sócrates - resenha- a4

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Filosofia História da Filosofia II SÓCRATES E O PENSAMENTO FILOSÓFICO GREGO Geraldo Natanael de Lima Orientador: Giorgio Borghi “Conhece-te a si mesmo”. Preceito inscrito no Templo de Apolo em Delfos. (Sócrates por Platão, apud, Ferrater, 2001:2724). Salvador-Ba Setembro de 2003

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Page 1: Sócrates - Resenha- A4

UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Departamento de Filosofia

História da Filosofia II

SÓCRATES E O PENSAMENTO FILOSÓFICO GREGO

Geraldo Natanael de Lima

Orientador: Giorgio Borghi

“Conhece-te a si mesmo”.

Preceito inscrito no Templo de Apolo em Delfos.

(Sócrates por Platão, apud, Ferrater, 2001:2724).

Salvador-Ba

Setembro de 2003

Page 2: Sócrates - Resenha- A4

2

SUMÁRIO

Introdução....................................................................................................................... 02

Capítulo I - As origens do pensamento helênico........................................................... 04

1- Período antigo (século XX a.C.): mitologia, religião e o rei divino.............. 04

2- Idade média (século XII a.C.): a laicização do pensamento político e a

criação das cidades......................................................................................... 05

3- As condições para o nascimento da filosofia (século VIII a.C.):

a constituição do pensamento racional, o desvelar dos mistérios e o

surgimento da democracia.............................................................................. 05

4- O nascimento da filosofia (século VI a.C.): a razão no lugar do mito.......... 05

Capítulo II - O contexto histórico e cultural de Atenas................................................. 04

Capítulo III - A vida de Sócrates................................................................................... 06

Capítulo IV - Sócrates e os Sofistas.............................................................................. 08

Capítulo V - Os princípios socráticos........................................................................... 10

Capítulo VI - A condenação e a morte de Sócrates...................................................... 14

Conclusão..................................................................................................................... 16

Referências Bibliográficas............................................................................................ 16

Page 3: Sócrates - Resenha- A4

3

Introdução

“Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada

de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei,

tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio do que ele exatamente

por não supor que saiba o que não sei”.

(Sócrates nas palavras transcritas por Platão, apud H.F. -in Pensadores, 1999:43).

Este trabalho foi elaborado com o objetivo de abordar sumariamente a obra e a

vida de Sócrates (c.470/469 - 399 a.C.) e sua contribuição para a formação do

pensamento filosófico grego. Por se tratar de um campo bastante amplo, não é nossa

pretensão penetrarmos em questões filosóficas específicas, mas termos uma visão geral

da sua época que foi decisiva para a constituição da cultura ocidental.

A utilização do livro Sócrates de Rodolfo Mondolfo serviu como pilar de

nossa orientação para abordar a obra e a vida de Sócrates. O livro As Origens do

Pensamento Grego de Jean-Pierre Vernant foi utilizado para mostrar como foi

preparado e cultivado este ambiente que favoreceu o nascimento da filosofia.

Os livros Sócrates e a História da Filosofia da coleção Os Pensadores, Curso

de Filosofia de Antônio Rezende e A Morte de Sócrates de Zeferino Rocha foram

utilizados na pesquisa dos fatos históricos e na busca de um desvelar do pensamento

socrático. Para a investigação biográfica foram utilizados os dicionários de filosofia de

J. Ferrater Mora, Hilton Jupiassú, Denis Huisman e Simon Blackburn. Buscaremos

adotar o critério da metodologia científica no desenvolvimento deste trabalho que será

apresentado no formato de uma resenha.

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Capítulo I

As origens do pensamento helênico

1- Período antigo (século XX a.C.): mitologia, religião e o rei divino.

O livro “As origens do pensamento grego” de Jean-Pierre Vernant é iniciado a

partir do século XX a.C. no mar Mediterrâneo onde não havia divisão entre o ocidente

e oriente. Entre 2000 e 1900 a.C. os invasores mínios (região Sul da Rússia atual) irão

colonizar o litoral da Ásia Menor, Mediterrâneo ocidental e o Mar Negro, para

“constituir o mundo grego tal como o conhecemos na idade histórica” (1996: 10). Na

mesma época os hititas indo-europeus irão invadir a Ásia Menor e se expandir pelo

planalto Anatólio.

A cidade de Tróia existiu desde 3000 a.C. (Tróia I) e foi sendo destruída em

guerras até chegar a Tróia VI em 1900 a.C. que é edificada por parentes próximos dos

mínios da Grécia, sendo constituído o principado mais rico e poderoso da região, cuja

sua economia tinha como pontos fortes os tecidos e cavalos. A lenda épica de Tróia foi

elaborada quando os aqueus destruíram a cidade de Príamo (Tróia VII).

No ano de 1700 a.C. com a reconstrução pelos mínios dos palácios na ilha de

Creta, que foram destruídos em sucessivas guerras, houve o fortalecimento da vida

urbana que ocorria ao pé das fortalezas e o surgimento do carro puxado a cavalo. Em

1450 a.C. a civilização palaciana já estava consolidada na Grécia continental e a cidade

de Micênas povoada pelos aqueus estende seu reinado por todo o Mediterrâneo

oriental.

Nesta época o rei (ánax) representa o poder, e em torno do palácio é

centralizada a função religiosa, política, militar, administrativa e econômica do seu

reinado. A realeza burocrática (cidade) veio substituir a monarquia feudal (rural) e a

economia é coordenada pelo palácio, local em que circulam os produtos, trabalhos e

serviços, a base de troca. As sucessivas guerras acontecem “para apoderar-se do

tesouro que se organiza uma expedição guerreira e que se destrói uma cidade”.(Ibidem,

Page 5: Sócrates - Resenha- A4

5

19). A função religiosa do rei (rei divino) vai sendo diminuída com a constituição das

cidades.

A invasão do império micênico pelos dóricos faz com que haja o rompimento

do mundo grego com o oriente, imergindo-o em uma economia puramente agrícola e

abolindo o regime de reinado.

2- Idade média (século XII a.C.): a laicização do pensamento político e a

criação das cidades.

Com a expansão dos dórios no Peloponeso é inaugurada uma nova idade para a

civilização grega, marcada pela metalurgia do ferro que substitui à do bronze e o

distanciamento do mundo dos mortos que em vez de serem enterrados passam a serem

cremados. No século VII a.C. o rei divino desaparece definitivamente, o sistema

palaciano desmorona e com ele é instaurado um período de desordem com “uma

reflexão moral e especulações políticas que vão definir uma primeira forma de

‘sabedoria’ humana”.(Ibidem, 27).

Um estado aristocrático substitui a realeza micênica, sendo que Atenas é o

único ponto da Grécia em que a cultura micênica não foi destruída. Entretanto, o

comando (arché) se separa das funções sacerdotais (basileus) propiciando a iniciar um

estado laico onde os dirigentes são anualmente escolhidos por decisão humana através

de confrontos e discussões, propiciando o surgimento dos políticos e magistrados.

Em Atenas uma crise sucessória faz com que os poderes antes concentrados no

Pandião (arché) fossem divididos entre os seus dois filhos. “Erecteu recebe a basiléia

[poder guerreiro]; Butes, esposo de Ctônia, filha de seu irmão, fica com a hierosyne: o

sacerdócio”.(Ibidem, 30). O desaparecimento do reinado (ánax) que unificava e

ordenava os diversos elementos do reino cria uma disputa (agón) política através da

oratória, cujo palco é a praça pública (ágora) que é o mercado e se torna um lugar de

reunião política. A importância da palavra e do diálogo se torna evidenciada: “Os que

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6

se medem pela palavra, que opõem discurso a discurso, formam nessa sociedade

hierarquizada um grupo de iguais”.(Ibidem, 32). A concorrência e disputa de poderes

somente passou a existir através dessa possibilidade de igualdade.

Nesse momento o “Estado” vem ocupar o lugar do comando (arché), se

despojando de todo o caráter privado e introduzindo o valor do bem público. As casas

não são mais construídas ao redor dos palácios, mas centralizadas ao redor da praça

pública, onde também são edificados os templos religiosos que são abertos à

população, constituindo-se o que conhecemos atualmente como uma cidade, a polis. A

polis difere radicalmente do agrupamento de casas antigas (cidade grega

antiga).Vernant faz uma reflexão e afirma o seguinte:

“A cidade está agora centralizada na ágora, espaço comum, sede da

Hestia Koiné, espaço público em que são debatidos os problemas de

interesse geral. É a própria cidade que se cerca de muralhas,

protegendo e delimitando em sua totalidade o grupo humano que a

constitui”. (Ibidem, 33).

3- As condições para o nascimento da filosofia (século VIII a.C.): a

constituição do pensamento racional, o desvelar dos mistérios e o

surgimento da democracia.

Vernant ressalta no quarto capítulo do seu livro que “a palavra não é mais o

termo ritual, a fórmula justa, mas o debate contraditório, a discussão, a

argumentação”.(Ibidem, 34). Neste momento a força da persuasão e a arte da oratória

se tornam instrumentos de interesse fundamental para que um discurso de um orador

assegure a vitória sobre o outro adversário político.Vejamos essa passagem nas

palavras do autor:

“Entre a política e o logos, há assim relação estreita, vinculo

recíproco. A arte política é essencialmente exercício da linguagem; e o

logos, na origem, toma consciência de si mesmo, de suas regras, de sua

eficácia, através de sua função política”. (Ibidem, 35).

Na discussão de assuntos polêmicos que representam diversos interesses da

sociedade ateniense é necessário o uso da razão (logos) em um exercício de um jogo

intelectual em um processo de ordem da dialética. Para a difusão desses ideais era

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necessário o fortalecimento da escrita que foi tomada dos fenícios e modificada se

adaptando aos sons gregos e difundida livremente entre a população.

Com nascimento da cidade e o uso da ágora, foi necessário o estabelecimento

de regras gerais e do direito dos cidadãos. Aos basileis foram atribuídas as funções da

redação dessas regras que foram chamadas de leis.

O exercício do saber, da razão e a popularização da escrita propiciam a decisão

dos pensadores ou sábios dessa época em difundir suas idéias. Anaximandro de Mileto

(610 - 547 a.C.) junto com Ferecides foram os primeiros a escrever em forma de livros.

Heráclito (540 - 470 a.C.) realizou uma inscrição monumental em pedra (parápegma)

no templo de Átemis em Éfeso, sua cidade natal. Com isso as idéias deixam de serem

somente discutidas em lugares fechados das seitas para serem debatidas e julgadas pelo

público e se aceitas, reconhecidas e divulgadas.

Todos os sinais de investidura (sacra) que não eram expostos ao público por

serem perigosos e sagrados, símbolos religiosos, brasões e xóana de madeira que

estavam nos palácios e nas casas dos sacerdotes emigrarão para os templos públicos.

Este ato de despojamento dos símbolos sagrados colocará em questão os mistérios e os

paradigmas religiosos que eram secretos e que agora os sábios poderão iniciar o debate

público e buscar desvelar as verdades. Vernant ressalta uma contrapartida realizada

com esse progresso:

“A dessacralização de todo um plano da vida política tem como

contrapartida uma religião oficial que se distanciou das questões

humanas e que não está mais tão diretamente ligada às vicissitudes da

arché. (...) Além disso, no domínio da religião, desenvolvem-se, ä

margem da cidade e ao lado do culto público, associações fundadas

secretamente. (...) Organizados sob o modelo das sociedades de

iniciação, sua função é selecionar, através de uma série de provas, uma

minoria de eleitos que se beneficiarão com privilégios inacessíveis ao

comum. (...) [Entretanto] no quadro da cidade a iniciação não pode

mais trazer senão uma transformação ‘espiritual’, sem repercussão

política. (...) A promoção com que eles se beneficiam pertence a um

outro mundo (...) de salvação pessoal visando a transformar o indivíduo

independente da ordem social, a realizar nele uma espécie de novo

nascimento”. (Ibidem, 39/40).

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Os Sábios desse período inicial, como Pitágoras de Samos (580 - 497 a.C.)

dizia que as verdades que ele tinha encontrado eram revelações divinas, retomando os

ensinamentos das seitas religiosas.

Esparta no século VI é a primeira cidade a buscar a semelhança (Hómoioi) ou a

igualdade (isonomia) entre os seus cidadãos. Realizou uma partilha de terras (talvez a

primeira reforma agrária de um estado) e buscou um equilíbrio entre as classes sociais

e a unidade do Estado. A ordem é a primeira relação do poder que foi estabelecida e

limita o monopólio do comando (arché), pois colocaria em risco a própria existência

da cidade. Sob o comando da lei a cidade se tornará equilibrada e suas instituições

serão fortalecidas.

As cidades com seu caráter laico e partindo das transformações econômicas, irá

através do seu ordenamento criar melhorias éticas, morais e políticas. É instituída uma

legislação condenando o homicídio que passa de uma esfera pessoal para a

universalização da condenação do crime. O julgamento sofre uma profunda

transformação em que o juiz ocupa a função de árbitro e as testemunhas devem fazer o

relato dos fatos. “A atividade judiciária contribuirá para elaborar a noção de uma

verdade objetiva”. (Ibidem, 57).

A retomada do comércio com o Oriente que tinha sido interrompido com a

queda do império micênico irá propiciar o seu desenvolvimento e a comunicação com

outros povos. Esta abertura irá criar uma classe de novos ricos, a concentração de

riquezas (terras, servos, etc.) nas mãos de uma burguesia de artesãos e comerciantes. A

riqueza substitui os valores aristocráticos e “é o dinheiro que conta, o dinheiro que faz

o homem” (Ibidem, 59). A classe média exerce um papel moderador entre a minoria

dos ricos conservadores e uma multidão de pessoas pobres que necessitam e

reivindicam tudo.

Duas grandes correntes se contrapõem no mundo grego: a aristocrática e a

democrática. A de inspiração aristocrática defende a eunomia de Sólon em que a

cidade é como um cosmos feito de diversas partes. Cada indivíduo ocupa uma posição

com uma porção de poder de acordo com a sua própria virtude dentro de uma ordem

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hierárquica. “A igualdade realizada permanece proporcional ao mérito”.(Ibidem, 69).

Esta orientação é defendida pelo pitagorismo e posteriormente no sophrosyne em

Platão.

A corrente democrática tem como ideal a isonomia, em que todos os cidadãos

têm os mesmos direitos de participar da vida pública. Clístenes realizou uma reforma

das leis buscando “ordenar a Cidade para que ela seja uma na multiplicidade de seus

concidadãos, para que eles sejam iguais em sua necessária diversidade”. (Ibidem, 69).

Realizou uma organização administrativa que resultou na unificação do corpo social

onde a cidade (polis) se apresenta como um universo homogêneo, sem hierarquia. A

soberania e o comando devem passar de um indivíduo a outro, pois todos são

semelhantes uns aos outros.

4- O nascimento da filosofia (século VI a.C.): a razão no lugar do mito.

A filosofia tem sua “data de nascimento” no início do século VI a.C. quando

existe um declínio do pensamento mítico e o começo do pensamento racional. Surgem

os primeiros filósofos que observavam a natureza, por isso foram chamados de físicos

(physis). Surge um novo tipo de explicação, que não era a revelada, divina, nem

mística, mas do “espanto”.

Todos esses filósofos foram considerados pré-socráticos devido a importância

de Sócrates para a filosofia. Em Mileto surge a escola Jônica (atual litoral da Turquia)

que buscava o princípio único que poderia explicar tudo, é à busca da “arqué”. O

primeiro filósofo Tales (625 - 558 a.C.) afirmava que no início de tudo existia a água.

Anaximandro (610 - 547 a.C.) afirmou que o início de tudo existia o “Ápeíron”, o

ilimitado, infinito, físico, porém sem forma. Anaxímenes (585 - 528 a.C.) afirmou que

o ar é o princípio de tudo. Pitágora de Samos (580 - 497 a.C.) descobre a harmonia do

universo com suas leis matemáticas. Em Éfeso surge Heráclito (540 - 470 a.C.) onde

tudo é movimento, o devir. A escola Eleata (atual Nápoles na Itália) foi formada pelos

filósofos Xenófanes (570 - 528 a.C.), Parmênides (530 - 460 a.C.) que dá um novo

sentido a filosofia, afirmava que tudo é imóvel, Zenão de Eléia (c.464/61) e Melisso

(c.444/41 a.C.). A escola da Pluralidade formada pelos filósofos Empédocles (490 -

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435 a.C.), Anaxágoras (500 - 428 a.C.), Leucipo (c.500 a.C.) e Demócrito (460 - 370

a.C.).

Vernant na conclusão do seu livro realiza uma reflexão sobre a origem da

razão: “A escola de Mileto não viu nascer a Razão; ela construiu uma Razão, uma

primeira forma de racionalidade”.(Ibidem, 94). A Razão grega primeiramente se

formou no plano político pela construção das cidades e o declínio do mito. O

pensamento político foi a base da filosofia em que o homem não é separado do

cidadão. Vernant afirma que somente a partir de Parmênides é que a filosofia

encontrou seu próprio caminho na busca da natureza do Ser, do Saber e suas relações,

se desprendendo do problema inicial da ordem das coisas. Vernant vai mais longe e

insiste que a filosofia para resolver as questões levantadas e as aporias:

“teve de forjar para si uma linguagem, elaborar seus conceitos,

edificar uma lógica, construir sua própria racionalidade. Mas nessa

tarefa não se aproximou muito da realidade física; pouco tomou da

observação dos fenômenos naturais; não fez experiência. (...) A razão

grega é a que de maneira positiva, refletida, metódica, permite agir

sobre os homens, não transformar a natureza”. (Ibidem, 95).

Capítulo II

O contexto histórico e cultural de Atenas

“o apóstolo do conhecimento racional a priori”.

(Sócrates por Platão, apud, Ferrater, 2001:2726).

No livro sobre Sócrates, Rodolfo Mondolfo inicia afirmando que a vitória dos

Atenienses sobre os persas (Guerras Médicas) em 478 a.C. coloca a cidade de Atenas e

o regime democrático em evidência no mundo grego. Conforme foi visto no capítulo I,

o poder dominante era da aristocracia (os aristoi ou eupátrias) que era formada por

grandes proprietários de terra e era representado pelo Areópago constituído por um

Tribunal, assembléia de magistrados, sábios e literatos. Com as reformas de Efialtes e

Péricles foi aumentado o poder da Assembléia e do júri popular ocorrendo um

progresso da “polis” e da justiça social. “Era o famoso ‘século de Péricles’, idade de

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ouro da civilização ateniense. Graças à sua frota, Atenas domina os mares e chega a

criar uma verdadeira talassocracia” (Pessanha, 1999: 19). Atenas passa a ser o centro

do mundo grego, é chamada a “Hélade da Hélade”.

Péricles com a participação popular da democracia ateniense promove o

progresso cultural com o desenvolvimento da arte, poesia, pintura, escultura, se

destacando Fídias e Ictino nas artes, Anaxágoras e Protágoras como pensadores,

Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes no debate de questões religiosas, éticas,

políticas e morais. Atenas se torna a capital intelectual do mundo grego e graças ao seu

espírito democrático o exército conquistou grandes vitórias sobre seus adversários.

Com a consolidação da democracia e da ágora onde ocorriam as assembléias

do povo, surgiu a necessidade da arte de bem falar. Os ensinamentos (da retórica,

linguagem, eloqüência e gramática) foram realizados por professores, geralmente

estrangeiros, ou como eram chamados, sofistas que fundaram escolas particulares

voltadas para quem pudessem pagar. Destacaram-se: “Protágoras de Abdera, na Trácia;

Georgias de Leontium, na Sicília; Pródico de Ceos, nas Cícladas; Hípias de Elis, no

Peloponeso, Antifonte, da própria Atenas” (Ibidem, 11). Sócrates surge nesta época

não cobrando pelo ensino e falando que:

“aquele que vender a sua sabedoria por dinheiro a quem procurar,

chamar-se-á sofista, vale dizer ‘prostituto’. Ao contrário, se alguém

ensinar tudo de bom que sabe a quem julgue bastante disposto por

natureza e se torne seu amigo, cremos que esse cumpre com o dever do

cidadão ótimo”.(Sócrates, apud ibidem, 12).

O império ateniense cresce com as vitórias sobre outros povos até que em 413 -

412 a.C. com o desgaste sofrido pela guerra com Esparta e Siracusa os aristocratas

declaram guerra contra os democratas. Vejamos nas palavras de Rodolfo Mondolfo

como se dá essa passagem:

“os oligarcas aproveitam a grave situação bélica para aniquilar a

democracia e estabelecer a ditadura do Quatrocentos, logo derrubada

pelo furor popular; mas, como a sorte das armas não cessara de ser

adversa, a psicose de guerra leva a democracia a condenar à morte,

sem direito de defesa, os seus próprios generais, na batalha naval das

Arginusas; e é baldada a valente oposição de Sócrates a tamanho

crime”. (Mondolfo, 1963:6).

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Em 404 a.C., com o apoio de Esparta, os aristocratas voltam ao poder em

Atenas através da tirania dos Trinta, dirigida por Crítias. Sócrates estimula uma

reação popular contra os crimes desta tirania e do assassinato e tentativa de seqüestro

dos bens de Leon de Salamina. Uma insurreição comandada por Trasíbulo toma o

poder e decreta uma anistia geral.

Capítulo III

A vida de Sócrates.

“O trabalho não é vergonha; o ócio, sim é vergonha”.

(Sócrates citando Hesíodo, apud, Modolfo1 1963: 31).

Sócrates nasceu no subúrbio de Atenas em 470-469 a.C. e morreu aos 70 anos

em 399 a.C. Filho do escultor (trabalhador de pedra) Sofronisco com uma parteira

Fenareta, ele teve uma educação tradicional dos atenienses ricos, apesar de sua família

ter poucos recursos. “Era um membro da tribo de Antioquia, e, dentro dela fazia parte

do demos (circunscrição territorial) denominado Alopèke”.(Rocha, 2001: 95). Seu pai

era um cidadão conceituado, pois era “amigo de Lisímaco, filho do grande Aristides

que, juntamente com Temístocles, lutou para fazer de Atenas uma cidade democrática”

(Ibidem, 95).

Na sua juventude teve contato com músicos, artistas, intelectuais e

principalmente com os sofistas. “Seguiu durante algum tempo, a profissão paterna”

(Pessanha, 1999: 19) e estudou com filósofos como Arquelau, discípulo de Anaxágoras

que foi fundador da escola filosófica de Atenas e defendia que o princípio de todas as

coisas estava nos elementos ou “sementes” que combinados formavam todas as coisas.

Casou com Xantipa que “tinha fama de ser impulsiva e descontrolada (...) dela

fez ‘o símbolo da provação para a paciência e a impassibilidade do filósofo’”. (Rocha,

2001:74). Xantipa teve três filhos com Sócrates que quando morreu tinha um filho

ainda de “colo”.

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Sócrates tinha muitos amigos e discípulos. Pelos costumes gregos era comum

aos homens serem “pederastas” que era um tipo de “pedagogia” onde ocorria o contato

sexual entre um homem e rapaz bem jovem durante o período dos ensinamentos e

estudos filosóficos.

Quando tinha 37 anos lutou na batalha de Potidéia (432 a.C.) onde salvou a vida

de Alcibíades, que revelou um fato que ocorreu com Sócrates que o tornará incomum:

“ele teria permanecido, durante 24 horas, imóvel e absorto em seus pensamentos,

diante da estupefação dos soldados” (Pessanha, 1999: 22). Depois foi para a batalha de

Délio (424 a.C.) quando os atenienses foram derrotados pelos tebanos e onde salvou a

vida de Xenofonte. Na batalha de Antípolis (421 a.C.), Sócrates foi elogiado pelo

general Laquetes pela demonstração de bravura e resistência física.

Platão descreveu Sócrates como um homem fascinante, que é o verdadeiro

amigo da filosofia e não liga para as aparências tendo “rosto achatado, nariz de tucano,

ventre dilatado, lábios grosseiros e olhos vesgos” (Rocha, 2001: 57). Ele também foi

chamado de músico, poeta, devido a busca da “interpretação dos sonhos” que era

considerado uma mensagem divina. Huisman afirmou que:

“ele se faz poeta, primeiro em honra a Apolo, cuja festa retardou sua

morte, depois na versificação das fábulas de Esopo, intermediárias

entre mitos e discursos. Ora, o sonho não é de um dia; volta sempre,

acompanhado de imagens diferentes, mas sempre com as mesmas

palavras: ‘Sócrates, ao trabalho; compõe música!’Ele acreditava antes

que o deus o incentivava assim à sua tarefa habitual, ‘já que não existe

música mais elevada que a filosofia”. (Huisman, 2001: 930).

Rodolfo Mondolfo escreveu em seu livro que Sócrates como mestre formou

muitos discípulos que se transformaram em:

“políticos como Alcebíades, Crítias, Cármides; outros, em militares e

historiadores, como Xenofonte; outros, em filósofos fundadores de

escolas socráticas: Antístenes, fundador da escola cínica; Aristipo, da

cirenaica; Euclides, da megárica; Fedon e Menedomo, da élio-erétrica;

Platão, da Academia; além de Esquines, de Esfeto, o discípulo mais fiel,

Símias e Cebes, ex-pitagóricos, etc.”.(Mondolfo, 1963: 22).

Page 14: Sócrates - Resenha- A4

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Entretanto alguns discípulos foram responsáveis por grandes desastres como

Alcebíades e perseguições como Cármides, o pior dos Trinta Tiranos. Mondolfo

acrescenta:

“Serviu em várias guerras e se distinguiu nas batalhas de Potidéia

(432), Délio (424) e Anfipolis (422). Amigo de Aritias e de Alcibíades

(amizade que foi muito criticada), depois reuniu boa quantidade de fiéis

discípulos, entre os quais se distinguiram Platão, Xenofonte, Antístenes,

Aristipo e Euclides de Megara, vários deles fundadores das chamadas

escolas socráticas” (Ferrater, 2001:2723).

Sócrates era preocupado em ensinar aos seus discípulos a cuidar da sua vida

interior se descuidando da vida pública, se contrapondo as assembléias e a

participação como cidadão na democracia ateniense. A democracia de Atenas

recusava o direito de cidadania a maioria da população que era constituída por

mulheres, aos estrangeiros e aos escravos. Por esse motivo Mondolfo no seu livro

escreve que “a influência negativa de Sócrates fazia que este parecesse um corruptor”

(1963: 29), pois constantemente levantava questões a todos que estavam ao seu redor,

menosprezando os preconceitos sociais da democracia ateniense e buscando

demonstrar a igualdade de direitos, pois todos “em alma” eram semelhantes.

A metodologia de ensino de Sócrates se baseava no diálogo e principalmente

no questionar, ou seja, realizava perguntas que despertava no discípulo a reflexão e o

obrigava a buscar os conhecimentos verdadeiros. A declaração de que “Sócrates era

o mais sábio dos homens” realizado pelo oráculo de Delfos a seu amigo Querefonte

fez com que ele se tornasse famoso quando respondeu que a sua sabedoria resultava

do fato de que nada sabia: “Só sei que nada sei”. Esta mensagem tem o sentido do

reencontro consigo mesmo, partindo da própria consciência da ignorância e tornando-

o apto ao conhecimento de si mesmo através do estabelecimento da autoconfiança.

Apesar de Sócrates ter sido condenado por impiedade por ser acusado de não

acreditar nos deuses gregos tradicionais e introduzir uma nova fé, ele costumava

“cumprir as formalidades do culto, rezar as suas orações matutinas ao sol, oferecer

sacrifícios aos deuses, pedir e fazer pedir ao oráculo délfico” (Ibidem, 29).

Page 15: Sócrates - Resenha- A4

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Segundo o pensar socrático, Deus era uma única fonte que estava presente no

mundo e em nós através do daimon interior que significava inspiração, inteligência,

ou seja, a alma pessoal. Vejamos a opinião de Zeferino Rocha:

“Etimologicamente, o termo daimon está ligado ao verbo daíesthai que

significa ‘repartir’, dividir’. O dáimon seria, portanto, a força ou o

poder que divide e reparte a sorte dos indivíduos. (...) Numa perspectiva

psicanalítica, seria tentador reduzi-lo ao que Freud definiu como o

superego (...) o dimónion de Sócrates era um oráculo interior, mediante

o qual Sócrates entrava numa experiência de comunhão espiritual

muito profunda com o divino”. (Rocha, 2001: 157/158).

Sócrates criou um novo conceito para alma (psiquê), que passou a ser adotado

pela cultura ocidental onde é a sede da consciência, do caráter e da realidade interior,

se manifestando através das palavras e ações. A virtude (aretê) é conhecimento e por

isso ninguém erra deliberadamente. “O conhecimento que Sócrates identifica que a

aretê é a episteme (ciência), não a doxa (opinião)”.(Pessanha, 1999: 30). Sócrates

acreditava na imortalidade da alma e a necessidade de tornar a alma justa. Sócrates

defendia logicamente a existência de Deus e sustentava que:

“é invisível por si mesmo, torna-se cognoscível ao homem pelo

testemunho interior da sua alma e da sua inteligência e, além disso,

pelo testemunho exterior da ordem do mundo e da finalidade que

domina em todas as coisas” (Ibidem, 97).

Capítulo IV

Sócrates e os Sofistas.

“Sócrates: o conhecimento do bom é o suficiente para trabalhar com

retidão e alcançar a felicidade”.

(Windelband, 1960:72)**.

Com o regime democrático que vigorava em Atenas, o exercício da função

política dependia da arte de bem falar na ágora, e os sofistas foram mestres e

professores que ensinavam esta técnica formal de persuasão.

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16

Sócrates começou a afirmar que os sofistas “cobravam para ensinar”, só faziam

retóricas e por isso era o lixo e escória da sociedade. Sócrates defendia e buscava a

verdade dialética. Como afirma Hessen “Sócrates é chamado de criador da filosofia

ocidental” (2000: 5), pois com o seu espanto e questionar eterno, introduzia a noção

de razão, de reflexão, do saber, do conhecimento científico, os valores do verdadeiro,

do bom e do belo.

Sócrates foi considerado por muitos como um dos sofistas, devido a ter atuado

na mesma época deles. Segundo os sofistas o sujeito humano é como um espelho

multiforme da realidade. “‘O homem é a medida de todas as coisas, das que são

enquanto são e das que não são enquanto não são’, afirma Protágoras de Abdera,

exprimindo o relativismo sofístico” (Pessanha, 1999: 20). Esta posição já mostrava a

laicização das questões morais e a relativização dos valores. Sócrates se contrapunha

a estas idéias e afirmava que o sujeito humano tem uma única realidade, a de

“conhecer o bem”.

Antonio Rezende no seu livro enumera cinco diferenças entre os sofistas e

Sócrates e Zeferino Rocha cita outras duas:

1- O sofista é um professor ambulante. Sócrates é alguém ligado aos

destinos de sua cidade; tanto assim que, condenado injustamente à

morte, recusa-se a fugir, acatando a decisão de seus concidadãos;

2- O sofista cobra para ensinar. Sócrates vive sua vida, e essa

confunde-se com a atividade filosófica: filosofar não é profissão; é a

atividade do homem livre;

3- O sofista “sabe tudo”, e transmite um saber pronto, sem crítica (que

Platão identifica com uma “mercadoria” que o sofista, mercador, exibe

e vende). Sócrates diz nada saber, e, colocando-se no nível de seu

interlocutor, dirige uma aventura dialética em busca da verdade, que

está no interior de cada um;

4- O sofista faz retórica. Sócrates faz dialética. Na retórica, o ouvinte é

levado por uma enxurrada de palavras que, se adequadamente

compostas, persuadem sem transmitir conhecimento algum. Na

dialética, que opera por perguntas e respostas, a pesquisa procede

passo a passo, e não é passível ir adiante sem deixar esclarecido o que

ficou para trás;

5- O sofista refuta por refutar, para ganhar a disputa verbal. Sócrates

refuta para purificar a alma de sua ignorância.

(Rezende, 2002:45).

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17

“Os sofistas preocupavam-se essencialmente em fornecer aos seus

discípulos as armas de que necessitavam para vencer na vida política.

Compreende-se, portanto, que, para eles, o trabalho de educação não

podia ser dirigido por outra ética que não a do sucesso. Ora, nada mais

anti-socrático do que uma ética do sucesso. (...) Enquanto estes viam na

educação um exercício profissional igual a todos os outros, para

Sócrates não se podia fazer educação pelo ensinamento, mas pela força

do testemunho”. (Rocha, 2001: 140/141).

“Os sofistas sempre evitavam o engajamento, quer quando falavam das

coisas religiosas, quer quando falavam das coisas morais ou políticas.

(...) Compreende-se que, na recusa do engajamento, se esconda o

segredo do sucesso dos sofistas na arte da disputa”. (Ibidem, 143).

Capítulo V

Os princípios socráticos.

“Se morres, serás vítima da injustiça, não das leis, mas sim dos homens e se sais daqui

vergonhosamente, trocando justiça por injustiça e mal por mal, faltarás ao pacto que te

obriga conosco, leis, e prejudicarás”.

(Windelband, 1960:72)**.

Sócrates estudando Anaxágoras discordou do princípio naturalista dizendo que

“não devia procurar-se nos objetos do conhecimento sensível, mas nos conceitos”

(Ibidem, 19), se ocupando das questões éticas e conceitos universais. Criticava os

naturalistas pela negação da criação divina de uma explicação finalista.

Sócrates vivia sempre buscando a verdade consistente, através da observação

da realidade, diferentemente do que buscava os sofistas que estavam mais

interessados na opinião (doxa). Vejamos o que Denis Huisman escreveu sobre o

pensamento socrático:

“Nascer e morrer estão sob idênticas luzes, e a preocupação com esse

fato humano original justifica Kierkegaard quando ele mostra Sócrates

como quem primeiro soube que o pensador é um ‘sujeito existente’ não

um ‘sujeito pensante’, mas um certo homem, filho deste homem e

daquela mulher. Terá alguém atentado para o fato de que no nome do

seu pai há sophron (a sabedoria que guarda o pensamento), e no da

mãe o aparecimento da areté, valor ou virtude?”.(Huisman, 2001: 928).

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Sempre defendendo a lei, a ética e a justiça, Sócrates conquistou alguns

inimigos e um desagrado popular quando defendeu os estrategos das Arginusas, e foi

considerado como antidemocrata. Vamos ver esta passagem escrita por Pessanha e

Mondolfo:

“Em 406 a.C., enfrentou a ira da multidão que exigia a condenação

sumária dos generais tidos como responsáveis pelo desastre de

Arginusas – quando a tempestade impediu que fossem recolhidos no

mar, como estabelecia a lei, os corpos dos que pereceram no combate.

Apesar das ameaças, Sócrates, sorteado para dirigir a assembléia

escolhida para julgar os generais, fez prevalecer a lei impondo que

houvesse tantos julgamentos quantos eram acusados.” (Pessanha,

1999:23).

“Não eram, pois, uma negação da democracia, mas a exigência de

aperfeiçoá-la para que efetivamente estivesse a serviço do bem

público” (Mondolfo, 1963: 31).

Sócrates era contra o ponto de vista aristocrático que menosprezava o trabalho.

A virtude (areté), a dignidade moral, a sabedoria e justiça só poderiam ser

conquistadas através do trabalho.

Os conceitos de religião e de filosofia se confundem em Sócrates, seguindo o

caminho que foi iniciado por Pitágoras e Parmênides, aceitando “o conceito

pitagórico da ciência como caminho de purificação e libertação espiritual” (Ibidem,

70). A obrigação moral do dever de ser mestre ao “serviço de Deus ainda que à custa

da própria vida” (Ibidem, 46), coloca a filosofia como o caminho de purificação da

alma e do conhecimento de si mesmo, este último segue o ditame do oráculo de

Delfos (Conhece-te a ti mesmo). Segundo a opinião de Mondolfo:

“´Conhece-te a ti mesmo’ significa: adquire consciência do teu fim e

das tuas faltas reais; a primeira destas, a que impede toda correção

espiritual, é a crença de não ter faltas, isto é, falta de conhecimento de

si mesmo e da verdade que se esconde sob a ilusão e pretensão de

sabedoria. Saber que não se sabe, quer dizer, adquirir consciência dos

problemas e das falhas que escapam à pretensa sabedoria: eis aí o

primeiro resultado do exame e conhecimento de si mesmo, primeira

sabedoria verdadeira”. (Ibidem, 49).

Page 19: Sócrates - Resenha- A4

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A maiêutica (que etimologicamente significa arte da parteira – techné tes

maieuseos) era o método socrático que consistia “dar a luz” às idéias, superando a

própria ignorância, descobrindo as coisas por eles mesmos. O filósofo tinha como

procedimento à dialética (diálogo), fazendo com que o interlocutor caísse em

contradição, reconhecendo sua ignorância sobre o que julgava saber e procurar

descobrir pela razão a verdade que temos em nós mesmos (posteriormente abordado

por Platão como a teoria da reminiscência). Este método propiciava uma espécie de

catarse, expulsando as idéias turvas e fazendo com que o analisante interlocutor,

elaborasse suas próprias idéias, o que torna para mim [opinião do autor da resenha],

Sócrates o primeiro analista da história da humanidade. Para Sócrates:

“O verdadeiro mestre não é um provedor de conhecimentos, mas um

despertador de espíritos que, no próprio ato de exercer a sua função

iluminadora, admite, além disso, a reciprocidade dessa ação e aceita a

possibilidade de ser refutado, não menos que de refutar os outros”

(Ibidem, 105).

A substituição do logos (razão) pelo diá-logo (2 razões), ou seja, pela fala entre

duas pessoas, possibilita uma relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento,

através da unidade no conhecimento verdadeiro. Mondolfo afirma que “no logos

individual os sofistas haviam assinalado o caráter de subjetividade e relatividade”

(Ibidem, 63). Mondolfo vai mais longe e afirma que:

“esta unidade subjetiva deve-se procurar e conseguir-se também a

objetividade, quer dizer, a unidade do conceito através da

multiplicidade das coisas e dos fatos. Esta dupla unidade conjunta é o

que procura a ciência. (...) Com efeito, ao declarar que o conhecimento

verdadeiro ou ciência tem que se constituir mediante os universais

(conceitos), Sócrates envolve já em sua gnoseologia a tendência a uma

ontologia idealista”. (Ibidem, 64/65).

Sócrates defende uma “lei interior” ou eukráteia, que significa autodomínio ou

liberdade interior, em que a “ciência ou sabedoria se identifica com a força do caráter,

e a sua falta com a debilidade espiritual que transforma o homem em escravo dos

impulsos irracionais” (Ibidem, 70). Sócrates repudiava os bens exteriores (riqueza,

poder, etc.) e valorizava o domínio do prazer, desejo e gozo - “domino, não sou

dominado” de Aristipo, apesar de Sócrates não ser hedonista ele gosta este princípio.

Page 20: Sócrates - Resenha- A4

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Sobre o pecado e culpa Mondolfo entende no pensamento socrático que:

“o erro e a culpa podem considerar-se uma carência ou sabedoria,

quer dizer, também uma ignorância; e assim pode afirmar-se a sentença

característica de Sócrates: ‘ninguém peca voluntariamente’. A culpa

está na ignorância enquanto implica e representa má orientação

espiritual”. (Ibidem, 71).

O eudemonismo foi outro conceito introduzido por Sócrates que significa

felicidade, ou a busca da felicidade através do exercício da virtude. A origem da

palavra é “eupratein que significa ao mesmo tempo ‘agir bem’ e ‘estar bem’”. (Ibidem,

79). “O sábio cria em si mesmo uma fonte de satisfação espiritual independente do

exterior, e assim alcança um estado de beatitude”. (Ibidem, 81).

Mondolfo propõe que a ética socrática não é utilitarista que transforma o

homem em escravo dos bens exteriores, pois Sócrates defendia a autonomia, a

valorização do interior da alma, onde se encontrará a verdadeira felicidade. A ética

tradicional grega era baseada nas epopéias homéricas (Homero e Hesíodo nos séculos

X a VIII a.C.) que “formulam uma ética aristocrática que fazia da virtude (aretê) um

atributo inerente à nobreza e manifestado por meio da conduta cortesã e do heroísmo

guerreiro” (Pessanha, 1999: 28).

Sócrates ensinava que “a ânsia dos prazeres acarreta para o espírito uma

escravidão” (Ibidem, 85) e isto fazia com que o homem escolhesse o mal ao invés do

bem e o afastava da sabedoria e conseqüentemente da verdade. Sócrates defendia o

ensino do saber sem visar o dinheiro que não era dado valor e falava: “Eu vivo em

pobreza infinita para servir ao Deus” (Sócrates, in Apologia platônica, apud,

Mondolfo, 1963:87).

Sócrates considerava a morte como uma libertação da prisão do corpo que era

um obstáculo para o conhecimento da verdade. “Os sentidos estorvam a contemplação

da realidade na sua essência mais pura” (Rocha, 2001: 86).

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Capítulo VI

A condenação e a morte de Sócrates.

“Não, amigos; tudo deve terminar com palavras de bom augúrio: permanecei, pois,

serenos e fortes”. (Sócrates apud Mondolfo, 1963:27).

Sócrates causava irritação da classe dominante, pois levantava muitas questões

e como conseqüência causava muitos problemas. Questionava as crenças tradicionais,

era interessado em substituir os antigos deuses oficiais por novos deuses e buscava

poucas soluções para os problemas levantados.

Sócrates defende uma renovação moral e um renascimento político e incomoda

o governo. Ánito que era um rico mercador, curtidor de peles, orador e político

influente por ser principal amigo de Trasíbulo, juntamente com o poeta Meleto, e um

orador de pouca importância Lição (ou Lícon), acusa Sócrates de corromper a

juventude (influenciar com idéias erradas) e de ser culpado de impiedade, ou seja,

desconhecer os deuses pátrios e introduzir novos seres demoníacos (devido a sua tese

do “daimon” ou psique – alma pessoal).

Sócrates foi julgado dessas acusações e condenado a morte. Pessanha no livro

Sócrates na coleção os Pensadores realiza uma descrição do julgamento:

“No ano de 399 a.C. [ano de Laques], o tribunal dos heliastas,

constituído por cidadãos procedentes das dez tribos que compunham a

população de Atenas e escolhidos por meio da tiragem de sorte, reuniu-

se com quinhentos ou 501 membros”. (...) Como era de praxe, após o

veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar sua pena.

Meleto havia pedido para o acusado a pena de morte. Mas seria fácil

para Sócrates salvar-se: bastava propor outra penalidade, por exemplo,

pagar uma multa, como chegaram a lhe sugerir os amigos. Afinal, fora

difícil obter um veredicto de culpabilidade: havia sido condenado por

uma margem de apenas sessenta votos.(...) Sócrates estabelece a pena

que julgava merecer. Nem exílio nem multa.(...) [diz Sócrates aos

juízes:] ‘eu proponho o sustento no Pritaneu’. Sócrates não deixava

saída para seus juízes. Ou a pena de morte, pedida por Meleto, ou ser

alimentado no Pritaneu, enquanto fosse vivo, como herói ou benemérito

da cidade. Impossível voltar atrás, desfazer a condenação, inocentar o

acusado. Entre a morte e as impossíveis recompensas, os juízes ficaram

sem alternativa real. Par não abrir mão de sua própria consciência,

Sócrates optara pela morte. (Pessanha, 1999: 5).

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Condenado a morte bebendo veneno (cicuta) pela Assembléia de Atenas,

Sócrates esperou um mês até que um navio que levou uma delegação para a

tradicional festa de Apolo em Delos, retornasse a Atenas, pois “nenhum condenado

poderia ser executado na cidade, para que esta não fosse manchada” (Rocha,

2001:70). A execução de Sócrates deveria ocorrer um dia após a chegada do navio ao

porto de Atenas, antes do nascer do Sol, pois segundo a tradição: “Até os raios do sol

se manchariam com o contato da morte” (Junito Brandão, apud Rocha, 2001: 73). Um

navio do governo tinha sido enviado para o santuário de Delfos para as

comemorações da vitória do herói mitológico ateniense Teseu sobre o Minotauro que

era um monstro de metade homem e metade touro que morava no labirinto em Creta.

Segundo o livro de Zeferino Rocha, Sócrates não morreu sozinho, como alguns

afirmam, somente na presença do guarda na prisão, e propõe:

“No Fédon, temos a lista dos que estavam presentes na hora em que

Sócrates bebeu a cicuta. Foram eles: Apolodoro (que era seu ‘fanático’

admirador), Critóbulo e seu pai Critón (que cuidavam dos interesses do

mestre e tinham por Sócrates uma dedicação muito especial),

Hermógenes (que aparece no diálogo Euthidemo), Menexeno (que é

igualmente o nome de um dos diálogos socráticos de Platão). Estavam

também presentes: Antístenes (que freqüentava os círculos sofistas e

que depois se tornou fundador da escola cínica), Aristipo e Fédon.

Platão, ao que tudo indica, estava doente. Dos discípulos das outras

cidades encontravam-se Símias de Tebe e Cebes que aparecem como

interlocutores de Sócrates no Fédon. Estava também presente Euclides,

que fundou a escola eleático-socrática de Megera”. (Rocha, 2001:75).

Sócrates termina convencendo Critón, seu amigo, de que sua morte era

necessária para fortalecer a democracia, as leis e a cidade de Atenas. Em um diálogo

escrito e retratado por Platão, um dia antes de sua morte na prisão, ele fala:

“Se morres, serás vítima da injustiça, não das leis, mas sim dos homens

e se sais daqui vergonhosamente, trocando justiça por injustiça e mal

por mal, faltarás ao pacto que te obriga conosco, leis, e prejudicarás a

muito que não deveriam esperar isto de ti e a ti mesmo, bem como

conosco, a teus amigos e à tua pátria. (...) Deixemo-nos, pois, amado

Críton, e sigamos o caminho ao qual nos conduz o deus”.(Sócrates,

apud Platão, 1981:97).

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Conclusão.

Acredito que Sócrates descobriu a chave que abriu a porta da razão. O mundo

ocidental tem essa lógica pelo pioneirismo do pensar socrático e da existência de Jesus.

Johannes Hessen em seu livro sobre a Teoria do Conhecimento escreveu que “Não sem

justiça, Sócrates é chamado de criador da filosofia ocidental” (2000: 5), e afirma:

“Todos os seus pensamentos e energias estão voltados para a

edificação da vida humana sobre a base da reflexão e do saber. Ele

tenta fazer com que todo agir humano seja um agir consciente, um

saber, e empenha-se em elevar a vida, com todos os seus conteúdos, ao

nível da consciência filosófica [conhecimento humano e científico]. (...)

A filosofia aparece em Sócrates e mais ainda em Platão como auto-

reflexão do espírito a respeito de seus mais altos valores teóricos e

práticos, os valores do verdadeiro, do bom e do belo”.(Ibidem, 6).

A cultura helênica de origem socrática se casou com o cristianismo e criou o

fundamento desvelador de “Deus” e da “Razão”. A sustentação da democracia, o

retirar a divindade das coisas do mundo, a explicação para a criação e para a nossa

existência, a ética, a moral, o bem, foram sementes plantadas no exemplo e

pensamento de Sócrates e na vida exemplar de Jesus.

É difícil fazer uma analogia entre o percurso de Sócrates e a divindade de Jesus,

porém Zeferino Rocha em seu livro faz uma menção sobre a morte de Sócrates que nos

faz cogitar:

“Sócrates nada deixou escrito, mas tudo o que disse foi inscrito no seu

modo de ser e de se comportar, na força do testemunho de sua vida e,

sobretudo, na força do testemunho de sua morte, que selou para sempre

a importância de sua doutrina”. (Rocha, 2001: 55).

Como Sócrates não deixou nada escrito, a maioria das suas idéias foi escrita por

Platão em seus Diálogos, por Xenofonte nas Memoráveis “general e historiador grego

(...) que procura reabilitar Sócrates das várias acusações que conduziram à sua

morte”.(Blackburn, 1997:413) e por Ésquines em diversas obras que foram perdidas.

As únicas referências escritas sobre Sócrates durante a sua vida foram realizadas pelos

poetas cômicos Aristófanes, Amípsias e Êupolis.

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Todas as obras que restaram mostram um Sócrates com idade superior a 45

anos, o que indica que o nosso filósofo atingiu sua maturidade intelectual por volta

desta idade. Existe uma certa dificuldade de distinguir o que é idéia platônica ou

socrática, porém acreditamos que Sócrates rompeu um paradigma histórico,

introduzindo a razão e fundou o que hoje conhecemos como filosofia.

Finalizando, vamos deixar uma mensagem de Sócrates que tinha como missão

tornar melhor os outros, não importando ser seu amigo ou inimigo. No diálogo com

Critón Sócrates fala que a única coisa que importa é viver honestamente, sem cometer

injustiças: “não se deve devolver a ninguém dano por dano, injustiça por injustiça

qualquer que seja a injúria recebida”. (Platão apud Mondolfo, 1963: 91). E Jesus...

Bibliografia:

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Cultural, 1999.

BLACKBURN, Simon, Dicionário Oxford de filosofia, RJ, Jorge Zahar Editor, 1997.

FERRATER MORA, José, Dicionário de Filosofia, SP, Edições Loyola, 2000.

HESSEN, Johannes, Teoria do Conhecimento, SP, Editora Martins Fontes, 2000.

HUISMAN, Denis, Dicionário dos Filósofos, SP, Editora Martins Fontes, 2001.

JAPIASSÚ, Hilton e Danilo Marcondes, Dicionário Básico de Filosofia, RJ, Jorge

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MONDOLFO, Rodolfo, Sócrates, SP, Editora Mestre Jou, 1963.

PESSANHA, José Américo Motta (org.), Sócrates, in Os Pensadores, SP, Nova

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PLATÃO, Diálogos - Criton , Hermus, Livraria Editora Ltda, 1981.

REZENDE, Antonio (org.), Curso de Filosofia, RJ, Jorge Zahar Editor, 2002.

** WINDELBAND, Wilhelm, Historia General de La Filosofia, México D.F.,

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ROCHA, Zeferino, A Morte de Sócrates, Monólogo Filosófico, SP, Editora Escuta,

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Vernant, Jean-Pierre, As origens do Pensamento Grego, RJ, Editora Bertrand Brasil,

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** Realizada tradução livre sob a responsabilidade do autor do texto.