tipo de “pedagogia” onde ocorria o contato
sexual entre um homem e rapaz bem jovem durante o período dos ensinamentos e
estudos filosóficos.
Quando tinha 37 anos lutou na batalha de Potidéia (432 a.C.) onde salvou a vida
de Alcibíades, que revelou um fato que ocorreu com Sócrates que o tornará incomum:
“ele teria permanecido, durante 24 horas, imóvel e absorto em seus pensamentos,
diante da estupefação dos soldados” (Pessanha, 1999: 22). Depois foi para a batalha de
Délio (424 a.C.) quando os atenienses foram derrotados pelos tebanos e onde salvou a
vida de Xenofonte. Na batalha de Antípolis (421 a.C.), Sócrates foi elogiado pelo
general Laquetes pela demonstração de bravura e resistência física.
Platão descreveu Sócrates como um homem fascinante, que é o verdadeiro
amigo da filosofia e não liga para as aparências tendo “rosto achatado, nariz de tucano,
ventre dilatado, lábios grosseiros e olhos vesgos” (Rocha, 2001: 57). Ele também foi
chamado de músico, poeta, devido a busca da “interpretação dos sonhos” que era
considerado uma mensagem divina. Huisman afirmou que:
“ele se faz poeta, primeiro em honra a Apolo, cuja festa retardou sua
morte, depois na versificação das fábulas de Esopo, intermediárias
entre mitos e discursos. Ora, o sonho não é de um dia; volta sempre,
acompanhado de imagens diferentes, mas sempre com as mesmas
palavras: ‘Sócrates, ao trabalho; compõe música!’Ele acreditava antes
que o deus o incentivava assim à sua tarefa habitual, ‘já que não existe
música mais elevada que a filosofia”. (Huisman, 2001: 930).
Rodolfo Mondolfo escreveu em seu livro que Sócrates como mestre formou
muitos discípulos que se transformaram em:
“políticos como Alcebíades, Crítias, Cármides; outros, em militares e
historiadores, como Xenofonte; outros, em filósofos fundadores de
escolas socráticas: Antístenes, fundador da escola cínica; Aristipo, da
cirenaica; Euclides, da megárica; Fedon e Menedomo, da élio-erétrica;
Platão, da Academia; além de Esquines, de Esfeto, o discípulo mais fiel,
Símias e Cebes, ex-pitagóricos, etc.”.(Mondolfo, 1963: 22).
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Entretanto alguns discípulos foram responsáveis por grandes desastres como
Alcebíades e perseguições como Cármides, o pior dos Trinta Tiranos. Mondolfo
acrescenta:
“Serviu em várias guerras e se distinguiu nas batalhas de Potidéia
(432), Délio (424) e Anfipolis (422). Amigo de Aritias e de Alcibíades
(amizade que foi muito criticada), depois reuniu boa quantidade de fiéis
discípulos, entre os quais se distinguiram Platão, Xenofonte, Antístenes,
Aristipo e Euclides de Megara, vários deles fundadores das chamadas
escolas socráticas” (Ferrater, 2001:2723).
Sócrates era preocupado em ensinar aos seus discípulos a cuidar da sua vida
interior se descuidando da vida pública, se contrapondo as assembléias e a
participação como cidadão na democracia ateniense. A democracia de Atenas
recusava o direito de cidadania a maioria da população que era constituída por
mulheres, aos estrangeiros e aos escravos. Por esse motivo Mondolfo no seu livro
escreve que “a influência negativa de Sócrates fazia que este parecesse um corruptor”
(1963: 29), pois constantemente levantava questões a todos que estavam ao seu redor,
menosprezando os preconceitos sociais da democracia ateniense e buscando
demonstrar a igualdade de direitos, pois todos “em alma” eram semelhantes.
A metodologia de ensino de Sócrates se baseava no diálogo e principalmente
no questionar, ou seja, realizava perguntas que despertava no discípulo a reflexão e o
obrigava a buscar os conhecimentos verdadeiros. A declaração de que “Sócrates era
o mais sábio dos homens” realizado pelo oráculo de Delfos a seu amigo Querefonte
fez com que ele se tornasse famoso quando respondeu que a sua sabedoria resultava
do fato de que nada sabia: “Só sei que nada sei”. Esta mensagem tem o sentido do
reencontro consigo mesmo, partindo da própria consciência da ignorância e tornando-
o apto ao conhecimento de si mesmo através do estabelecimento da autoconfiança.
Apesar de Sócrates ter sido condenado por impiedade por ser acusado de não
acreditar nos deuses gregos tradicionais e introduzir uma nova fé, ele costumava
“cumprir as formalidades do culto, rezar as suas orações matutinas ao sol, oferecer
sacrifícios aos deuses, pedir e fazer pedir ao oráculo délfico” (Ibidem, 29).
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Segundo o pensar socrático, Deus era uma única fonte que estava presente no
mundo e em nós através do daimon interior que significava inspiração, inteligência,
ou seja, a alma pessoal. Vejamos a opinião de Zeferino Rocha:
“Etimologicamente, o termo daimon está ligado ao verbo daíesthai que
significa ‘repartir’, dividir’. O dáimon seria, portanto, a força ou o
poder que divide e reparte a sorte dos indivíduos. (...) Numa perspectiva
psicanalítica, seria tentador reduzi-lo ao que Freud definiu como o
superego (...) o dimónion de Sócrates era um oráculo interior, mediante
o qual Sócrates entrava numa experiência de comunhão espiritual
muito profunda com o divino”. (Rocha, 2001: 157/158).
Sócrates criou um novo conceito para alma (psiquê), que passou a ser adotado
pela cultura ocidental onde é a sede da consciência, do caráter e da realidade interior,
se manifestando através das palavras e ações. A virtude (aretê) é conhecimento e por
isso ninguém erra deliberadamente. “O conhecimento que Sócrates identifica que a
aretê é a episteme (ciência), não a doxa (opinião)”.(Pessanha, 1999: 30). Sócrates
acreditava na imortalidade da alma e a necessidade de tornar a alma justa. Sócrates
defendia logicamente a existência de Deus e sustentava que:
“é invisível por si mesmo, torna-se cognoscível ao homem pelo
testemunho interior da sua alma e da sua inteligência e, além disso,
pelo testemunho exterior da ordem do mundo e da finalidade que
domina em todas as coisas” (Ibidem, 97).
Capítulo IV
Sócrates e os Sofistas.
“Sócrates: o conhecimento do bom é o suficiente para trabalhar com
retidão e alcançar a felicidade”.
(Windelband, 1960:72)**.
Com o regime democrático que vigorava em Atenas, o exercício da função
política dependia da arte de bem falar na ágora, e os sofistas foram mestres e
professores que ensinavam esta técnica formal de persuasão.
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Sócrates começou a afirmar que os sofistas “cobravam para ensinar”, só faziam
retóricas e por isso era o lixo e escória da sociedade. Sócrates defendia e buscava a
verdade dialética. Como afirma Hessen “Sócrates é chamado de criador da filosofia
ocidental” (2000: 5), pois com o seu espanto e questionar eterno, introduzia a noção
de razão, de reflexão, do saber, do conhecimento científico, os valores do verdadeiro,
do bom e do belo.
Sócrates foi considerado por muitos como um dos sofistas, devido a ter atuado
na mesma época deles. Segundo os sofistas o sujeito humano é como um espelho
multiforme da realidade. “‘O homem é a medida de todas as coisas, das que são
enquanto são e das que não são enquanto não são’, afirma Protágoras de Abdera,
exprimindo o relativismo sofístico” (Pessanha, 1999: 20). Esta posição já mostrava a
laicização das questões morais e a relativização dos valores. Sócrates se contrapunha
a estas idéias e afirmava que o sujeito humano tem uma única realidade, a de
“conhecer o bem”.
Antonio Rezende no seu livro enumera cinco diferenças entre os sofistas e
Sócrates e Zeferino Rocha cita outras duas:
1- O sofista é um professor ambulante. Sócrates é alguém ligado aos
destinos de sua cidade; tanto assim que, condenado injustamente à
morte, recusa-se a fugir, acatando a decisão de seus concidadãos;
2- O sofista cobra para ensinar. Sócrates vive sua vida, e essa
confunde-se com a atividade filosófica: filosofar não é profissão; é a
atividade do homem livre;
3- O sofista “sabe tudo”, e transmite um saber pronto, sem crítica (que
Platão identifica com uma “mercadoria” que o sofista, mercador, exibe
e vende). Sócrates diz nada saber, e, colocando-se no nível de seu
interlocutor, dirige uma aventura dialética em busca da verdade, que
está no interior de cada um;
4- O sofista faz retórica. Sócrates faz dialética. Na retórica, o ouvinte é
levado por uma enxurrada de palavras que, se adequadamente
compostas, persuadem sem transmitir conhecimento algum. Na
dialética, que opera por perguntas e respostas, a pesquisa procede
passo a passo, e não é passível ir adiante sem deixar esclarecido o que
ficou para trás;
5- O sofista refuta por refutar, para ganhar a disputa verbal. Sócrates
refuta para purificar a alma de sua ignorância.
(Rezende, 2002:45).
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“Os sofistas preocupavam-se essencialmente em fornecer aos seus
discípulos as armas de que necessitavam para vencer na vida política.
Compreende-se, portanto, que, para eles, o trabalho de educação não
podia ser dirigido por outra ética que não a do sucesso. Ora, nada mais
anti-socrático do que uma ética do sucesso. (...) Enquanto estes viam na
educação um exercício profissional igual a todos os outros, para
Sócrates não se podia fazer educação pelo ensinamento, mas pela força
do testemunho”. (Rocha, 2001: 140/141).
“Os sofistas sempre evitavam o engajamento, quer quando falavam das
coisas religiosas, quer quando falavam das coisas morais ou políticas.
(...) Compreende-se que, na recusa do engajamento, se esconda o
segredo do sucesso dos sofistas na arte da disputa”. (Ibidem, 143).
Capítulo V
Os princípios socráticos.
“Se morres, serás vítima da injustiça, não das leis, mas sim dos homens e se sais daqui
vergonhosamente, trocando justiça por injustiça e mal por mal, faltarás ao pacto que te
obriga conosco, leis, e prejudicarás”.
(Windelband, 1960:72)**.
Sócrates estudando Anaxágoras discordou do princípio naturalista dizendo que
“não devia procurar-se nos objetos do conhecimento sensível, mas nos conceitos”
(Ibidem, 19), se ocupando das questões éticas e conceitos universais. Criticava os
naturalistas pela negação da criação divina de uma explicação finalista.
Sócrates vivia sempre buscando a verdade consistente, através da observação
da realidade, diferentemente do que buscava os sofistas que estavam mais
interessados na opinião (doxa). Vejamos o que Denis Huisman escreveu sobre o
pensamento socrático:
“Nascer e morrer estão sob idênticas luzes, e a preocupação com esse
fato humano original justifica Kierkegaard quando ele mostra Sócrates
como quem primeiro soube que o pensador é um ‘sujeito existente’ não
um ‘sujeito pensante’, mas um certo homem, filho deste homem e
daquela mulher. Terá alguém atentado para o fato de que no nome do
seu pai há sophron (a sabedoria que guarda o pensamento), e no da
mãe o aparecimento da areté, valor ou virtude?”.(Huisman, 2001: 928).
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Sempre defendendo a lei, a ética e a justiça, Sócrates conquistou alguns
inimigos e um desagrado popular quando defendeu os estrategos das Arginusas, e foi
considerado como antidemocrata. Vamos ver esta passagem escrita por Pessanha e
Mondolfo:
“Em 406 a.C., enfrentou a ira da multidão que exigia a condenação
sumária dos generais tidos como responsáveis pelo desastre de
Arginusas – quando a tempestade impediu que fossem recolhidos no
mar, como estabelecia a lei, os corpos dos que pereceram no combate.
Apesar das ameaças, Sócrates, sorteado para dirigir a assembléia
escolhida para julgar os generais, fez prevalecer a lei impondo que
houvesse tantos julgamentos quantos eram acusados.” (Pessanha,
1999:23).
“Não eram, pois, uma negação da democracia, mas a exigência de
aperfeiçoá-la para que efetivamente estivesse a serviço do bem
público” (Mondolfo, 1963: 31).
Sócrates era contra o ponto de vista aristocrático que menosprezava o trabalho.
A virtude (areté), a dignidade moral, a sabedoria e justiça só poderiam ser
conquistadas através do trabalho.
Os conceitos de religião e de filosofia se confundem em Sócrates, seguindo o
caminho que foi iniciado por Pitágoras e Parmênides, aceitando “o conceito
pitagórico da ciência como caminho de purificação e libertação espiritual” (Ibidem,
70). A obrigação moral do dever de ser mestre ao “serviço de Deus ainda que à custa
da própria vida” (Ibidem, 46), coloca a filosofia como o caminho de purificação da
alma e do conhecimento de si mesmo, este último segue o ditame do oráculo de
Delfos (Conhece-te a ti mesmo). Segundo a opinião de Mondolfo:
“´Conhece-te a ti mesmo’ significa: adquire consciência do teu fim e
das tuas faltas reais; a primeira destas, a que impede toda correção
espiritual, é a crença de não ter faltas, isto é, falta de conhecimento de
si mesmo e da verdade que se esconde sob a ilusão e pretensão de
sabedoria. Saber que não se sabe, quer dizer, adquirir consciência dos
problemas e das falhas que escapam à pretensa sabedoria: eis aí o
primeiro resultado do exame e conhecimento de si mesmo, primeira
sabedoria verdadeira”. (Ibidem, 49).
19
A maiêutica (que etimologicamente significa arte da parteira – techné tes
maieuseos) era o método socrático que consistia “dar a luz” às idéias, superando a
própria ignorância, descobrindo as coisas por eles mesmos. O filósofo tinha como
procedimento à dialética (diálogo), fazendo com que o interlocutor caísse em
contradição, reconhecendo sua ignorância sobre o que julgava saber e procurar
descobrir pela razão a verdade que temos em nós mesmos (posteriormente abordado
por Platão como a teoria da reminiscência). Este método propiciava uma espécie de
catarse, expulsando as idéias turvas e fazendo com que o analisante interlocutor,
elaborasse suas próprias idéias, o que torna para mim [opinião do autor da resenha],
Sócrates o primeiro analista da história da humanidade. Para Sócrates:
“O verdadeiro mestre não é um provedor de conhecimentos, mas um
despertador de espíritos que, no próprio ato de exercer a sua função
iluminadora, admite, além disso, a reciprocidade dessa ação e aceita a
possibilidade de ser refutado, não menos que de refutar os outros”
(Ibidem, 105).
A substituição do logos (razão) pelo diá-logo (2 razões), ou seja, pela fala entre
duas pessoas, possibilita uma relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento,
através da unidade no conhecimento verdadeiro. Mondolfo afirma que “no logos
individual os sofistas haviam assinalado o caráter de subjetividade e relatividade”
(Ibidem, 63). Mondolfo vai mais longe e afirma que:
“esta unidade subjetiva deve-se procurar e conseguir-se também a
objetividade, quer dizer, a unidade do conceito através da
multiplicidade das coisas e dos fatos. Esta dupla unidade conjunta é o
que procura a ciência. (...) Com efeito, ao declarar que o conhecimento
verdadeiro ou ciência tem que se constituir mediante os universais
(conceitos), Sócrates envolve já em sua gnoseologia a tendência a uma
ontologia idealista”. (Ibidem, 64/65).
Sócrates defende uma “lei interior” ou eukráteia, que significa autodomínio ou
liberdade interior, em que a “ciência ou sabedoria se identifica com a força do caráter,
e a sua falta com a debilidade espiritual que transforma o homem em escravo dos
impulsos irracionais” (Ibidem, 70). Sócrates repudiava os bens exteriores (riqueza,
poder, etc.) e valorizava o domínio do prazer, desejo e gozo - “domino, não sou
dominado” de Aristipo, apesar de Sócrates não ser hedonista ele gosta este princípio.
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Sobre o pecado e culpa Mondolfo entende no pensamento socrático que:
“o erro e a culpa podem considerar-se uma carência ou sabedoria,
quer dizer, também uma ignorância; e assim pode afirmar-se a sentença
característica de Sócrates: ‘ninguém peca voluntariamente’. A culpa
está na ignorância enquanto implica e representa má orientação
espiritual”. (Ibidem, 71).
O eudemonismo foi outro conceito introduzido por Sócrates que significa
felicidade, ou a busca da felicidade através do exercício da virtude. A origem da
palavra é “eupratein que significa ao mesmo tempo ‘agir bem’ e ‘estar bem’”. (Ibidem,
79). “O sábio cria em si mesmo uma fonte de satisfação espiritual independente do
exterior, e assim alcança um estado de beatitude”. (Ibidem, 81).
Mondolfo propõe que a ética socrática não é utilitarista que transforma o
homem em escravo dos bens exteriores, pois Sócrates defendia a autonomia, a
valorização do interior da alma, onde se encontrará a verdadeira felicidade. A ética
tradicional grega era baseada nas epopéias homéricas (Homero e Hesíodo nos séculos
X a VIII a.C.) que “formulam uma ética aristocrática que fazia da virtude (aretê) um
atributo inerente à nobreza e manifestado por meio da conduta cortesã e do heroísmo
guerreiro” (Pessanha, 1999: 28).
Sócrates ensinava que “a ânsia dos prazeres acarreta para o espírito uma
escravidão” (Ibidem, 85) e isto fazia com que o homem escolhesse o mal ao invés do
bem e o afastava da sabedoria e conseqüentemente da verdade. Sócrates defendia o
ensino do saber sem visar o dinheiro que não era dado valor e falava: “Eu vivo em
pobreza infinita para servir ao Deus” (Sócrates, in Apologia platônica, apud,
Mondolfo, 1963:87).
Sócrates considerava a morte como uma libertação da prisão do corpo que era
um obstáculo para o conhecimento da verdade. “Os sentidos estorvam a contemplação
da realidade na sua essência mais pura” (Rocha, 2001: 86).
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Capítulo VI
A condenação e a morte de Sócrates.
“Não, amigos; tudo deve terminar com palavras de bom augúrio: permanecei, pois,
serenos e fortes”. (Sócrates apud Mondolfo, 1963:27).
Sócrates causava irritação da classe dominante, pois levantava muitas questões
e como conseqüência causava muitos problemas. Questionava as crenças tradicionais,
era interessado em substituir os antigos deuses oficiais por novos deuses e buscava
poucas soluções para os problemas levantados.
Sócrates defende uma renovação moral e um renascimento político e incomoda
o governo. Ánito que era um rico mercador, curtidor de peles, orador e político
influente por ser principal amigo de Trasíbulo, juntamente com o poeta Meleto, e um
orador de pouca importância Lição (ou Lícon), acusa Sócrates de corromper a
juventude (influenciar com idéias erradas) e de ser culpado de impiedade, ou seja,
desconhecer os deuses pátrios e introduzir novos seres demoníacos (devido a sua tese
do “daimon” ou psique – alma pessoal).
Sócrates foi julgado dessas acusações e condenado a morte. Pessanha no livro
Sócrates na coleção os Pensadores realiza uma descrição do julgamento:
“No ano de 399 a.C. [ano de Laques], o tribunal dos heliastas,
constituído por cidadãos procedentes das dez tribos que compunham a
população de Atenas e escolhidos por meio da tiragem de sorte, reuniu-
se com quinhentos ou 501 membros”. (...) Como era de praxe, após o
veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar sua pena.
Meleto havia pedido para o acusado a pena de morte. Mas seria fácil
para Sócrates salvar-se: bastava propor outra penalidade, por exemplo,
pagar uma multa, como chegaram a lhe sugerir os amigos. Afinal, fora
difícil obter um veredicto de culpabilidade: havia sido condenado por
uma margem de apenas sessenta votos.(...) Sócrates estabelece a pena
que julgava merecer. Nem exílio nem multa.(...) [diz Sócrates aos
juízes:] ‘eu proponho o sustento no Pritaneu’. Sócrates não deixava
saída para seus juízes. Ou a pena de morte, pedida por Meleto, ou ser
alimentado no Pritaneu, enquanto fosse vivo, como herói ou benemérito
da cidade. Impossível voltar atrás, desfazer a condenação, inocentar o
acusado. Entre a morte e as impossíveis recompensas, os juízes ficaram
sem alternativa real. Par não abrir mão de sua própria consciência,
Sócrates optara pela morte. (Pessanha, 1999: 5).
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Condenado a morte bebendo veneno (cicuta) pela Assembléia de Atenas,
Sócrates esperou um mês até que um navio que levou uma delegação para a
tradicional festa de Apolo em Delos, retornasse a Atenas, pois “nenhum condenado
poderia ser executado na cidade, para que esta não fosse manchada” (Rocha,
2001:70). A execução de Sócrates deveria ocorrer um dia após a chegada do navio ao
porto de Atenas, antes do nascer do Sol, pois segundo a tradição: “Até os raios do sol
se manchariam com o contato da morte” (Junito Brandão, apud Rocha, 2001: 73). Um
navio do governo tinha sido enviado para o santuário de Delfos para as
comemorações da vitória do herói mitológico ateniense Teseu sobre o Minotauro que
era um monstro de metade homem e metade touro que morava no labirinto em Creta.
Segundo o livro de Zeferino Rocha, Sócrates não morreu sozinho, como alguns
afirmam, somente na presença do guarda na prisão, e propõe:
“No Fédon, temos a lista dos que estavam presentes na hora em que
Sócrates bebeu a cicuta. Foram eles: Apolodoro (que era seu ‘fanático’
admirador), Critóbulo e seu pai Critón (que cuidavam dos interesses do
mestre e tinham por Sócrates uma dedicação muito especial),
Hermógenes (que aparece no diálogo Euthidemo), Menexeno (que é
igualmente o nome de um dos diálogos socráticos de Platão). Estavam
também presentes: Antístenes (que freqüentava os círculos sofistas e
que depois se tornou fundador da escola cínica), Aristipo e Fédon.
Platão, ao que tudo indica, estava doente. Dos discípulos das outras
cidades encontravam-se Símias de Tebe e Cebes que aparecem como
interlocutores de Sócrates no Fédon. Estava também presente Euclides,
que fundou a escola eleático-socrática de Megera”. (Rocha, 2001:75).
Sócrates termina convencendo Critón, seu amigo, de que sua morte era
necessária para fortalecer a democracia, as leis e a cidade de Atenas. Em um diálogo
escrito e retratado por Platão, um dia antes de sua morte na prisão, ele fala:
“Se morres, serás vítima da injustiça, não das leis, mas sim dos homens
e se sais daqui vergonhosamente, trocando justiça por injustiça e mal
por mal, faltarás ao pacto que te obriga conosco, leis, e prejudicarás a
muito que não deveriam esperar isto de ti e a ti mesmo, bem como
conosco, a teus amigos e à tua pátria. (...) Deixemo-nos, pois, amado
Críton, e sigamos o caminho ao qual nos conduz o deus”.(Sócrates,
apud Platão, 1981:97).
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Conclusão.
Acredito que Sócrates descobriu a chave que abriu a porta da razão. O mundo
ocidental tem essa lógica pelo pioneirismo do pensar socrático e da existência de Jesus.
Johannes Hessen em seu livro sobre a Teoria do Conhecimento escreveu que “Não sem
justiça, Sócrates é chamado de criador da filosofia ocidental” (2000: 5), e afirma:
“Todos os seus pensamentos e energias estão voltados para a
edificação da vida humana sobre a base da reflexão e do saber. Ele
tenta fazer com que todo agir humano seja um agir consciente, um
saber, e empenha-se em elevar a vida, com todos os seus conteúdos, ao
nível da consciência filosófica [conhecimento humano e científico]. (...)
A filosofia aparece em Sócrates e mais ainda em Platão como auto-
reflexão do espírito a respeito de seus mais altos valores teóricos e
práticos, os valores do verdadeiro, do bom e do belo”.(Ibidem, 6).
A cultura helênica de origem socrática se casou com o cristianismo e criou o
fundamento desvelador de “Deus” e da “Razão”. A sustentação da democracia, o
retirar a divindade das coisas do mundo, a explicação para a criação e para a nossa
existência, a ética, a moral, o bem, foram sementes plantadas no exemplo e
pensamento de Sócrates e na vida exemplar de Jesus.
É difícil fazer uma analogia entre o percurso de Sócrates e a divindade de Jesus,
porém Zeferino Rocha em seu livro faz uma menção sobre a morte de Sócrates que nos
faz cogitar:
“Sócrates nada deixou escrito, mas tudo o que disse foi inscrito no seu
modo de ser e de se comportar, na força do testemunho de sua vida e,
sobretudo, na força do testemunho de sua morte, que selou para sempre
a importância de sua doutrina”. (Rocha, 2001: 55).
Como Sócrates não deixou nada escrito, a maioria das suas idéias foi escrita por
Platão em seus Diálogos, por Xenofonte nas Memoráveis “general e historiador grego
(...) que procura reabilitar Sócrates das várias acusações que conduziram à sua
morte”.(Blackburn, 1997:413) e por Ésquines em diversas obras que foram perdidas.
As únicas referências escritas sobre Sócrates durante a sua vida foram realizadas pelos
poetas cômicos Aristófanes, Amípsias e Êupolis.
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Todas as obras que restaram mostram um Sócrates com idade superior a 45
anos, o que indica que o nosso filósofo atingiu sua maturidade intelectual por volta
desta idade. Existe uma certa dificuldade de distinguir o que é idéia platônica ou
socrática, porém acreditamos que Sócrates rompeu um paradigma histórico,
introduzindo a razão e fundou o que hoje conhecemos como filosofia.
Finalizando, vamos deixar uma mensagem de Sócrates que tinha como missão
tornar melhor os outros, não importando ser seu amigo ou inimigo. No diálogo com
Critón Sócrates fala que a única coisa que importa é viver honestamente, sem cometer
injustiças: “não se deve devolver a ninguém dano por dano, injustiça por injustiça
qualquer que seja a injúria recebida”. (Platão apud Mondolfo, 1963: 91). E Jesus...
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ROCHA, Zeferino, A Morte de Sócrates, Monólogo Filosófico, SP, Editora Escuta,
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Vernant, Jean-Pierre, As origens do Pensamento Grego, RJ, Editora Bertrand Brasil,
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** Realizada tradução livre sob a responsabilidade do autor do texto.