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Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA)Member of the International Association for Analytical Psychology (IAAP)

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2 Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 20162 Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017

EditoralVera Lúcia Viveiros Sá – editora-geralFani Goldenstein Kaufman – editora assistenteMaria Zelia Alvarenga – editora de resenhas

Conselho EditorialFani Goldenstein KaufmanFernanda Gonçalves MoreiraMarcia Moura CoelhoMarfiza ReisMaria Zélia AlvarengaRodney TaboadaVera Lúcia Viveiros SáVictor Roberto Da Cruz Palomo

Conselho Editorial InternacionalAxel Capriles – Sociedad Venezolana deAnalistas JunguianosJacqueline Gerson – Asociación Mexicanade Analistas JunguianosJuan Carlos Alonso – Asociación para el Desarrollode la Psicología Analítica en Colombia – AdepacLuis Sanz – Asociación Venezolana de PsicologíaAnalíticaMariana Arancibia – Grupo de Estudios C. G. Jungde ChileMario E. Saiz – Sociedad Uruguaya de Psicología AnalíticaNestor Costa – Asociación de Formación e Investigaciónen Psicología AnalíticaPatricia Michan – Asociación Mexicana de AnalistasJunguianosVladimir Serrano Pérez – Fundación C. G. Jungdel Ecuador

Consultores científicosChristina Hajaj Gonzales – Universidade Federal deSão Paulo, SPDurval L. de Faria – Pontifícia Universidade Católica, SPJoão Frayze-Pereira – Universidade de São Paulo, SPMariluce Moura – revista Pesquisa Fapesp, SPMarisa Müller – Pontifícia Universidade Católica, RSPaulo Vaz de Arruda – Faculdade de Medicina daUniversidade de São Paulo, SP

Preparação, revisão de texto e produção gráficaAtual Design

Capa: Ana Gabriela Barth

São Paulo, 2017

Junguiana: Revista da Sociedade Brasileira

de Psicologia Analítica – n.1 (1983)

São Paulo: Sociedade, 1983 -

semestral

ISSN 0103-0825

1.Psicologia – periódicos

CDD 150

SOCIEDADE BRASILEIRADE PSICOLOGIA ANALÍTICA

A revista Junguiana tem por objetivo publicar trabalhos originaisque contribuam para o conhecimento da psicologia analítica eciências afins. Publica artigos de revisão, ensaios, relatos depesquisas, comunicações, entrevistas, resenhas. Os interessadosem colaborar devem seguir as normas de publicação especificadasno final da revista.A Junguiana também está aberta a comentários sobre algumartigo publicado, bastando para isso enviar o texto para o [email protected].

São Paulo

Diretores – Gestão 2015-2017André Luiz Saraiva Pinheiro – PresidenteLuis Fernando Nieri de Toledo SoaresLuis Paulo Cotrim Amorim – Diretor do Instituto de FormaçãoElaine Franzini Soria – Diretora de Cursos e EventosAna Célia Rodrigues de Souza – Diretora de BibliotecaRegina dos Santos Vicente – Diretora da ClínicaAna Maria Cordeiro – Diretora de Comunicação/Divulgação

Rua Dr. Flaquer, 63 – Paraíso – 04006-010Telefax: (11) 5575-7296E-mail: [email protected] page: www.sbpa.org.br

Associada Rio de JaneiroMaddi Damião Júnior – PresidenteMarcello Fiorillo Bogado – Administração e SecretariaAlexandre Alves Domingues – Publicação e BibliotecaSuely Engelhard – Finanças e TesourariaCarla Maria Portella Dias Bezerra – Cursos e EventosElizabeth Christina Cotta Mello – Ensino

Tel.: (21) 2235-7294E-mail: [email protected] page: www.sbpa-rj.org.br

IndexaçãoIndex Psi Periódicos: www.bvs-psi.org.brBase de dados Lilacs/Bireme – Literatura Latino--Americana e do Caribe da Saúde, da OrganizaçãoPan-Americana da Saúde (Opas) e da OrganizaçãoMundial da Saúde (OMS). www.bireme.br

JunguianaREVISTA LATINO-AMERICANA DA SOCIEDADEBRASILEIRA DE PSICOLOGIA ANALÍTICAVolume 35-1/2017

Luis Fernando Nieri de Toledo Soares – Diretor Administrativo/Tesoureiro

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Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017 3

Editorial

Esta é a Junguiana 35/1, revista com 35 anos

de história, citada como referência em artigos, dis-

sertações, teses e livros. Simultaneamente, é a

segunda edição eletrônica da Junguiana, uma re-

cém-chegada à cibercultura. Por um lado, o conhe-

cimento conquistado; por outro, a inexperiência

dos iniciantes. O mundo virtual apresenta novos

códigos culturais e também atualiza temas arquetípicos da cultura humana ancestral. Estamos atua-

lizando os “softwares puer e senex”: imagens arquetípicas fundamentais para o crescimento.

Neste volume, voltamos a publicar os textos completos em português, com resumos em português,

inglês e espanhol. Essa mudança teve por finalidade diminuir o custo de produção da Junguiana,

devido aos “desafios econômicos financeiros enfrentados pelas instituições publicadoras e de fi-

nanciamento de nossas revistas”.1

Iniciamos este volume com o texto “Ecologia da alma: a natureza na obra científica de Carl Gustav

Jung”, uma pesquisa que buscou “apontar a relevância da natureza para a formulação da psicologia

analítica”. “Prevenção começa em casa: contribuições da neurociência” aborda a “importância do

processo de tomada de decisão nas dependências”. “Imagem corporal e gravidez” traz ao foco al-

guns dos paradoxos desse aspecto da gestação. “O fim da análise” reflete sobre “questões relaciona-

das ao término da análise de forma geral”. “Vilão ou herói? Uma meditação sobre a representação do

negro em dois contos folclóricos brasileiros” examina dois contos folclóricos brasileiros do século XIX.

“Elaboração das vivências psíquicas: o papel da literatura” tem “como objetivo explorar como a lite-

ratura pode auxiliar na elaboração de vivências psíquicas”. “‘Casa tomada’ – leitura de um conto de

Julio Cortázar” sugere “pontes para a interlocução entre psicologia analítica e literatura”. Finalizamos

com a resenha “Calatonia – o toque sutil na psicoterapia”, uma delicada homenagem à professora

Rosa Maria Farah, falecida em 27 de dezembro de 2016.

Boa leitura!

Vera Lúcia Viveiros SáEditora-geral

junho de 2017

Junguianav.35-1, p.3

1 http://www.resourcenter.net/images/SSP/Files/2017/Regionals/SSPBrazil2017Agenda.pdf

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4 Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 20164 Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017

SumárioContents

5 Ecologia da alma: a natureza naobra científica de Carl Gustav JungAlisson José Oliveira Duarte

21 Prevenção começa em casa:contribuições da neurociênciaMaria Paula Magalhães Tavares de Oliveira

33 Imagem corporal e gravidezBárbara Gabriel Capecce Petribú eMartin Antonio Borges Alvarez Mateos

41 O fim da análiseMaria Carolina Barrieu e Silvana Parisi

49 Vilão ou herói? Uma meditação sobre a representaçãodo negro em dois contos folclóricos brasileirosMarco Heleno Barreto

61 Elaboração das vivências psíquicas:o papel da literaturaIsabela Paixão Rodrigues eFernanda Gonçalves Moreira

71 “Casa tomada” – leitura de umconto de Julio CortázarVictor Palomo

80 ResenhaCalatonia – o toque sutil na psicoterapiaSylvia Mello Silva Baptista

82Normas para publicação

Ecology of the soul: the nature in thescientific work of Carl Gustav Jung

Prevention starts at home:neuroscience contributions

Body image and pregnancy

The end of the analysis

Book reviewCalatonia: the subtle

touch in psychotherapy

Guidelines for publishing

Villain or hero? A meditation on the representation

of the Negro in two Brazilian folk tales

Psychic experiences’ elaboration:the role of literature

“Casa tomada” – a short storyby Julio Cortázar

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Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 2016 5Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017 5

v.35-1, p.5-19

jan-jun.2016

Alisson José Oliveira Duarte*

ResumoAo estudar a obra de Carl Gustav Jung, bem

como seu percurso biográfico, é notável a qual-quer pesquisador que a natureza representouinspiração no processo de constituição de suacosmovisão científica e pessoal. Nesse sentido,buscou-se, com esta pesquisa, apontar a rele-vância da natureza para a formulação da psico-logia analítica, resgatando, nas obras completasdo autor (34 volumes) citações em que o termo“natureza” foi utilizado para sustentar conceitosde sua teoria. Os achados (137 parágrafos) apon-tam que o autor concebia o funcionamento psí-quico de maneira análoga ao funcionamento dossistemas naturais.

Ecologia da alma: a natureza naobra científica de Carl Gustav Jung

Palavras-chaveEcologia humana,C. G. Jung,natureza.

* Psicólogo, especialista em psicanálise clínica e mestre em educa-ção pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro – UFTM, Uberaba(Minas Gerais).E-mail: <[email protected]>.

Junguiana

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6 Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017

1. IntroduçãoO estudo da obra de Carl Gustav Jung nos

permite observar a peculiaridade de um autor queutilizou, em sua teoria, inúmeras observações danatureza para fundamentar tendências do psi-quismo humano. Diversas passagens de seus es-critos teóricos e biográficos revelam o caráter“ecológico” de sua obra. Jung mantinha profun-do respeito pela natureza e conexão com ela efalou intensamente, em sua obra, sobre a neces-sidade do homem de se reencontrar com a origi-nalidade primária de seu próprio ser:

[...] a pura natureza está dentro de vós. E se

conhecerdes a pura natureza, que é vosso ver-

dadeiro ser, liberto de todo egoísmo perverso,

então conhecereis a Deus; pois a divindade está

oculta dentro da pura natureza, tal como a noz

no envoltório da casca. (JUNG, 2011, v. 16/2,

par. 508).

De acordo com o autor, “não devemos suge-rir à natureza o que fazer, se quisermos obser-var seu comportamento espontâneo” (JUNG,2011, v. 7/2, p. 10). Ele defendia a livre expres-são do psiquismo e o rompimento com tudoaquilo que condiciona e aliena o comportamen-to natural. Em outra passagem, afirmou que “avida natural é o solo em que se nutre a alma”(JUNG, 2011, v. 8/2, par. 800). E sobre o incons-ciente, declarou: “o inconsciente é natureza quenunca se engana: só nós nos enganamos” (JUNG,2011, v. 5, par. 95).

Por meio da natureza, Jung fundamentou ocaráter individual e coletivo da mente humana.Para ele, o homem, em sua jornada de autoco-nhecimento, se torna completo na medida emque consegue manter o equilíbrio entre nature-za coletiva e natureza individual, ou seja, “a sin-gularidade de um indivíduo não deve ser com-preendida como uma estranheza de sua subs-tância ou de suas componentes, mas sim como

uma combinação única” de seus elementos uni-versais (JUNG, 2011, v. 7/2, par. 267).

É importante lembrar que a trajetória científi-ca de Jung foi fortemente marcada pelo roman-tismo de Goethe e sua profunda contemplaçãodo meio natural. Para Goethe, nenhum cientistapode alcançar as verdades da natureza desinte-grando-se dela, aplicando abstrações frias paracompreendê-la ou registrando o mundo exteriorde maneira mecanicista (TARNAS, 2000).

Para Pinheiro (1997), a psicologia deve parti-cipar das discussões e lançar propostas para acrise ambiental. Isso porque, segundo ele, nãoexistem problemas isoladamente ambientais,mas humano-ambientais. Nesse sentido, estapesquisa também procura fomentar a busca porrespostas de como a psicologia analítica podecontribuir para o entendimento da ecologia nainterioridade do homem, promovendo sua reco-nexão com o meio e um profundo sentimento deética e integração com a vida.

A crise ambiental reflete o estado da psiquehumana. Tudo o que pertence à realidade exter-na ocupa em nós um lugar interno: o sol, a lua, aágua, as plantas, os animais, tudo vive em nós,na forma de arquétipos que povoam nosso mun-do intrapsíquico por meio de imagens, símbo-los e valores.

Em uma entrevista realizada por McGuire eHull (1997, p. 189), Jung descreveu a ligação en-tre o homem e o meio ambiente a partir dos se-guintes termos:

Todos nós precisamos de alimento para a psi-

que, é impossível encontrar esse alimento nas

habitações urbanas, sem uma única mancha

de verde ou árvore em flor; necessitamos de

um relacionamento com a natureza; precisamos

projetar-nos nas coisas que nos cercam; o meu

eu não está confinado no corpo; estende-se a

todas as coisas que fiz e a todas as coisas à

minha volta, sem estas coisas não seria eu

Ecologia da alma: a natureza na obra científica de Carl Gustav Jung

v.35-1, p.5-19

Junguiana

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v.35-1, p.5-19

Junguiana

mesmo, não seria um ser humano. Tudo que me

rodeia é parte de mim.

A cisão vivida por nós pode ser atestada ob-servando-se a maneira pela qual separamos oespaço interno do espaço externo. O mundo pró-prio é o que importa: corpo, casa e família. Asruas, avenidas, rios, praias, animais e plantassão vivenciados como se não fossem da nossaalçada, como se ninguém fosse por eles respon-sável e como se não fossem extensão de nósmesmos.

De acordo com Jung (2011, v. 8/2, par. 702),“a melhor maneira de compreender o inconscien-te é considerá-lo como um órgão natural dotadode uma energia criadora específica”. Diferente deSigmund Freud, Jung não admitia o inconscienteapenas como um reservatório de conteúdos re-primidos pela moralidade social. Pelo contrá-rio, ressaltava a capacidade dinâmica do incons-ciente de criar conteúdos e o concebia comobase natural de todos os conteúdos arcaicos dahumanidade (sentimentos, instintos, imagense mitos).

Para ele, “a natureza reflete tudo que existeem nosso inconsciente” (JUNG, 2011, v. 5, par.170), como se o funcionamento do sistema psí-quico humano fosse diretamente equivalente ouidêntico ao funcionamento ecológico (dinâmico,potencial, sistêmico, homeostático, criador edestruidor).

Em uma de suas passagens mais significa-tivas, o autor chegou a afirmar que sua obra (apsicologia analítica) visa, acima de tudo, “rom-per com as muralhas que nos separam da natu-reza que há em nós” (JUNG, 2011, v. 8/2, par. 739).O autor afirmou, ao longo de toda a sua pesqui-sa científica, a necessidade do homem de serealizar, assim como uma semente se realiza tor-nando-se árvore. A esse processo, que consisteno ato de tornar-se si mesmo, ele deu o nomede individuação.

Para Jung, o psiquismo segue um curso na-tural e, se esse fluxo é inibido, o sistema psíqui-co entra em desequilíbrio, como qualquer outro

sistema natural. “Se tivermos a natureza comoguia, nunca trilharemos caminhos errados” (JUNG,2011, v. 10/3, par. 34). A esse respeito, o autorintroduziu em sua teoria o conceito de persona,que definia como um princípio de adaptação quetem por objetivo ocultar a verdadeira naturezado indivíduo – uma espécie de máscara, funda-mental para a adaptação social, bem como paraa constituição do processo cultural.

Como é sabido o processo cultural consiste na

repressão progressiva do que há de animal no

homem: é um processo de domesticação que

não pode ser levado a efeito sem que se insurja

a natureza animal sedenta de liberdade. (JUNG,

2011, v. 7/1, par. 17).

De acordo com Jung, a neurose surge com oprocesso de domesticação social. Para ele, “oneurótico é apenas um caso específico de pes-soa humana tentando conciliar dentro de si na-tureza e cultura” (JUNG, 2011, v. 7/1, par. 16). Noentanto, o autor reconhecia a necessidade dohomem de viver em sociedade; não prezava oisolamento social nem a completa massificação,sugerindo que o processo de individuação ou derealização da totalidade do ser acontecesse comoconsequência do equilíbrio entre seus aspectosnaturais e sociais. Ou seja, procura-se, e com cer-teza sempre se há de procurar, o caminho do meio,um ponto em que os opostos se unam.

É certo que a psicanálise pode tornar conscien-

te os instintos animais do homem, mas não,

como alguns interpretam, para deixá-los entre-

gues a uma liberdade sem freio e sim para inte-

grá-los num todo harmonioso. (JUNG, 2011, v. 7/1,

par. 28).

Em diversas passagens de sua obra, ressal-tou que o mal é parte da natureza humana e que,portanto, não se pode anulá-lo: ele sempre iráressurgir como parte integrante da personalida-de. O autor advertia que a única saída para essesentimento é a integração do mal nos processos

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8 Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017

da personalidade, por meio do autoconhecimen-to. Isso não sugere nem incentiva a identificaçãocom essa tendência, o que seria inadequado eenvolveria o indivíduo em crueldade e em um com-portamento antissocial.

A imagem do mal é figurada no psiquismohumano por meio do arquétipo que Jung chamoude sombra. Esse arquétipo aponta para a neces-sidade, como requisito fundamental no processode individuação, de se integrar a personalidade.

As pessoas quando educadas para enxergar cla-

ramente o lado sombrio de sua própria natureza

aprendem ao mesmo tempo a compreender e

amar seus semelhantes. Pois somos facilmen-

te levados a transferir para nossos semelhantes

a falta de respeito e violência que praticamos

contra nossa própria natureza. (JUNG, 2011, v.

7/1, par. 28).

No livro A prática da psicoterapia, Jung res-saltou que um bom psicoterapeuta deve desen-volver a habilidade de reconhecer as pistas danatureza interior de seus pacientes, como umguia no processo de realização da totalidade doser. Acerca do comportamento ético do psicote-rapeuta diante de seu cliente, afirmava:

No desenvolvimento psicológico é importante

que o psicoterapeuta deixe imperar a natureza e

que evite na medida do possível influenciar o

paciente com seus próprios pressupostos filo-

sóficos. (JUNG, 2011, v. 16/1, par. 42).

Embora Jung concebesse que o funcionamen-to e as bases arquetípicas do psiquismo fossemas mesmas para todos os indivíduos, considera-va de fundamental importância que as pessoasfossem, durante a psicoterapia, reconhecidas den-tro de sua singularidade potencial para a reali-zação e diferenciação do ser. Nesse sentido, ocomportamento de neutralidade do psicotera-peuta, prezado pelo autor, visava acima de tudopreservar, ou não deturpar, os germes da origi-nalidade de seus pacientes.

Para Jung, as neuroses têm o propósito delevar o indivíduo a sua natureza real: isto é, “sóaquilo que somos realmente tem o poder de noscurar” (JUNG, 2011, v. 7/2, par. 258). Nesse sen-tido, a psicoterapia não era vista apenas comoum processo de eliminação de sintomas, massim um direcionamento do paciente a uma reno-vação de atitude frente à própria vida.

O paciente deve ser capaz, não só de reconhecer

a causa e a origem de sua neurose, mas também

de enxergar a meta a ser atingida. A parte doente

não pode ser simplesmente eliminada, como se

fosse um corpo estranho, sem risco de destruir

ao mesmo tempo algo de especial que deveria

continuar vivo. Nossa tarefa não é destruir, mas

cercar de cuidados e alimentar o broto que quer

crescer até tornar-se finalmente capaz de desen-

volver o seu papel dentro da totalidade da alma.

(JUNG, 2011, v. 16/2, par. 293).

De acordo com o autor, o psicoterapeuta, du-rante o atendimento de seu paciente, deve estaratento às imagens que surgem espontaneamen-te por meio da arte e, sobretudo, dos sonhos, que,para ele, representam uma manifestação da maispura natureza humana. Aliás, os sonhos são, emsua concepção, “uma tentativa de trazer de vol-ta nossa mente original” (JUNG, 2011, v. 18/1,par. 591).

Ao longo da obra de Jung (2011), é possívelidentificar, ainda, inúmeras passagens alegóri-cas nas quais o autor comparava os fenômenosnaturais aos processos inconscientes e matura-cionais dos seres humanos.

Mediante as inúmeras passagens que reve-lam o caráter ecológico da obra de Jung, bemcomo sua relevância para a constituição da psi-cologia moderna, consideramos importante umareleitura de sua teoria, tomando como ponto departida o valor e a função da natureza para a cons-tituição de seu trabalho científico.

Afinal, somos parte da natureza e guardamosos traços arquetípicos de nossa ancestralidade.O abandono de nossas raízes naturais significa

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Junguiana

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uma cisão de nós mesmos e talvez essa disso-ciação, do homem com o meio e com sua próprianatureza, esteja à frente dos principais problemasecológicos da atualidade.

2. Resultados e discussão dos dadosAntes de apresentar os resultados desta pes-

quisa, acerca da função da natureza na teoriaanalítica de C. G. Jung, é importante vislumbrarminimamente a história de vida desse autor eos fatos que influenciaram a formulação de suateoria psicoecológica. De acordo com Von Franz(1992), fiel colaboradora do autor, o interessede Jung pela natureza iniciou-se logo em sua pri-meira infância, influenciado pelas tendênciaspagãs de sua mãe.

A natureza foi sua maior paixão, e Jung, tal como

sua mãe, sentiu-se, desde o começo da juven-

tude, parcialmente enraizado num profundo e

invisível solo, em alguma coisa vinculada aos

animais, às árvores, às montanhas, às campi-

nas e à água corrente. Esse amor opôs à tradi-

ção cristã do mundo do seu pai. (VON FRANZ,

1992, p. 29).

Jung, durante toda a sua vida, amou a natu-reza em suas mais diversas manifestações. Ja-mais se cansou da beleza dos lagos, dos ani-mais, montanhas e florestas. A natureza foi desubstancial importância no processo de cons-tituição de sua personalidade, de suas concep-ções científicas e de sua maneira de ver a vidacomo um todo, havendo tocantes alusões acer-ca da natureza espalhadas em suas obras (VONFRANZ, 1992). Já ancião, falando das limitaçõesda idade, declarou:

Mesmo assim há muita coisa que me preenche:

plantas, animais, nuvens, o dia e a noite, e o

eterno que há no homem. Quanto mais acentua

a incerteza em relação a mim mesmo, mais au-

menta meu sentimento de parentesco com todas

as coisas. (JUNG, 1987, p. 310).

Foi por meio desse sentimento de “paren-tesco com todas as coisas” que Jung identificouna natureza fundamentos lógicos para explicaros fenômenos da psique humana e, consequen-temente, de sua própria natureza interior.

Com o propósito de analisar esses fundamen-tos ecológicos largamente utilizados por Jung(2011) em sua obra científica, buscamos localizarnos Índices Gerais de sua Obra Completa, dividi-da e organizada em parágrafos rigorosamenteenumerados, as principais passagens em que oautor revelou o caráter ecológico de sua teoria.Lembramos que, devido às inúmeras citações, estetrabalho oferecerá somente uma amostra limita-da do conjunto de citações que evidenciam o teorecosófico do pensamento junguiano.

Por meio dos quadros subsequentes, apre-sentamos os conceitos da teoria analítica maiscitados e fundamentados pelo autor, por meio dereferências e alusões ecológicas.

v.35-1, p.5-19

Junguiana

CONCEITODinâmica psíquica

CITAÇÕESNossa psique é uma parte da natureza e seu

mistério é igualmente insondável. Não pode-

mos definir “natureza” e “psique”, podemos

apenas constatar o que atualmente entende-

mos por elas. (JUNG, 2011, v. 18/1, par. 439).

A psique não é um fenômeno da vontade,

mas natureza que se deixa modificar com

arte, ciência e paciência em alguns pontos,

mas não se deixa transformar num artifício,

sem profundo dano ao ser humano. O ho-

mem pode transformar-se num animal doen-

te, mas não em um ser ideal imaginado.

(JUNG, 2011, v. 10/3, par. 831).

A natureza é um contínuo, e muito provavel-

mente a nossa psique também o é. (JUNG,

2011, v. 18/1, par. 181).

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10 Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017

v.35-1, p.5-19

Junguiana

Jung sugeria que o funcionamento psíquico éinstintivamente equivalente ao funcionamentodos sistemas naturais. E, como qualquer outrosistema natural, o psiquismo é natureza que nãose deixa deturpar sem que isso resulte em adoe-cimento psíquico.

O autor salientava que sua psicologia concebeo homem tanto em seu estado natural como emseu estado modificado pela cultura, advertindo queo homem deve ser interpretado e compreendidolevando-se em consideração a sua totalidade.

Para Jung, o inconsciente coletivo é uma es-trutura psíquica que já vem com a criança desdeo seu nascimento, repleta de conteúdos arcai-cos, próprios da natureza humana; em outrostermos, é um órgão natural sujeito às mesmasleis que regem o meio ambiente e no qual seencontra constantemente projetado.

O inconsciente, assim como a própria nature-za, é um sistema neutro e destituído de valores

CONCEITOInconsciente coletivo

CITAÇÕESO inconsciente coletivo tem correspondên-

cia com nosso meio ambiente natural, e no

qual se encontra projetado constantemen-

te. (JUNG, 2011, v. 10/4, par. 667).

O fundo da psique é natureza e natureza é

vida criadora. É verdade que a própria natu-

reza derruba o que construiu, mas vai recons-

truir de novo. (JUNG, 2011, v. 10/3, par. 187).

Nosso real conhecimento do inconsciente

mostra que ele é um fenômeno natural, e que,

tanto quanto a própria natureza, é no mínimo

neutro. Ele abrange todos os aspectos da na-

tureza humana: luz e escuridão, beleza e

feiura, bem e mal, o profundo e o superficial.

(JUNG, 2011, v. 18/1, par. 607).

CONCEITOArquétipos

CITAÇÕESO arquétipo é natureza pura, não deturpada

e é a natureza que faz com que o homem pro-

nuncie palavras e execute ações de cujo sen-

tido ele não tem consciência, e tanto não tem,

que ele já nem pensa mais nelas. (JUNG,

2011, v. 8/2, par. 412).

Quer o homem compreenda ou não o mundo

dos arquétipos, deverá permanecer conscien-

te do mesmo, pois nele o homem ainda é

natureza e está conectado com suas raízes.

(JUNG, 2011, v. 9/1, par. 174).

Os arquétipos são de certa forma os funda-

mentos da psique consciente ocultos na pro-

fundidade ou, usando outra comparação

com suas raízes afundadas não só na terra,

em sentido estrito, mas no mundo em geral.

[...] Propriamente falando, são a parte etonica

da psique, se assim podemos falar, aquela

parte através da qual a psique está vincula-

da à natureza. (JUNG, 2011, v. 10/3, par. 53).

morais. Carrega em si o potencial criador e des-truidor, o bem e o mal, e, sendo pura natureza,jamais fantasia seus receios e anseios (ao con-trário da concepção freudiana, que via no incons-ciente uma tendência defensiva à negação dosconteúdos geradores de ansiedade).

Os arquétipos, para Jung, tratam de conteúdospsíquicos arcaicos herdados filogeneticamente denossos ancestrais; são reflexo das mesmas ex-periências, inúmeras vezes repetidas e vivenciadaspor nossos antepassados desde as primeiras erasda evolução genética da espécie humana. Por essarazão, o arquétipo é equivalente ao instinto e re-flete em todos os sentidos os padrões de compor-tamento da natureza humana.

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Junguiana

CONCEITONeurose

CITAÇÕESO excesso de animalidade deforma o homem

cultural; o excesso de cultura cria animais

doentes. (JUNG, 2011, v. 7/1, par. 32).

Quando o homem perde algumas de suas

funções naturais, isto é, quando esta se vê

excluída de sua atividade consciente e in-

tencional, ocorre um distúrbio geral, neuro-

tização. (JUNG, 2011, v. 10/1, par. 544).

O significado de uma neurose é impulsionar

o indivíduo para a personalidade total, o que

inclui o reconhecimento e responsabilida-

de pela totalidade do ser, pelos bons e maus

aspectos, pelas funções inferiores. (JUNG,

2011, v. 18/1, par. 367).

O autor deixava claro que, no mundo dos ar-quétipos, o homem ainda se encontra conectadocom sua natureza profunda. E, assim como a na-tureza é arcaica e ao mesmo tempo criadora, Jungressalta que os arquétipos não são apenas es-truturas ultrapassadas, mas fonte de energia cria-dora na arte, na ciência e nas melhores ideias denosso tempo – e que são também responsáveispelas bases da psique consciente.

Para Jung, a neurose advém do conflito entrenatureza e cultura – o sistema psíquico entra emum estado de adoecimento quando o indivíduonega, reprime ou desconhece aspectos de suaprópria natureza. Ele descrevia o indivíduo neuró-tico como unilateral, demonstrando que, quandoenfatizamos demasiadamente um lado de nossapersonalidade em detrimento do outro, instala-seo conflito. Assim, como todo sistema natural de-pende de sua totalidade para funcionar perfeita-mente, o autor considerava a neurose uma disso-ciação que impede a perfeita dinâmica psíquica.

A neurose não é, para ele, somente um con-junto de sintomas (negativos) que deve ser sim-plesmente eliminado, mas um mecanismo quevisa, acima de tudo, levar o indivíduo ao seuprocesso de individuação e autoconhecimento.Aliás, a neurose é, para ele, uma tentativa de au-tocura da natureza.

Para o autor, a resolução do conflito entreopostos (forças, valores e sentimentos antagô-nicos) é requisito fundamental no processo derealização da totalidade do ser. O autor obser-vou esse conflito, que ele também chamou deenantiodromia, nos fenômenos e processos na-turais. Salientava que, assim como ocorre nanatureza, a psique humana tende naturalmentea buscar uma terceira saída aceitável, quandoduas forças opostas chocam-se entre si.

CONCEITOOpostos

CITAÇÕESA própria natureza procura o antagônico e

dele tira a harmonia e não do idêntico. (JUNG,

2011, v. 6, par. 443).

O problema dos opostos como princípio ine-

rente à natureza humana constitui uma eta-

pa a mais no desenvolvimento do nosso pro-

cesso de autoconhecimento. (JUNG, 2011,

v. 7/1, par. 88).

A ciência termina nas fronteiras da lógica, o

que não ocorre com a natureza, que flores-

ce onde teoria alguma jamais penetrou. A

venerabilis natura (venerável natureza) não

para no antagonismo, mas serve-se do mes-

mo para formar um novo nascimento. (JUNG,

2011, v. 16/2, par. 524).

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Junguiana

CONCEITOInstinto

CITAÇÕESQuanto mais civilizado, mais consciente e

complicado for o homem, tanto menos ele

será capaz de obedecer aos instintos. As

complicadas situações de sua vida e as in-

fluências do meio ambiente se fazem sentir

de maneira tão forte, que abafam a débil voz

da natureza. (JUNG, 2011, v. 9/2, par. 40).

A separação de sua natureza instintiva leva

o homem civilizado ao conflito inevitável

entre consciência e inconsciente, entre espí-

rito e natureza, fé e saber, ou seja, a cisão de

sua própria natureza que, num dado momen-

to, torna-se patológica, uma vez que a cons-

ciência não é mais capaz de negligenciar ou

reprimir a natureza instintiva. (JUNG, 2011,

v. 10/1, par. 558).

Quando o instinto animal é varrido do cons-

ciente por meio da repressão, pode aconte-

cer que irrompa espontaneamente com toda

força, de forma desordenada e incontrolável.

(JUNG, 2011, v. 10/3, par. 31).

Jung declarou diversas vezes, em sua obra, oquanto os instintos humanos vêm sendo afeta-dos pelo processo cultural. No entanto, convémdestacar que ele não era contrário à formação dassociedades e reconhecia sua inegável importân-cia para a vida coletiva da humanidade. Suas con-siderações tão somente denunciavam os prejuí-zos trazidos pelo processo cultural quando essepretende reprimir completamente a base instinti-va da humanidade. Para o autor, não há repres-são dos instintos sem graves consequências, tan-to para o indivíduo (que se torna infeliz e neuró-tico) como para a própria sociedade (que podesofrer, nos momentos mais inesperados, a açãodesordenada e violenta de indivíduos e massas).

Ele acreditava que o homem moderno, parao seu próprio bem, deve manter-se conectadoàs suas bases instintivas e às suas raízes natu-rais, a fim de integrá-las em um todo harmonio-so. Essa seria uma atitude de autoconhecimentoe de (auto)respeito perante a complexidade doser, que não é somente cultural, mas tambémnatural.

Jung concebia a persona como uma funçãonatural, destinada à adaptação social do indiví-duo, e responsável pelo processo de alienaçãocultural. Seu símbolo é a máscara e, etimologi-camente, está ligada ao termo “personagem”. Pormeio da persona, os seres humanos desempe-nham funções e papéis sociais em seus grupos.Mas, de acordo com o autor, ao mesmo tempoem que a persona oferece o suporte fundamentalpara o homem viver em sociedade, igualmenterepresenta um obstáculo em seu processo de to-talização do ser ou de sua verdadeira identida-de. Afinal, a persona tende a ocultar a real nature-za do indivíduo para que ele seja aceito no meioem que se inter-relaciona.

CONCEITOPersona

CITAÇÕESA persona é um complicado sistema de rela-

ção entre a consciência individual e a socie-

dade; é uma espécie de máscara destinada,

por um lado, a produzir um determinado efei-

to sobre os outros e por outro lado a ocultar

a verdadeira natureza do indivíduo. (JUNG,

2011, v. 7/2, par. 305).

CONCEITOIndividuação

CITAÇÕESO sentido e a meta do processo de indivi-

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Junguiana

duação são a realização da personalidade

originária, presente no germe embrionário,

em todos os seus aspectos. É o estabeleci-

mento e o desabrochar da totalidade origi-

nária potencial. (JUNG, 2011, v. 7/1, par. 186).

O processo da individuação natural produz

uma consciência do que seja a comunidade

humana, porque traz justamente à consciên-

cia o inconsciente, que é o que une todos os

homens e é comum a todos os homens. A

individuação é o “tornar-se um” consigo mes-

mo, e ao mesmo tempo com a humanidade

toda. (JUNG, 2011, v. 16/1, par. 227).

Devo lembrar o fato psicológico de que, en-

quanto podemos constatar, a individuação

é um fenômeno natural [...]. Ela não é uma

invenção do homem, mas é a própria nature-

za que produz sua imagem arquetípica.

(JUNG, 2011, v. 18/2, par. 1641).

O autor concebia que todos os seres da na-tureza, independente de espécie, buscam a rea-lização de seu potencial no meio em que vivem.Assim como a semente almeja tornar-se árvoree, assim como o dia se totaliza com a noite, ohomem busca a sua própria realização. Para atin-gir essa meta, Jung ressaltava que o indivíduodeve conciliar natureza e cultura, integrar a som-bra à personalidade consciente do eu e desfazertodos os pares de opostos vigentes em sua vidapsíquica.

O autor, no entanto, advertia que individuaçãonão deve ser confundida com individualismo.Para ele, o individualista nega suas origens esuas raízes e vive em um mundo ilusório, no qualse acredita independente de seu próximo – fatopatológico, que ignora o verdadeiro sentido doprocesso de individuação.

Jung apontava a sombra e o mal como umafunção natural da psique humana. E, como todafunção natural, Jung considerava salutar que a som-bra fosse integrada à consciência e não elimina-da ou reprimida pela força da moralidade social.

Negar a sombra é como negar uma parte vitalda personalidade. Essa atitude seria, ao ver deJung, um desrespeito diante da totalidade do ser.A natureza só pode ser entendida em sua com-plexidade e a partir do que realmente é. Nessesentido, o autor destacava que a conscientizaçãoda sombra é fundamental para que o indivíduodeixe de projetar em seus semelhantes a anti-patia e a falta de respeito que tem para consigomesmo.

No processo de individuação, a integração dasombra aos processos da consciência é, de acor-do com o autor, uma necessidade primordial.

CONCEITOSombra

CITAÇÕESA moral ascética do cristianismo quer livrar-

-nos disso [da sombra] e assim nos expõe ao

risco de perturbar o mais profundo de nossa

natureza animal. (JUNG, 2011, v. 7/1, par. 35).

Se entendermos, então, que o mal habita a

natureza humana independente da nossa

vontade e que ele não pode ser evitado, o

mal entra na cena psicológica como o lado

oposto e inevitável do bem. (JUNG, 2011, v.

10/1, par. 573).

De qualquer forma não faremos justiça nem

à nossa natureza em geral, nem à nossa na-

tureza humana se negarmos a imensidade

do mal e do sofrimento, desviando nossos

olhares do aspecto cruel da criação. O mal

deveria ser reconhecido como tal e não ser

atribuído à pecabilidade do homem. (JUNG,

2011, v. 18/2, par. 1654).

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Junguiana

Em outros termos, a aceitação da sombra con-siste na aceitação incondicional da própria na-tureza, independentemente de suas flores ou deseus espinhos.

Jung era imperativo ao se referir aos sonhoscomo uma função natural da psique humana. Deacordo com ele, a razão dos sonhos seria umatentativa de trazer de volta à consciência nossamente original.

Diferente de Freud, Jung concebia os sonhosdentro de um fundo espontâneo e natural, en-quanto Freud os concebia cheios de nuanças,máscaras e mecanismos de defesa. Jung chegoua afirmar que os sonhos são o hálito da nature-za e que sua linguagem rica em símbolos arque-típicos carrega a verdade sobre a natureza dosindivíduos.

Jung via a espiritualidade/religiosidade comouma tendência natural e instintiva do homem, nãosendo possível anulá-la (como, por exemplo, peloateísmo), por se tratar de uma função psicológicafilogeneticamente herdada da humanidade. Paraele, não é possível tirar os deuses dos homens,mas apenas substituí-los por meio de outros, aosquais o indivíduo possa transferir a mesma quan-tidade de fé; por exemplo, à ciência.

CONCEITOSonhos

CITAÇÕESMuitas vezes, a natureza é obscura, sem

transparência, mas ela não usa de artima-

nhas, como o homem. Por isso devemos acre-

ditar que o sonho é exatamente o que deve

ser, nem mais, nem menos. (JUNG, 2011, v.

7/1, par. 162).

Os sonhos são imparciais, não sujeitos ao

arbítrio da consciência, produtos espontâ-

neos da psique inconsciente. São pura na-

tureza e, portanto, de uma verdade genuína

e natural; são mais próprios do que qual-

quer outra coisa. (JUNG, 2011, v. 10/3, par. 317).

O sonho é, portanto, um produto natural e

altamente objetivo da psique, do qual pode-

mos esperar indicações ou pelo menos pis-

tas de certas tendências básicas do processo

psíquico. (JUNG, 2011, v. 7/2, par. 210).

CONCEITOReligião

CITAÇÃOO homem não consegue extirpar de todo

suas convicções religiosas, porque a ativi-

dade religiosa repousa numa tendência ins-

tintiva e pertence às funções específicas do

homem. É possível retirar-lhe os deuses, mas

somente para lhe oferecer outros. (JUNG,

2011, v. 10/1, par. 544).

CONCEITOA prática da psicoterapia

CITAÇÃOA tarefa mais nobre da psicoterapia no pre-

sente momento é continuar firmemente a

serviço do desenvolvimento do indivíduo.

Procedendo desta forma, o nosso esforço

estará acompanhando a tendência da natu-

reza, isto é, estaremos fazendo com que de-

sabroche em cada indivíduo a vida na maior

plenitude possível, pois o sentido da vida

só se cumpre no indivíduo, não no pássaro

empoleirado dentro de uma gaiola dourada.

(JUNG, 2011, v. 16/1, par. 229).

Em psicoterapia, considero até aconselhável

que o médico não tenha objetivos demasia-

do precisos, pois dificilmente ele vai saber

mais do que a própria natureza ou a vontade

de viver do paciente. As grandes decisões da

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v.35-1, p.5-19

Junguiana

Jung considerava a psicoterapia um espaçoem que o psicoterapeuta deve utilizar-se da ex-pressão espontânea da natureza de seu pacien-te como guia de seu processo de individuação.Para ele, cada indivíduo cresce e se desenvolveao seu tempo e à sua maneira. Em se tratandode prática psicoterapêutica, prezava o compor-tamento ético e a postura de neutralidade comomeio de garantir que a originalidade do pacientenão seja afetada ou deturpada pela natureza dopsicólogo. Caso contrário, a meta da individuaçãoperderia o seu sentido e, alegoricamente, o psi-coterapeuta ocasionaria uma espécie de agres-são à natureza de seu paciente.

A obra de Jung (2011) está repleta de alusõese alegorias acerca da natureza. O autor conse-guia, com muita poética, traçar paralelos entre anatureza e os processos psicológicos dos sereshumanos. Para o autor, assim como existia umaecologia exterior, havia também uma ecologiainterior. Ele entendia a natureza como a únicafonte de manifestação da verdade, ou a mais pró-xima da realidade.

Muito antes dos atuais enfrentamentos eco-lógicos, Jung já falava sobre a necessidade de ohomem se reconectar com a natureza, criticandoinsistentemente a atitude de desconexão entreo homem e seu meio.

Sua concepção era de que nada no mundoestava separado da natureza e que tudo se espe-lhava e refletia no funcionamento natural. Assimcomo observava a primavera no meio externo,observava a infância no homem; assim comoadmirava o outono, admirava os processos psi-cológicos da meia-idade, como fenômenos dire-tamente análogos. Em tais comparações, ele não

vida humana estão, em regra, muito mais su-

jeitas aos instintos e a outros misteriosos

fatores inconscientes do que à vontade cons-

ciente, ao bom-senso, por mais bem-inten-

cionados que sejam. (JUNG, 2011, v. 16/1,

par. 81).

Com um resultado terapêutico satisfatório,

provavelmente pode dar-se o caso por en-

cerrado. Se assim não for, a terapia não terá

outro recurso a não ser orientar-se pelos da-

dos irracionais do doente. Neste caso, a na-

tureza nos servirá de guia e a função do mé-

dico será muito mais desenvolver os germes

criativos existentes dentro do paciente do que

propriamente tratá-lo. (JUNG, 2011, v. 16/1,

par. 82).

CONCEITOAlusões diversas

CITAÇÃOA alma do mundo é uma força natural, res-

ponsável por todos os fenômenos da vida e

da psique. (JUNG, 2011, v. 8/2, par. 393).

Há alguma coisa semelhante ao sol dentro

de nós, e falar em manhã de primavera, tarde

de outono da vida não é mero palavrório sen-

timental, mas expressão de verdades psico-

lógicas. (JUNG, 2011, v. 8/2, par. 780).

Árvore nenhuma cresce em direção ao céu,

se suas raízes também não se estenderem

até o inferno. (JUNG, 2011, v. 9/2, par. 78).

Por mais que joguemos fora a natureza por

meio da força, ela sempre retorna. (JUNG,

2011, v. 10/1, par. 514).

Falta contato com natureza que cresce, vive e

respira. A pessoa sabe o que é um coelho ou

uma vaca através de livros ilustrados, enci-

clopédias ou televisão. E pensa que conhe-

ce realmente, mas fica admirada quando

mais tarde descobre que o estábulo fede,

pois isso não estava na enciclopédia. (JUNG,

2011, v. 10/3, par. 882).

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16 Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017

via somente um ato romântico, mas alusões deprofunda verdade empírica.

De modo geral, ao longo dos 34 volumes quecompõem a obra completa de C. G. Jung, é possí-vel encontrar centenas de citações da palavra “na-

tureza”, entre as quais se destacam 137 parágra-fos nos quais o autor utiliza o termo “natureza” esuas variações para ilustrar, justificar e fundamen-tar diversos conceitos de sua teoria, assim comopodemos constatar no quadro a seguir.

Obras analisadas

I – Estudos psiquiátricos

II – Estudos experimentais

III – Psicogênese das doenças mentais

IV – Freud e a psicanálise

V – Símbolos da transformação

VI – Tipos psicológicos

VII/1 – Psicologia do inconsciente

VII/2 – O eu e o inconsciente

VIII/2 – A natureza da psique

VIII/3 – Sincronicidade

IX/1 – Os arquétipos e o inconscientecoletivo

IX/2 – Aion: Estudos sobre osimbolismo do si-mesmo

X/1 – Presente e futuro

X/2 – Aspectos do dramacontemporâneo

X/3 – Civilização em transição

X/4 – Um mito moderno sobrecoisas vistas no céu

XI/1 – Psicologia e religião

XI/2 – Interpretação psicológicado dogma da trindade

XI/3 – O símbolo da transformaçãona missa

Parágrafo(s)

584

95; 107-114; 170 (no rodapé 84)

132; 790

16; 17; 28; 29-30; 32; 35; 34; 41; 50;88; 93; 96; 114; 146-149; 162; 186

305; página 10

339; 392-393; 412; 702; 739;750-751; 780; 787; 795; 800

172; 174; 195; 234; 289; 714

40; 78; 220; 244

514; 544; 547-548; 560; 562;572-573

431

24; 31; 32; 34; 44; 53; 134; 187; 210;317; 361; 831; 882

616; 667; 673

105; 130

261

Citações por obra

1

3

2

16

2

10

6

4

6

1

13

3

2

1

v.35-1, p.5-19

Junguiana

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Os achados evidenciam o caráter ecológicoda obra de C. G. Jung, que, na atualidade, podeser de grande utilidade, não somente para o avan-ço da ciência psicológica, mas também com osatuais enfrentamentos ecológicos. Afinal, pormeio da psicologia profunda de Jung, percebe-seque a realidade interna dos seres humanos estáestreitamente fundamentada sobre as bases eleis que regem a realidade cíclica da natureza eligada a elas.

3. Considerações finaisJung enfatizou intensamente, em sua obra,

a desconexão do homem com a natureza e, con-sequentemente, consigo mesmo. Já no sécu-lo passado, tratou o homem como um sistema

em profunda interação com seu meio e que bus-ca realizar sua totalidade, como todo sistemanatural.

Sua obra reflete o pensamento de um homemque esteve profundamente ligado aos mistériosda vida, da natureza e da psique como um todo.Muitas vezes incompreendido e tachado de mís-tico e romântico, Jung tem um trabalho científicoque revela, pelo contrário, grande sensibilidadepara captar, muito antes dos atuais enfrenta-mentos ecológicos, um pensamento de integra-ção entre o homem e a natureza. A essência des-se pensamento é o que atualmente se preza nosmodernos movimentos ecológicos que ainda ali-mentam a utopia de um mundo povoado porhumanos capazes de respeitar o meio natural, à

Obras analisadas

XI/4 – Resposta a Jó

XI/5 – Psicologia e religião oriental

XI/6 – Escritos diversos

XII – Psicologia e alquimia

XIII – Estudos alquímicos

XIV/1 – Mysterium coniunctionis

XIV/2 – Mysterium coniunctionis

XV – O espírito na arte e na ciência

XVI/1 – A prática da psicoterapia

XVI/2 – Ab-reação, análise dos sonhos e transferência

XVII – O desenvolvimento dapersonalidade

XVIII/1 – A vida simbólica

XVIII/2 – A vida simbólica

Citações por obra

3

3

8

3

7

2

4

6

7

15

9

v.35-1, p.5-19

Junguiana

Parágrafo(s)

867-868; 895; 941

40; 214; 331

119; 130-131; 148; 184; 196; 198;229; 267

83; 101; 127

6 (no rodapé 21); 58; 65; 158; 358;365; 402

41; 120

42; 81-82; 130; 227

293; 344-345; 412; 469; 508; 524

160; 289; 290; 292-293; 320;335; 338

38; 178; 181; 367; 368; 375; 439; 473;474; 585-586; 591; 598; 602-603;607; 742

1198; 1360; 1365; 1366-1367; 1368;1488; 1586; 1641; 1654

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medida que reconhecem a profundidade de suaprópria natureza.

A natureza é como um espelho no qual nosvemos: somos um pouco da abelha, do cão, domacaco, da árvore, da víbora e da ameba; somosum pouco de todos os seres e todos os seressão um pouco de nós. Conectar-se a ela e à es-sência de todos os seres é também uma formade nos integrar com nossa própria totalidade.Cuidar da natureza e contemplá-la não são so-mente atos românticos, mas uma forma de noscuidar, de nos contemplar e de reconhecer osnossos próprios mistérios. A crítica de Jung eraexatamente em torno da atitude de desconexãodo homem, iniciada desde os primórdios do cris-tianismo. Já em seu tempo, percebia que faltavacontato direto das pessoas com a natureza.

A profunda conexão de Jung com a naturezae o modo com que tratava a psicologia nos le-vam à reflexão de seu objetivo maior, que eraformar não apenas psicoterapeutas ou conhe-cedores técnicos da mente humana, mas eco-logistas da alma. Ele mesmo, sem qualquer

dúvida, foi um exímio ecologista da interioridadehumana, buscando desvelar as obscuridades dapsique e defendendo, do início ao fim de suavida, o livre desabrochar das potencialidades dohomem, motivando-o a trilhar os caminhos doprocesso de individuação e da totalidade do ser,sem, no entanto, distanciar-se de suas origenscoletivas.

A obra científica de Jung configura, pelo quepudemos ver ao longo deste trabalho, uma es-pécie de ecologia humana, em que o autor colo-ca os seres humanos como parte integrante deseu meio natural, não como o animal-humanodominante da natureza, mas como apenas maisum ser reinado por forças inconscientes maisfortes do que ele mesmo.

Por motivos razoáveis, sugerimos que o au-tor seja reconhecido como o pioneiro da eco-psicologia, ecologia humana e, até mesmo, comoum dos primeiros pensadores ecosóficos damodernidade.

Recebido em: 6/3/2017 Revisão: 24/5/2017

Keywords: human ecology, C. G. Jung, nature.

To study the work and biography of CarlGustav Jung is to realize how inspiring nature wasto the development of his scientific and personalworldview. Therefore this paper examines therelevance of nature to the formulation of analyti-cal psychology theories. It searches through 34

Ecology of the soul: the nature in the scientific work of Carl Gustav Jung

Abstract

volumes of Jung’s complete work the quotationsin which the term “nature” is used to supportconcepts of his theory. The 137 paragraphs thatwere found demonstrate the author conceivedpsychic functioning was analogous to the func-tioning of all natural systems.

v.35-1, p.5-19

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Palabras clave: ecología humana, C. G Jung, naturaleza.

Al estudiar el trabajo científico de Carl GustavJung, así como su ruta biográfica, es perceptiblepara cualquier investigador que la naturalezarepresentó la inspiración en el proceso de cons-trucción de su cosmovisión científica y personal.Por lo tanto, se buscó, por medio de esta inves-tigación, la relevancia de la naturaleza para laformulación de la psicología analítica. Se rescató

Ecología del alma: la naturaleza en el trabajo científico de Carl Gustav Jung

Resumen

en las obras completas del autor, que se componede 34 volúmenes, las citas donde utilizó el término“naturaleza” para sostener conceptos en su teo-ría. Los hallazgos, compuestos por 137 párrafos,muestran que el autor concebía el funcionamientopsíquico equivalente al funcionamiento de lossistemas naturales.

Referências bibliográficas

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ResumoO aumento do uso de drogas e de outros com-

portamentos que também provocam dependên-cia é evidente no mundo contemporâneo, assimcomo a dificuldade no tratamento das depen-dências. Os achados da neurociência podemcontribuir, dando subsídios para a prevençãodessa patologia. O presente trabalho aborda aimportância do processo de tomada de decisãonas dependências, enfocando o cérebro do ado-lescente, e enfatiza o papel da intersubjetividadeno desenvolvimento. Estudos recentes que des-crevem alterações epigenéticas relacionadas aadversidades sofridas na vida precoce são apre-sentados, assim como dados que mostram quealgumas alterações podem ser revertidas pormeio da qualidade do vínculo com o cuidador.A prevenção é discutida como ação que começacom a humanização dos arquétipos da grandemãe e do pai, e continua vida afora, uma vez queas adversidades podem contribuir para gerar

sintomas ou resiliência, dependendo da intensi-dade do agente estressor, da maturidade do siste-ma nervoso e da relação entre criança e cuidador,quer sejam eles pais, parentes, professores, ami-gos, analistas, enfim, pessoas com as quais sejapossível estabelecer uma relação significativa.

Maria Paula Magalhães Tavares de Oliveira*

Prevenção começa em casa:contribuições da neurociência

Palavras-chaveDependências,prevenção,desenvolvimento,arquétipo,epigenética.

* Doutora em psicologia experimental pelo Instituto de Psicologiada USP; analista membro da Sociedade Brasileira de PsicologiaAnalítica; colaboradora do Projeto Quixote.E-mail: <[email protected]>

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Nas últimas décadas, o consumo de drogasvem se ampliando, assim como suas conse-quências. Passou a ser corriqueiro o relato decrianças e adolescentes que consomem álcoole começam a usar drogas cada vez mais cedo.Novas drogas vêm sendo sintetizadas e seu uso,disseminado, principalmente entre jovens quefrequentam “baladas” (SANUDO; ANDREONI;SANCHEZ, 2015). Além do ecstasy (MDMA) e dacannabis sintética, há outras substâncias, comocatinonas sintéticas (Flakka, Vanilla Sky) e fene-tilaminas (N-Bome), cujos efeitos ainda não sãobem conhecidos pela comunidade médica e quepodem ser adquiridas até pela internet. Meca-nismos neurobiológicos envolvidos nas depen-dências vêm sendo elucidados com cada vezmais detalhes. Teorias comportamentais, cogni-tivas e psicodinâmicas foram elaboradas e gru-pos de autoajuda, como Alcoólicos Anônimos(AA) e Narcóticos Anônimos (NA), proliferaram. Noentanto, o tratamento de dependentes continuapouco efetivo e campanhas de prevenção tam-pouco mostraram resultados consistentes.

O estilo de vida da época pós-moderna agra-va esse quadro, incentivando não só o consumode drogas, mas comportamentos que proporcio-nam sensação de prazer ou alívio, nem que sejapor algum período. Em tempos de Facebook,Instagram etc., imagens de felicidade e sucessoimperam, assim como a necessidade de estarconectado. A sensação de urgência e de cobrançaatinge a todos e o imediatismo se impõe. Trocam--se mensagens cada vez mais curtas e esperam-serespostas instantâneas (OLIVEIRA, 2013). Comobem descreve Bauman (1998), na sociedade pós--moderna, tudo é fluido, em movimento, e não hátempo de espera. Nesse ritmo, falta disponibilida-de interna para o encontro, para estar junto e ex-perimentar cumplicidade e solidariedade.

Observam-se casais ansiosos por formar fa-mílias bem-sucedidas. Eficientes, frequentemen-te muito preocupados em garantir estabilidade,

Prevenção começa em casa: contribuições da neurociência

segurança e bem-estar para os filhos, acabampouco disponíveis, não privilegiando tempo e es-paço para a convivência e a intimidade. Além datelevisão, cada vez mais jogos eletrônicos são uti-lizados para entretê-los. Computadores, tabletse celulares passaram a fazer parte do cotidiano,permitindo passatempo e até contato com outraspessoas, via tecnologia. Entretanto, o contatohumano é fundamental para o desenvolvimento.É na convivência que se humanizam os arquéti-pos e a falta dessa convivência traz consequên-cias. Depressão, ansiedade e dependências sãotranstornos prevalentes nos dias de hoje. Quala influência dessa forma de viver atual dos paisnos filhos? Quanto isso contribuiu para aumen-tar transtornos psiquiátricos na infância e na ado-lescência (mais especificamente, uso de álcool ede outras drogas)? O presente trabalho pretenderelacionar novos achados da neurociência a pre-venção, visando estimular resiliência e diminuir orisco de psicopatologia, com ênfase principalmen-te em dependências.

Neurobiologia da dependênciaOs estudos recentes ajudaram a compreender

melhor o mecanismo da dependência e por que étão difícil tratá-la. Quando há uso recorrente dedrogas psicotrópicas, um estímulo muito maispotente do que o natural trapaceia o sistema ce-rebral de recompensa. Como afirma Damasio(2003), os estados de alegria traduzem coorde-nação fisiológica ótima e um fluxo desimpedidodas operações da vida. No entanto, os “mapasneurais” que sinalizam a alegria podem ser falsi-ficados pelas drogas e não refletir o estado atualdo organismo. Drogas procuradas para propor-cionar bem-estar, com o uso repetido, induzem àdepressão. As marcas de consumo intenso des-sas substâncias ficam no corpo e o uso repeti-do provoca neuroadaptações de longo prazo(NESTOR; MALENKA, 2004).

O processo de tomada de decisão tem papel

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central nas dependências, uma vez que o que ca-racteriza esse transtorno é o fato de o indivíduooptar por um comportamento que provoca sen-sação de prazer imediato, em vez de resistir e de-cidir-se por uma recompensa futura. É importan-te lembrar que tomamos decisões o tempo todo,geralmente de maneira inconsciente e automáti-ca, entretanto, em alguns casos, é importante terconsciência da escolha e de suas implicações.Assim, escolher pode ser tarefa difícil, uma vezque, ao se fazer uma opção, é necessário renun-ciar as outras. Jung (1989) já falava da importân-cia do sacrifício no processo de individuação. Natomada de decisão, pode haver conflito entrecórtex pré-frontal (função executiva que avalia) esistema límbico (que sinaliza a sensação de pra-zer). Dependência está justamente relacionadaà dificuldade de resistir a impulso associado à re-compensa imediata, apesar das consequênciasnegativas (PALMINI, 2007; VERDEJO-GARCIA;BECHARA, 2009).

Adolescência e o cérebro do adolescenteNos adolescentes, esse aspecto tem importân-

cia particular. Nessa fase da vida, há a constelaçãodo arquétipo do herói, que favorece a passagemda infância para a vida adulta. A adolescência écaracterizada pela busca do inédito, pela experi-mentação de novas sensações e por rupturas compadrões familiares. Em muitas culturas, essa pas-sagem é marcada por rituais em que morte erenascimento ocorrem de maneira simbólica. Noentanto, na sociedade atual, muitas vezes o ritualnão ocorre. É frequente a dificuldade em resistir aimpulsos, sendo comuns comportamentos de ris-co. É alta a incidência de acidentes graves, brigase uso de drogas que envolvem jovens, havendoatuação concreta e não apenas simbólica.

O córtex pré-frontal, responsável pelo controlee eficiência cognitiva, ainda está em formaçãodurante a adolescência. As estruturas subcorticais(que incluem o sistema límbico), responsáveispela saliência do estímulo, são mais sensíveisnessa época da vida, sendo maior a suscepti-bilidade a estímulos emocionais (o nucleus

accumbens é mais ativado). A interação entre ocórtex pré-frontal e as estruturas subcorticaismuda durante o desenvolvimento. Com a idade,aumenta a força de conexão e, em consequência,a capacidade de autocontrole (CASEY; JONES;SOMERVILLE, 2011). Dessa maneira, adolescen-tes tendem a ser mais impulsivos devido à fasede desenvolvimento em que se encontram. Alémdisso, existem diferenças individuais em resistirao impulso ou à gratificação imediata, observa-dos na infância (MISCHEL; SHODA; RODRIGUEZ,1989), que persistem na adolescência e na vidaadulta (EIGSTI; ZAYAS; MISCHEL et al., 2006).Estudos com imagem mostram que adolescen-tes são mais sensíveis do que crianças e adul-tos a ameaças, no entanto isso não se traduzem seu comportamento, favorecendo que se ex-ponham mais a riscos (CASEY et al., 2011).

As pesquisas que estudam o funcionamentocerebral mostram que adolescentes podem fa-zer escolhas sensatas, mas tendem a decidir malsob impacto de emoção (CASEY; CAUDLE, 2013).E, nessa fase da vida, o que não falta são emo-ções! Escolha e sacrifício exigem um sistema ma-duro, capaz de reconhecer o que é melhor parasi, optando por ações que favoreçam o desen-volvimento. É necessário um diálogo equilibra-do entre eros e logos. Ou se sacrifica um polo afavor do outro ou se suporta a tensão para trans-cender opostos e encontrar o novo. Os adoles-centes se encontram frente a muitos dilemas enem sempre têm condições de fazer um sacrifí-cio ou suportar tensão por muito tempo. Tendoem vista a prevenção, objeto do presente artigo,além da consciência desse fato para poder au-xiliá-los nessa tarefa quando possível, é impor-tante explicitar aspectos que podem contribuirpara formar adolescentes capazes de escolhasmais sensatas e de identificar o que pode preju-dicar esse processo.

DesenvolvimentoOs estudos recentes sobre desenvolvimento

cerebral reforçam a tese de que prevenção co-meça em casa. A importância da constelação do

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arquétipo da grande mãe no cuidado, do arqué-tipo do pai na discriminação e do arquétipo doherói favorecendo transformação parece ter umcorrelato neurobiológico. O desenvolvimento docérebro se inicia na gestação e continua até aidade adulta. Os achados da epigenética expli-citam como cada um vai se desenvolver à suamaneira, uma vez que os genes se expressamrespondendo ao ambiente.

Normalmente o arquétipo da grande mãe seconstela na gravidez. Mulheres eficientes e prag-máticas muitas vezes se surpreendem valorizan-do coisas que jamais lhes interessaram. O ritmodiminui, sentem sono, ficam mais sensíveis.Conforme a gestação evolui, o ritmo da futuramãe muda. Volta-se para cuidar da casa, prepa-rar o canto para o bebê, enfim, mudanças no or-ganismo são acompanhadas por mudanças nopsiquismo e se traduzem na maneira de viver.Quando o bebê nasce, o arquétipo da grande mãereina e, conforme ele vai crescendo, o arquétipodo pai, introduzindo a lei, se faz cada vez maispresente. Os arquétipos vão sendo humanizados,possibilitando a estruturação da personalidade eo desenvolvimento de um narcisismo saudável(GALIÁS, 2003).

A importância da relação mãe-bebê é bem des-crita pela literatura. Stern (2000) descreve o de-senvolvimento e as fases de aquisição do Self e,na revisão do seu célebre livro O mundo in-terpessoal do bebê, ressalta a importância deintersubjetividade desde o início da vida, mostran-do a relevância dos modos de estar com o outro(que originalmente denominava RIG – represen-tações de interações que foram generalizadas).Esse autor afirma que intersubjetividade passoua ser conceito central, outrora ocupado pelo in-trapsíquico. Ele descreve como, a cada fase dodesenvolvimento, a matriz intersubjetiva é maisrica e profunda, e relata que pesquisadores des-crevem intersubjetividade já em crianças em ida-de pré-verbal e pré-simbólica. Bebês nascem commentes afinadas com outras mentes; assim, po-de-se falar de psicologia de mentes mutuamen-te sensíveis, o que permite a intersubjetividade

primária. Observa-se uma coordenação mútua en-tre mãe e bebê, uma harmonização afetiva e umacronometragem coordenada pela dupla. A inter-subjetividade secundária se verifica antes da ca-pacidade verbal ou simbólica, uma vez que, aos9 meses, bebês são capazes de ler a intençãodo outro. Aos 12 meses, observa-se a importân-cia da referência social: o estado afetivo mostra-do no outro é relevante para como a criança vaise sentir. Aos 18 meses, a criança torna-se ver-bal, aprimorando sua forma de comunicação.Novas formas de intersubjetividade são rapida-mente acrescentadas e, aos 5 anos, as criançasjá adquiriram a “teoria da mente”, ou seja, a ca-pacidade mais formal de representar estadosmentais de outras pessoas (STERN, 2004).

Assim, segundo Stern (2004), nossa vida men-tal é co-criada. O diálogo criativo contínuo comoutras mentes é a matriz de subjetividade, en-volve a interpenetração mútua de mentes, haven-do leitura do conteúdo da mente do outro. A iden-tificação dos neurônios-espelho (RIZZOLATTI;ARBIB, 1998) permitiu compreender como se dáo processo de empatia e de estabelecimento decontato intersubjetivo. O repertório de expres-sões faciais e vocais, a linguagem de maneirageral, não verbal e verbal, é muito eficiente emtermos intersubjetivos. O olhar do outro ajuda afixar nossa autoposição relativa e a encontrar nos-so senso de Self verdadeiro (STERN, 2004).

Esse processo explicita a importância da qua-lidade de relação para o desenvolvimento saudá-vel da criança. O desenvolvimento emocional,cognitivo e social vai se dando ao longo do tem-po. A criança vai aprendendo a expressar seusdesejos e a controlar impulsos. Estudos mostramque as crianças aprendem a não ser agressivas(TREMBLAY, 2010), ressaltando a importância dapresença do cuidador nesse sentido. Em condi-ções normais, a criança cresce e se desenvolve e,não havendo maiores intercorrências, passa pelaadolescência e chega saudável à vida adulta.

Entretanto, nesse ritmo alucinado dos diasatuais, muitos bebês não têm oportunidade deviver esse processo de desenvolvimento com

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relativa tranquilidade. Ansiedade, estresse, sin-tomas depressivos, enfim, o estado emocional damãe/do cuidador vai interferir na relação, uma vezque o bebê já capta a falta de disponibilidadeinterna de quem cuida dele e reage a ela. Crian-ças agressivas, impulsivas e deprimidas, que apre-sentam sintomas desde pequenas, muitas vezesjá carregam uma história prévia.

Contribuição da epigenética A epigenética trata da inter-relação dinâmica

entre genes e experiência. Além das dificuldadesna relação mãe-bebê, foi observado que estímu-los ambientais podem provocar alterações naexpressão de alguns genes, como as provocadaspor um processo chamado metilação (mudançana síntese de proteínas – a sequência do DNAnão muda, mas o gene pode ser ativado ou si-lenciado a partir de certas condições ambien-tais). Algumas dessas alterações permanecemcomo uma assinatura biológica, uma cicatriz, queperdura ao longo da vida e pode ser transmitidaa gerações seguintes, e outras parecem ser re-versíveis. Essa expressão genética alterada podeocorrer em múltiplos tecidos, incluindo o cére-bro, trazendo consequências para o funcionamen-to e a conectividade de circuitos neurais (MONK;SPICER; CHAMPAGNE, 2012).

Consequências epigenéticas da interaçãomãe-criança vêm sendo estudadas (MONK et al.,2012). Observou-se que vivências traumáticas oude estresse excessivo durante a gravidez podemprovocar na futura mãe uma série de reações noorganismo que, via placenta, podem ser trans-mitidas ao bebê. A vulnerabilidade ao estresseestabelecida no útero, como resposta ao estres-se, depressão ou ansiedade pré-natal da mãe,pode levar a maior risco de psicopatologia. Porexemplo, estudos realizados na Holanda commulheres que passaram fome devido à guerramostraram associação entre características davida das mulheres grávidas e desenvolvimentosde saúde mental e cognitivos de seus filhos:fome e estresse tiveram efeito neurotóxico no cé-rebro em desenvolvimento (MONK et al., 2012).

Pesquisas realizadas no Canadá, a partir de umagrande tempestade em Quebec ocorrida em1998, que provocou graves danos na cidade eafetou a população de forma severa, trazem con-tribuições interessantes nesse sentido. Cento esetenta e seis mulheres grávidas na época datempestade foram avaliadas e acompanhadasprospectivamente junto com seus filhos. Verifi-cou-se que o comportamento ansioso, depres-sivo e agressivo dos filhos estava relacionadoà vivência de estresse subjetivo da mãe na épo-ca da tempestade. Dessas, 36 mulheres permiti-ram a coleta de sangue dos filhos para análise.Observou-se que houve metilação em todos oscasos, permitindo concluir que metilação estavarelacionada ao estresse objetivo e que mudançasna metilação permaneceram ao longo do tempoem avaliações sucessivas, quando os filhos esta-vam com 8 anos e, posteriormente, com 13 anos(CAO-LEI; MASSART; SUDERMAN et al., 2014).

Há estudos com animais que mostram os efei-tos da separação precoce da mãe e ilustram conse-quências epigenéticas da interação mãe-criança(DETTMER; SUOMI, 2014). Ratos separados da mãeao nascer apresentavam, já aos 14 dias de vida,metilação diferente do grupo controle. O impor-tante a ser ressaltado é que experiências pós-na-tais podem moderar o efeito de vivências pré--natais (MONK et al., 2012). Meaney e Sztf (2005)descrevem estudo com ratos que apresentavamcomportamento ansioso comparado a ratos nor-mais. Esses autores verificaram que as fêmeasnormais lambiam com grande frequência seusfilhotes, o que favorece o desenvolvimento sau-dável, ao passo que as fêmeas ansiosas lam-biam pouco seus filhotes e estes, ao crescerem,entre outras consequências, tornaram-se ratosansiosos. Em estudo posterior, os filhotes de fê-meas ansiosas foram trocados pelos filhotes defêmeas normais e vice-versa. O resultado foi sur-preendente: verificou-se que, ao trocar as mãesestressadas por mães lambedoras normais, filho-tes, aos crescerem, tornaram-se adultos normais;e os que foram cuidados pelas mães ansiosastornaram-se ansiosos. Foi o comportamento da

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mãe que fez a diferença! Dessa maneira, se o ciclonão for interrompido, mãe ansiosa gera filhoteansioso, que, sendo fêmea, vai ser mãe ansiosade filhote ansioso etc.

Pesquisas recentes com macacos apresentamresultados na mesma direção. Sabe-se que a faltade relação de apego seguro nos primeiros anostraz consequências para a saúde física e mental,com efeitos que variam de acordo com o gênero(CONTI; HANSMAN; HECKMAN et al., 2012). O gru-po de pesquisa liderado por Suomi tem trazidocontribuições importantes para a compreensão defenômenos como ansiedade, alcoolismo, com-portamento impulsivo, agressivo e antissocial(DETTMER; SUOMI, 2014). Os pesquisadores des-crevem o comportamento de filhotes de maca-cos separados da mãe ao nascerem e as dife-renças observadas quando esses filhotes foramcomparados aos que foram criados com a mãe.Filhotes separados precocemente apresentavampadrão de comportamento mais explosivo, al-guns com déficits, e, aos 2 anos de idade, essasdiferenças eram maiores. Observou-se menosserotonina em diferentes áreas do cérebro e al-gumas diferenças estruturais. Com relação aogenoma, também foram notadas alterações. Al-guns genes eram mais ativados e outros menos(PROVENÇAL; SUDERMAN; GUILLEMIN et al.,2012). Em estudo em que filhotes foram criadossomente com seus pares, ao ser introduzido umadulto no grupo, quando tinham entre 6 e 7 me-ses, mudanças importantes foram observadas.As brigas entre os filhotes cessaram. As altera-ções não ocorreram apenas com relação ao com-portamento, mas também no índice de cortisol,na expressão dos genes e na metilação. Houvealteração na expressão de alguns genes e a dife-rença que havia entre esse grupo e o grupo decontrole desapareceu. Os pesquisadores cha-mam atenção para o fato de que a intervençãomudou a metilação um ano depois. Padrões fo-ram reversíveis!

Assim, bebês filhos de mães que passarampor vivências traumáticas ou depressão podemnascer com alterações, se comparados a bebês

de mães que não passaram por essas situaçõesadversas. Bebês/crianças que passaram por si-tuação de estresse intenso, negligência ou abuso(físico, sexual e/ou emocional) podem desenvol-ver alterações epigenéticas. Como o desenvolvi-mento neural continua até os 20 anos e diferen-tes regiões do cérebro amadurecem em épocasdistintas, há relação entre o momento e a intensi-dade da vivência de situação adversa (estresse) epossível consequência, como patologias e trans-tornos do desenvolvimento (LUPIEN; MCEWEN;GUNNAR; HEIM, 2009). O resultado da exposiçãoao estresse depende da intensidade do estressee do estado de maturação da região do cérebro.Os circuitos se adaptam bem ou mal ao ambien-te adverso, como negligência socioemocional,abuso e experiências traumáticas. Isso pode re-sultar em sistemas neuronais disfuncionais, quepodem desencadear transtorno mental ou pro-vocar respostas adaptativas e resiliência para si-tuações de estresse no futuro (BOCK; RETHER;GROGER et al., 2014).

Adversidades na vida precoce podem promo-ver cicatrizes em áreas pré-frontais e límbicas,regiões essenciais para o controle de emoções,aprendizagem, memória e tomada de decisão. Oestresse prejudica a regulação entre córtex pré--frontal e sistema límbico, delicada no adolescen-te, ainda em processo de formação. O que difereuso, abuso e dependência é justamente essa ca-pacidade de conter impulso e avaliar a situaçãopara tomar a melhor decisão. Yan e cols. (2013)afirmam que disfunções no córtex pré-frontalrelacionadas a avaliação, regulação emocional etomada de decisões precedem o abuso de dro-gas. A presença de fatores genéticos (sistema do-paminérgico e serotonérgico) e ambientais, comonegligência, abuso (físico, sexual e/ou emocional)e estresse, contribuiriam para alguns indivíduosserem mais propensos a ter problemas com usode drogas do que outros.

Assim, se nos adolescentes é natural maiorimpulsividade e exposição a risco, quando háadversidades na vida precoce, os riscos deconsequências negativas ou de presença de

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psicopatologia são ainda maiores. Esses fato-res devem ser ressaltados quando se pensa emprevenção, principalmente para interromper a ca-deia epigenética.

Prevenção de dependênciasA prevenção de dependências se dá em ações

que propiciem a formação de indivíduos que atra-vessem as diferentes etapas da vida e suas ad-versidades podendo fazer escolhas sensatas,que tenham maior capacidade de resistir à grati-ficação imediata. Para tanto, esses indivíduostêm que conseguir parar e pensar para escolher;querer se cuidar; ter por que esperar por recom-pensa futura. A presença de projetos, sonhos eesperança favorece a capacidade de suportarfrustração e persistir (OLIVEIRA, 2005). Isso seconstrói na relação com o outro, após terem hu-manizado os arquétipos da grande mãe e do pai,tendo estruturado bem os papéis matriarcal epatriarcal, sendo capazes de serem bons “pais”e “mães” de si mesmos (GALIAS, 2003).

Bebês, quando pequenos, precisam de con-tingência perfeita e, conforme crescem, é impor-tante a contingência imperfeita. Em boa medida,estresse pode provocar respostas adaptativas eresiliência para situações de estresse no futuro.Trata-se de um processo contínuo de autonomiaprogressiva em que a presença do outro é fun-damental. Adolescentes precisam testar seus li-mites, se diferenciar de seus pais e encontrar suaidentidade. Para tanto, é necessária a presençade pessoas significativas nessa fase conflituosa,acolhendo e dando parâmetros, permitindo cres-cimento e desenvolvimento. No entanto, frequen-temente, pais e educadores não estão disponí-veis ou, então, não sentem segurança para im-por limites aos adolescentes. Faltam figuras queinspirem respeito ou, pelo contrário, que supor-tem os questionamentos dessa fase e ajudem aconferir significado às experiências. Nesse mun-do em permanente transição, os valores andamconfusos, faltam referências e muitos adolescen-tes sentem-se perdidos. Alguns tentam expres-sar sua angústia por meio de atuações as mais

diversas, enquanto outros tentam aplacá-la pormeio do prazer imediato proporcionado pelo usode substâncias ou pela prática de outros com-portamentos que proporcionam essa sensação.Nem sempre acreditam que vale a pena lutar peloque querem. O objetivo é logo banalizado ou éuma meta idealizada e inatingível. Há adolescen-tes que não encontram motivos pelos quais fa-zer sacrifícios. Ou então, que não sabem que énecessário fazer sacrifícios, pois têm tudo à mão,ou, ainda, que acreditam nas imagens de suces-so fácil que consomem nas mais diversas mídias.Portanto, é importante resgatar a jornada do he-rói, que tem que enfrentar batalhas e acender oprazer em conquistar desafios. O arquétipo doherói deve entrar em cena, auxiliando a enfrentaradversidades sem sucumbir; a criar estratégias epropiciar um diálogo equilibrado entre eros elogos para transcender os polos opostos, encon-trar alternativas, inaugurar o novo. A presença doadulto – estimulando esse processo, testemu-nhando, compartilhando sua própria experiência,reconhecendo a dificuldade do adolescente e con-ferindo sentido – contribui para que ele persistano seu caminho de individuação.

Considerações finaisAdolescentes são mais vulneráveis a abuso

e dependência devido à própria fase de desen-volvimento em que se encontram. Adversidadessofridas durante a gestação e/ou primeira infân-cia podem deixar marcas e prejudicar os siste-mas envolvidos no processo de tomada de deci-são, sensíveis nessa época da vida. A consciên-cia de que adversidades provocam mudanças naexpressão de determinados genes – que, por suavez, produzem alterações de comportamento ouaté quadros psiquiátricos que podem ser trans-mitidos de uma geração a outra – realça a ne-cessidade de intervenções que possam tratar,reverter ou, pelo menos, minimizar esses danos.Epigenética e individuação, os genes se expres-sam respondendo ao ambiente e cada um vai sedesenvolver de maneira singular. Saber que o vín-culo tem papel fundamental nesse processo faz

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toda a diferença. Intersubjetividade e comunica-ção não verbal acontecem o tempo todo. Ter issoem mente é importante para fazer bom uso des-sa habilidade e estimular momentos de atençãoao outro. Resgatar o papel fundamental de en-contros significativos é imprescindível para fa-zer frente à tendência atual de cuidado tercei-rizado e comunicação por texto e imagem, viatecnologia.

Exclusão gera exclusão, indiferença gera in-diferença, violência gera violência. Assim, é ne-cessário romper esse padrão. Atenção pode ge-rar atenção. Humanizar o arquétipo da grandemãe para o cuidado e o arquétipo do pai para adiscriminação é fundamental, e isso se dá pormeio de investimento nos vínculos. É muito va-lorizada e divulgada a importância de oferecerestímulos adequados às crianças e oportunida-des de aprendizagem, mas o aspecto básico docontato, do encontro e da qualidade do vínculovem sendo negligenciado.

A vida é feita de encontros. Encontros trans-formam! Esses estudos chamam atenção tam-bém para a importância do trabalho do analista.Análise é encontro por excelência; encontro emlocal e horário determinado, em vaso fechadoque possibilita uma intimidade singular. Falar desi para um desconhecido, o sujeito suposto sa-ber, como definido por Lacan, que ocupa um lu-gar, mas que pode exercer diferentes funções deacordo com o caso e com o momento. Pode sera mãe suficientemente boa, o pai que discrimina,o irmão que compartilha. Encontros que ajudama instaurar a capacidade de pensar e a traduzir oque não pode ser dito, que conferem significa-do à experiência e ajudam o indivíduo a encon-trar sentido na vida. Encontros que favorecem

o desenvolvimento da singularidade de cada in-divíduo, que contribuem para a individuação.

Vivemos em um país marcado pela violência,desigualdade, pobreza, má condição de educação.Um cenário em que é comum gravidez precoce,negligência, abuso de álcool e outras drogas,enfim, uma série de fatores que contribuem pa-ra manter o ciclo de violência e patologia. Essesestudos ressaltam a necessidade de se investirem cuidados básicos para interromper esse ci-clo. Campanhas de prevenção de gravidez naadolescência, acompanhamento pré-natal, orien-tação para amamentação e garantia de um am-biente com condições para pais poderem cuidarde seus filhos são fundamentais. Preparar edu-cadores para terem a noção de que a qualidadedo vínculo vai imprimir uma marca que podemudar o curso da história da criança passa a serimprescindível. Resgatar o valor da participaçãona vida familiar durante todo o percurso, desdea gestação até a adolescência, ressaltando a im-portância da presença, do modo de estar com ooutro, não só corpo presente e cabeça distante,como o uso de celulares denuncia, parece tarefaóbvia, mas não é.

É importante ressaltar que qualquer atividadepode ser pretexto para promover essa oportuni-dade de encontro significativo, que ajuda a cons-tituir um sujeito com identidade própria. Portan-to, prevenção começa em casa e continua vidaafora, uma vez que pode ser realizada por todos,pois se trata de humanizar os arquétipos por meiode vivências significativas, que não se restringema de pais e filhos, analistas e analisandos. Todoencontro pode ter papel decisivo!

Recebido em: 16/12/2016 Revisão: 26/5/2017

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Keywords: addiction, prevention, development, archetype, epigenetic.

The increase of drug abuse and of other be-haviors that can lead to addiction are evidentin contemporary world, as well as the difficul-ties related to addiction treatment. Neuro-science data can contribute to the preventionof this pathology. The present paper shows theimportance of the decision-making process inaddiction, focusing in the adolescent brain andemphasizing the role of intersubjectivity in thedevelopment. Recent studies describing epige-netic alterations related to early life adversitiesare presented, including data revealing that

Prevention starts at home: contributions from neuroscience

Abstract

some alterations can be reverted by the qualityof the bond with the caregiver. Prevention is dis-cussed as an action that begins at home withthe humanization of the great mother and thefather archetypes and continues throughout life,once adversities can contribute to generatesymptoms or resilience, depending on the stressintensity, the maturity level of the nervous sys-tem and the relationship between the child andthe caregiver, being them parents, educators,friends, analysts or whoever the child can estab-lish a significant relationship with.

Palabras clave: adicción, prevención, desarrollo, arquetipo, epigenética.

El aumento del uso de drogas y otras conduc-tas que causan dependencia es evidente en elmundo contemporáneo, así como las dificultadesrelacionadas con el tratamiento de las adicciones.Los datos de la neurociencia pueden contribuir adar subsidios para prevenir esta patología. El pre-sente trabajo muestra la importancia del procesode toma de decisiones en adicción, se centra enel cerebro de los adolescentes y enfatiza el papelde la intersubjetividad en el desarrollo. Se pre-sentan estudios recientes que describen alteracio-nes epigenéticas relacionadas con las adversi-dades sufridas en la vida temprana y se incluyen

La prevención comienza en casa: aportaciones de la neurociencia

Resumen

datos que revelan que algunas alteracionespueden ser revertidas por la calidad de vínculo conel cuidador. La prevención se discute como unaacción que comienza en casa con la humanizaciónde los arquetipos de la gran madre y del padre, ycontinúa a lo largo de la vida, ya que las adver-sidades pueden contribuir a generar síntomas oresiliencia, dependiendo de la intensidad delestresor, la madurez del sistema nervioso y larelación entre el niño y su cuidador, sean padres,educadores, amigos, analistas o cualquier otrapersona con la que el niño pueda establecer unarelación significativa.

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Bárbara Gabriel Capecce Petribú*Martin Antonio Borges Alvarez Mateos**

ResumoEste artigo visa refletir sobre as mudanças da

imagem corporal na mulher durante a gravidez,colocando em foco alguns dos paradoxos desseaspecto da gestação.

A gravidez é um dos grandes momentos detransformação na vida de uma mulher. Essa rea-lidade profundamente mobilizadora traz em siuma contradição tamanha: o corpo da gestante,ao passo que se torna o receptáculo de uma novavida, sofre transformações marcantes.

As mudanças na imagem corporal envolvidasnesse processo são intensas para qualquer mu-lher, mas podem ser extremamente perturbado-ras para aquelas que possuem feridas narcísicasrefletidas na formação de sua imagem corporal;principalmente pelo papel que o corpo ocupa naatualidade.

Com isso, a gestação deixa de se sustentar comoum processo integrativo e se torna um campo deoposições simbólicas de natureza conflituosa.

Imagem corporal e gravidez

Palavras-chaveGravidez,imagem corporal,feminino.

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Junguiana

* Psicóloga graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie,psicóloga colaboradora do Programa de Atenção aos TranstornosAlimentares – Proata/Unifesp.E-mail: <[email protected]>

** Médico psiquiatra graduado pela Escola Paulista de Medicina/Universidade Federal de São Paulo – EPM/Unifesp, coordenadordo Ambulatório de Psico-Oncologia e Interconsulta Psiquiátricado A. C. Camargo Cancer Center e trainee do curso de formação deanalistas da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA.E-mail: <[email protected]>.

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IntroduçãoJung conceitua sua definição de imagem da

seguinte maneira:

Uma entidade psíquica só pode ser um conteú-

do consciente, isto é, só pode ser representada

quando é representável, ou seja, precisamente

quando possui qualidade de imagem. Por isso

chamo imagens a todos os conteúdos conscien-

tes porque são reflexos de processos que ocor-

rem no cérebro. (JUNG, 2013, par. 608).

Dessa forma, para Jung, o corpo é essencialpara o processo de tomada de consciência. Ele éportador de imagens profundamente arraigadasà nossa identidade. É por meio dele que nos re-lacionamos com o mundo desde o primeiro ins-tante e por onde recebemos e assimilamos to-dos os estímulos da realidade.

O corpo e a psique são prerrogativas in-dissociáveis para o processo de individuação.Eles se relacionam de forma íntima e interde-pendente na constante revelação de imagenspela e para a consciência. Esse dinamismo, quepossibilita o desenvolvimento e as transforma-ções das identidades individuais, pode ser maisou menos intensificado, a depender das condi-ções externas e internas a que estamos sub-metidos. Nesse sentido, condições que inter-ferem diretamente nas imagens que fazemos donosso próprio corpo podem ser profundamen-te mobilizadoras, dado que despertam símbo-los relacionados a núcleos centrais de nossaidentidade.

Paul Schilder, no início do século XX, estu-dou intensamente a questão da imagem corpo-ral, procurando integrar seus aspectos psicoló-gicos e neurológicos. O autor define a imagemdo corpo humano como: “[...] a figuração de nos-so corpo formada em nossa mente, ou seja, omodo pelo qual o corpo se apresenta para nós”(SCHILDER, 1999).

Segundo o autor, o aspecto social da imagemcorporal teria um peso significativo em relaçãoaos nossos comportamentos, pois engloba ainter-relação entre a imagem corporal do indiví-duo e a compreensão do corpo pela sociedade.

O corpo é nosso interlocutor nas relações so-ciais. É por meio dele que comunicamos os maisdiversos conteúdos internos ao ambiente. O modocomo essa comunicação acontece depende dire-tamente, dentre outras coisas, da qualidade do“veículo”, que pode mudar de acordo com a ima-gem corporal que temos de nós mesmos.

Rauter (2013) aponta que o contexto contem-porâneo torna a relação descrita acima ainda maiscomplexa, pois, na conjuntura social atual, o cor-po passa a ser manipulado como forma de suprira fragilidade dos vínculos interpessoais, deixan-do de ser visto como parte integrante do indiví-duo e passando a ser visto como o indivíduo emsi. “O corpo passa a ser um objeto privilegiado deinvestimento, porque é nele que a identidade pas-sa a se dar” (RAUTER, 2013).

Nesse cenário, a gravidez, que inerentementedetermina alterações de ordem fisiológica, libi-dinal e de papéis sociais na mulher, assenta-secomo uma condição intensamente mobilizadorada relação entre corpo e psique, entre indivíduoe sociedade e entre as imagens corporais expres-sas ao longo do processo, que podem oscilar“desde sentimentos de orgulho e fecundidade atéa sensação de deformação e rejeição do corpo”(RODRIGUES, 2008).

Imagem corporalPaul Schilder foi um dos grandes pensadores

sobre imagem corporal e, no seu livro A imagemdo corpo: as energias construtivas da psique,publicado inicialmente em 1950, elenca diversasproposições a respeito da imagem corporal, nasquais fica patente a relevância dada pelo autor aoimpacto das variáveis sociais na construção daimagem corporal.

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Ele descreve os fenômenos psicológicos res-ponsáveis pela diferenciação das imagens cor-porais individuais e coletivas:

Há um intercâmbio contínuo entre partes de

nossa imagem corporal e das imagens corpo-

rais dos outros. Há projeção e personificação.

(SCHILDER, 1999).

Ele assinala, ainda, os processos que levamà indiscriminação entre essas imagens coletivase pessoais:

Mas, além disto, podemos nos apoderar de toda

a imagem corporal de outra pessoa (identifica-

ção) ou entregar nossa imagem corporal como

um todo. As imagens corporais das outras pes-

soas e suas partes podem ser inteiramente in-

tegradas à nossa e formar uma unidade, ou po-

dem ser simplesmente adicionadas à nossa ima-

gem corporal, formando uma mera somatória.

(SCHILDER, 1999, p. 266).

Levando-se em conta o momento atual, ca-racterizado por Rauter (2013) e Bauman (1998,2005, 2009) como o tempo da “modernidade lí-quida”, podemos perceber as influências que sedão entre a visão de mundo contemporânea e opsiquismo individual, no que tange a relação dosindivíduos com o corpo.

Segundo Rauter,

a liquidez que adjetiva esse momento se refere

ao caráter fluido, inconstante, mutável dos valo-

res, hábitos, sentimentos e tudo que diz respei-

to à vida, incluindo os vínculos interpessoais.

(RAUTER, 2013)

Ao participar dessa “liquidez”, que retratauma sociedade materialista/individualista extre-mamente dual, baseada em valores instáveis,materialistas, de consumo desenfreado e distan-te da perspectiva simbólica da realidade, o indi-víduo sente a necessidade de buscar algum graude controle, recorrendo ao corpo (LE BRETON,

2009; ORTEGA, 2008 apud RAUTER, 2013).

Há um jogo entre o homem e seu corpo no du-

plo sentido do termo. Uma versão moderna do

dualismo não opõe mais o corpo ao espírito ou

à alma, porém, mais precisamente, ao próprio

sujeito. O corpo não é mais apenas, em nossas

sociedades contemporâneas, a determinação

de uma identidade intangível, a encarnação

irredutível do sujeito, o ser-no-mundo, mas uma

construção, uma instância de conexão, um ter-

minal, um objeto transitório e manipulável sus-

cetível de muitos emparelhamentos. (LE BRETON,

2003, p. 27).

Compreendendo, então, o corpo como um aces-sório, um fator fronteiriço que difere uma pessoada outra, é compreensível que o homem contem-porâneo atue na realidade de forma dual, disso-ciado do seu aspecto numinoso, tendo, portanto,como foco singular de investimento, o corpo em si(LE BRETON, 2007).

Nessa relação dual e dissociada, indivíduosque são carentes de contato com sua individua-lidade buscam como referência a imagem corpo-ral do outro, prioritariamente nas figuras públi-cas e midiáticas, das quais pouco se sabe alémda forma física. O que acontece é o que Schilderdenomina identificação: esses indivíduos acabampor se apoderar da imagem corporal das figuraspúblicas em sua totalidade, tomando-as como umideal. Assim, “o eixo do eu é empurrado para fo-ra” (BIZERRIL, 2011; SIBILIA, 2008 apud RAUTER,2013) e a capacidade de discriminação do indiví-duo fica prejudicada.

Ao considerarmos particularmente o univer-so feminino em nosso contexto atual, é possí-vel notar uma relação ainda mais delicada doindivíduo com a imagem corporal. O padrão idea-lizado de beleza que supervaloriza o corpo -aces-sório (LE BRETON, 2006 apud RAUTER, 2013)magro, alto e torneado é perseguido insistente-mente por meio de dietas, exercícios físicos exces-sivos, tratamentos estéticos, plásticas e outras in-tervenções no corpo.

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A mulher contemporânea, que se encontra fi-xada e imersa nesse complexo, mantém-se numaluta árdua, contínua e repleta de frustrações,apegada compulsivamente à busca de um idealque, recorrentemente, nega o corpo real.

GravidezA gravidez, por sua vez, é um dos grandes ri-

tos de passagem passíveis de vivência da mulher.Além do climatério e da adolescência, o períodode gestação é caracterizado por uma fase de:

[...] transição biologicamente determinada, carac-

terizada por mudanças complexas, em um esta-

do temporário de equilíbrio instável, devido às

grandes perspectivas de mudanças envolvidas

nos aspectos de papel social, necessidades de

novas adaptações, reajustamentos interpes-

soais, intrapsíquicos e mudanças de identidade.

(MALDONADO, 1997, p. 22-23 apud RODRIGUES,

2008, p. 148).

Do ponto de vista psicológico, a condição degestante mobiliza os mais diversos campos ar-quetípicos na mulher. É possível experimentaressa realidade a partir do paradigma da buscapor sentir-se completa, da tentativa de cumpriruma expectativa social e/ou familiar, do sonhode vivenciar um amor materno idealizado e in-condicional, de garantir a manutenção de suacontinuidade na posteridade ou, ainda, da cons-tatação de uma sina que se impõe à sua condi-ção física de mulher.

Ao engravidar, a mulher será convidada a re-ver seus papéis e lugares no mundo. Alguns de-les serão descartados, pois perderão a função,e outros terão de ser ressignificados.

Nessa revisão, um mecanismo contínuo dedissolução e coagulação se estabelece, sendoa mulher, ao mesmo tempo, a alquimista e o ma-terial. Em cada dissolução, as mais diversasfacetas da mulher são fragmentadas. Quandocoagulam, por outro lado, surge algo novo, quenão é apenas a junção das partes anteriormen-te separadas. Esse movimento, apesar de ser

um continuum ao longo de toda a vida, é viven-ciado de forma extremamente condensada du-rante a gravidez. Sua intensidade pode, por ve-zes, causar uma permanência nessa dissolução,levando a gestante a condições patológicasmuito variáveis (MERLEAU-PONTY, 2006 apudSCARABEL, 2011).

Esse movimento entre perspectivas polariza-das traz para a gestante a oportunidade de re-memorar as mais diversas vivências como filha ede ressignificar os símbolos associados ao ma-triarcal, que emergirão de conteúdos arquetípicosinerentes a esse momento de vida. O vínculo es-tabelecido nos primeiros anos de vida entre a ges-tante e sua mãe, por exemplo, será o ponto departida para a relação mãe-bebê que se inicia.

É comum, no entanto, que essa relação pri-mária possua as mais diversas falhas e, por con-sequência, a gravidez é, via de regra, potencial-mente palco de reedições dos mais saudáveisaos mais patológicos padrões de maternagem.Para nos atermos ao tema do artigo, mantere-mos na discussão apenas questões relacionadasàs mudanças na imagem corporal durante esseprocesso.

DiscussãoAs mudanças corporais e a intensidade da

vivência de estar gerando dentro de si uma novavida são inerentes ao processo de gestação. Porconsequência, sentir certo estranhamento emrelação à imagem corporal nessa fase é perfeita-mente natural.

Entretanto, com as mudanças culturais destenosso século, que incluem o corpo como centroda identidade e sua supervalorização (RAUTER,2013), as fronteiras entre o que seria um estra-nhamento natural e algo exacerbado tornam-setênues.

O corpo perde o status de parte integrante doser, isto é, deixa de reconhecer o contato com oinstintivo e com a alma para ser apenas um ‘‘cor-po-acessório”, direcionando, majoritariamente, aenergia psíquica para o que se refere ao concreto.Dessa forma, tudo aquilo que pertence a uma

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esfera anímica e que não é relacionado ao físicoé percebido como aterrorizador.

Marion Woodman conseguiu explicar de for-ma belíssima as consequências dessa falta deequilíbrio entre corpo e alma:

Os bons marujos [...] constroem um ego forte o

suficiente para fluir com o poder do vento e da

vaga. E esse ego só pode ser forte o bastante se

tiver o apoio da sabedoria do corpo, cujas men-

sagens estão em contato direto com os instin-

tos. Sem essa interação entre espírito e cor-

po, o primeiro sempre cairá em armadilhas. No

exato momento em que poderia alçar voo, é

despotencializado pelo medo e pela falta de

confiança, pois não pode contar com suas raízes

instintivas nem mesmo para sobreviver. Sem

essas raízes, o corpo é percebido como inimi-

go. Como um barco sem leme, rodopiando em

círculos nas garras do pânico, o marinheiro pode

ser arrastado para o vórtice da paralisia ou do

terror. Se, por outro lado, espírito e corpo esti-

verem em sintonia, cada um complementa o

outro com sua forma especial de sabedoria.

(WOODMAN, 2002, p. 12).

Na gestação, quando o corpo e o espírito es-tão em sintonia, o sacrifício da autonomia e docontrole do próprio corpo é aceito em nome davida do filho, que se forma em seu ventre. Paraisso, é necessário uma conexão com o que háde mais instintivo, o arquétipo materno. Paramulheres em que essa sintonia não ocorre, de-vido, por exemplo, ao deslocamento do ego parao “corpo-acessório”, o sacrifício não é vividocomo uma escolha; ele é uma invasão voraz, queleva a uma dissolução da imagem corporal comoaté então conhecida e, portanto, com sérios ris-cos de uma dissolução maciça do ego até asbaias da psicose.

As dificuldades em internalizar e incorporaras mudanças na imagem corporal durante a gra-videz são compreensíveis. A barriga cresce, osmembros incham, o cabelo, a pele, as unhas, o hu-mor, enfim, tudo muda. Se não bastassem essas

mudanças em si, fervilham também nas mídiassociais dietas, planos de exercícios, orientaçõesa serem seguidas pelas gestantes para alcançarum padrão corporal socialmente estabelecido(como, por exemplo, “grávidas saradas” ou “grá-vidas fitness”) ou, então, uma imposição de que,tão logo a mulher dê à luz, já deve recuperar/ob-ter um corpo esbelto.

Mulheres que tiveram lacunas na construçãode sua imagem corporal podem se identificarmaciçamente com esses exemplos e persegui-loscomo ideais. Não raro, essas gestantes exigem desi mesmas um padrão que, para a maioria dasmulheres, é inatingível e, por vezes, antinatural.

O foco de suas experiências diárias na dieta,nas medidas e nos exercícios acaba sendo umaforma de se defender dos conteúdos anímicosda gravidez. Internamente, o medo do incons-ciente e da invasão desses conteúdos sustentaessas “defesas psíquicas”, ao passo que, exter-namente, a contemporaneidade e o culto ao cor-po reforçam tais mecanismos.

Certamente, são infinitas e singulares as for-mas de experimentar a gestação. Do deleite domais puro amor à ameaça de invasão e perda decontrole, cada mulher explorará esse campo ar-quetípico a seu modo. Uma mulher receptiva àgestação pode acolher e “emprestar” seu conti-nente anímico para o desenvolvimento das po-tencialidades arquetípicas do bebê. Uma mãeque, no entanto, teve problemas com a huma-nização do arquétipo materno em seu desenvol-vimento pode entender esse processo como algoameaçador, desorganizador ou desajustado.

Em casos com esse tipo de limitação, nos pa-rece que a consciência da gestante, sem recursospara relacionar-se com o mundo através de dinâ-micas de alteridade, assimila a experiência da gra-videz de forma iminentemente persecutória. Ogerminar de um novo Self/ego no seu interior épercebido como uma invasão, que concorre comsuas demandas individuais e fomenta defesasnarcísicas que se explicitam no aumento patenteda preocupação com a imagem corporal e nosesforços frenéticos para manter seu corpo dentro

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do padrão desejado por ela e reforçado pela vi-são de mundo em que está inserida.

Em suma, as possíveis feridas narcísicas nodesenvolvimento e as expressões arquetípicasdistorcidas da maternagem impossibilitam cer-tas mulheres de se conectarem com preciososmateriais inconscientes, símbolos do matriarcal,carregados de potencialidades nutridoras, aco-lhedoras e protetivas.

O desafio da psicoterapia, a partir do recorteque aqui é proposto, estaria na possibilidade de

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retomada do corpo como parte integrante e in-dissociável do ser e o fortalecimento egoico parao enfrentamento dos sacrifícios necessários nesteritual de tornar-se mãe, permitindo a experimen-tação de uma relação integradora dos símbolosmatriarcais e favorecendo, portanto, a relaçãomãe-bebê que advém desse processo e que seráparcialmente responsável pela construção daimagem corporal de um novo ser.

Recebido em: 6/3/2017 Revisão: 26/5/2017

Keywords: pregnancy, body image, female.

This article reflects on the body image changesof women during pregnancy focusing on someparadoxes of this aspect of gestation.

Pregnancy is one of the most important trans-formational moments in a woman’s life. Thisprofoundly mobilizing period brings in itself thecontradiction of turning the body into a vesselfor a new life and leading it to experience aston-ishing transformations. Changes in the body

Body image and pregnancy

Abstract

image associated to pregnancy are intense forall women, but they can be extremely disturbingfor those who have narcissistic wounds reflectedin the formation of their body image, mainly bythe role of the body in the present society.

In these cases, gestation ceases to be an in-tegrative process and becomes a field of sym-bolic oppositions of a conflicting nature.

Palabras clave: embarazo, imagen femenina, el cuerpo.

Este artículo tiene como objetivo reflexionar so-bre los cambios en la imagen corporal en las muje-res durante el embarazo, y poner de relieve algunasde las paradojas de este aspecto de la gestación.

El embarazo es uno de los grandes puntosde transformación en la vida de una mujer. Estarealidad profundamente movilizadora trae con-sigo una contradicción: el cuerpo de la madre,mientras se convierte en el receptáculo de unanueva vida, sufre una transformación notable.

Imagen corporal y embarazo

Resumen

Los cambios en la imagen corporal involucradosen este proceso son intensos para cualquier mujer,pero puede ser muy perturbador para aquellas conheridas narcisistas reflejadas en la formación desu imagen corporal; especialmente por el papel queel cuerpo ocupa en la actualidad.

Con ello, el embarazo deja de sostenerse a símismo como un proceso integrador y se convierteen un carácter simbólico, campo de la oposiciónde confrontación.

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ResumoO artigo trata do fim da análise, o que não

implica em cura, alta ou individuação, pois estaúltima pode ter continuidade mesmo após o en-cerramento das sessões. São discutidos os tér-minos abruptos e que podem mobilizar senti-mentos de impotência, fracasso e aspectos dasombra do terapeuta – algumas situações sãoilustradas com casos clínicos. O arquétipo dacriança e as análises intermináveis também sãoabordados, assim como a operação alquímicaseparatio em relação ao fim da análise. As ima-gens do médico e do enfermeiro são utilizadas

como analogia para o papel do terapeuta: alémde curador, cuidador. Por fim, são apresentadasreflexões sobre o mistério que envolve os pro-cessos de vida e morte, e dor e sofrimento queafetam os analistas e constituem desafios em seuprocesso de individuação, na aprendizagem dahumildade de conviver com o não saber.

Maria Carolina Barrieu**Silvana Parisi***

O fim da análise*

** Psicoterapeuta junguiana formada pela PUC-SP. Trainee da So-ciedade Brasileira de Psicologia Analítica – SBPA, filiada à Inter-national Association for Analytical Psychology – IAAP, em Zurique(Suíça). Aprimorada pela Clínica Psicológica Ana Maria Poppovic –PUC-SP em psicoterapia de casal e família.E-mail: <[email protected]>.

Palavras-chaveAnálise junguiana,fim da análise,fracasso,individuação,sombra.

*Material apresentado originalmente em português, com o título“O fim da análise”, sob a forma de palestra no XXIII CongressoNacional da AJB: A Práxis Analítica, um evento da AssociaçãoJunguiana do Brasil, filiada à International Association for AnalyticalPsychology, em Ouro Preto (Minas Gerais), 2016.

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*** Psicoterapeuta junguiana formada pela PUC-SP. Trainee do Ins-tituto Junguiano de São Paulo – IJUSP, filiado à Associação Jun-guiana do Brasil – AJB e à International Association for AnalyticalPsychology – IAAP, com sede em Zurique (Suíça). Doutora empsicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Coordenadora decurso de expansão no Sedes Sapientiae e professora e supervisorano curso de pós-graduação latu sensu Psicoterapia Junguianada Universidade Paulista – UNIP.E-mail: <[email protected]>.

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Este artigo é fruto das reflexões que surgiramem um grupo de estudos formado por psicote-rapeutas junguianas, que se reúnem há mais dedois anos para a discussão de temas da atualida-de e da prática clínica. Nos encontros, foram le-vantadas inúmeras questões que constituem opano de fundo deste artigo. O fim da análise éum tema pouco discutido entre colegas de pro-fissão, uma vez que esbarra na sombra do ana-lista e pode, em algumas de suas facetas, maculara imagem de terapeuta bem-sucedido, bastantetrabalhado e consciente, constelando o outro polodo binômio sucesso/fracasso.

De forma a contextualizar “o fim”, objeto dopresente artigo, surgem alguns questionamentos,tais como: o fim é quando há cura e acaba o so-frimento? Analistas junguianos podem utilizar otermo alta?

Muito embora ainda levemos em nossa ba-gagem o modelo médico, Jung aponta um cami-nho que vai além da cura de neuroses, alívio desintomas ou adaptação social ao considerar oprocesso de individuação como meta central daanálise. Jung (2000) é bastante claro ao reconhe-cer que “a análise não é uma cura que se praticade uma vez para sempre, mas, antes do mais etão somente, um reajustamento mais ou menoscompleto” (par. 142). Além disso, o autor tambémafirma ser improvável que uma terapia eliminetodas as dificuldades, as quais são necessárias,uma vez que o objetivo da análise não é o estadode felicidade, mas possibilitar ao paciente “su-portar” o sofrimento (JUNG,1981, par. 185). Em seuentendimento:

A experiência, porém, mostra que há um núme-

ro relativamente grande de pacientes para os

quais a conclusão aparente do trabalho junto

ao médico não significa de modo algum o fim

do processo analítico. Pelo contrário, o confron-

to com o inconsciente continua do mesmo modo

que no caso daqueles que não interromperam o

trabalho junto ao médico. (JUNG, 1991, par. 4).

O processo analítico não é, de fato, indispen-sável para que ocorra a individuação. Entretanto,o convite ao exame da vida interior e do mundodas imagens e dos sonhos e o enfrentamento dasquestões cruciais da existência humana são umestímulo para a individuação. Mesmo que se en-cerre o encontro com o analista, o processo ini-ciado pode ter continuidade.

Assim, uma análise pode terminar por con-senso entre as duas partes, em que, de formaharmoniosa, o paciente segue seu processo deindividuação e sai satisfeito com suas conquis-tas e ampliação de consciência. O analista, porsua vez, fica realizado com seu trabalho, na certe-za de que auxiliou o paciente e cumpriu seu pa-pel. Esse é um modelo ideal, mas que nem sem-pre ocorre no consultório.

Também há motivos concretos ou plausíveisque ocasionam um término ou interrupção do pro-cesso analítico, tais como: alívio dos sintomas oudas queixas que motivaram a busca por análise,mudança de residência (embora, hoje em dia, ainternet e o mundo globalizado tenham facilitadoesses casos), doenças graves, dificuldades finan-ceiras ou a transferência/contratransferência eró-tica que impede o vínculo profissional.

Nem sempre o término da análise se dá deforma simples ou bem resolvida. E quando trazdesconforto para o paciente ou para o terapeuta?E quando ocorre uma interrupção abrupta porparte do paciente, sem aviso, sem aparente ex-plicação? É comum entender essas situaçõescomo resistência do paciente: ele não quer maisinvestir no processo, ele está fugindo do confron-to com seu inconsciente ou reagindo de forma“complexada”. E aí o problema fica fora, nele, enão no terapeuta – lá, e não cá. Mesmo que tudoisso possa ser verdadeiro em relação ao pacien-te, também representa uma maneira segura deproteção do terapeuta contra eventuais sentimen-tos de impotência e fracasso.

Pode-se pensar que a desistência do pacien-te foi por inabilidade do terapeuta, que este não

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trabalhou bem, que algo lhe escapou – ou seja,que falhou. Essa visão o aproxima de sua som-bra, mas pode também não ser totalmente ver-dadeira, à medida que um complexo provavel-mente foi ativado, intensificando o sentimento deincompetência ou culpa.

Vale trazer alguns exemplos de casos clíni-cos para ilustrar os questionamentos levantadosa partir da práxis analítica.

Uma paciente de meia-idade procurou aten-dimento psicológico por apresentar sintomasrelacionados a ansiedade e depressão, que sur-giram após uma situação de violência seguidade morte no seu contexto familiar. O aconteci-mento a deixou muito abalada e em situação deextrema crise emocional. Seu pai era uma figuraconhecida por sua agressividade, principalmen-te no que diz respeito à educação dos filhos; noentanto, jamais haviam presenciado tamanhaviolência na família. Ela estava totalmente des-controlada e desamparada frente a esse trágicoocorrido, e o vaso terapêutico propiciou a trans-ferência da mãe boa que acolheu seu sofrimen-to e iluminou um pouco seu caminho. O proces-so terapêutico durou quase três meses, confi-gurando-se uma psicoterapia breve com enfoqueno atual momento de crise. Certo dia, a pacienteresolveu que voltaria a morar perto da família ese mudaria para sua região de origem, onde tudoaconteceu, e encerrou a terapia sem avisar, ain-da que houvesse um combinado prévio de fazeruma sessão de finalização, que nunca ocorreu.Antes de partir, presenteou a analista com umartigo de decoração que claramente remetia àsituação vivida. O presente soou um tanto quan-to fúnebre, o que, a princípio, dificultou o realentendimento do significado daquele símbolo.Após o término da análise, concluiu-se que apaciente precisava transferir para a terapeuta opeso da morte e da violência, representado deforma simbólica pelo presente, a fim de que elapudesse continuar a viver em paz. Nesse caso, apaciente interrompeu abruptamente a análise,sem a abertura de qualquer tipo de devoluçãopor parte da analista. No entanto, foi possível

compreender que esse era seu único caminhode salvação, o que, de certa forma, preencheu ovazio que ela deixou ao abandonar a análise semse despedir.

Assim como esse caso deixou claro, algumasvezes fica exclusivamente a cargo do terapeuta aelaboração da interrupção ou término da terapia,que funciona como depositário dos conteúdosque o paciente não consegue integrar. No casoexposto, isso se deu de forma concreta, por meiodo presente oferecido à terapeuta. Em outrassituações, pode acontecer de o paciente não rea-lizar o pagamento das sessões, deixando umaporta entreaberta para que possa manter algumtipo de vínculo com o terapeuta.

Outro caso relevante para ilustrar a presentereflexão foi o de uma jovem imigrante que trou-xe, como queixa inicial, a sua dificuldade de serelacionar com as pessoas, tanto em relaciona-mentos amorosos como em amizades ou rela-ções de trabalho. Apresentava certos episódiosdepressivos e foi diagnosticada com doençaneurológica incapacitante. Na primeira entrevis-ta, contou sobre sua triste história familiar deabandono e negligência por parte da mãe bioló-gica e o desconhecimento do pai. Era uma pes-soa globalizada, com carreira internacional. Sem-pre adaptou-se às mais variadas realidades detodos os continentes nos quais morou. Entre-tanto, não conseguiu criar raízes em nenhumlugar. Teve um filho, fruto de um relacionamentocom um colega de trabalho, com o qual nuncase casou, nem sequer morou junto. Conquistoutudo sozinha e nunca pôde contar com a ajudade ninguém, sofrendo de forma totalmente soli-tária, o que contribuiu para a sua descrença nasrelações humanas. Construiu uma persona dura,rígida, muito dominada pelo animus, apática, emcerta medida depressiva e totalmente sozinha senão fosse pelo filho, sua razão de viver. A cadanova mudança, ela recomeçava do zero. Sonha-va repetidamente com casas, que construía edepois destruía. A paciente faltava frequente-mente na terapia e, por vezes, desaparecia porum longo período sem dar nenhuma satisfação,

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deixando a analista no limbo. Como consequên-cia, demandava uma postura ativa da analistapara trazê-la de volta à análise. Esse movimentoera correspondido pela paciente, que, então,aparecia para a sessão e agradecia que a tera-peuta não tivesse desistido dela. No entanto,logo em seguida tornava a faltar. Diversos tiposde contato foram experimentados, com o intuitode garantir a assiduidade e continuidade do pro-cesso. Porém, após muitas tentativas, ela paroude se comunicar e não acertou os valores devi-dos. Após muitos meses, finalmente quitou adívida, de forma que o único motivo de comuni-cação se extinguiu. Esse caso tratou de um tér-mino não abrupto, porém silencioso. A pacientenão deixou explícito que gostaria de finalizar aanálise, e quem precisou colocar um fim foi aterapeuta, já que a paciente dificultou qualquertipo de contato ou proximidade. A paciente nãoconseguiu conversar, refletir, elaborar sobre ofim. Em vez disso, sufocou e matou lentamentequalquer resquício de vínculo.

Por fim, cabe descrever um caso de psicote-rapia infantil, já que é frequente o término ouinterrupção da análise imposto pelos cuidado-res. O paciente era um menino de 6 anos quetinha sido adotado aos 3 anos de idade. Ele foraacolhido em uma casa lar (abrigo) aos 2 anos deidade, após denúncia de abuso sexual pratica-do por membro de sua família biológica. Após aadoção, ele mudou-se para outro estado. A quei-xa dos pais adotivos girava em torno de seu com-portamento opositor. Ao longo do processo te-rapêutico, que durou aproximadamente um anoe seis meses, foi visível sua mudança de com-portamento. A partir desse momento, a propos-ta da análise passou a ser a de oferecer um es-paço de expressão e elaboração dos traumasprovenientes da sua sofrida história durante aprimeira infância. Os pais adotivos resistiram, ale-gando que era uma patologização da criança, equiseram interromper o processo. De forma inci-siva, comunicaram que a criança só teria mais umasessão. Foram alertados para a necessidade dehaver mais de uma sessão, para que o término

ocorresse de forma mais sutil, propiciando àcriança um espaço de elaboração desse fim. En-tretanto, os pais estavam irredutíveis. No dia daúltima sessão, a mãe revelou que o seu filho es-tava apreensivo porque achava que nunca maisvoltaria a ver a terapeuta. Portanto, conclui-se queos pais adotivos estavam repetindo inconscien-temente a história de abandono vivida pelo pa-ciente em relação aos pais biológicos. Nesse ca-so, a decisão em relação ao fim da análise foiunilateral, o que gerou uma grande frustração esentimento de falha, impotência e anulação porparte da terapeuta. Porém, vale lembrar que a re-sistência era dos pais e não da criança, que, porsinal, estava muito vinculada.

É muito comum na psicoterapia infantil a in-tervenção dos pais na análise dos filhos, uma vezque têm expectativas diferentes em relação ao pro-cesso e não o vivenciam diretamente. Tal inter-venção pode decorrer da melhoria das queixas ouda dificuldade de enxergar os próprios filhos esuas necessidades. De qualquer forma, o tera-peuta sente essa ruptura como um aborto, umavez que seu trabalho é podado e ele dificilmentepoderá fazer algo para mudar essa condição.

O espaço analítico é o temenos, o lugar pro-tegido em que a alma pode se manifestar em to-da sua dor e fragilidade, expondo seus medose emoções mais profundas e escuras; onde háempatia, aceitação e segurança. Sem dúvida, éum lugar no qual a criança1 – ou, antes, o arqué-tipo da criança – encontra abrigo para sua vulne-rabilidade e é chamada a se manifestar. Hillman(1981), em seu texto “Abandonando a criança”,chama atenção para “a fantasia do crescimen-to” que está alojada na forma como encaramosa psicologia e a psicoterapia. A ideia presenteem geral é a de que essa criança deve crescer,uma vez que a meta é o desenvolvimento e o cres-cimento da personalidade. Mas, alerta Hillman,ao caminharmos nesse sentido, abandonamosa criança, porque “o arquétipo da criança nãocresce – permanece sempre como um habitantedo país da infância, como um estágio do ser”(HILLMAN, 1981, p. 45).

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É essa criança que pode aparecer no pacienteque chega falando em parar a análise e quer aopinião do analista. Mesmo que esse desejo sejalegítimo e costume revelar uma atitude de matu-ridade no relacionamento, às vezes o pacienteparece um jovem que pede autorização dos paispara sair de casa. O analista pode agir como umpai superprotetor, identificado contratransfe-rencialmente com a figura parental, acreditandoque o paciente não está suficientemente ma-duro para sair do ninho. Ainda, pode interpre-tar seu desejo como resistência, ou apontar quetal e tal complexos não foram bem trabalhados.Como discriminar se é de fato uma resistênciaou um desejo de poder do analista? Não vamosnos aprofundar aqui, mas vale lembrar comoGuggenbühl-Craig (2004) nos chama atençãopara vários aspectos da sombra do analista, ecomo podemos atuar a partir da figura do char-latão prendendo o paciente à análise.

Outra possibilidade é o paciente (a criança) serebelar e sair, virando as costas repentinamente,e o analista, assim como pais de adolescentes,viver o sentimento de perda, o ninho vazio.

Às vezes, é o terapeuta que empurra o pa-ciente para fora ou indica a ele um colega, pois ateimosia da criança ou sua enorme carência éinsuportável, já que dialoga com a sua própriacriança abandonada que tanto quer reprimir ounegar. Outra possibilidade é o terapeuta incenti-var o paciente (a criança) a dar o passo, o salto noar em direção ao mundo, com medo, tremendojunto com ele e prendendo a respiração no mo-mento do voo.

Não podemos deixar a criança para trás paranos tornarmos adultos, maduros. Ela está sem-pre conosco. Nos momentos mais difíceis da vi-da ou quando vivemos perdas, é a criança órfãque pede acolhida e aceitação.

Em sua formação e treinamento, geralmenteo terapeuta passa por algumas experiências co-mo paciente, eventualmente vivendo vários tiposde términos, desde os mais tranquilos aos maisdifíceis – isso compõe sua bagagem como ana-lista. Ter passado por alguns fins dolorosos, se

não contaminá-lo e não se cristalizar, colaborapara que o analista fique mais atento e cuidado-so em relação às saídas dos seus pacientes e aoque esses términos lhe refletem e espelham.

É interessante observar as oscilações que afe-tam o consultório como um todo. A progressãoe a regressão da libido se manifestam nas fasesem que o consultório fica cheio, há muita pro-cura por horários, entrevistas e consultas. E hámomentos em que, em uma ou duas semanas,vários pacientes decidem parar a terapia por mo-tivos os mais diversos, para aflição do terapeutainiciante. O que esses movimentos dizem parao analista naquele momento?

Há aqueles pacientes que vão e voltam tem-pos depois, em outros momentos da vida, àsvezes muitos anos depois. Há aqueles que nun-ca interrompem a análise. Um exemplo retrataesta última situação. Uma mulher está em tera-pia há cerca de 20 anos. Ela teve uma infânciamuito difícil, com uma separação traumática dospais. Sua mãe teve um surto quando a pacienteera muito nova. Durante um longo tempo, sonhoucom animais feridos, machucados ou presos.Depois, os animais começaram a aparecer emseus sonhos de formas mais saudáveis. Uma cla-ra imagem de seu processo.

Há alguns anos, ela manifestou a vontade deinterromper a análise, mas decidiu continuar comfrequência quinzenal. A terapeuta se perguntavase ainda havia sentido atendê-la. Era um proces-so de muitos anos e, em certos momentos, pa-recia não haver muito progresso. Assim como emoutros processos que podem ser considerados“intermináveis”, a terapeuta sente que a acom-panha em sua vida e que a análise ofereceu aela um eixo e uma base que lhe faltaram muitocedo. Recentemente, a paciente trouxe um so-nho com a terapeuta, em que esta lhe falava queera o momento de parar a análise, o que inco-modou a paciente. Será agora esse momento? Aquestão que se faz sempre presente em casoscomo esse é: qual é o sentido da permanênciana terapia? É necessário investigar se a perma-nência está a serviço do Self do paciente ou da

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sombra do terapeuta, que precisa se sentir útil eimprescindível.

É importante assinalar que uma separatio 2 seanuncia quando o tema do encerramento da análi-se surge na sessão. Uma separatio que pode servivida objetiva ou subjetivamente, de modo con-creto ou simbólico, e que manifesta a necessidadedo ego de sair do estado de participation mystiqueque pode ocorrer na análise. A separação ou a di-ferenciação entre sujeito e objeto, entre os opos-tos, é passo importante para o processo de indi-viduação e sempre precede a coniunctio. Tornar-seum indivíduo implica estar “separado”, o que é umato da consciência. Mas, como afirma Edinger: “Aoseparar os opostos, o Logos traz clareza; mas aotorná-los visíveis, traz também o conflito” (EDINGER,1990, p. 207). Essa característica de discórdia pre-sente na separatio pode ser a causa de alguns finscomplicados de análise, resultado de uma aplica-ção errônea da separatio.

Uma analogia interessante relacionada à análi-se é a diferença entre médico e enfermeiro. O mé-dico, identificado com o arquétipo do curador, eque geralmente carrega essa projeção, faz o diag-nóstico, passa as prescrições, mas se retira. Quemcuida, mede a pressão, colhe o sangue, limpa asujeira, alimenta, lava, troca o soro e a sonda é oenfermeiro ou o técnico de enfermagem. O médi-co, o dr. X, detém o poder, nada é feito sem suaassinatura; mas a enfermagem, em seu anonima-to, cuida dos detalhes e fica mais tempo com opaciente. Além de ativarmos o lado ferido na equa-ção curador/paciente para que a relação analíticapossa fluir e ativar o arquétipo do curador no pa-ciente, precisamos convidar o enfermeiro, com seuolhar atento, prático e constante, a participar doespaço analítico. Essa figura anônima, mas pres-tativa, é quem cuida de nossa vulnerabilidade ex-posta e frágil, de nossos fluidos e lamentos. Oenfermeiro nos remete à atitude paciente, empáticae humilde no trato diário com as tarefas de rotina,como ouvir as repetitivas lamúrias dos pacientes,nas incontáveis sessões, meses ou anos a fio, pon-do em cheque muitas vezes as certezas e convic-ções dos terapeutas. Lembremos o que Jung (1990,

1981) sempre falou a respeito de não ficarmos dolado de fora mas, sim, junto do paciente, dentrodo vaso. Recomendava abandonar as teorias e per-manecer junto ao mistério vivo da alma humana.Quando alguém está sofrendo na nossa frente, éinútil explicarmos que ela está dominada por seucomplexo. Mais vale, nesse momento, estar ali emsilêncio, em sintonia com sua dor, apenas trocan-do os curativos, como bons enfermeiros.

Uma última analogia. No hospital, os médi-cos não conseguem prever o momento da mor-te, falam em semanas ou em dias. Quando nãohá mais o que fazer, a sombra da impotência sefaz presente e, ao mesmo tempo, é o que os hu-maniza. Poder conviver com o mistério da vida eda morte nos aproxima de nosso tema. Quandoentramos na jornada de atender um novo pacien-te em análise, não sabemos aonde ela vai nosconduzir, quais os caminhos que juntos iremospercorrer. Podemos intuir, sentir e perceber, jánas primeiras sessões, os sinais de sua intensi-dade, sofrimento e profundidade. Mas não sa-bemos qual, como ou quando será seu término.E nem como seremos afetados por tudo. Talvezesse seja o grande desafio de individuação doanalista. Jung (1986) nos ensina isso dizendo queaprendeu muito mais com os fracassos do quecom os casos bem-sucedidos. Nas vicissitudesdos términos mal resolvidos, dos pacientes quese vão sem explicação, fins sem finalização, te-mos oportunidades para aprender a humildadede conviver com a nossa ignorância diante do mis-tério que o outro representa.

Segundo Hillman, a análise, como a conhe-cemos, é interminável:

O “Conhece-te a ti mesmo” é seu próprio fim e

não tem fim. É Mercurial. É uma arte hermética

paradoxal tanto direcionada a um fim quanto

sem fim, muito como o velho Freud disse da

análise, em seu último ensaio antes do exílio

de Viena, tanto de seu fim como objetivo quan-

to de seu fim no tempo: “Não só a análise do

paciente, mas a do próprio analista, deixaram

de ser termináveis e se tornaram uma tarefa

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interminável”. Não há outro fim senão o ato em

si de fazer alma, e a alma não tem fim. (HILLMAN,

2010, p. 127).

Guggenbühl-Craig ressalta a importância doarquétipo curador-ferido e como é difícil para apsique suportar a tensão das polaridades, o quepode levar à cisão do arquétipo e, portanto, àvivência cristalizada de um só polo. A fim de evi-tar a cisão enrijecida em que vive o analista, dizGuggenbühl: “Ele tem que ser sacudido. O se-nil ‘eu sei, eu sei’ deve transformar-se no socrá-tico ‘eu não sei’” (2004, p. 137). Essa mesma ideiaé expressa em linguagem poética por ClariceLispector no seguinte trecho:

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Junguiana

Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor

tudo o que não sei e – por ser um campo virgem

– está livre de preconceitos. Tudo o que não sei

é a minha parte maior e melhor: é a minha lar-

gueza. É com ela que eu compreenderia tudo.

Tudo o que não sei é que constitui a minha ver-

dade. (LISPECTOR, 2004, p. 74).

Recebido em: 6/3/2017 Revisão: 26/5/2017

1 A referência à criança não significa que o paciente seja vistocomo uma criança, mas se relaciona à manifestação do arquétipoda criança, à criança interior.2 Separatio é uma operação alquímica que produz ordem a partirdo caos, promovendo a separação dos opostos e a criação daconsciência. Medir, cortar e pesar são símbolos da separatio.

This article analyses the end of the analyticalprocess, which does not mean healing neitherrelease nor individuation. The latter may go oneven after sessions stop. Sudden analytical pro-cess endings which may result in a sense of help-lessness and failure are also examined here, aswell as the interference of the therapist’s shadowcomponents. Some clinical cases illustrate suchsituations. The child archetype and the endlessanalysis are also dealt with in this article as well

as the alchemical separatio operation. The im-ages of the doctor and of the nurse are used asan analogy of the role of the therapist, both as ahealer and as a caretaker. Last, the article con-siders the mystery that involves the process oflife and death and pain and sorrow that affectsanalysts – whose own individuation process ischallenged and who needs to learn about hum-bleness in order to cope with the unknown.

Abstract

The end of the analysis

Keywords: Jungian analysis, the end of analysis, failure, individuation, shadow.

El artículo trata del final del análisis, lo queno implica la cura, el alta o la individuación,porque ésta última puede continuar inclusodespués del cierre de las sesiones. Se discutenlos finales repentinos que pueden movilizar

sentimientos de impotencia, fracaso y aspectosde la sombra del terapeuta y se ilustran algunassituaciones en casos clínicos. Se abordan tam-bién el arquetipo del niño, los análisis inter-minables y la operación alquímica separatio

Resumen

El fin del análisis

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relacionada con el fin del análisis. Además, seutilizan las imágenes del médico y de la enfer-mera como analogías del papel del terapeuta:además de curador, cuidador. Finalmente, sepresentan reflexiones acerca del misterio que

comprende los procesos de vida y muerte, dolory sufrimiento que afectan a los analistas y cons-tituyen desafíos en su proceso de individuación,en el aprendizaje de la humildad de convivir conel no saber.

Palabras clave: analisis junguiano, fin del analisis, fracaso, individuación, sombra.

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Marco Heleno Barreto*

* Psicólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais –UFMG, especialista em psicologia clínica, mestre e doutor em filo-sofia pela UFMG. Professor titular do Departamento de Filosofiada FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.E-mail: <[email protected]>

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ResumoO autor examina dois contos folclóricos bra-

sileiros do século XIX e mostra como a represen-tação do negro em cada um deles aponta paraduas possibilidades distintas no que diz respei-to à configuração psicológica brasileira, em suarelação com a verdade profunda de nossa cons-tituição psicocultural histórica.

Palavras-chaveAlma brasileira,representaçãodo negro,exclusão da sombra,integraçãopsicológica.

Vilão ou herói?Uma meditação sobre a representação do negro

em dois contos folclóricos brasileiros

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Em 1885, Sílvio Romero, estudioso da culturae sociedade brasileiras, publicava seus Contospopulares do Brasil (ROMERO, 1954), no qualapresentava uma coletânea desse material anô-nimo que, contado de uma geração a outra nosmeios populares de uma determinada região, per-mite um vislumbre da mentalidade coletiva daqual é expressão espontânea e fiel. Lembrandoque, àquela altura, os meios de comunicação demassa ainda não haviam feito sua entrada avas-saladora na história, para influenciar de formapoderosa e tendencialmente homogeneizante asmais diversas mentalidades submetidas ao seuraio de ação, os contos recolhidos e publicadospor Sílvio Romero constituem uma valiosa fontede informação acerca dos meandros da mentali-dade brasileira coletiva e popular, naquele mo-mento histórico, em seu estado bruto, por assimdizer. Justamente por provir de uma atividadeespontânea daquela mentalidade, sem estar sub-metido ao crivo crítico dos juízos éticos e esté-tico-artísticos mais apurados, esse material fol-clórico pode fornecer um acesso aos níveis maiselementares e coletivos do solo comum em quese enraíza a alma brasileira, sobre os quais se er-guem, depois, as diferenciações mais elaboradasdas expressões culturais de nosso povo.

Neste breve ensaio, pretendo tomar dois doscontos anotados por Sílvio Romero e pensá-los apartir de um determinado ângulo interpretativo,com o objetivo de apontar para um aspecto fun-damental da mentalidade brasileira. Evidentemen-te, pretender expor alguma característica estrutu-ral de uma mentalidade tão multifacetada como abrasileira é tarefa arriscada, incerta, e o resultadoforçosamente será provisório e de validade ape-nas relativa, na melhor das hipóteses. A rica di-versidade que pode ser constatada tanto nos ma-teriais que expressam nossa cultura como nosdistintos estilos que se reúnem sob a denomina-ção “brasileiro” aconselha, de partida, uma atitu-de cautelosa, modesta e cética. No entanto, nadaproíbe meditar sobre certos detalhes presentes

em um material proveniente da cultura popularbrasileira e propor, com sobriedade e parcimônia,algum tipo plausível de correspondência com as-pectos do espírito que nele se expressa. É o quepretendo fazer nas páginas que se seguem, dei-xando, portanto, bem claro que minha interpreta-ção, movida por um impulso lúdico e não pelosrigores da inteligência acadêmica, deve ser lidacom as reservas e com a benevolência que se fa-zem necessárias nessas circunstâncias. Meu tex-to é antes um devaneio do pensamento do queuma peça de demonstração rigorosa de uma ideia.Não defendo uma tese: apenas apresento uma su-gestão que me parece relativamente verossímil.

Na interpretação que se segue, considerareias diversas personagens e situações dos doiscontos que examinaremos como expressões daalma brasileira captada sob um determinado ân-gulo. Ao usar a expressão “alma brasileira”, nãoreivindico qualquer estatuto ontológico para oque é por ela designado, ou seja, não tomo comohipóstase ou entidade objetiva a assim chama-da “alma brasileira”. Com essa expressão, que-ro indicar, antes, um modo particular de ser-no--mundo, dotado de certos traços e característicasrelativamente estáveis, de forma a poder ser re-conhecido como representativo deste mosaicodiversificado e plural, mas identificável e incon-fundível em sua diversidade própria, a que po-deríamos também chamar “caráter brasileiro”. Háaqui uma boa aproximação com o que, nos es-tudos junguianos, costuma-se designar por “com-plexo cultural”.

1. A negação de si mesmo:o negro vilãoO conto “João mais Maria”, registrado por

Sílvio Romero em Sergipe e no Rio de Janeiro(ROMERO, 1954, p. 167-173), pode ser assim es-quematicamente resumido:

Como nas versões típicas, o pai abandona João

e Maria no mato. No dia seguinte, encontram a

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casa da feiticeira e roubam bolinhos de milho

feitos pela velha. As crianças são descobertas. A

bruxa as recebe em sua casa e trama comê-las.

Nossa Senhora aparece às crianças e lhes ensi-

na como derrotar a bruxa. Após a morte da feiti-

ceira, de sua cabeça saem três cães ferozes e,

seguindo a instrução de Nossa Senhora, as crian-

ças dão um nome e um pão a cada um deles. Os

cães então se tornam seus cães de guarda. João

e Maria tomam conta da casa e vivem alguns anos

tendo os cães como protetores.

Depois Maria se apaixona por um homem e os

dois tentam dar cabo de João, que está sempre

protegido pelos cães. Os ardis para neutralizar

os cachorros de João falham e os cães devoram o

amante de Maria. João abandona Maria por cau-

sa da traição e sai pelo mundo para ganhar a vida,

acompanhado por seus três cachorros.

João chega a uma terra assolada por um monstro

de sete cabeças, devorador de pessoas, que a

cidade tinha de fornecer para não ser destruída

pela fera. João encontra uma princesa, a vítima

sacrificial do dia, e que fora prometida em casa-

mento a quem matasse o monstro. Os três cães

matam a fera. João corta as pontas das sete lín-

guas do monstro morto e vai com a princesa para

o palácio. Mas um preto velho e aleijado passa

no local, corta os cotocos das sete línguas e os

leva ao rei, apresentando-se como o matador do

monstro. O rei prepara o casamento da princesa

com o preto velho aleijado, a despeito de a prin-

cesa afirmar que não fora ele quem matara o

monstro. No almoço de casamento, os três cães

arrebatam os três pratos servidos ao falso noivo

negro. A princesa reconhece os cães e diz que

foram eles que haviam dado cabo do monstro. O

rei manda seguir os cachorros, que retornam para

João, e então este vem ao palácio com as sete pon-

tas das línguas. O logro é desmascarado e o rei

manda amarrar o negro a quatro burros bravos,

que o despedaçam. João casa-se com a princesa.

A versão brasileira do “Hänsel und Gretel” dosirmãos Grimm resulta da confluência de três mo-tivos distintos: 1) o episódio do casal de irmãos

abandonados no mato, terminando na morte dafeiticeira; 2) o episódio da paixão de Maria porum homem, que resulta na tentativa malogradade matar João; 3) o episódio da aventura “solo”de João, em que ele mata um tipo de dragão etermina por desposar a princesa prometida aoherói que libertasse o reino da dominação pelomonstro mítico.

Certos detalhes da versão brasileira chamama atenção do leitor que se proponha a pensar apartir do postulado da correspondência entre osentido psicológico do conto e a mentalidadecoletiva em que está inserido e de onde é narra-do. Por exemplo: se levarmos em conta a histó-ria da formação do povo brasileiro, e de sua con-gênita carência coletiva no que tange à funçãopaterna, não parece simples acidente desprovi-do de possível significação psicológica o fato dea aventura do casal de irmãos abandonados pe-los pais terminar com a morte da feiticeira, semque haja uma reconciliação final com a origem.O crônico e brasileiríssimo sentimento de umabandono radical, gravado indelevelmente emnossas origens históricas, é condizente com aeliminação da cena de reconciliação com os pais,como também o é o anseio por uma restituiçãoheroica e narcisisticamente grandiosa da digni-dade assim anulada, da autoestima desde sem-pre problemática. Assim, a configuração psico-lógica que se expressa em “João mais Maria” jáexibe, em seu primeiro episódio, pelo traço par-ticular do abandono radical, uma semelhançacom um aspecto da mentalidade brasileira his-toricamente constituída.

Na relação entre a feiticeira, Nossa Senhora eos três cães de guarda, podemos ler o dinamismopsicológico autotransformador em ação nessa ex-pressão imaginativa da alma brasileira. Obser-ve-se que a feiticeira está associada à preparaçãode alimentos (bolinhos de milho) e, assim, já selocaliza no nível da cultura. Não é casual, por-tanto, que os cães que irrompem de sua cabeçasejam conciliados com pães, e que o conheci-mento dessa estratégia seja comunicado pela fi-guração positiva da imagem materna (Nossa

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Senhora). Aquilo que ameaça (a feiticeira) é,dialeticamente, aquilo que salva (Nossa Senho-ra), e se transpõe, mediante uma integração ope-rada por artifícios culturais – linguagem (a nomea-ção dos cães) e alimento preparado (os pães queos propiciam) –, para o nível de uma potência de-fensiva (os cães domesticados) à disposição daprópria consciência em vias de autorrealização(João e Maria). E se os cães emergem da própriafeiticeira, então vemos como as quatro imagens(feiticeira, Nossa Senhora, cães e crianças) são as-pectos distintos de uma mesma realidade psico-lógica fundamental, em seu dinamismo de auto-transformação.

A ambivalência do arquétipo materno cor-responde, na perspectiva dialética, ao potencialautocontraditório, pelo qual a configuração psi-cológica inicial nega a si mesma para atingiruma expressão mais evoluída e diferenciada emuma forma ulterior. O dinamismo autotransfor-mador refere-se à própria totalidade psicológi-ca, de seu momento inicial indeterminado (umapotência que é destruidora e assim criadora deuma nova ordem psicológica) até seu momentofinal, simbolizado na coniunctio entre o herói Joãoe a princesa.

O monstro que aparece no terceiro episódioé homólogo à feiticeira do primeiro, simbolizan-do esse potencial destrutivo, autonegador daprópria totalidade psicológica, que é a condiçãoque a propele a um nível mais diferenciado de simesma. Por isso mesmo, são os cães de guar-da, resultantes da transformação inicial da mes-ma imagem materna “negativa”, que dão cabodo dragão ressurgido. Note-se, de passagem, arede simbólica que se estabelece entre as diver-sas partes do conto pela referência ao motivoda alimentação: João e Maria roubando bolos,de uma feiticeira antropófaga, de quem brotamcães apaziguados com pães, que devoram oamante de Maria e, depois, derrotam um mons-tro devorador, para, finalmente, exporem o usur-pador em um banquete, roubando-lhe os pratosservidos. Podemos afirmar que o processo deautotransformação psicológica aqui figurado em

imagens simbólicas é um processo centrado naoralidade, entendida como matriz arcaica dosprocessos psíquicos de introjeção/destruição/assimilação, que determinam a constituição daidentidade.

No mesmo sentido, aquilo que no segundoepisódio se opõe a João é designado apenascomo “um homem”, pelo qual Maria se apaixo-na, e que é devorado pelos cães que haviam saí-do da cabeça da feiticeira morta. O “enamo-ramento” de Maria pelo antagonista de João trazà tona o fator dinâmico da autonegação da uni-dade atingida em um estado prévio pela cons-ciência, uma negação que tem como telos ima-nente a reconstituição em um nível mais eleva-do, mais diferenciado, da unidade negada ousacrificada. Se atentarmos para o fato de que,na estrutura do conto, a posição de João em re-lação à personagem feminina é ameaçada poruma outra figura masculina, perceberemos queo amante de Maria no segundo episódio e o ne-gro velho e aleijado no terceiro são homólogos.O antagonista interno é necessário para criar atensão exigida para a transformação da própriaconsciência através da realização heroica. Ditoem outros termos: a consciência constela seupróprio outro, que vem romper a sua unidadeprovisória figurada em João e Maria, para supe-rar a si mesma rumo a um estado mais avança-do. Podemos conjecturar que, na diversidade deexpressões imagéticas dessas oposições inter-nas (João, Maria, feiticeira, Nossa Senhora, cães,amante, monstro, preto velho aleijado), encon-tram-se diferentes aspectos, em diferentes situa-ções, da mesma força autonegadora elementarque cria a possibilidade de autorrealização datotalidade psicológica.

Na verdade, temos então uma estrutura sim-ples: João e Maria, e depois João e a princesaque vem preencher o lugar vago de Maria, repre-sentam a dialética unidade na diferença da tota-lidade autocontraditória da consciência (imagi-nativamente representada como uma dualidadeem coniunctio), que emerge de um fundo origi-nário obscuro e vai se diferenciando em níveis

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sucessivos na narrativa, uma diferenciação quesempre é posta em movimento pela psique apartir de seu próprio fundo originário ou estadoinicial (normalmente designado como “o incons-ciente” na psicologia junguiana tradicional). Essefundo, cuja primeira figuração no conto está nospais que decidem descartar João e Maria, reapa-rece no primeiro episódio como feiticeira antro-pófaga, e como monstro devorador de pessoasno terceiro. E a figuração final do movimento datotalidade psicológica representado imagetica-mente no conto – o par João-princesa – corres-ponde à mesma forma originária, só que agoradiferenciada através dos vários momentos doprocesso autodeterminante (poderíamos dizerautopoiético) da própria consciência.

Mas certamente não é casual o fato de o vi-lão embusteiro do terceiro episódio do conto serrepresentado como um preto velho aleijado. Emjargão junguiano tradicional, estamos diante deuma personificação da sombra do próprio herói.Se este é visto como uma personificação do idealda consciência coletiva, o que se destrói na ima-gem do negro vilão é algo que pertence legitima-mente à totalidade daquela mesma consciência.Consequentemente, no conto “João mais Maria”,encontramos como resultado final um estadocindido dessa totalidade consciente. O “mal”é simplesmente aniquilado e aquilo que se re-presenta na imagem do negro não é integradonaquela totalidade. Isso equivale a dizer que oestado alcançado pela consciência nessa repre-sentação imaginária não é verdadeiramente fi-nal, trazendo dentro de si uma lacuna de ondepode brotar o dinamismo que tenderá a uma evo-lução ulterior.

Ora, mas quando uma forma psicológica, emsua unidade autocontraditória, se transpõe parao mundo concreto, expressando-se no mundodas relações sociais efetivas, via de regra o queocorre é uma fragmentação daquela mesma uni-dade. Em consequência, encontraremos os frag-mentos encarnados em posições que se opõemexternamente, sem se alçarem ao reconheci-mento consciente da unidade de fundo que as

determina. Assim sendo, a representação dasombra brasileira como um preto velho aleijadoé altamente significativa, e o conto pode estarexpressando de modo espontâneo algo de umtraço característico da mentalidade brasileira:o nosso racismo, frequentemente denegado eescondido por trás da nossa também caracterís-tica cordialidade. O aviltamento histórico do ne-gro escravo na formação do povo brasileiro trans-põe-se para a esfera dos valores coletivos sob aforma do antivalor, aquilo que põe em risco jus-tamente o anseio dolorosamente arraigado deuma dignidade compensatória à nossa inferiori-dade (lembre-se que o preto velho é aleijado).Reconhecer a sombra negra implicaria em inte-grar nossa inferioridade, o aleijão em nossas ori-gens, e, como a experiência analítica confirma,contra essa integração erguem-se violentamentetodas as defesas do sujeito, que tendem, portan-to, a preservar um estado cindido e a se hipno-tizar com um ideal ambicionado, que esconde porrecalcamento a verdade inconsciente.

Para deixar claro esse ponto, façamos umaanalogia rápida com o mito adâmico: o casal pri-mordial não se refere ao homem e à mulher con-cretos em sua distinção sexual (Adão represen-tando o homem e Eva representando a mulher),mas a todo e qualquer ser humano, cuja situa-ção existencial global é simbolizada no mito pe-los dois personagens. Assim, como lembra PaulRicoeur, toda pessoa peca em Adão, toda pes-soa é seduzida em Eva. Se Eva figura a misterio-sa infinitude do desejo humano, Adão figura atendência a realizá-lo em um plano finito inco-mensurável com aquela infinitude radical. Adãoe Eva representam, portanto, a unidade da cons-ciência humana em sua relação consigo mesmae com o mundo. Não obstante, a incrustação his-tórica dos modelos imaginários indubitavelmenteguarda as marcas de uma projeção psicológicareal. Assim, não é casual que, na esteira do mitoadâmico, à figura de Eva corresponda um véu dedesvalor lançado sobre as mulheres reais, ali-mentando a secular misoginia que marca o Oci-dente cristão.

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Analogamente, e guardadas as devidas propor-ções, poderíamos dizer que é a alma brasileira quese nega dialeticamente no “enamoramento” deMaria, que aspira a uma integração prematura nopreto aleijado velho, que aspira à reconstituiçãoda unidade perdida no casamento de João com aprincesa, que se cinde no dilaceramento violentopromovido pelo rei. Do mesmo modo, podemossupor que a particularidade da atribuição a umnegro do papel de vilão no conto brasileiro é umindício da projeção psicológica que está na basedo nosso racismo frequentemente denegado pornossa suposta cordialidade.

Mas insistamos por mais um momento naperspectiva da totalidade psicológica, e não nada realidade concreta fragmentada e conflitiva emque ela se encarna: se o conto é a expressão deum aspecto do modo brasileiro de ser-no-mun-do, em todas as suas personagens e situações,então a figura do preto velho aleijado não desig-na um indivíduo ou uma parte específica do povobrasileiro, mas uma componente essencial daconfiguração psicológica brasileira. Não são ape-nas os negros reais que estão representados nes-sa imagem, mas toda e qualquer subjetividadeque for constituída a partir do modo brasileirode ser-no-mundo, não importando quão azuissejam os olhos ou quão louros os cabelos do in-divíduo concreto que encarne tal subjetividade.O traço de dissociação aí representado (culmi-nando com o violento diasparagmos do pretovelho aleijado) estará presente nos sujeitos bra-sileiros cuja organização psicológica situar-se nonível correspondente ao do conto – seja como aprojeção da sombra nos negros reais, fundamen-to do nosso “racismo cordial”; seja como a tris-te “identificação com o agressor”, tão comumquanto inconfessada nos “negros de alma bran-ca”; seja ainda como a justificadamente ressen-tida e agressiva reação “afro” contra qualquervalor “branco” (uma reação que por vezes seassenta na mesma lógica da discriminação e se-gregação de que historicamente os negros fo-ram vítimas no Brasil, constituindo-se, assim,uma forma sutil da mesma “identificação com o

agressor” de que fala a psicanálise, apenas como vetor invertido).

Para além desse nível de dissociação exclu-dente, a verdade indelével do modo brasileiro deser-no-mundo, histórica e psicologicamente fa-lando, encontra-se na mestiçagem: o brasileiroé, por definição, não um branco, um negro ou umíndio, mas um mestiço, a resultante do encontrohistórico, atormentado, apaixonado, violento,monstruoso, amoroso, contraditório enfim, de vá-rias raças. A essencial mestiçagem brasileira épromessa de máxima universalidade humanistano reconhecimento incondicional do outro quese apresenta como ingrediente no nosso caldei-rão étnico antropofágico; a sua negação particu-larista é índice seguro de que tal promessa nãofoi realizada, detendo-se no nível de uma dis-sociação excludente. Na linguagem do conto: aconiunctio final representada no casamento deJoão com a princesa se faz às custas de uma vio-lenta negação do preto velho aleijado, que estáportanto simplesmente excluído da forma deconsciência aí instaurada, e não dialeticamentesuprassumido. Se considerarmos o nível e a for-ma de consciência correspondentes à lógica doconto, perceberemos que, nesse nível, a univer-salidade mestiça é ainda uma meta a ser atingi-da, uma possibilidade potencial, latente. A ple-na realização da verdade psicológica da almabrasileira não está figurada no conto “João maisMaria”. O que aí encontramos corresponde a umaconfiguração muito difundida em nossa realida-de social, uma configuração cindida. E, a sus-tentar esse nível da forma de consciência brasi-leira, está um certo princípio ordenador que, noconto, é figurado na personagem do rei – quenão só não é substituído, como ainda é quempromove a aniquilação da sombra. Além dis-so, observe-se que há uma clara dominânciaarquetípica maternal sustentando a trajetória doherói (Nossa Senhora, a feiticeira e os cães quedela nascem) – e trata-se de um herói que nãose destaca propriamente por feitos heroicos tí-picos, pelos quais o herói ativamente se realizaem sua essência própria. Como não pensar aqui

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no traço infantil (ou de imaturidade ) tão reco-nhecido no caráter brasileiro, congruente comaquele sentimento de abandono radical aludidoanteriormente?

Examinemos agora a constelação psicológi-ca brasileira sob um outro ângulo, em um contoque apresenta uma estrutura distinta da queencontramos em “João mais Maria”.

2. Uma outra posição: o negro triunfanteNa mesma coletânea de Sílvio Romero, encon-

tra-se um conto que pode iluminar outras pos-sibilidades psicológicas presentes na alma bra-sileira no tocante ao simbolismo psicológico re-presentado na figura do negro. Trata-se do conto“O pássaro preto”, proveniente de Pernambuco(ROMERO, 1954, p. 68-73). Ei-lo resumido em for-ma esquemática:

Um homem pobre possuía um pássaro preto.

Um dia, seu filho foi alimentar o pássaro e o

soltou. O pássaro então carrega o menino pelo

bico e o leva a um rico palácio, mandando pôr a

mesa para o almoço. Tendo de sair, o pássaro

preto (a que o menino chama de padrinho) dá à

criança uma chave, com a ordem de só abrir o

primeiro dos sete quartos que havia em frente à

sala. O menino abre o quarto, encontra muitos

cavalos e se diverte tanto que se esquece de

comer. No dia seguinte, o pássaro lhe dá a cha-

ve do segundo quarto, onde o menino encontra

selins e arreios. Nos três próximos dias, o me-

nino recebe a chave dos quartos seguintes e en-

contra moças brancas no terceiro, mulatinhas

no quarto e espadas no quinto.

Passam-se os tempos, o menino vira moço feito

e pede tudo ao padrinho. O pássaro preto lhe

diz que, se o afilhado o obedecer, será dono de

tudo o que ali havia. E dá-lhe a sexta chave, com

a recomendação de não abrir o sexto quarto, sob

pena de perder tudo o que ele havia lhe prome-

tido. O moço abre o quarto, encontra um rio de

prata, mergulha o dedo no mesmo, e seu dedo

fica prateado. Esconde o dedo em um pano, mas

o pássaro percebe o que houvera, e o moço pede

para não ser castigado. O padrinho diz que o

castigo será no dia seguinte, quando o moço

tornar a desobedecê-lo. Dá-lhe a sétima chave e

sai. O moço abre o outro quarto proibido, acha

um rio de ouro. Quando o pássaro preto retorna,

castiga-o tirando-lhe a roupa, mergulhando-o no

rio de prata, depois no de ouro, após o quê lhe

dá uma varinha de condão e o expulsa de casa.

O moço chega a um reino, encontra um negro

velho, a quem chama Pai Gaforino, e lhe pede a

roupa velha e suja para encobrir sua cor e poder

entrar na cidade. O negro cede; mas uma prince-

sa observa a cena de uma janela do palácio, e

então pede ao rei para casar-se com o pior negro

que ali chegasse. O rei concorda e o casamento

é celebrado, mas o rapaz, desconfiado, não se

deita com a princesa na cama, ficando numa tá-

bua ao pé do fogo.

O rei, desgostoso, fica à beira da morte. A famí-

lia faz uma promessa à padroeira: se o rei se

recuperasse, fariam uma festa de três dias na

igreja. O médico prescreve ao rei comer três pás-

saros de plumas. Os outros dois genros do rei

partem em busca das aves. O genro negro pede

então à sua varinha de condão uma carruagem,

um rico vestuário e três pássaros de plumas, e

sai no encalço dos outros dois genros do rei.

Encontra-os, e lhes vende os pássaros de plu-

mas sob a condição de marcar os concunhados

com seu ferro nos quadris. Os dois concordam,

são ferrados e levam os pássaros ao rei, que os

come e se cura.

Segue-se a festa. A cada dia o negro manda sua

mulher à igreja com uma carruagem e um vesti-

do progressivamente mais ricos, sem a mulher

saber; o primeiro vestido era da cor do campo

com todas as suas flores; o segundo, da cor do

mar com todos os seus peixes; o terceiro, da cor

do céu com todas as suas estrelas. Depois pe-

dia o mesmo para ele e, a cada vez, aparecia em

todo o esplendor na igreja sem ser reconheci-

do. As irmãs da princesa, invejosas e descon-

fiadas, ao verem o desconhecido magnífico na

igreja, escarneciam da mulher do negro: “Com

um moço assim é que tu devias ter casado e não

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com um negro”. O moço retornava rapidamente

ao palácio e assumia as suas vestes andrajo-

sas de negro, à beira do fogo.

Ao fim do terceiro dia, houve festa no palácio e

todas as princesas e respectivos maridos com-

pareceram. Então o negro apresentou-se na sua

cor verdadeira e nos mesmos trajes que usara

ao ferrar os concunhados. Declarou que não se

assentaria na mesma mesa que seus cativos, e

contou a história da venda dos pássaros

emplumados. O rei verifica a veracidade da mes-

ma, as duas irmãs invejosas atiram-se da varan-

da do palácio, seus maridos fazem o mesmo. O

rei fica tão desgostoso que morre em pouco tem-

po. Então Pai Gaforino torna-se o senhor de

todo o reino.

Analisar as diversas e interessantes imagensdo conto em sua totalidade extrapolaria os limi-tes deste trabalho. Enfocarei apenas aquelas quesão centrais na estrutura da estória e que nosajudam a pensar a representação do negro quenela encontramos, e o que esta nos revela a res-peito do nível da configuração psicológica que alógica do conto exprime.

Observe-se que o ponto de partida é uma si-tuação de pobreza que, após as várias peripéciasda trama, culmina em uma situação de riqueza(e de poder: o Pai Gaforino torna-se o senhor detodo o reino). Há uma inversão evidente em ope-ração na estória, de tal modo que poderíamosapontar no conto a presença do dinamismo dacarnavalização, estudado por Mikhail Bakhtin(2005). Aliás, as inversões pontuam toda a cadên-cia da estória: o menino que alimenta o pássarocativo é raptado pelo pássaro e por ele alimenta-do; na sucessão de figuras paternas, temos o paipobre, o padrinho rico, e o Pai Gaforino miserá-vel; o moço tem sua roupa arrancada pelo pás-saro preto e consegue roupas andrajosas de umnegro velho; instala-se a oposição entre umaessência valiosa (de ouro e prata) e uma apa-rência miserável (o negro andrajoso); por fim,Pai Gaforino, pertencente à condição mais hu-milde na hierarquia social, assume o lugar do

rei, que ocupa o lugar mais elevado naquelamesma hierarquia.

A referência explícita ao negro encontra-setanto na cor do pássaro como na figura do PaiGaforino. Toda a transformação que se realiza noepisódio do palácio encantado do pássaro pre-to, culminando no banho de ouro e prata quefaz do moço o suporte do valor máximo, encami-nha-se inequivocamente para a expulsão e parao encontro com o Pai Gaforino. Há, aqui, umamudança de dimensões: da dimensão encanta-da (ou transmundana) para a dimensão social(mundana). A cena do encontro entre o moçotransmutado e o negro velho às portas da cida-de marca uma passagem entre uma e outra, demodo que a entrada do novo valor psicológicona realidade vigente se faz por meio do persona-gem negro. Em analogia com o tema cristão daencarnação de Deus em um homem de condiçãohumilde, o Pai Gaforino encarna o valor funda-mental e decisivo na estória em todas as suas cir-cunstâncias, e o resultado lógico da carnava-lização que informa a narrativa em “O pássaropreto” é a entronização do negro Gaforino, a re-velação final de seu valor essencial que vem re-configurar a ordem instituída.

Como no conto anterior, encontramos maisuma vez a figura de um negro velho, desta veznão mais aleijado, mas simplesmente pobre, mi-serável. Aqui, porém, o negro não será esquar-tejado, mas assumirá o posto de valor máximo(a função real), consumando a inversão carna-valizante que comanda a estória. Temos, então,um desenlace exatamente inverso ao que encon-tramos em “João mais Maria”: lá, o herói (João)reúne-se à princesa, integrando-se à ordem vi-gente (o rei que sanciona o casamento), à custada supressão violenta do negro; aqui, a prince-sa acolhe a essência valiosa do herói negro, quese apossa da ordem vigente à custa da autos-supressão de seus avatares (as irmãs invejosas,seus maridos e, por fim, o próprio rei).

O estranho pássaro que dá título ao conto é apeça-chave para toda a transformação expressana estória (assim como, em “João mais Maria”,

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um personagem sobrenatural é estratégico naperipécia: Nossa Senhora). Evidentemente, nopássaro preto encontramos um “rei invertido”:propriedade de um homem pobre, ele é, na ver-dade, proprietário de um palácio encantado. E énesse palácio que se opera a transformação domenino-moço, segundo um esquema arquetípicomuito difundido em contos de fadas. A promes-sa da posse de todo o reino encantado terá queser resgatada em outro nível. É necessário que oherói aparentemente perca tudo o que estava àsua mão, preservando, contudo, a nova essên-cia de ouro e prata (e o dom da varinha de con-dão, pelo qual o poder mágico do pássaro en-cantado se transmite ao afilhado transmutado),e assuma a pobreza do Pai Gaforino, para que ovalor de sua essência, reunindo-se à princesa,possa tomar posse do reino, mediante o auxíliomágico concedido pelo padrinho sobrenatural (avarinha de condão) e a astúcia própria no uso domesmo. Em outros termos: o novo valor psicoló-gico virá inscrever-se no mundo, realizar-se nestadimensão, organizando-a segundo uma forma emque não há mais lugar para a depreciação de tudoaquilo que se simboliza na imagem do Pai Gaforino– do negro excluído e desprezado.

O esquema simbólico é análogo ao da kenosisna visão cristã: Deus se esvazia de sua majesta-de para encarnar-se em uma condição infinita-mente inferior àquela majestade transcendente,assumindo a condição humana, ou sarx (carne)em linguagem bíblica. Da mesma forma, há umaidentidade dialética entre o moço transmutadoe o Pai Gaforino, e a atribuição final do reino aonegro andrajoso não é um simples “engano” daconsciência popular que narra o conto: é a mani-festação da verdade simbólica específica sobrea qual a estória se funda.

Observe-se que a contradição entre os doispolos – a ordem vigente da consciência (reino,cidade) e a nova forma proveniente da transfor-mação ocorrida no momento anterior – é repre-sentada em “O pássaro preto” como a descon-fiança que o herói, disfarçado com as roupas an-drajosas de Pai Gaforino, manifesta em relação à

princesa com quem se casa: ele não se deita comela, não consuma o casamento, e mantém-se nu-ma tábua ao pé do fogo. Somente após a revela-ção final é que – pode-se inferir – a coniunctio seráplenamente realizada.

A mesma contradição, em sentido inverso,também vem à tona com o desgosto e a doençado rei, causados pelo casamento da filha com onegro andrajoso. A doença será curada pela in-tervenção do herói camuflado, mas não se tratade uma verdadeira reconciliação, pois, ao final,mesmo após a revelação da essência valiosa donegro andrajoso – ou melhor: justamente em vir-tude dela –, o desgosto novamente toma contado rei e ele morre. Em linguagem junguiana tradi-cional: o princípio dominante da consciência de-saparece para dar lugar a uma nova orientação.Segundo a lição do simbolismo dos contos defadas, essa transformação renovadora provémsempre daquilo que é rejeitado, vil, desprezado,inferior, marginalizado. Sob o ponto de vista dalógica dos símbolos, portanto, não é casual o en-contro do moço, portador do novo valor psicoló-gico, com Pai Gaforino, encarnação da sombra re-jeitada dentro da ordem vigente.

Note-se que há uma repetição de motivos en-tre a transgressão e o casamento com a princesa:o moço oculta seu dedo prateado com um pano,assim como oculta sua essência transmutadacom as vestes de Pai Gaforino; o pássaro pretopercebe o que houvera, assim como a princesapercebe o ocultamento da janela do palácio. E, aoexpulsar o moço do palácio encantado, o pássa-ro preto arranca-lhe as roupas. Se, em “João maisMaria”, o simbolismo fundamental era o da ali-mentação, aqui todo o sentido psicológico se con-centra no simbolismo do vestuário, que representaa mediação necessária entre as duas dimensõesdistintas (a dimensão do palácio encantado dopássaro preto, que simboliza o fundamento psi-cológico arquetípico da consciência, e a dimen-são do reino, que simboliza a realidade socialempírica que manifesta uma configuração parti-cular da mesma consciência). A roupa andrajosade Pai Gaforino oculta a essência verdadeira do

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personagem, mas também a revela, segundo alógica da coincidentia oppositorum que rege odinamismo psicológico. Aqui vale a pena recor-rer a um comentário especializado:

Já no Antigo Testamento, a roupa pode signifi-

car, ao manifestá-lo, o caráter profundo daque-

le que a veste. [...] Portanto, a vestimenta não é

um atributo exterior, alheio à natureza daquele

que a usa; pelo contrário, expressa a sua reali-

dade essencial e fundamental. (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 1995, p. 948).

Seguindo a linha dialética de interpretação,parece-me importante insistir nesse paradoxo dosimbolismo das vestes: elas revelam e ocultamao mesmo tempo. Revelar é ocultar, ocultar é re-velar. Por isso, os andrajos de Gaforino são asvestes suntuosas que o moço providencia como auxílio da varinha mágica. Por isso, o moçotriunfante é o negro Gaforino que se assenhoreiade todo o reino. Como diriam os alquimistas, oouro filosofal está em uma pedra vil, lançada nomeio da rua, desprezada pelo vulgo, veneradapelos sábios.

As vestes suntuosas não precisam ser inter-pretadas literalmente, como mera ostentaçãoexterior de poder, prestígio e riqueza. Seu cará-ter cósmico aponta para a correspondência en-tre o microcosmo e o macrocosmo e, assim, elassimbolizam o aspecto de totalidade que recobreo personagem, ou seja: as roupas aqui apontampara a realização plena da consciência investidana posição do herói, e não para um suposto po-der empírico, literal, concreto. Em jargão junguia-no tradicional, estamos diante do simbolismo dosi mesmo, o Anthropos ou totus homo enquan-to figuração da totalidade psicológica veiculadano conto. Essa mesma totalidade representava-se, na cena do palácio encantado do pássaro pre-to, como os sete quartos com seus respectivosconteúdos e a promessa de que o herói seria opossuidor de tudo aquilo.

Assim, o conto “O pássaro preto” pode servisto como estando em um nível mais avançado

em relação a “João mais Maria”, no que diz res-peito à expressão da forma de realização da con-figuração psicológica mestiça da alma brasilei-ra. Aliás, há um detalhe interessante no palácioencantado do pássaro preto: no terceiro quartoencontram-se moças brancas e, no quarto seguin-te, encontram-se mulatinhas, indicando que, na-quela dimensão onde se reúne toda a riquezapsicológica da forma de consciência que se ex-pressa no conto, os opostos estão contidos, emforma feminina. Há uma totalidade em potên-cia contida no reservatório que é o castelo en-cantado do pássaro preto, e é essa totalidadeque se encarna na figura do herói-Gaforino e setransmite à ordem que ele vai inaugurar, apóso desaparecimento do princípio que sustenta-va a ordem velha. Se pensarmos em termos depreconceito e depreciação como sendo caracte-rísticos da ordem decadente (veja-se o escárniodas irmãs invejosas quanto ao marido negro epobre da princesa), podemos dizer que a ordemantiga é unilateralmente (e simbolicamente) “bran-ca”, ao passo que a nova ordem vai reunir o “ne-gro” (Gaforino) e o “branco” (a princesa) em umaconiunctio mestiça – e, justamente por isso, “Opássaro preto” representa um estágio mais avan-çado no que diz respeito à realização plena daverdade psicológica brasileira.

3. ConcluindoSe, como sustenta Darcy Ribeiro (1995, p. 126-

133), o brasileiro não é branco europeu, nemnegro africano, nem ameríndio, então qualqueradesão exclusivista a qualquer dessas três linha-gens originárias (como, eu acrescentaria, a qual-quer outra posterior que se derramar em nossocaldeirão étnico mestiço) será irremediavelmen-te negadora da brasilidade. Acontece, porém,que essa negação é, paradoxal e efetivamente,constitutiva do próprio movimento de constru-ção e realização gradual do modo brasileiro deser-no-mundo, um modo cujo vetor fundamen-tal está na mestiçagem. A destinação gravada emnossa origem aponta para uma unidade pluralde ingredientes étnicos, e é nessa diversidade

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que está cifrada a identidade brasileira. O brasi-leiro lúcido não pode reivindicar títulos de no-breza ancestral – seja ela europeia, africana ouindígena, ou qualquer outra. Nossa nobreza,paradoxalmente, está na falta de nobreza, namestiçagem irrestrita, nossa ferida mais funda enosso tesouro mais valioso. Somos vira-latas.Se houver uma possível contribuição brasileiraà família humana mais ampla, ela estará naassunção serena e alegre da humilde condiçãomestiça. Resta saber se estaremos à altura detal atitude, que exige ultrapassar o círculo vicio-so dos mecanismos psicológicos de compensa-ção grandiosa e narcísica contra nosso congêni-to sentimento de inferioridade.

A exclusão que verificamos em “João maisMaria” não realiza a verdade psicológica da mis-cigenação que é essencial à alma brasileira. Já arenovação da consciência expressa em “O pás-saro preto” parece-me mais próxima da exigên-cia inscrita no mais fundo do caráter brasileiro.A nossa forma de totalidade psicológica (pode-ríamos dizer em jargão junguiano: o si mesmobrasileiro) reclama uma estrutura inclusiva, quesupere a exclusão do preto velho aleijado (quelegitimamente representa o impulso de inclusão

na forma de casamento com a princesa) e quesubstitua as bases psicológicas do preconceitoe da depreciação raciais. O autocontraditório pre-conceito racial integra a configuração psicológi-ca brasileira como uma espécie de esfinge pos-tada no caminho da autorrealização da nossaforma de consciência. A inclusão compreensivacorresponde à forma de realização plena e últi-ma da verdade psicológica brasileira da miscige-nação. Concluindo, talvez pudéssemos dizer queo desafio da individuação brasileira está na ca-pacidade de passarmos do nível de consciênciarepresentado em “João mais Maria” para aquelerepresentado em “O pássaro preto”. Mas a ques-tão é: seremos capazes de suportar a “morte” dasirmãs invejosas e de seus maridos em nós? Con-seguiremos deixar que o rei de nossa atitude pre-conceituosa morra de desgosto dentro de nós?Pois individuar não é simplesmente ganhar o rei-no, mas morrer em nossas defesas mais arraiga-das. E isso não é fácil, nem simples. Por isso, serplenamente brasileiro é – que me seja permitidoencerrar com um paradoxo esta meditação lúdica– um indesejado desideratum.

Recebido em: 4/3/2017 Revisão: 24/5/2017

The author examines two Brazilian folk talesfrom the nineteenth century and shows how therepresentation of the Negro in each of thempoints to two distinct possibilities with regards

to the Brazilian psychological configuration, inits relation to the deep truth of our historicalpsychocultural formation.

Abstract

Villain or hero? A meditation on the representation of the Negro in two Brazilian folk tales

Keywords: Brazilian soul, representation of the Negro, exclusion of the shadow, psychological integration.

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Palabras clave: alma brasileña, representación del negro, exclusión de la sombra, integración psicológica.

El autor examina dos cuentos popularesbrasileños del siglo XIX y muestra cómo la re-presentación del negro en cada uno de ellosapunta a dos posibilidades distintas con respecto

¿Villano o héroe? Una meditación sobre la representación del negro en dos cuentospopulares brasileños

Resumen

a la configuración psicológica brasileña, en surelación con la verdad profunda de nuestra cons-titución psicocultural histórica.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janei-ro: Forense Universitária, 2005.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Rio deJaneiro: José Olympio, 1995.

RIBEIRO, D. O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil.São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

ROMERO, S. Contos populares do Brasil. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1954.

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Isabela Paixão Rodrigues*Fernanda Gonçalves Moreira**

ResumoEste artigo tem como objetivo explorar como

a literatura pode auxiliar na elaboração de vi-vências psíquicas, não apenas para quem escre-ve como também para quem lê. Com base nostextos de C. G. Jung sobre psicologia analítica eliteratura, e mantendo o enfoque principal noprocesso criativo e não na interpretação da obra,o presente artigo avalia como diferentes tiposde textos (poemas, letras de músicas e livros)de épocas distintas podem representar confli-tos surgidos do inconsciente do autor ou atuarna individuação do leitor.

Elaboração das vivências psíquicas:o papel da literatura

Palavras-chaveLiteratura,processo criativo,Vinicius de Moraes,Carlos Drummondde Andrade,Harry Potter.

* Médica residente em psiquiatria pela Escola Paulista de Medicina.E-mail: <[email protected]>

** MD-PhD, psiquiatra e psicoterapeuta, analista junguiana pelaSBPA, professora adjunta da UNIFESP.E-mail: <[email protected]>.

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1. IntroduçãoA literatura, também conhecida como sexta

arte, é fonte inesgotável de estudos. Os movi-mentos literários retratam a realidade do perío-do histórico em que estão inseridos, e uma aná-lise detalhada da obra de um autor específicopode dizer muito sobre a vida desse indivíduoou sua maneira de interpretar a mesma. Esse tipode interpretação tem como objeto de estudo aarte em si, ou seja, suas considerações artísticas,a essência daquilo que está sendo retratado. Umaoutra maneira de considerar e refletir sobre a lite-ratura é direcionando o foco para o processo decriação, ou seja, considerando o impacto da pro-dução de determinada obra, e não a biografia oua anamnese do artista que a produziu (PALOMO,2014, p. 40).

Jung realça a importância de que as obras dearte não sejam avaliadas de maneira científica,uma vez que tal ótica induziria um reducionismoprejudicial à total compreensão da obra (JUNG,1922/2007, par. 108). A obra de arte, de acordocom Jung, é maior do que o indivíduo que a es-creve; naturalmente trará características de seuautor, mas também sairá, como Pallas Atheneda cabeça de Zeus, formada e pronta a seus pró-prios moldes (JUNG, 1922/2007, par. 110). Por-tanto, manter a análise restrita à visão exata ecientífica, vinculando todo o significado da obraà biografia do artista que a produziu, leva a umaprivação de nuances significativas. A arte é maiorque seu artista, é livre das estreitezas e dificulda-des do que é pessoal, capaz de se desenrolar deapenas um indivíduo e atingir o coletivo, tornan-do-se parte do mundo interno de inúmeras ou-tras pessoas. Esse caráter a torna muito amplapara uma visão científica; porque se a ciência é oconhecimento e a observação do mundo e de suastransformações, no que diz respeito aos indiví-duos e seus processos mentais, a arte é um agen-te dessas transformações.

Este artigo tem como proposta justamenteavaliar como as obras literárias podem ter papel

significativo na elaboração das vivências psíqui-cas e, portanto, na saúde mental daqueles queas produzem. Paralelamente, aquele que ler oproduto dessa elaboração, ainda que sem pre-tensões analíticas ou interpretativas, tambémserá impactado e lidará com questões próprias.As relações entre psicologia analítica e obra dearte descritas por Jung serão exemplificadas comVinicius de Moraes, Gilberto Gil, Rita Lee, Fernan-do Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e asaga Harry Potter, mostrando como cada produ-ção artística pode ter impactado seus autores econsumidores.

A análise inclui também letras de música: ain-da que o resultado final seja diferente, o proces-so de criação tem sobreposições importantes, eas diferenças são cada vez mais tênues. Desde autilização de trechos de obras na composição deletras – como, por exemplo, a citação do capítulo13 de Coríntios na música “Monte Castelo”, dabanda Legião Urbana – até a musicalização com-pleta de uma obra, como a que transformou umacrônica de Arnaldo Jabor na música “Amor e sexo”,por Rita Lee (LEE, 2016, p. 255), podemos notarque o processo de escrita literária e de escritamusical não são apenas parecidos: por vezes, sãoo mesmo. A percepção dos dois processos de cria-ção artística como algo semelhante, talvez atémesmo único, é ratificada pela premiação do com-positor americano Bob Dylan com o Prêmio Nobelde Literatura, em 2016.

Portanto, este artigo se propõe a aplicar a teo-ria que une o processo de criação artística à psi-cologia analítica e observá-la em prática em diver-sas obras de variados estilos, pelo ponto de vistado autor, do leitor e, de modo mais detalhado,sobre como a arte se mistura com o mundo inter-no e o processo de individuação de cada um.

2. Aquele que escreveEsta avaliação começa, naturalmente, a partir

do indivíduo em que se inicia a obra literária.Jung considera o autor o “solo” no qual a arte se

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desenvolve: ou seja, o produto literário carrega-rá características da pessoa que o escreveu, mastambém se moldará à própria vontade (JUNG,1922/2007, par. 115). Ele também faz a distinçãoentre dois processos criativos: o introvertido,aquele em que o artista controla cada palavra queé colocada no texto, produzindo uma obra maisestética e com significados ocultos menos evi-dentes; e o extrovertido, em que o artista é su-jeito a um produto sobre o qual tem menor con-trole, expressando sua natureza mais íntima, aqual nunca teria coragem de manifestar conscien-temente, resultando numa obra um pouco maissimbólica (JUNG, 1922/2007, par. 111).

Esses dois processos não são necessaria-mente exclusivos – Jung cita uma situação exem-plo de um autor tão absorto em sua obra quesente que tem pleno comando sobre o que pro-duz mas, na verdade, está sendo dirigido peloinconsciente (JUNG, 1922/2007, par. 113) – e nemmesmo um ou outro é característico de um de-terminado autor. Na realidade, todo processocriativo parece ter algo de extrovertido e algo deintrovertido, em proporções diversas. O interjogoentre introversão e extroversão completaria o pro-cesso de elaboração.

Para exemplificar essa diferença na obra de ummesmo artista, seguem dois poemas de Viniciusde Moraes, “A bomba atômica – canto II” e “A rosade Hiroshima” (MORAES, 1954):

A bomba atômica – canto IIA bomba atômica é triste

Coisa mais triste não há

Quando cai, cai sem vontade

Vem caindo devagar

Tão devagar vem caindo

Que dá tempo a um passarinho

De pousar nela e voar...

Coitada da bomba atômica

Que não gosta de matar!

Coitada da bomba atômica

Que não gosta de matar

Mas que ao matar mata tudo

Animal e vegetal

Que mata a vida da terra

E mata a vida do ar

Mas que também mata a guerra...

Bomba atômica que aterra!

Pomba atônita da paz!

Pomba tonta, bomba atômica

Tristeza, consolação

Flor puríssima do urânio

Desabrochada no chão

Da cor pálida do helium

E odor de radium fatal

Lœlia mineral carnívora

Radiosa rosa radical.

Nunca mais, oh bomba atômica

Nunca, em tempo algum, jamais

Seja preciso que mates

Onde houve morte demais:

Fique apenas tua imagem

Aterradora miragem

Sobre as grandes catedrais:

Guarda de uma nova era

Arcanjo insigne da paz!

A rosa de HiroshimaPensem nas crianças

Mudas telepáticas

Pensem nas meninas

Cegas inexatas

Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

Pensem nas feridas

Como rosas cálidas

Mas oh não se esqueçam

Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroshima

A rosa hereditária

A rosa radioativa

Estúpida e inválida

A rosa com cirrose

A antirrosa atômica

Sem cor sem perfume

Sem rosa sem nada.

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Os dois poemas não têm em comum apenaso poeta, mas também o tema central – entretan-to, diferem diametralmente quanto à abordagemdesse tema. A primeira obra tem uma construçãoque parece mais calculada, sugerindo um proces-so introvertido, tentando racionalizar o atentadoatômico às cidades japonesas de Hiroshima eNagasaki, que marcou o fim da Segunda GuerraMundial. Nessa poesia, Vinicius coloca a bombacomo assassina também da guerra, um instru-mento de paz. A impressão de que foi uma tenta-tiva de elaborar um acontecimento cujo impactonão tinha precedentes é fortalecida pela poesiaseguinte, “A rosa de Hiroshima”, que é muito maissimbólica e emotiva.

A segunda obra fala com seus leitores pormeio de símbolos tanto visuais como significa-tivos. A escolha do termo “rosa” alude tanto àimagem da explosão da bomba como a conceitosmais subjetivos, como a alusão ao feminino, àdelicadeza e ao não belicismo. O argumentoexplorado racionalmente em “A bomba atômi-ca – canto II” pode ajudar a compreender a es-colha de uma flor como metáfora para a bombaatômica: esta, como dito no primeiro poema, éuma agente do fim da guerra, e essa promessa,a promessa de paz, é simbolicamente tão belaquanto as rosas.

No entanto, nessa obra mais extrovertida ecarregada emocionalmente, Vinicius já contestaessa beleza. As rosas também são as mulherese crianças que foram feitas vítimas, agora cáli-das, cegas e inexatas. Tão cegas e inexatas, épossível argumentar, quanto as pessoas que dis-pararam o ataque e acreditavam que isso trariaa paz novamente, que solucionaria magicamentetodos os problemas que haviam culminado na-quela guerra.

Acreditar em soluções mágicas é uma tendên-cia natural do ser humano. É, assim como a rosade Vinicius, hereditária, adjetivo que também temimportante carga simbólica: além da procura porsoluções mágicas, é da natureza humana, tam-bém, a tendência a conflitos e guerras. A heredi-tariedade dessas características sugere que a

tendência de projetar nos outros a razão e a so-lução para nossos conflitos faz da “paz” da bom-ba atômica doente, cirrótica (doença crônica graveassociada ao alcoolismo, àqueles que adoeceme eventualmente morrem por não conseguiremdeixar a ilusão).

Comparando as duas obras, é perceptível queo inconsciente se manifesta e se impõe apesardas tentativas do consciente de privilegiar a óti-ca da razão sobre os acontecimentos. Também éperceptível o caminho de elaboração do autor.Em “A rosa de Hiroshima”, com o evento traumá-tico melhor trabalhado psiquicamente, é possívelao poeta uma maior aproximação da emoção, semtantos disfarces ou racionalizações. Se entender-mos o conjunto dos poemas como o processo deelaboração de Vinicius, o autor passou pelo pro-cesso de introversão e extroversão até chegar aum certo equilíbrio em relação ao tema.

Jung, no parágrafo 448 de Símbolos da trans-formação, discute que, por meio da introversão,um aspecto arquetípico seria ativado e humani-zado, possibilitando a emergência de uma ideiacriativa salvadora, para um indivíduo ou para umacomunidade.

A imposição do inconsciente, necessária parao surgimento das obras simbólicas, é chamadapor Jung de complexo autônomo, os pensamen-tos que se formam no inconsciente para, só en-tão, irromperem para a porção consciente do indi-víduo (JUNG, 1922/2007, par. 122). Tal conceito éexemplificado pela descrição de Manuel Bandeirasobre sua produção literária:

Acontecem-me os poemas inesperadamente e,

às vezes, fulminantemente. De tal modo que a

minha impressão a posteriori é que não fiz o poe-

ma: ele é que se faz em mim. (SENNA, 1993).

Esses conceitos e exemplos mostram quetanto a teoria da psicologia analítica de Jungcomo a leitura e relato da obra de alguns poetasimportantes da literatura brasileira concordamque o processo de criação artística, por vezes,sai do inconsciente do autor, expondo ideias e

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sentimentos que o indivíduo não acessaria deoutra maneira, permitindo-lhe analisar essasconsiderações do inconsciente para incorporá--las à sua elaboração das vivências e angústiaspessoais.

A criação artística muitas vezes serve ao ar-tista de caminho de elaboração, como visto aci-ma, no processo de Vinicius de Moraes em ela-borar o horror atômico, que chocou toda umageração. Dramas pessoais também são elabora-dos por meio do trabalho artístico, como expli-cou Gilberto Gil ao discorrer sobre o processo decomposição da música “Drão” (GIL, 1981):

Drão, o amor da gente é como um grão,

Uma semente de ilusão,

Tem que morrer pra germinar,

Plantar nalgum lugar,

Ressuscitar no chão, nossa semeadura,

Quem poderá fazer aquele amor morrer,

Nossa caminhadura,

Dura caminhada pela estrada escura.

Drão, não pense na separação,

Não despedace o coração,

O verdadeiro amor é vão, estende-se infinito,

Imenso monolito, nossa arquitetura,

Quem poderá fazer aquele amor morrer,

Nossa caminha dura,

Cama de tatame, pela vida afora.

Drão, os meninos são todos sãos,

Os pecados são todos meus,

Deus sabe a minha confissão, não há

o que perdoar,

Por isso mesmo é que há de haver mais

compaixão,

Quem poderá fazer aquele amor morrer

Se o amor é como um grão,

Morre nasce, trigo

Vive morre, pão

Sobre o momento de composição, Gil explicaque sua criação “apresentou altos graus de difi-culdade”, pois ela lidava com um assunto den-so – o amor e o desamor, o rompimento, o fim deum casamento:

Porque era uma canção para Sandra [apelidada

Drão] e para mim. Eu me lembro de estar senta-

do no chão, anotando frases no caderno, com o

violão do lado, e de repente sentir o sufoco do

coágulo da criação, e ao mesmo tempo a imi-

nência da explosão da via criativa, e não aguen-

tar, saindo dali e indo pro meu quarto me deitar,

então, aquele coágulo se dissolver, criando fi-

letes que se encaminhavam pra aqui e pra ali…

Aí o cérebro e o coração se intumesciam, algu-

mas ideias fluíam, e dois, três ou quatro versos

saiam. (RENNÓ, 2003, p. 305).

Neste relato, Gil descreve um momento de gran-de introversão, que, a custo de muito sofrimento,vai se revertendo paulatinamente. Jung chamaatenção para o risco inerente a esse processo:

Se a libido fica presa no reino maravilhoso do

mundo interior, o homem se transforma em som-

bra para o mundo exterior, ele está morto ou gra-

vemente doente. Mas se a libido consegue des-

vencilhar-se e subir à tona, o milagre aparece:

a viagem ao submundo é uma fonte da juventu-

de para ela e da morte aparente desperta novo

vigor. (JUNG, v. 5, par. 449).

É interessante perceber que o próprio artis-ta, uma vez tendo vencido esses riscos e volta-do, junto com a libido, dessa viagem ao mundointerior, pode apresentar também compreensãodo processo de elaboração que acabou devivenciar.

Rita Lee, em sua autobiografia, faz a associa-ção entre um momento extremamente traumáti-co e uma música composta anos depois: a artis-ta conta que foi a última a saber de sua saída dogrupo Os Mutantes, quando lhe comunicaramque haviam decidido retirá-la por “não ter cali-bre como instrumentista” para seguir a direçãoque estavam tomando. Rita juntou suas coisas,pegou o carro e a estrada, parou no acostamen-to e conta que “chorei, gritei, descabelei, xingueifeito louca”. Finalizada a “cena”, se recompôs evoltou para a casa dos pais (LEE, 2016, p. 113).

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Essa vivência retorna anos depois; nas palavrasda própria Rita:

Na letra da música “Mutante”, não sei se contei

um filme triste ou se uma personal joke para

exorcizar o vudu. Depois de tanto tempo, eis que

me reconheci como a verdadeira mutante, aque-

la coisa minha de não ser fixa no rock de uma

nota só, de sair do conforto ilusório para viver na

fragilidade da dúvida. (LEE, 2016, p. 187).

A própria artista, após passar pelo processode criação e elaboração, conseguiu associá-lo àexperiência que foi capaz de elaborar melhor pormeio da composição.

A descrição de Gilberto Gil sobre o processo decomposição de “Drão” também demonstra certacompreensão, ainda que prática e não teórica, so-bre aspectos analíticos do processo criativo:

Outra exigência que eu me colocava era de não

me precipitar. Eu queria que o fazer, a prática, o

empirismo da realização fossem observados

pelo meu ser ali à distância: eu tinha que con-

templar o feitio da canção. Ao lado do esforço,

da tensão concentrada, tinha que haver a des-

contração, o relaxamento concentrado – as duas

coisas, e todas essas exigências sobrepostas

determinando o modo de compor a canção.

(RENNÓ, 2003, p. 305).

Essa vivência exemplifica muito bem a procu-ra de equilíbrio entre introversão e extroversão,o controle da forma e o fluxo das emoções.

O resultado desses processos artísticos, noentanto, não pertence apenas ao seu autor; tam-pouco serve somente às elaborações do artista.A obra de arte tem a capacidade de se comunicarcom os dramas conscientes e inconscientes da-queles que a admiram, possibilitando também aestes uma imersão em seus mundos internos.

3. Aquele que lêA expressão do inconsciente do autor não

costuma ser feita de maneira clara e objetiva.

Pelo contrário, as obras consequentes de um com-plexo autônomo estão repletas de símbolos. Jungdefine símbolo como “expressão de uma concep-ção para a qual ainda não se encontrou outra oumelhor” (JUNG, 1922/2007, par. 105). Uma vez quea obra simbólica tem significados passíveis de in-terpretação, seu significado afeta diferentementecada um dos seus leitores, dependendo do incons-ciente e do contexto em que está inserido cadaindivíduo. A relação entre a criação da obra sim-bólica e sua leitura pode ser avaliada na poesia“Autopsicografia”, de Fernando Pessoa:

AutopsicografiaO poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

(PESSOA, 1942)

O ato da leitura promove uma introversão pro-gressiva por parte do leitor, que gradativamentevai se fechando para seu entorno e mergulhandonaquele universo paralelo proposto pelo texto.Esse universo, por sua vez, vai se misturando como mundo interno do leitor, para onde este é leva-do, completando o processo de introversão.

A obra simbólica é naturalmente inquietante,justamente por trazer significados ocultos queacessam questões internas do leitor. Ao mesmotempo, essa característica provocativa tambémtraz à tona questões inconscientes daquele queinterage com os símbolos, permitindo, por meioda introversão, o acesso a questões individuaisantes suprimidas no próprio inconsciente, assim

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como aconteceu com o autor da obra ao criar talsímbolo.

Um estudo qualitativo conduzido na EscolaPaulista de Medicina na Universidade Federal deSão Paulo também encontrou conclusões a res-peito do impacto da literatura em seu leitor (SIL-VA, 2016). Nesse estudo, um grupo de alunos eprofissionais da área se encontraram semanal-mente ao longo de seis meses para discutir aleitura e as interpretações de um livro (Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe),enquanto os pesquisadores analisavam as dis-cussões, a interpretação trazida por cada parti-cipante e a análise sobre a experiência feita porcada indivíduo. Também estudaram a históriaoral de vida de quatro participantes para com-preender a influência das vivências pessoais naleitura da obra. Ao fim das análises, perceberamque a validade de uma leitura não é medida peloconhecimento que ela proporciona mais do quepelas percepções que o indivíduo teve duranteessa leitura. Um dos participantes ponderou queas mudanças provocadas por uma leitura ficamno inconsciente do indivíduo, alterando-o de ma-neira gradual e, por vezes, imperceptível. Outra,ainda, disse que “ao falar sobre a obra, falamossobre nós distraidamente” (SILVA, 2016, p. 97).Entre muitas outras conclusões, o estudo afir-ma que a arte é sempre modificadora (SILVA,2016, p. 97).

4. Caminho da individuaçãoUm livro ou uma poesia pode colaborar com a

elaboração de um momento ou circunstância. Masautores também produzem uma obra inteira emnome de uma elaboração. Drummond, notada-mente, elaborou sua melancolia ao longo de suaobra. Esse autor começa com a fase gauche, naqual a ironia transborda a angústia de um eumaior que o mundo, isolado em pessimismo, bemrepresentada pelo “Poema das sete faces”:

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:

pernas brancas pretas amarelas.

Para que tanta perna, meu Deus, pergunta

meu coração.

Porém meus olhos

não perguntam nada.

O homem atrás do bigode

é sério, simples e forte.

Quase não conversa.

Tem poucos, raros amigos

o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste

se sabias que eu não era Deus

se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,

se eu me chamasse Raimundo

seria uma rima, não seria uma solução.

Mundo mundo vasto mundo,

mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer

mas essa lua

mas esse conhaque

botam a gente comovido como o diabo.

(ANDRADE, 1930, p. 11)

Ao longo de toda essa obra, Drummond dávazão a um sentimento de estranhamento e denão pertencimento ao mundo em que se encon-tra; um conflito é natural, uma vez que cada pes-soa é de fato única e precisa dessa constataçãopara iniciar seu processo de individuação. Umexemplo de elaboração desse estranhamento éa já citada música “Mutante”, na qual Rita Lee jáse entendeu e se aceitou única, mutante.

Em “Poema das sete faces”, no entanto,Drummond está na primeira fase do processo. Eledescreve um desejo que ainda não está prontopara aceitar, e esse conflito torna o mundo dis-torcido: casas vendo pessoas, pessoas resumi-das a pernas, um coração maior que o mundo.Coração esse que é vasto de tantas dúvidas, que

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reconhece sua fraqueza e a questiona a Deus,mas que ainda é inibido e silenciado atrás da fi-gura do homem de bigode, que não deixa seusconflitos chegarem a seus olhos. É possível apon-tar que nem tudo foi elaborado ainda na produ-ção dessa obra: Drummond fala, ao fim, que fo-ram “a lua” e “o conhaque” que o botaram como-vido, afastando-se da angústia que ainda não estápreparado para reconhecer como sua.

Após essa primeira fase, Drummond passagradativamente a se abrir para o mundo e a per-ceber o sofrimento deste. Passa a se percebermenor que o mundo, talvez por vislumbrar a co-nexão com a totalidade, talvez desfazendo umasuperidentificação com o ego. Ao desfazer a in-flação de ego, o poeta sai da posição de impo-tência gerada pela idealização do que deveria ser.Na sua fase social, marcada pela vontade do poe-ta de participar e tentar transformar o mundo,Drummond mostra maior percepção de potên-cia: “Ó vida futura! nós te criaremos” (ANDRADE,1940, p. 46).

Jung comenta, sobre o caminho da individua-ção, que, quanto maior o grau de individuação,maior a conexão do sujeito com a humanidade.

Há, ainda, a situação de uma obra ou uma sagaservir de alicerce para a elaboração de toda umageração. O recente fenômeno Harry Potter é umexemplo. Uma medida do impacto dessa obra so-bre o público infanto-juvenil foi dada pelo traba-lho de Gwilym e colaboradores, que acompanha-ram os registros de atendimentos de emergênciapor trauma osteomuscular no Reino Unido nosfins de semana de verão. A constatação surpreen-dente foi que houve uma queda de quase 50% nosatendimentos em fins de semana de lançamentodos livros da série. O autor inicia seu artigo com aprovocação: “Sobre as crianças deste milênio, po-demos ter duas certezas: elas vão se machucar, eelas (provavelmente) lerão Harry Potter” (GWILYMet al., 2005, p. 1505; tradução nossa).

Em 30 de abril de 2012, lia-se o seguinte de-poimento, numa rede social, no perfil de umaadolescente de 17 anos, ilustrando o sentimen-to da “geração Harry Potter”:

Um amor que não tem descrição! Algo realmen-

te MÁGICO nasceu dentro de mim quando, aos

8 anos, eu li Harry Potter e a Pedra Filosofal !

Isso faz parte da minha vida e da minha histó-

ria! Cada pequeno detalhe que passei ao escre-

ver meu próprio livro, indo fantasiada ver os fil-

mes, dar autógrafos, tirar fotos, aos 11 anos quan-

do eu chorei por não receber a carta me convo-

cando para a escola! Se algum dia meus filhos

tiverem o prazer de ler e assistir Harry Potter a

vida deles vai estar completa! São 8 anos do

relacionamento mais perfeito, encantador, sin-

cronizado e mágico que alguém possa imagi-

nar! 2005/2013/infinito! (ANSELMO, 2012).

Não é difícil compreender a relação da “gera-ção Harry Potter” com a saga de mesmo nome. Naépoca em que Harry Potter foi lançado, poucasobras tratavam o público infanto-juvenil com tan-ta seriedade. Prova disso é que o primeiro livroda saga, Harry Potter e a pedra filosofal, foi recu-sado algumas vezes antes de ser publicado, prin-cipalmente pela temática e pelo tamanho da obra.Portanto, os livros de J. K. Rowling introduziram,num mercado escasso de material semelhante,um protagonista jovem, que não apenas passapor várias etapas da jornada arquetípica do heróicomo também lida com problemas comuns dejovens desta idade, seja em relação a amizades,relacionamentos ou autoconhecimento. O univer-so mágico compôs um apelo extra para atrair ointeresse dos jovens leitores, mas o que tornouHarry Potter tão marcante na vida de toda umageração foi justamente oferecer a possibilidadede se identificar com um protagonista, fazendodessa identificação uma ferramenta de elabora-ção da passagem para a vida adulta.

A “geração Harry Potter” é principalmentecomposta por indivíduos que, literalmente, cres-ceram com os livros, que estavam no começo daadolescência quando a saga teve início e eramjovens adultos na sua conclusão, dez anos de-pois. Esses jovens acompanharam o processo deamadurecimento do protagonista juntamente como seu próprio; ainda que não fossem bruxos, eram

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também adolescentes. Assim como as diferen-tes fases da obra de Carlos Drummond de Andra-de podem servir como “fio-guia” para leitores queestão passando por uma elaboração semelhan-te à do poeta, a série Harry Potter permitiu que ageração de jovens da época se identificasse comum protagonista que, num universo mágico e en-cantador, também passou por importantes situa-ções de conflitos e enfrentamentos sombrios.Dessa forma, ao fazer a introversão no universoda saga e fundi-lo ao seu próprio mundo inter-no, os jovens da “geração Harry Potter” não ape-nas puderam entender melhor seu amadureci-mento e processo de individuação como tambémcriaram a característica identificação com a série,um vínculo que foi possibilitado pela fusão des-se universo com uma fase tão importante na for-mação pessoal.

5. Considerações finaisO escritor Valter Hugo Mãe diz que espaços

carregados de livros são semelhantes a multi-dões, uma vez que os livros representam pesso-as (MÃE, 2016). É possível concordar com essaafirmativa mesmo sem tentar interpretar e aco-plar a obra de arte à vida pessoal do artista; a

essência da arte transcende a compreensão doartista e, até mesmo, suas experiências pessoais,mas o inconsciente do autor não deixa de seronde a obra e seus símbolos se desenvolvem,fazendo com que sejam representação e não có-pia ou depoimento um do outro.

Aqueles que produzem arte transformam oconteúdo do seu inconsciente em símbolos queserão lidos e interpretados de maneiras distin-tas, dependendo do inconsciente daquele quefor apreciá-la. Como diz Mãe, ao ser publicado,o livro ultrapassa o autor, que não pode contro-lar se os outros lerão sua obra como ele achaque deve ser lida (MÃE, 2016). Dessa forma, umaobra literária pode ajudar seus leitores de manei-ras distintas entre si e distintas da maneira comoajudou seu escritor, uma vez que acessa temasocultos no inconsciente de cada um, oferecendo--lhes uma nova elaboração ou, ao menos, umaperspectiva diferente. Como Jung também diz, nocapítulo já citado, o artista é um indivíduo umpouco inadaptado, que segue por caminhos dife-rentes dos demais e acha aquilo que o restanteda sociedade sente falta sem saber.

Recebido em: 4/3/2017 Revisão: 26/5/2017

This article aims to explore how literature canhelp to elaborate psychic experiences, not only forthe one who writes it but also for the one who readsit. Based on Jungian texts on analytical psychologyand literature and focusing the creative process not

the interpretation of the work, the present articleevaluates how different types of texts (poetry,lyrics and books) from different periods can repre-sent a conflict brought from the author’s uncon-scious or act on the reader’s individuation.

Abstract

Psychic experiences’ elaboration: the role of literature

Keywords: literature, creative process, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Harry Potter.

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Palabras clave: literatura, proceso creativo, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Harry Potter.

Este artículo pretende explorar cómo la litera-tura puede ayudar a elaborar experiencias psíqui-cas, no sólo a quien la escribe sino también aquien la lee. En base a los textos junguianos so-bre psicología analítica y literatura y con el enfoqueprincipal en el proceso creativo en lugar de en la

Elaboración de experiencias psíquicas: el papel de la literatura

Resumen

interpretación de la obra, se evalúa cómo diferen-tes tipos de textos (poesía, letras de canciones ylibros) de distintos períodos pueden representarun conflicto surgido del inconsciente del autor oactuar sobre la individuación del lector.

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Victor Palomo*

ResumoA partir do conto “Casa tomada”, de Julio

Cortázar, o presente artigo faz amplificações e cor-relações com os conceitos de anima e incons-ciente coletivo, além de sugerir pontes para a inter-locução entre psicologia analítica e literatura.

“Casa tomada” – leitura de umconto de Julio Cortázar

* Psiquiatra graduado pela Unifesp, analista junguiano, membroda SBPA e IAAP, mestre e doutorando em letras pela USP.E-mail: <[email protected]>.

Palavras-chave“Casa tomada”,literatura,anima,inconscientecoletivo.

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No texto “O direito à literatura”, o ensaístaAntonio Candido (em diálogo com Otto Rank) afir-ma que, assim como o sonho assegura a capaci-dade de fabular durante o sono, a literatura a ga-rante no período de vigília, fazendo-se o sonhoacordado de todas as civilizações, em todos ostempos. Em suas múltiplas funções humaniza-doras, porque resultado da atividade imaginativa(ou mitopoética) da psique, a arte literária tem aforça da palavra organizada como viga mestra deseu edifício narrativo ou poético, uma vez que “tiraas palavras do nada e as dispõe num todo articu-lado” (CANDIDO, 2011, p. 179). Ao ordenar caosem cosmos, o autor expressa-se, organiza-se epromove efeitos semânticos ao leitor, que, nafruição da obra, adquire conhecimento que reite-ra ou abala suas prévias suposições de sentidopara as palavras e para as coisas, procedimentosque não necessariamente se efetuam numa di-mensão consciente.

Julio Cortázar (1914-1984) foi um escritor aten-to a esses preceitos. Referindo-se ao processocriativo de seus contos, o autor argentino afirmaque “busca instintivamente que ele [o conto] sejaalheio a mim enquanto demiurgo” e que o leitortenha a sensação de que o mesmo nasceu “porsi mesmo, em si mesmo ou até de si mesmo”(CORTÁZAR, 2008, p. 229). Para o também autorde O jogo da amarelinha (CORTÁZAR, 2013), oindício do valor de uma grande obra literária estáno fato de que ela tenha se desprendido do au-tor, uma vez que o escritor tenha sido capaz detransmiti-la sem demasiadas perdas das latên-cias da psique profunda, conservando-a “o maisperto possível da sua fonte, com seu tremor ori-ginal, seu balbucio arquetípico” (idem, p. 234).Cortázar deixa clara, então, a importância da for-ma como inextricável aos possíveis caminhossemânticos de uma obra.

Para ele, o entendimento de que alguns es-critos tornam-se obras de arte graças ao seusubstrato mítico, ou seja, à “ressonância de ar-quétipos mentais ou os hormônios psíquicos”

(CORTÁZAR, 2008, p. 159), converge em direçãoà proposição junguiana a respeito do tema dagênese do processo literário: “a grande maioriados meus contos foram escritos independente-mente de minha vontade, por cima ou por baixode minha consciência, como se eu fosse um meiopelo qual passava e se manifestava uma forçaalheia”, enfatizava (idem, p. 154).

Essa suposição cortaziana que mapeia o pro-cesso de criação artística dialoga com os textosjunguianos que formulam hipóteses sobre o tema.No texto “Relação da psicologia analítica com aobra de arte poética” (Obras completas, vol. 15,capítulo 6), Jung (1987) ocupa-se em assinalar queas obras de arte não autorizam, para sua aprecia-ção psicológica, a necessária avaliação clínica ebiográfica do artista. Jung distingue duas modali-dades de fenômenos psicocriativos na literatura.Um primeiro caso refere-se às obras que “nas-cem totalmente da intenção e determinação doautor, visando a este ou àquele resultado especí-fico”, de forma que o poeta afirma um projetoconscientemente e escolhe suas expressões se-mióticas mais adequadas, às quais submete seumaterial artístico. Em procedimento oposto, háobras que se “impõem” ao autor, o qual experi-menta um estranhamento diante do que é mobi-lizado pela função transcendente: “[...] sua mãoé de certo modo assumida, sua pena escrevecoisas que sua própria mente vê com espanto. Aobra traz em si a sua própria forma” (JUNG, 1987,par. 10). Nesses casos, Jung observa que a cons-ciência é “inundada” por pensamentos e imagens,os quais nada mais são que a manifestação dosi-mesmo do artista. Este não se identifica com arealização criadora, mas tem consciência de umfenômeno “como uma segunda pessoa que tives-se entrado na esfera de um querer estranho” (par.110). Como se um “desconhecido” pensamentoem imagens, infenso à percepção consciente au-tomática, conferisse singularidade à obra criada.

De volta aos textos críticos de Cortázar, consta-ta-se que ele considerava a expressão metafórica

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como a integridade da linguagem, sendo aquelaum lugar-comum do homem: sua tendência inataa pensar por analogia. Como um intercurso lúdico,o poeta (ou o escritor) corre contra a corrente (dalinguagem cotidiana, prosaica), atentando paraa força ativa dessa habilidade arquetípica da fala– e da linguagem. Daí o motivo de seus contosserem magistralmente analógicos ou, por assimdizer, “poéticos”, consistindo em elementos con-densados de realidades psíquicas, caracóis dalinguagem, fazendo-se como “irmãos misteriososda poesia em outra dimensão do tempo literário”(CORTÁZAR, 2008, p. 149).

“Casa tomada” (CORTÁZAR, 2014) é um contoparadigmático dessa linha argumentativa. Publica-do em 1951 no volume Bestiário (2014), traz no tí-tulo, com a força de sua rima toante, uma imagemincontestavelmente polissêmica, suscitando noleitor de primeira mão um sem-número de asso-ciações inconscientes (ou devaneios). Por exem-plo, o filósofo francês Gaston Bachelard (2008)lembra que a imaginação da casa faz emergir a casaem que nascemos e as outras que depois habita-mos, construindo um feixe associativo de lembran-ças e devaneios cujos substratos temáticos giramem torno dos sentidos de abrigo, proteção, intimi-dade, estabilidade, “porque a casa é o nosso can-to no mundo, o nosso primeiro universo. É o verda-deiro cosmos” (BACHELARD, 2008, p. 24).

Organizada em seis movimentos, a narrativade “Casa tomada” é iniciada com o narrador tes-temunha (“eu”) expondo os sentimentos, percep-ções e perplexidades a respeito de seu “canto nomundo”. No primeiro, o eu-narrador descreve acasa, personificada como imagem da clausuraimposta pelos bisavós e responsável pelo “ma-trimônio de irmãos”, repositório de lembrançasque se plasmam em perspectiva transgeracional(dos bisavós aos seus pais), alcançando a infân-cia dos protagonistas: a irmã (Irene) e “eu”. Essecenário é impregnado de memória (portanto “to-mado”, por princípio), e nele os irmãos, agora commais de 40 anos, acostumaram-se à solidão e àrepetição monótona dos rituais triviais de limpezae alimentação: “Às vezes chegamos a crer que foi

ela que não nos deixou casar”, assevera a voz en-dogâmica do narrador.

Ele vivia com a irmã Irene, que tecia e desteciapeças de lã como pretexto para não fazer nada.Apoiados no favorecimento que a condição aris-tocrática de herdeiros lhes conferia, viviam “tecen-do e destecendo” o tempo: o tecido (o texto) erarepetitivamente o mesmo, como indicam as pas-sagens com influxos líricos um tanto lentificados:

[...] e eu passava horas olhando suas mãos que

pareciam ouriços prateados, agulhas indo e vin-

do e uma ou duas cestinhas no chão com os

novelos se agitando constantemente. Era lindo.

Ou então, “Almoçávamos ao meio-dia, sem-pre pontuais; nada mais a fazer além de uns pou-cos pratos sujos”. Ou, ainda, trechos prosaicosde caráter desencantado como “Desde 1939 nãochegava nada de valioso na Argentina”. Esta últi-ma frase suscita interpretações políticas de basealegórica que consideram que a casa é uma re-presentação da própria Argentina tomada (ou iso-lada), a partir da Segunda Guerra Mundial (1939).

Porém, esse primeiro movimento marca a de-finição (ou indefinição) da dupla incestuosa deirmãos preocupados com a preservação da casae alheios aos acontecimentos externos a ela.“Mas é da casa que me interessa falar, da casa ede Irene, porque eu não tenho importância”, en-fatiza o narrador, numa aceitação resignada danegatividade (uma negação da própria singulari-dade). Tal como a casa, que será minuciosamen-te descrita no segundo movimento do conto, Irene(“a garota que tinha nascido para não incomo-dar ninguém”) é aparentemente passiva (pois arepetitiva e atenuada atividade provém do nar-rador) e apresentada num plano mítico. O duplodo narrador (Irene) mistura uma dupla linhagemmítica: se uma das horas é Irene (a paz), filha deZeus e Têmis, suas irmãs são Eunomia (a discipli-na) e Dique (a justiça). Irene, no conto, é personi-ficação de um tempo aparentemente pacificadoe também uma fiadora, pois “só se distraía [equem precisa se distrair não está em paz] com o

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tricô”. A fiadora mítica é Cloto, que puxa o fio (otecido, o texto) da vida, sendo filha da noite eprojeção de uma lei que nem os deuses conse-guem transgredir (BRANDÃO, 1988, p. 230-231).Segundo arguta observação da crítica literáriaCleusa Rios (1986, p. 15), Irene aglutina a ambi-guidade desse duplo, sendo as horas (o conhe-cido) e o fio do destino (conhecido-desconheci-do que é tecido e destecido): “às vezes fazia umcolete e logo depois o desmanchava num segun-do [...]”. Tal cisão promove uma repetição contí-nua e mecânica, assim como a própria narração,denunciando uma consciência defensivamentecoagulada.

Se o primeiro movimento apresentou os per-sonagens, o segundo delineia o espaço narrati-vo: a casa dividida pela densa porta de carvalho,que restringe a circulação dos irmãos à sua me-nor parte. No espaço maior, iam apenas fazer alimpeza da poeira do ar de Buenos Aires (nova-mente uma imagem que motiva interpretaçõespolíticas). Há de se atentar para o verbo “esque-cer” na primeira frase do segundo movimento dotexto (“Não dá para esquecer como era a distri-buição da casa”), o que sugere a enumeração de-talhada da planta da casa como forma de marcara presença do eu e da irmã, pois, como sugereBachelard, “No teatro do passado que é a memó-ria, o cenário mantém os personagens em seu pa-pel dominante”. Diz ainda Bachelard:

o espaço retém o tempo comprimido. [...] Por ve-

zes acreditamos conhecer-nos no tempo, ao pas-

so que se conhece apenas uma série de fixações

nos espaços da estabilidade do ser, de um ser

que não quer passar o tempo [...]. (BACHELARD,

2008, p. 28).

Alheios aos desígnios coletivos do tempo, osirmãos viviam em uma parte menor da casa, queera separada por uma porta de carvalho maciço,e “ali começava o outro lado da casa”. Essa pa-rece ser a função desse movimento na narrativa,ou seja, apresentar as cisões constitutivas dacasa e dos personagens, que, consideradas em

modo de paralelismo, recusam veementementeseus outros lados. Assim abre-se o terceiro mo-vimento, quando súbitos barulhos, na sala derefeições ou na biblioteca, obrigam o narrador afechar com ferrolho a espessa porta de carvalhoque separava a parte maior da casa, agora per-ceptivamente “tomada”.

Aqui o conto abre-se à multiplicidade de sen-tidos. São dignas de destaque as locuções in-determinadas com que o narrador descreve essapassagem: o som “impreciso e surdo” ou “algu-ma coisa na sala de jantar ou na biblioteca”. Es-sas indefinições introduzem o estado de estra-nhamento que agora toma o narrador, pois o queera familiar fez-se insólito, espantoso ou inquie-tante. Uma breve digressão: no texto “Teeteto”,Platão atribui a Sócrates a afirmação de que oconhecimento nasce do espanto. Ancorado napalavra grega “thaumázein”, o filósofo grego re-ferenda as importâncias semânticas da admira-ção, da perplexidade e do assombro, ou seja, arealidade percebida por meio de lentes insólitas,como essencial ao desenvolvimento do pensa-mento filosófico (PLATÃO, 2007, p. 63). No campoda teoria literária, tais formulações ganham rele-vo no texto-referência do formalista russo ViktorChklovski “Arte como procedimento” (1917), noqual explicita que as leis do discurso prosaicoregulam a percepção da imagem pelo processode automatismo, de tal forma que “a vida desa-parece, transformando-se num nada” (CHKLOVSKI,1999, p. 81). Se a arte (e ele disserta sobre a artepoética) é o pensamento em imagens, sua finali-dade “é dar uma sensação de objeto como visãoe não como reconhecimento; o processo da arteé o de singularização dos objetos e consiste emobscurecer a forma, aumentar a dificuldade e aduração da percepção” das imagens, afastando--se de sua percepção automática e aproximan-do-se de suas singularidades.

A forma “singular”, ou singularmente estranha,por meio da qual o narrador percebe seu espaçooutrora (ou até então) familiar, pode ter uma am-plificação apoiada pelo texto freudiano O estranho(1919), no qual o autor disserta sobre as coisas

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que estão dentro do campo do amedrontador. Apartir das palavras alemãs heimlich-unheimlich (dofamiliar, pertencente à casa, ao não familiar), Freudfaz um inventário dos campos semânticos dessasexpressões, com o intuito de circunscrever a cate-goria do duplo: tudo o que deveria permanecersecreto e oculto, mas veio à luz. Após analisar anovela O homem de areia, de Hoffman, Freud con-clui que a experiência de estranheza forja-se peloretorno de algo familiar e há muito estabelecido eque se alienou pelo processo de repressão: a cate-goria do estranho resulta da expressão de comple-xos reprimidos (FREUD, 1969, p. 237-269).

Jung elege o conceito de complexo autônomocomo um dos pilares de sua teoria. Ao postular,a partir dos “Estudos diagnósticos das associa-ções”, a noção de “agrupamentos de ideias deacento emocional no inconsciente”, monta um edi-fício teórico em que o complexo eu, parcialmenteconsciente, relaciona-se com os complexos que“constituem as verdadeiras unidades vivas dapsique inconsciente, cuja existência e constitui-ção só podemos deduzir por meio deles. Os com-plexos, responsáveis pelos sonhos e pelos sin-tomas, são a via régia para o inconsciente” (JUNG,2000, par. 210). Assim sendo, seu caráter autôno-mo faz com que “a liberdade do eu cesse ondecomeça a esfera dos complexos, pois são potên-cias psíquicas cuja natureza profunda ainda nãofoi alcançada” (idem, par. 216). Em alinhamentocom essas assertivas, para Jung, o efeito de estra-nheza se dá porque “os complexos podem ter--nos. Toda constelação de complexos implica umestado perturbado da consciência” (idem, par.200). Daí que resultem em “manifestações nor-mais da vida” (par. 211) ou em situações psíquicasde não-liberdade, de pensamentos obsessivos eações compulsivas” (par. 200).

Aderindo-se ao texto literário, essa “não-liber-dade” fica clara quando o narrador afirma que “to-maram a parte do fundo”, ao que Irene, restriti-vamente, decide: “vamos ter que viver deste lado”(grifo meu). Esse quarto movimento da narrativa jádeixa clara a autonomia das disposições afetivasintegrantes da parte alijada à consciência (“deste

lado”): “Nos primeiros dias achamos penoso por-que ambos tínhamos deixado na parte tomadamuitas coisas que queríamos”. Apartados de seusdesejos e num esforço simultâneo de contenção,os irmãos retomam as atividades habituais de ca-ráter monótono e repetitivo, ela tecendo e ele ade-rindo às disposições senex do espaço da casa:“Comecei a examinar a coleção de selos do papai,e isso me servia para matar o tempo”. Esse arre-medo de tédio com intenções dissociativas apoia--se na suposição de uma possível vida automáticae administrada, na qual o pensamento, os deva-neios, as fantasias e os sonhos – os barulhos com-plexos – estivessem excluídos: “Pode-se viver sempensar”, reflete o narrador.

Mas a vida é formada e deformada pelo impon-derável anunciado pelas tais instâncias complexas,motivo pelo qual, astutamente, a narrativa incor-pora o quinto movimento do conto usando parên-teses, como um material que se insere solto aotecido (texto), ainda por ser integrado, por ser ela-borado. Tais imagens articulam narrativas das ex-periências insólitas dos sonhos e os escapes dasproposições oníricas manifestas para a consciên-cia do interlocutor-narrador insone: “Irene diziaque os meus sonhos consistiam em grandes sa-cudidas que às vezes faziam o cobertor cair”.

O crítico Davi Arrigucci (2003, p. 19) conside-ra que a análise da obra cortaziana consiste emdesmontar e montar cada traçado do texto, hon-rando um projeto literário que é um buscar per-manente: “Uma linguagem à caça de outra lin-guagem que já se enrodilha num complexo tran-çado”, pondera o autor. Assim, a maior parte dostextos de Cortázar se estrutura como um jogo –em “Casa tomada”, explicitamente, como um jogoentre vigília e sonho ou consciente e inconscien-te. De fato, algumas tentativas de interpretaçãodo conto preferem tomar esse caminho de enten-dimento, ressaltando as imagens do conto comoelementos análogos à produção do trabalhoonírico – imagens que se organizam por conden-sação e deslocamento. Aqui, opta-se pela aten-ção e fidelidade ao que está marcado no texto:os parênteses (comentário ou texto alheio, ou

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ainda uma nota emocional que se insere ao tex-to) (CINTRA, 2011, p. 681). Os parênteses distin-guem o relato de uma consciência onírica (partealheia), que é inquietante (estranha) para a cons-ciência do narrador e para a própria narrativa,além de análoga aos ruídos que engendram aclausura numa parte menor da casa. Diz Jung:o sonho é uma parcela da atividade psíquica in-voluntária que possui, precisamente, suficienteconsciência para ser reproduzida no estado de vi-gília. De modo geral, o sonho é um produto es-tranho e desconcertante, que se “caracteriza porfalta de lógica, uma moral duvidosa, formas des-graciosas, contrassensos ou absurdos manifes-tos. Por isso, podem ser rejeitados como estúpi-dos” (JUNG, 2000, par. 532). Como uma formaestranha à organização unilateral da consciência,o sonho teria uma função compensatória, com aexpressão de enredos “trançados” nos comple-xos autônomos inconscientes. Enredo, aliás, pa-rece um termo adequado aos cotejamentos dossonhos com as narrativas literárias, pois, segun-do Jung, poderíamos compreendê-los em quatroetapas: a exposição (lugar e personagens daação); o desenvolvimento da trama; a culminação,o ponto decisivo da peripécia; e a lise ou soluçãodo trabalho de sonho (par. 561-564).

Porém, é exatamente em relação a esse tra-balho que os personagens (Irene e eu) parecemimprimir uma força oposta, recusando qualquercontato com o desconhecido, repetindo açõescompulsivamente e evitando o silêncio: “[...] pas-samos a falar em voz mais alta ou então Irenecantava canções de ninar... Pouquíssimas vezespermitimos que houvesse silêncio... Acho que erapor isso que de noite, quando Irene começava asonhar em voz alta, eu logo perdia o sono”. Sabe--se que os sonhos personificam componentesda esfera complexa, em formações analógicas eespontâneas. Mas tal situação determina medoe recusa ao narrador e a Irene, que parecem iso-lar-se por não dispor de possibilidades para ela-borar seus sonhos e o mundo das trevas. Tal qualos ruídos na casa, os sonhos de Irene faziamruído na consciência do narrador, que não se

dispunha a sonhar. Cito Hillman (2013, p. 62):“A historinha para dormir básica de nossa cultu-ra é que dormir é sonhar, e sonhar é entrar nacasa do Senhor dos Mortos, onde nos esperamnossos complexos. Não entramos suavementenessa boa noite”.

No texto Os sonhos e o mundo das trevas,James Hillman (2013) lembra que se, para Freud,os sonhos eram a expressão, a serviço do dese-jo, de conteúdos psíquicos submetidos à forçada repressão, e se, para Jung, tinham uma fun-ção compensatória, para ele os sonhos estãorelacionados à alma e a alma, à morte. Ao procu-rar a fundamentação arquetípica para os sonhos,encontra que Hipnos é filho da noite, assim comoTânatos (a morte) e Letes (o esquecimento). Nes-sa linha argumentativa, Hillman associa os so-nhos a uma experiência que tem seu correlatomítico ligado ao deus grego Hades, associadoàs semânticas das profundezas e do invisível.Como usa o capacete da invisibilidade, Hadesaglutina categorias de profundidade e interio-ridade que são postas e sentidas, ainda que nãovistas. Porém, Hillman toma o cuidado de alertaro leitor do seu ensaio de que, se ele busca pelossentidos revelatórios das experiências, o maisescondido no que está aparentemente revelado,tal desvelamento não consiste numa compreen-são literal da morte, mas metafórica, ou seja, oque será que a alma quer quando se expressa nainterioridade de um sonho, sintoma ou devaneio?

Tal trabalho é impossível aos personagens paraquem os ruídos dos desvãos da alma suscitampavor. Tal é o tom do sexto e último movimentodo conto, quando os sons se intensificam e seaproximam deles, tomando a parte diminuta dacasa por eles habitada. “Apertei o braço de Irenee puxei-a sem olhar para trás”, diz o narrador, oque faz Irene soltar o fio do tricô sem olhar. Omovimento brusco fomenta a interrupção do flu-xo narrativo (do texto, do tecido) da memória, dasexperiências e das fantasias constitutivas da par-te insondável da casa: da anima. No texto Anima– anatomia de uma noção personificada, Hillman(1995), contrastando passagens da obra de Jung

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com comentários próprios, esforça-se em dimen-sionar a anima como a interioridade, a dimensãoarquetípica que abre o caminho para o incons-ciente coletivo. Sobre essa acepção, fundamen-ta Jung: “Com a anima, então, mergulhamos nomundo arcaico”. E ainda Jung: “a anima vive nosubstrato filogenético que chamei inconscientecoletivo... [Ela traz] para nossa consciência efême-ra uma vida psíquica desconhecida que pertenceao passado remoto. É a mente dos nossos ances-trais desconhecidos...” (JUNG, 2001, par. 518).

Contudo, é justamente do imponderável, daimersão no mundo ancestral da memória e da fan-tasia que “Irene e eu” não podem ser tomados.Estrangeiros em sua própria casa, posto que elesse recusam ao deleite da atividade barulhenta dareflexão, faculdade precípua da anima, decidemabandoná-la: a casa agora é “casa tomada”, inva-dida pelos conteúdos da psique coletiva. Transi-tam, dessa maneira, do outrora privado (cujaschaves são lançadas num bueiro) para o espaçopúblico (a rua), espaço aberto indefinido queenclausura suas agora restritivas anomias.

Em Introdução à literatura fantástica, o críticoTzvetan Todorov enfatiza que

o fantástico se caracteriza por uma introdução

brutal do mistério na vida real... A narrativa fan-

tástica apresenta, no mundo real em que nos

achamos, homens como nós, colocados subita-

mente em presença do inexplicável. (TODOROV,

1975, p. 32).

Cortázar adere a tal posição, ao afirmar que seuscontos pertencem ao gênero fantástico, pois obje-tiva uma oposição ao falso realismo de um mundoregido por um sistema de leis, de princípios decausa e efeito, de psicologias definidas, de geo-grafias bem cartografadas. Essa oposição promo-ve, inquestionavelmente, um efeito de estranhe-za nos leitores, que vivenciam a leitura do contotal qual a consciência se comporta quando toma-da pela emergência do novo, condição indiscri-minada inextricável às imagens que mobilizam afunção transcendente. Como mediador entre a

consciência e o inconsciente, ou entre o oculto e orevelado, o novo (a imagem-símbolo) é apresenta-do ao eu consciente, que tece os fios de uma nar-rativa e a contrasta com os registros da memória,urdindo sentidos para as imagens qualificadascomo “novas”. Portanto, quando o leitor entra emcontato com os elementos condensados nos con-tos cortazianos (que são como uma fotografia, as-sim como os romances estão para o cinema), podeconectá-los ao seu repertório pessoal – talvez umadas maiores funções do texto literário.

Em “Casa tomada”, nós, leitores, ficamosdiante de um par irmanado e incestuoso que sedefende da (ou se recusa à) emergência do in-consciente coletivo. Como a instância egoica édefensivamente coagulada, a anima torna-seameaçadora porque condutora para o desconhe-cido. O puer (o novo) é vigorosamente rechaçadoe reprimido (vide a força e espessura da porta decarvalho), pois denunciaria a condição falaciosade controle sobre o imponderável, os devaneios,as fantasias e os sonhos. O conto aponta, assim,o destino da dissociação com a história e as fanta-sias (conscientes ou não), ou seja, uma fenome-nologia do medo e do desencanto. Freud (1969,p. 261) lembra que uma das formas de efetivaçãodo efeito de estranheza se dá quando se extin-gue a distinção entre imaginação e realidade, con-dição de enclausuramento do eu que faz com queos personagens abdiquem de si mesmos. Jungabre caminho a um entendimento do incons-ciente coletivo como memória, substrato coleti-vo da psique. Hillman atenta a essa noção deinconsciente como mundo imaginal e postula oconceito de ego imaginal: um eu menos estru-turado como vontade e razão e “menos estranhoà sua alteridade fantástica”, ou seja, análogo aoeu onírico e poroso à realidade imaginal, ou seja,à memória. E é justamente esse eu imaginal – pro-posição hillmaniana que traz na sua semântica apossibilidade de fabular (direito humano reivindi-cado por Antonio Candido) – que é recusado por“Irene e eu”.

Recebido em: 6/3/2017 Revisão: 29/5/2017

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Palabras clave: “Casa tomada”, literatura, anima, inconsciente colectivo.

A partir del cuento “Casa tomada”, de JulioCortázar, el presente artículo hace amplificacio-nes y correlaciones con los conceptos de ánima

“Casa tomada” – una lectura del cuento de Julio Cortázar

Resumen

e inconsciente colectivo, además de sugerirpuentes para una interlocución entre psicologíaanalítica y literatura.

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This article amplifies the short story “Casatomada”, written by Julio Cortázar, correlates itwith the concepts of anima and collective uncon-

Abstract

“Casa tomada” – a short story by Julio Cortázar

Keywords: “Casa tomada”, literature, anima, collective unconscious.

scious and suggests bridges between the fieldsof analytical psychology and literature.

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Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1o sem.2017 79

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Sylvia Mello Silva Baptista*

ResumoEsta resenha é um convite a

entrar no mundo da calatonia,uma técnica de integraçãopsicofísica, pelas mãos delica-das de Rosa Farah, psicóloga eprofessora que dedicou anosde sua vida à prática e ensino.Trata-se de uma adaptação doseu próprio livro Integração psi-cofísica – o trabalho corporal ea psicologia de C. G. Jung, pu-blicado em 2008, agora em for-mato mais sintético em portu-guês e em inglês. Sua versãoem inglês tornará possível queos conhecimentos do professorPethö Sándor cheguem a alu-nos da Europa e dos EstadosUnidos.

Palavras-chave: calatonia, toquesutil, corpo, Jung, Pethö Sándor.

Muitas das nossas experiên-cias, se não todas, dependemde por que porta entramos, oupor que mãos somos conduzi-dos. É assim desde as mais ten-ras idades, não é mesmo? Este

convite – toda resenha nadamais é que um convite ao leitor– começa alertando para quese levem em conta as mãos.Elas estão na capa – no clássicogesto da criação imortalizadopor Michelangelo –, elas estãono assunto – a calatonia, mé-todo, e por que não dizer atitu-de, de integração psicofísicacriado pelo professor PethöSándor (1916-1992) –, e estãotambém na autora, ou no seucuidado ao nos fazer adentraresse universo.

Calatonia – o toque sutil napsicoterapia trata-se de umaadaptação do livro Integraçãopsicofísica – o trabalho corpo-ral e a psicologia de C. G. Jung,publicado em 2008 pela mes-ma autora, agora em formatomais sintético em português eem inglês. Sua versão em inglêstornará possível que os conhe-cimentos do professor Sándorcheguem a alunos da Europa edos Estados Unidos. Esse fatoé de grande importância para osseus seguidores, uma legião depsicólogos e profissionais dasaúde, que sempre trabalharame ainda trabalham incansavel-mente para deixar vivo o legado

desse professor húngaro de co-ração brasileiro.

Como vemos, com o perdãodo trocadilho, temos em mãosuma pequena joia. A delicade-za que Sándor pede ao toquerealizado na prática da calato-nia, como se segurássemos umabolha de sabão, está presentetambém na tessitura do textoque apresenta o método em to-dos os seus detalhes.

Rosa inicia nos contando ahistória de Pethö Sándor, e nosdá a conhecer as dificuldades eperdas que esse corajoso ho-mem enfrentou ao longo de suavida até chegar ao Brasil e en-contrar aqui ressonância parasua prática. Todo o seu esforço,ao longo de anos como psico-terapeuta e professor, apontoupara a “consideração da corpo-ralidade de forma efetivamenteintegrada ao trabalho psicote-rápico”. O livro passa por umaenormidade de questões queum leitor leigo – ou um psicote-rapeuta sem conhecimento doque seja a calatonia, mesmo quepraticante da psicologia, jun-guiana ou não – possa formu-lar, em suas minúcias. Assim,apresenta o método, sua origem,

Resenha

* Psicóloga, membro analista da SBPA/IAAP, mestre em psicologia clínica (PUC-SP), professora, supervisora clínica e coordenadora doNúcleo de Mitologia e Psicologia Analítica (MiPA) na SBPA e do Núcleo de Mitologia no Areté – Centro de Estudos Helênicos. Autora deO arquétipo do caminho (Casa do Psicólogo), entre outros.Email: <[email protected]>.

Calatonia – o toque sutil na psicoterapiaFARAH, Rosa Maria. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2016.

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AbstractThis review is an invitation to

enter the world of calatonia, atechnique of psychophysicalintegration, by the delicatehands of Rosa Farah, a psycholo-gist and teacher who dedicatedyears of her life to its practiceand teaching. It is an adaptationof her own book Integraçãopsicofísica – o trabalho corpo-ral e a psicologia de C. G. Jung(Psychophysical integration –bodywork and psychology ofC. G. Jung would be the title inEnglish) published in 2008, nowin a more synthetic format inPortuguese and English. Its En-glish version will enable profes-sor Sándor’s knowledge toreach students in Europe and inThe United States.

Keywords: calatonia, subtle touch,body, Jung, Pethö Sándor.

Calatonia: the subtletouch in psychotherapy

os toques, o cuidado com o es-paço, as observações imprescin-díveis, os fundamentos fisio-lógicos e orgânicos, aspectosfuncionais, os conceitos sobreimagem corporal e identidade, ecomo tudo isso se coaduna coma teoria de Jung, até finalizar com“toques” para quem toca, dicasao terapeuta iniciante nessaabordagem.

Como uma educadora zelo-sa que descortina uma novaperspectiva em um já conheci-do panorama, Rosa Farah pegapela mão o leitor e o guia a umalei fundamental: o cultivo de umaatitude na qual é preciso “aten-ção, cuidado, presença e respei-to frente ao corpo do outro”; eressalta: isso vale também parao terapeuta.

Rosa, além de cuidadora eescritora, foi, acima de tudo,uma professora. Sou uma entu-siasta a chamar atenção paraa importância do professor navida do indivíduo. Ele espalhasementes, enxerga carências efertilidades no solo em que plan-ta, ele aponta limites, incentivae acolhe, critica dificuldades eenaltece talentos, muitas vezestornando-se peça decisiva emescolhas significativas que fare-mos para nossas vidas. Muitassementes foram plantadas poressa mulher. Era só olhar para o

ResumenEsta reseña es una invitación

a entrar en el mundo de cala-tonia, una técnica de integraciónpsicofísica, por medido de lasdelicadas manos de Rosa Farah,una psicóloga y profesora queha dedicado años de su vida asu práctica y enseñanza. Se tratade una adaptación de su propiolibro “Integração Psicofísica – otrabalho corporal e a Psicologiade C. G. Jung”, publicado en2008, ahora más sintético, enportugués y en inglés. Su ver-sión en inglés hará posible quelos conocimientos del maestroPethö Sándor lleguen a los es-tudiantes de Europa y de losEstados Unidos.

Palabras clave: calatonia, toquesutil, cuerpo, Jung, Pethö Sándor.

Calatonia: el toquesutil en la psicoterapia

dia do lançamento desse livro.O afeto, podia-se tocá-lo no ar.

Para os que desejem ler, oureler, sobre esse método tãopoderoso quanto misterioso, fa-zê-lo pelas mãos de Rosa Farahé entregar-se ao delicado e pro-fundo. Receba!

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Analítica, editada pela primeira vez no ano de 1983, destina-se à divulgação detrabalhos inéditos, que contribuam para o conhecimento e o desenvolvimentoda psicologia analítica e ciências afins, em um espírito aberto ao debate científico,cultural, social e político contemporâneo. Com periodicidade semestral, a revistaaceita artigos originais, de revisão, casos clínicos, comunicação breve, entrevistae resenha.

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chology, published for the first time in 1983 and directed towards the dissemina-tion of unpublished works that contribute to the knowledge and developmentof analytical psychology and related sciences, with an openness towards scien-tific, cultural, social and contemporary political debate. Twice a year, the journalaccepts original and review articles, clinical cases, brief announcements, reviewsand interviews.

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