simmel, georg - sociologia (organização evaristo de moraes filho)

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SIMMEL Gr>nrg Stmml"l ('RiiR 1Q'R} :onstru iu. desde o ioic o de s:ua vida intelectual, ainda na última déeada d.;J século passado, um tenome intermdonaL Os seus primeiros ensaios foram tradtllidos o :>Uillicados dirowmnnte nos melhores pe iódicos franceses e americanos c.le c fil u ;;utiu.lu llttth• u>.u · hcrante do " lO.ro peru.eme,to elemilo, com o nookanlísmo à frente, no qunl ponttftcaram Dil - tht!y , Wint1elband, Tonnies e. Wcber. de <lUOrn foi amigo pessool o a quon in flucncicu . De brilhe intelectual, pcrcor rou pa:icamante os carnpos das Ciênc as Sactats, sendo cons dmado um dos fundadores dél SoctJ1ogut deste iét.:ulo, com grance divulga- çaJ e aceirnçno nes atuots corn:mtes sccioiOgtcas 11ur it..:. nus. Pu tt,xtus dustu vultmw -se d!!: suo c;ontribuiçiio, pr incipal - menta no quo diz ror.poito à arfllklo rf 3 c dos; processei soc.·l ais em geral , com para o pmcosso soe ai do conflito. GRANDES CIEN1 liSTAS SOCIAIS Textos bâsicos de Ciérlcias Soóais., seltJ:IOnados. wm a super,oísão geral do Pro I. Aorestan f t!n seis tlsapl nas fundame11tais da déncia sccial - Sociologia, His1ô : ia , Economia, Psico ltgia , Fol íliça e · d \.utt:'\Cdu mo temos e iim:os de mai11r mundwl, toe: ai iRdes ilrc1vés de e áf ta, por da bra!Jei•a. A essa introdução wUca segue·se uma co l dâ111-ea dos. t extos mais 1epresentativos de cada 4 Orgamndor: E \l aristo de Moraes Filho C oorde nador: Fforestan Fernandes SOCIOLOGIA :'\.( ll•m, S5Q:!H OI) J\itlt•r \i nunt-1, (i .. I Cll l tlnln l .-Mg, -.irmtd • llll1 lllllllllllll llllff 1111'14,1; . ,... '

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Page 1: SIMMEL, Georg - Sociologia (organização Evaristo de Moraes Filho)

SIMMEL Gr>nrg Stmml"l ('RiiR 1Q'R} :onstru iu. desde o ioic o de s:ua vida intelectual, ainda

na última déeada d.;J século passado, um tenome intermdonaL Os seus primeiros ensaios foram tradtllidos o :>Uillicados dirowmnnte nos melhores pe•iódicos franceses e americanos c.le Su~tuiUJid c fil •:~;ofut. Viv~u u ;;utiu.lu llttth• u>.u· hcrante do "lO.ro peru.eme,to elemilo, com o nookanlísmo à frente, no qunl ponttftcaram Dil ­tht!y, W int1elband, ~ider.. Tonnies Tro~ltsct· e. Wcber. de <lUOrn foi amigo pessool o a quon in flucncicu. De ~randc brilhe intelectual, pcrcor rou pa:icamante lodo~ os carnpos das Ciênc as Sactats, sendo cons dmado um dos fundadores dél SoctJ1ogut deste iét.:ulo, com grance divulga­çaJ e aceirnçno nes atuots corn:mtes sccioiOgtcas ~~ 11ur it..:. nus. Pu u~ tt,xtus dustu vultmw t:•ltl~liild ·

-se ~ -...alidt~::fe d!!: suo c;ontribuiçiio, p rincipal ­menta no quo diz ror.poito à arfllklo rf3 ir,tor~u;ao c dos; processei soc.·lais em geral, com úestaq~te para o pmcosso soe ai do conflito.

GRANDES CIEN1liSTAS SOCIAIS

Textos bâsicos de Ciérlcias Soóais., seltJ:IOnados. wm a super,oísão geral do Pro I. Aorestan f t!n 2n~. ~brangen~o seis tlsapl nas fundame11tais da déncia sccial -Sociologia, His1ô:ia, Economia, Psicoltgia, Folíliça e Anlr~u loga · d \.utt:'\Cdu ifl,lre~Jia u~ ~utun:s mo temos e 1..onlem~n iim:os de mai11r d~tétque mundwl, toe: ai iRdes ilrc1vés de inhod~~diJ uili~;a1 e biobibti~ áf ta, as~inada por ~pedal~t~ da uni~enidMit bra!Jei•a. A essa introdução wUca segue·se uma coldâ111-ea dos. textos mais 1epresentativos de cada a:.~tor .

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Orgamndor: E\laristo de Moraes Filho Coordenador: Fforestan Fernandes

SOCIOLOGIA

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Page 2: SIMMEL, Georg - Sociologia (organização Evaristo de Moraes Filho)

GRANDES CIENTISTAS SOCIAIS

Coleção coordenada por Florestan Fernandes

1. OURKHEIM José Albertina Rodrigues 2. FEBVRE

Carlos Guilherme Mata 3. RADCLIFFE-BROWN

Julio Cezar Melatti 4. W. KõHLER

Arno Engelmann 5. LENIN

Florestan Fernandes . 6. KEYNES

Tamás Szmrecsányi 7. COMTE

Evaristo de Moraes Filho 8. L von RANKE

Sérgio B. de Holanda 9. VARNHAGEN

Nilo Odália 10. MARX (Sociologia)

Octavio lanni 11. MAUSS

Roberto C. de Oliveira 12. PAVLOV

Isaías Pessotti 13. MAX WEBER

Gabriel Cohn 14. DELLA VOLPE

Wilcon J. Pereira 15. HASERMAS

Barbara Freitag e Sérgio Paulo Rouanet

16. KALECKI Jorge Miglioli

17. ENGELS José Paulo Netto

18. OSKAR LANGE Lenina Pomeranz-

19. CHE GUEVARA Eder Sader

20. LUKACS José Paulo Netto

21. GODELIER Edgard de Assis Carvalho 22. TROTSKI

Orlando Miranda 23. JOAQUIM NABUCO Paula- B&igue-lman-----

-· livraria técnica

livros Escolares e Universitários

: , ..

CLS 102 - Bloco A - Loja 17 e 27 fones: 224-1658 - 225-8906 e 226~ 771:. L

Brastlla - D.F. t ---------~ -

Page 3: SIMMEL, Georg - Sociologia (organização Evaristo de Moraes Filho)

S6llg

82-1721

TEXTO Consultoria geral

Florestan Fernandes Coordenação editorial

M. Carolina de A. Boschi Tradução

Evaristo de Moraes Filho, Carlos Alberto Pavanelli, Otto E. W. Maas,

Dinah de Abreu Azevedo · Copidesque

Danilo A Q. Morales

ARTE Coordenação

Antônio do Amaral Rocha Layout de capa Elifas Andreato

Arte-final René Etiene Ardanuy

Produção gráfica Elaine Regina de Oliveira

Foto da capa: Roberto Faustino/F4

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP

Simmel, Georg, 1858-1918. · Georg Simmel : sociologia f organizador [da coletânea] Evaristo

de Moraes Filho ; [tradução de Carlos Alberto Pavanelli ... et ai.]. - São Paulo : Ãtica, 1983. ·

(Grandes .cientistas sociais ; 34)

Inclui introdução sobre Georg Simmel por Evaristo de Moraes Filho.

Bibliografia.

1. Simmel, Georg, 1858-1918 2. Sociologia I. Morais Filho, Evaristo de, 1914- li. Título.

índices para catálogo sistemático:

1 . Sociologia 30 I

1983

CDD-301

Todos os direitos reservados pela Editora Ática S.A. R. Barão de lguape, IIO - Te/.: PABX 278-9322

C. Postal 8656 - End. Telegráfico "Bomlivro" - S. Paulo

i ----L

!

SUMÁRIO

INTRODUÇAO Formalismo sociológico e a teoria do conflito (por Evaristo de Moraes Filho).

I. GERAL - PROBLEMAS METODOLóGICOS FUNDAMENTAIS

H.

1. Como as formas sociais se mantêm,

2. O problema da Sociologia,

3. O campo da Sociologia,

4. A concepção vitalista e mecanicista da compreensão,

ESPECIAL - INDIVIDUALIDADE, INTERAÇAO, TIPO SOCIAL

5. A determinação quantitativa dos grupos sociais,

6. Superordenação e subordinação - Introdução,

7. O efeito da subordinação sob o princípio das relações entre superiores e su,bordinados,

8. A natureza sociológica do conflito,

9. A competição,

10. Conflito e estrutura de grupo,

11. Sociabilidade - Um exemplo de sociologia pura ou formal,

12. O estrangeiro,

fNDICE ANALíTICO E ONOMASTICO,

7

46

59 79

87

90

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115

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Textos para esta edição extraídos de:

SIMMEL, G. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaf-tung. 5. ed., Berlim, lluncker & Humblot, 1968. -. Grundfragen der

:Soziologie. 3. ed. Berlim, Walter de Gruyter, 1970. -. Vom Wesen des historischen Verstehens. Berlim, Ernst Siegfried Mittler & Sohn, 1918. -. Conflict & The web of group-affiliations. Nova York-Londres, The Free Press e Collier Macmillan Publishers, 1964.

WoLFF, Kurt H., org. The sociology of Georg Simmel. Nova York-Londres, TIÍ.e Free Press e Collier Macmillan Publishers, 1966.

L'Année Sociologique.' Direção de Émile Durkheim. Paris, v. I, i898.

INTRODUCAO

Evaristo de Moraes Filho Licenciado em Filosofia

Livre-Docente de Sociologia e Catedrático de Direito do Trabalho

da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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FORMALISMO SOCIOLóGICO E A TEORIA DO CONFLITO

1. Vida e época. Georg Simmel nasceu em Berlim; a 1.0 de março de 1858, no seio de uma família judia. Seu avô, Isaàk Simmel, natural de Dyhernfurth, era um comerciante bem-sucedido. Deslocou-se para Breslau, onde por volta de 1840 recebeu o título de cidadão dessa cidade. Seu filho, Edward, pai de Georg Simmel, nasceu em Breslau em 181 O, vindo a dedicar-se também ao comércio, sob a firma "Felix und Barotti", como fabricante de chocolate. Casou-se muito jovem, em 1838, com Flora Bodstein, da mesma cidade, também de família judia. Simmel foi o mais jovem, o último, de sete irmãos, um menino e; cinco meninas. Falecendo-lhe o pai em 1874, um. amigo da família, dedicado a negócios de edições musicais, Julius Friedlãnder, foi nomeado seu tu!or. Muito representou este tutor na formação espiritual de Simmel e no seu amor peJas coisas das artes e da música. Com sua morte, herdou Simmel uma herança considerável, que lhe permitiu entregar-se à carreira acadêmica, sem· qualquer dependência econômica a alguém ou a uma instituição. A sua dissertação doutoral (1881) é oferecida a esse bom tutor, "com gratidão e amor". ·

Seus pais. eram convertidos ao protestantismo, e nessa religião foi Simmel batizado, sem que chegasse em qualquer época a dedicar-se a alguma prática judaica. Quando de sua inscrição à dissertação doutoral, deixara escrito no seu currículo em latim: "Fidem profiteor evangelicum". Ingressara Simmel na Univer~idade de Berlim,. com dezoito anos de idade, matriculou-'se a princípio nos cursos de história, passando pouco depois

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para os de filosofia, a despeito de haver sido aluno do grande Theodor Mommsen, que muito o impressionara. Foram seus professores univer­sitários, nas duas carreiras: Theodor Mommsen, Johann Droysen, Heinrich von Sybel e Heinrich von Treitschke, em história; Moritz Lazarus, Hajim Steinthal e Adolf Bastian, em psicologia e etnologia; Friedrich Harms e Edward Zeller, em filosofia; Herinan Grimm, em história da arte. Recebeu o título de doutor em filosofia, no ano de 1881, com uma dissertação sobre A natureza da matéria segundo a monadologia física de Kant, de 34 páginas. Coino contribuição "minor", coube-lhe escrever sobre Petrarca.

1 . 1 . Permanecendo em Berlim depois de diplomado, foi designado quatro anos mais tarde, em 1885, Privatdozent na universidade, função que ocupou até 1900, por longos quinze anos. Livre-docente, ou confe­rencista, nada recebia Simmel diretamente dos cofres da instituição. Seus ganhos, parcos e aleatórios, limitavam-se à contribuição das taxas dos alunos inscritos em seus cursos. Promovido a Ausserordentlicher Professor (professor extraordinário), já aos 42 anos de idade, em nada se· alterou a sua situação de marginalidade nos quadros permanentes da universidade. Como o anterior, esse novo cargo era também de natureza puramente honorífica, sem qualquer segurança administrativa nem financeira. Exer­ceu~o Simmel por mais catorze longos anos. No ano em que começava a guerra, foi ele convidado, finalmente, para titular da cátedra, em tempo integral, na Universidade de Estrasburgo, cargo que desempenhou até a sua morte, de câncer de fígado, a 28 de setembro de 1918.

Casara-se Simmel em 1890 éom Gertrud Kinel, moça de cultura, diplomada pela universidade e filha de pais católicos, que não lhe deu filhos.

1 . 2. Tema obrigatório de todos os biógrafos de Simmel é o que diz respeito . à sua marginalidade ou à sua inexpressividade oficial diante da vida universitária alemã, notadamente perante a Universidade de Berlim, na qual se formou e na ·qual se iniciou como professor. Antes, porém, de discutirmos as possíveis causas, é indispensável compor o quadro político, social e cultural dos fins dos oitocentos e as duas pri­meiras décadas dos novecentos, século atual. Os anos da virada do século foram de grande criatividade espiritual na Europa Central. Basta recordar, como o faz Donald Levine, que foi a época que assistiu nascer a psicanálise, a teoria da relatividade, o positivismo lógiCo, a fenome­logia,. a música atonal e muitas outras manifestações literárias e filosóficas.

Em Berlim levava-se uma vida de grande estilo cultural e de muita agitação espiritual e artística. Paul Honigsheim detém-se nessa heteroge-

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neidade de grupos, instituições e movimentos culturais da época. Desta­cavam-se: A velha Prússia, representada pelos proprietários feudais, dominava o exército, a alta administração e a igreja protestante oficial, conservadora e com concessões ao anti-semitismo. Artesãos e lojistas conservadores, protestantes, que aspiravam a uma sociedade pré-capitalista, organizada em corporações. Manifestavam-se contra o capitalismo, a economia monetária e os judeus, como represen­tantes máximós dessa economia. Os novos industrialistas e comerciantes, que procuravam imitar os senho­res feudais, encatninhando seus filhos para a cavalaria e fazendo-os mem­bros de organizações estudantis de duelo. Admiradores de Bismarck, eram favoráveis ao nacional-liberalismo. Os liberais de esquerda, com influência somente no plano municipal. Com simpatia para certas manifestações do protestantismo, inclinavam-se de modo geral para o naturalismo e o realismo, fazendo aliança, não raro, com os socialistas. Os socialistas reformistas, não marxistas, recrutados entre os líderes sin­dicais e de movimentos cooperativistas. Sua concepção do mundo se aproximava muito da anterior, dos liberais de esquerda. A Universidade de Berlim, na qual se concentravam as grandes cabeças da época, era elitista e dava status a quem a freqüentava. "Tornou-se, diz Honigsheim, uma posição da moda e muito distinta para os filhos dos bem-sucedidos homens de negócios." Em história, dividiam-se entre Ranke e Treitschke, voltados para a política externa e os grandes esta­distas e generais. Schmoller e.ca a figura dominante na economia, com grande ênfase também dada aos estudos estatísticos. Não se ensinava sociologia, sendo, pelo contrário, já antiga a tradição universitária do ensino da psicologia, a princípio matemática, logo depois experimental, com destaque para Wilhelm Wundt e Carl Stumpf. Em filosofia, ninguém superava Dilthey, na melhor tradição do idealismo alemão. A cultura não-oficial de Berlim, de concepção materialista e mecanicista, tinha em Virchow um representante bem significativo. Com os esquer­distas liberais e os sodalistas, via na ciência natural "a religião de nossa época" e difundia a literatura realista de Zola, Ibsen, Bjornson e Suder­mann. Incluía-se nesta cultura Julius Lippert, grande popularizador do darwinismo social. O protesto anti-racionalista contra a urbanização, o racionalismo e o materialismo, vindo desde o romantismo alemão, passando por Scho­penhauer e Nietzsche. As duas figuras mais representativas deste movi-

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menta foram Julius Langbehn, cognominado o "Reinbrandt alemão" e o poeta Stefan George.

Pois bem, Simmel. começou pela "cultura não-oficial de ''Berlim" e terminou nos movimentos anti-racionalistas, ·sendo amigo pessoal de Stefan George, a quem dedica um dos seus últimos livros. No início de ·sua carreira, Berlim e a sua unive:í-sidade eram grandemente anti-semitas, sofrendo Simmel por ser judeu, e assim discriminado. Por outro lado; não se identificava profundamente com nenhum dos grupos e movimentos então reinantes. Politicamente, não estava com a centralização imperial nem com o liberalismo capitalista, nem muito menos com o socialismo. Nos seus dois primeiros livros ( 1890 e 1892-3), sobre a diferenciação social e a moral, andava Simmel bem próximo dos pensadores liberais independentes, darwinistas e progressistas. Adotando um certo indivi­dualismo ético, negava o império absoluto da norma ética, cujo critério devia ser autonômico, anti-racionalista e subjetivo. A ética existe, à maneira nietzschiana e vitalista, para servir à vida, como manifestação da própria existência.

1 . 3 . De ascendência judaica, não considerava o protestantismo como possível alternativa; livre-pensador e crítico dos valores dominantes na sua época, não se enquadrava Simmel dentro dos rígidos padrões da vida nacional e universitária do seu tempo. É bem verdade que, no fim da vida, quando em Estrasburgo desenvolveu ;_ como em outra parte fazia Weber- uma intensa campanha belicista, a favor do esforço de guerra da Alemanha. Deu-se inteiro a estes propósitos, com confe­rências, discursos, ·artigos, ensaios de toda sorte, mais tarde reunidos em livro.

Escritor prolífico, entregue aos mais variados assuntos, faltava-lhe uma certa disciplina acadêmica. Tinha-se a impressão de um diletante, muito inteligente e culto, verdadeiramente enciclopédico, brilhante, mas ciscador dispersivo ~e vários terrenos. · Foi inegavelmente um grande conferencista, prendendo e· empolgando o seu auditório ·- como o de Bergson em Paris, - predominantemente feminino. Gassen e Landinann transcrevem, na íntegra, uma carta de Simmel a Max e Marianne Weber, na qual lamentava não terem éstes conseguido l,lma cátedra para ele em Heidelberg, mas os motivos não- lhe haviam 'caJsado nenhuma surpresa,

,.

"Em certos círculos, dizia ele, existe a impressão de que sou exelu­sivamente crítico, até mesmo um espírito destrutivo, e que minhas con­ferências levam uniCamente à negação. Talvez eu não precise lhe dizer que esta é uma inverdade abominável. Minhas conferências, como meu inteiro trabalho de muitos anos, tendem exclusivamente em direção positiva, parà a demonstração de uma mais profunda compreensão do

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mundo e do espírito, com uma total renúncia de polêmica e de crítica a respeito de teorias e condições divergentes. Quem compreende. minhas conferências e livros em geral, não pode compreendê-las de outra forma. No entanto, essa opinião exü;te há muito tempo. É meu destino. E estou convencido de que a 'disposição desfavorável' do Ministro se refere a alguma comunicação de Berlim".

Suas conferências abrangiam, praticamente, todos os aspectos da filosofia, desde a lógica e a teoria do conhecimento até à ética e à metafísica, passando por temas de estética. Psicologia e sociologia, filo­sofia da história e religião incluíam-se no seu universo de interesse universitário. Não devem ser esquecidas as suas grandes biografias, de Goethe, Schopenhauer, Nietzsche, Rembrandt e Kant. Emil Ludwig, que foi seu ouvinte, compara-o a um dentista no ·aprofundamento do assunto, até atingir .o próprio nervo da matéria em debate. George Santayana escrevia da Alemanha para William James, dizendo-lhe que tinha "desco­berto um Privatdozent, Dr. Simmel, cujas conferências me interessam muito". Entregue a esse seu mundo cultural, ao contrário de Weber e da maioria dos seus colegas de profissão, nunca se interessou Simmel pela política partidária, -nas suas manifestações concretas do dia-a-dia

. ' embora sempre se mantivesse atualizado com os acontecimentos polí~ ticos e sociais do seu tempo. · .

Como já dissemos, foi das mais ricas culturalmente a vida dos Impé­rios centrais na virada do século e no~ anos que antecederam à guerra de 14. Simmel privou da amizade desses grandes espíritos. Com Weber e Tonnies, fundou a ·Sociedade Alemã de Sociologia. As famílias Weber e Simmel mantinham. cordiais relações de amizade, com visitas recíprocas. Foi também amigo pessoal de Stefan George e Rainer Maria Rilke, correspondendo-se com Heinrich Rickert, Edmund Husserl e Adolf von Harnack, que muito se esforçaram, juntamente com Max Weber, por melhorar a . situação universitária de Simmel, sem sucesso. Correspón­deu-se também com o escultor Auguste Rodin. Virtuose da palavra e do espetáculo, dele diz Lewis Coser, ·seu grande admirador: "Simmel was somewhat of a showman" 1.

1 ~ara a vida e época de Simmel, a contribuição mais importante ainda é o livro editado por GASSEN e LANDMANN (Textos principais sobre G. Simmel:. 1958b), no qual nos socorremos do ensaio deste último "Bausteine zur Biographie" (11-33). Nele se encontra a carta de Simmel aos Weber (127-8). Para a questão da universidade, CosER (1971a) é exaustivo. E, de modo geral, para os temas tratados neste item 1, podem ser vistos: SPYKMAN (1925a); WoLFF (1950), HONIGSHEIM (1953), WOLFF (1959), MARTINDALE (1961), GIDDENS (1971) e STRASSER (1978). .

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2. Obra e idéias gerais. Ao contrário do que aconteceu a Dilthey e a Tonnies e, de certa maneira, também a Weber, Simmel teve a sua obra divulgada em línguas francesa e inglesa - notadamente nesta última - desde os seus primeiros escritos. Muitos dos seus artigos eram publicados ao mesmo tempo no original e em tradução, sendo que alguns deles apareceram antes em tradução americana, anunciando ser parte de livro em vias de publicação na sua língua pátria. Sem nunca haver viajado para a terra de Small, seu principal divulgador em língua inglesa - viagem levada a efeito por Sombart e Weber - era tão conhecido nos Estados Unidos e mesmo na França como um natural desses países.

Seu estilo e sua maneira de escrever muito o ajudaram nessa divul­gação. Praticamente, não há um só comentarista seu que não lhe elogie o talento e o brilho, qualidades pos-itivas, sem dúvida, mas traiçoeiras no trato das coisas da ciência. De formação filosófica e literária, alta­mente criativo, dotado de grande imaginação, era-lhe fácil deixar-se levar livremente pelos temas estudados sem pressa de concluir nem de resumir a matéria tratada. Versátil, prolífico, deixou mais de 200 artigos e cerca de 20 livros, alguns de grande fôlego. Como veremos adiante, imensa foi a sua influência no campo das idéias sociológicas, principal­mente nos Estados Unidos. Para se ter uma exata noção desse deslumbra­mento verbal e intelectual, basta uma meia página de adjetivos utilizados por seus expositores: "o homem mais sutil da Europa em 191 O" ( Ortega y Gasset); "engenhosidade crítica" (Bouglé); "idéias engenhosas", "vis­tas picantes", "aproximações curiosas" (Durkheim); "riqueza de dedu­ções psicológicas", "ensaios sugestivos", "brilhante moralista" (Bouglé); ensaios "engenhosos e finos" (Cuvillier); "brilhantíssimo" (Ayala); "bri­lhante" (Becker e Boskoff); "belo estilo sutil" (Salomon); "sutil" (Mannheim); "sinuoso e brilhante" (Aron); "personalíssimo" (Freyer);

·"genial'' (Caso); "vivo e acolhedor" (Bréhier); "agudo e surpreendente", "imaginação e espírito inovador", "fascinante imaginação", "fantasia e fascínio" (Martindale); "homem inteligente e bem dotado" (Lukács); "delícia no elegante espetáculo de idéias" (Coser); "análises sutis e penetrantes" (Banfi). Também Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni referem-stLa_sen_texto,_na_ _qual se encontra _"tº-d_a_:a beleza que é possível extrair da análise de sutilezas".

Ortega y Gasset, que foi seu aluno em Berlim nos primeiros anos do século e que elaboraria um perspectivismo existencialista muito pró­ximo do seu relativismo e da sua filosofia da vida, comparou-o de certa feita a um "esquilo filosófico", que "aceit;lVa o assunto que escolhia como uma plataforma para executar sobre ela seus maravilhosos exercí-

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13

cios de análise". Do seu livro sobre Nietzsche, achava-o escrito com "a agudeza que lhe é peculiar, mais sutil que profunda, mais engenhosa que genial" 2• Mas sempre, ao lado da restrição, nunca deixa de aparecer o elogio ao seu talento, à sua agudeza e à sua percuciência analítica. Simmel, com a multiplicidade dos sells escritos, como que representou, segundo lembra Heinz Maus, uma grande riqueza das mais diversas sugestões, que ainda hoje podem ser exploradas. Segundo Herman ·

' Schmalenbach, citado por Maus, a obra de Simmel

"interfere com todos os movim·entos da nossa total vida intelectual, de tal modo que uma mera filosofia técnica não pode alcançar. Em seu conteúdo, também, Simmel significa a verdadeira representação filosófica de nossa idade".

Mas, a despeito dessa observação, transcreve Maus essas duras palavras de Ernsr Bloch, que também era membro do círculo de Max Weber:

"Simmel tem a mais refinada inteligência entre todos os seus contem­porâneos. Mas, fora disso, é totalmente vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a verdade. Ele é um compilador de pontos de vista cem os quais rodeia a verdade, sem nunca pretender ou estar apto a possuí-la. Consome-se a si mesmo em muitos vivos e ocasionais fogos e na maioria das vezes fascinando com um sempre repetido aparato metodológico pirotécnico, com o qual rapidamente nos aborrecemos. Ele é coquete sem nunca mostrar suas verdadeiras cores, e é, ao todo, inteiramente sem vontade e incompetente para fazer repousar sua metodologia sensi­tiva - que sempre caminha em círculos - sobre uma objetividade compreensiva, amplamente contextmil".

O texto de Bloch é ainda mais extenso e severo. Limita-se Maus

a dizer que "talvez tudo isso seja verdade". Mas procura justificar

Simmel, pelo que ele representa, em sensibilidade e inteligência, para

as ·correntes culturais da Alemanha do seu tempo, em defesa da liber­

dade espiritual do indivíduo. E isso ele o fazia, como que com a ponta

do lápis, em rápidos e inquietos desenhos. Sabia ele - e o escreveu

em seu diário - que morreria sem deixar herdeiros espirituais, e com­

pleta: "Isto é bom". Ernst Troeltsch admitia como muito leve a sua

ascendência sobre os historiadores. "Sua influência,_ concluía, ficou como

2 Cf. ÜRTEGA y GASSET, J. Obras completas. Madri, Revista de Occidente, 1947. t. IV, p. 398; 1946, t. I, p. 92. Coser gosta muito dessa imagem de "esquilo filosófico", pulando de idéia em idéia como de noz em noz. Cf. CosER, 197la, p. 199; e, juntamente com NISBET, Robert. The idea of social structure. Papers in honor. of R. K. Morton. Org. por L. A. Coser, Nova York, Harcourt Brace Jovanovich, 1975. p. 5.

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uma influência sobre a atmosfera geral, fazendo-se sentir particularmente entre os jornalistas mais sofisticados." a

2. 1. Veremos, ao final, os exemplos mais flagrantes da influência simmeliana na sociologia contemporânea. Por outro lado, dada a sua maneira de escrever sem referência às possíveis fontes, seni citação de autores nem de livros, hem sempre é fácil apontar-se a filiação de suas próprias idéias. Como o denuncia a escolha do tema da sua dissertação doutoral ( 1881), imensa e permanente foi a influência de Kant sobre as suas idéias. Neokantiano, incluiu-se Simmel na corrente dominante no pensamento alemão a partir do último quarto do século passado. O dualismo forma e matéria nunca o abandonará e estará sempre presente em todos os seus escritos - de moral, de filosofia, de história, de estética. Por outro lado, no entanto, estava Simmel também profunda~

. mente mergulhado na atmosfera espiritual de Berlim e da sua univer­sidade. A Volkerpsychologie de seus mestres Lazarus, Steinthal e Bastian está bem presente, com o seu psicologismo, nas suas primeiras obras até 1900. Os exemplos etnológicos à Bastian um certo evolucionismo

,. ' darwinista, aí também se fazem sentir. Mesmo na Soziologie, de 1908, não deixa de aparecer um exemplo ilustrativo de índio brasileiro. Falando do jovem Simmel, esclarece Honigsheim:

. "Os grupos mais próximos dele eram os pensadores liberais inde­pendentes, os darwinistas e os progressistas, fora da universidade. Simmel abraçou suas opiniões, mas somente em certa extensão e por um curto período, como mostram duas das suas publicações mais antigas: o breve Uber soziale Differenzierung de 1890 e os dois volumes Einleitung in die Moralwissenschaft de 1892-93" 4 •

·Muitas das concepções simmelianas posteriores já aqui se encontram -sua base psicológica, o dualismo forma-matéria, a noção de interação e de sociação como processo social básico, inclusive, a filosofia da vida,

3 Cf. MAus, H. Simmel in german sociology. In: WOLFF, K. H., 1959b, p. · 194-6. A opinião de Ernst Bloch encontra-se em Geist der Utopie, München, Duncker & Hiimblot, 1918, p. 246-7. Não .achamos o texto na edição que possuímos de 1923, "revista e modificada". Nesta refere-se ele a Simmel, no qual "são somente pintadas as franjas coloridas, nervosas, da vida, as puras impressões"~·

MORA, J. Ferrater. (1941a) escreve em defesa de Simmel: "Em vez de ser ele acusado de que era pouco sistemático e acadêmico, reconheceu-se que era bastante original e amigo de caminhos pouco trilhados. O 'ensaio filosófico' de Simmel apareceu logo, em suma, não como um modo de fazer 'literatura' com a filosofia, e sim como um modo diverso de fazer filosofia". 4 HoNIGSHBIM, P. The time and thought of the young Simmel; A note on Simmel's anthropological interests. In: WoLFF, K. H. 1959b. ·

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sua fase final, já no ano de sua morte. Fazendo algumas restrições ao darwinismo biológico e social, já dava preferência ao vitalismo de Hans Driesch, em detrimento da psicologia quantitativista de Wundt e de Stumpf.

Para ele a ciência da moral, como capaz de pesquisas cientí­ficas e positivas, encontra-se em três outras ciências humanas: na psico­logia, na sociologia e na história. Pelos métodos da primeira, analisa os atos voluntários, os sentimentos e os juízos individuais, cujos conteúdos têm ou não um valor moral. Como parte da sociologia, distingue as for­mas e os conteúdos da vida em sociedade, que são unidos com o dever moral do indivíduo por uma relação de efeito a causa ou vice-versa. Finalmente, como parte da história, pelas duas vias indicadas, deve ela conduzir toda a representação moral, dada a sua forma original e todo o desenvolvimento desta representação às influências históricas que a determinam. Por isso mesmo, deve ser rejeitada desde logo qualquer tentativa de monismo ético, "pecado original de todas as teorias abstratas da moral". A idéia do dever, como absoluto, fica privada de qualquer fundamento lógico. É a história que se incumbe de dar conteúdo às formas vazias da lógica, e é o sentimento íntimo do indivíduo que lhe permite · distinguir o real do ideal. A ontologia não pode explicar o processo histórico, este é que pode explicar aquela. A personalidade do indivíduo encontra-se entrecruzada por numerosos círculos sociais, que lhe condicionam a consciência moral. Por isso mesmo a realidade escapa às abstrações, como meros ideais, da ética formal. O pior inimigo da ciência da moral é a própria moral. Para Simmel - e aqui já aparecem as primeiras afirmações de seu relativismo filosófico, - "todos os valo­res morais, atuais ou passados, são, aos olhos da história, igualmente relativos, isto é, cada um deles é, em certo sentido, um absoluto" 5•

2 . 2 . Em 1892 viria à luz Problemas da filosofia da história, em que essas mesmas idéias são sustentadas. Dentro da linha de Dilthey, Windelband e Rickert, não admite Simmel ·a história como ciência natu­ral, causal. O objeto do conhecimento histórico é o fato histórico, mas este, diferentemente do fato da ciência natural, encontra-se no passado,

5 Breve súmula das principais idéias dos ensaios de Simmel, de 1890 e 1892-3. Neste último - v. 11, 1893, _.:.__ já às voltas, como sempre, com os conceitos básicos de forma e conteúdo, não deixa de escrever, p. 309: "A categoria de conteúdo e forma é uma das mais relativas e subjetivas em todo o· campo do pensamento. O que, de . um ponto de vista, é forma, de outro, é conteúdo, ·e a oposição conceitual entre ambos se apaga, muitas vezes, ao ver-se mais de perto, em distinção apenas gradual entre a determinação geral e especial".

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e não pode ser diretamente observado. Esse fato terá de ser reconstituído pelo historiador, diante dos documentos e de outros elementos auxiliares. Como espírito e dotado de personalidade humana - e o objeto da história são também as obras humanas, - constrói o historiador em sua

·mente a imagem do passado, que lhe é subjetiva, e, para ele, verdadeira. Os dados da história, como realidade empírica, pertencem à experiência histórica do indivíduo. Para Simmel, assim, "a psicologia é o a priori da ciência histórica". Não há propriamente leis históricas, que supõem a ação de fatores objetivos constantes. Diversas são as interpretações da realidade histórica, sem que qualquer delas possa ser chamada de falsa, pois muita coisa ainda permanece no domínio da fé. A fim de que a seleção dos fatos históricos não se torne arbitrária e meramente subjetiva, joga Simmel com a noção do "umbral da consciência histó­rica". Isto é, só merecem o nome de fatos, significativos, aqueles que penetram esse umbral, por numerosa série de conseqüências, e pela re­percussão social dentro da própria continuidade histórica. O aconteci­mento isolado, como registra Aron, sem efeito aparente, fica aquém do

umbral da consciência histórica. O Único critério para apreender a reali­dade histórica e o seu sentido é a compreensão de sua totalidade 6 •

Criticando o materialismo histórico, nega-lhe Simmel este caráter,

reduzindo-o, quase ingenuamente, a motivos de índole psicológica:

"O que o materialismo histórico parece oferecer antes de tudo é uma explicação psicológica dos acontecimentos históricos segundo um só _e mesmo princípio. E se Marx afirma expressamente que a fome em si não constitui a história, isso não impede que as condições de produção e de troca não possam bastar para fazê-lo, se a fome, pelo fato que faz sofrer, . não se encontrasse lá como força de impulsão. Eis por que a designação de materialismo presta-se a erros. . . Materialismo poderia significar somente dependência da história, em última instância, de energias que nada têm de psíquicas. Mas isso precisamente está em contradição com o próprio conteúdo da doutrina que dá à história motivos eminentemente psicológicos" 7.

6 SIMMEL, 1892. Sua exposição em ARON e MANDELBAUM (1938a e b) e em BAUER, W. lntroducción al estudio de la historia. Trad. de L. G. de yaldeavellano. Barcelona, Bosch, 1944, passim. · 7 Escreve na p. seguinte: "Mas,· reconhecendo que o valor do método considerado do ponto de vista da teoria do conhecimento é ilusório, não se diminui em nada o grande valor que ele tem ·na prática para as pesquisas históricas, revelando novas relações causais". Conclui: "Ele só possui o valor de uma hipótese psico­lógica, - o;que, aliás, longe de diminuir sua importância, não faz senão aumen­tá-la". Cf. SrMMEL, 1892, p. 111-6 et seqs.

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Ora, por essa argumentação - e Simmel se utiliza dela em numerosas outras oportunidades de sua obra -, tudo na vida, todas as ciências, naturais e humanas, se reduziriam à psicologia, porque tudo, afinal de contas, é produto da mente humana ...

2. 3. Pouco depois, em 1895, publicou Simmel u~ ensaio- "Über eine Beziehung der Selektiontheorie zur Erkenntnistheorie" -, no qual negava a possibilidade da verdade absoluta. Pelo contrário, a verdade só é válida pelo que dela resultar de útil e prático, de eficaz para a espécie humana, isto é, as representações verdadeiras nascem pela sele­ção. Esta concepção pragmatista, que admite como verdadeiro aquilo que "sustenta e guia a ação humana no sentido da conservação e do fomento da vida", vai reaparecer na última fase do pensamento de Simmel, na sua filosofia da vida, porque, nos Problemas fundamentais da filosofia ( 191 O), assumira ele uma posição menos pragmatista, mais distante de ser cética. Embora não chegue a filosofia a ser uma ciência objetiva, é considerada como "a reação do homem à totalidade do ser". Somente a ciência positiva alcança um conceito de verdade, sendo a filosofia, em comparação com ela, a expressão de um tipo de espírito, a intuição do mundo e da vida desse espírito. Mas essa tipicidade não se prende propriamente ao puro indivíduo, realiza-se na esfera de uma espiritualidade típica,· que o supera e permite a comunicação das dife­rentes intuições do mundo, tornando-as capazes de livre comunicação. Os seus livros biográficos são exemplos e exercícios dessas diversas tipi­cidades espirituais. Com isso, Simmel consegue evitar o subjetivismo cético, segundo o qual, para cada homem, a sua verdade 8 •

2. 4. Um dos dois livros fundamentais de Simmel, Filosofia do dinheiro (1900) - o outro seria a Sociologia (1908) - é, fora da Alemanha, o menos conhecido de sua bibliografia. Publicado em 1900, somente agora, em 1978, foi traduzido para o inglês. Com impressões sucessivas, já em 1958 alcançava a 6.a edição, e note-se que se trata de uma obra de 585 páginas. Apesar do título, o seu conteúdo é o mais

8 Assim resume Simmel a sua concepção da filosofia (1910, edição espanhola, p. 34) nesta fórmula: "o pensamento filosófico objetiva o pessoal e personaliza o . objetivo". A generalização filosófica não se confunde com a da ciência, da lógica e da prática: "Na filosofia, a afirmação geral não se deduz das coisas, mas é, pelo contrário, uma expressão que se reflete na totalidade das coisas, da

. maneira como algum dos grandes tipos espirituais se comporta diante das impres­sões da vida e do mundo. Não se trata, pois, de uma generalização que abrange as coisas singulares consideradas, e sim da generalização de uma reação individual, mas ao mesmo tempo típica, ante elas". Daí ser possível a sua objetivação em forma conceitual e inteligível.

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amplo possível, e não simplesmente econom1co. É bem representativo do pensamento global de Simmel, como concepção da cultura humana contemporânea, vindo desde os povos primitivos até atingir o pleno de­senvolvimento do capitalismo moderno. Obra de história, de filosofia, de economia, de ciência política, e, sobretudo, de s9ciologia, divide-se ela em duas partes, a analítica e a sintética. Compõe-se a primeira de três capítulos: 1) valor e dinheiro; 2} o valor do dinheiro como subs­tância; 3) o dinheiro na seqüência de fins; e a segunda também de três: 1) a liberdade individual; 2) o equivalente monetário de valores pessoais; 3) estilo de vida.

Não há um só sociólogo alemão de anteguerra ( 1914), e mesmo posterior, que tenha deixado de enfrentar o pensamento marxista. Observa Mannheim que dele se originaram ensinamentos significativos a soció­logos como Max Weber, Alfred Weber, Troeltsch, Sombart e Scheler na Alemanha. E conclui: "Suas polêmicas com o materialismo histórico levam os sinais de todas as verdadeiras controvérsias que penetram a posição do oponente em lugar de evitá-la com artifícios" 9 • Também'-----' ali poderia figurar o nome de Simmel. Com razão, reconhece Johannes Plenge, da escola de von Wiese, que Marx representa um ponto crítico na história da filosofia, da teoria econômica e da sociologia. Por isso mesmo, dizemos nós, não pode ser ignorado: há que rejeitá-lo ou acei­tá-lo. Sente-se a presença de Marx, mais difusa do que confessada, na Filosofia do dinheiro. O propósito de Simmel, como ele próprio con­fessa no prefácio do livro,

"é examinar o materialismo histórico e encontrar relações sociais funda­mentais que permitam compreender, do ponto de vista da natureza humana, a dinâmica dos processos econômicos".

Na economia monetária, com o novo sistema de crédito, o valor do dinheiro passa da ordem da substância para a ordem da função,

·tornando-se um símbolo abstrato dos valores, mudança essa que ua alterar todo o restante do estilo de vida. Ao mesmo tempo que o indi­víduo se vê esmagado nas novas engrenagens econômicas, de massas

anônimas e competitivas, ele também se liberta do antigo substancia­lismo em suas relações sociais, incluindo principalmente as do trabalho, que se tornam despersonalizadas. A nova economia monetária é raciona­

lista, intelectuàlista, baseada no cálculo e na abstração, com prejuízo ·do primado dos sentimentos e da imaginação. A organização e a burocracia

9 MANNHEIM, K. Ensayos de sociología de la cultura. Trad. de M. Suárez. Madri, Aguilar, 1957. p .. 38.

19

são as manüestações típicas dessa nova classe burguesa dirigente. O processo cultural torna-se cada vez mais "objetivado". Essa

"objetivação do conteúdo cultural é provocada pela especialização e cria um crescente alheamento entre o sujeito e seus produtos" ( ... ) Os objetos culturais cristalizam-se cada vez mais num mundo inter­comunicado que tem cada vez menos contatos com a alma subjetiva e com sua vontade e seus sentimentos" 11l.

Repete-se aqui a noção de alienação de Marx, e muitas das idéias futuras de Weber aqui também se encontram, como chega a ser notório. Possivel­mente, Weber o leu em 1902, quando da volta às suas atividades universitárias em Heidelberg, depois de grave doença nervosa 11•

3 . Sociologia de Simmel - Ao contrário do que se costuma escre­ver, Simmel não foi tão assistemático como parece. As suas idéias são

sempre praticamente as mesmas, como também são os critérios metodo­lógicos, em todos os seus livros. Quer trate de sociologia, . de filosofia

ou de estética, mantém-se a mesma diretiva do seu espírito. Por exemplo, em seu livro Die Religion, cuja 2.a edição possuímos, de 1912, mais

parece um tratado de sociologia, como que repetindo as noções socioló­gicas defendidas até então. Quando da publicação da 1. a edição da sua

Soziologle, em 1908, quase todos os seus capítulos já haviam sido publi­

cados esparsaménte na Alemanha. e no estrangeiro. Assim mesmo, ao reuni-los, não deixou Simmel de chamar a atenção para a possível uni­

dade do livro, aparentemente muito fragmentário. Pouco se tem prestado atenção às suas palavras no prólogo, quando ele declara que com esse ensaio, pretende

"dar ao conceito vacilante da sociologia um conteúdo inequívoco, regido por um pensamento seguro e metódico. A única coisa, portanto, que pedimos ao leitor, no proêmio deste livro, é que tenha sempre presente a posição do problema, tal como se explica na primeira parte. De outro modo, estas páginas poderiam dar-lhe a impressão de

lO SrMMEL, 1900, p. 491-2. Além do próprio livro, as melhores exposições, dos livros indicados na bibliografia, encontram-se .em: MAMELET, 1914; SPYKMAN, 1925a; ARON, 1938a; SALOMON, 1945; BECKER, H., l959b. On Simmel's Philosophy of Money. p. 216-32.

11 GERTH, H. H. e WRIGHT MILLS, C. From Max Weber. Essays in sociology. Nova York, Oxford University Press, 1938. p. 14. Weber refere-se expressamente à Soziologie e à Philosophie des Geldes, completando-os em parte, em Wirtschaft und Gesellschaft, 5. ed., Tübingen, J. C. B. Mohr, 1972 (l.a, de 1922). p. 1.

DURKHEIM, E. Simmel, Georg. Philosophie des Geldes. L'Année Sociologique, Paris,_ V, 1902, p. 140-5.

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uma massa inconexa, composta de fatos e reflexões, sem relação entre si".

Em nota ao índice geral, na página seguinte, torna a frisar:

"Cada um destes capítulos contém muitas discussões que, mais ou menos cerradamente, abrangem seu problema título. Mas eles não são somente matéria do seu título: constituem também contribuições relati­vamente independentes ao problema total (do livro). A intenção final e a estrutura metodológica destes ·estudos necessitam de sua ordenação sob alguns conceitos centrais, mas, ao mesmo tempo, necessitam de grande látitude em relação às questões particulares tratadas sob seus enunciados".

Compõe-se a Soziologie de dez capítulos e de treze digressões (Exkurs), tão ou mais interessantes do que os primeiros. Embora nem sempre consiga Simmel manter o mesmo rigor metodológico, como enun­ciado no capítulo I, violando os seus próprios critérios propostos -confundindo forma e conteúdo, por exemplo, - cada capítulo é um tratamento especial, concreto, da aplicação dos seus conceitos básicos. À maneira de Kant, que perguntava na Crítica da razão pura como era possível a natureza, a mesma indagação fazia Simmel em relação à sociedade: como é possível a sociedade? Diferentemente da natureza, cujos fatos materiais concretos são ordenados pelas formas a priori (intuições puras e categorias) do espírito humano que as percebe; na sociedade, ao contrário, a síntese mental que constitui a sociedade, a unidade social, realiza-se pela própria atividade dos componentes da sociedade, sem necessidade da ação mental sintetizadora de um sujeito que lhe é externo ou estranho. Claro está que a unidade do social não atinge nem pode atingir a unidade da natureza, cujo caos de fenômenos é organizado num perfeito cosmos pelas faculdades, ativas, do espírito humano. Pois bem, a sociedade só é possível como uma resultante das ações e reações dos indivíduos entre si, isto é, por suas interações. São processos psíquicos, intermentais, cujos suportes, como sujeitos da ação, são os indivíduos, as suas consciências, a totalidade da sua vida psíquica.

Como já havia acontecido com Dilthey (1887) 12, abandonou Simmel o antigo conceito de uma sociologia como ciência social global, enciclopédica e abrangedora de toda a matéria social. Para ele só era possível uma ciência sociológica rigorosamente delimitada, com objeto próprio, particular, não tratado pelas demais ciências sociais. Nem tudo

12 Cf. DILTHEY, W. Introduction a l'étude des sciences humaines. Trad. de L. Sauzin. Paris, P.U.F., 1942. p. 515-7, cuja l.R edição alemã é de 1887. ·

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o que acontece na sociedade merece o nome de social, nem por ela pode ser explicado ou compreendido. Como ciência empírica, a sociologia deve ter por campo ou objeto a multiplicidade de interações, numa incessante vida de aproXimação e de separação, de consenso e de con­flito, de permanente vir-a-ser. A sociedade não é algo estático, acabado; pelo contrário, é algo que acontece, que está acontecendo. O objeto da sociologia são esses processos sociais, num constante fazer, desfazer e refazer, e assim incessantemente. É através das múltiplas interações de uns-com-os-outros, contra-os-outros e pelos-outros, que se constitui a sociedade, como realidade inter-humana. Ao processo fundamental Simmel dá o nome de Vergellschaftung, ao pé da letra, socialificação, mais do que sociedade, denotando o seu dinamismo, sempre in fieri. Como se verá em chamada própria, adotamos aqui a sugestão dos sim­melianos norte-americanos, traduzindo-o por sociação, que não se con­funde com socialização nem com associação.

Pois bem, o processo básico de sociação é constituído pelos impul­sos dos indivíduos, ou por outros motivos, interesses e objetivos; e pelas formas que essas motivações assumem. Por isso mesmo, no processo de sociação, há que distinguir entre forma e conteúdo. À maneira de Kant, representa aquela o a priori, o invariante por assim dizer, e só ela deve ser o objeto próprio e particular da sociologia, deixando os múltiplos conteúdos concretos para as outras ciências sociais - o direito, a econo­mia, a moral, a história, etc. A isso chamou Simmel de sociologia formal, dando ensejo a uma série de críticas, de discordantes da doutrina (Sorokin, Abel, Treyer, Ginsberg, entre outros), como igualmente de adeptos e seguidores seus (Leopold von Wiese) 13

• A sociologia, para Simmel, seria como a geometria; que somente ela "determina o que é realmente espacialidade nas coisas espaciais". A geometria

"investiga a forma que a matéria assume para se tornar um corpo observável - forma que, em si mesma, só existe em abstrato, exatamente como as formas de sociação. A gometria, do mesmo modo que a socio­logia, deixa o estudo dos conteúdos. . . ou fenômenos totais, cuja forma estudam, para outras disciplinas". '

Simmel frisa, no entanto - e em mais de uma passagem - que ao chamar a sociologia de "geometria social", apresentava somente uma metáfora. A forma e o conteúdo são, de certo modo, inextricáveis, inse-

13 SOROKIN, 1928, p. 501-3; ABEL, 1929, p. 27; FREYER, H., 1930, p. 71-6, da ed. esp.; GINSBERG, M. Manual de sociologia. Trad. de J. M. Echeverria. Buenos' Aires, Losada, 1942. p. ~3-5; WrESE, L. von, 1926, p .. 62-3, da ed. esp.

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paráveis, podendo a primeira ser construída somente por abstraÇão, como acontece no trabalho de qualquer ciência. Não há formas vazias,

como não há conteúdos sem forma. As formas puras podem nunca ser

encontradas na história; são obtidas pela exageração .de certas caracte­rísticas dos dados reais, até o ponto em que se tornem "linhas e figuras

absolutas". Funcionam como "tipos-ideais". Aquelas "linhas e figuras

absolutas, na vida social real, são encontradas apenas em começo e fragmentos, como realizações parciais que são constantemente interrom­

pidas e modificadas". Antecipou-se Simmel aos conhecidos conceitos metodológicos de Max Weber, como se vê desta passagem de Philosophie des Geldes (1900) transcrita por Tenbruck:

"Inumeráveis vezes; formamos nossos conceitos dos objetos de tal maneira que ·a experiência não pode mostrar nenhum equivalente de seu caráter puro e absoluto; eles ganham uma forma empírica somente mediante seu enfraquecimento e limitado por conceitos opostos . . . Este método peculiar de exagerar e reduzir conceitos produz um conheci­mento do mundo que pode ser mensurável com o nosso modo de conhe­cimento. Nosso intelecto pode apoderar-se da realidade somente mediante limitações dos conceitos puros, os quais, não importa quanto se desviem da realidade, provam sua legitimidade pelo serviço que prestam ao inter­pretá-la" 14.

A sociedade só é possível pela existência das formas de sociação, verda­deiro a priori lógico da sua existência. Os capítulos da Soziologie, embora

não exaustivos, são exemplos dessas condições formais. A primeira delas

é a determinação quantitativa dos grupos, que, a partir de dois elementos mínimos, influi na sua organização. Há "uma série de formas de convi­

vência, de unificação e de ação recíproca entre os indivíduos, que aten­

dem só ao sentido que tem o número dos indivJduos saciados nas refe­ridas formas". A segunda condição é o pràcesso dominação-subordi­nação, que importa interação entre dominante e dominado, entre auto­

ridade e certa liberdade de aceitação do subordinado. Distingue Simmel

entre autoridade e prestígio, antecipando-se em muitos pontos às conhe­

cidas idéias de Weber sobre os tipos de dominação 15 •

14 TENBRUCK, F. H. Formal soc!ology. In: WOLFF, K. H., 1959b, p. 80-1.

lfi Para as relações Simmel-Weber, entre outros: CUVILLIER. Ou va la sociologie

/rançaise? Paris, M. Riviere, 1953, p. 64; WIESE, L. von, 1926, p. 137; 141, da ed. esp.; GURVITCH, G. Traité de sociologie. Paris, P.U.F., 1962, v. I, 12-4; SALOMON, A., 1945, p. 606; ÜERTH, H. e WRIGHT MILLS, C. Üp. cit., p. 14, 19, 21; ZIEGENFUSS, W., org. Handbuch der Soziologie. Stlittgart, F. Enke Verlag, 1956. p. 224; ÜPPENHEIMER, F. e SALOMON, G., orgs. Begrijj der Gesellschaft in der deutschen Sozialphilosophie. Karlsruhe, Verlag G. Braun, 1926. p. 8; ABEL, Th.,

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A terceira condição é o conflito, forma pura de sociação e tão

necessário à vida do grupo e sua continuidade como o consenso. É

ele indispensável à coesão do grupo. O conflito não é patológico nem

nocivo à vida social, pelo contrário, é condição para sua própria manu­

tenção, além de ser o processo social fundamental para a mudança de

uma forma· de organização para outra. ·A forma indireta do conflito é a

competição, cuja manifestação na sociedade "é sempre a mesma, apesar

da grande variedade de conteúdo" 16 •

T\illlbém no segredo e na sociedade secreta encontra Simmel outro

exemplo de formas puras de sociação.

"Todas as relações dos homens entre si descansam, naturalmente, no que sabem algo uns dos outros. . . A representação corrente que .se formam uma da outra as duas pessoas, por trás de uma conversação prolongada ou ao se encontrarem na mesma esfera social, ainda que pareça forma vazia, é um símbolo justo daquele conhecimento mútuo, que constitui a condição a priori de qualquer relação."

Um dos problemas constantes em Simmel é o da formação da

individualidade ( cap. X). E tanto mais rica é a participação do indi­

víduo na vida social, tanto maior o número de círculos sociais ( cap.

VI) a que pertença, quanto mais forte é a sua independência, quanto

1972, p. 83 et seqs., da ed. port.; BoTT?MORE, T. e NISBET, R. 1980, passim. Ainda: STRASSER, H., 1978, p. 221-2; HEBERLE, R., 1948, p. 266; PARSONS, T. Max Weber's sociological analysis of capitalism and modern · institutions. In: BARNES, H. E. 1948, p. 291; NAEGELE, K. D. Some observations on the scope of sociological analysis. In: PARSONS, T. 1961, p. 22-3; ANTONI, C. Da/lo storicismo

alla sociologia. 2. ed. Firenze, G. C. Sansoni, 1951, p. 179; FERNANDES, F., 1959,

p. 94, 132. 16 É este capítulo da obra de Simmel que maiores interesse e polêmica têm suscitado ultimamente, principalmente na sociologia americana, depois dos comen­tários de CosER, 1956 e 1967 e a nova tradução de WoLFF, 1955a. O assunto

. conflito voltou à ordem do dia na teoria sociológica, não mais como fator mera­mente dissociativo· nem negativo da unidade social. E o nome de Simmel quase nunca é estranho ao debate. Cf. DAHRENDORF, R. Class and class conflict in industrial society. 3. ed. Stanford, Stanford Univ. Press, 1963. p. 206 et seqs., 211, 226; DEMERATH, N. J. e PETERSON, R. A., órgs. System, change and conflict. Nova York, The Free Press, p. 261-3; HoROWITZ, I. L. Consensus, conflict and cooperation. In: J)EMERATH e PETERSON. Op. cit., p. 265-80; REx, J. Problemas

fundamentales de la teoría sociol6gica. Trad, de N. Míguez. Buenos Aires, Amorror­tu, 196S., p. 144 et seqs.; JANNE, H. Le systeme social. Essai de théorie générale. Bruxelas, Inst. de Soe. de l'Univ. Libre de Brux., 1968. p. 113-5; FERRAROTI, F. La sociologia. Torino, Edizioni Rai, 1962. p. 99, 102, 124 et seqs.; STRASSER, H., 1978, p. 227 et seqs., 272 et seqs. Coser, Strasser e Rex com grande discussão do tema e bibliografia.

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mais nítida se destaca a sua personalidade. A pobreza também pode ser apresentada como outra forma pura de sociação, e pergunta Simmel: a que círculo pertence o pobre? Quais os tipos de relações que se cons­tituem entre o pobre e a sociedade como um todo? "A assistência é tanto uma parte da organização do todo, ao qual pertence o pobre, como o são igualmente as classes proprietárias". Simmel considera o espaço, que Kant define como "a possibilidade da coexistência", como uma das condições da sociedade:

"Também este é o espaço do ponto de vista sociológico. A interação converte o espaço, antes vazio, em algo cheio para nós, já que faz possível a referida rel~ção . . . Assim, ao procurarmos conhecer as for­mas de sociação, temos de inquirir a importância que as condições espaciais de uma sociação têm ·no sentido sociológico, para suas quali­dades e desenvolvimentos".

Daí as noções de proximidade e afastamento, de distância social, de vizinhança e de isolamento. O que importa, porém, não é o espaço geográfico ou geométrico, e sim "as forças psicológicas", os "fatores espirituais", que aproximam, unem, distanciam ou separam as pessoas e os grupos. O estrangeiro é um dos exemplos mais característicos apre­sentados por Simmel, e por ele mais extensamente desenvolvido.

3 . 1 . Como disciplinas científicas, admite Simmel três espécies de sociologias, que se completam: a sociologia formal, a sociologia geral e a sociologia filosófica. A primeira tem por objeto as formas sociais, como organizadoras apriorísticas da matéria social, dando-lhe estrutura e· continuidade. São relações duráveis, irredutíveis, independentes dos múltiplos conteúdos concretos, infinitamente variáveis, que se apresentam no universo pluralista das relações intersubjetivas, quer na família, na escola, na profissão, no exército, na igreja, nos partidos políticos, etc. A sociologia geral é um subproduto da sociologia formal, tendo por objeto a análise do funcionamento e dos processos particulares, as con­dições específicas e as bases das instituições sociais. Finalmente, a socio­logia filosófica, que repensa todos os pressupostos metodológicos da disciplina, permite ao sociólogo uma visão trans-sociológica do indivíduo criador. Simmel procurou dar exemplos disso com as suas biografias de grandes espíritos . inventivas, para cujas formações e criatividades não bastavam os condicionamentos histórico-sociais. Atinge-se aqui, como registra Salomon, o debate filosófico sobre os problemas do determi­nismo e da liberdade 17 •

17 Cf. SIMMEL, 1917a, passim; SALOMON, A., 1945, p. 607·8.

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3. 2. Como ciência empírica e analítica, tendo por objeto a imediata compreensão do dado, não se liberta a sociologia de duas disciplinas filosóficas: a teoria do conhecimento· e a metafísica. Ocupa-se a primeira com as condições, os conceitos fundamentais e os pressupostos de toda pesquisa social, como antecedentes necessários de qualquer ciência parti­cular. Volta-se a segunda para o aperfeiçoamento da pesquisa parcial, colocando-a em relação com os conceitos que não se encontram na experiência e no saber objetivo imediato. Dá unidade ao conhecimento fragmentário da realidade social, atendendo ao grau do conhecimento, ao mesmo tempo que se projeta em outra dimensão da existência, levan­tando indagações sobre o sentido ou o fim da própria vida social e humana, já na esfera dos valores, dos símbolos e dos significados, inclu­sive religiosos 18.

3. 3 . Apesar de muitos pontos de contato entre Simmel e Dur­kheim, muitos outros havia também de total separação entre eles 19 •

O sociólogo francês escreveu todo um ensaio criticando o formalismo do seu colega alemão, considerado como infecundo, inútil e impossível. Por outro lado, não aceitava o primeiro qualquer modalidade de hipós­tase da sociedade, dando-a como uma realidade independente e auto­-suficiente em relação aos indivíduos; nada de consciência coletiva, de espírito do grupo, e assim por diante. Entre o organicismo social e o atomismo individual, procurava Simmel colocar-se num meio termo de equilíbrio 20, dando o indivíduo como o sujeito último da vida social, seu legítimo portador, mas sem desconhecer a existência das grandes formações sociais, como unidades próprias. Embora distinguindo nitida­mente a psicologia da sociologia, porque só nesta se manifestam as ações recíprocas dos indivíduos como criadoras l:l.as sociações propriamente ditas, nunca deixou Simmel de se ocupar com o indivíduo e sua liber-

18 SIMMEL, 1908; na ed. de 1968, p. 20-1; constante desta coletânea, texto 2. 19 Para as relações teóricas Simmel-Durkheim, sumariamente: NrSBET, R.A. The sociology of Emite Durkheim. Nova York, Oxford Univ. Press, 1974. p. 7, 95-6, 125, 133, 170, 202-3, 264; SOROKIN, P. 1928, p. 467, 474, 726-7; NAEGELE, K. D. In: PARSONS, T., org. 1961, p. 15-21, 22-3; BLAU, P. M. e MooRE, J. W. Sociology. In: HosELITZ, Bert F., org. A reader's guide to the social sciences. Nova Yor!c, The Free Press, 1965. p. 170; ABEL, Th., 1972, esp. 95-9, da ed. portuguesa. L' Année Sociologi'que, quase sempre com críticas e discordâncias, registra a recen­são de todas as obras de Simmel, de autoria de Durkheim, Bouglé, Mausse Hourticq. 2o MARTINDALE, D., 1961, na ed. italiana, Tipologia e storia della teoria socio/ogica. 2. ed. Bolonha, I1 Mulino, 1972, p. 379-81; e STRASSER, H., repetindo-o, 1978, p. 217.

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dade. Mais nominalista do que realista, jamais aceitaria ele essa afirmação de Vierkandt, inicialmente seu adepto:

"O·grupo se nos afigura, considerado do ponto de vista lógico,_como uma nova espécie de seres. O grupo não pertence à classe dos corpos inor­gânicos, nem à dos seres vivos, não é tampouco um fenômeno meramente atual, no sentido de uma série de processos psíquicos. O grupo faz parte de uma classe própria de seres que não se podem reduzir a outros. A noção de grupo significa, portanto, para a ciência, como para a con­cepção popular, uma categoria social. Denominamos essa classe de seres, objetivações sociais" 21.

4. Filosofia da vida - O derradeiro livro de Simmel, escrito durante o último ano da primeira grande guerra e também da sua vida, e quando ele já sabia que estava morrendo de câncer, é bem o coroamento de toda a sua obra. Em verdade, em tudo que escreveu e disse, ainda mesmo nos seus ensaios de sociologia, nunca deixou Simmel de colocar a vida, em seu conjunto, como o valor supremo, de certa maneira critério da verdade e do erro, do bem e do mal. Os seus antecedentes, a este respeito, foram Goethe, Schopenhauer, Nietzsche e Bergson, numa crescente linha de irracionalismo e antiintelectualismo intuicionista. A vida se apresenta sob o aspecto fisiológico e sob o aspecto espiritual; sob o primeiro aspira a uma criação contínua, de viver mais (Mehr­-Leben); sob o segundo procura superar-se, almeja mais do que viver (Mehr-als-Leben). A vida é intensificada pela consciência, que faz das suas exigências (da vida) um dever, que se reveste do caráter de uma "lei individual", já que a vida é sempre individual. Apesar de individual, essa lei não é subjetiva, porque é imposta pela própria vida, dando a medida da liberdade pessoal. Cabe ao indivíduo superar os conflitos da vida e da cultura, em cumprimento ao dever de realizar-se a si mesmo 22

5. Influência de Simmel - Escrevendo ao mesmo tempo para revistas alemãs, americanas e francesas, ainda no começo de sua vidà intelectual, nenhum outro na sociologia germânica alcançou, ainda em vida, o renome de Simmel, principalmente nos Estados :Unidos. Além de Small, que lhe traduziu a maioria dos ensaios, vai caber a Park e

21 VIERKANDT, A. Gesellschaftslehre. Stuttgart, Ferdinand Enke, 1928. p. 329.

22 Para a sua filosofia da vida: SIMMEL, 1918b; WEINGARTNER, R. H. Form and content in Simmel's philosophy of life. In: WOLFF, K. H., 1959b, p. 33-60 (Simmel, à época, estava muito sob a influência de Bergson); nas obras de Bréhier, Ferrater Mora e Abbagnano. E do ponto de vista crítico: RICKERT, H. Die Philosophie des Lebens. 2. ed. Tübingen, J.C.B. Mohr, 1922. p. 4, 8, 26, 28, 64 et seqs., 112, 149, 151, 177 e 183; LUKÁcs, G., 1954, p. 357-71, da .ed. espanhola .

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Burgess, de Chicago, em 1921, a difusão das suas idéias no livro de leituras que organizaram. Conceitos tais como: processos sociais, inte­ração, acomodação, competição, conflito, cooperação, mundo rural e urbano (a grande cidade), espaço social, distância, contatos primários e secundários, dominação e subordinação, ganharam desde logo foros de cidadania, fazendo às vezes esquecer as suas origens. A segunda geração da escola de Chicago, entre os quais se destacam Wirth, Mackenzie e Hughes, ainda muito devem a Simmel. Grande também foi a sua influên­cia sobre Ross, pelo seu relacionismo sociológico, como igualmente sobre Merton, Warner, Homans, Moreno, Riesman, Caplow, nem lhe sendo estranho Talcott Parsons.

Na França aproximam-se das suas as idéias da vida intermental da sociologia nominalista de Tarde; como dele também se aproximou em alguns pontos Celestin Bouglé, da escola de Durkheim. Na Alemanha, não escondeu Dilthey a simpatia pela sua maneira de conceber a sociolo­gia. Mais do que se pensa são as suas afinidades (com antecedência de Simmel) com o pensamento de Max Weber (ação-relação social, tipos de dominação, caracterização do capitalismo, tipo ideal, etc.) . Vierkandt o seguiu a princípio, sendo Leopold von Wiese o maior dos seus segui­dores, desenvolvendo-lhe as sugestões e dando-lhes um aprofundamento sistemático. Fazendo a recensão da Soziologie em 191 O, escrevia von Wiese:

"Estou pronto a considerar seu caminho como correto, e a ver em sua sociologia um avanço significativo sobre todas as tentativas ante­riores".

Na Bélgica destacam-se as obras de Waxweiler e de Dupréel como adeptas do formalismo simmeliano. Nos Estados Unidos há toda uma nova geração grandemente admiradora de Simmel e que se tem incumbido de lhe reatualizar a obra nos mais diversos escritos, entre os quais cabem ser destacados: Coser, Wolff, Levine, Hughes, Tenbruck. Nume­rosíssimos manuais de sociologia incorporam idéias e teorias de Simmel aos seus ensinamentos.

Em verdade, a influência de Simmel, em toda a parte, é maior do que a de Wiese, que viveu muito mais do que ele e que por muitos anos chefiou a escola de Colônia. Somente Max Weber o supera. Por isso, não é exagero o que sobre ele escreveu Howard Becker:

"Se convidados a alinhar uma dúzia de pensadores que ·durante os últimos cinqüenta anos mais tenham influenciado o desenvolvimento da sociologia como disciplina, os sociólogos de todo o mundo incluiriam,.

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com toda probabilidade, na maioria dessas listas, o nome de Georg . Simmel".

Por outro lado, lembra Heinz Maus que

"a idéia básica de sua sociologia tornou-se uma propriedade comum ainda que haja uma pequena consciência de sua origem" 23•

6. Conclusão crítica - Em tudo o que escreveu sempre mostrou Simmel uma grande dose de autonomia intelectual, de originalidade d-é concepção e ·de singular beleza estilística. Mas, isso que foi um bem, também pôde ter sido um mal, pois levou-o a extremos de uma sociologia excessivamente analítica e filosófica. Simmel não tinha por hábito refe­rir-se às suas fontes nem fazer citações de outros autores, preferindo fechar-se no seu próprio ensaio, como peça autônoma. Como lembrou Maus, muitas de suas idéias incorporaram-se de tal modo na teoria socio­lógica que não mais se indaga pela sua paternidade. Por outro lado, como havia acontecido a vários outros sociólogos da sua geração, inclu­sive a Max Weber, embora reconhecendo a especificidade do social, deu Simmel exagerada importância à psicologia na explicação e com­preensão da vida humana. Sua preferência sempre se voltou para os estudos microscópicos da estrutura social, para o indivíduo como átomo social. Mais nomi:o.alista do que realista - há comentadores que o incluem nesta última categoria -, fazia do indivíduo o único dado real da vida coletiva. "Sociedade, escreve ele, é apenas o nome para vários indivíduos ligados pela interação." 24 Por isso mesmo, apesa:r: dos esfor­ços em sentido contrário ·de Coser, por exemplo, vão-se nele abeberar de preferência, como mostramos atrás, os teóricos recentes do estrutu­ralismo, do funcionalismo, da sociometria e das análises dos pequenos

23 Por limitação de espaço, não podemos nos estender neste tema. T~o,s . os expositores de Simmel referem-se às suas influências no pensamento soct~log~co que lhe foi posterior. Em conjunto, o mais completo é LEVINE, 1~71b. As cttaçoes últimas são: BECKER, H. In: WoLFF, 1959b, p. 216; MAus, H. In: WoLFF, 1959b, p. 196. 24 Idealista, nominalista é, a nosso ver, a exata posição teórica de Simmel. Assim o consideram: GURVITCH, G. Traité de sociologie. p. 5-6; ARoN, 1938a, p. 204-7; ARON, 1935, p. 10-1; BIRNBAUM e CHAZEL, 1977a, p. 9; SICHES, R. 1943, p. 35; BERGER, P. e LUCKMANN, T. La construcción social de la realidad .. Trad. de S. Zuleta. Buenos Aires, Amorrortu, 1968. p. 216; VIERKANDT, 1934, p. 61. Como realista objetivo: CARLI, F. Le teorie sociologiche. Padova, 1925. p. 132-3 .. "? conceito de sociedade só tem sentido contrapondo-a à simples soma dos mdt­víduos", reconhece Simmel, como que a se colocar no meio-termo conceitual indivíduo-sociedade. Nisso reside o sentido da sua dialética das tensões entre aqueles dois extremos.

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grupos, quase microscópicas, feitas a ponta de alfinete, como formas elementares da vida social.

Por essa opção metodológica, permanece Simmel demasiado preso às motivações psicológicas da vida em sociedade, quase dizendo com Aristóteles que o homem é um animal social por natureza. Apela Simmel quase sempre para os instintos, inclinações e impulsos para explicar o conteúdo do processo básico da sociação, desprezando a própria matéria social. Isso nos faz lembrar estas palavras de Sumner e Keller:

"Quando um escocês passa na escala social de uma classe inferior para a classe média, os sapatos se tomam para ele uma necessidade. Não os usa para co:9servar os pés, mas para conservar a sua situação social. . . Algum dia, um filósofo emitirá a opinião que os sapatos foram inventados por inata pudicícia de mostrar os pés e teremos assim desco­berto ·'l.lm novo instinto" 25.

Apesar dos cuidados tomados por Simmel quanto aos .possí~eis exageros conceituais do seu formalismo social, da sua geometna soc1al, mais metafórica do que real, como escreveu, mero fruto de abstração do próprio processo científico, a verdade é que passou à história da sociologia como criador da Sociologia Formal, como única maneira de se criar uma disciplina analítica e sistemática da sociedade. A sua pro­posta, brilhante e válida até certo ponto, corre o perigo de transfor~ar a ·sociologia em palha seca, numa simples coleção de formas vazms, ocas, sem conteúdos concretos, ciência atemporal e a-histórica. Feliz­mente,' o próprio Simmel não consegue ser rigoroso consigo mesmo e fiel ao método indicado. Não raro os exemplos históricos penetram em suas análises carregados de matéria social;' numa ampla visão 'de toda a sociedade global. Por outro lado, a sua perspicaz sugestão do conflito como forma elementar e necessária do processo da sociação, e não mais como permanente fator dissociativo, não foi além dessa função positiva de manut~nção do grupo, de sua coesão, com superação das diver­gências. Na verdade, tanto eni Simmel, como em Coser, como em Dahrendorf, estamos diante de teorias conservadoras do . conflito, de natureza estruturalista e funcionalista. . Lamenta Maus que Simmel, tão avesso a palavras vazias, tenha sucumbido no fim da sua existência à mágica da chamada filosofia da vida. Na . verdade, porém, mesmo fazendo sociologia, nunca deixou de

25 SuMNER, W. G. e KELLER, A. G. The science of society. New Haven, 1927, apud CARVALHO, C. Delgado de. Sociologia, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1931. p. 256.

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estar presente em Simmel um certo intuicionismo irracionalista, um certo vitalismo antimecanicista. Ele próprio considerava a sua metodologia como incipiente ou provisória, à espera de outra melhor ou mais aper­feiçoada. Os exemplos que dava - já que nunca fez pesquisas empí­ricas - eram exemplos históricos e verossímeis, não precisavam ser reais nem verdadeiros, desde que verossímeis e possí.veis, como dizia. A uma "particular disposição do olhar", a uma "intuição" é do que se dispõe até agora para distinguir a forma do conteúdo. Mais:

"A prática científica, especialmente nos domínios até agora não cultivados, não pode prescindir de certo procedimento instintivo, cujos motivos e normas somente depois chegam totalmente à clara consciência e elaboração sistemática".

E mais ainda:

"Se eu tivesse de expressar a questão de um modo um tanto exa­gerado, por amor à clareza metodológica, diria que os exemplos só são • importantes por serem possíveis, mais que por serem reais ( . , . ) " A investigação poderia ser levada a cabo baseada até mesmo em exemplos fictícios, cuja importância para a interpretação da realidade poderia ser deixada ao ocasional conhecimento de fato do leitor" 26 •

A sua filosofia da vida distingue também entre conteúdo e forma, sendo que esta modela um certo número de conteúdos numa unidade, dando sentido a este constante fluir, a esta permanente duração, que é a própria vida. Todos os produtos da cultura nascem dela e nela se encontram, mas logo se encaminham para uma existência autônoma e independente, entrando em conflito com a própria vida, não raro, pre­tendendo negá-la. Daí a tragédia da cultura. Lukács submete a filosofia da vida de Simmel a rigorosa crítica, como representativa da filosofia Imperialista do período de anteguerra, cujo expoente típico veio a encar­nar-se em Spengler, Intuicionista, impressionist~, irracionalista e relati­vista, acrescenta Lukács que essa filosofia da vida ·chega a manifestar-se como anticientífica:

"Todo o suscetível de ser provado é suscetível também de ser discutido. Só é indiscutível o que não pode ser provado ( ... ) Para o homem profundo, não há outra possibilidade de suportar a vida que uma certa dose de superficialidade" 27. · ·

26 As duas primeiras citações são de O problema da sociologia e as duas últimas de A determinaçtio. quantitativa dos grupos sociais, ambos os capítulos nesta antologia. 27 LUKÁcs, 1954, p. 357-71, os exemplos são extraídos do próprio Lukács. Ainda do mesmo. autor, In: GASSEN e LANDMANN, 1958b, p. 171-6.

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Dentro da sociologia acadêmica contemporânea, não há negar que o nome de Simmel se encontra entre os quatro ou cinco mais represen­tativos das suas origens e criação, como um dos seus fundadores, talvez mais como problemática do que propriamente como sistemática. Tonnies, Simmel, Durkheim e Weber muito possuem de comum e de diverso,_ mas todos, sem dúvida, ofereceram valiosas contribuições à teoria soéio-· lógica deste século, à qual se incorporaram em muitos temas como aquisições definitivas.

Nota- Não podemos analisar o vocabulário riquíssimo de Simmel, inegavelmente um grande escritor, com invejável imaginação criadora. Basta-nos tomar o vocábulo central da sua exposição teórica -Vergesellschaftung- e que consta do título da sua Soziologie, de 1908. Com ele, quis Simmel significar o permanente vir-a-:ser da vida social,

- processo sempre in fieri, que está acontecendo sem que se possa dizer que já aconteceu. Não há propriamente sociedade feita, mas antes o fazer-se sociedadl:\. Através da interação, da relação recíproca, é que se constitui a V ergesellschaftung, que preferimos traduzir, à maneira dos simmelianos americanos, por sociação. Na terminologia atual, numerosos são os autores que o tradu:z;em por socialização, mas o próprio Simmel utiliza-se, mais de uma vez, desta expressão - Sozialisierung, sem que os confunda. Alguns tradutores espanhóis servem-se de socialificação, bem dentro da conotação de processo em movimento. Abel, Martindale e Giddens optam, dentro da mesma linha, por societalização. Aparecem ainda, mais erroneamente: sociabilidade, socialidade e associação. Segundo Wolff, a voz sociation existe em inglês desde 1898, cunhada por J.H.W. Stuckenberg em Introduction to the study of sociology (p. 126-7).

Seleção dos textos

Ensaísta múltiplo, como se vê de sua bibliografia, escreveu Sinimel praticamente sobre todas as disciplinas das ciências humanas: economia, sociologia, ciência política, filosofia, filosofia social, ética, estética, mú­sica, biografia, etc. Ficamos num dilema: tendo de optar entre a maior concentração de sua obra em torno da sociolog!~ e a maior dispersão por todos os campos por onde,passou. Entre a coinpreensão e a extensão, preferimos a primeira, fazendo da sociologia o campo de eleição.

Os três primeiros textos são fundamentais para a sua concepção da sociologia formal. De épocas diversas, vêm. sendo reelaborados, às vezes com um certo tom polêmico, em 1896-7, 1908 e 1917, no ano anterior

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à sua morte. Embora sem ser sectário ou opinioso, Simmel manteve sempre a sua primitiva distinção forma-matéria social, __ levando-a até suas últimas conseqüências, em todos os campos da cultura humana.

O texto 4 é bem demonstrativo da derradeira fase do pensamento de Simmel, pronunciadamente irracionalista, vitalista e adepto convicto da filosofia da vida, muito próximo de Bergson.

Muito citada até hoje, "A determinação quantitativa dos grupos sociais" representou verdadeiro achado pará a época, assemelhando-se muito com a construção da demografia social na escola de Durkheim, com argumentos e exemplos bem próximos uns dos outros.

Os ensaios sob_re a dominação e a subordinação (textos 6 e 7) preenchem um dos aspectos mais bem elaborados da sua doutrina dos processos sociais, especialmente da interação social, temas esses tão bem desenvolvidos por Leopold von Wiese, de Colônia, e Park e Burgess, de Chicago.

Os textos 8, 9 e 10 sobre a teoria do conflito social em sentido amplo vêm sendo dos mais repetidos pelos tratadistas contemporâneos, depois que Bendix e Coser os republicaram em obras diferentes, respec­tivamente, em 1955 e 1956. A partir daí tornaram-se citações obriga­tórias de quantos cuidaram do tema.

6 texto 11 contém o inteiro teor do capítulo 3 - Die Geselligkeit (Beispiel der Reinen oder Formalen Soziologie) do seu último livro de matéria sociológica, aparecido em 1917, e bastante significativo do pensamento de Simmel e da sua maneira de fazer sociologia.

O ensaio "O estrangeiro" constitui uma das digressões, à margem do texto principal - como Simmel costumava fazer -, à maneira de ilustração da matéria maior do espaço e a sociedade.

Com os outros textos reunidos neste volume, pensamos que o leitor terá uma visão satisfatória do universo. sociológico de Simmel, sem que seja necessário, nem possível, acompanhá-lo por todos os seus escritos.

·Bibliografia de Georg Simmel

Livros

.1881 Das .Wesen der Materie nach Kants Physischer Monadologie. Berlim, 1881, 34 p.

1890 Vber soziale Differenzierung. Soziologische und psychologische Untersuchungen. Leipzig, Duncker & Humblot, 1890. VII +

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147 p. La différentiation sociale. Revue Internationale ·de Sociologie, 2, 1894, p. 198-213. Tradução de textos principais por Parazzoli.)

1892 - Die Probleme der Geschichtsphilosophie. Eine erkenntnistheo­retische Studie. Leipzig, Duncker & Humblot, 1892. X + 109 p. (Problemas de filosofia de la historia. Seguido de los estudios "En tiempo histórico" y "La configuración histórica". Trad. de Elsa Tabernig. Buenos Aires, Editorial Nova, 1950. 266 p.)

1892-93 Einleitung in die Moralwissenschaft. Eine Kfitik der ethis" chén Grundbegriffe. Berlim, Hertz, 1892-1893. v. I-II, VIII + 467 p.; VIII + 526 p. (Moral deficiences as determining intellectual functions. Excertos, sem tradutor declarado. International Journal of Ethics, 3, 1893, p. 490--507.)

1900 - Philosophie des Geldes. Leipzig, Duncker & Humblot, 1900. XVI + 554 -p. (A chapter in the philosophy of value. Sem indicação de tradutor. The American Journal of Sociology, v. V, n. 5, março 1900, p. 577-603; The phifosophy of money. Trad. de T. Bottomore e D. Frisby. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1978.)

1904 - Kant. Sechzehn Vorlesungen gehalten an der Berliner Univer­sitiit. Leipzig, Duncker & Hmnblot, 1904. VI + 181 p. (Kant. Sedici iezioni tenute all'Uni-versità de Berlino. Intr. e trad. de G. Nirchio. Milão, 1953. XIV + 171 p.)

1905 - Philosophie der Mode. Berlim, Pan-Verlag, 1905. 41 p. (Cultura femenina y otros ensayos. Trad. de E. Imaz, Pérez Bances, M. G. Morenty e Fernando Vela. Madri, Revista de Occidente, 1934, 329 p.)

1906 - a) Kant und Goethe. Berlim, Bard, Marquardt, 1906. 71 p. (Goethe. Seguido del estudio Kant y Goethe. Para la historia de la concepción moderna deZ mundo. Trad. de J. R. -1-rmen­gol, Buenos Aires, Editorial Nova, 1949. 312 p.)

· b) Die Religion. Frankfurt a. Main, Literatische Anstalt Rütten & Loening, 1906. 79 p. (A contributión to the ~ociology of religion. The American Journal of Sociology, 11, 1905-6, p. 359-76. Republicado: Idem, 60, 1955, p. 1-18.)

1907 - Schopenhauer und Nietzsche. Ein Vortragszyclus. Leipzig, Duncker & Humblot, 1907. XII + 263 p. (Schopenhauer y

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Nietzsche. Trad. de Fr. Ayala. Buenos Aires, Editorial Schapire, 1944. 276 p.)

1908 - Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesells­chaftung. Leipzig, Duncker & Humblot, 1908. 782 p. 5. ed., Berlim, Duncker & Humblot, 1968. (The sociology of Georg Simmel. Trad., organização e com introdução de Kurt H. Wolff. Glencoe, Illinois, The Free Press of Glencoe, 1950; Conflict & The web of group-affiliations. Trad. de K. H. Wolff e R. Bendix. Glencoe, Illinois, The Free Press of Glencoe,. 1955; "The pro-

-blem_ of sociology" e "How is society possible?". In: Georg Simmel, 1858-1918. Org. por Kurt H. Wolff. Columbus, The Ohio State University Press, 1959; Sociologia. Estudios sobre las formas de socialización. Trad. de J. Pérez BaiÍces. Madri, Revista de Occidente, 1926-7; novas edições: Buenos Aires, Espasa-Calpe, 1939 e Madri, Revista de Occidente, 1976.)

1910 - Hauptprobleme der Philosophie. Leipzig, Goschen, 191_0. 175 p. (Problemas fundamentales de la filosofia. Trad. de F. Vela. Madri, Revista de Occidente, 1946. 206 p.)

1911 - Philosophische • Kultur. Gesammelte Essays. Leipzig, W. Klinkhardt, 1911. 319 p. (Trad. espanhola no verbete de 1905.)

1913 - Goethe. Leipzig, Klinkhardt und Miermann, 1913. VII + 264 p. (Trad. espanhola no verbete, de 1906a.)

1914 - Deutschlands innere Wandlung. Rede gehalten em 7. Strassburg, Trübner, November 1914. 14 p.

1916 - a) Das Problem der historischen Zeit. Berlim, Reuther & Reichard, 1916. 31 p. (Trad. espanhola no verbete de 1892.)

b) Rembrandt. Ein kunstphilosophischer V ersuch. Leipzig, Kurt Wolff, 1916. VIII + 205 p. (Rembrandt. Ensayo de filosofia dei arte. Trad. de Emílio Estiu. Buenos Aires, Editorial Nova, 1950. 220 p.)

1917 - a) Grundfragen der Soziologie (Individuum und Gesellschaft). Berlim e Leipzig, Gõschen, 1917. 103 p.

b) Der Krieg und die géistigen Entscheidungen. Reden und Aufsatze, München e Leipzig, Duncker & Humblot, 1917. 72 p.

1918 - a) Der Konflikt der modernen Kultur. Ein Vortrag. München e Leipzig, buncker & Humblot, 1918. 48 p. (El confÍicto

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de la cultura moderna. Trad. de Carlos Astrada. Córdoba, Universidad N acionai, 1923.)

b) Lebenschauung. Vier metaphysische Kapitel. München e Leipzig, Duncker & Humblot, 1918. 245 p. (lntuición de la vida. Cuatro capítulos de metafísica. Trad. de J. R. Armengol. Buenos Aires, Editorial Nova, 1950. 227 p.)

c) Vom Wesen. des historischen Verstehens. Berlim, Mittler, 1918. 31 p. (BUHL, Walter L., org. Verstehende Soziologie. Grundzüge und Entwicklingstendenzen. München, Nym­phembdrger Verlagshandldng, 1972.)

1922 - a) Zur Philosophie der Kunst. Philosophische und kunstphilo­sophische Aufsiitze. Org. por Gertrud Simmel. Potsdam, Kiepenheuer, 1922. 173 p.

h) Schulpadagogik. Vorlesungen. Org. por Karl Hauter. Osterwieck/Harz, Zickfeldt, 1922. IV + 134 p.

1923 - Fragmente und Aufsatze aus dem Nachlass und Veroffentli­chungen der letzten Jahre. Org. por Gertrud Kantorowicz. Mfuichen, Drei Masken Verlag, 1923. X + 304 p.

1953 - Rembrandtstudien. Basel, Schwabe, 1953. 72 p.

1957 - Brücke und Tür. Essays des Philosophen zur Geschichte, Religion, Kunst und Gesellschaft. De acordo com Margarete Susman. Org. por Michael Landmann. Stuttgart, K. F. Kechler, 1957. XXIII + 281 p.

1968 - Das individuelle Gesetz. Philosophische Exkurse. Org. por M. Landmann. Frankfurt a:. Main, Suhrkamp Verlag, 1968.

Traduções francesas e inglesas dos escritos de Georg Simmel

1893 - Moral deficiences as determining intellectual functions ( excer­to). International Journal of Ethics, 3, 1893, p. 490-507.

1894 - -a) La différentiation sociale. Trad. de Parazzoli. Revue Inter­nationale de Sociologie, 2, 1894, p. 198-213.

h) L'influence du nomhre des unités sociales sur les caracteres des sociétés. Trad. de C. Bouglé. Annales de l'bistitut International de Sociologie, 1, 1894, p. 373-85.

c) Le probleme de la sociologie. Revue de Métaphysique et de Morale, 2, 1894, p. 497-504 .

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1895 The problem of sociology. Annals of the American Academy of Political and Social Sciences, 6, 1895, p. 412-23; n. 3, p. 52-63. .

1896 - Sur quelques relations de Ia pensée théorique avec Ies interêts pratiques. Revue de Métaphysique et de Morale, 4, n. 2, 1896,_ p. 160-78. . .

1896-97 - a) Comment les formes sociales se maintiennent. L'Année Sociologique, 1, 1896-97, p. 71-109.

b) Superiority and subordination as subject-matter for sociology. Trad. de Albion W. Small. The American Journal of Sociology, 2, 1896-97, p. 167-89, 392.:.415.

1897-98-99 The persistence of sócia! groups. Trad. de Small. The American Journal of Sociology, 3, 1897-98, p. 662-98, 829-36; 4, 1898-99, p. 35-50.

1899-1900 A chapter in the philosophy of value. Um fragmento do volume intitulado The philosophy of money fo(publi­cado nesse ano por Duncker & Humblot, Leipzig. Tradu­zido para este Journal do manuscrito do autor. The American Journal of Sociology, 5, 1899-1900, p. 577-603.

1902 ,---- a) Tendencies in german life and thought since 1870. Trad. de W. D. Briggs. Traduzido do manuscrito do autor. Inter­nationa.l Monthly, Nova York, 5, n. 1, 1902, p; 93-111; v. 2, p. 166-84. •

b) The number of members as determining the sociological forro of the group. Trad. de A. W. Small. The American Journal of Sociology, 8, n: 1, 1902, p. 1-46; n. 2, p. 158-96.

1904 - a) The sociology of conflict. TPad. de A. W. Small. The American Journal of Sociology, 9, n. 4, 1904, p. 490-525; n. 5, p~ 672-89; n. 6, p. 798-811.

b) Fashion. International Quarterly, 1 O, n. 1, 1904, p. 130-50.

1905 - A contribution to the sociolcigy ()f religion. Trad. de W. W. Elwang. The American Journal of Sociology, Ú, n. 3, 1905, p. 359-76.

1 906 The sociology of secrecy and o f secret societies. Trad. ·de A. W. SmalL The American Journal of Sociology, 11, n. 4, 1906, p. 441.:98.

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1909 - The problems of sociology. Trad. de A. W. Small. The Amer­ican Journal of Sociology, 15, n. 3, 1909, p. 289-320.

1910 - How is society possible? Trad. de A. W. Small. The American Journal of Sociology, 16, n. 3, 1910, p. 372-91.

1912 - Mélanges de philosophie relativiste. Contribution à la culture philosophique. Trad. de A. Guillaume. Paris, Alcan, 1912. VI + 268 p.

1921 PARK, Robert E. e BURGEss, Ernest W. Introductión to the science of sociology. Chicago, University of Chicago Press, 1921, Além de várias pequenas passagens tiradas das traduções anteriores, já aqui assinaladas, inclui três novas: "The sociolo­gical significance of the 'stranger' ";·. p. 322-7. (de Soziologie, 1908); "Sociology of the senses", p. 356-61 (id.); e "Money and freedom", p. 552-3 (de Philosophie des Geldes, 1900).

1936 The metropolis and mental life. Trad. de E. A. Shils. Syllabus and selected readings. Second-year course in the study of con­tempora'l society (Social science li). 5. ed. Chicago, Univ. of Chicago Bookstore, 1936. p. 221-38.

Sem data - The metropolis and mental life. Trad. de H. H. Gerth com a assistência de C. Wright Mills. Departament of Sociology, Univ. of Wisconsin, s.d., 10 p. (mimeo.).

1949 The sociology of sociability .. Trad. de Evereft C. Hughes. The American Journal of Sociology, 55, 1949, p. 254-61.

1950 - The sociology of Georg Simmel. Trad., organização e com in­trodução de Kurt H. Wolff. Glencoe, Illinois, The Free Press of Glencoe, 1950. Parte 1: "Fundamental problems of sociology (Individual and society) ", tradução de Grundfr{lgen der So­ziologie (Individuum und Gesellschaft). Parte 11: "Quantitative aspects of the group", traduzido do cap. 11 de Soziologie. Parte 111: "Superordination and subordination", traduzido do cap. 111 de Soziologie. Parte IV: "The secret and the secret society", traduzido do cap. V de Soziologie. Parte V, cap. 1: "Faithfulness and gratitude", tradução de Soziologie, 3. ed., p. 438-47; cap. 11: "The negative character- of collective behavior", tradução de Soziologie, p. 359-62; cap. 111: ''The stranger", tradução de Soziologie, 3. ed., p. 509-12.

1955 - a) Conflict & The web of group-affiliations. Coin prefácio de E. C. Hughes.. Glencoe, Illinois, The Free Press of Glen­coe. "Conflict", traduçãc1 de K. H. Wolff. p. 11-123 (tradu-

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ção do cap. IV de Soziologie); "The web of group-affilia­tions", tradução de Reinhardt Bendix. p. 125-95 (tradução do cap. VI de Soziologie).

b) HARE, Paul A., BoRGATTA, Edgar F. e BALES, Robert F., orgs. Small groups: st_udies in social interaction. Nova York, Alfred A. Knopf, 1955. Contém: "The significance of num­bers for social life", reprodução de p. 87, 105-6, 118-20, 122-3 e 135-6 da edição de 1950.

1956 - BoRGATTA, E. F. e MEYER, Henry J., Sociological theory: presentday soêiology from the past. Nova York, Alfred A. Knopf, 1956. Contém: "pe number of persons as determining the sociological form of the group", p. 126-58 (reprodução resumida da edição de 1902b) ; "Superiority and súbordination in social relationships", p. 180-204 (reprodução :q~~umida da edição de 1896); "Knowledge and ignorance", p. 405-26 (re-

. produção resumida da edição de 1906); e "The persistence of social groups", p. 364-98 (reprodução resumida da ediÇão de 1897/98/99). ~

1957 CosER, Lewis A. e RosENBERG, Bernard. Sociologiccll theory: a book of readings. Nova York, Macmillan, 1957. Contém: "The dyad and the triad", p. 66-76; "Forros of domination", p. 124-9; e "Conflict as sociation", p. 193-7.

1959 - Georg Simmel, 1858-1918. A collection of essays with trans­lations and a bibliography. Org. por K. H. Wolff. Columbus, The Ohio State University Press, 1959. Contém: "Letter from Simmel to Marianne Weber", p. 239-42; "The adventure", p. 243-58; "The ruin", p. 259-66; "The handle"', p. _2-67-75; "The aesthetic significance of the face", p. 276-81; "On the nature of philosophy", p. 282-309; "The problem of sociology", p. 310-36; "How is society possible?", p. 337-56.

1961 Theories of society. Org. por Talcott Parsons, Edward Shils, Kaspar D. Naegele e Jesse R. Pitts. Nova York, The Free Press, 1961: 2. ed., 1965. Contém: "The sociology of sociability", p. 157-63; "Secrecy and group commul):ication", p. 318-30.

1968 - Conflict in modem culture and other essays. Trad. de Peter Etzkorn. Nova York, Teachers College Press, 1968.

.1977 - The problems of the philosophy of history. An epistemological essay. Trad. de Guy Oakes. Nova York, The Free Press, 1977.

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The philosophy of money. Trad. de T. Bottomore e D. Frisby. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1978.

De e sobre Georg Simmel em português

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1926 - MIRANDA, F. C. P. de. Introdução à sociologia geral. Rio de Janeiro, Pimenta de Mello, 1926. p. 259.

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b) AzEVEDO, Fernando. Princípios de sociologia. São Paulo, Ed. Nacional, 1935; 2 ed., 1936. p. 23, 49, 69, 73, 76, 160-1, 162-5, 170, 178, 404-6, 414-5, 418 .

1936 - RAMos, Artur. Introdução à psicologia social. Rio de Janeiro, José Olympio, 1936. p. 136, 154-5.

1938 - LYRA, Roberto. Noções de sociologia. Rio de Janeiro, A. Coelho Branco F.0 , 1938. p. 74-6.

1939 - BALDUS, H. e WILLEMS, E. Dicionário de etnologia e de socio­logia. São Paulo, Ed. Nacion,al, 1939. p. 27, 29, 70, 85, 107, 112, 140, 153, 183, 206, 224.

1940 - a) BARRETO, R. e WILLEMS, E., orgs. Leituras sociológicas. São Paulo, 1940, com o, texto de Simmel: "As formas sociais como objeto de sociologia", p. 7-12.

b) LINS, Mário. Espaço, tempo e relações sociais. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1940. p. 21, 86, 153-8, 162-3.

1945 - FREYRE, G. Sociologia. Rio de Janeiro, José Olympio, 1945, 2 v.; 2. ed., 1957, abundantemente referido. Consulte-se índice onomástico,

1950 - MORAES FILHO, Evaristo de. o problema de uma sociologia do direito. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1950. p. 101-7.

1954 - FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre os problemas da indução na sociologia. São Paulo, Fac. Fil. Ciências e Letras, 1954. p. 26, 47 e 48.

1959 - FERNANDES, Florestan. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo, Ed. Nacional, 1959. p. 93-4, 132.

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b) Dicionário de sociologia. Porto Alegre, Ed. Globo, 1961; 2, ed., 1963, p. 13~4, 306.

1962 - GusMÃO, P. Dourado. Teorias sociológicas. Rio de Janeiro, Fundo de Culturà, 1962. p. 23, 25, 27, 36, 113-24, 125.

1965 - BoTTOMORE, T. B. Introdução à sociologia. Trad. de W. Dutra. Rio de Janeiro, Zahar, 1965. p. 33, 56-8.

1967 - a) GERTH, H. e WRIGHT MILLS, C., orgs. Introdução. 0 ho­mem e sua obra. In: WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1971. p. 27, 33 e 35.

b) INKELES, A. O que é a sociologia? Uma introdução à disci­plina e à profissão. Trad. de D. Moreira Leite. São Paulo, Pioneira, 1967. p. 33, 69.

1970 - a) BANFI, A. Filosofia da arte. Seleção, intr. e notas de D. Formaggio. Trad. de C. M. Oiticica. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1970. p. 7-8, 10-1, 293-304.

b) ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Trad. coordenada e revista por A. Bosi. São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1970. p. 483-4, 813.

c) ABBAGNANO, N. História da filosofia. Trad. de Ramos Rosa, C. Jardim e L. Nogueira. Lisboa, Ed. Presença, 1970. v. VII, p. 222-7.

1971 GIDDENS, A. Georg Simmel. In: RAISON, T., org. Os precur­sores das ciências sociais. Trad. de Luiz Corção. Rio de Janeiro, Zahar, ·1971. p. 149-57.

1972 - ABEL, Th. Os fundamentos da teoria sociológica. Trad. de Mon­teiro Oiticica. Rio de Janeiro, Zahar, 1972. p. 67~84, 95-102, 169-72.

1976 - SKIDMORE, W. Pensamento teórico em sociologia. Trad. de Oliva e Cerqueira. Rio de Janeiro, Zahar, 1976. p. 31, 136 et seqs:

1977 - a) BIRNBAUM, P. e CHAZEL, F., orgs. Teoria sociológica. Trad. de G. S. de Souza· e H. de Souza. São Paulo, Hucitec/ /EDUSP, 1977. p. 9-10, 18-21 (texto de Simmel: "O

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problema da sociologia"), 380-4 (texto de L. Coser: "Simmel, Marx e conflito social").

b) BLAU, P. M., org. Introdução ao estudo. ·da estrutura social. Trad. de A. Cirurgião. Rio de Janeiro, Zahar, 1977. p. 172 (Bierstedt), 180 (Bottomore), 192 (Lipset), 231 (Co­ser), 250 e 257 (Blau).

1978 - STRASSER, H. A estrutura normativa da sociologia. Trad. de Graça Silveira. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. p. 216 et seqs.

1979 - COHN, G. Crítica e resignação. Fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo, T. A. Queiroz, 1979, esp. p. 35-50.

1980 - a) FERNANDES, Florestan. A natureza sociológica da sociologia. São Paulo, Atica, 1980. p. 37.:8, 42.

b) BoTTOMORE, T. e NISBET, R., orgs. História da análise sociológica~ Trad. de W. Dutra. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. p. 51, 205-8, 215-23, 588-9, 768-9,.

Textos principais sobre Georg Simmel

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1900 - DURKHEIM, E. La sociologia ed il suo domínio scientifico. Rivista Italiana di Sociologia, IV, 1900, p. 127-48. Reprodu­zido, em edição francesa: In: CUVILLIER, A. Ou v a la sociolo­gie française? Paris, Mareei Ri~iere, 1953. p. 177-208.

1914 - MAMELET, A. Le relativisme philosophique thez Georg Simmel: Prefácio de V. Delbos. Paris, Alcan, 1914. IX + 215 p.

1919 - ADLER, Max. Georg Simn:tel Bedeutung für die Geistesgeschi­chte. Wien e Leipzig, Anzengruber-Verlag, 1919. 44 p.

1924 - WIESE, L. von. Allgemeine Soziologie als Lehre von den Be-: ziehungen und Beziehungsgebilden der Menschen. München e Leipzig, Düncker & Humblot, 1924; 2. ed.; 1933, p. 13, 21, 28-JO, 35-36, 39-42, 272:.4, 297-9. Edição ameri­cana: WIESE, L. von e BECKER, H. Systematic sociology on the basis of the Beziehungslehre and Gebildelehre. Nova York, John Wiley & Sons, 1932.

1925 - a) SPYKMAN, N. J. The social theory of Georg Simmel. Chica­go, Univ. of Chicago Press, 1925. XXIX + 297 p. Bio­grafia e bibliografia, p. 277-92.

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b) STEINHOFF, Maria. Die Porm als soziologische Grundkate­gorie bei Georg Simm~l. Kolner Vierteljahrhefte für Soziologie, IV, 1925, p. 214-59.

1926 - Wr-EsE, L. von. Soziologie: Geschichte und Hauptprobleme. Berlim, Walter de Gruyter; 1926. p. 82-6. Edição espanhola: Sociología. Historia y principales problemas. Trad. de R. L. Tapia. Barcelona, Editorial Labor, 1932. p. 30, 58 et seqs., 131) 141.

1928 - SOROKIN, P. Contemporary sociological theories. Nova York e Londre~ Harper & Brothers, 1928. p. 490 et seq~., 724, 726, 727, 738. .

1929 - ABEL, Th. Systematic sociology in Germany. A criticai analysis of some attempts to establish sociology as an independent science. Nova York, Columbia University Press, 1929. p. 13-49.

1930 - PREYER, H. Soziologie als Wirklichkeitswissenchaft. Leipzig e Berlim, Reubner, 1930. p. 46-57. Edição espanhola: La socio­logía, ciencia de la realidad. · Buenos Aires, Editorial Losada, 1944. p. 65-76 .

1934 VIERKANDT, A. Simmel. Encyclopaedia of the Social Sciences. Nova York, Macmillan, 1934. v. XIV; reimpressa em 1948, p. 61.

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b) TREVEs; R. Sociología y filosofía social. Buenos Aires, Editorial Losada, 1941. p. 47-59.

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1943 - RECASÉNS SICHEs, L. Wiese. México, Pondo de Cultura Eco~ · nómica, 1943. p. 11-56.

1944 - Gmsso, L. Lo storicismo tedesco: Dilthey, Simmel, Spengler. Milão, Bocca, 1944. p. 133-236.

1945 - SALOMON, A. German sociology. In: GURVITCH, G. e MOORE, W. E.,· orgs. Twentieth Century Sociology. Nova York, Philo­sophical Library, 1945. p. 604-9. Edição francesa: Paris, P.U.P. 1947. p. 611:-6. . ..

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1948 ~ HEBERLÉ, R. The sociology of Georg Simmel. The forms of social interaction. In: BARNES, H. E., org. An introduction to the history of sociology. Chicago, Univ. of Chicago Press, 1948. p. 249-73.

1950 - WOLFF, K. H. Introduction. In: The sociology of Georg Simmel. Trad. e org. por K. H. Wolff. Glencoe, Illinois, The Free Press of Glencoe, 1950.

1953 - HoNIGSHEIM, P. Simmel, Georg. Handworterbuch der Sozial­wissenschaften. Stuttgart, Gustav Fischer; 1953. p. 270-2.

1954 - LuKÁcs, G. Die Zerstorung der Vernunft. Der Weg des Irra­tionalismus von Schelling zu Hitler. Berlim, Aufbau-Verlag, 1954. p. 350-64. Edição espanhola: El asalto a la razón. La trayectoria dei irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. :Barcelona-México, Ediciones Grijàlbo, 1968. p. 357-71.

1956 ---:; a) CosER, L. A. The functions of social conflict. Londres, Routledge and Kegan Paul, 1956. 203 p. Amplamente baseada em Simmel; muitas referências são feitas a· ele.

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1957 ---'- PAci, Enzo. La filosofia contemporanea. Milão, Garsanti, 1957. Edição espanhola, com o mesmo título: Buenos Aires, Ed. Universitária de Buenos Aires, 1961. p. 100-12.

1958 :- a) The American Journal of Sociology, LXIII, maio 1958 ( "Durkheim-Simmel Commemorative Issue") .

b) GAsSEN, K. e LANDMANN, orgs. Buch des Dankes an Georg Simmel. Briefe, Erinnerungen, Bibliographie. Berlim, Düncker & Humblot, 1958.

1959 - a) WEINGARTNER, R. H. Experience and culture. Middletown, Connecticut, Wesleyan University Press, 1962.

b) WoLFF, K. H., org. Georg Simmel, 1858-1918. Columbus, The Ohio State University Press, 1959~ 396 p.

1961 - MARTINDALE, Don. The nature and types of sociological . theory. Londres, Routledge & Kegan Paul, 1961. p. 235 et seqs.

1965 CosER, L. A., org. Georg Simmel. Englewood Cliffs, New Jersey, Prentice Hall, 1965.

1967 - CosER, L. A. Continuities in the study of social conflict. Nova York, The Free Press, 1967, passim. Edição espanhola: Nuevos aportes a la teoría del conflicto social. Buenos Aires, Amarrar­tu, 1970.

1968 - LANDMANN, M. Einleitung. In: SIMMEL, G. Das individuelle Gesetz. Frankfurt a. Main, Suhrkamp Verlag, 1968.

1971 - a) CosER, L. A. Masters of sociological thought. 1deas in histodcal and social context. Nova York, Harcourt Bra.ce;

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1981 - FREUND, Julien. Introduction. In: SIMMEL, G. Sociologie et eplstémologie. i:'raci. cte T. Gasparini. Paris,- Presses-Universi­taires de France.

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TEXTOS DE SIM MEL

Seleçiio e revisiio técnica da traduçiio: Evariste de Moraes Filho

Page 25: SIMMEL, Georg - Sociologia (organização Evaristo de Moraes Filho)

L GERAL-PROBLEMAS METODOLOGICOS

FUNDAMENTAIS 1. COMO AS FORMAS SOCIAIS SE MANTÊM *

As ciências em via de formação têm o privilégio, mediocremente invejável, de servir de abrigo provisório a todos os problemas que pairam no ar, ainda sem haver encontrado seu verdadeiro lugar. Pela indeter­minação e pelo fácil acesso de suas fronteiras, elas atraem todos. os "apátridas" da ciência, até que haja contraído suficientemente força para repelir de si todos esses elementos estranhos; a operação é, às vezes, cruel; contudo poupa bastantes decepções no futuro. É assim que a Sociologia, essa nova ciência, começa a se livrar da confusa massa de problemas que se associavam a ela; ela se resolve em favor de não mais naturalizar o primeiro a chegar, e, embora ainda se discuta a respeito da extensão de seus domínios, são visíveis os esforços realizados com o fim de demarcar-lhe os contornos. Durante muito tempo, pareceu que o termo Sociologia tivesse uma virtude mágica; era a chave de todos os enigmas tanto da história como da prática, tanto da moral como da estética, etc. A razão é que se atribuía como objeto da Sociologia tudo que se passa na sociedade; em conseqüência disso, todos os fenô-

--me-nos-que não sãO a e -orde-rrc -física paréciain ser cre sUa.-alçaâa~No entanto, esse mesmo fato demonstra o erro que se cometia, com um procedimento assim. Pois constitui, evidentemente, um disparate reunir

*Reproduzido de SIMMEL, G. Comment les formes sociales se maintiennent. L'Année Socio/ogique. Direção de Émile Durkheim. Paris, v. I, 1898, p. 71-9, 104-9. Trad. por Carlos Alberto Pavanelli. Tradução revista pelo Organizador.

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todos os assuntos de estudo de que já tratam a economia política 'e a história da civilização, . a filosofia e à política, a estatística e a demografia, numa espécie de mistura à qual se adere essa etiqueta Sociologia. Adquire-se, para isso, um nome novo, mas não um conhecimento novo. Sem dúvida, não há uma pesquisa sociológica que não interesse a alguma das ciências já existentes; tal se explica porque, naquilo que produz a matéria da vida humana, nada existe que não seja, já, o objeto de uma dessas ciências. No entanto, é esta, justamente, a prova de que, para possuir um sentido definido, a Sociologia deve buscar seus problemas não na matéria da vida social, mas em sua forma; inclusive é essa forma que dá o caráter social de todos aqueles fatos de que se ocupam as ciên­cias particulares. Nessa consideração abstrata das formas sociais é que se assenta todo o direito de existir da Sociologia; é assim que a geometria deve sua existência à possibilidade de abstrair, das coisas materiais, suas formas espaciais, e a lingüística a sua à possibilidade de isolar, dos pensamentos que os homens exprimem, a própria forma da expressão.

As formas que tomam os grupos de homens, unidos para viver uns ao lado dos outros, ou uns para os outros, ou então uns com os outros - aí está o domínio da Sociologia. Dizer a respeito dos fins econômicos, religiosos, políticos, etc., pelos quais essas sociações começam a existir, cabe a. outras· ciências. Então, de vez que toda sociação humana ocorre visando a tais fins, de que modo conheceremos as formas e as leis próprias da sociação? Reaproximando as sociações d~stinadas às mais diferentes finalidades e liberando aquilo que elas têm em comum. Desse modo, todas as diferenças apresentadas pelos fins especiais em torno dos quais as sociedades se constituem, se neutralizarão mutuamente, e a forma social será a única a sobressair. Assim, um fenômeno tal como a formação dos partidos observa-se tanto no mundo artístico como nos meios políticos, tanto na indústria como na religião. Então, se for inves­tigado o que em :todos esses casos se reconhece como reencontrado, apesar da diversidade dos fins e dos interesses, obter-se-ão as espécies e as leis dessa forma particular de agrupamento. O mesmo método nos permitiria estudar, da mesma maneira, a . dominação e a subordinação, a formação das hierarquias, . a divisão do trabalho, a competição, etc.

-- -eua-ndo--essas-ínúmeras form:as---aa-sociaçãoliumaha tiverem sido esta­belecidas, indutivamente, . e se houver encontrado seu significado psico­lógico, somente então se. poderá pensar em resolver a questão: que é urna sociedade? Porque não há dúvida de que a sodedade não é um ser simples, cuja natureza possa ser inteiramente expressa por uma única fórmula. Para se conseguir a sua definição, é preciso convocar todas essas

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formas especiais da sociação e todas as forças que mantêm unidos seus elementos. Não pode haver sociedade onde essas combinações variadas não se deparem entre si. Sem dúvida, cada uma delas, tomada separadamente, pode desaparecer sem que o grupo total desapareça; contudo, sucede que entre todos os povos conhecidos sempre subsiste, delas, um número suficiente. Suprimam-se todas elas através do pensamento, e não mais haverá sociedade, absolutamente 1.

A fim de ilustrar, mediante um exemplo, o método assim definido, eu. desejaria, neste artigo, investigar as formas específicas pelas quais as sociedades, como tais, se conservam. Por sociedade não entendo apenas o conjunto complexo dos indivíduos e dos grupos unidos numa mesma comunidade política. Vejo uma sociedade em toda parte onde os homens se encontram em reciprocidade de ação e constituem uma uni­dade permanente ou pa~sageiJa. Logo, em cada uma dessas uniões pro­duz-se um fenômeno que caracteriza, da mesma forma, a vida indivi­dual; a cada instante, forças perturbadoras, externas ou não, opõem-se ao agrupamento, e este, se for deixado a agir por sua própria conta, não tardarão elas a dissolvê-lo, isto é, a transferir seus elementos para agru­pamentos estranhos. Todavia, a essas causas de ·destruição opõem-se forças conservadoras que mantêm unidos esses eÍementos, asseguram sua coesão e, através disso, garantem a unidade do todo, até o momento em que, como todas as coisas terrestres, eles se rendem aos poderes dissolventes que os cercam. .

Nessa circunstância, pode-se ver o quanto é justo. apresentar a socie­dade como uma unidade sui generis, distinta de seus elementos indivi­duais. Isto porque as energias de que lança mão, a fim de se conservar, nada têm em comum com o instinto de conservação dos indivíduos. Para isso, emprega métodos de tal forma diferentes, que, com bastante freqüência, a vida dos indivíduos permanece intacta e próspera quando a do grupo se enfraquece, e vice-versa. Mais do que os outros, esses fatos contribuíram para admitir a sociedade como um ser de realidade autônoma, o qual; obedecendo a leis próprias, levaria uma vida inde­pendente daquela de seus membros. E, efetivamente, se consideramos a

_ natur~zil. iJ!itinsec~_ e_ a evolução das línguas e dos costumes, da Igreja e do direito, da organização política e social, tal concepção se impõe.

1 Cf. sobre essa maneira de colocar o problema sociológico, meu .artigo sobre "Le probleme de la sociologie". Revue de Métaph., t. 11, p. 497. Algumas aplicações desse princípio . serão encontradas .em minha obra Sociale Differeil­zierung (Diferenciação social). Leipzig, 1890, Ver, do mesmo modo, Annales de l'Institut de Sociologie, v: I, e American Journal of Sociology, v. II; n. 2 e 3.

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Pois todos esses fenômenos revelam-se como os produtos e as funções de um ser impessoal· do qual os indivíduos, indubitavelmente, compar­tilham, como de um bem público, contudo, sem que se possa designar, nomeadamente, um em particular que seja sua causa produtora ou sua razão determinante; nem mesmo um de quem se possa dizer que parte precisa ele tomou em sua produção. A sociedade se coloca diante dos indivíduos em particular como algo que os domina e que não depende das mesmas condições que a vida individual.

Por outro lado, é certo que não existe outra coisa senão indi­víduos, que os produtos humanos só têm realidade fora dos homens se forem de natureza material, e que as criações de que falamos, sendo espirituais, só vivem nas inteligências pessoais. Como, por­tanto, explicar - se só existem os seres individualistas ~ o ca­ráter supra-individual dos fenômenos coletivos, a objetividade e a auto­nomia das formas sociais? Há apenas um modo de resolver essa antinomia. Para um conhecimento perfeito, é preciso admitir que não existe outra coisa .senão os indivíduos. ·Para um olhar que penetrasse -no fundo das coisas, todo fenômeno que parecesse constituir, acima dos indivíduos, alguma unidade nova e independente, se resolveria nas ações recíprocas permutadas pelos indivíduos. Infeliz­mente somos privados desse conhecimento perfeito. Os vínculos que se estabelecem entre os homens são tão complexos que é uma quimera desejar reduzi-los a seus elementos "!Íltimos. Devemos, de preferência, tratá-los como realidades auto-suficientes. Então, somente por mero procedimento de método, é que falamos a r~speito do Estado, do direito, da mopa etc., como se fossem seres indiyisos. Ainda por isso é que falamos da vida como de uma coisa única, admitindo, por completo, que ela se reduz a um complexo de ações e de reações físico-químicas permu­tadas entre os últimos elementos do organismo. Assim se resolve o conflito suscitado entre a concepção individualista e o que se poderia chamar de concepção monista da sociedade; a primeira corresponde à realidade, a última, à condição restritâ de nossas faculdades de análise; uma é o ideal do conhecimento, a outra exprime sua situação atual.

Isto posto, da mesma forma que o biólogo já conseguiu substituir -- -::cfot~lCVitalque patecta paí:ran:u::ímrdordUerentes ·órgãos~ pela ação

recíproca desses últimos, o sociólogo, por sua vez, deve procurar, cada vez mais, atingir esses processamentos particulares que produzem real­mente as coisas sociais, a qualquer distância que deva ficar de seu ·ideal. Portanto, naquilo que concerne ao objeto especial deste artigo, é. este o modo de como o problema deve ser formulado. Acreditamos com-

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preender que as mais diferentes sociações põem em jogo forças especí­ficas, a fim de perseverar em seu ser; em que processos mais simples esse fenômeno pode ser determinado? Se bem pareça que o grupo, uma vez existente, demonstra, em seus esforços para se manter, uma energia vital e uma força de resistência que parecem provir de uma fonte única, outra coisa não é senão a conseqüência, ou melhor, a resultante de fenômenos, particulares e diversificados, de natureza social. São esses fenômenos que devem ser pesquisados.

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O que mais comumente coloca o problema da permanência própria dos· grupos sociais é o fato de que eles se mantêm idênticos a si próprios, ao passo que seus membros ou se alteram ou desaparecem. Dizemos que é o mesmo Estado, o mesmo exército, a mesma associação, que existe hoje e que já existia há dezenas _e, talvez, centenas de anos atrás; entretanto, entre os membros atuais do grupo, não há; dentre eles, um que seja o mesmo de outros tempos. Deparamo-nos, aqui, com um daque­les casos em que a disposição das coisas no . tempo apresenta uma notável analogia com sua disposição no espaço. O fato de estarem os .indivíduos uns. ao lado dos outros, conseqüentemente exteriores uns aos outros, não impede a unidade social de serem constituídos; a união espiritual dos. homens triunfa sobre sua separação no espaço. Da mesma forma, a separação temporal das gerações não impede que sua seqüência forme, para nossa representação, um todo ininterrupto. Entre os seres separados pelo espaço a unidade resulta das ações e das reações que eles permutam . entre si; isso porque a unidade de um todo complexo não significa outra coisa senão a coesão dos elementos, e essa coesão só pode ser obtida através do concurso mútuo das forças presentes. Todavia, . para um todo composto de elementos separados pelo tempo, a unidade não logra realizar-se dessa .maneira, porque entre eles não existe reciprocidade de ação; os mais antigos podem influenciar bastante aqueles que vêm a seguir, mas não estes agir sobre aqueles. É por essa razão que a sobrevivênçla da unidade social em meio ao fluxo perpétuo

--dos-indivíduos-permanece-come-.um-problema--a--resolver;-cmesmo -que a gênese dessa unidade já tenha sido explicada.

O fator, cuja idéia se apresenta imediatamente ao espírito, para compreender essa continuidade dos seres coletivos, é a perman~ncia do solo _em que eles vivem. A unidade, não apenas do Estado, mas da cidade e de muitas outras associações, em princípio, se submete ao

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território que serve como substrato subsistente a todas as mudanças sofridas pelos ihtegrantes da sociedade. A bem dizer, a permanênCia do lugar não produz, por si só, a permanência da unidade -social, porque, quando a: população é expulsa ou subjugada por um povo conquistador, dizemos que. o Estado mudou, ainda que o território permaneça o mesmo. Além disso, a unidade de que se trata aqui é inteiramente psíquica, e é essa· unidade psíquica que verdadeiramente constitui a unidade terri-

. torial, e não o contrário, ou seja, derivar-se desta. No entanto, uma vez que esta última estiver constituída, torna-se, por sua vez, um susten­táculo para a primeira e ajuda-a a se manter. Contudo, muitas outras condições são necessárias. A prova é que determinados grupos não têm nenhuma necessidade dessa base material. Antes de .. tudo, são as peque­nas sociedades, comõ-ã família, capazes de permanecer sensivelmente idênticas entre si, ainda que niudem de residência; mas, são também as sociedades muito grandes, como as associações internacionais de lite­ratos, artistas e eruditos, ou então como aquelas sociedades comerciais que se espalham pelo universo inteiro, e que consistem, essencialmente, numa negação de tudo que vincula a vida social às localidades deter­minadas.

Definitivamente, essa primeira . condição muito pouco assegura, a não ser de maneira apénas formal, a persistência do grupo através do tempo. Um. fator incomparavelmente mais eficaz é a ligação fisiológica· das gerações, a cadeia formada entre: os indivíduos pelas relações de parentesco em geral. Sem dúvida, a comunidade do sangue nem sempre é suficiente para garantir, por bastante tempo, a unidade da vida coletiva; é preciso, mais amiúde, que ela seja completada pela comunidade de território. A unidade social dos judeus, apesar de sua unidade fisiológica e confessional, enfraqueceu, de forma singular, depois de sua dispersão; jamais se reatou com solidez, a não ser no local em que um de seus grupos permaneceu fixado durante um tempo bem longo em um mesmo território. Por outro lado, porém, em toda parte onde faltam os outros vínculos, o vínculo fisiológico é o ultimum refugium da continuidade social. Assim, quando a corporação alemã (Zunft) degenerou e se enfraqueceu internamente, ela se fechou com solidez externamente,

- na-mesma mecliaa -ein -que sualorça -ae-coesãose relaxava em mais alto _grau; daí partiu a regra de que apenas os filhos de mestre, os genros de mestre, os maridos de vióva de mestre poderiam ser admitidos à mestrança. ·

O que constitui a eficácia desse· fator é que as gerações não se substituem de uma hora para a outra. Dessa maneira, a grande maioria

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dos indivíduos que vivem juntos, em um dado momento, ainda existe no momento seguinte, e a passagem de um para o outro é contínua. As· pessoas que mudam entre dois instantes J?róximQs, quer saindo da sociedade, quer nela entrando, são invariavelmente bem poucas, compa­radas àquelas que permanecem. O fato de o homem não estar, como os animais, sujeito a uma época de acasalamento, e de que, em conseqüên­cia, seus filhos podem nascer a qualquer ocasião, têm, aqui, uma impor­tância toda especial. Com efeito, daí resulta que não se pode nunca fixar um momento determinado onde começa uma nova geração. A saída dos elementos antigos e a entrada dos novos operam-se tão progressivame'nte que o grupo dá a impressão de um ser único, exata­mente como um organismo no centro do escoamento incessante de seus átomos. Se essa substituição se efetuasse uma vez só, se a certa saída em massa sucedesse bruscamente uma entrada em massa, pouco funda­mento teríamos para dizer que o grupo, apesar da mobilidade de seus membros, subsiste em sua unidade. No entanto, constituírem os recém­-chegados, a cada momento, uma minoria ínfima com relação àqueles que já compunham a sociedade no momento anterior, é o fato que lhe permite continuar idêntica a si própria, mesmo que, em duas épocas mais afastadas, o conjunto do pessoal social fosse inteiramente renovado.

Sendo sobremodo surpreendente essa continuidade no ponto em que tem por base a geração, não deixa ela de exercer uma ação muito sensível em determinados casos nos quais, contudo, falte totalmente esse intermediário físico. É isso que acontece com o clero católico. A conti­nuidade resulta, aí, do fato de permanecerem, sempre, bastantes mem­bros antigos em funções para iniciar os novos. A importância desse fenômeno sociológico é considerável, porque é o que torna tão estáveis, por exemplo, os corpos de funcionários; é isto que lhes permite manter invariável, mediante todas as mudanças individuais, o espírito objetivo que constitui sua essência. Em todos esses casOs, o fundamento fisioló­gico da continuidade social é st1bstituído por um fundamento psicológico. Sem dúvida, no pior dos casos, essa continuidade só existe na mesma

_ medi~~m qu_t!_ ()~ i!l_divíduos não mudem, em absoluto. Mas, na reali­dade, os membros que compõem o --grupo, a um dado momeilto~ nele permanecem invariavelmente durante um tempo que lhes baste para poderem amoldar seus sucessores à sua imagem, ou seja, em conformi­dade com o espírito e as tendências da sociedade.

Essa renovação lenta e progressiva do grupo é que faz sua imorta~ lidade e essa imortalidade é um fenômeno sociológico de extraordinário

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vulto. A conservação da unidade coletiva durante um tempo teorica­mente infinito dá ao ser social um valor que, ceteris paribus, é infinita­mente superior ao de cada indivíduo. A vida individual é inteiramente organizada para cessar em determinado· témpo, e, em certa medida, cada indivíduo começa ele mesmo, a novas penas, sua própria existência. A sociedade, pelo contrário, não está sujeita a priori a uma duração limi­tada; parece estar instituída para existir eternamente, e é por essa r~zão que ela chega a totalizar conquistas, forças, experiências que a elevam bem acima das existências particulares e dos seus perpétuos recomeças. Foi isso que constituiu a força das corporações urbanas da Inglaterra, depois da Idade Média. Desde aquela época, diz Stubbs, tinham elas o direito "de perpetuar sua existência, preenchendo, sucessivamente, as lacunas que se produziam em seu seio". Não há dúvida de que os antigos privilégios não visavam a outros senão aos burgueses e seus herdeiros. No entanto, na realidade, esse princípio foi aplicado também de modo a conferir o direito de adotar membros novos. Por essa razão, não impor­ta. qual foss~ a condição de seus membros e de seus descendentes pro­pnamente ditos, a corporação como tal sempre se conservou in integro.

Esse resultado, todavia, somente é obtido através da supressão do indivíduo; seu papel pessoal" é, com efeito, relegado a segundo plano pelas funções que ele preenche como representante e continuador do grupo. Pois a sociedade corre maiores riscos na medida em que depende, tanto mais, da efêmera individualidade,; de seus membros. Inversamente, quanto mais o indivíduo for um ser impessoal e anônimo, mais estará, também, apto a tomar simplesmente o lugar de outro e a assegurar, desse modo, a conservação ininterrupta da, personalidade coletiva. Foi esse valioso privilégio que, na Guerra das Duas Rosas, permitiu aos Comuns reduzir a supremacia da Câmara dos Lordes. Na realidade, unia batalha que suprimia a metade da nobreza do país, retirava também, da Câmara dos Lor_des a metade de seu poderio, uma vez que estava ligada ao destino de um determinado número de personalidades parti­culares. Por outro lado, os Comuns· foram poupados dessa razão de enfraquecimento. Como desfrutavam de uma espécie de imortalidade graças ao nivelamento qe seus membros, acabavam por se assenhorear

--do-poder.-Essa-mesma circunstância-dá-aos-grupos uma vantagem nas lutas que eles sustentam com os indivíduos particulares. Sobre a Com~ panhia das índias pôde-se dizer que, para estabelecer sua dominação sobre os indígenas, não utilizara de outros meios senão do Grão-Mogol. Somente ela teve tal superioridade sobre os outros conquistadores. da índia, porque jamais poderia ser morta. [ ... ]

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VI

Nas expos1çoes precedentes, a variabilidade dos grupos foi estu­dada como um meio de ele~ se adaptarem às necessidades da vida; ela consiste em dobrar-se a fim de impedir que tudo se quebre, e essa flexibilidade se impõe todas as vezes em que as formas sociais não são consolidadas com força suficiente para desafiar todas as forças destrutivas.

.A sociedade responde, assim, às variações que se produzem nas circuns­tâncias, mantendo inteiramente sua existência própria. Porém,. pode-se perguntar, agora, se essa aptidão para passar por condições variadas,

. e mesmo opostas, somente serve à conservação do grupo como recurso de reagir contra as mudanças do meio ambiente, ou se ela não está igualmente implicada no próprio princípio de sua constituição interna.

Na realidade, abstraindo-se daquilo que as circunstâncias exteriores podem constituir, a saúde do corpo social, considerada como o simples desdobramento de suas energias internas,. não reclama, incessantemente, mudanças de conduta, de deslocamentos de interesses, de contínuas varia­ções de formas? Os próprios indivíduos já não conseguem se rconservar de outro modo que não seja mudando; eles não mantêm a unidade de sua vida através de um equilíbrio imóvel eritre o que está dentro e o que está fora; coptudo, por razões de ordem interna, estão fadaclos a um movimento· perpétuo que os faz passar, incessantemente, não apenas da ação para a paixão e vice-versa, mas também de uma forma da ação ou da paixão para uma outra.· Do mesmo modo, não é impossível que as forças das quais resulta a coesão da sociedade tenham necessi­dade de mudança para guardar toda a sua ação sobre as consciências. Isto se pode observar notadamente. sempre que a unidade coletiva se tornou muito estreitamente solidária com um estado social determinado, acontecendo, por. essa única razão, que esse estado dure, passado longo tempo e sem mudança. Se um evento exterior então vier a abalá-lo, a unidade social corre o risco de ser arrebatada no mesmo golpe. ·Por exemplo, no momento em que os sentimentos morais estiveram unidos, durante muito tempo, a determinadas concepções religiosas, o livre-. -exame, arruinando a religião, ameaça a moral. Do mesmo modo, a unidade de uma família rica às vezes se rompe se ·essa família se empo-

-otec·e;-comõ-acõntece,--ae -testó~-com.·.auniaadeoe- uina famílra-poofe que vem a se enriquecer. Inclusive também em um Estado até então livre, as piores divisões revelam-se se se chega a perder a liberdade (lembremos Atenas na época macedônica); contudo, o mesmo fenômeno se produz nos Estados despóticos que se tornam livres subitamente, como inúmeras vezes o tem provado a história das revoluções .. Portanto;

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parece que uma certa variabilidade impede o grupo de se solidarizar de maneira muito completa com tal e qual particularidade. As freqüen­

. tes mudanças pelas quais efe passa imunizam-no, por assim dizer; muitas de suas partes podem cair, sem que o nervo da vida seja atingido, sem que a manutenção do grupo esteja em perigo.

Somos levados, é verdade, a acreditar que .a paz, a harmonia dos interesses só servem dentro dessa finalidade; toda oposição parece-nos criar um perigo e desperdiçar esterilmente forças que poderiam ser utili­zadas para uma obra positiva de coordenação e de organização. E, no entanto, a opinião contrária parece mais bem fundada; as sociedadi!s têm interesse em que a paz e a guerra se alternem conforme uma espécie de ritmo. Isso procede quanto às guerras estrangeiras que se sucedem a períodos de paz internacional, como guerras intestinas, con­flitos de partidos, oposições de todo gênero que fazem seu caminho no próprio seio do acordo e da harmonia; toda a diferença entre essas duas ordens de fatos está em que, no primeiro caso, a alternância é sucessiva, e, no segundo, simultânea. Mas o fim perseguido é o mesmo; unicamente os meios pelos quais ele se realiza são diferentes.

A luta contra uma potência estrangeira dá ao grupo um vivo senti­mento de sua unidade e da urgência que existe para defendê-la a despeito de toda. oposição. A oposição comum contra um terceiro atua como princípio de união, e isto de modo muito mais seguro do que a aliança comum com um terceiro; é um fato que se verifica quase sem exceção. Não há, por assim dizer, grupo - doméstico, religioso, econô­mico ou político - que possa passar sem esse cimento; A mais límpida consciência que uma sociedade toma de sua unidade, pelo efeito da luta, reforça essa unidade, e vice-versa. Dir-se-ia que, para nós outros, homens, cuja faculdade essencial é perceber diferenças, o sentimento do que é único e harmônico não possa tomar forças de outro modo senão por contraste com o sentimento contrário. Contudo, O§ antagonis­mos que separam os próprios elementos do grupo podem ter os mesmos efeitos; dão mais reíevo à sua unidade porque, retesando, novamente apertando os vínculos sociais; os tornam mais sensíveis .. É certo que t_ambém pode ser um meio de rompê-los; mas, enquanto esse limite

- extremo nãofor- alcançado, tais coiifiitos que, á1íá8,' supõem um primeiro fundo de solidariedade, o tornam mais atuante, tenham ou não tenham consciência· disso os agentes. Assim,· os ataques, a que se entregam as diferentes partes de uma sociedade, umas contra as outras, têni freqüente­mente por conseqüência medidas legislativas que são destinadas a lhes dar um termo e que, tendo por origem o egoísmo e a guerra, dão à

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comunidade um -sentimento mais vivo de sua unidade e de sua solida­riedade. -Também, a concorrência econômica, pelas ações e reações que determina, põe em conexão mais intimamente os clientes e os comer­ciantes que, entre si, fazem concorrência, sendo que ela aumenta a dependência recíproca de ambos. Numa palavra, o desejo de anteci­par-se às oposições e de atenuar-lhes as conseqüências conduz a' acordos, a convenções comerciais ou outras que, embora nascidas de antagonis­mos reais ou latentes, contribuem de maneira positiva para ~ coesão do todo.

Esta dupla função da oposição, conforme esteja voltada para fora ou- para dentro, é também encontrada nas relações mais íntimas dos particulares e reveste-se de todos os caracteres de um fenômeno socio­lógico: porque os indivíduos também têm necessidades de se oporem, para permanecerem unidos. Essa oposição pode manifestar-se igualmente ou pelo contraste que apresentam as fases sucessivas de suas relações, ou então pela maneira segundo a qual o todo que eles formam se dife­rencia do meio ambiente moral que os envolve. Foi dito muitas vezes que a amizade e o amor necessita, vez por outra, de desavenças, porque a reconciliação lhes dá todo o seu sentido e toda a sua força. Contudo, estas mesmas sociações, sem apresentarem estas diferenças externas, podem vir a ser mais consCientes de sua felicidade, opondo-se ao resto do mundo, a tudo quanto aí ocorre e a tudo que dele se conhece. Esta segunda forma de oposição é, certamente, a mais elevada e a mais eficaz. A primeira possui tanto menos valor quanto mais os períodos alternados de acordo e de conflito sejam mais curtos e se sucedam mais de perto. Em seu grau mais baixo, ela é característica de uma condição em que a natureza das relações internas entre os indivíduos não tem, por assim dizer, mais importância, uma condição em que suas disposições respec­tivas estão à mercê dos acidentes exteriores, que umas vezes os reapro­ximam e outras vezes fazem com que uns se voltem contra os outros. Entretanto, ainda .neste caso, ela tem qualquer coisa de profundamente útil à conservação do ·vínculo social. A razão é que, quando as partes são raramente incitadas à tomar consciência de sua solidariedade JLquango,- ~1ll consegijê_n<;ia, 1êm _<!isso ~~11s u~ frági!_sentimento, nada pode ser mais adequado para estimulá-lo do que esses choques e esses conflitos perpétuos, seguidos de perpétuas -reconciliações. É da própria luta que nasce _a unidade.

Voltamos, assim, ao ponto de partida destas considerações. O fato de que a oposição pode servir à conservação do grupo é o exemplo mais tópico da utilidade que, nesse mesmo objetivo, é oferecida pela

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variabilidade social em geral. Porque, se é verdade que o antagonismo jamais morre completamente, está no entanto em sua natureza ser sempre um intervalo entre dois períodos de acordo. Por definição, isso é apenas uma crise, após a qual a união social se reconstitui em conseqüência das próprias necessidades da vida; e, sem dúvida, sucede isso mesmo, porque, tanto aqui como em qualquer parte, o que subsiste não tem relevo e não toma toda a sua força em comparação com a_ consciência, senão por contraste com o que muda. A unidade soCial é o elemento constante que persiste idêntico a si próprio, embora as formas parti­culares que ela recebe e as relações que ela mantém com os interesses sociais sejam infinitamente móveis; e essa constância tanto mais acusada quanto maior for essa mobilidade. Por exemplo, a solidez de uma união conjugal certamente varia, ceteris paribús, segundo a diversidade mais ou menos -grande das situações pelas quais os cônjuges passaram; isto porque essas mudanças realçam a inalterabilidade de sua união. Está na natureza das coisas humanas que os contrários se condicionam mutua­mente. Se a variabilidade importa de tal modo à conservação do grupo, não é apenas porque, a cada fase determinada, a unidade se opõe a essas variações passageiras, mas porque, em toda a seqüência dessas transformações, que não são jamais , as mesmas em cada vez, apenas ela se repete sem mudança. Ela adquire, assim, em face dessas _condições descontínuas, este caráter de fixidez_ e esta realidade que a verdade possui por oposição ao erro. A verdade, em cada caso particular, não tem um tipo de privilégio, uma vantagem mística sobre o erro; e, no entanto, ela tem muito mais chances de triunfar, razão pela qual é única, ao passo que os erros possíveis com! respeito a um mesmo objeto são em número infinito. Ela retoma, portanto, muitas vezes ao curso _dos pensamentos, não. como o erro em geral, mas como tal erro em particular. Desse modo, a unidade social tem oportunidades para se manter e reforçar-se através de todas as variações, porque essas últimas diferem sempre uma da outra, ao passo que ela ressurge sempre a mesma. Em conseqüência dessa disposição de coisas, as vantagens da variabili­dade, que foram enumeradas acima, podem ser conservadas sem que as variações que se produzem impliquem seriamente o próprio princípio

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Aqui encerramos este estudo que, pela própria natureza do assunto, não aspira de modo algum a ser completo, antes, tem por finalidade fornecer um exemplo do único método que, segundo nós, pode fazer da Sociologia uma ciência independente, e que consiste em abstrair a forma de sociação dos estados concretos, dos interesses, dos sentimentos

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que constituem seu conteúdo. Nem a fome, nem o amor, nem o trabalho, nem a religiosidade, nem a técnica, nem os produtos intelectuais são, por si mesmos, de natureza social; contudo, é o próprio fato da sociação que dá a todas essas coisas a sua realidade. Se bem que a reciprocidàde de ação, a união, a oposição dos homens apareça sempre como a forma de algum conteúdo concreto, no entanto somente -isolando essa formá mediante a abstração é que se poderá constituir uma ciência da socie,dade, no estrito sentido da palavra. Não importa que o conteúdo reaja sempre sobre o continente, isso em nada altera a questão. O estudo geométrico das formas dos cristais é um problema cuja especificidade de modo algum é diminuída pelo fato de que a maneira pela qual essas formas se realizam nos corpos particulares varie conforme a constituição química desses últimos. A quantidade de problemas que este ponto de vista permite. suscitar, parece fora de dúvida. Unicamente, dado que, até o presente, ainda não se soube fazê-lo servir para determinar um campo de estudos que seja específico à Sociologia, importa antes de tudo habi­tuar os espíritos a discernir, nos fenômenos particulares, aquilo que é propriamente sociológico e o que é da alçada de outras disciplinas; é a única maneira de impedir nossa ciência de ficar respigando eterna­mente no campo dos vizinhos. É a este fim propedêutico que responde a presente pesquisa.

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2. O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA *

Se deve existir uma Sociologia como ciência particular, é necessário que o conceito de sociedade como tal, por cima da agrupação exterior dos fenômenos, súbmeta os fatos sociais históricos a uma nova abstração e ordenação, de modo que se reconheçam como conexas e formando . assim objeto de uma ciência, certas disposições que até então só foram observadas em outras e várias relações.

Este ponto de vista surge agora mediante uma análise do conceito de sociedade, que se caracteriza pela distinção entre forma e conteúdo da sociedade - dév~ndo · ser acentuado que isso em realidade nada mais é do que uma metáfora para designar aproximadamente a oposição dos elementos que se deseja separar; esta oposição deve ser entendida em seu sentido peculiar, sem se deixar levar pela significação que tais designações provisórias possam ter em outros aspectos. Para chegar a esse objetivo, parto da mais ampla representação imaginável da sociedade, procurando evitar no possível a polêmica das definições. Â sociedade existe onde quer que vários indivíduos entram em interação: . Esta àção

_reciproca_stLpmdllZ_ semp_re por determinados_instintos ( Trieben) .ou para determinados fins. Instintos eróticos, religiosos ou simplesmente sociais; fins de defesa ou ataque, de jogo ou ganho, de ajuda ou instrução,

*Reproduzido de SIMMEL, G. Das Problem der Soziologie. In: -. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung. 5. ed;, Berlim, Duncker & Humblot, 1968. p. 4-2.1. Trad. por E.varisto de Moraes Filho.

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estes e infinitos outros fazem coní que o homem se encontre num estado de convivência com outros homens, com ações a favor deles, em conjunto com eles, contra eles, em correlação de circunstâncias com eles. Numa palavra, que exerça influência sobre eles e por sua vez as receba deles. Essas interações significam que os indivíduos, nos quais se encontram aqueles instili.tos e fins, foram por eles levados a unir-se, convertendo-se numa unidade, numa "sociedade". Pois unidade em sen-tido empírico nada mais é do que interação de elementos. Um corpo orgânico é uma unidade, porque seus órgãos se encontram numa troca mútua de suas energias, muito mais íntima do que com nenhum ser exterior. Um Estado é uma unidade, porque entre seus cidadãos existe a correspondente relação de ações mútuas. Mais ainda, o mundo não poderia ser chamado de uno, se cada parte não influísse de algum modo sobre as demais, ou se em algum ponto se interrompesse a reciprocidade das influências.

Aquela unidade ou sociação (V ergesellschaftung) pode ter diversos graus, segundo a espécie e a intimidade que tenha a interação - ~desde

a união efêmera para dàr um passeio até a família; desde as relações por prazo indeterminado até a pertinência a um mesmo Estado; desde a convivência fugitiva num hotel até a união estreita de uma corporação medieval. Pois bem, designo como conteúdo ou matéria da sociação tudo quanto exista nos indivíduos (portadores concretos e imediatos de toda a realidade histórica) - como instinto, interesse, filn, inclinação, estádo ou movimento psíquico -, tudo enfim capaz de originar ação ,sobre outros ou a recepção de suas influências. Em si mesmas, estas matérias· com que se enche a vida, estas motivações, ainda não chegam a ser social. Nem a fome nem o amor, nem o trabalho nem a religio­sidade, nem a técnica nem as funções e obras da inteligência constituem ainda sociàção quando se dão imediatamente e em seu sentido puro. A sociação só começa a existir quando a coexistência isolada dos indi­víduos adota formas determinadas de cooperação e de colaboração, que caem sob o conceito geral da interação. A sociação é, assiln, a forma, realizada de diversas maneiras, na qual os indivíduos constituem uma unidade dentro da qual se realizam seus interesses. E é na base desses

-~interesses-=-= ~tangíveis-~ o1.r -idea1s;- momeíitâneos-otcduraôouros;-éons:: dentes ou inconscientes; impulsionados causalmente ou induzidos teleolo-gicamente - que os indivíduos constituem tais unidades. · ·

Em qualquer fenômeno social dado, conteúpo e forma sociais cons­tituem uma realidade unitária. Uma forma social desligada de todo conteúdo não pode ter existência, do mesmo modo que a forma espacial

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não pode existir sem uma matéria da qual seja forma .. Tais são justa­mente os elementos, inseparáveis na realidade, de cada ser e acontecer sociais: um interesse, um fim, um motivo e uma forma ou maneira de interação entre os indivíduos, pelo qual ou em cuja figura aquele conteúdo alcança realidade social.

Pois bem, o que faz com que a "sociedade", em qualquer dos sentidos válidos da palavra, seja sociedade, são evidentemente as di­versas maneiras de interação a que nos referimos. Um aglomerado de homens não constitui uma sociedade só porque exista em cada um deles em separado um conteúdo vital objetivamente determinado ou que o mova subjetivamente. Somente quando a vida desses conteúdos adquire a forma da influência recíproca, só quando·· se produz a ação de uns sobre os outros ~ imediatamente ou por intermédio de um terceiro - é que· a nova coexistência social, ou também a sucessão no tempo, dos homens, se converte numa sociedade. Se, pois, deve haver uma ciência cujo objeto seja a· sociedade, e nada mais, deve ela unicamente propor-se como filn de sua pesquisa estas interações, estas modalidades e formas de sociação. Tudo mais que se encontra no seio da "sociedade", tudo o que se realiza por ela e em seus limites, não é propriamente sociedade, mas simplesmente um conteúdo que desenvolve esta forma de coexistência ou é por ela desenvolvido; somente se produz a figura real chamada "sociedade", no mais amplo e costumeiro sentido do termo, quando se juntam conteúdo e forma. Separar por abstração científi­ca estes dois elementos, forma e conteúdo, que são na realidade insepara­velmente unidos; sistematizar e submeter a um ponto de vista metódico, unitário, as formas de interação ou socíação, mentalmente desligadas dos conteúdos, que só por meio delas se fazem sociais, me· parece a única possibilidade de fundar uma ciência especial da sociedade como tal. Somente tal ciência pode realmente projetar os fatos designados sob o nome de realidade social-histórica no plano do puramente social.

Ainda que semelhantes abstrações - as únicas que produzem ciência da complexidade ou também da unidade do real _:, tenham surgido das necessidades internas do conhecilnento, elas também exigem alguma justificação na própria estrutura da objetividade. Pois somente na exiStênciaclealgui:iia relação fu:tiCion'lil comomundo dos fàtos, pode-se encontrar garantia contra um · problematismo estéril, contra o caráter acidental da formação de conceitos científicos. Destarte, erra o natura­lismo ingênuo crendo que o dado na realidade já contém os princípios analíticos e sintéticos da ordenação, mediante os quais pode esta reali­dade dada ser conteúdo da ciência. Contudo, as características do dado

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são mais ou ·menos suscetíveis de receber aquelas ordenações, COJ!lO, por exemplo, um retrato transforma fundamentalmente a aparência natu­ral humana, mas há rostos que se acomodam melhor que outros a esta transformação radical. De acordo com· isso, podemos avaliar a maior ou menor eficácia dos vários problemas e métodos científicos. O direito de submeter os fenômenos histórico-sociais a uma análise de formas e conteúdos, e levar as primeiras a uma síntese, repousa em duas condições que só nos fatos podem ser verificadas. De um lado, é preciso que uma mesma forma de sociação p·ossa ser observada em conteúdos totalmente diversos e em conexão com fins totalmente diversos. Por outro lado, é necessário que o mesmo interesse apareça realizado em formas de sociação completamente diversas, que lhe serviriam de meio ou veículo. Encontra-se um paralelo no fato de que as mesmas formas geométricas podem ser observadas nas mais diversas matérias e a mesma matéria nas mais diversas formas espaciais. O que se manifesta, de modo análogo, entre as formas lógicas e os conteúdos materiais do conhecimento.

·Estas duas condições são fatos inegáveis. Em grupos sociais que por seus fins e por toda sua significação são os mais diversos que se possam imaginar, encontramos as mesmas relações formais dos indivíduos entre si. Dominação e subordinação, competição, imitação, divisão do trabalho, formação de partidos, representação, coexistência da união para dentro e a exclusão para fora, e incontáveis formas semelhantes, se encontram tanto num Estado quanto numa comunidade religiosa, num bando de conspiradores como numa cooperativa econômica, numa escola de arte como numa família. Por mais diversos que sejam os interesses que levam a essas sociações, as formas nas quais esses interesses se realizam podem ser iguais. Por outro lado, o mesmo interesse pode revestir-se de formas bem diferentes. O interesse econômico, por exemplo, realiza-se tanto sob a forma de competição . como de organização phme­jada de produtores, em isolamento de outros grupos ou em fusão com eles. Os conteúdos religiosos de vida, permanecendo os mesmos, ora adotam uma forma liberal, ora uma forma centralizada de comunidade. Os interesses baseados nas relações sexuais são satisfeitos na variedade quase incalculável das formas familiares. O interesse pedagógico· pode

-levar-a-uma -relação-liberai- ou--a- uma-relaÇão- âe-spótiCaenfre professor • e discípulo, a uma interação individualista entre eles, ou a um tipo mais coletivista de interação entre o professor e a totalidade de seusdiscípulos. Assim, como pode ser idêntica a forma na qual se realizam os mais divergentes conteúdos, também a matéria pode permanecer idêntica, enquanto a convivência dos indivíduos em que se realiza se apresenta •

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numa grande variedade de formas. Vemos, então, que, se na realidade dos fatos, a matéria e a forma constituem uma unidade indissolúvel da vida social, pode-se extrair deles essa legitimação do problema sociológicO, que requer que as formas puras de sociação sejam identificadas, orde­nadas sistematicamente e estudadas do ponto de vista de seu desen­volvimento histórico.

Este problema está em completa oposição à maneira pela qual vieram sendo criadas as particulares ciências sociais existentes, pois, até agora, a divisão do trabalho entre elas está determinada pela diver­sidade do conteúdo. Tanto a economia política como o sistema das organizações eclesiásticas, tanto a história do ensino como dos costumes tanto a política como as teorias da vida sexual, etc., distribuíram entr; si de tal modo o campo dos fenômenos sociais, que uma Sociologia, que pretendesse englobar esses fenê>menos em sua totalidade, no indiferen­ciado de forma e conteúdo, nada mais seria do que uma soma daquelas ciências. Enquanto as linhas que traçamos através da realidade histórica; para distríbuí-la em campos de pesquisa distintos, unam somente aqueles pontos em que apàrecem os mesmos conteúdos de interesses, não haverá lugar nessa realidade para uma Sociologia independente. Necessita-se ao contrário de uma linha, que, cruzando todas as anteriormente traçadas, isole o fato puro da sociação ( die reine Tatsache der Vergesellschaftung), que se apresenta com diversas configurações em relação com os mais divergentes conteúdos e con~titua com ele um campo especial. Só deste modo se fará a Sociologia uma ciência especial, no mesmo sentido -salvando as diferenças evidentes de métodos e resultados - · como o conseguiu a teoria do . conhecimento, abstr~indo da pluralidade dos co­nhecimentos das coisas singulares . as categorias ou funções do conhe­cimento como tal. A Sociologia pertence àquele tipo de ciências, cujo caráter especial decorre, não de que seu objeto esteja compreendido junto com outros sob um conceito mais amplo (como Filologia clássica e germânica, ou úptica e Acústica), e sim de considerar de um ponto de vista especial o campo total dos objetos. O que a distingue das demais ciências históJico-sociais não é, pois, o seu objeto, e sim o modo de considerá~lo, a abstração particular que nela se processa.

-o-conceitO de-soCieaade tem -duas significaçÕes: que devem manter--se rigorosamente separadas ante a consideração científica. De um lado, ela é o complexo de indivíduos saciados, o material humano social­mente conformado, que constitui toda a realidade histórica. De. outro lado, porém, "sociedade" é também a soma daquelas formas de relação pelas quais surge dos indivíduos a sociedade em seu primeiro sentido.

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Assim, designa-se com o nome de "esfera", de um iado, uma matéria conformada de certo modo, mas também, em sentido matemático, a mera configuração ou forma, por força da qual, da simples matéria informe, resulta a esfera no primeiro sentido. Quando se fala em ciências sociais naquela primeira significação, seu objeto é tudo o que acontece na e com a sociedade. A ciência social, no segundo sentido, tem por objeto as forças, relações e formas, por meio das quais os homens se saciam; as quais, assim, em representação autônoma, constituem a "socie­dade" sensu strictissimo, que, como é evidente, não se desvirtua pela circunstância de que o conteúdo da sociação, as modificações especiais de seus fins e interesses materiais, decidam na maioria das vezes ou sempre sobre sua conformação especial. Seria totalmente errônea a objeção que afirmasse que todas essas formas - hierarquias e corpo­rações, concorrências e formas matrimoniais, amizades e usos sociais, domínio de um ou de muitos - nada mais são do que acontecimentos produzidos em sociedade já existentes, porque se já não existisse ante­riormente uma soCiedade, faltariam a condição e a ocasião, para que surgissem essas formas. Esta crença decorre de que, em todas as socieda­des que conhecemos, atua um grande número de tais formas de ligação, isto é, de sociação. Ainda que ficasse somente uma delas, sempre perma­neceria ainda "soCiedade", de maneira que todas elas podem parecer agregadas a uma sociedade já pronta, ou. nascidas em seu seio. Mas se

. imaginamos desaparecidas todas essas formas singulares, não resta mais nenhuma sociedade. Somente quando atuam estas relações mútuas, pro­duzidas por certos motivos e interesses, surge a sociedade. De, modo que, ainda que a história e as leis das organizações totais, assim surgidas, sejam coisas da ciência social em sentido amplo, contudo, como esta já se fragmentou nas ciências sociais particulares, cabe uma Sociologia em sentido estrito, com uma tarefa especial, a das formas abstraídas, que, mais do que determinar a sociação, constituem antes a própria sociação.

A sociedade, no sentido em que pode ser considerada pela Socio­logia, é ou o conceito geral abstrato que engloba todas essas . formas, o gênero do qual são espécies, ou a soma das formas que atuam em

-cada caso. Segue-se Claí;-deste-conceiio,-que um-númerodaao-ae-indi­víduos pode constituir uma sociedade, em maior ou menor grau. A cada novo aumento de formações sintéticas, a cada formação de parti­dos, a cada união pará uma obra comum ou num comum sentimento ou modo de pensar, a cada distribuição mais precisa da submissão e da dominação, a cada refeição em comum,_ a cada adorno que alguém use

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para os demais, o mesmo grupo vai-se tornando cada vez mais sociedade do que antes. Não há uma sociedade absoluta, no sentido de que deveria existir como condição prévia para que surjam esses diversos fenômenos de união; pois não há interação absoluta mas somente diversas moda­lidades dela, cuja emergência determina a existência da sociedade da ' .

qual não são nem causa nem efeito, mas ela própria de maneira ime-diata. Somente a extraordinária pluralidade e variedade destas formas de interação a cada momento emprestam uma apa;rente realidade histórica autônoma ao conceito geral de sociedade. Talvez resida· nesta hipóstase de uma simples abstração a causa da estranha indeterminação e !nsegu:ança CiJ.Ue teve este conceito nas reflexões da Sociologia geral, feitas ate agora. A mesma coisa aconteceu com o conceito da vida que não teve nenhum avanço substancial, enquanto a ciência o considerou como um fenômeno unitário, de realidade imediata. A ciência da vida só se estabeleceu em bases firmes, quando foram investigados os pro­cessos singulares que se verificam nos organismos, processos cuja soma e trama constituem a vida, unicamente quando se reconheceu que a vida consiste somente nos processos particulares que se dão nos órgãos e células; e entre estes. ·

Só desta maneira se poderá determinar o que na sociedade é real­mente "sociedade", como a Geometria determina o que, nas coisas espa­ciais, constitui realmente a espacialidade. A Sociologia, como teoria do ser-sociedade na humanidade, que também pode ser objeto de ciência em outros aspectos inumeráveis, encontra-se, pois, com as demais ciên­cias especiais, na mesma relação em que está a Geometria com as ciências físico-químicas da matéria. A Geometria cçmsidera a forma pela qual a matéria se torna um corpo empírico, forma que em si mesma só existe, de fato, na abstração, precisamente como ··as formas da sociação. Tanto a Geometria como a Sociologia deixam para outras ciências a pesquisa dos conteúdos que se realizam nas suas formas ou dos fenô­menos totais, de cuja mera forma a Geometria e á Sociologia se ocupam.

Apenas é necessário advertir que esta analogia com a Geometria não deve ir além da aclaração do problema fundamental da Sociologia, como intentado aqui. Antes de tudo, a Geometria tem a vantagem de dispor-em-seu campo-de modelos extremamentesimplesnos quais podem se conter as mais complicadas figuras; por isso pode construir todo o círculo das formas possíveis com relativamente poucas definições funda­mentais. No que diz respeito às formas da sociação, não se deve esperar em tempo previsível sua resoÍúção, nem sequer aproximada, em elemen­tos simples. A consequência disso é que as formas sociológicas, se

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podem ser aproximadamente definidas, só possuem validade para um círculo limitado de problemav Assim, se se diz, por exemplo, que a superordenação e a subordinação são formas que se encontram em quase toda sociação humana, pouco se conseguiu para todo este conhecimento geral. Do que se precisa é penetrar mais nas diversas espécies de superor­demição e da subordinação, nas suas formas especiais de realização. Naturalmente, tanto mais essas formas sejam determinadas, quanto mais se reduzirá o seu círculo de aplicabilidade.

Nos dias de hoje, costuma-se colocar toda a ciência diante desta alternativa: ou se dedica a descobrir leis válidas sem sujeição ao tempo, ou Sf' volta para a explicação e conceptualização dos processos singula­res históricos e reais. Contudo, não devem ser excluídos os inumeráveis fenômenos intermediários com que se ocupa a prática real das ciências. Essa alternativa é irrelevante à nossa concepção do problema da Sociolo­gia, porque esta concepção torna desnecessária a escolha entre as duas respostas da alternativa. O objeto que abstraímos da realidade pode, por um lado, ser considerado, do ponto de vista das leis, que, partindo . da pura estrutura objetiva dos elementos, se apresentam independente­mente de sua realização espaço-temporal. Têm a mesma validade, quer as realidades históricas as façam manifestar-se uma ou mil vezes. Por. outro lado, porém, aquelas formas de sociação podem ser examinadas, com igual validade, em relação à sua ocorrência em lugares e tempos específicos, e de seu desenvolvimento histórico em grupos determinados. A verificação, neste Óltimo caso, encontra-se na própria finalidade ~istó­rica, por assim dizer; no primeiro caso, é necessário colher material para a indução das leis que não se sujeitam ao tempo. Da competição, por exemplo, temos experiência nos mais diversos campos - na Ciência Política, na Economia, na História da Religião, na História da Arte, se nos apresentam incontáveis casos. Tudo consiste em verificar nos fatos o que significa a competição como forma pura da conduta humana, em que circunstâncias ela se apresenta e se desenvolve, como é ela modi­ficada. pela natureza particular de seu objeto; por que contemporâneas características formais e materiais de uma sociedade é ela acrescida ou reduzida; como se diferencia a 'competição entre os indivíduos da que

- .se-dá-entre-grupos.-Rm-uma-palavra,- de-vemes-verificar-o-que-a-c9mpe­tição é como forma de relação dos homens entre si; forma que pode envolver toda sorte de conteúdos, mas que, a despeito da grande varie­dade desses conteúdos, a forma mantém sua própria identid1;1de e prova que pertence a um campo regulado segundo leis próprias e suscetíveis de abstração. Nos fenômenos complexos, os elementos semelhantes se

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destacam como por um corte transversal, enquanto os dessemelhantes, isto é, os interesses que constituem os conteúdos, paralisam-se uns aos outros, reciprocamente.

Deve-se proceder de modo análogo . com todas as grandes relações e interações que formam as sociedades: organização de partidos; imi­tação; formação de classes e de círculos; subdivisões secundárias; a encarnação de tipos de interação· social nas estruturas especiais de natu­reza objetiva, ideal ou pessoal; o crescimento e o papel das hierarquias; a "representação" de grupos pelos indivíduos; o significado de um adver­sário ·comum para a solidariedade interna do grupo. A esses problemas fundamentais juntam-se outros que não menos ·.regularmente contêm a forma determinante dos grupos, e que são, ora fatos mais especiais, ora fatos mais complexos. Entre os primeiros, mais especiais, como exemplo, podem-se citar a significação dos "não-partidários" (que não formam partidos), dos "pobres", como membros orgânicos da sociedade, a determinação numérica dos elementos dos grupos, a do primus inter

pares e a do tertÜJS gaudens. Entre os segundos, fatos mais complexos, estão: a interseção de vários círculos nas personalidades individuais, a significação especial do "segredo" na formação de círculos, a modificação dos caracteres dos grupos em função ·da composição de seus membros por indivíduos que se encontram na mesma localidade ou pela agregação de elementos separados; e inumeráveis, muitos outros.

Como já indicado, prescindo aqui da questão de se existe uma igual­dade ,absoluta de formas com diversidade de conteúdo. A igualdade aproximada que apresentam as formas em circunstâncias materiais bem diferentes,. assim como o contrário, é suficiente para, em princípio, considerá-la- possível. O fato de que não se realize inteiramente esta

·igualdade mostra justamente a diferença que existe entre os fenômenos histórico-espirituais, com suas flutuações e complexidades, nunca comple­tamente racionalizávéis, e a capacidade da Geometria de abstrair com absoluta pureza de sua realização na matéria as formas submetidas a seu conceito. Tenha-se também em conta que esta igualdade de .modali­dades de interação, qualquer que seja a variedade do material humano e rea~,- e. -Vice~ versa, nada -mais é, em princípio; que um meio auxiliar para efetivar e justificar a distinção científica entre forma e conteúdo nas particulares manifestações de conjunto. Metod~logicamente, esta separação. ~eria necessária, mesmo quando as constelações dos fatos impedissem· a aplicação do processo indutivo, que do diverso extrai o igual, da mesma maneira que a abstração geométrica que a forma espa-

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cial de um corpo estaria justificada, ainda que esse corpo com essa determinada forma particular tenha existido uma única vez no mundo.

Não pode ser negado, todavia, que esta discus~ão representa uma dificuldade de metodologia. Por exemplo, no fim da Idade Média, certos mestres das corporações se viram forçados, pela extep.são das relações comerciais, a uma aquisição de materiais, a um emprego de companheiros, a uma utilização de. povos meios para atrair a clientela, que não mais se coadunavam com os antigos princípios corporativo~, segundo os quais cada mestre devia ter a mesma "recompensa" que todos os outros. Mediante essas inovações, . os mestres procur11ram colocar-sé fora desta estreita e tradicional unidade. Do ponto de vista sociológico puro, do ponto de vista da forma que faz abstração de conteúdo próprio, isso significa que a ampliação do círculo ao qual o indivíduo está vinculado pelas suas ações é acompanhada de uma articulação maior das indivi­dualidades, maior liberdade e maior diferenciação dos membros do círculo. Agora, ao que eu saiba, não existe nenhum método seguro para extrair daquele factum complexo, realizado em seu conteúdo, este sentido sociológico. Em outras palavras, não há método seguro par-a responder as questões, de como configurações puramente sociológicas e como inte­rações específicas dos indivíduos (abstração feita de seus interesses e instintos e das condições puramente objetivas) contêm o processo his­tórico. Pelo contrário, o processo histórico pode ser interpretado em diversos sentidos e, além disso, os fatos históricos gue atestam a realidade

das formas sociológicas específicas devem ser apresentados em sua .tota­lidade material. Numa palavra, carecemos de um meio que nos permita,

em todas as circunstâncias, discernir a forma e o conteúdo nos elementos

sociológicos. O caso é comparável à demonstração de um teorema geo­métrico por meio de uma figura desenhada com a inevitável contingência

e imperfeição de todos os desenhos. O matemático, porém, pode sentir-se seguro ao ªdmitir que, a despeito da imperfeição do desenho, o conceito da figura geométrica ideal é conhecido e compreendido como o único sentido essencial dos traços de giz ou tinta. Aqui, porém, o sociólogo não pode admitir suposição análoga; não pode ele distinguir entre a pura sociação e· o total fenômeno real por meios lógicos.

- ---Aestialfiira-;-a-pesar -do odium que alfaitemos -soore-no-s~--devemos- -falar de procedimentos intuitivos - por mais longe que estejam de qualquer intuição especulativa e ·metafísica. Referimo-nos a uma parti­cular disposição do olhar, pela qual se realiza a distinção entre forma e conteúdo. Esta intuição, por enquanto, só pode ser compreendida por meio de exemplos, até que mais tarde seja controlada por métodos ei-

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pressáveis em conceitos e que lhe dêem bastante segurança. E esta difi­culdade cresce mais ainda, não só porque não dispomos de uma técnica indubitável para o manejo do conceito sociológico fundamental (de sociação), mas também, ainda que este conceito possa ser efetivamente aplicado, há ainda muitos elementos nos fenômenos a serem estudados cuja subsunção a este conceito ou ao conceito de conteúdo continua arbitrária. Existirão, por exemplo, opiniões contrárias, sobre até que ponto o fenômeno do "pobre" é de natureza sociológica (quanto à forma e ao conteúdo), isto é, um resultado das relações formais que se operam dentro de um grupo, um resultado que é determinado pelas correntes e mudanças gerais que são o produto necessário da convivência dos ho­mens; ou até que ponto a pobreza pode ser/considerada simplesmente como uma determinação material de certas existências individuais, que deve ser·· estudada exclusivamente do ponto de vista de seus interesses econômicos (isto. é, de seus conteúdos).

Podem-se considerar os fenômenos históricos, de modo geral, de três pontos de vista fundamentais: considerando as existências indivi­duais, que são os portadores reais das situações; considerando as formas de interação, que, embora só se realizem entre existências individuais, não são observadas, contudo, do ponto de vista destas, e sim do ponto de vista da sua coexistência, colaboração e auxílio mútuo; considerando os conteúdos, formulados em conceitos, das situações e dos aconteci­mentos, nos quais se levam em conta, agora, não seus portadores ou as relações que mantêm entre si, e sim seu sentido .puramente objetivo, expresso na economia e na técnica, na arte e na ciência, nas normas jurídicas e nos produtos da vida sentimentf}l. Estes três pontos de vista

se misturam freqüentemente; a necessidade metodológica de conservá-los separados choca-se sempre com a dificuldade de ordenar cada um deles numa série independente dos outros, e com o forte desejo de obter uma

imagem única da realidade, que abranja todos os seus aspectos. E não poderá ser determinado em todos os casos quão profundamente um penetra no outro; de modo que, por maiores que sejam a clareza e o rigor metodológicos na colocação da questão fundamental, será difícil

evitar a ambigüidade. O estudo dos problemas particulares parecerá pertencer-tanto- a-uma -como a outra -categoria~ e, mesmo dentro de

uma delas, será sempre impossível manter-se com segurança no trata­

mento próprio, evitando o método próprio' das demais. Teriho a espe­rança de que a metodologia aqui indicada para . a Sociologia se torne mais segura e mais clara nas exposições dos problemas particulares, do que nesta fundamentação abstrata. Nas coisas espirituais não é raro -

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até é corrente, tratando-se de problemas os mais gerats e profundos que isso que, com uma imagem inevitável, temos de chamar de funda­mento, não se revele tão firme como o edifício erguido sobre ele. A prática científica, especialmente nos domínios até agora não cultivàdos,

· não pode prescindir de certo procedimento instintivo, cujos motivos e normas somente depois chegam totalmente à clara consciência e elabo­ração sistemática. Não é menos certo que o trabalho científico não pode em nenhuma esfera basear-se plenamente naqueles procedimentos pouco claros ainda, instintivos, que só encontram aplicação imediatamente na pesquisa particular; mas seria condená-lo à esterilidade, se diante de problemas novos se formulara aos primeiros passos um método já plena­mente acabado 1 •

Dentro do campo dos problemas que se constituem, ao separar de um lado as formas de interação, sociadora, e de outro o fenômeno total da sociedade, há parte das pesquisas aqui propostas que já estão fora, por assim dizê-lo, quantitativamente, dos problemas geralmente tidos como sociológicos. Se se considera a questão das ações que vão e vêm entre os indivíduos, e de cuja soma resulta a coesão da sociedade, manifesta-se em seguida uma série e até um mundo de tais formas de relação, que, até agora, ou não eram incluídas na ciência social, ou,

1 Se consideramos a infinita complicação da vida social e que os conceitos e méto­dos com que deverá ser dominada espiritualmente acabam de sair de sua primitiva rudeza, seria qiegalomania esperar desde logo, agora, um,a clareza profunda dos problemas e uina correção absoluta das respostas. Parece-me mais digno admitir isso de antemão, pois deste modo, pelo menos realizamos com decisão o começo, ao passo que, com a afirmação de já estar tudo concluído, faria questionável até mesmo a significação de tais propósitos. Assim, pois, os capítulo~ deste livro devem ser considerados como exemplos quanto ao método, quantó ao conteúdo, como fragmentos do que eu entendo que deva ser a ciência da sociedade. Em ambos os sentidos pareceria indicado escolher temas os mais heterogêneos possíveis, mesclando o geral e -o especial. Quanto menos, o que aqui se oferece, apareça envolvido numa conexão sistemática; quanto mais -afastadas estejam as suas partes, tanto mais amplo há de aparecer o círculo dentro_ do qual um aperfeiçoamento futuro da Sociologia unirá os pontos que já agora podem ser fixados isoladamente. Se eu mesmo destaco, ·desta maneira, o caráter fragmentário e incompleto deste livro, não quero com isso pretender me defender, com fácil precaução, contra

--objeções -desta -espécie;--Assim, se;- diante-do -ideal-de-uma--per-feição-objetiva,--a-­arbitrariedade indubitável na escolha dos problemas particulares e dos exemplos pareça uma falta, isso simplesmente viria provar que não consegui fazer compreender com bastante clareza meu pensamento fundamental. Trata-se aqui somente do começo e do guia para um caminho infinitamente longo; pretender a: plenitud-e sistemática seria, pelo menos, enganar-se a si mesmo. A plenitude somente pode ser alcançada pelo iii.divíduo no sentido subjetivo, comunicando tudo quanto con­seguir enxergar.

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quando o eram, mantinham-se incógnitas em seu significado fundamental e vital. Em geral, a Sociologia se tem limitado a estudar aqueles fenô­menos sociais nos quais as forças recíprocas dos seus portadores imedia­tos já se cristalizaram em unidades, ideais pelo menos. Estados e asso­ciações sindicais, sacerdócios e formas de família, constituições econô­micas e organizações militares, grêmios e municípios, formação de ~lasses e divisão industrial do trabalho - estes e outros grandes órgãos e sistemas pareciatn constituir a sociedade, preenchendo o círculo de sua ciência. :É evidente que quanto maior, quanto mais importante e domi­nante for uma província social de interesses · ou uma direção da ação, tanto mais facilmente ocorrerá a transformação da vida imediata, interindividual, em organizações objetivas, surgindo assim uma existência abstrata, situada mais além dos processos individuais e primários.

Somente que isto agora requer um complemento importante em dois sentidos. Ao lado dos fenômenos _ visív.eis que se impõem por sua extensão e por sua importância externa, existe um número imenso de formas de relação e de interação entre os homens, que, nesses casos particulares, parecem de mínima monta, mas que se oferecem em quan­tidade incalculável e são as que produzem a sociedade, tal como a conhecemos, intercalando-se entre lJ.S formações mais amplas, oficiais, por assim dizê-lo. Limitar-se a estas últimas seria repetir a antiga ciência dos órgãos internos do :corpo humano, que se dedicava aos grandes órgãos bem determinados: coração, fíg,ado, pulmão, estômago, etc., aban­donando os incontáveis tecidos que careciam de nome popular ou -que eram desconhecidos, mas sem os· quais aqueles órgãos bem determinados

nunca produziriam um corpo vivo. A vida real da sociedade, ta,l como

se apresenta na experiência, não poderia ser construída tão somente com aquelas formações do gênero indicado, que constituem os objetos

tradicionais da ciência social. Sem a intercalação de incontáveis sínteses pouco extensas, às quais é dedicada a maior parte destes estudos, ficaria fragmentada numa pluraliqade de sistemas descontínuos. O que dificulta a fixação científica dessás formas sociais, pouco visíveis, é ao mesmo

tempo o que as faz infinitamente importantes para a compreensão mais profunda da sociedade: é o fato de que, em- geral, não estão assentadas ainda éín orgâni.Zações-fottes, suptailidividuais;-e- sim que nelas a socie­

dade se manifeste, por assim dizer, em status nascens, naturalmente não em sua origem primeira, historicamente inexeqüível, mas no que traz

consigo cada dia e cada hora. Constlj.ntemente se ata, se desata e se ata de novo a sociação entr~ os homens, num constante fluir e· .pulsar,

que encadeia os indivíduos, ainda que não chegue a formar organizações

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propriamente ditas. Trata-se aqui dos processos microscópico-molecula­res, por assim dizer, que se oferecem no material humano, mas que constituem o verdadeiro acontecer, que mais tarde se organiza ou hipos­t~sia naquelas unidades e sistemas fortes, macroscópicos. Os homens se olham uns . aos outros, têm ciúmes mútuos, escrevem-se cartas, comem juntos, são simpáticos ou antipáticos, independente de qualquer inte­resse apreciável; o agradecimento produzido pela prestação altruísta possui o poder de um vínculo irrompível; um homem pergunta o caminho ao outro, os homens se vestem e se enfeitam uns para os outros, e todas estas e mil outras relações momentâneas ou duradouras, conscientes ou inconscientes, inconseqüentes ou fecundas, que se dão entre pessoa . e pessoa, e das quais se destacam arbitrariamente estes exemplos,. nos vinculam incessantemente uns aos outros. Em cada momento fiam-se fios deste gênero, se abandonam, se tornam a recolher, se substituem por outros, se tecem com outros. Aqui se encontram as interações que se produzem entre os átomos da sociedade, e que somente são acessíveis ao microscópio psicológico; mas produzem toda a resistência e elastici­dade, a variedade e unidade desta vida da sociedade, tão clara e tão misteriosa.

Trata-se de aplicar à coexistência social o princípio das ações infi­nitàs e infinitamente pequenas, que se revelou tão eficaz nas ciências da sucessão: a Geologia, a Teoria biológica da evolução, a História. Os passos infinitamente pequenos criam a conexão da unidade histórica; as interações de pessoa a pessoa, igualmente pouco visíveis, estabel~cem a conexão da unidade social. Tudo quanto acontece no campo dos con­tínuos contatos físicos e espirituais, as mútuas excitações ao prazer e à dor, as conversações e os silêncios, os interesses comuns e antagô­nicos, é o que faz com que a sociedade seja irrompível; de tudo isso dependem as flutuações de sua vida, mediante as quais seus elementos ganham, perdem, se transformam incessantemente. Talvez, partindo deste ponto de vista, se obtenha para a ciência social o que se obteve com o microscópio para a ciência da vida orgânica. Nesta, a pesquisa _se limi­tava aos grandes órgãos, claramente determinados, e cujas diferentes formas e funções se mostram a olho nu. Com o microscópio apareceu

- --lcvínculação- -do. processo vítai-com- os -seus menorerórgãos,-as-células; e sua identidade nas inumeráveis e incessantes interações que se dão entre elas. Sabendo como se unem ou se destroem umas às outras, como se assimilam ou se influenciam quimicamente, vemos pouco a pouco de que modo o corpo cria sua forma, a conserva· ou modifica. Os grandes órgãos em que se reuniram, formando existências e atividades separadas,

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como sujeitos fundamentais da vida e suas interações, não teriam nunca . feito compreensível a conexão da vida, se não se houvesse descoberto que a vida fundamental,, propriamente dita, é constituída por aqueles

. incontáveis processos que se dão entre os menores elementos, e q~e logo se combinam para formar os macroscópicos. Não se trata de analogia biológica ou metafísica entre as realidades da sociedade e o organ.ismo. Trata-se somente da analogia com· a consideração metodológica e seu desenvolvimento; trata-se de descobrir os delicados fios das relações mínimas entre os homens, em cuja repetição contínua se fundam aquelas grandes formações que se fizeram objetivas e que oferecem uma história propriamente dita. Estes processos primários, que formam a sociedade com um material individual imediato, devem/ser submetidos ao estudo formal, junto aos processos e organizações mais elevados e complicados; devem ser _examinadas as interações pàrticulares, que se manifestam em massa, mas às qu;:tis não está habituada a atual concepção teórica, consi­derando-as como formas constitutivas da sociedade, como partes da sociação. Sim, precisamente porque a Sociologia as tem somente consi­derado por alto, por isso mesmo é conveniente consagrar um estudo detido a estas modalidades de relação, aparentemente insignificantes.

Mas, exatamente porque assumem esta orientação, os estudos aqui expostos parecem não ser outra coisa do que capítulos da Psicologia, ou, talvez, de Psicologia Social. Agora, não cabe nenhuma dúvida de que todos os acontecimentos e instintos sociais têm seu lugar na alma; que a sociação é um fenômeno psíquico e que seu fato fundamental -de que uma pluralidade de elementos se converta numa unidade - não encontra anal~~ia no mundo do corpóreo, de vez que neste tudo está fixo na exterioridade insuperável do espaçÓ. Seja qual for o acontecer histórico que designemos com o nome de social, seria para nós um jogo de marionetes, não mais compreensível nem mais significativo que a confusão das nuvens ou o entrecruzamento dos ramos da árvore, se não reconhecêssemos que, sujeitos daquelas exterioridades, o que é mais essencial, 6 que interessa para nós, são somente motivações, senti­mentos, pensamentos, necessidades da alma. Teríamos chegado, assim, à compreensão_ causal de qualquer acontecer social, quando; partindo de certos dados- psicológicos- e seu -desenvolvimento-' segundo "leis psicoló­gicas" - por problemático que nos seja seu conceito -, pudéssemos deduzir plenamente esses acontecimentos. Também nenhuma dúvida existe de que o que compreendemos da existêncla histórico-social nada mais são do que encadeamentos espirituais que, mediante uma Psicologia, ora instintiva, ora metódica; reproduzimos e reduzimos à plausibilidade

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interior, ao sentimento de uma necessidade espiritual, . do desenvolvi­mento de que se ~rata.

Neste sentido, toda história, toda descrição de uma situação social, é um exercício de conhecimento psicológico. Mas há uma consideração de extrema relevância metodológica, mesmo de decisiva importância, para os princípios das ciências do espírito em geral, que o tratamento científico ·dos fatos anímicos não é automaticamente Psicologia. Mesmo nos casos em que usamos constantemente regras e conhecimentos psico-. lógicos, mesmo nos casos em que a explicação · de cada fato isolado só seja possível por via psicológica - como acontece na Sociologia -, o sentido e a intenção deste método não precisam referir-se à Psicologia. Isto é, não se dirigem à lei do processo anímico (que necessita ~e~ dúvida de um conteúdo determinado), mas a seu próprio conteúdo e suas configurações. Há aqui somente uma diferença de grau a respeito das ciências da natureza exterior, que, afinal, como fatos da vida espi­ritual, também se produzem dentro da alma. A descoberta de qualque~ verdade astronômica ou química, assim como a reflexão sobre elas, e um fato da consciência, que uma Psicologia perfeita poderia deduzir puramente das condições e desenvolvimentos da alma. Aquelas ciências (da natureza) surgem quando, em vez dos processos anímicos, tomamos como objetos seus conteúdos e conexões, analogamente a quando conside­ramos um quadro do ponto de vista de sua significação estética e da história da arte, sem levar em conta as oscilações físicas que produzem suas cores e que constituem e suportam a existência real do quadro como um todo. Há sempre uma realidade, que não podemos apreender cientificamente em sua totalidade e imediaticidade, mas que deve ser consi­derada de diversos pontos de vista separados, criando assim uma plura­lidade de objetos científicos independentes uns dàs outros. Isto se aplica também àqueles fenômenos anímicos cujos conteúdos não se reúnem num mundo espacial autônomo e que não se_ contrapõem intuitivamente à sua realidade anímica. As formas e leis qe uma língua, por exemplo, q~e se formou por forças da alma e para fins da alma, são objeto de uma ciência da linguagem que abandona completamente aquela realização do seu objeto, e o expõe, analisa e constrói por seu conteúdo objetivo e-pelas fo-rmas que se- dão nest_e_ mesmo-contelído. - o--- - ---

Analogamente, dá-se a mesma coisa com os fatos da sociação. Que os homens se influenciem uns aos outros, que alguém faça alguma coisa ou a sofra, mostre-se como um s_er ou se transforme, porque outros existem, se manifestem, ajam ou sintani,:':tudo isso é naturalmente um fenômeno anímico. E a produ_ção histórica de cada caso · individual

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somente pode ser compreendida mediante formações psicológic-as, me­diante séries psicológicas plausíveis, mediante a interpretação do exte­riormente observável por meio das categorias psicológicas. Mas um particular propósito científico pode ignorar inteiramente esté acontecer anímico como tal, atendendo somente aos conteúdos do mesmo, que se ordenam sob o conceito de soeiação, para caracterizá-los, distingui-los e pô-los em relação. Assim, por exemplo, observa-se que a . relação de um poderoso com outros mais fracos, que tem a forma do primus inter pares, tende tipicamente a levar à posse de poder absoluto do mais forte, com eliminação gradual de qualquer elemento de igualdade. Ainda que na· realidade histórica é este um processo anímico, o que nos inte­ressa, do ponto de vista sociológico, é somente: como se sucedem os diversos estádios de superordenação e de subordinação? Até que ponto é a superordenação numa dada relação compatível com a coordenação em outras relações? Em que medida o predomínio aniquila completa­mente a coordenação? Se a união ou possibilidade de cooperação são maior~s nos estágios anteriores ou posteriores desta evolução, e assim por dtante. Ou bem se descobre que as hostilidades são mais amargas quando nascem de Uma antiga e ainda sentida comunhão ou solidariedade como se diz que o ódio mais ardente é o que se dá entre parentes: Como resultado, isso somente pode ser compreendido, ou mesmo descrito· psicologicamente. Considerando este fenômeno como formação socioló~ gica, no entanto, o que tem interesse , não é o processo anímico que se desenvolve em cada um dos dois indivíduos, e sim a sinopse de ambos sob as categorias de união e desavença. Até que ponto a relação entre dois indivíduos ou partidos pode conter hostilidade e solidariedade, para conservar ao todo a coloração de solidariedade ou lhe dar a de hostili­dade? Que espécies de solidariedade devem ter existido para que, agindo como recordação ou instinto inextinguível, proporcione os meios mais adequados para produzir no adversário um dano mais cruel e mais pro­fundo do que seri~ possível entre pessoas antes estranhas? Numa palavra, como pode aquela observação ser apresentada como realização de for­mas de_ relação entre os homens? Que particular combinação de cate­g.ori~s sociológicas a12rese~ta? Isto é o que in1p_orta, ainda que a descrição sm~~ar ou típica do próprio acontecimento tenha de ser sempre psi-cologica. ·

Voltando a uma indicação anterior, e ignorando todas as diferenças, pode-se comparar o procedimento da Sociologia com a dedução socioló­gica num quadro-negro em que se encontrem figuras desenhadas. Tudo que é dado e visto aqui, nada mais são do que traços físicos de giz, mas

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quando estamos interessados em sua significação geomét~ca não ~~s referimos a esses traços, e sim à signifi<:ação que. lhes ~~ o concel o geométrico, que é completamente heterog.eneo da fi?ura flstca, formada

or traços de giz. Por oütro lado, esta figura, prect.same?te ,c~mo uma ~strututa física, pode ser objeto de outras categonas :len~l~lc~s . e de outras considerações especiais, tais como- a ~~a produçao flS·l~logic~:_ a sua composição química e a sua impressao otlca. Neste ~entl ~· en.ao, s dados da Sociologia são processos anímicos, cuja realidade tme~Ia~a

~e oferece primeiramente nas categorias psicológicas. Mas estasd am ~ ue indis ensáveis para a descrição dos fatos, permanecem fora o. pro

~ósito dap consideração sociológica, a qual consiste somente na realidade objetiva da sociação, realidade que, para ser segura, A se s~tenta em

sí uicos único meio às vezes de descreve-la. o me~mo pr~~~ss~~ pdr~ma do começo ao fim, contém somente processos p~lco­~ . 's e pode se; compreendido somente psicologicamente; apesar, disso, s~~c~bjetivo não são os conhecimentos psicológico~, mas as,~mtes~s que resultam dos pro:essos aní~i~o~, do ponto de vista do tragico, a forma artística, dos Slmbolos vltals . . as

Ao sustentar que a teoria da sociação como tal - Isolad~ de to~as ciências sociais determinadas por um conteúdo.~ar~icular da vida soctal­, , nica que tem direito de ser chamada de ciencta, deve-se ter em conta e a u - d e mas a desce-que o importante naturalmente não é a questao o nom ' r . berta daquele novo complexo de proble~as ~articulares. A po emlca a respeito da significação própria da SoclOl~gta ,parece-m.e ~o~o d~!~ · · · · rtA ia se se trata tao-so da atnbmçao . mtetramente sem Impo anc ' Ih esta título a problemas já existentes e estudados. Se se esco _e para brir coleção de problemas o título de Sociologia, com a pretensao '~e co C totalmente só com ele, o conceito da Sociologia, será necessano en ao

' d bl que inegavelmente, por . f f , -lo perante outro grupo e pro emas ' ~~:~ t~aas ciências sociais (de conteúdos determinados)' procuram . esdta-b . d de como tal e como um to o. belecer certas afirmações so re a socte a d d . diata~

Como cada ciência exata, destinada a compreender o . a .o ~me. f1 mente, a ciência social está também cercada por duas dlSClphnas 1 o-

. - a nova maneira de considerar os fatos deve apoia~ os dife-2 A mtroduçao de um . , 1 . s de campos já conhecidos; mas

rentes aspectos de seus metodos . er ·tna ogla m virtude do qual o princípio de unicamente o proces.so - talv~z ~n m\~ -:~ ~oncreta (realização que se legitima sua execução se realiza dentro a, mves Iga?a 1 ias e mostrar a igualdade de como fecunda)' pode f~er . superf~uas t~:s. ana ~~e processo vai desfazendo as forma encoberta pela diversidade e ma enas. érfluas obscuridades dessas analogias, na medida em que as torna sup .

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sóficas. Uma delas se ocupa das condições, dos conceitos fUlldamentais e dos pressupostos de qualquer investigaÇão isolada. Estes problemas não podem encontrar em si mesmos a sua conclusão, sendo antes seus antecedentes necessários. Na outra disciplina filosófica; esta investigação isolada tende à perfeição e à conexão, e posta em relaÇão com questões e conceitos, que não ocupam nenhum lugar na experiência e no saber objetivo imediato. Aquela é a teoria do conhecimento do incerto domínio particular. A última encerra propriamente dois problemas que, todavia, costumam permanecer confundidos, com razão, no exercício real do · pensamento. O sentimento de insatisfação que nos produz o caráter fragmentário dos conhecimentos particulares, o prematuro fim das cons­tatações objetivas e das séries demonstrativas, leva a completar estas imperfeições com os meios da especulação, e exatamente estes mesmos meios servem também à necessidade paralela de completar a inconexão e a estranheza recíproca daqueles fragmentos, reunindo-os na unidade de um todo. Junto a esta função metafísica, que atende ao grau do conhecimento, caminha uma outra para outra dimensão da existência, na qual reside a interpretação metafísica de seus conteúdos: nós expres­samos esta função como o sentido ou o fim, como a substância absoluta sob os fenômenos relativos, e também como o valor ou o significado religioso. Diante da sociedade, esta atitude espiritual produz questões como estas: é a sociedade o fim da existência humana ou um meio para o indivíduo? Longe de ser um ,meio, não será ao contrário um obstáculo? Reside seu valor em sua vida fUllcional ou na produção de um espírito objetivo, ou nas qualidades éticas que produz nos indi­víduos? Manifesta-se nos estágios típicos da, evolução da sociedade uma analogia cósmica, de modo que as relações sociais dos homens teriam de ordenar-se numa forma ou ritlno geral que, sem manifestar-se nos fenômenos, seria o fundamento de todos os fenômenos, e que dirigiriá também as forças das raízes dos fatos materiais? Enfim, podem ter as coletividades um sentido metafísiCo-religioso ou é este reservado às almas individuais? · · '

Mas estas e inumeráveis questões de natureza análoga, não me parecem possuir a independência categoria!, a relação peculiar entre objeto -e-método,-que as -legitimaria co:rrió bases para considerar a Socio­logia como uma nova ciência ao lado das já existentes. Todas elas são questões puramente filosóficas,· e que elas tenham escolhido por objeto a sociedade significa somente que estendem a um novo campo um modo de conhecimentos que, por sua estrutura, existem já de há muito. Em conclusão, reconheça-se ou não como ciência a filosofia, o certo é que

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a filosofia da sociedade não tem nenhum dire~to p~ra subt~ai~-se às vantagens ou desvantagens de sua lig~ção .com a filosofia, constltmndo-se como uma ciência particular da Soc10log1a. . . , .

A mesma coisa ocorre com o tipo de problemas fllosoflcos que não têm, como os anteriores, a sociedade por pressup~sto, mas q~e, a~ contrário, questionam os pressupostos da própria soc1e~ade. Nao n sentido his~órico, como se tratasse de desc;~ver o aparec1m~n~o de um~ sociedade determinada ou das condições flSlcas ou antropolog1cas ~om fundamento para que ~urja a sociedade: Também não se trata aqm dos diferentes instintos que levam o sujeito a realizar, em co~tato. com outros sujeitos, aquelas interações cujas modalidades a Soc10~o~a des~rev_e~ Trata-se de determinar 0 seguinte: quando aparece tal suJe~to, qua1s sa os pressupostos de sua consciência, de ser. um en:e socml? Naquelas partes tomadas em si e para si, não há amda soctedade; ~a~ f~rmas de interação esta já existe realmente: quais são, pois, as con?tçoes mte~­nas e fundamentais, baseados nas quais os indivíduos pr?~t?os de ta1s instintos produzem sociedade? Qual é o a priori que poss1b~lta e f~rn:a a estrutura empírica do indivíduo como ser social? Como s~o poss1vets, não somente as formas particulares empirica~ente pr?duztdas, que se incluem no conceito geral de sociedade, e s1m a sociedade em geral, como forma objetiva de almas subjetivas?

3. O CAMPO /DA SOCIOLOGIA *

A tarefa de informar a respeito da Sociologia como ciência choca-se com uma primeira dificuldade, pelo fato de que sua reivindicação ao título de ciência não é, de modo algum,. incontestada. Mais ainda, mesmo que lhe seja concedido tal título, as opiniões sobre seu conteúdo e seus objetivos apresentam um quadro vasto e caótico. As contradições inter­nas e os pontos obscuros são tantos que realimentam sempre de novo a dúvida, se nós, de fato, nos encontramos diante de uma problemática cientificamente bem colocada, ou não. A ausência, nela, de uma defi­nição segura e indiscutível de seus limites; ainda seria perdoável se, pelo menos, abrangesse um conjunto de problemas específicos dos quais outras ciências não tratassem (ou não tratassem exaustivamente), e esses problemas contivessem o fato ou o conceito ·de "sociedade" como um elemento, e, em seu contexto, possuíssem um ponto de contato comum. Fossem eles tão distintos também em outros conteúdos, outras Ôrien­tações ou outras formas de solução, de modo a não permitir que viessem a ser discutidos como provável ciência unitária. O conceito de Sociologia lhes proporcionaria, sem dúvida, um abrigo fl!'2visório; e, no mínimo, ficarüi garantidoo macio como haveríamos-ele investigá-los. Do mesmo modo relativo com que o conceito de técnica tem plena legitimidade de

*Reproduzido de SIMMEL, G. Das Gebiet der Soziologie. In: -. Grundfragen der Soziologie. 3. ed., inalteraçla. Berlim, Walter de Gruyter, 1970. p; 5-6, 8-14, Üi-8, 23-4. Trad. por Otto E. W. Maas. Tradução revista pelo Organizador.

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se aplicar a um vastíssimo campo de objetivos diversos, sem que o mesmo promova a compreensão ou a solução de cada objetivo, em part~cu~ar a ponto de atribuir um característico comum nesse v oca bulo ( tecmca). Só que essa frágil conexão dos mais variados problemas, que, em todo caso, oferece a possibilidade de uma unidade num nível mais profundo, parece desintegrar-se diante da problemática do conceito de socied~de, do único vínculo a garantir a coesão, ou ·seja, diante da problemátiCa, na qual, em princípio, procura estribar-se a negação da ~ociologia. Deveras curioso é verificar-se que, tanto em sua versão restnta, quanto em sua versão mais ampla, esse conceito se prende às provas contra a existência da Sociologia como ciência. Ouve-se dizer que toda a existên­cia real reside exclusivamente nos indivíduos, nas suas constituições naturais- e nas suas vivências, que a "sociedade" não passa de uma abstração, cujo valor prático é inestimável e cuja utilidad.e .é ime~sa para a síntese transitória dos fenômenos, contudo não constltm a socte­dade um objeto real, além dos seres individuais e dos processos que nestes se verificam. Ora, examinados, cada um destes últimos, sob o prisma da lei natural e do contexto histórico em que se inserem, objeto real algum pode restar para outra ciência qualquer, distinta, que a eles se refira. Se, para essa crítica, a sociedade dispõe de poucos elementos para demarcar um âmbito de ciência, o mesmo tamb~m ·acontece q~a~do se lhe atribui uma extensão demasiado excessiva. Aflrma-se, neste ultlmo. sentido, que tudo que os homens são e fazem dentro da socieda~e é por' ela determinado e ocorre como parte de sua vida. Por conseg~mt~, não haveria nenhuma Ciência das coisas humanas que não fosse ctencta da sociedade. Assim, em lugar das ciências históricas, psicológicas e normativas, todas artificialmente isoladas c.omo ciências particulares, deveria, pois, haver uma só ciência da sociedade que, em sua unidade, seria capaz de expressar o fato de todos os interesses, conteúdos e fatos humanos se integrarem como unidades concretas através da sociação. Obviamente, esta determinação, que pretende dar tudo à Sociologia, ti~a­-lhe tanto quanto lhe tira aquela primeira que nada pretende lhe con-ceder. [ ... ] .

_ Essa obstinada afirmação de que, afinal, só existem indivíduos hum;~os- e-d;q~e so~ente ~les concretamente se constituem-em . óojetds de ciência, não pode impedir, no entanto, que falemos de história do catolicismo-ou da social-democracia, de cidades e reinados, de movimento feminista da situação do artes~nato ou de milhares de outros eventos de conj~ntos ou de formas coletivas, inclusive da própria _ socieda~e. Expressa nestes termos, a sociedade constitui, obviamente, um conce1to

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abstr~to. Mas todas as inúmeras formas e grupos particulares que este conc~lto abrange, não somente constituem objetos de pesquisa, como tambem merecem ser pesquisados, que de modo algum se reduzem às formas' individuais de existência isoladamente assumidas.

Talvez se deva a uma imperfeição do nosso conhecimento, ou mesmo seja transitoriamente inevitável que nosso conhecimento tenha de buscar seus princípios básicos (atingíveis ou ,não) nos seres indivi­duais considerados como existências concretas definidas. No entanto, e a rigor, nem mesmo os indivíduos podem ser considerados como ele­mentos últimos, ou seja, não podem ser interpretados como "átomos" do m~ndo humano. Na verdade, a unidade talvez indissolúvel, que o co~celto de indiví?uo nos sugere, não chega a constituir, de modo algUfD, objeto do conhec1mento, mas somente da vivência. A maneira de cada um saber que a unidade existe em outro ser não se compara com nenhuma outra forma de saber. Aquilo que cientificamente conhecemos nos outros homens são traços individuais e particulares que talvez somen­te se apresentam uma unica vez, talvez mesmo em situação de influência recíproca, a exigir, em cada caso particular, uma forma de consideração ~ d.e ,sondagem relativamente isolada. Esta sondagem importa, em cada md1v1duo, na consideração da influência de inúmeros fatores de natureza física, cultural e pessoal, geradas de toda parte e de todas as direções, estendendo-se indefinidamente pelo tempo. E é somente na medida em que isolamos e compreendemos tais elementos, na medida em que os reduzimos a elementos mais simples, profundos e distantes, que nos aproximamos daquilo que é realmente "último", ou seja, real e rigorosa­mente básico para qualquer síntese espiritual de ordem superior. [ ... ]

E se a verdadeira realidade somente cabe às verdadeiras unidades últimas, e não. aos fenômenos em que essas unidades encontram sua forma, e toda forma, por constituir sempre uma ligação, acrescentável por um sujeito que estabelece a ligação, é óbvio então que nos escapa por completo a realidade que se pretende conhecer. Também é totalinente arbitrária a linha divisória que conclui esta rearticulação sobre o "indi­víduo". Isso porque, para a análise progressiva em curso, apresenta-se forçosamente este indivíduo como um conjunto de qualidades, destinos e forças- sin!ru1ares, oéfu como de decorrênCias liisfóricas, que, ~m relação ao indivídu9, são realidades elementares, ~orno o são os indivíduos em relação à "sociedade".

Assim, o pretenso realismo, que endereça aquela crítica ao conceito de sociedade _e, por extensão, à Sociologia, faz desaparecer precisamente qualquer realidade cognoscível, por afastá·la até o infinito e procurá-la

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no domínio do intangível. O conhecimento deve, de fato, ser concebido de conformidade com um princípio de estruturação bem diferente. Deve ser conççbido como princípio que subtrai do compl~~o mundo .fenomenal externo uma série de objetos especificamente diferentes, mas Igualmente capazes de serem reconhecidos como definitivos e unitário~. A distância variável em que o espírito se coloca em relação ao refendo. complexo simboliza perfeitamente essa situação. [ ... ] A • •

A diferença existente apresenta~se somente com referencm aos dl­versos· propósitos do conhecimento, aos quais corr.espondem distancia-mentos· diversos. ·

Poder-se-ia mesmo fundamentar de forma mais radical ainda a validade da visão científica da sociedade, em sua independência do fato de que todo o evento real se .cumpre som~nte no in~i':'íduo. Nem m~sm? é verdade que com o conhecimento das diferentes senes de eventos znd~­viduais se capta a realidade imediata. Essa realidade, como tal, m~n.l- · festa-se, a princípio, como um complexo de imagens, como uma s~~e~f1c1e de fenômenos justapostos em seqüência ininterrupta. Se sub.dlVld~m~s essa existência (Dasein), de fato realmente original, em destmos mdl­viduais, ligando a simples factualidade dos fenômenos a sujeitos singu­lares, deles fàzendo os pontos de entroncamento em que a mesma s.e condensa - se realizamos isso, também estamos realizando uma confl-

- guração espiritual, ulterior, da realidade imediata que a nós se apresenta. :É uma configuração, que, por puro hábito, realizamos naturalmente, comci algo totalmente inequívoco e manifesto na própria nature:za das coisas. Se se quiser, pode-se dizer que essa configuração é subjetiva, mas também, por dar uma imagem válida do conhecimento, igualmente objetiva, como a síntese do que. se nos apresenta sob a categori~ da sociedade. São apenas os fins especiais do conhecimento que dec1dem se a realidade imediatamente manifestada ou vivida deve ser estudada em fuÍlção de um sujeito pessoal ou de um sujeito coletivo. Ambas as posições são, indistintamente, "pontos de vista"; são posições que não estão uma para outra como a realidade está para a abstração, mas como modalidades da nossa própria reflexão; ambas afastam-se da "realidade". Dessa realidade que, como tal, de modo algum pode constituir ciência, mas assume a forma -d·e conhecimento somerite- a traVes de -semelhantes categorias.

Mas sob um ponto de vista bem diverso, deve-se conceder ainda que a existência humana só se realiza em indivíduos, sem com isso sacrificar ·a validade do conceito de sociedade. Tomando-se este em sua acepção mais geral, entende-se por sociedade a interação psíquica

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que se verifica entre 'indivíduos. Contudo, não deve causar espécie, nem vai contra tal determinação, o fato de certos fenômenos fronteiriços não parecerem conformar-se facilmente com ela. Quando duas pessoas se olham fortuitamente ou quando várias delas se comprimem numa fila de bilheteria, não se pode ainda, só por isso, admiti-las como saciadas (vergesellschaftet). No entanto, por superficial e passageira que seja essa açãci recíproca, ainda assim mesmo poder-se-ia falar em sociação, no caso e na medida em que, eventualmente, essas interações se tornem mais freqüentes e intensas, numa associação de umas com as outras do mesmo gênero, a fim de justificar essa designação. Prende-se ao uso superficial da palavra - sem dúvida, satisfatório para a prática externa - querer reservar a denominação de sociedade somente à relação recí­proca duradoura, somente àquelas já objetivadas em formas que se constituem em unidades perfeitamente caracterizadas, como as de estado e família, corporações e igrejas e ligas, etc. Mas, fora estas, existem

·. inúmeras outras formas de relações e tipos de interação entre os homens. Existem casos isolados de formas aparentemente insignificantes, formas que se misturam e desaparecem entre as formas sociais, por assim dizer, oficiais, mas, na verdade, constroem todas elas a sociedade tal como a conhecemos.

_ Todos esses grandes sistemas e organizações supra-individuais, que habitualmente nos vêm ao espírito quando pensamos em sociedades, nada mais são que cristalizações - sob a forma de quadros perma­nentes e de formações independentes - de interações diretas entre os indivíduos de forma permanente, a todo o instante e por toda a vida. Com isso eles certamente . adquirem existência autônoma e leis próprias, com as quais também podem confrontar-se e opor-se a essas vitalidades mutuamente determinantes. A sociedade, no entanto, cuja vida se realiza num fluxo incessante, significa que os indivíduos se encontram vinculados uns aos outros por força da influência mútua. e da determinação recí­proca que exercem uns sobre os outros. Por conseguinte, a sociedade se apresenta como algo de funcional, como algo que os indivíduos fazem e suportam ao mesmo tempo. Por· esse caráter fundamental, não se deveria falar em sociedade, mas em s~iação._ Soci~ciade, então, é somente

-(i nome para círculos de indivíduos vinculados entre si por esses tipos de relações recíprocas. Diz-se que esses indivíduos, assim relacionados, constituem uma. unidade, a exemplo do que oco_rre com os sistemas de massas corpóreas, as. quais, por ação recíproca, se determinam perfeita­mente, razão pela qual são consideradas como constituindo uma unidade. Agora, no que se refere a esta última, pode-se insistir que a "realidade"

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genuína somente existe nas partes materiais e individuais que _constituem essa unidade; que os movimentos e alterações que as refendas partes provocam entre si, reciprocamente, não são palpá~eis, constituindo ~o­mente realidades de segundo grau; que estes movimentos e alteraçoes só tenham lugar nas mencionadas unidades de substânc~a;A qu~ _a cham~~a unidade não é senão a visão de conjunto dessas extstenctas matenats especiais, cujos impulsos e formações, recebidos ou emitidos, permanecem, no entanto em cada uma das mencionadas existências. Neste mesmo sentido, po,de-se, outrossim, admitir também que apenas os indivíduos humanos sejam realidades propriamente ditas; contudo nada_ s~ lucra com isso. A sociedade, então, deixa por assim dizer de constltmr subs­tância, ou qualquer coisa concreta em si, nada mais sendo do que um acontecimento, com a função mediante a qual cada um recebe de out:em, ou lhe comunica, um destino e uma forma. Assim, em busca do tang1Vel, encontraríamos somente indivíduos, e, entre eles, por sua vez, nada mais do que espaço vazio. [ ... ]

A compreensão, de que o homem em todo o seu ser e em todas as suas manifestações define-se por viver em interação com . outros homens, deverá conduzir, na verdade, a um reexame de perspectiva de; todas as chamadas ciências do espírito.

Os grandes conteúdos da vida histórica - a língua e a reli~ião, a formação dos estados e a cultura material - não encontravam amda nenhuma explicação, em pleno século XVIII, ·senão com "invenções"

. de certas pessoas especiais. Mas quando o entendimento e os interesses dessas pessoas não pareciam bastar para tal realização, restava somente

0 apelo a forças transcendentais, para as quais, de resto, o "gênio': ~e cada inventor formava um plano intermediário. O conceito de gemo nada mais exprimia senão o fato de que as forças do indivíduo, _conhe­cidas e concebíveis seriam insuficientes para a prQdução efetiva do fenômeno. Nessas circunstâncias via-se na líng\la a invenção dos indiví­duos ou uma dádiva div,ina. A religião, como evento histórico, seria _a invenção de espertos sacerdotes ou da vontade divina; as leis morais seriam cunhadas por heróis das massas ou concedidas ao- homem ~or

_ -Deus,-_ ou -pela ~'Natureza", hipóstase não m.eno~ In_ísj:i_ca -'l~~ a ~ll!en__()! · A visão social dessa produção decorre, por sua vez, ·· prectsamente das alternativas incompletas aqui citadas. todas aquelas. formaÇões ~esultam . das relações recíprocas que se estabelecem entre os· homen~, ou as vez:s são as próprias relaÇões aqui citadas, relações que, efetlva~e~~e, sao indeduzíveis do indivíduo em si. Ao lado daquelas duas posstbihdades, agora se justapõe a terceira: a produção dos fenômenos através da vida

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social, em duplo sentido. Primeiramente, pela ação recíproca e justapostÇJ. dos indivíduos, ação que produz"<fentro de cada um o que, a partir dele, não se explica; em segundo \lugar, pela sucessão das . gerações, cuJas heranças e tradições se fundem solidamente com as aquisições peculiares do indivíduo, fazendo com que o homem social, ao contrário de qualqueF vida subumana, não seja apenas um descendente, mas _pro~ priamente um herdeiro. Mediante a conscientização desse tipo de pro­dução social, que se insere entre o tipo meramente individual e . o transcendente, um método genético acabou por impor-se a todas as ciências do espírito, como um novo instrumento para a solução dos seus problemas - digam respeito ao Estado ou à organização da Igreja, à língua ou ao código moral. A Sociologia n~o constitui somente uma ciência com . objeto próprio e distinto, diante das outras ciências, em termos de divisão do trabalho, mas chega mesmo a constituirj por si, um método das ciências históricas e do espírito. Para que dela possam servir-se, tais ciências não têm que abandonar, em absoluto, sua posição já conquistada. Diferentemente do que admite um conceito fantástico e exagerado da Sociologia, nada as obriga a se integrarem na Sociologia como parte desta. Pelo contrário, esta se coaduna com qualquer área específica de pesquisa, seja essa área de natureza econômica, histórico­-cultural, ética ou teológica. Neste sentido, porém, o comportamento da Sociologia não difere essencialmente do que assumira, no passado, a indução, -CJ.ue, na qualidade de novo princípio de pesquisa, penetra em quaisquer grupos possíveis de problemas, contribuindo para novas solu­ç~es das questões que propõem. Mas nem por isso constitui-se a indução em nenhuma ciência especial, ou mesmo abrangente, e a mesma coisa sucede com a Sociologia, no que se refere ai esses caracteres. Na medida em que ela se baseia na necessidade de que o homem deve ser com­preendido como um ser social, e na que a sociedade é a portadora de todos os acontecimentos históricos, não cabe à Sociologia nenhum objeto que já não tenha sido tratado por alguma das ciências existentes. Cons­titui somente uma nova via à disposição dessas ciências, um método científico que, por aplicar-se à totalidade dos problemas, não constitui uma ciência com conteúdo próprio 1• [ ..• ]

A finalidade dessas expQsiç.Q~_ jJa_§ei_a-se no reconhecimento de que, ao lado da vida social, como força fundamentadora e fórmula da vida

1 Estas frases finais e mais algumas outras foram extraídas de minha obra maior - Sociologia. Ensaios sobre as formas de sociação ( 1908) - na qual dispensamos, a muitas das idéias aqui abordadas, um desenvolvimento mais apurado , e deta-lhado, com fundamento em fatos históricos largamente comprovados. ·

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humana, existe outra vida humana cujas origens e compreensão decorrem do significado objetivo de seus conteúdos, bem como· da natureza e da produtividade dos indivíduos como indivíduos, ou talvez ainda de outras categorias mais, até aqui não consideradas. Estas formas de decomposição e estruturação da vida e da ação, sentidas de imediato como partes de

uma unidade única, são formas que se situam em um mesmo nível e se revelam igualmente legítimas. Em conseqüência disso -··e é o: que importa agora -, jamais uma só forma destas duas é suficiente e capaz de constituir a única via a conduzir-nos ao conhecimento, nem mesmo de levar-nos ao conhecimento que é determinado pela forma social da nossa existência. Também esta peca por sua unilateralidade, comple­mentando outras e sendo por elas complementada. Mas, sem dúvida, com esta ressalva, ela é, em princípio, capaz de proporcionar a possibi­lidade de um conhecimento integral da existência humana. Os fatos políticos e religiosos, econômicos, jurídicos e culturais, a própria língua e numerosos outros podem ser questionados quanto a saber de que modo eles, além de determinadas realizações de responsabilidade indi­vidual, com significação objetiva, podem ser compreendidos como pro­dutos da pr"ópria sociedade, podendo também representar aspectos do seu desdobramento (dela, sociedade). A validade dessa forma de conhe­cer não se torna ilusória, nem mesmo que não se conte com uma definição perfeitamente esclarecedora e incontroversa da natureza desse tema, isto é, da sociedade. Ocorre que nosso espírito tem a capacidade de erigir uma construção segura sobre um fundamento coriceptualmente ainda inseguro. Fatos físicos e químicos não se ressentem da obscuridade

e da problemática do conceito de matéria; fatos jurídico~ independem da polêmica em torno da natureza do direito e dos seus primeiros prin­cípios; nem os psicológicos se importam com a problemática da "essência da alma".

4. A CONCEPÇÁO VITALISTA E MECANICISTA DA COMPREENSÃO *

A inerência _dos motivos psico-históricos e materiais caracteriza-se como intrínseca ao fenômeno da compreensão considerado em sua tota­lidade. O desenvolvimento, psiquicamente real, de uma cadeia articulada e constituída de elementos consolidados em sua seqüência temporal a nós se torna compreensível unicamente por força da relação objetiva e transvihil de seus ·conteúdos. Sem constatar a existência da ascensão e de'cadência que nela se manifesta e sem saber que os conteúdos, objetiva­

mente e como tais, estabelecem, entre si, uma referência recíproca, bem

como sem saber ainda que, independente ·de sua realização no tempo,

cada um deles fundamenta ou determina o outro, também não é possível

compreendê-los como seqüência psíquica temporalmente real. Por outro

lado, como desenvolvimento ordenado, esta determinação ideal que

entre os mesmos se·· estabelece, é possível na medida em que um movi­mento psíquico contínuo os atravessa. A evolução objetiva dos con­

teúdos exige que o a priori da comunicação de sua forma resida na

continuidade evolutiva do consciente. Esta continuidade indefinível se

manifesta como sensação específica _e tão-somente_e_la_~S_egue quebr(lr

o hermetTsmo absoluto dos conteúdos isolados e os introduz na coriti­

nuiôade que outra coisa não é senão o próprio desenvolvimento. Dessa

*Reproduzido de SIMMEL, G. Vom Wesen des historischen Verstehens. Berlim, Ernst Siegfried Mittler & Sohn, 1918. p. 29-31. Trad. por Otto E. W. Maas. Tradução revista pelo Organizador.

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maneira o desenvolvimento físico condiciona e toma compreensível o

psíquico e este condiciona e toma compreensível o físico. Isso significa

que ambos os aspectos do desenvolvimento em consideração rião são

senão aspectos metodologicamente distintos de uma unidade: . do evento

compreendido historicamente. Sendo a compreensão um fenômeno pd­

mitivo no qual se expressam as relações do homem com o mundo, os

elementos em que a compreensão se realiza e os aspectos unilaterai~

sob os quais a reflexão situa os mesmos, podem interpenetrar-se, i.é,

pode ser vistos como elementos correlatos independentes que se baseiam

mutuamente uns' nos outros. Visto sob outro prisma, este círculo vicioso

é inevitável, uma vez que a vida é instância determinativa última ·do

espírito, de modo que a forma deste também determina as formas

particulares que tomam possível sua própria compreensão. É, que. a

vida só pode ser entendida pela vida. Acresce ainda que ela se explica

ou desdobra em estratos que isoladamente levam à compreensão dos

demais, revelando em sua interdependência mútua a unidade · dessa

compreensão. Percebe-se, pois, agora, que esta solução vitalista, de importância

tão decisiva para o problema da compreensão, já se antecipava em

nossas considerações acerca da crítica às explicações correntes. Um

exame mais apurado das mesmas nos mostra que todas derivam, sem

exceção, de uma visão basicamente mecanicista, i.é, de que, pretensa­

meÍlte, o homem só se apresenta a outro homem sob seu aspecto físico

externo, por trás do qual se coloca posteriormente e mediante um ato

intelectual associado, uma alma e determinados processos psíquicos.

Escapa a essa interpretação mecanicista a unidade e a integridade do

ser vivo; só é capaz de estabelecer essa unidade por aglutinação, i.é,

reunindo as partes que, em uma concepção orgânica, resultam de uma

divisão posterior da unidade em apreço. Por isso o mecanicismo é--incapaz

de conceber a compreensão como um fenômeno primitivo que se erige

entre uma pessoa como um todo, e outra pessoa também como um

todo. Ele só pode concebê-la como síntese secundária de fatores isolados ..

Coerente com esta visão, também escapa ao mecanicismo a parte, por

a~im _Qi~er, criativa do_processo _<i~_comEee11s~o, ou seja, aquilo que

permite ao sujeito reproduzir, em si mesmo, como imagem- de 6\ltra

almà, tudo que é estranho, distante e não vivenciado pessoalmente. Em

sua tendência de equacionar, no final, toda e qualquer relação, o meca­

nicismo é levado a fundamentar ·ou reduzir a compreensão unicamente

à identidade do sujeito com o objeto. Ele só é capaz de conceber .o

compreendido como repetição mecânica daquilo que preexiste no com-

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preendente. Como isso não corresponde evidentemente aos fatos 0 meca-. . - '.

ntcismo nao teve o~tro recurso senão. o de . apelar para 0 expediente

extremo de constrUir os eventos psíquicos da personalidade· histórica

com ~s fragmentos isolados da . compreensão íntima da vivência histórica,

e~ped1ente que não se revela apenas discutível, mas totalmente despro­

VIdo. de qualquer base, uma vez que a compreensão da vida íntima segue

pre:Isamente o modelo da continuidade que se observa na ligação e unifi­

caç~o dos c.ont.e~dos ?omiri~l.~nente ~i~tint~s. AJuilo q~e é decisivo para a vida . e a Individualidade, I. e, a unificaçao, nao se atmge, pois, com a

transmissão tale quale 1 de fragmentos analógicos colhidos ao acaso.

Por sua própria natureza, a concepção mecanicista procura ver em sua

compreensão histórica nada mais que um decalque do acontecido, "como

realmente aconteceu", ao invés de entender que essa compreensão tam­

bém' é uma atividade do sujeito, atividade que depende das categorias

e ~~s fo~mas. sob as quais o mesmo acolhe seu objeto (e dentre as

~ums se mclm, por exemplo, o já citado sujeito metodológico, aprioris­

tlcamente. necessário) ; deveria entender que és ta atividade é um construto

espiritual singular e que também aqui, no caso da compreensão histórica,

a_ verdade ~e seu objeto tem algo de vivo, funcional e elaborado, que

nao s~ eqmp~r~ com a reprodução mecânica de uma chapa fotográfica.

Em tats. co~~I~oes a comp~eensão histórica se apresenta como problema bem mais dtficil e bem mats profundo do que sugere a curiosa concepção

segundo a qual a compreensão de uma: outra psiquê se verifica como sua

reprodução . exa:a (em t~rmos de conteúdo) dentro do espírito que a

acolhe, reahzaçao que, afmal, apenas se verifica mediante a transferência da autovivência deste último para a primeira.

Toda essa oposição, que existe entre ~ ponto de vista mecanicista

e o_ pon~.o de. vista orgânico ou vitalista, evidencia-se nessas interpre­taçoes tao diVersas da compreensão psíquica. Como em todas as

~is~ussões A sobre o espír;ito, levadas até o presente às conseqüências

ultimas, ve-se que q~~lquer das decisões por uma das alternativas sempre

depen~e da cosmovisao global do homem e daquilo que esta apresenta de Itlais profundo. · ·

1 Assim no original. (N. do Org.)

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ll. ESPEClAL-lNDIVlDUAUDADE, INTERACAO. TIPO SOCIAL

5. A DETERMINAÇÃO QUANTITATIVA DOS . GRUPOS SOCIAIS*

Estes estudos começam pelo exame das formas da vid~ s~cial, d~s combinações e interações entre indivíduos. Mas esse ~xame e f~It~· c,~nsi­derando um único aspecto: a influência que .o mero numero de m ~~~ ~os

ciados tem sobre estas formas de vida soctal. Baseados em expene.nctas so 0 depois de chegar tidianas admitimos imediatamente que um grup , . , ~oum cert~ tamanho, tem de desenvolver formas ~ órgãos que sirvam a sua

manutenção e promoção, do que antes não preCisava como Agrupo ~enor. Por outro lado, também admitiremos que grupos menores tem quahdades

incluindo tipos de interação entre seus membros- que _des~parecem inevitavelmente quando os grupos aumentam. Essa determmaç~o quan­titativa do grupo, como pode ser chamada, tem d~pla funç~o: Num sentido negativo, certos desenvolvimentos - que sao ne_c:ssar~os, -~~

elo menos possíveis, no que diz respeito ao teor ou cond.tçoes ~ vt a p só. odem ser realizados acima ou abaixo de um determm~do nume:o de ele~entos. No sentido positivo, certos outros desenvolvtmen_tos. sao

Por certas modificações puramente q.uantltattvas •. impostos ao grupo t

d·esenvolvimentos surgem automaticamen e -mas. neiT1 mesmo estes

de SIMMEL G. On the significance of number for socialHlifWe. Ilfnf: * Reproduzido ' . 1 0 . - e introdução por Kurt . o · The socio/ogy of Georg Sunme. rga~z~to Macmillan Pnblishers. 1966. p. 87-

Nova York-Londre~, The Free Press e do ~~ dução revista pelo Organizador e 104 Trad por Dmah de Abreu Azeve o. ra . . . G u e In· - : . . . I alemão. Die quantitative Bestimmthelt der r PP . . . cotejada com o ongma · Sozio/ogie. Ed. cit., p. 32-45.

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pois dependem também de outras características, além das numéricas. O ponto decisivo, entretanto, é que esses desenvolvimentos não são o resultado destas características somente, mas que eles só se produzem sob certas condições numéricas.

Pequenos grupos

a) Socialismo

Pode-se demonstrar, por exemplo, que, pelo menos até hoje, as sociedades socialistas, ou quase socialistas, só foram possíveis em grupos muito pequenos e que falharam sempre em grupos maiores. O princípio do ·socialismo - justiça na distribuição da produção e reconhecimento - pode ser.facilmente realizado num grupo pequeno e - o que certa­mente é tão importante quanto ____: s.er aí salvaguardado por seus mem-

'· bras. A contribuição de cada um ao todo e o reconhecimento .do grupo são claramente visíveis; a comparação e a compensação são fáceis, mas no grupo grande elas são difíceis, . especialmente por causa da inevitável diferenciação de seus membros, de suas funções e pretensões. Um número muito grande de pessoas só pode constituir uma unidade se existe uma complexa divisão do trabalho. Isto não acontece apenas pela .razão óbvia da prática econômica; há também o fato de que só a divisão de trabalho produz o tipo de interpenetração e interdependência que· (através de incontáveis intermediários) liga cada pessoa com todas as outras, sem o que um grupo ampliado se desagregaria por qualquer motivo. Dessa maneira, quanto mais compacta é a· unidade. grupal ·desejada, tanto mais articulada deve ser a especialização de ·seus membros, e tanto mais incondicionalmente essa especialização deve ligar o indivíduo ao todo e o todo à ele, O socialismo ~e um grupo grande exigiria, portanto, a

· mais aguda diferenciação entre as individualidades que o compusessem e essa diferenciação teria de se estender, necessariamente, para além de suas ocupações e incluir também seus sentimerttos e desejos. Mas isso tomaria extremamente difícil a comparação entre as · realizações e as recompensas individuais, e o ajustamento entreel~. E, no entanto, é nisso que repousa a possibilidade de um socialismo aproximado em grupos pequenos e, portanto, indiferenciados.

Numa civilização avançada, esses grupos estão limitados à insigni­ficância numérica até meSll).O logicamente, por assim dizer, pela sua dependência de bens dos quais não podem se prover ·sob suas próprias condições de produção. Que eu saiba, existe apenas uma única orga-

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nização 1 aproximadamente socialista na Europa de hoje: .é a Fa"!ili~tere de Guise, uma grande fábrica de produtos de ferro fundtdo. Fm cnada em 1880 por um discípulo de Fourier, sob os princípios de completo bem-estar para cada trabalhador e sua família, de garantia das condições mínimas de vida de cuidados e educação gratuitos para as crianças e ' . . do ganho coletivo da subsistência. Durante a última década do sécu~o XIX, a fábrica empregou aproximadamente duas mil pessoas e parecta viável. Mas é evidente que parecia ou parece viável apenas porque ela é cercada por lima sociedade que vive sob condições de vida muito dife­rentes, nas quais a Familistere pode preencher as inevitáveis lacunas de sua própria produção. Porque as necessidades humanas não podem ser racionalizadas da mesma maneira que a produção. Parece haver nelas uma incerteza ou impossibilidade de cálcul9 que é o motivo pelo qual sua satisfação só pode ser atingida à custa de produzir incontáveis bens irracionais e inaproveitáveis. Um grupo, portanto, que não efetue tal produção, mas em vez disso conte com uma comple~a sistemat~zação e perfeita racionalização de suas atividades, sem?re ,sera, necessa,namente, um grupo pequeno. Pois só de um grupo ma10r a sua volta e que ele

1 A confiança no material histórico usado nestes ensaios é condicionada, n~ que diz :respeito ao seu conteúdo, por duas circunstâncias. Devido à função_ particular que este material tem aqui, teve ele de ser selecionado de tantas e tao hetero­gêneas áreas da vida histórico-social, que a limitada capacidade de t~a~alho de uma única pessoa só podia aproximar-se, em geral, de fontes secundanas,. p~ra a· sua coleta; raramente pode ser_ verificado por investigação direta em pnme1ra mão. Por outro lado, o fato deste material ter sido colhido durante longos anos tornará compreensível que nem uma única informação po~eria_ ser checada ~e~a última pesquisa anterior à publicação do livro. Se a comumcaçao d~ fatos soc1a~s fosse um dos objetivos deste volume, mesmo que apenas secundanamente: sena inadmissível a extensão dada a erros e afirmações não demonstradas, que ftcaram apenas subentendidos. Mas na presente tentativa de extrair da existência soqial a possibilidade de uma nova abstração científica, o objetivo essencial pode ser apenas

0 de realizar esta abstração através de quaisquer exemplos, sendo a prova desta realização o fazer sentido. Se eu tivesse que expressar a questão de um. mod~ um tanto exagerado, por amor à clareza metodológica, diria que os. exemplos so são importantes por serem possíveis, mais que por. serem reais. Por sua verdade não é-destinada (ou apenas _em_ uns _p_oucos ~os) -ª d~monstrar a verdad~ de uma proposição geral. Mais propriamente, mesnio ··quando não indicadas por alguma expressão, são apenas o objeto de uma análise; e o objeto em si é irrelevant~. A maneira correta e fecunda de realizar essa análise - e não a verdade sobre a realidade de seu objeto - é o que se consegue ou não aqui. A investigação poderia ser levada a cabo baseada até mesmo em exe~plos fictícios, . cuja impor­tância para a interpretação da realidade poderia ser detxada ao ocasiOnal conhe­cimento de fato do leitor.

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pode obter aquilo de que precisa para um padrão de vida satisfatório, num estágio avançado de civilização.

b) Seitas religiosas

Existem também formações grupais do tipo religioso, cuja estru­tura sociológica torna impossível manter um grande número de adeptos. Tais são, por exemplo, as seitas dos valdenses; dos men:onitas e dos hussitas, nas quais o dogma proíbe o juramento, o serviço militar. e a ocupação de cargos públicos; nas quais · questões personalíssimas tais como ocupação, planejamento diário e até mesmo o casamento são regu­das pela comunidade; nas quais uma vestimenta específica separa os fiéis dos demais e simboliza seus laços comúns; nas quais a experiência subJetiva da comunhão direta com Cristo constitui a verdadeira coesão da comunidade - em tais circunstâncias; a extensão para grupos maiores quebraria, evidentemente, o laço de solidariedade, que chega a um grau tão alto precisaménte por destacar-se a seita de grupos maiores e por estar em contraste com . eles. Pelo menos nesse aspecto sociológico, não é sem fundamento a pretensão dessas seitas de representarem o cristia­nismo original, o qual, como unidade ainda indiferenciada de dogma e modo de vida, só foi possível nestas pequenas comunidades, incrustadas no interior de comunidades maiores circundantes. E estes grupos maiores não serviam apenas para suplementar suas necessidades exteriores, mas também para estabelecer um contraste, pelo qual as seitas tornaram-se conscientes de sua natureza específica. A difusão do cristianismo por toda a sociedade determinou, assim, uma mudança completa em seu caráter sociológico, tanto .... quanto em sua essência espiritual.

c) Aristocracias

Além de tudo isto, a própria noção de aristocracia implica em que ela só pode ser relativamente pequena. Esse fato óbvio não é, todavia, deduzido meramente do domínio da aristocracia sobre as massas. Parece haver também um limite absoluto (apesar de variar muito) em número. Em outras palavras, não existe apenas uma certa proporção que permi­tiria à aristocracia dirigente crescer indefinidam~nte · nurrm mesma: me­dida do crescimento ·das massas dirigidas. Existe também um limite absoluto, além do qual a forma de grupo aristocrática não pode mais ser mantida. O ponto em que ela se desagrega é determinado em parte por circunstâncias externas, em parte por circunstâncias psicológicas. Para ter eficiência como um todo, o grupo aristocrático deve ser visível para cada um de seus membros. Cada elemento deve ainda conhecer

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pessoalmente todos os outros. As relações de sangue e de casamento devem ser ramificadas e localizáveis através de todo o grupo. Desse modo, a tendência à extrema limitação numérica, característica das aris­tocracias históricas de Esparta a Veneza, não é devida apenas a uma egoísta aversão em dividir uma posição dominante, mas se deve também ao conhecimento instintivo de que as condições vitais para a existência da aristocracia só podem ser mantidas se o número de seus membros é pequeno, tanto relativa quanto absolutamente. O direito incondicional de primogenitura, que é de natureza aristocrática, é o meio de evitar a expansão. Tanto a velha lei tebana contra o crescimento do número de propriedades rurais, quanto a lei de Corinto que exigia que se mantivesse o mesmo número de famílias, eram baseadas nisso. É muito revelador que a certa altura, quando Platão fala dos Poucos Que Governam, ele os designa também como os Não-Muitos.

Quando a aristocracia cede às tendências democráticas e centrífugas que costumam acompanhar a transição para comunidades muito grandes, ela se envolve em conflito mortal com seu próprio princípio de vida. Um exêmplo característico é a nóbreza da Polônia antes da divisão. Sob condições mais favoráveis, o conflito se resolve pela transformação numa forma democrática difusa. A antiga comunidade livre dos campone­ses germânicos, com a igualdade totalmente pessoal entre seus membros, por exemplo, era completamente aristocrática mas, em seu prolongamento nas comunidades urbanas, tornou-se o manancial da democracia. Se esta solução é afastada, não resta outra saída além . de limitar severamente o crescimento acima de um certo número e proteger o grupo quantitativa­mente fechado contra quaisquer elementos de fora que queiram penetrar nele, sem qualquer consideração pelo direito de que possam dispor. Muitas vezes a natureza aristocrática só toma consciência de si mesma nesta situação, nesta crescente solidariedade face à tendência de expan­são. Desse modo, a antiga constituição da gens parece ter-se transfor­mado, muitas vezes, numa verdadeira aristocracia apenas porque uma nova população pressionou nesse sentido . ----,- uma população alienígena enllllle.rosa denHÜS_p_ar'!. ser absorvj<tl,_ilin_Qª que gradualmente. Confron­tadas com esse crescimento do grupo total, as associações das gentes, que eram por natureza quantitativamente limitadas, só podiam se manter como aristocracias. De modo muito semelhante, a corporação de ajuda e proteção mútua de Richerzeche, de Colônia, consü;tia originalmente de todos os burgueses _livres. Entretanto, à medida que a população da cidade cresceu, ela se tornou uma associação aristocrática fechada.

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Ainda que a tendência das aristocracias políticas seja a ·de não se tornarem "muitas", sob quaisquer circunstâncias, ela usualmente conduz mais para a decadência e a extinção que para sua continuidade. O motivo não é apenas fisiológico. Em geral, grupos pequenos e muito exclusivistas também se distinguem dos grupos maiores, pelo fato de que o mesmo destino que fortalece e renova estes últimos pode destruir os primeiros. Uma guerra perdida pode arruinar uma pequena cidade­-estado e regenerar uma nação maior. A explicação não é tão simples quanto pape parecer: existe também a diferença de proporção entre energias potenciais e energias reais. Os grupos pequenos, organizados de forma centrípeta, costumam usar e recorrer a todas as suas energias, enquanto que nos grupos grandes as forças permanecem potenciais. com mais freqüência, tanto absoluta quanto relativamente. As necessidades da coletividade não requerem aqui a personalidade completa de cada membro, de maneira contínua; aqui é permitido não explorar muitas das energias, que podem ser evocadas e efetivadas numa emergência. Assim, onde as circunstâncias excluem p~rigos que requerem uma quanti­dade desUsada de energia social, certas medidas de limitação numérica - mesmo outras além da endogamia - podem ser sumamente apro­priadas. Nas montanhas tibetanas, a poliandria é socialmente benéfica, como até mesmo os missionários reconhecem. Pois o solo é tão árido que um rápido crescimento da população resultaria na mais terrível necessidade e a poliandria é um excelente preventivo ·contra isso. Ouvimos falar que membros de uma família de bosquímanOs têm que se separar ocasionalmente; devido à esterilidade do solo; sob esse ponto de vista, a lei que limita o tamanho da família a um nível compatível com as oportunidades de subsistência parece inteiramente de acordo com o ver­dadeiro interesse da unidade familiar e com toda a sua importância social, enquanto as condições externas de vida do grupo - e as conse­qüências para a sua estrutura interna - evitam os perigos que seriam, de outro modo, inerentes à limitação· numérica.

Quando o pequeno grupo - em especial o grupo político - se apropria em grande extensão da personalidade de seus membros, o ver­dadeiro. caráter desta união força seus membros a tomarem posições decisivas em relação às pessoas, às tarefas objetivas e aoutros grupos. Por outro lado, o grUpo grande, com seus muitos elementos· diferentes exige menos tal atitude, podendo mesmo evitá-la. A história das cidade~ gregas. e italianas e dos cantões suíços mostra que pequenas comunidades contíguas ou se federalizam ou vivem num estado de mútua hostilidade . ' ma1s ou menos latente. As guerras e suas leis são inuito mais amargas

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e particularmente muito mais radicais entre elas que entre grandes na­ções: a ausência de órgãos grupais, de reservas e de elementos transi­tórios e relativamente indefinidos, torna difíceis a modificação e a adap­tação. Desse modo, sua configuração sociológica fundamental, em con­junto com suas condições exteriores, as obriga a encarar. a questão de vida ou morte com muito mais freqüência que . as sociedades maiores.

Grandes grupos: a massa

Além destas peculiaridades dos pequenos grupos, vou mencionar, com a mesma seleção inevitavelmente arbitrária, entre inúmeros traços, os seguintes, que caracterizam a estrutura sociológica dos grandes grupos. Começo sug~rindo que os grandes grupos, quando comparados a gru­pos menores, mostram muito menos radicalismo e decisão. Mas esta afirmação precisa ser esclarecida, pois precisamente onde as grandes massas são ativadas por movimentos políticos, sociais ou reli­giosos, elas são implacavelmente radicais, e partidos extremados oprimem partidos moderados. O motivo disso é que as grandes massas só podem ser animadas e guiadas por idéias simples: o que é comum a muitos deve ser acessível mesmo aos mais humildes e mais primitivos entre eles. Em números relativamente grandes, ainda mesmo as persona­lidades mais nobres e mais diferenciadas nunca se encontram nos impulsos e nas idéias complexas e altamente desenvolvidas, mas apenas naquelas relativamente simples e genericamente humanas. E também as reali­dades nas quais as idéias da massa são planejadas para funcionar são sempre muito complexas e reúnem um grande número de elementos divergentes. Desse modo, as idéias simples sempre acabam sendo muito unilaterais, cruéis e radicais.

Isto é ainda mais verdadeiro quando a massa está em proximidade física. Aí,· inumeráveis sugestões oscilam para a frente e para trás, resul­tando numa extraordinária excitação nervosa que freqüentemente arrebata os indivíduos, faz com que cada impulso cresça como uma avalanche e submete a massa a qualquer de seus membros, que por acaso._seja o ma~ i1Il_p_etu_<:>so. A lei que regulava o voto dos romanos em grupos fixos (tributim et centuriatim descriptis qrdinibus, ClassibÚs, aetatibus - por distritos urbanos e de recrutamento, por estados, Classes militares e grupos etários - etc.) foi interpretada como um meio essencial para manter a democracia sob controle - a democracia grega votava em massa, sob o impacto imediato do orador. A fusão das massas em um único senti.:. mento, no qual toda a especificidade e reserva da personalidade ficam

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suspensas, é fundamentalmente radical e hostil à mediação e à consi­deração. Nã-o levaria a nada além de impasses e destruições se não c~stumasse ter.~in~r antes em exaustão e repercussões interiores, que sao as consequenctas do exagero unilateral. Além do mais, as massas

no sentido aqui utilizado - têm pouco a perder e ao contrário ~c.r~d~am que têm_ tudo a ganhar. Nesta situação, a U:aior parte da~ tmbtçoes que se opoem ao radicalismo costumam ser derrubados. Final­mente, os grupos, ~~is freq~entemente que os indivíduos, esquecem que seu poder tem hmttes; mats exatamente, ignoram esses limites tanto mais facilmente quanto menos os membros se conhecem entre si - e o mútuo desconhecimento é típico de um grupo grande que se juntou por acaso.

Tamanho de grupo, radicalismo e coesão

Esse tipo de radicalismo é conhecido pela sua emocionalidade e é realmente característico dos grandes grupos. Mas isso é uma exceção porque, em geral, os partidos pequenos são muito mais radicais que os gra~des, nos quai~, .é claro, as idéias que formam a base do próprio p_ar.ttdo colocam ln~utes a seu radicalismo. O radicalismo aqui é socio­logtco por sua propria natureza. É necessário para a devoção sem reservas ~o indivíduo pela base lógica do grupo; é necessário para a severa delimitação do grupo em relação a outros grupos próximos (uma severidade de demarcação exigida pela necessidade de autopreservação do grupo) e necessário pela impossibilidade de tomar conta das tendên­cias e idéias grandemente variáveis dentro de uma estrutura social res­trita. Mas o radicalismo do conteúdo é mÜito independente disso tudo.

Foi nOtado, por exemplo, qUe os elementos reacionário-conserva­dores na Alemanha de hoje são obrigados pela sua grande força numérica a moderar suas aspirações extremistas. Esses grupos atraem tantos e tão heterogêneos estratós sociais, que não podem seguir qualquer de suas tendências até o fim sem ofender alguma parcela de seu eleitorádo. Da mesma forma, o Partido Social-Democrata foi forçado pelo grande núme­ro de seus associados a diluir seu radicalismo qualitativo, a dar lugar a desvios de seu dogma e permitir certas concessões-à-sua-intransigência - se não de maneira expressa, ao menos em suas ações, vez por outra. É na incondicional solidariedade dos elementos que se baseia a possibi­lidade de radicalismo. Essa solidariedade diminui na medida em que o crescimento numérico envolve a admissão de elementos individuais hete­rogêneos. Por essa razão, as coalizões de trabalhadores, cujo objetivo

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é a melhoria das condições de trabalho, sabem muito bem que sua coesão interna diminui na medida em que seu volume aumenta. Nesse caso, por outro lado, a ampliação numérica· tem a grande importância de livrar a coalizão - através de cada membro adicional que se junta a ela - de um concorrente que poderia, de outra forma, vender sua força de trabalho mais barato que a coalizão, ameaçando assim a sua existência.

Pois aqui surgem, evidentemente, condições muito específicas para a. vida de um grupo que se desenvolve dentro de outro grupo maior, com a idéia de que inclui todos os elementos em suas pretensões -de um grupo que realiza dessa maneira a sua verdadeira função. Nestes casos aplica-se o axioma "quem não está comigo, está contra mim". E a pessoa que pertence, por assim dizer, idealmente ao grupo, mas fica fora dele por mera indiferença, esta sua não-filiação, positivamente, prejudica o grupo. Essa não-participação pode tomar a forma de cómpe­tição, como no caso das coalizões de trabalhadores; ou pode mostrar a quem está de fora os limites de poder a que se submete. o grupo; ou pode prejudicar o grupo porque este não pode ser constituído, a 'menos que todos os candidatos em potencial se unam como membros, como no caso de certos cartéis industriais. Portanto, quando um grupo· se defronta com a questão da plenitude (o que de modo algum se aplica a todos os grupos), com a questão de saber se todos os elementos, aos

quais os princípios do grupo se aplicam, são realmente seus membros, aqui as conseqüências dessa plenitude devem ser cuidadosamente distin­

guidas daquelas relativas ao seu tamanho. Com certeza o grupo com­pleto é ainda maior. Mas o que importa não é o tamanho enquanto

tal, o problema (que nunca depende do tamanho) é se esse tamanho

preenche uma determinada estrutura. Este problema pode-se tornar tão

importante que (como no caso das coalizões de trabalhadores) as des­vantagens relativas à coesão e à unidade - que decorrem sempre do mero crescimento numérico - são -diretamente antagônicas às vantagens

que resultam da maior aproximação da totalidade.

Paradoxos na estrutura de grupo

--Mais geneficafuente,-as-características de_ um grupo -grande podem

- numa- amplitude considerável - ser explicadas como substitutos para

a coesão imediata e pessoal, típica do pequeno grupo. Os grupos grandes ·

criam órgãos que canalizam e servem de mediadores para a interação

de seus membros e operam, dessa maneira, como veículos de uma unidade social que já não resulta mais das relações diretas entre seus elementos.

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Cargos e representações, leis e símbolos da vida de grupo, organizações e conceitos sociais genéricos são órgãos desse tipo. Suas estruturas e funções são tratadas em muitas passagens do presente volume. A essa altura, portanto, apenas suas conexões com o aspecto quantitativo do grupo necessita de discussão. Tipicamente, todos esses órgãos só se

desenvolvem genuína e completamente em grandes grupos, como formas abstratas da coesão grupal, cuja forma concreta não pode mais eXistir,

depois que o grupo atingiu um certo tamanho. Sua utilidade, que se ramifica em milhares de características sociais dependem, em última ins­

tância, de suas premissas numéricas. São a personificação das forças do grupo e, têm· assim um caráter supra pessoal e objetivo, que se con­

fronta com o indivíduo. Mas esse caráter surge da própria multidão dos

membros individuais e de suas conseqüências, quaisquer que sejam. Pois é este número enorme o que paralisa o elemento individual e- faz com

que o elemento geral apareça a tal distância dele, que parece existir

por conta própria, sem nenhum indivíduo, ao qual, na verdade, se opõe

freqüentemente. Encontramos aqui um paralelo no fenômeno 9-o conceito.

Um conceito isola aquilo que é comum a itens singulares e heterogêneos. Quanto maior é o número de itens que compreende,_ mais distante paira

o conceito acima de todos eles. Conseqüentemente, são os conceitos

mais genéricos, isto é, os que compreendem o maior número de itens

- tais como as abstrações da metafí~ica - os que ganham, por assim dizer, uma existência independente, cujas normas e desenvolvimentos

são freqüentemente estranhos ou mesmo hostis àqueles itens mais sim­

ples e tangíveis. De forma semelhante, o grupo grande ganha s-qa unidade,

que encontra expressão nos órgãos grupais e nos ideais ti noçõe\;políticas

somente ao preço de uma grande distância entre todas essas estruturas

e o indivíduo. Na vida social de um pequeno grupo, ao contrário, as

necessidades e pontos .de . vista individuais são diretamente efetivos, são

objeto de imediata ·consideração. Essa situação esclarece as freqüentes

dificuldades características de organizações compostas por muitas uni­

dades mep.o~es. Apenas faée a face é que os assuntos em questão podem

ser corretamente avaliados e tratados com interesse e cuidado; mas, por

outro-lado, a organização regular e adequada de-tmlos~os detalhes só

pode ser ass~gurada pela distância reservada exclusivamente ao órgão

central. Tal discrepância é freqüentemente revelada por organizações de caridade, sindicatos trabalhistas, -administrações escolares, etc. Em todos

esses casos é difícil conciliar relações pessoais - que é o verdadeiro princípio vital dos pequenos grupos - com a distância e frieza das

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normas objetivas e abstratas, sem as quais um grupo grande não pode subsistir 2 •

Aspectos numéricos de membros proeminentes do grupo

As diferenças estruturais entre grupos, produzidas por meras dife­renças numéricas, tornam-se até mais evidentes nos papéis desempe­nhados por certos membros efeti~os e proeminentes. É óbvio que um dado número de tais membros tem uma importância diferente para um grupo grande e para um grupo pequeno. Na medida em que o grupo se modifica quantitativamente, a eficiência desses membros também se modifica. Mas é preciso notar que esta eficiência se modifica, mesmo que o número de membros eminentes aumente ou diminua na mesma proporção que o grupo total. O papel de um milionário, que vive numa cidade de 1 O mil pessoas de classe média, e a fisionomia geral que a cidade recebe em função de sua presença, é totalmente diferente da importância que 50 milionários, ou melhor, cada um deles, têm para uma cidade com uma população de 500 mil· pessoas - apesar do fato de a relação numérica entre o milionário e os outros cidadãos - que parecia ser a única determinante - ter permanecido inalterada. Se, num partido parlamentar de 20 membros existem 4 que critiCam o pro­grama político ou . que desejam a cisão, sua importância em termos de procedimentos e tendências partidárias é diferente do que seria se _ o partido tivesse 50 membros e 10 rebeldes em seu seio: em geral, e~bora

2 Surge aqui uma dificuldade típica das relações humanas. Nossas atitudes teóricas e práticas diante de todos os tipos de fenômenos, constantemente fazem com que nos coloquemos ao mesmo tempo dentro e fora deles. Por exemplo, a pessoa que se manifesta contra o cigarro deve tanto fumar quanto não fumar: se ela não fuma, não conhece a atração que condena; mas se fuma, não se considera· que tenha o direito de fazer um julgamento que prova ser falso. . Outro exemplo: para se ter uma opinião sobre as mulheres "em geral", é preciso ter tido íntimas relações com elas e, ao mesmo tempo, estar distante e livre de tais relações, porque elas modificariam a avaliação. Somente quando estamos próximos, do lado de dentro, iguais, é que podemos conhecer e compreender; somente quando a distância impede ·contatos im<~diatos, em todos os sentidos da palavra, é · que temos a objetividade-e-a -imparcialidade,-tão-necessários-quanto- o-conhecimento e a com-_ preensão. Esse dualismo de proximidade e distância é necessáriq para que nosso comportamento seja consistentemente correto. É, por assim dizer, inerente às for­mas e -·problemas fundamentais de nossa vida. Tanto assim que .. o fato de que o mesmo caso só possa ser corretamente tratado dentro de um pequeno grupo e só possa ser corretamente tratado dentro de um grupo grande, é uma contradição sociológica, formal; é meramente um caso especial desta contradição humana genérica.

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a proporção numérica não se tenha alterado, será maior a importância de 10 pessoas no partido maior. Para dar um último exemplo: tem sido notado que uma tirania militar (mantendo-se iguais as outras condições) é tanto mais defensável quanto maior for o território sobre o qual é exercida. Se o seu exército inclui um por cento da população, é mais fácil para um exército de 100 mil homens controlar uma população de 1 O milhões, que para 100 soldados reprimirem uma cidade de 100 mil, ou, para um único soldado, conter um vilarejo de 100 pessoas. O estranho é que os números absolutos do grupo total e de seus elementos proeminentes determinem de maneira tão extraordinária as relações den­tro do grupo - apesar do fato de sua proporção numérica continuar a mesma. Esses exemplos podem ser facilmente multiplicados. Eles mos­tram que a relação dos elementos sociológicos não depende apenas de suas qúantidades relativas, mas também das absolutas. Suponhamos um partido dentro de uma sociedade maior. A relação entre ambos se modifica, não apenas. enquanto a sociedade permanece estacionária e o partido aumenta ou diminui a quantidade de seus membros, mas também quando ambos se modificam no mesmo sentido e na mesma amplitude. Esse fato revela a importância sociológica do grande ou pe­queno número de integrantes do grupo total, até mesmo para as relações numéricas de seus elementos. E, no entanto, à primeira vista, apenas estas relações numéricas parecem ter ligação com a importância dos números para as relações internas do grupo.

Costume, direito, moralidade

A ·diferença formal no comportamento de um indivíduo no grupo - enquanto determinada pelo tamanho do seu grupo - não tem ape­nas importância concreta, mas também :uma importância normativa e moral. Talvez isto seja mais claramente evidente na diferença entre o costume e o direito. Entre os povos arianos, os laços mais primitivos entre ·o indivíduo e uma norma de vida supra-individual parecem ter origens num instinto ou num conceito muito genérico do normativo, do decente, do dever em geral. O dharma hindu, o themis grego, o fas latino, todos expressam esta indiferenciada "noniiativídade como tal". Os regulamentos mais específicos, religiosos, morais, convencionais, jurí­dicos, ainda estão mergulhados nela, ainda não se ramificaram nem se desligaram dela: a noção genérica da norma é a sua unidade original, não uma unidade abstraída dela em retrospectiva. Ao contrário da opinião de que a moralidade, o costume e o direito se desenvolveram

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por fora, como suplementos desse estado embrionário, a mim parece que este estado embrionário se perpetua naquilo que chamamos de costume. E o costume, acho eu, representa um estágio de não-diferenciação que gera, em direções diferentes, duas. formas: o direito· e a moralidade.

A moralidade nos interessa aqui apenas na medida em que resulta do comportamento do indivíduo em relação a outros indivíduos ou gru­pos, isto é, na medida em que tenha essencialmente o mesmo teor do costume e do direito. A moralidade se desenvolve no indivíduo através de um segundo sujeito que se confronta com ele no interior de si mesmo. Por meio da mesma divisão através da qual o eu diz a si mesmo

·"Eu sou" ;...,- como sujeito que se conhece e se confronta consigo mesmo enquanto objeto conhecido -'-- ele também diz a si mesmo "Eu devo". A relação entre dois sujeitos que aparece como um imperativo, repete-se dentro do próprio indivíduo, em virtude da capacidade fundamental de nosso espírito de se colocar em oposição a si mesmo, de se ver e se tratar como se fosse outra pessoa (não respondo aqui, à questão de se este fenômeno representa uma transferência da relaçãO interpessoal erilpiri­camente anterior aos elementos dentro do ·indivíduo, ou se é um pro­cesso genuinamente espontâneo originando-se nestes elementos).

Agora, por outro lado: uma vez que as formas normativas tenham recebido conteúdos particulares, estes conteúdos se. libertam de seus veículos sociológicos originais e chegam a ser uma necessidade interior e autônoma, que merece a designação de ideal. Nesse e~tágio, estes con­teúdos que são na verdade comportamentos ou estados dos indivíduos, têm valor em si mesmos: .são devidos. Sua importância ou natureza social não lhes dá mais, isoladamente, seu caráter imperativo: nesse estágio derivam mais de seu valor e importância objetivamente ideal. É verdade que a moralidade se torna personalizada. Além do mais, é fato que as três normas gerais - costume, direito e a própria moralidade - evoluem para fenômenos supra-sociais e objetivos. Mas nem os fatos evitam que enfatizemos aqui que seu conteúdo é socialmente intencional e que aquelas mesmas três formas se certificam que seu conteúdo seja de fato realizado através do indivíduo.

_~i damos aqui com formas da _Ie)1!@o int~!iQr .. ~ ~xJtrrior. gQ_ indi­víduo com seu grupo social. Pois o mesmo conteúdo desta relação tem sido historicamente revestido de motivações ou formas diferentes. O que era costume num certo tempo ou lugar, em outro foi uma lei de Estado ou foi deix.ado à 111oralidade privada. O que estava sob a coerção da lei, tornou-se meramente de bons costumes. O que era uma questão de consciência individual, foi posteriormente, com freqüência, imposto

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pelo Estado, etc. Os pólos desse continuum são a lei e a moralidade, e entre elas fica o costume, do qual ambas se desenvolveram. No Código Penal e no Poder Exe.cutivo, o direito encontra órgãos especializados através dos quais seus conteúdos são exatamente definidos e externa­mente executados. Por esse motivo, o direito é melhor delimitado no que diz respeito aos pressupostos indispensáveis para a vida do grupo: o que o grupo pode exigir incondicionalmente do indivíduo é apenas aquilo que deve exigir incondicionalmente. Ao contrário disso, a livre moralidade do indivíduo não conhece outra lei além daquela que aplica automaticamente a si mesmo, sem nenhum outro poder executivo ·além de sua própria consciência. Na prática, portanto, sua jurisdição tem fronteiras acidentais e fluidas que mudam de .caso para caso 3 , apesar de se estender, em princípio, à totalidade da ação,

3 O fato de o direito e a moralidade derivarem ambos (por assim dizer.) de uma mesma modificação do desenvolvimento social reflete-se em suas funções teleo­lógicas, que estão mais intimamente inter-relaciônadas do que parece à ·primeira vista. Quando a conduta estritamente individual - característica de uma vida difusamente regulada pelo costume - cede a uma norma ·legal geral, com sua distância muito maior das questões individuais, a liberdade assim conquistada nunca deve, contudo, no interesse da sociedade, ser entregue a si mesma. Os imperativos legais são suplementados por imperativos morais · e preenchem as lacunas que o desaparecimento do onipresente costume deixou nas normas. Em comparação com o costume, as normas jurídicas e morais estão muito acima do indivíduo e, ao mesmo tempo, muito mais profundamente dentro dele. Pois quaisquer que sejam os valores metafísicos e pessoais que possam ser constituídos pela consciência e pela moralidade autônoma; seu valor social - que é unica­mente o que está em discussão aqui - repousa em sua extraordinária eficiência profilática. O direito e o costume ·afetam a atividade da vontade em seu aspecto exterior e em sua realização; atuam preventivamente e por medo; e, para serem realmente eficientes devem - ainda que nem sempre - fazer parte da morali­dade pessoal. É a moralidade pessoal que está nas raízes da ação. Ela transforma tanto o aspect!J mais íntimo do indivíduo, que este executa o certo automatica­mente, sem o auxílio das forças relativamente externas do costume e do direito. Mas a. sociedade não está interessada na. perfeição puramente moral do indivíduo. A moralidade pessoal é importante para a sociedade e é por ela produzida apenas enquanto garante, tanto quanto possível, que o indivíduo atue de um modo social­mente eficiente. Com a moralidade individual, a sociedade c:ria-um-érgão que não é apenàs muitíssimo mais eficiente que o direito e o costume, mas que também poupa à sociedade as despesas e os trabalhos envolvidos nestas instituições. Em sua tendência para obter seus pré-requisitos de forma tão barata quanto possível, a sociedade também faz uso da "consciência limpa", pois é através de sua cons­ciência que o indivíduo se recompensa por suas boas ações; porque se ele não tivesse consciência, a sociedade provavelmente teria que lhe garantir reconheci­mento de algum modo, através do direito ou do costume.

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Um grupo se assegura do comportamento adequado de seus mem­bros através do costume, quando a coerção jurídica é inadmissível e a moralidade individual não oferece confiança. O costume funciona assim como um complemento dessas duas outras categorias, enquanto que numa época em que esses tipos de normas mais diferenciadas ainda não existiam, ou existiam apenas de forma embrionária, o costume era a única norma de vida. Isso indica o lugar sociológico do costume: fica entre o grupo maior - no qual, como membro, o indivíduo está mais sujeito ao direito - e a individualidade absoluta, que é o único veículo da livre moralidade. Em outras palavras, é tarefa. dos grupos menores serem os intermediários entre esses dois extremos. De fato,

· quase todos os costumes são costumes de uma categoria ou classe. Suas manifestações como comportamento externo, moda ou honra, sempre caracterizam apenas um segmento da sociedade, enquanto que o todo desta sociedade é dominado pelo mesmo direito.· O grupo menor, com­posto daqueles a quem de algum modo diz respeito a violação dos bons costumes, ou que a presenciam, são os que reagem a ela, ao passo que uma infração da ordem jurídica desafia toda a sociedade. Desde que os únicos órgãos executivos do ·costume são a opinião pública e certas reações individuais diretamente relacionadas com a opinião públi­ca, um grupo grande não pode, ele mesmo; administrar o costume. A experiência cotidiana na qual os costumes comerciais permitem e im­põem outras coisas além dos costumes aristocráticos - nos quais os costumes de um grupo religioso enyoivem outras coisas além daquelas de uma sociedade literária, etc. - sugere que o teor do costume consiste em condições específicas necessárias para um grupo em particular. Pois, para garantir essas condições, o grupo não pode utilizar nem o poder coercitivo da lei do Estado, nem qualquer moralidade ·autônoma do indivíduo digna de confiança.

O único aspecto que estes grupos compartilham com os grupos primitivos - com os quais começa para nós a história social --' é a escassez numérica. As formas de vrda que eram originalmente suficientes para. a totalidade, vieram caracterizar subdivisões no momeqto em que a própria totalidade cresceu. Pois são essas totalidades que contêm agora as--possib1liâa0e8de ·relaçüespessoais,---ae -um--n:rver aproximaôamerife igual entre seus. membros e também de interesses e ideais comuns, em virtude dos quais os regulamentos sociais podem ser deixados a normas tão precárias e elásticas como os do costume. Mas quando o número de membros aumenta e, desse modo, tornam-se inevitavelmente mais independentes, essas condições não são mais obtidas para todo o grupo.

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O peculiar poder de coesão do costume não é suficiente para o Estado e é demais para o indivíduo, enquanto seu conteúdo é demais para o Estado e muito pouco para o· indivíduo. O Estado exige garantias mais seguras; o indivíduo exige mais liberdade. Apenas nos aspectos em que o indivíduo ainda é membro de grupos menores é que ele ainda é gover­nado, socialmente, pelo costume.

O fato do grupo grande tanto exigir quanto permitir uma norma mais rigorosa e objetiva cristalizada na lei, relaciona-se. de algum modo com a maior liberdade, mobilidade e individualização de seus membros. Esse processo envolve a necessidade de uma determinação mais clara e de uma fiscalização mais severa das inibições socialmente necessárias. Mas, por outro lado, a restrição assim reforç~da é mais tolerável para o indivíduo porque, fora dela, ele tem uma esfera de liberdade que é ainda maior. O ·processo se torna ·tanto mais evidente quanto mais o direito - ou a norma mais próxima dele - se torna um agente de inibição e proibição. Entre os aborígines brasileiros, em geral não é permitido a um homem se casar com a filha de sua irmã ou irmão. Quanto maior é a tribo, mais severo se torna esse tabu, enquanto que em hordas menores e mais isoladas, freqüentemente o irmão e irmã vivem juntos. O caráter proibitivo da norma - que é miüs característico do direito que do costume - é mais aconselhável num grupo maior, pois este grupo compensa o indivíduo de maneira mais rica e positiva que o grupo pequeno. Existe ainda um outro aspecto que mostra · como o crescimento do grupo favorece a transição de suas normas para a forma do direito. Numerosas unificações de grupos menores ocorreram origina­riamente (ou mesmo são permanentemente f!1antidas) apenas pela força do direito e sua unidade se funda exclusivamente numa ordem jurídica uniforme. O condado dos estados de Nova Inglaterra eram originaria­mente apenas "um agregado de vilarejos com propósitos jurídicos".

Existem exceçõ~s aparentes desta dependência que têm o costume e a lei das diferenças quantitativas dos grupos. As unidades originais das tribos germânicas, que resultaram nos grandes reinos de França, Inglaterra e Suécia, conseguiram freqüentemente conservar, por longo tempo, a administração da justiça, que só se tornou questão de estado relativamente tarde. Inversamente, nas modernas relaç-6es-Últeniacionais ainda existem muitos costumes que não foram fixados em normas jurí­dicas. Novamente, dentro de um estado particular, certos modos de conduta são regulados por lei, os quais, nas relações com o exterior, ou seja, dentro do grupo supremo, devem ser deixadas à forma mais frouxa do costume.

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É simples esclarecer essas exceções aparentes. Obviamente, o tama­nho do grupo exige a forma da lei apenas na medida em que seus elementos formam uma unidade. Onde apenas tênues características comuns, mais que uma firme centralização, permitem a designação de um grupo enquanto tal, o caráter relativo dessa designação toma-se clara­mente evidente. Unidade social é um conceito de grau. As variações na unidade podem ser acompanhadas pela mudança das formas de regu­lamentação d~ grupo, ou mudando o tamanho do grupo. De acordo com isso, uma dada forma de regulamento exigida por um certo tamanho de grupo pode ser diferente daquela exigida por um grupo do mesmo tama­nho. A importância das condições numéricas não é, desse modo, preju­dicada, quando descobrimos que um grupo grande, por causa de suas tarefas especiais, pode ou mesmo deve funcionar sem a legalização de suas normas - algo que em geral é característico apenas de grupos menores. As embaraçosas formas estatais da antigüidade ·germânica sim­plesmente não possuíam ainda a coesão entre seus membros que, se ocorre em um grupo grande, é tanto causa como efeito de sua ·consti­tuição legal. Por meio de um argumento semelhante, podemos explicar por que - tanto nas relações coletivas quanto nas relações individuais entre os estados modernos - certas normas são constituídas por meros costumes. O motivo é a ausência de uma unidade acima das facções, que seria o veículo de uma ordem jurídica. Tanto em grupos menores quanto em grupos mais flexíveis, essa unidade é substituída pela interação imediata entre seus membros; e o regulamento que corresponde a .essa interação íntima é o costume. Em outras palavras, as exceções aparentes na verdade confirmam a conexão entre o costume e o direito, por um lado, e os aspectos quantitativos do grupo, por outro.

6. SUPERORDENAÇÃO E SUBORDINAÇÃO INTRODUÇÃO *

Dominação, uma forma de interação

Geralmente, ninguém deseja que sua influência determine por com­pleto um outro indivíduo. Mais desejável é que esta influência esta dete~minação do outro, atue de volta s~bre o próprio sujeito. Po; con­segumte, mesmo uma vontade-de-dominar abstrata é um caso de inte­ração. Tal vontade tira satisfação do fato de que a ação ou o sofrimento do outro,_ sua condição positiva ou négativa, se oferece ao dominador como produto de sua vontade. A importância deste exercício de domi­nação. solipsista (por assim dizer) consiste, para o próprio ordenador, exclu,siVamente na consciência de sua eficácia. Sociologicamente falando, esta ~ a~enas uma forma rudimentar. Unicamente por sua própria força, a assocmçao ocorre tão pouco quanto entre um escultor e sua estátua embora a estátua também influencie o artista através da consciência d; seu próprio poder criativo. A função prática deste desejo de dominação, mesmo nesta forma sublimada, não é tanto a exploração do outro quanto a _mera consciência ~essa possibilidade. De resto, isto não representa o caso ext:em~ de falta de consideração egoísta. Indiioitaveimente, o desejo de dommaçao se propõe a quebrar a resistência interna do subjugado

*Reproduz~do de SIMM~L, G. Superordination and subordination. In: The socfology of ?eorg S1mmel .. Ed. cJt., p. ~81-9. Trad. por Dinah de Abreu Azevedo. Tradução revrsta pelo orgamzador·e cotejada com o original alemão: über und Unterordnung In: Soziologie. Ed. cit., p. 101-5. ·

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(enquanto o egoísmo usualmente pretende apen~s a vitór~a s~bre ~ua resistência externa). Ainda assim, mesmo no deseJO de dommaçao existe algum interesse pela outra pessoa que, por isso, constitui ID? valor. S? quando o egoísmo não se importa nem mesmo com o deseJo de . domi­nação; só quando o outro é absolutamente indife~en:e .e um s~~les ·meio para finalidades que estão além dele, é que foi ehmmada a ultima sombra de qualquer processo de sociação.

A definição dos antigos juristas romanos mostra, de um modo rela­tivo, que a eliminação de toda importância independente de uma d~s duas partes interagentes anula a própria noção de soci~dade. Esta d~fi­nição dava a idéia de que a societas leonina não devia ~er co~cebida como um contrato social. Uma afirmação semelhante tem sido feita com relação aos trabalhadores de salário mais baixo nas modernas emp~e~as gigantes, que impedem qualquer competição _efetiva entr~ empresanos rivais pelos serviços destes operários. Já se disse que a diferença entre as posições estratégicas de trabalhadores e patrões é tão esm~ga~ora que 0 contrato de trabalho deixa de ser um "contrato" no sentido comum da palavra, porque os primeiros estão incondicionalmente à mercê dos_ últimos. Assim parece que a máxima moral de nunca usar um h~m:m como simples instrumento é, na verdade, a fórmula de qualquer. soci~ça~. Onde a importância de uma das partes cai tão baix~, que sua I~fluencia não conta mais no relacionamento com o outro, ha· Janto motivo para se falar de sociedade quanto no .caso de um carpinteiro e sua banca de trabalho.

Num relacionamento de subordinação, a exclusão de toda e qual-quer espontaneidade é efetivamente mais rar~ do que" suger~n;; c~rt~s expressões populares amplamente usadas, tais como coerçao , nao ter. nenhuma escolha", "absoluta necessidade", etc. Mesmo nos ~asas, de subordinação mais opressivos e· cruéis, ainda existe uma consideravel medida de liberdade pessoal. Não tomamos consciência disto simples­mente porque sua manifestação nos exigiria sacrifícios que usualmente nunca pensamos em nos impor. Na verdade, a coerçã~. "absoluta",_ a que mesmo o tirano mais cruel nos obrigá, é sempre mtl~a~ente rela­tiva. -Sua-condição-é-nosso _desejo __ de_escapar _de_ uma _punt_ç@_ -ªI1leaça­dora ou de outras conseqüências de nossa desobediência. Uma análise mais' precisa mostra que a relação de superordena?ão/:ubo~~inaç~o só destrói a liberdade do ·subordinado em caso de v10laçao fisica direta. Em todos os outros casos, esta relação apenas exige um preço para. a realização da liberdade - um preço que, certamente, não estamos dis­postos a pagar. Este preço pode estreitar mais e mais a esfera de con-

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dições externas .sob as quais a liberdade é claramente realizada mas, exceto por força física, nunca a ponto do. desaparecimento completo da liberdade. Não nos interessa aqui o lado moral dessa análise, mas so­mente seu aspecto sociológico. Este aspecto consiste no fato de que a interação, isto é, a ação mutuamente determinada, a ação que se baseia exclusivamente nas origens pessoais, prevalece, mesmo onde freqüente­mente não é notada. Existe inclusive naqueles casos de superordenação e subordinação - e por esse motivo faz ainda destes casos, formas societárias - onde, de acordo com as noções populares, a "coerção" de uma das partes priva o outro de qualquer espontaneidade, e assim, de qualquer "influência" ou contribuição real ao processo de interação.

Autoridade e prestígio

As relações de superordenação e subordinação desempenham um papel enorme na vida social. Por isso, é da maior importância para esta análise esclarecer a espontaneidade e a cooperação do sujeito subor­dinado e desse modo corrigir sua minimização, muito difundida por noções superficiais. Por exemplo, o que chamamos de "autoridade" pres­supõe - num grau muito maior do que usualmente se reconhece -a liberdade da pessoa submetida à autoridade. Mesmo quando ;:t auto­ridade parece "esmagar", não se baseia apenas em coerção ou com­pulsão de se render a ela.

A estrutura peculiar ,da "autoridade" é importante para a vida social nas mais variadas formas; isto é visível tanto em seus começos quanto em seus exageros, tanto em suas formas agudas quanto nas duradouras, e parece ocorrer de dois modos diferentes~· Uma pessoa de importância ou força superior pode adquirir, em seu círculo social mais próximo ou mais remoto, uma relevância esmagadora de suas opiniões, uma fé, ou uma confiança, que tem o caráter de objetividade. Desfruta assim de uma prerrogàtivá e de uma credibilidade axiomática em suas decisões, que sobrepuja, ainda que por muito pouco, o valor da mera personali­dade subjetiva, que é sempre variável, relativa e sujeita a críticas. Ao agir "autoritariamente", a quantidade de sua importância transforma-se numa nova qualidade; para seu meio ambiente; assume-o- estado físico - metaforicamente falando - de objetividade.

Mas o mesmo resultado, a autoridade,· pode ser alcançado pela direção oposta. Um poder supra-individual - Estado, Igreja, escola, família ou organizaçÕes militares - investe a pessoa de uma reputação, · uma dignidade, um poder de decisão final, que nunca fluiria de sua

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própria individualidade. É a natureza de uma pessoa autoritária a tomar decisões, com uma certeza e um reconhecimento automático que, logica­mente, só pertencem a deduções e axiomas impessoais e objetivos. No caso em questão, a autoridade cai sobre a pessoa, por assim di~er, enquanto no caso tratado antes, surge de qualidades da própria pessoa, através de uma generatio aequivoca. Mas evidentemente, nesse ponto de transição e mudança (da situação pessoal à situação autoritária) entra em cena a fé mais ou menos voluntária da parte sujeita à auto­ridade. Essa transformação do valor da personalidade num valor supra­pessoal dá a esta personalidade alguma coisa, um plus, que está além de sua parte racional e demonstrável, não importa quão desprezível seja esta adição. Aquele que acredita na autoridade realiza, ele mesmo, a transformação. O elemento subordinado participa de um evento socio­lógico que exige sua cooperação voluntária. Na realidade, a própria sensação de "opressão" sugere que a autonomia da parte subordinada é na verdade pressuposta e nunca inteiramente eliminada.

Uma outra nuance de superioridade, designada como "prestígio", deve ser distinguida de "autoridade". O prestígio carece do elemento de importância subjetiva; carece da identificação da personalidade com um poder ou norma objetivos. A liderança por meio de prestígio é inteira­mente determinada pela força do indivíduo. Essa força individual perma­nece sempre consciente de si mesma. Além do mais, enquanto o tipo médio de liderança sempre mostra uma certa mistura de fatores pessoais e de fatores objetivos suplementares, a liderança por meio do prestígio origina-se na pura personalidade, assim como a autoridade se origina da objetividade das forças e das normas. A superioridade po_r meio do prestígio consiste na habilidade de "arrastar" indivíduos e massas e fazer deles seguidores incondicionais. A autoridade não tem essa habilidade na mesma medida. O caráter mais elevado, mais frio e normativo da autoridade é mais apto a deixar espaço para a crítica, mesmo por parte de seus seguidores. Apesar disso, porém, o prestígio aparece como a mais espontânea homenagem à pessoa superior. O reconhecimento çla autoridade talvez implique, na verdade, ·uma liberdade mais completa que o encanto emanado do prestígio de um príncipe, de um padre, de um-líâer miiítar ou- espintual:-Mas a:-questã<:> é- díferente -se- conside-­ramos o sentimento dos liderados. Diante da autoridade estamos. fre­qüentemente indefesos, enquanto que o élan com que seguimos um deter­minado prestígio sempre contém uma consciência de espontaneidade. Aqui, precisamente porque a devoção refere-se apenas ao totalmente pessoal, ela parece fluir somente dos fundamentos da personalidade,

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com sua inalienável liberdade. O homem certamente erra incontáveis vezes em relação à medida de liberdade que deve investir numa deter­min~d.a ação. 1fm dos motivos é a imprecisão e incerteza na concepção exphclta atraves da qual esclarecemos este processo interno. Mas de qualquer forma que interpretemos a liberdade, podemos dizer que ela está presente em alguma medida - mesmo que não seja na medida que supomos - onde quer que haja o sentimento e a convicção de liber­dade 1•

Líderes e liderados

O elemento na aparência completamente passivo é na realidade até mesmo mais ativo em relações tais como as que se dão entre um orador e seu público ou entre um professor e sua classe. O orador e o professor não parecem ser nada mais além de líderes; momentaneamente, nada mais além de ordenadores. Pois quem quer que se encontre nesta ou noutra situação parecida, percebe a reação determinante e controladora por parte do que parece ser massa puramente receptiva e dirigida. Isto não se aplica somente a situações nas quais as duas partes se confrontam fisicamente. Todos os chefes são também chefiados; em muitos casos, o senhor é escravo dos seus escravos: Um dos maiores chefes de partido da Alemanha, referindo-se a seus seguidores, declarou: "Sou seu chefe e devo segui-los por esse motivo". ,

O jornalista mostra . isso da maneira mais cabal, pois ele dá con­teúdo e direção às opiniões de uma multidão silenciosa. Não obstante, nunca é obrigado a ouvir, combinar ou conjeturar sobre quais sejam as tendências dessa multidão, o que esta deseja ouvir ou confirmar, ou para onde quer ser levada. Embora aparentemente , apenas o público esteja exposto às suas sugestões, na verdade o jornalista está igualmente sob a influência das sugestões do público. Desse modo, uma interação altamente complexa (onde duas forças que se influenciam mutuamente

1 Aqui - e por analogia em muitos outros casos - a questão não consiste em definir o conceito de prestígio, mas apenas verificar a existência de uma certa variedade das interações humanas, sem ~nhuma (;()nsideração por suas designações. Todavia, muitas vezes, a apresentação começa propriamente com o conceito que o uso lingüístico torna relativamente mais adequado para a desco· berta da relação, porque a sugere. Isto parece um procedimento meramente definitório. Na verdade, porém, o empenho ~ão é nunca de encontrar o conteúdo de u~ conceito, mas de descrever, de preferência, um conteúdo real, que,. somente ?,casi~nalmente, tem a chance de estar abrangido, mais ou menos; por um conceito )a eXIstente.

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sem dúvida· aparecem sob formas muito diferentes) oculta-se aqui. sob a aparência da superioridade pura de um dos elementos e de um detxar-se levar puramente passivo do outro. . .

O conteúdo e a importância de certos relacwnamentos pessoais consistem no fato de que a função exclusiva de um dos elementos é servir o outro. Mas a perfeita medida desta devoção do primeiro ele~en­to depende freqüentemente das condições que o outro elemento estlp~la para o primeiro, mesmo que num nível diferente da relação.. Assim, considerando seu relacionamento com Guilherme I, observou B1smarck:

"Uma certa medida de devoção é determinada por lei; uma medida maior, por convicção política; além disso, exige-se um sentimento pessoal de reciprocidade. Minha devoçãp tem seu fun­damento principal em minha lealdade às conyicções mo~arquístas. Mas na ·forma especial em que existiu este monarqmsmo, est.a devoção só foi possível, afinal, sob o impacto de uma certa reci­procidade - a reciprocidade entre senhor e servidor".

O caso mais característico desse tipo aparece talvez na sugestão hip­nótica. Um hipnotizador eminente comentou que, em toda hipnose, o paciente exerce uma influência sobre o hipnotizador e que, a?esar des_:a influência não ser facilmente determinada, o resultado da hipnose nao poderia ser alcançado sem isso. Também aqui a aparência mostra uma influência absoluta, de um lado, e um absoluto ser - influenciado - do outro· mas isso oculta uma interação, uma troca de influências, que transf~rma a pura unilàteralidade de superordenação e subord~nação numa forma sociológica.

A interação na idéia de "direito"

Passo a citar alguns casos de superordenação e subordinação no campo do direito. É fácil revelar a interação que efetivamente ,existe naquilo que parece uma situação puramente unilateral. Se o despota absoluto acompanha suas ordens com ameaça de punição ou promessa de reconipensa, isto implica que ele. mesmo deseja ser limita~o. pelos decretos que promulga. Espera-se que o subordinado tenha o d1~e1to de requererâeieaiguma coisa;-e:,~-ao-estãbelecet a: punição, não 1mporta quão horrível seja, o déspota se compromete a n~o impor _uma outra mais severa. Se depois efetivamente mantém ou nao o castigo estabe­lecido ou a recompensa prometida, é outra questão: a importância d.a relação é que, embora o subordinador determine totalmente o subordi­nado, este, não obstante, está seguro de uma reivindicação na qual

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pode insistir ou da qual pode desistir. Desse modo, mesmo esta forma extrema de relação ainda contém algum tipo de espontaneidade de sua parte.

O motivo da interação em uma subordinação aparentemente unila­teral e passiva aparece com certa modificação peculiar numa teoria me­dieval do Estado. Segundo essa teoria, o Estado veio a existir porque os homens se obrigaram mutuamente à submissão a um chefe comum. Assim o governante era nomeado -incluindo, aparentemente, o gover­nante incondicional - na base de um contrato mútuo entre seus súditos. Enquanto as teorias contemporâneas de dominação viam este caráter de reciprocidade no contrato entre governantes e governados, a teoria em questão localizava esta natureza recíproca em sua própria base, o povo: o compromisso com o príncipe é concebido como merà articulação, expressão ou técnica de uma relação recíproca entre os indivíduos que compõem o povo. Em Hobbes, de fato, o governante não tem como quebrar o contrato com seus súdifos, porque ele não fez nenhum con­trato; .e o corolário disso é que o súdi!_g\ mesmo que se rebele contra seu governante, nem por isso quebra o contrato firmado com este, mas apenas o contrato do qual participou com todos os outros membros da sociedade, com o propósito de serem governados por este governante.

. É a ausênciá desta reciprocidade que realmente conta na obser­vação de que a tirania de um grupo sobre seus membros é pior que a de um príncipe sobre seus súditos. ,O grupo - e de forma alguma apenas o grupo político __;-considera seus menibros, não pelo confronto com ele, mas como incluídos por ele, como seus próprios vínculos. Isto resulta freqüentemente numa peculiar desconsideração para com os mem­bros, que é ·muito diferente da crueldade pessoal de um governante. Onde quer que exista, formalmente, um confronto (mesmo que, em ter­mos de conteúdo, esteja próximo da submissão) existe interação; e, em princípio, a interaçãD semp~e i~clui alguma ·limitação de cada uma das partes no processo (ainda que seja possível haver exceções individuais a essa regra) . Onde a ordenação mostra uma desconsideração extrema, como no caso do grupo que simplesmente dispõe de seus membros, não existe mais qualquer confronto com sua forma_~e_interação, que envolve espontaneidade, e por isso, limitação, tanto do elemento arde­nadar quanto do elemento subordinado.

Isso se expressa muito claramente no conceito original da lei roma­na. Em sua pureza, o termo lei implica uma submissão que não envolve qualquer espontaneidade ou efeito contrário por parte da pessoa subor­dinada a ela. E o fato de o subordinado ter ·realmente cooperado em

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sua elaboração - e mais ·ainda, o fato de ter imposto a si mesmo a lei que o obriga - é irrelevante. Ao fazê-lo assim, ele simplesmente cindiu-se em sujeito e em objeto da elaboração da lei; e a lei que o sujeito aplica ao objeto não muda seu significado apenas porque tanto o sujeito quanto o objeto estão acidentalmente alojados na mesma pessoa física. Não obstante, em sua concepção de lei, os romanos aludem dire­tamente à idéia de interação, pois originalmente "lex" significava "con­trato", mesmo no sentido de que suas condições são fixadas pelo pro­ponente e a outra parte pode simplesmente aceitá-lo ou rejeitá-lo em sua totalidade. No começo, a là publica populi romani implicava em que o rei propusesse sua legislação e em que o povo a aceitasse~ Por

· isso, o próprio conceito que, acima de todos, parece excluir a interação, propõe, não obstante, uma referência à interação, por meio de sua ex­pressão lingüística. Num certo sentido isto é revelado pela prerrogativa do monarca romano de apenas a ele ser permitido falar ao povo. Tal prerrogativa, certamente, expressava a exclusividade de seu posto, zelosa­mente guardada, mesmo que na Grécia antiga o direito de todos de falar ao povo indicasse uma democracia completa. Apesar disso, esta prerrogativa implica que a importância de falar ao povo, e portanto, a importância do próprio povo, era reconhecida. Embora o povo sim~ plesmente recebesse esta ação unilateral, era, contudo, um contratante (cuja outra parte no contrato era, naturalmente, uma única pessoa, o monarca).

A finalidade destas observações preliminares foi mostrar o caráter propriamente sociológico, sociogênico, da superordenação e da subor­dinação, ainda quando isto aparece como se uma relação social tivesse sido substituída por uma relação puramente mecânica - isto é, onde a posição do subordinado parece ser a de um meio ou um objeto para o subordinador, sem qualquer espontaneidade. Foi possível mostrar, ao

_ menos em muitos casos, a influência recíproca sociologicamente decisiva, que se ocultava sob o- caráter unilateral de influenciar e ser influenciado.

7. O EFEITO DA.SUBORDINAÇÃÓ SOB O PRINCíPIO DASRELAÇÕESENTRESUPERIORESE

SUBORDINADOS*

- _ .A segunda questão relativa à subordinação, sob um princípio impes­soal-Ideal, refere-se ao efeito desta subordinação. comum sobre as relações recíprocas entre os subordinado.s. Também aqui deve ser lembrado acima de tudo, que uma subordinação :t;eal freqüentemente precede um~ subordinação ideal. Muitas vezes achamos que uma pessoa ou uma classe

. exerce a subordinação em f!Ome de um princípio ideal, ao qual a própria pessoa ou classe supostamente se subordina. Por isso, este princípio parece logicamente anterior à organização social; a verdadeira organiza­ção da dominação entre pessoas parece se desenvolver em conseqüência d.aquel~ dependênçia ideal. Historicamente, todavia, este percurso tem Sido feito, usualmente, na direção oposta. As sobreposições e subordi­nações se desenvolvem a partir de relações de poder muito reais e pessoais. Através da espiritualização do poder dominádor ou através da expansão e despersonalização de toda a relação, desenvolve-se gradual­~ente um poder ideal objetivo acima destas. superordenações e subor­dmações. O superior exerce então o seu poder meramente na qualidade do representante mais próximo desta força ideal-objetiva.-

* Repro~uzido de SIMMEL, G .. The effect of subordination under a. principie upon t~e relatlons b.etween superordinates and subordinates. In: The sociology of Georg Szmmel. Ed~ crt., p. 261-~. Trad. por Dinah de Abreu Azevedo. Tradução revista pel~ Or?amzado~ e coteJada com o original alemão: über und Unterordnung. Sozzologze. Ed. crt.,- p. 155-9. -

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Estes processos sucessivos aparecem muito distintamente no desen,­volvimento da posição do pater famílias entre os arianos. Originalmente - é assim que o tipo se nos apresenta - seu poder era ilimitado e totalmente subjetivo, isto é, o pater familias tomava todas as decisões segundo seus caprichos e em termos de van~agens pessoais.· No entanto, esse poder arbitrário foi substituído gradualmente por um sentimento de responsabilidade. A unidade do grupo familiar, personificada (por exem­plo) no spiritus familiares, tornou~se uma força ideal, em relação à qual o senhor de tudo se sentia meramente como alguém que executava e obedecia. É nesse sentido que o hábito e o costume, mais que a prefe­rência subjetiva, determinavam suas ações, decisões e decretos judiciais; é nesse sentido que ele não se comportava mais como o senhor incondi­cional da propriedade familiar, porém mais C01J10 seu administrador, no interesse do todo; e é nesse sentido que sua posição tinha mais o caráter de um ofíció que de um direito ilimitado. A relação entre superiores e subordinados colocava-se desse modo sobre uma base inteiramente nova. Enquantó no primeiro estágio os subordinados constituíam, por assim dizer, apenas um acessório pessoal dos superiores, mais tarde prevaleceu a idéia objetiva da família, que está acima de todos os indivíduos e a quem o patriarca dirigente se subordinava tanto quanto qualquer outro membro. O patriarca só pode dar ordens aos outros membros da família em nome dessa unidade ideal. ··

Encontramos aqui uma forma típica extremamente importante, a saber, aquela na qual o próprio chefe se subordina à lei que ele mesmo elaborou. No momento em que sua vontade se transforma em lei, esta adquire um caráter objetivo, e dessa maneira se separa de, sua origem pessoal-subjetiva. Assim que o governante considera a lei como le~, ele se confirma, na mesma medida, como o instrumento de uma necess1dade ideal. Revela apenas uma forma obviamente. válida pelo próprio sentido interno da norma e da situação, quer o governante a enuncie de fato ou não. Além disso - ainda que em vez desta legitimação expressa de maneira mais ou mertàs clara - se a própria vontade do governante se torna lei, então nem mesmo o governante pode evitar a transcendência da .esfera_da_siJ.bjeíiYidade: _pois ne~e _ cªª-oL_~!e (;1i!r~_ga __ e~s~ Elesiilo, por assim dizer, a legitimação pessoal a priori. Dess: modo, a for~a interna da lei faz com que seu elaborador, ao elabora-la, se subqrdme a esta como pessoa, da mesma maneira q~e todos os outros. Assim, · o privilégio ·das cidades flamengas medievais estabelecia que os jurados deviam dar a todos um julgamento imparcial, incluindo até mesmo o conde que conferiu à cidade este privilégio. E um governante tão pode-

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roso quanto o Grande Eleitor, introquziu um imposto per capita, sem pedir consentimento a seus súditos - mas não só obrigou sua corte a pagá-lo, como o pagava ele mesmo.

A história mais recente dá um exemplo do desenvolvimento de um poder objetivo ao qual a ,pessoa que original e subseqüentemente está no comando deve se sujeitar, do mesmo 1Ilodo que todos os seus subor­dinados. O exemplo se refere formalmente ao caso citado da história da- família. Na produção econômica moderna, os elementos técnicos e objetivos predominam sobre os elementos pessoais. Em tempos ante­riores, muitas sobreposições e subordinações tinham um caráter pessoal, tanto que, numa dada relação, simplesmente um era o superior e o outro o suberdinado. Muitas dessas relações/ mudaram, no sentido de que tanto superiores quanto subordinados servem igualmente a um pro­pósito objetivo; mas é apenas no interior desta relação comum com o princípio superior que a subordinação de um ao outro continua a exístir ·cbmo uma necessidade técnica. Assim que a relação de trabalho assala-' riado é concebida como um contrato de arrendamento (no qual o traba­lhador é arrendado) , o contrato compreende a subordinação do traba­lhador ~~ empresário como um elemento essenéiãl. Mas uma vez que se considet:a o contrato de trabalho, não como o arrendamento de uma pessoa, mas como a c;ompra de uma mercadoria, isto 'é, de trabalho, então este elemento de subordinação.· pessoal é eliminado. Neste caso, a ~bordinação que o empl1egadór exige do trabalhador é apenas -assim tem sido enunciado _;__ a subordinação "ao processo de coope­ração, uma-Subordinação tão compulsiva para o empresário - uma vez que este se empenha numa atividade - quanto para o trabalhador". O trabalhador não é mais submetido como pessoa, mas apenas como servi­dor de um processo econômico objetívà. Neste processo, o elemento que, sob a forma de empresário ou gerente domina o trabalhador, não fun­ciona mais como um elemento pessoal, mas somente como um elemento necessário aos requisitos objetivos. '

A crescente consciência de si próprio do trabalhador moderno devç, ao menos parcialmente, 1igar-s~ a este processo, que mostra tambéili. seu caráter puramente sociológico pela circunstânciacf~~-não ter, fre­qüentemente, nenhuma influência no bem-estar material do trabalh~dor: Este simplesmente vende um serviço definido quantitativamente, que pode ser maior ou menor que o exigido pelo acordo pessoal anterior. Desse modo ele se livra, como homem, da relação de subordinação, à qual pertence apenas enquanto um elemento do processo de produção,

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e nessa medida se nivela àqueles que dirigem a produção. Essa objetividade

técnica tem como seu símbolo a objetividade da relação contratual: uma

vez que o contrato seja firmado, este permanece como uma norma obje­

tiva acima de ambas as partes. Na Idade Média, este fenômeno marcou

o ponto crítico na condição do operário, que originalmente implicava

uma subordinação pessoal absoluta ao mestre: o operário era geralmente

chamado de "criado" (Knecht). A união dos operános numa categoria

própria concentrava-se na tentativa de transformar a relação de serviço

pessoal numa relação contratual: assim que a organização dos "criados"

foi conseguida, sua denominação, muito caracteristicamente, foi substi­

tuída para "operários". Em geral, um nivelamento relativo, em vez de

completa subordinação, . é o que se relaciona com a forma contratual,

não importa qual seja o conteúdo material do contrato.

Essa forma fortalece ainda mais o seu caráter objetivo, se o con­

trato não é celebrado entre indivíduos, mas se consistir em regulamentos

coletivos entre um grupo de trabalhadores, de um lado, e um grupo de

empresários, do outro. Isto foi especialmente desenvolvido pelos sindi­

catos ingleses que, em certas indústrias altamente desenvolvidas, firmam

com as associações de empresários, contratos relativos a índices salariais,

tempo de trabalho, horas extraordinárias, férias, etc. Estes contratos

não_ podem ser ignorados por nenhum subcontrato firmado por membros

individuais destas categorias mais amplas. Dessa maneira, a impessoali­

dade da relação de trabalho evidentemente aumenta num grau extraor­

dinário. A objetividade dessa relação encontra um instrumento e uma

expressão adequados na coletividade supra-individual. Finalmente, ess·e

caráter objetivo é ainda mais especificamente assegurádo se os contratos

são firmados para períodos bem curtos. Os sindicatos ingleses sempre

insistiram em períodos curtos, a despeito da crescente insegurança que

disso resulta. A explicação para esta insistência baseia-se no fato de

que o trabalhador se distingue do escravo- pelo direito de abandonar o

seu local de trabalho; mas se abdica desse direito por um período muito

longo, está sujeito, durante toda a duração deste período, a todas as

condições-que- o-empresárie-'lhe- impuser, -com exceção __ daquelas_ expres­

samente estipuladas, e perde a proteção oferecida por seu direito de

rescindir a relação. Ein vez de afrouxamento ou compreensão dos vín­

culos,- que em tempos anteriores comprometiam toda a personalidade,_

surge aí, se o contrato se prolonga muito, a extensão ou duração desses

vínculos. No caso de contratos por pouco tempo, a objetividade está

garantida, não por algo positivo, mas apenas pela necessidade de evitar

1 .,

119

que a relação contratual objetivamente regulada se transforme numa

relação determinada pela arbitrariedade subjetiva - enquanto no caso

de _ contr,atos de longa dúração não há nenhuma proteção suficiente

correspondente.

Na relação de serviço doméstico - ao menos a grosso modo, nâ

E.uropa central contemporânea - ainda é o indivíduo total, por assim

~zer, que entra na subordinação, pois esta ainda não conseguiu a objeti­

vidade de um serviço objetiva e claramente limitado. Desta circunstância

orig~a~-:s~ as principais inadequações inerentes à instituição do serviço

domestico. Essa instituição se aproxima realmente de sua forma mais

perfeita quando é substituída pelo serviço de pessoas que desempenham

na casa apenas certas funções objetivas e qúe desse modo se nivelam

à dona da casa. A antiga relação - ainda existente - envolvia os

empregados domésticos como personalidades totais .e os obrigava - como

aparece de modo notável no conceito de "moça para todo serviço"

(Miid chen für alies) - a "serviços ilimitados". As empregadas domés­

ticas se subordinavam à dona da casa enquanto pessoas precisamente

p~rqu~ não havia delimitações objetivas. Sob condições totalmente pa­

tnarcais (em contraste com as contemporâneas) a "casa" é considerada

um valor e uma finalidade intrínseca e objetiva, em cujo interesse, dona­

-de-casa e empregadas cooperam. Isto resulta, mesmo · se existe uma

subordinação completamente pessoal, ,num certo nivelamento, sustentado

pelo interesse que a empregada - que está sólida e permanentemente

ligada à casa - usualmente sente por está. O tratamento familiar "tu"

usado ao dirigir-se a ela, expressa por um la,.do sua subordinaÇão pessoal:

mas por outro, torna-a comparável às crianças da casa e ·dessa maneira

a prende mais estreitamente à sua organização. É bastante estranho,

mas parece que, em alguma medida, a obediência a uma idéia objetiva

ocorre nos estágios_ extremos do desenvolvimento da obediência: primei­

ro, sob a condição de completa subordinação patriarcal, na qual a casa

ainda tem, por assim dizer, um valor absoluto, servido tanto pelo tra­

balho da dona-de-casa (embora numa posição mais elevada) quanto

pelo da empregada; segundo, ~ob condições de completa diferenciação,

na qual serviço e recompensa são objetivamente predeterminados, e

onde . a ligação pessoal, que caracteriza o estágio de quantidade não­

-definida de subordinação, esse valor tornou-se alheio à relação. A

posição cOntemporânea da empregada que compartilha a casa de seu

patrão perdeu, particularmente nas ·grandes cidades, o primeiro desses

dois tipos de objetividade, sem ter ainda conseguido o segundó. A persa-

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,. '

120

nalidade total da empregada não é mais reivindicada pela idéia objetiva

da "casa''; entretanto, devido ao modo genérico pelo qual seus serviços

são solicitados, ela não pode separar-se realmente da casa.

Finalmente, essa forma típica pode ser exemplificada pela relação

entre oficiais e soldados rasos. Aqui, a distância entre a subordinação

no interior da organização do grupo e a coordenação que resulta do

serviço comum em defesa da pátria, é 1naior do .que se pode imaginar:

é muito compreensível que a distância. seja muito::mais perceptível na

linha de fogo. Por um lado, a disciplina é aí mais impiedosa, mas por

outro, o companheirismo entre oficiais e soldados rasos é favorecido,

em parte por situações específicas e em parte pelo estado de espírito

geral. Em tempos de paz, o exército está restrito à posição de um meio

que não realiza seus fins; portanto, é inevitável que sua estrutura técnica

se tome um objetivo psicologicamente fundamental, tanto que a subor­

dinação, em que se baseia a técnica de organização, permanece no

primeiro plano da consciência. A peculiar mistura sociológica com a

coordenação, que resulta da subordinação comum a uma idéia objetiva,

só se torna importante quando a mudança de situação chama a atenção

para essa idéia, ·como a finalidade real do exército.

Na organização grupal deste específico conteúdo de vida, o indi­

víduo ocupa assim uma posição de sobreposição ou de subordinação.

Mas o grupo como um todo está sob uma idéia dominante, que çlá a

cada um de seus membros uma posição igual ou aproximadamente

igual, em comparação com todos os que estão de fora.· O indivíduo tem

portanto um duplo papel, que faz de sua situação puramente formal e

sociológica, o veículo para sensações de vida peculiarmente misturadas.

O empregado de uma grande empresa pode ter nesta uma posição diretiva,

que leva seus subalternos a sentirem como sendo um caminho superior

e imperioso. Mas assim que se defronta com o público, e age sob a

idéia de sua firma como um todo, mostrará um comportamento serviçal

e devoto. Na direção oposta, esses elementos estão entrelaçados com a

~ostumeira arrogância de subalternos, servos de casas nobres, membros

d~---;;írculo_s_ sociais ou -mtelectu-aiS · pnvlfij;Iiiâos, -que na veraade estão­

na periferia destes grupos, mas ·.para quem está de fora, representam

a mais enérgica dignidade do círcuio completo e de sua idéia. Pois o

tipo de relação positiva que têm com o círculo lhes dá uma posição

semi-sólida, interna e externamente; e procuram incrementá-la de forma

negativa, diferenciando-se dÓs outros. A mais rica variedade formal_~esse

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tipo talvez seja a oferecida pela hierarquia católica. Embora todos os

.seus membros estejam ligados a ela por uma obediência cega, que não

admite contradições, não obstante, em comparação com o leigo, até o

niembro mais humilde está em superioridade absoluta, na qual a idéia

do Deus eterno eleva~se acima de todas as questpes materiais. Ao mesmo

tempo, o mais alto membro desta hierarquia confessa ser o "servo dos

servos". O monge que, dentro de sua ordem pode ter poder absoluto,

reveste-se da ~ais profunda humildade e espírito de servir, frente a um

mendigo; mas o irmão mais humilde de uma ordem é superior ao príncipe.

secular, por meio da soberania absoluta da autoridade da igreja.

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8. A NATUREZA SOCIOLóGICA DO CONFLITO *

O conflito como sociação

Em princípio, a importância sociológica do conflito (Kampf) nunca foi questionada. Admite-se que o conflito produza ou modifique grupos de ·interesse, uniões, organizações. Por outro lado, sob um ponto de vista comi:un, pode parecer paradoxal se alguém pergunta!, desconside­nú:úlo qualquer fenômeno que résulte do conflito ou que o acompanhe, se ele, em si mesmo, é uma forma de sociação. À primeira vista, essa parece uma questão retórica. Se toda interação entre os homens é uma sociação, o conflito - afinal, uma das mais vívidas interações e que, além disso, não pode ser exercida por um indivíduo apenas - deve certamente ser considerado uma sociaÇão. E de fato, os fatores de dis­sociação- ódio, inveja, necessidade, desejo- são as causas do conflito; este irrompe devido a essas causas. O conflito está assim destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo de conseguir algum tipo de unidade, aind~ que através da aniquilação de uma das partes confli­tantes. Isso é aproximadamente paralelo ao fato do mais viole11t()_ sint~l!la __

*Reproduzido de SIMMEL, G. The sociological nature of conflict. In: -. Conflict & The web of group-affiliations. Nova York-Londres, The Free Press e Collier Macmillan Publishers, 1964. p. 13-28. Trad. por Dinah d~ Abreu Azevedo. Trad. revista pelo Organizador e cotejada .com o original alemão-: 'í:>er Streit. In: Soziologie.

Ed. cit., p. 186~95.

123

de uma doença ser o que representa o esforço do organismo para se livrar dos distúrbios e dos estragos causados por eles.

Mas esse fenômeno significa muito mais que o trivial "si vis pacem para bellum" (se quiser a paz, prepare-se para a guerra); isso é algo bem genérico, que esta máxima apenas descreve como um caso especial. O próprio conflito resolve a tensão entre contrastes. O fato de al!nejar a paz é só uma das expressões - e especialmente óbvia - de, sua natureza: a síntese de elementos que trabalham juntos, tanto um contra·· o outro, quanto um para o outro. Essa natureza aparece de modo mais daro quando se compreende que ambas as formas de relação - a anti­tética e a· convergente - são fundamentalmente diferentes da mera in?i~e:ença en~r~ dois ou .m~is in~ivíduos ou ,~rupos. Caso implique na reJeiçao ou no fim da soc1açao, a mdeferença e puramente negativa; em contraste com esta ne~~ividade pura, o conflito contém algo de positivo. Todavia, seus aspectos positivos e negativos estão integrados; podem ser separados conceitualmente, mas não empiricamente.

A relevância sociológica d~ conflito

Todas as formas sociais aparecem sob nova luz quando vistos pelo ângulo do caráter sociologicamente positivo do conflito. Torna-se logo evidente que, se as relações entre os . homens (mais que aquilo que o indivíduo ·é para si mesmo e em suas relações com os objetos) constituem a matéria subjetiva de uma ciência especial, a Sociologia, nesse . caso os tópicos tradicionais desta ciência cobrem .·~penas uma de suas sub­divisões: ela é mais abrangente. e mais verdadeiramente definida por um princípio. Parece que antigamente havia só duas questões subjetivas compatíveis com a ciência do homem: a unidade do indivíduo e a unidade formada pelos indivíduos, a sociedade; uma. terceira parecia logica:q~.ente excluíd~. Nesta concepção, o próprio conflito - sem consi­derar suas contribuições a estas unidades sociais imediatas - não encon­traria lugar próprio para estudo. É o conflito um fato sui generis e sua inclusão sob o conceito de unidade teria sido tão arbitrária quanto inútil, uma vez que o conflito significa a negaçã~ da unidade.

Uma clãssificaçao mais abrangente ·da ciênCia"das· relações huriümas deveria distinguir, parece, aqueras relações que constituem uma unidade, isto é, as relações sociais no sentido estrito, daquelas que contrariam a unidade. Deve-se compreender, todavia, que ambas as relações cos­tumam ser encontradas em todas as situações historicamente reais. O indivíduo não alcança a unidade de sua personalidade exdusivamente

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124

através de uma harmonização exaustiva - segundo normas lógicas, obje­

tivas, religiosas ou éticas - dos conteúdos de sua personalidade. A

contradição e o conflito, ao contrário, não só prec.edem ·esta unidade

como operam em cada momento de sua existência. É claro que prova­

velmente não existe unidade social onde correntes convergentes e 'diver­

gentes. não estão inseparavelmente entrelaçadas. Um grupo absoluta~

mente centrípeto e harmonioso, uma "união" pura (V ereinigung) não

só é empiricamente irreal, como não poderia mostrar um processo de

vida real. A sociedade de santos que Dante vê na Rosa do Paraíso pode

ser como esse grupo, mas este não tem qualquer mudança ou desenvol­

vimento, enquanto que a assembléia sagrada dos Patriarcas da Igreja,

na Disputa de Rafael mostra, se não um conflito verdadeiro, ao menos

uma considerável diferenciação de ânimos e ·direções de ·pensamento, de

onde fluem toda a vitalidade e a estrutura realmente orgânica daquele

grupo. Assim como o universo precisa de "amor e ódio", isto é, de

forças de atração e de forças de repulsão, para· que tenha uma forma

qualquer, assim também a sociedade, para alcançar uma determinada

confíguração, precisa de quantidades proporcionais de harmonia e desar­

monia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavo­

ráveis. Mas essas discordâncias não são absolutamente meras deficiências

sociológicas ou exemplos negativos. Sociedades definidas, verdadeiras;

não resultam apenas das forças sociais positivas e apenas na medida

em que aqueles fatores negativos não atrapalhem. Esta concepção

comum é bem superlidal: a sociedade, tal como a conhecemos; é o

resultado de ambas as categorias de interação, que se manifestam desse

modo como inteiramente positivas 1 •

1 Este é o exemplo sociológico de um contraste entre duas· cçmcepções

de vida muito mais gerais. Segundo o ponto de vista comum, a vida · sempre

mostra duas partes em oposição. Uma delas representa o aspecto positivo

da vida, seu conteúdo propriamente dito, se não a sua substância, enquanto que

o próprio significado da outra é não-ser, o qual deve ser subtraído dos elementos

positivos, antes de poderem constituir vida. Este é o ponto de vista comum da

relação entre felicidade e sofrimento, virtude e vício, força e deficiência, sucesso

e fracasso - entre todos os conteúdos possíveis e todas as interrupções do curso·

da vida. A mais eltiviida -das concepÇões a respeito- desses pare-s-de--çontrários-me------,-Cc.J

parece diferente: devemos conceber todas estas diferenciaÇões polares como uma

só vida; devemos sentir o pulso de uina vitalidade central mesmo naquilo que,

se considerado do ponto de vista de um ideal particular, não deveria existir

absolutamente e é apenas algo negativo; devemos permitir que o sentido global

de nossa existência brote de ambas as partes. No contextÕ mais abrangente da vida,

mesmo aquele elemento que, isolado, é perturbador ·e destrutivo, é totalmente

positivo; não é uma lacuna, mas o preenchimento de um papel reservado apenas

125

Unidade e discordância

_ Há um mal-entendi_do, segundo o qual um desses dois tipos de inte­

~açao desfaz o que o outro constrói, e aquilo que eventualmente fica

e o resultado da subtração dos dois (enquanto na realÍdade deve ser

mais propriamepte designado como o resultado de sua soma). ~ provável

que esse mal-entendido dt')rive do duplo sentido do conceito de unidade.

Designamos por "unidade" o consenso e a concordância dos indivíduos

que interagem, em contraposição a suas discordâncias, separações e

desarmonias. Mas também chamamos de '1unidade" a síntese total do

grupo de pessoas, de energias e de formas, isto é, a totalidade suprema

daquele grupo, uma totalidade que abrange tanto as relações estrita­

mente unitárias quanto as relações duais. C~ncebemos assim o grupo

d_e fe?ômen~s que julgamos "unitários" em termos de componentes fun­

c~onats considerados especificamente unitários; e ao fazer isto, descon­

Sideramos aquele outro sentido mais abrangente do termo.

Essa imprecisão é reforçada pelo . correspondente duplo sentido de

"discordância" ou "oposição". Desde que a discordância mostra seu

~aráter negativo e destrutivo entre indivíduos particulares, concluímos

mgenuamente que deve ter o mesmo efeito no grupo todo. Na realidade

todavia, algo que é negativo e prejudicial entre indivíduos, se conside~

a ele. Talvez não nos seja dado alcançar; e muito menos manter permanente­

ment~, a_ altitude da qual todos os fenômenos podem ser vistos compondo a unidade

da VIda mesmo que, de um ponto de vista objetivo ou àvaliador, pareçam se

op?r um ao _outro como a ~ais e a menos, como contradições, como- eliminações

mutuas. Inclmamo-nos demais a pensar e sentir. que nosso ser essencial nossa

verdade, nossa significação suprema, seja idêntica a uma dessas facções. De' acordo

com ~o~so senti~ento de vida otimista ou pessimista, um deles nos parece como

superftc~e ou act~ent~, ~orno algo a ser eliminado ou subtraído, a fim de que

se mamfeste a VIda Ip.tnnsecamente coerente e verdadeira. Estamos emaranhados

ne~se dualismo por toda parte (o que será agora discutido em detalhe no texto

acima~ - tanto nas regiões mais íntimas da vida quant:o nas mais abrangentes, as

pe~soats, as objetivas e as sociais. Pensamos ter, ou ser, uma totalidade ou

umdade, composta de duas partes lógica e objetivamente opostas, e identificamos

es~a ,nossa totali~ade com uma delas, enquanto sentimos que J. outra é algo

ahemgena que nao nos pertence propriamente e que nega . nosso ser abrangente

e -fundamental.-A~vida-s&-mGve-cGnstantemente--entr~sas . duas tendências. Uma

delas ~cabou de ser descrita. A outra permite que a totalidade realmente seja

a totahd~~e. Fa~ com que a unidade, que afinal de contas compreende ambos

?s c~ntra~Ios, exista em cada um desses contrários e em sua articulação. Tudo

Isso e ~ats do q~e ~~cessário para. afirmar o direito dessa tendência em relação

ao fenomeno socwlogtco do conflito, porque o conflito tanto nos impressiona

com sua força socialmente destrutiva quanto como um fato aparentemente incon­testável.

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rado isoladamente e visando uma direção particular, não tem necessa­riamente o mesmo efeito no relacionamento total desses indivíduos, pois surge um quadro muito diferente quando visualizamos o confltt,o associado a outras interações não afetadas por ele. Os elementos negativos e duais jogam um papel inteiramente positivo nesse quadro mais abrangente, apesar da destruição que podem causar em relações particulares. Tudo isso é muito óbvio na competição de indivíduos no interior de uma unidade econômica.

O conflito como força integra.dora do grupo

Existem aqui, entre os casos mais complexos, dois tipos opostos. Em primeiro lugar, temos os grupos pequenos que, assim como o casal, envolvem, não obstante, um número ilimitado de relações vitais entre seus membros. Uma certa quantidade de discordância interna e contro­vérsia externa estão organicamente vinculadas aos próprios elementos que, em última instância, mantêm o grupo ligado; isso nã() pode ser separado da unidade da estrutura sociológica. Isso não é válido apenas para os casos de evidente fracasso conjugal, mas também para os casa­mentos caracterizados por um modus vivendi suportável ou, no mínimo, suportado. Tais casamentos não são "menos" casamento pela quantidade de conflito que contêm; ao contrário, a partir de tantos outros elementos - entre os quais há uma quantidade inevitável de conflito - evoluíram para as unidades definidas e características que são. Em segundo lugar, o papel positivo e integrador do antagonismo aparece nas estruturas que se distinguem pela nitidez e . pela pureza cuidadosamente preservada de suas divisões e gradações sociais. Desse modo, o sistema social hindu não repousa apenas na hierarquia, mas também, diretamente, na repulsão mútua das castas. As hostilidades não só preservam os limites, no interior do grupo, do desaparecimento gradual, como são muitas vezes conscien­temente cultivadas, para garantir condições de sobrevivência. Além disso, têm também uma fertilidade sociológica direta: com freqüência propor­cionam posições recíprocas às classes e àos indivíduos que estes não . poderiam encontrar, ou não encontram do mesmo modo, se as causas da hostilidade- não . estiverem acompanlüldas--pelo sentfmento-e-pela-ex::---------:.;; pressão hostil - ainda que estiverem operando as mesmas causas obje- -~ tivas de hostilidade. ·}~ .;t'

O desaparecimento de energias de repulsão (e, isoladamente consi- ~: dera das, de destruição) não resulta sempre, em absoluto, numa vida f,: social mais rica e mais plena (assim como o desaparecimento de resiJOn- ~·

127

sabilidades não resulta em maior propriedade), mas num fenômeno tão diferente e irrealizável quanto se um grupo· fosse privado das forças de cooperação, afeição, ajuda mútua e convergência de interesses. Isto não é válido somente para a competição em geral, que determina a forma do grupo, as posições recíprocas de seus componentes e à distância entre eles, e que o faz de modo tão puro quanto uma matriz formal de tensões, desconsiderando quase totalmente seus resultados objetivos; isto é válido também onde o grupo se baseia nas atitudes de seus membros. A opo­sição de um membro do grupo a um companheiro, por exemplo, não é um fator social puramente negativo, quando muitas vezes tal oposição pode tornar a vida ao menos possível com as pessoas realmente insupor­táveis. Se não temos nem mesmo o poder e o direito de nos rebelàrmos contra a tirania, a arbitrariedade, o mau-humor e a falta de tato, não poderíamos suportar relação alguma com pessoas cujo temperamento assini toleramos. Nós nos sentiríamos impelidos a dar passos desespe­rados - e estes realmente acabariam com a relação, mas não consti­tuiriam, talvez, um "conflito"; não só pelo fato (embora não seja essen­cial aqui) de que a opressão costuma aumentar quando é suportada calmamente e sem protestos, mas também porque a oposição nos dá satis;. fação íntima, distração, alívio, assim como, sob condições psicológicas diferentes, nos dá humildade e paciência. Nossa oposição nos faz sentir que não somos completamente vítimas das circunstâncias. Permite~nos

colocar nossa força à prova conscientemente e só dessa maneira dá vitalidade e reciprocidade às condições das quais, sem esse corretivo, nos afastaríamos a todo custo.

A oposição alcança esse objetivo mesmo onde não existe nenhum êxito perceptível, onde este não se torna manifesto, mas permanece totalmente oculto. Mesmo quando dificilmente tenha qualquer efeito prático, pode ainda. conseguir um equilíbrio interior (às vezes até por parte de' ambos os parceiros da relação), pode exercer uma influência tranqüila·; pode produzir um sentimento de poder virtual e desse modo preservar relacionamentos, cuja continuidade muitas vezes atordoa o observador. Em tais casos, a oposição é um elemento da própria relação;

--está-intrinse-camente-entrelaçada--com-outrm;-mutivos de existência da re~ª_ção. Não é só um meio de preservar a relação, mas uma das funções c6ncretas que verdadeiramente a constituem. Onde as relações são pura­mente externas e ao mesmo tempo de pouca importância. prática, esta função pode ser satisfeita pelo conflito em sua forma latente, isto é, pela aversão e por sentimentos de mútua estratiheza e repulsão que, num

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contato mais íntimo, não importa quão ocasional, transforme-se imediata-

mente· em ódio e luta reais. . . . . t Sem tal aversão, não poderíamos imagmar que forma pode_na er

a vida urbana moderna, que . coloca cada pessoa em . contato co~ mum_:­ráveis outras todos os dias. Toda a organização interna da ~ntera?ao urbana se baseia numa hierarquia extremamente compl~xa de stmpatla~ indiferenças e aversões, do tipo mais efêmero ao mats ~ur~douro. .

. . omplexo a ~sfera de indiferença é relativamente hmltad~, pms nesse c ' . o d ntlmento nossa atividade psicológica responde com um determma o se b a uase todas as impressões que vêm de outra pessoa. A . natureza s~ -co~sciente, fugidia e mutável deste sentimen~? apenas 'ap~renta reduz~~~~ à indiferença. Na verdade, tal indiferença sena para nos t~o ?ouco, n

1 ral quanto seria insuportável o caráter vago de i~umer~vets ,es.ttmu ~: contraditórios. A antipatia nos prótege desses dms o pengos tlptcos

"da· de· a antipatia é a fase preliminar do antagomsmo concreto que ct ' · - · deríamos em engendra as distâncias e as aversões, sem as quats n~o ~o d f ' tia absoluto realizar a vida urbana. A extensão e a combmaçao ~ an/~a.t '

ritmo de sua aparição e desaparição, as formas pelas. quais e sa ts et a, ~ d o o a par de elementos mais literalmente unificadores, pr~duzem ufo tss de vida metropolitana em sua totalidade insolúvel; e aqutlo qqe

a orma . , d d . · de suas formas à primeira vista parece desassociação, e na ver a e uma

elementares de socialização.

Homogeneidade e heterogeneidade nas relações sociais

As relações de conflito, por si mesmas, não pr?~uzem um~, estrp.~~:: social mas somente em cooperação com forças umflcadoras. o asN ·unta; constituem o grupo como uma u~idade viva e concreta. ess: ~onto o conflito dificilmente se diferencta de qualquer .outra flor~~ d, relaç~o que a Sociologia abstrai. da complexidade . da vtda rea . d ~~a: provável que o amor ou a divisão de trabalho: a atltud~ ~o~um ar~idária P

essoas em relação a uma terceira, ou a amiZade, a fthaçao dp b d. - nnr si mesmos pro uzam ou - uperordenação . e a su or. maçao, -t'-'"' . ' --"---~.~·-------~o-

ou a s 1 0 de isto aparentemente mantenham permanentemente um grupo rea . ' n . - bstante várias ocorré o processo a que se dá um nome contem, nao o - ' ite forma; distinguíveis de. relação .. A essência da alma humana ~a~ perm

úe um indivíduo se ligue a outro por um elo apena!, am a ~ue a ~nálise científica não se dê por satisfeita enquanto nao determma o específico poder de coesão de unidades elementares.

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Talvez toda essa atividade analítica seja puramente subjetiva, num sentido mais amplo e aparentemente inverso: talvez os laços entre os indivíduos sejam muitas vezes, na verdade, bem homogêneos, mas nossa mente não consegue abarcar sua homogeneidade. As próprias relações que são ricas e que vivem em muitos conceitos diferentes estão aptas a nos tornar mais conscientes de sua mística . homogeneidade; e o que temos a fazer é. representá-la como o coeficiente de várias forçàs de coesão que se restringem e se modificam mutuamente, resultando num quadro cuja realidade objetiva chega através de um percurso mais sim­ples e muito mais coerente. Além do mais, não poderíamos segui-lo com nossa mente, ainda que quiséssemos.

Os processos de dentro do indivíduo sãq, afinal, do mesmo tipo. São, a cada momento, tão diversificados e contêm tal multiplicidade de oscilações variadas e contraditórias, que designá-los por qualquer de nossos conceitos psicológicos é sempre imperfeito e realmente enganoso, pois os momentos da vida individual, também, nunca se ligam por um elo · somente - este é o quadro que o pensamento analítico constrói da unidade da alma, que lhe é inacessível. Provavelmente, muito do que somos forçados a apresentar a nós mesmos como sentimentos misturados, como combinação de muitos impulsos, como competição de sensações opostas, sejam inteiramente coerentes consigo mesmos. Mas muitas vezes falta ao intelecto calculador um paradigma para essa unidade e precisa assim construí-la como o resultado de diversos elementos. Quando somos atraídos e ao mesmo tempo repelidos pelas coisas; quando os traços de caráter mais nobres parecem misturados com os mais básicos numa determinada ação; quandó nosso sentimento por uma pessoa em .particular se compõe de respeito e amizade ou de impulsos paternais, maternais e eróticos, ou de avaliações éticas e estéticas - então é certo que estes fenômenos, em si mesmos, enquanto processos psicológicos reais, são muitas vezes homogêneos. Apenas não podemos designá-los diretamente. Por essa razão, através de analogias variadas, de prece­dentes, de conseqüências externas, fazemos deles um concerto de elemen­tos psicológicos diversos.

Se isto está correto, então também as relações complexas entre di--versosindivíduos--devem-ser;-muitas--vezes;--realmente unitárias. A distância

que caracteriza a relação .entre dois indivíduos associados, por exemplo, pode nos parecer como o resultado de um afeto - que deveria tornar muito maior a proximidade entre eles - e de uma repulsão - que deve levá-los a ficar completamente separados; e visto que os dois sen­timentos se restringem mutuamente, o resultado é a distância que obser-

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vamos. Mas isso pode estar inteiramente errado. A disposiçã~ interior da própria relação podem ser essas distâncias particulares; basl:amente, a relação tem, por assim dizer, uma certa temperatura, que nao sur.~e. como

0 equilíbrio de duas temperaturas, uma mais ~lt~, outra ma1s

·baixa. Muitas vezes interpretamos a quantidade de supenondade e suges-'-.. tão e~istentes entre duas pessoas como sendo produzida pela força de

uma delas, que é, ao mesmo tempo, diminuída por u~~ certa. fraqueza. Embora tal força· e tal fraqueza possam de fato existir, multas v~zes sua separação não se torna aparente na relação que realmente existe. A relação pode, ao contrário, ser determinada pela natu~eza .total. de seus elementos, e só em retrospectiva analisamos seu carater Imediato naqueles dois fatores. . ..

As relações eróticas oferecem os exemplos mms frequentes. ~uantas vezes não nos parecem um tecido simultâneo ~e .a~or e respeito, ou despeito; de amor e de harmonia sentida pelos md1vi~uos e, ao mesmo tempo, sua consciência de se complementarem po~ melO de traços ~p~s-tos · de amor e de vontade de dominar ou necess1dade de dependencia. M;s

0 que 0 observador ou o próprio participante assim divide em

duas tendências entrelaçadas, pode ser somente uma, na verdade. Na relação como realmente existe, a personalidade total de um atua sobre a personalidade total do outro. A realidade da re~a~ão não depen,d~ da reflexão de que, se ela não existisse, seus participantes, no m~n:mo, inspirariam um ao outro respeito ou simpatia ( ~u seus contrano~) · Inúmeras vezes designamos tais relações como sentimentos ou relaço~s mescladas, porque interpretamos os efeitos que deveriam ter as quah­dades de um indivíduo sobre o outro, se estas qualidades exercessem isoladamente a sua influência - precisamente aquilo que não fazem, na relação enquanto ela existe. Além de tudo isso, a "mistura" de sen.timentos e de relações, mesmo quando estamos completamente autonzados a falar sobre ela, é sempre uma declaração problemática, pois usamos ~m simbolismo dúbio para transferir um processo representado espacial-mente para 0 campo muito diferente . das condições psicológicas. .

Provavelmente então, muitas vezes é essa a situação com respeito à assim chamada mistura de corrente~ convergentes e divergentes n? interior .de ~~grupo, isto é,· a estrutura pode sersurgenerts;-sua----mott--­vação e · sua forma inteiramente coerentes consigo mesmas e apenas para conseguirmos descrevê-las e compreendê-las nós as m~stramos, post factum em duas tendências, uma monista, outra antagomsta. Ou tam­bém a~ duas de fato existem mas somente, por assim dizer, antes de se originar a própria relação, pois na relação mesma elas se fundiram

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numa unidade orgamca, onde nenhuma delas se faz sentir como seu poder próprio isolado.

Esse fato não deveria nos levar a negligenciar os numerosos casos em que as tendências contraditórias realmente coexistem em separado e assim podem ser reconhecidas a. qualquer momento na situação globaL · Como uma forma especial do desenvolvimento histórico, algumas vezes as relações mostram, num estágio inicial, uma unidade indiferenciada de forças convergentes e divergentes que só mais tarde se separam de maneira completamente distinta: Nas cortes da Europa central, até o século XIII, encontramos grupos de fidalgos que constituem um tipo .de conselho do príncipe e que vivem como seus hóspedes; mas ao mesmo tempo, representam a nobreza quase como uma classe e devem defender seus interesses contra o príncipe. Os interesses em comum com o soberanó (a cuja administração estes nobres_ freqüentemente servem) e a vigilância oposicionista de seus próprios direitos enquanto classe, existem nestes conselhos não só lado a lado, separadamente, mas em íntima fusão; e o mais provável é que esta posição fosse sentida como coerente consigo mesma, não importa quão incompatíveis nos pareçam hoje esses elementos. Na Inglaterra desse período, o parlamento dos barões dificilmente se distingue· de um conselho ampliado do rei. Leal­dade e oposição crítica ou tendenciosa ainda estão contidas na unidade original. Geralmente, na medida em :que o problema é a cristalização de instituições, cuja tarefa é resolver o problema crescentemente com­plexo e intrincado do equilíbrio no interior de um grupo, muitas vezes não é claro se a cooperação de forças em benefício do todo toma a forma de oposição, competição ou crítica, ou de explícita união e har­monia. Existe assim uma fase de indiferenciação inicial que, vista de uma fase diferenciada po"sterior, parece logicamente contraditória, mas que está totalmente de acordo com o estágio não-desenvolvido da orga-nização. ,

As relações subjetivas ou pessoais· se desenvolvem; freqüentemente, de maneira ~nversa, porque é no início dos períodos culturais nos quais costuma ser relativamente grande o poder de decidir por amizade ou

- ínímízaâe-.-:R:ela~ões-incompletas e-equívõcasentre. as pessoas·- relações que têm suas raízes em condições duvidosas de sentimento, cujo resultado pode . ser o ódio, quase tão facilmente como o amor, ou. cujo caráter indiferenciado é às vezes revelado pela oscilação entre os dois - tais relações são encontradas com freqüência maior em períodos de matu­ridade e decadência do que nos períodos iniciais.

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O antagonismo como um elemento da sociação

Embora por si mesmo o antagonismo não produza sociação, é um elemento sociológico quase nunca ausente dela. Seu papel pode crescer indefinidamente, isto é, pode crescer a ponto de suprimir todos os elementos convergentes. Ao considerar os fenômenos sociológicos, encontramos assim uma hierarquia de relàções. Essa hierarquia também pode ser construída a partir do ponto de vista das categorias éticas, apesar destas não constituírem, em geral, pontos de partida muito ade­quados para o isolamento completo e conveniente de elementos socio­lógicos. Os sentimentos de valor com que acompanhamos as ações das vontades individuais classifiCam-se em certas séries. Mas, por um lado, a relação entre estas séries, e por outro, a elaboração de formas de relação social segundo pontos de vista objetivo-conceituais, são completa­mente fortuitas. A Ética, concebida como uma espécie de Sociologia, ver-se-ia privada de seu conteúdo mais profundo e refinado. Tal é o comportamento da alma individual, em si e para si, que não aparece em absoluto em suas relações externas: seus movimentos religiosos, que servem exclusivamente à própria salvação ou danação; sua devoção aos valores objetivos do conhecimento, da beleza, da significação, que trans­cende todas as ligações com outras pessoas. A mistura de relações harmo­niosas e hostis, todavia, apresenta um caso nos quais as séries socioló­gica e ética coincidem. Começa com a ação de A em benefício de B, desloca-se para o benefício do próprio A sem beneficiar B, mas também sem prejudicá-lo, e finalmente torna-se uma ação egoísta de A à custa de B. Na medida em que tudo isso é repetido por B, embora dificilmente do mesmo modo e nas mesmas proporções, surgem as combinações inumeráveis de convergência e divergência nas relações humanas.

Certamente há conflitos que parecem excluir todos os outros ele­mentos - entre o ladrão ou assassino e sua vítima, por exemplo. Se essa luta visa simplesmente a ariiquihição, aproxima-se do caso marginal do assassinato, onde a mistura com elementos unificadores é quase zero. Se há, todavia, qualquer consideração, qualquer limite à violência, aí já existe um iator--saeializante, mesmo que sQmente enquanto qualificação da violência. Kant afirmava que toda guerra em que as partes belige­rantes não impõem uma a outra algumas restrições no uso de possíveis recursos, torna-se necessariamente, ainda que apenas por motivos psico­lógicos, uma guerra de extermínio. Porque onde as partes não se abstêm nem mesmo . do assassinato, da quebra de palavra e da instigação à traição, destroem a confiança na mentalidade do inimigo, que só ela

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permite a materialização de um tratado de paz que acomparih f da guerra. É. ; quase inevitável que um elemento comum s: ~nt: duza na hostlhdade, uma vez que o estágio de violência declarada ceda a qualquer outro relacionamento, embora essa nova realidade possa

Dconte: uma soma. de animo,sidade exatamente igual entre as duas partes. . epois de conqmstar a ltalia no século VI os lombardos im aos venc~dos um tributo de um terço da pr;dução agrícola e :~:~:: de m.aneira tal que cada indivídu?, entre os conquistador~s, dependia d? tnbuto qu~ Ih: era ~a~o por mdivíduos particulares entre os ven.:. c:dos. Nesta s_:tuaça?, o odw dos vencidos por seus opressores pode ser tao ~orte, sena.? mms fort.e, quanto durante a própria guerra, e pode ser considerad? .nao menos mtenso por parte dos conquistadores _ seja por_que ~ odw contra quem nos odeia é umá medida instintiva de pro­teçao, SeJa porque, como bem se sabe, costumamos odiar aqueles a quem causa~os algum d~n~. ~ão ob~tante, a situação tem um elemento de comu~I~ade~ A propna circunstancia que engendrou a animosidade _ a part1~1paçao forçada dos lombardos nos empreendimentos dos nativos Div:!et;vo~, ao mesm? tempo, uma inegável convergência de interesses.

~enci~ e harmoma entrelaçaram-se inextricavelmente, e o conteúdo de an_:mos1dade evoluiu na verdade para o germe de uma futura co­munhao.

Esse tipo d~ rel~cionamento formal é compreendido da forma mais ampla na escravizaçao - em vez de exterrm·naça-o do · · · · · · d . . · - · Imm1go apn-swna o. A despeito mesmo de a escravidão representar o extremo da absoluta hostilidade interior, sua ocorrência produz todavi·a um d · - · 1, · . ' , a con-

Içao socio ogica e assiiD, muito freqüentemente, sua própria atenuação. A agud~za. d~ :ontrastes pode ser provocada diretamente em benefício de sua dimi~mçao, e de forma alguma apenas como umà medida violenta, na exp~c:atiVa de. que o antagonismo termine, uma vez alcançado um certo !Imite, devido à exaustão ou à compreensão de sua futilidade. Tambem pod: acontecer p~la .razão, q~e às vezes obriga as monarquias a tomar por hderes seus propnos pnncipes oposicionistas, como fez, por exe~plo, Gustavus Vasa. A oposição certamente se fortalece com essà poh:Ica; elementos que de outra maneira ficariam afastados são a ela trazidos pelo novo equilíb · · ' - . 1 no, mas, ao mesmo tempo, a oposição fica a.ssim dentro de certos limites. Ao fortalecê-la, aparentemente de propó­sito, o governo na verdade a modera, através dessa medida conciliadora

Outro caso limítrofe parece ser a luta engendrada exclusivament~ pelo prazer de lutar. Se o conflito é causado por um objeto, pela vontade de ter ou controlar alguma coisa, pela raiva ou por vingança, tal objeto

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ou estado de coisas desejado cria as condições que sujeitam a luta a normas ou restrições aplicáveis a ambas as partes rivais. Mais ainda, desde que a luta se concentre num propósito fora dela mesma, é modifi­cada pelo fato de que, em princípio, todo fim pode ser alcançado . por mais de um meio. O desejo de possuir ou subjugar ou mesmo de aniqui­lar o inimigo, pode ser satisfeito por meio de outras combinações e eventos além da luta. Quando o conflito é simplesmente um meio, deter­minado por um propósito superior, não há motivo para não restringi-lo ou mesmo evitá-lo, desde que possa ser substituído por outras medidas que tenham a mesma promessa de sucesso. ·Mas quando o conflito é determinado exclusivamente por sentimentos subjetivos, quando as ener­gias interiores só podem ser satisfeitas através da luta, é impossível substituí-la por outros meios; o conflito tem em si mesmo seu propósito e conteúdo e por essa razão libera~se completamente da mistura com outras formas de relação. Tal luta pela luta parece .. ser sugerida por um certo instinto de hostilidade que às vezes se recomenda à obser­vação psicológica. Suas diferentes formas devem ser discutidas agora.

9. A COMPETIÇÃO *

Tipos particulares desta síntese encontram-se nos fenômenos que se reúnem sob o nome de competição. A principal característica socioló­gica da competição é o fato de o conflito ser, àí, indireto. Na medida em que ~lguém se livra de um advers~rio ou o prejudica diretamente, não está competindo com ele. Em geral, o uso lingüístico reserva o termo somente para os conflitos que consistem em esforços paralelos de ambas as partes em relação ao mesmo prêmio. A diferença entre este e outros tipos de conflito talvez possa ser mais . detalhadamente descrita como se segue.

A meta subjetiva versus o resultado objetivo da competição

Antes de tudo, a forma pura da luta competitiva não é ofensiva e defensiva,· pela razão de ·que· o prêmio da disputa não está eri:i mãos de nenhum dos adversários. Se alguém luta com uma pessoa para obter seu dinheiro, sua esposa ou sua fama, esse alguém usa formas e técnicas bem -diferentes- daquelas-:Lisadas--quando-se-compete com a pessoa para decidir quem deve canalizar o qinheiro do público para os próprios .

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*Reproduzido de SIMMEL, G. Competítion. In: -. Conflict ... Ed. cit., p. 57-74. Trad. por Dinah de Abreu Azevedo. Tradução revista pelo.· Organizador e cotejada com o original alemão: Der Streit. In: Soziologie. Ed. cit., p. 213-25.

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-- bolsos, quem deve conquistar o favor da mulher, quem, por palavras ou atos, deve construir maior renome para si mesmo. Em muitos outros tipos de conflito, a vitória sobre o adversário não apenas assegura auto­maticamente, mas é, em si mesma, o prêmio da vitória. Na competição, ao invés, há duas outras combinações.

I) Quando cronologicamente a vi~ória sobre o concorrente é a primeira necessidade, isto nada significa em si inesmo. A meta da ação global só é alcançada com a disponibildade de um valor que não depende em absoluto daquela disputa competitiva. O negociante que consegue desacreditar seu concorrente junto ao público não ganha nada se as necessidades do público não se desviam subitamente de sua mercadoria. O amante que elimina ou humilha seu rival não deu sequer um passo adiante se a dama não lhe concede, também, os seus favores. Uma con­gregação religiosa, competindo por um prosélito, não será escolhida· sim­plesmente porque elimina a concorrente ao provar sua inadequação -a menos que as próprias necessidades do prosélito possam se satisfazer com isso. A tonalidade específica da luta competitiva é que seu resultado, em si mesmo, não constitui a meta, como acontece onde quer que a cólera, a vingança, o castigo ou o valor ideal da vitória como tal moti-

vam uma luta. 2) O segundo tipo de competição talvez se diferencie ainda mais

de outros gêneros de conflito. Aqui a luta consiste apenas no fato de que cada concorrente busca a meta por si mesmo, sem usar sua força contra o adversário. Esse estranho tipo de luta é exemplificado pelo corredor que procura alcançar sua meta apenas através de sua veloci­dade; pelo comerciante que procura alcançai sua meta apenas pelo preço de suas mercadorias; pelo proselitista que procura alcançar sua meta apenas pela força da convicção interior de sua doutrina. Em intensidade e esforço apaixonado, esse tipo de competição é igual a todas as outras formas de conflito. É impelido à sua concentração máxima pela cons­ciência mútua dos participantes de que cada um deles se concentra nessa medida. E contudo, de um ponto de vista superficial, isso ocorre como se não existisse nenlium-aáversár1o, mas a meta.-snmente-. ------

Esta inflexível concentração na meta permite à competição absorver conteúdos sobre os quais o antagonismo se torna puramente formal. Nesse caso, isto não serve apenas ao propósito comum de ambas as partes, como também permite ao vencido beneficiar-se com a vitória do vencedor.. Em 15 65, quando Malta foi cercada pelos turcos, o grão-

137

-mestre. distribuiu as. fortalezas da .ilha entre as diversas nações a que pertenciam os cavaleiros. A competição entre as nações pelo máximo de bravura poderia ser dessa maneira explorada em defesa do todo, a ilha. Isto. é genuína competição; mas qualquer dano ao conêorrente, que im­pedisse o uso total de sua força na luta competitiva, fói excluído desde o começo. O exemplo de Malta é tão puro assim porque o desejo de vencer a honrosa luta é assumido para desencadear uma extraordinária demonstração de zelo; e, contudo, a vitória só pode ser conseguida ·pela concomitância de benefícios para o perdedor. De modo semelhante, a ambiciosa competição no campo da ciência não visa apenas o adversário, mas a meta comum, na suposição de que o conhecimento adquirido pelo vencedor também é ganho e vantagem para o perdedor. Essa inten­sificação especial do princípio costuma estar ausente da competição artística porque, tendo em vista a natureza individualista da arte, o valor objetivo global, do qual ambas as partes participam igualmente, não é aparente para elas, embora talvez exista idealmente. A ausência é até mais óbvia na competição do comércio pelo consumidor; este também é, porém, um exemplo do mesmo princípio formal, pois ainda aqui a competição se focaliza diretamente sobre o resultado máximo, e o efeito total é o benefício de terceiros ou de todos.

Nesta segunda forma de competição, por conseguinte, a subjetivi­dade da meta final e a objetividade do resultado final se entrelaçam de maneira mais fascinante. Uma unidade supra-individual, objetiva ou social, substitui ambas as partes e sua luta. Cada parte combate seu adversário sem se voltar contra ele, sem tocá~lo, por assim dizer. A motivação subjetiva e antagonista conduz assim à realização de valores objetivos e a vitória-na luta não é realmente o sucesso da luta em si, mas, precisa­mente; da realização de valores exteriores a ela.

AquL repousa o imenso valor da competição para o círculo social do qual os concorrentes são membros. Os outros tipos de conflito -onde o prêmio, originalmente, está nas mãos de uma das partes, ou onde uma hostilidàde inicial, mais que a conquista de um prêmio, motiva a luta - induzem à aniquilação mútua dos combatentes e, para- a sacie-

- -dade como-um-todo,-deix-am-apenas-a'-diferença-obtida pela-subtração do podei:' mais fraco do poder mais forte. A competição, por outro lado, na medida em que permanece livre de mistura com estas outras formas, costuma ampliar os valores através de sua incomparável constelação sociológica. A razão é que, do ponto de vista da sociedade, oferece motivação subjetiva como o meio de produzir valores sociais qbjetivos;

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1

l J

138

e do ponto de vista das partes concorrentes, usa .a ~ro~ução de valores

subjetivos como meio de alcançar satisfação subJetiVa .

A função sociativa e civilizadora da competição

· t , d que a competição con-No entanto o progresso de seu con eu o, - '

segue através de' sua forma de interação peculiarmente entrelaçada, ,nao e

. d ti o comum segundo o ,quaL,. o :. que

1 Este é um caso mmto puro . od. -J é um meio para a espécie, para

é um objetivo supremo para um m I~I luo. undante· e vice-versá. ls(ci é válido,

. para a estrutura socia c1rc , . : · · · ·lid d. 0 grupo, em resumo, 1

~ do homem com· a tota a e

acima de tudo, e num sentido ampl~, par~d~ red:ç:: plano divino do mundo, o

metafísica, com seu Deus. Em quadquer 1. eJ~ do que ·graus e meios que ajudam

, 't mo do indivíduo na a mais e .

propo~I o sup~e t de todos os movimentos terreno~, com? . pos­

a realizar o fim supremo e absolu o . d' 'duo no interesse mcondicwnal

1 ' 't d'v'no Embora para o m IVI ,

tulado pe o espm o I 1

· , . também a própria realidade trans-

por seu ego: nã? só. a realidade ~~f~nc:;a ~~~s próprios propósitos ... Ele bus,c~ a

cendental seja Simplesmente u~ - p üila e redimida ou a plenitude extatlca,

bem-aventurança de uma perfe1çao tra_nq no além através de Deus, que lhe faz

seu bem-estar na terra ou sua salvaçao a si mesmo através do homem,

a mediação. Como Deus, c~mo ser absolut,o, cdhegDa us Este m:odelo já foi notado

h. h a s1 mesmo atraves e e · . 'd

assim o ornem c .ega . d' 'duo e sua espécie no senti o

P ito da relação entre o m IVI '

há muito tempo a res e . d' 'd 0

e' um propósito supremo e auto-

. · rótico que para o m 1VJ u -

biológico: o prazer e . d. • , ' meio elo qual assegura sua perpetll;açao

justificado, para a especte e apenas um ptenção da espécie, que se considera

para a. lém do. momento. Inversamente, essal m.anu 't s vezes é para o . indivíduo

' 't ao menos por ana og1a, mm a ·. d . ,

como seu propos1 o, f'lhos e de dar à sua propneda e, as

· de se perpetuar em seus 1 - · ·

apenas um meiO, . . a es écie de imortalidade. Nas. relaçoes socmts

suas qualidades, a sua vJtahdade, um h P . d interesses entre a sociedade e

, t'd d que se chama armoma e d

esse e o sen I o o . . . , . . te delineada e regulamenta a por

o indivíduo. A atividade mdlVldual le previamendi'ço-es J'urídicas morais, políticas e

f' d rcer e desenvo ver as· con ' d

normas, a 1m . e exe d . t , é possível porque os interesses eu emo-

culturais do homem; mas no to o, 1s 0 so . desses valores supra-individuais,

nistas morais, materiais e abstratos se ~pr~pnam 1 é. um conteúdo da

. ' . . . A sim a c1enc1a por exemp o,

utilizando-os como meiOs. s ' , . ' f' · te supremo do desen-

b' . tal um proposJto auto-su Jcten e

cultura o ]etJv~ e, como · ' . d' 'd toda a ciência existente, incluindo a

volvimento social; mas para 0 m I;t uo, meio para a satisfação de· seu

porção que ele mesm~ . acrescenta, e ap:nas c~~amente não têm sempre uma

próprio . impulso cogmtivo. ~tas relaçoevsolvem a contradição que, tanto o todo

.: · . · ' · · Mmtas vezes en sJmetna. harmomca asstm. . -::-::-=-::--:::o -~.-•.. -sup· remos-e;-por--eonse-.

t si mesmos como proposiLos ' ·

quanto a parte se · tra am a . enhum deres está disposto a aceitar seu

guinte, tratam os ou~ros c?mo meiOs, e n atritos . ue podem ser sentidos a cada

papel de simp~es meio. DI~to res~t~~m ao~ealizaçãoq dos propósitos do todo e das

momento da VIda e que so p:rmJ ento de forças que não é acompanhado

partes com certas perdas. O mutuo ~~gotam fracasso em ~ecompensar e utilizar as

de uma melhoria no tesu~tado posi~V~~ti~uem Úiis. perdas na competição, . que _.de

forças que se revelam mat~ ~racas, o . f'a das séries teleológicas opostas.

outra forma ·mostra tão distmtamente a sime n

139

aqui tão importante quanto seu processo imediatamente sociológico. O

objetivo pelo qual a competição se dá em uma · soçiedade sempre é,

presumivelmente, o favor de uma pessoa ou . de terceiros. Cada uma

das partes concorrentes tenta, por conseguinte, aproximar-se tanto quanto

possível daquele terceiro. Usualmente; os efeitos venenosos e destrutivos

da competição são enfatizados, e de resto admite-se meramente que cria

certos valores como seu produto. Mas além disso, a competição tem,

apesar de tudo, este enorme efeito sociativo. A competição impele o

pretendente que tem um rival - e muitas vezes só desse modo chega a

tornar-se um pretendente propriamente dito - a procurar o objeto pre­

tendido, a aproximar-se dele, a estabelecer laços com ele, a descobrir

suas forças e fraquezas e ajustar-se a elas, a ·encontrar todas as pontes

ou a criar novas, que possam conectá-lo ao próprio ser e obra do con­

corrente.

Certamente isso ocorre muitas vezes ao preço da própria dignidade

do concorrente e do valor objetivo de. seu produto. A competição,

sobretudo a competição entre os criadores dos mais elevados produtos

intelectuais, força aqueles que estão destinados a guiar a massa a se

subordinarem a ela. Para permitir o exercício efetivo de sua função como

professores, líderes . partidários, artistas ou jornalistas, devem obedecer

os instintos ou disposições da massa, uma vez que a massa pode escolher

entre eles, e pode escolher por causa. de. sua competição. No que ·diz

respeito ao conteúdo, isto leva certamente a uma reversão da hierarquia

dos valores sociais da vida, mas não diminui a importância formal da

competição para a síntese da sociedade. Ve;z;es sem conta a competição

consegue o que habitualmente só o amor pode fazer: adivinhar os mais

íntimos desejos do outro, antes mesmo do outro ter consciência deles.

A tensão antagônica com seu concorrente afia a sensibilidade do comer­

ciante para as tendências do públíco até o ponto da clarividência, em

relação a futuras mudanças no gosto, no estilo, nos interesses do público .

- não afia somente a sensibilidade do comerciante, mas também ·.a do

jornalista, do artista, do livreiro, do político. A competição moderna é

descrita como a luta de todos contra todos, mas ao mesmo tempo é a

~a----luta--tle-teàes-para-tecles-. -Ninguém-negará-a--tragédia de elementos

sociais trabalhando um contra o outro, em vez de um para o outro;

ninguém negará a tragédia do desperdício de inúmeras forças ·na luta

contra o concorrente "- forças que poderiam ser utilizadas· para realiza­

ções positivas; ninguém negará, finalmente, a tragédia da supressão de

realizações ,positivas e valiosas, não usadas e não recompensadas, assim

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1.:;

140

que uma outra mais valiosa, ou no mínimo mais atraente, compete com

elas. Mas todos esses defeitos da competição, na folha de balanço social,

devem apenas ser acrescentados à imensa força sintética do fato de que,

em sociedade, a competição é para o homem uma luta por aplauso e

esforço, isenção e devoção de todos os tipos, uma luta de poucos por muitos, assim como de muitos por poucos. Em resumo, é· um tecido

de milhares de elos sociológicos executado por meio de uma concentração consciente sobre a vontade, o sentimento e o pensamento dos semelhantes,

de adaptação dos produtores aos consumidores, das possibilidades deli­

cadamente multiplicadas de ganhar favor e conexão. Uma vez que a solidariedade estreita e ingênua das condições sociais primitivas produ­ziram a descentralização (que deve ter sido o resultado imediato do crescimento quantitativo do grupo), o esforço do homem em direção ao homem, sua adaptação ao outro, só parece possível ao preço da

competição, isto é, da luta simultânea contra um semelhante para um terceiro - contra quem, no que diz respeito ao assunto, eíe bem pode

competir em algum outro relacionamento em favor do primeiro. Dada a extensão e individualização da sociedade, muitos tipos de interesse,

os quais eventualmente mantêm um grupo coeso através de todos os seus membros, parecem tornar-se e continuar. yivos apenas quando a urgência e as exigências da luta competitiva os impõem ao indivíduo.

O poder socializante da competição não aparece só nesses casos

mais grosseiros, públicos, por assim dizer. Encontramos duas pessoas

competindo por uma terceira em inúmeras combinações de relaciona­

mentos familiares e amorosos; de conversinhas e discussões sociais sobre

convicções; de amizade e satisfação da própria vaidade; às vezes, claro,

só por alusões, interrupções, fenômenos parciais ou marginais de um

processo total. Onde quer que aconteça, todavia, o antagonismo dos

concorrentes se confronta com alguma oferta, lisonja, promessa, impo­

sição, que põe cada um deles em relação com terceiros. Para o vitorioso

em particular, esja relação freqüentemente ganha umà intensidade que

não teria sem o estímulo das oportunidades de competição e sem a

comparação peculiar e contínua -de-sua.própriJl realização com a reali­zação do outro, que só é possível através da competiÇão .. Quanto mais-o -_

liberalísmo foi penetrando não só nas condições econômicas e políticas,

mas também nas condições da família, da sociabilidade, da igreja, da

amizade, da estratificaçã'? e do intercâmbio social genérico - isto é,

quanto menos essas condições são predeterminadas e regulamentadas por

normas históricas gerais, e quanto mais são deixadas às ·forças mutáveis

141

ou a um equilíbrio instável que deve ser canse uido de - tanto mais suas configurações dependerão d: com eti c~so par~ caso E o resultado dessas competições de J d ' p ç es continuas. casos, do interesse do amor d pen era por sua vez, na maioria dos despertar em d'f ' t ' a esperança que os concorrentes sabem

movimentos co~~~~ti:~;raus neste ou naquele terceiro, os centros dos

O objeto mais valioso do homem é h .

:~:;~:direWmente porque fide se ann~::':'; ~:e~~.: :;:: ~::::; . ' asslm como no ammal que co f

~~~~ :~s e~~;g~a:r::zs~~a~~a ~:;~erdgias domd;:;~ ~~et:~~o~a:~~=~:~ d • o ar e a agua O homem ' ·

~~:d:ns~do e o ~a~s farta~ ente. aproveitável .dos f~nômenos; e ea :::~~ . -e ~onqmsta-lo pslcologlcamente cresce na medida

escrav1dao 1sto é s · ·- · - A • em que. a

O h ' ' ua apropnaçao mecamca, enfraquece. A luta contra

ornem que era uma 1 t I ma-se assim . u a para e e e para sua escravização, transfor-. no mms complexo dos fenômenos da competição També

msso, certamente, um luta contra outro ho 1 . . m um terceiro E · roem, mas pe a conqmsta de

d · a conqmsta daquele terceiro pode ser conseguida de '1

:::~ã~a~e"'s~;:r~ç::~:ésd de ~cios sociológicos de persuasão ou ~e em resum~ at , d ~ re ~lxamento, de sugestão ou de ameaça . ' raves e conexao ps1cológica Mas c .. A '

Cl~, e~t~ conquista também pretende com~ result~:C, au::s~~ freque~­pslcologlca, a construção de um relacionamento d al conexao m C t b 1 . . - e uma re ação mo-N en an~~ es a e eclda por. uma compra no armazém até ao casamento

. ~ me lda em que a intensidade e a condensação dos conteúdos d~ ~1 a cresctm culturalmente, a luta pelo mais condensado de todos os

ens, a a.m~ humana, deve empregar proporções cada vez maiores e

d:ve multlph.car e aprofundar interações que reu'nam s t t f os homens e que ao an o o Im quanto os meios dessa luta.

Solidadedade orgâ~ca versus- isolamento como proteção do grupo contra conflitos internos

Isso já sugere como os d' . . . -· grupos se lstmguem em seu caráter socioló-

gico t seg~ndo ~ extensão e o tipoâecõmpetiÇão que admitem Obvia­

:~: e,t'els a~m um problema da correlação, para o qual toda cÍiscussão . a e a~m tem contribuído: há uma relação entre a estrutura de cada

grupo social e a. med~da de hostilidade que pode permitir entre seus

:~:~r~sii~;ra 1 ~ s~cledade ~olítica, . o código criminal muitas vezes

e a em o qual a nxa, a vmgança, a violência e a exploração

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142

não são mais compatíveis com a manutenção do grupo. O conteúdo de tal código tem sido caracterizado, por isso, como o mínimo ético. Mas isso não é exatamente correto, pois um estado pode se dividir se seus membros evitam rigorosamente tudo que é proibido pela lei criminal, enquanto ainda estão ocupados com aqueles ataques, danos e hostili­dades possíveis diante da lei. Todo código criminal espera que a maioria. destas energias destrutivas tenham seu desenvolvimento impedido pelas inibições para as quais o próprio código não contribui. O mínimo de comportamento ético, pacífico, sem o qual a sociedade civil não poderia existir, ultrapassa assim as categorias garantidas pelo código criminal. Com base na experiência, supõe-se que estes distúrbios deixados impunes não excedem por si mesmos um grau socialmente tolerável.

Quanto mais estreitamente unido é um grupo, tanto mais a hostili-. dade entre seus membros pode ter conseqüências bem opostas. Por um lado, o grupo, precisamente por causa de sua intimidade, pode suportar antagonismos internos sem se dividir, desde que o vigor das forças sinté­ticas possa competir com o vigor de suas antíteses. Por outro lado, um grupo, cujo princípio mesmo é uma considerável unidade e um sentimento de comunhão, está nessa medida particularmente ameaçado por cada conflito interno. De acordo com outras circunstâncias, a mesma centripe­talidade toma o grupo mais ou menos capaz de resistir a perigos surgidos de animosidades entre seus membros.

Em uniões estreitas como o casamento, se dão ambas as coisas ao mesmo tempo. Provavelmente não há qualquer outro grupo que possa tolerar tal· ódio insano, tal antipatia completa, tais colisões e injúrias contínuas, sem despedaçar externamente. Por outro lado, embora não seja o umco, o casamento é um daqueles poucos relacionamentos que, através de uma ruptura dificilmente perceptível, dificilmente verbalizável, até mesmo através de uma única palavra de antagonismo, pode perder a profundidade e a beleza de seu significado, que nenhuma vontade apaixo­nada, inclusive de ambos os parceiros, é capaz de restaurar,

Entre grupos maiores, duas estruturas aparentemente opostas podem se permitir consideráveis doses de hostilidade. Uma delas consiste em reacionamentos facilmente atraentes que pro_dttzem ul11a_~~l"t~_~olidarie-dade entre seus membros, graças à qual os danos resultantes de choques ---­hostis podem aqui e ali ser remediados com relativa, ~acilidade. Aqui os membros atribuem tanta força ou tantos valores ao todo, que este pode permitir-lhes a liberdade de- antagonismo, desde que possa contar que o gasto de forças resultante desses antagonismos seja coberto por um outro rendimento, por assim dizer. Esta é uma das razões que explicam por que

143

grupos bem organizados podem se permitir mais rupturas e. atritos do que c~nglomerados ~ais mecânicos, internamente desconexos. A unidade, que so pode ser ob~I?a num .grupo maior através de uma organização c?mplexa, pode equihbrar mais facilmente os créditos e débitos no inte­nor de sua vida _ social e pode tornar qualquer força disponível para suportar os pontos fracos resultantes de discordâncias entre seus mem­bros (o~ _result~ntes de outras fontes de perda). A própria estrutura de oposiçao. social tem o mesmo efeito global: é comparável ao casco de ~~ navw composto de muitos compartimentos estanques - se é dam~Icado,. m~s~o as~im a água não pode penetrar em todo o casco. Aq~I- o pnnciplO social é, assim, uma certa separação das partes em ~ohsao. Devem chegar a um acordo sobre 0 que cada uma delas faz a outra e devem suportar sozinhas os danos, sem prejudicar a existência do todo.

Há, pois, doi~ método~:. a solidariedade orgânica, onde o todo supre os d~nos de confhtos parciais; e o isolamento, onde o todo se preserva de tm.s da~os. _A escolha correta entre esses dois métodos, ou sua correta com~~naçao, e naturalment~ ~ma qu:stão vital para todo grupo, da famdm ao Estad~, da assocmçao economica à coligação espiritual. Num dos .extremo~ .esta o Estado moderno, que não só tolera as lutas de seus partldos pohtlcos, apesar das muitas forças nelas dissipadas, como até mes~o explora estas lutas com vantagens para seu equilíbrio e desen­volvimento .. Na extremidade oposta está a cidade-estado antiga e medie­va~, que mmtas ve~es. foi_ enfraquecida por conflitos internos dos partidos ate o ~o~~o da amqmlaçao. No total, quanto maior o grupo, tanto maior a p~ssibihdade de combinação de ambos os métodos. Isso é feito no sentido. de que os próprios partidos devem estabelecer as vantagens e desvan~~Age~s primári~s. que resultam de seus conflitos, enquanto suas. consequenctas se~undanas são remediadas pelo todo, que joga suas reser­~as em _cena. Evide11temente, essa combinação é difícil quando o grupo e ~equeno e seus membros estão por isso, inthpamente ligados.

A competição no interior do grupo e a estrutura do grupo

- - 'Volto-agora-à-relação-específica-entre-a-luta competitiva e a estru­tu~a do grupo onde esta se dá. Acima de tudo, há uma distinção entre dms casos - ou os próprios interesses do grupo necessitam de uma estrutura que proíba ou limite a competição; ou bem esses interesses e~b_o~a susce~íveis de competição, evitam-na, devido a uma circunstânci~ histonca parttcular ou a um princípio geral que toma seu lugar.

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,. I'

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Há duas condições sob as quais o primeiro caso pode ocorrer. Se há competição por algo não disponível ou inacessível para todos os con-. correntes e esse algo cabe apenas ao vencedor, então a competição é claramente impossível - ou os membros dó grupo não lutam por um bem igualmente desejado por todos, ou lutam, mas o bem é igualmente disponível para todos. A primeira ·alternativa é plausível quando a asso­ciação não surge de um terminus ad quem comum, mas de um terminus a quo comum, de uma raiz comum - acinia de tudo, na família.

A competição na família

Certamente pode haver uma competição ocasimial no interior de uma família. Os filhos podem competir pelo amor ou pela herança dos pais, ou os pais pelo amor de seus filhos. Mas uma competição assim é determinada por contingências pessoais, como é o caso de dois irmãos que sejam concorrentes nos negócios. Isso não tolera qualquer relação com o princípio da família, que é o princípio de uma vida orgânica. Mas o organismo tem em si mesmo o seu fim. Não se dirige para uma meta além de si mesmo, que lhe seja exterior, e por cuja realização suas partes componentes competem. Decerto a hostilidade puramente pessoal da antipatia natural se opõe ao princípio de paz, sem o qual a família não pode existir com o passar do tempo. Apesar da própria intimidade de sua vida em comum, de sua interdependênCia social e econômica, da presunção algo coativa de sua unidade - tudo isso dá

. aos atritos, às tensões, às oposições, uma grande chance de ocorrerem. De fato, o conflito familiar é de um tipo peculiar, sui generis. Sua causa, sua acentuação, sua propagação a não-participantes, sua forma, assim como a forma de reconciliação, são exclusivas e não podem ser compa­radas a traços correspondentes de outros conflitos, potque a rixa familiar se dá com base em uma unidade orgânica que se desenvolve através de milhares de conexões internas e externas. A competição, todavia, é des­provida de sua síndrome, porque as brigas de família vão diretamente de pessoa para pessoa: o foco indireto de uma meta. objetiva,. caracte­rístico da éompetição, .pode ser acidentalmente acrescentado; ríão surge da-s --ror~âs --espec-íficas- aa fá~íliá. ---~-

A competição em grupos religiosos

O segundo tipo sociológico que exclui a competição é exemplifi­cado pela comunidad~ religiosa. Aqui os esforços paralelos . de todos se

145

dirigem para um objetivo que é o mesmo para todos. Mas não há competição, porque quando um membro atinge o objetivo, não exclui os outros. Ao menos de acordo com a concepção cristã, a casa de Deus tem lugar para todos e se a graça não se aparta de uns enquanto se dá a outros, por meio disso se prova a inutilidade da competição. ,

Esta forma e destino peculiares de esforços paralelos .· pod~riam mais propriamente ser denominados de "competição passiva". Suas ma­nifestações puras são a loteria e a aposta. Isso é competição por um , , prêmio, mas falta a essência da competição: a diferença das energias individuais como base da vitória ou da derrota. O resultado aqui depende de uma realização prévia, mas as diferenças de resultado não ·dependem das diferenças desta realização. '

Entre os indivíduos agrupados por uma tal oportunidade, essa cir­cunstância resulta num relacionamento altamente específico que, com­parado com a competição propriamente dita, constitui uma nova com­binação de igualdade e desigualdade de condições. Quando certo número de pessoas faz exatamente o mesmo esforço e tem a mesma chance de êxito, embora saibam que um poder que não podem influenciar dá ou nega totalmente esse êxito, essas pessoas se caracterizam de um modo muito específiCo. Por um lado, mostram uma indiferença bem diversa da relação entre concorrentes, onde o êxito depende do confronto dos esforços. Por outro lado, ter consciência que se ganha ou se perde o prêmio baseado na qualidade de seu esforço tem um efeito calmante e objetivador sobre os sentimentos da pessoa; em troca, quando falta esta consciência, a inveja e a amargura encontram seu lugar próprio. O perdedor não odeia, mas inveja a pessoa escolhida por Deus ou que ganha no Trente-et-Quarante. Devido à mútua independência de seus esforços, ambos os "concorrentes" estão aqui mais distantes e a priori mais indiferentes um em relação ao outro do que os concorrentes numa luta econômica ou esportiva. Nesse último caso, é o fracasso merecido que facilmente produz um ódio característico; este consiste na ,projeção de nosso sentimento de inadequação sobre o indivíduo que o provocou em nós. A relação (sempre muito frouxa) entre os membros de um grup() _ _j~jo ele~~nt~omum é a gra,ça dispensada pe_la autoridade de

--neus, du âesfmo ou eras liomens, e m:p.a combinação específica de indiferença e inveja latente - vindo a inveja à tona uma vez que a decisão é tomada, junto com o sentimento correspondente por pàrte do vencedor.

Mesmo que não importe quão grande seja a diferença entre esta configuração e os sentimentos de interação característicos da competição I

1 I l ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~3'~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~------ i

j

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\:

146

propriamente dita, não obstante cada competição genuína provavelmente contém . uma mistura mais for~e ou mais fraca deste relacionamento determinado por chances compartilhadas. Contém um certo apelo a algum poder superior às partes, que decide por si mesmo e não é guiado pelos esforços das partes. A medida altamente variável dessa mistura fatalista resulta numa gradação específica de situações competitivas, de acordo com o tipo de escolha feito pela graça divina, em que predomina a mistura; e o fator de atividade e diferenciação, característicos da com­petição como tal, está ausente.

Outra aparente competição no interior de grupos religiosos é a ciumenta paixão de ultrapassar ·os outros na realização dos valores mais altos. Esta paixão freqüentemente intensifica o cumprimento da obediên-cia a regras, de trabalhos meritórios, de devoção, ascetismo, orações, donativos, embora falte a característica da competição, . que é a de que o prêmio, por ser obtido por alguém, deve ser negado a outro.

Aqui está uma notável diferença sociológica entre o que pode ser designado como competição ( W ettbewerb) e emulação ( W etteifer). Em toda competição, mesmo pelos valores ideais de honra e amor, a impor­tância do sucesso é determinada por sua proporção ao sucesso do con­corrente. Sem sofrer qualquer mudança, o-sucesso do vencedor deve ter, no entanto, uma jmportância muito diferent\!: para ele se o sucesso do concorrente fosse 'maior, em vez de menor que o seu. Essa dependência que o sucesso absoluto tem do sucesso relativo (ou, dizendo em outras palavras, que o sucesso objetivo tem do sucesso pessoal) motiva todo o movimento da competição, ,mas está completamente ausente da emulação religiosa a que nos referimos. Pois aqui ;:t atividade do indivíduo é a ~ . sua própria realização; seria indigno da mais alta justiça ou do ser supremo tornar a recompensa do ato individual de algum modo depen-dente do fato de o mérito de um outro indivíduo ser relativamente maior , ou menor. ·Em vez disso, cada um é julgado por suas obras, medidas por normas transcendentais. Na competição, ao contrário, ele é julgado pelas obras· do concorrente, pela proporção de suas obras em relação às do concorrente. Na medida em que o objetivo de um grupo tem a possi­bilidade religiosa de ser alcançado - uma possibilidade incondicional, independenie das relações dos membros entre si :_____ o grupo iiãodesen--­volverá a competição. Isso é igualmente válido para todas as associações que se baseiam apenas na receptividade e não dão lugar para atividades individualmente diferenciadas - tais como clubes científicos ou lite­rários, que se limitam a organizar conferências, ou grupos de viagem, ou associações com propósitos epicuristas.

147

Competição, individualismo e interesse social

Em casos tão discutidos assim, . os propósitos particulares dos gru­pos produzem formas sociológicas que excluem a competição. Também é posSível, contudo, que certas razões, ao lado destes propósitos e inte­resses, forcem o grupo a renunciar à competição ou a certas formas de competição. A renúncia total à competição ocorre na medida do predo­mínio do princípio socialista da organização uniforme de todo o trabalho, ou do princípio mais ou menos comunista da igualdade de toda retri­buição monetária pelo trabalho. Formalmente falando, a competição repousa sobre o princípio do individualismo. Entretanto, tão logo acon­teça no interior de um . grupo, sua relação com o princípio social de subordinação de todos os interesses individuais ao interesse uniforme do grupo não é imediatamente visível. Certamente o concorrente isolado persegue seu próprio objetivo; usa suas energias para assegurar seus pró­prios interesses. A disputa competitiva é conduzida por meio de realiza­ções objetivas, produzindo habitualmente um resultado algo valioso para um terceiro. O interesse puramente social faz desse resultado uma meta suprema, enquanto que para os próprios concorrentes é somente um pro­duto secundário. Dessa maneira, esse interesse social não só pode admi­tir, como deve até mesmo evocar, a competição diretamente.

A competição, portanto, não· é em absoluto inseparavelmente asso­ciada (como facilmente se pensa) aopFincípio do individualismo. Segundo , esse princípio, o indivíduo,_ sua felicidade, sua realização e sua perfeição constituem o significado e o propósito absolutos de toda existência his­tórica. Em relação à questão do propósito supremo, a competição é tão indiferente quanto qualquer outra simples técnica. Conseqüentemente, ela não se opõe ao princípio do exclusivo interesse social, rp.as apenas a uma outra técnica, produzida também por aquefe interesse social -isto é; ao socialismo, no estrito senso da palavra.

O socialismo une duas orientações. Uma é a orientação das insti­tuições, ou, no mínimo, do pensamento, para o que é comum a todos, para o que inclui todos e a que cada indivíduo deve ser obediente. A outra é a orientação para a organização de todos os esforços individuais,

-isto é;osocúil1smo procura -dirigir estes ~esforços através de um planeja-mento consistente e racional, que exclui todo atrito entre os elementos, todo desperdício de energia através da competição, todo acaso da inicia­tiva meramente pessoal. O resultado do todo, portanto, não é produzido por meio da competição antagônica de energias espontaneamente utili­zadas. Ele é realizado por meio de uma diretriz central que, desde o

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começo, organiza tudo para sua mútua interpenetração e suplement~~ão - como se consegue da maneira mais completa no governo burocrat1co ou no quadro de funcionários de uma. fábrica. Esta forma de produção socialista não é nada mais do que uma técnica para alcançar ós propó­sitos concretos de felicidade e cultura, justiça e perfeição. Deve, por conseguinte, consentir na livre concorrência sempre que esta surge como

a forma mais àdequada.

Socialismo e· competição

Isso não é de fato somente uma questão de filiação a um partido político. A questão. é se a satisfação de uma necessidade ou a criação de um valor devem ser deixados à competição das forças individuais ou à sua organização racional, à oposição ou à colaboração. A questão pe.de . uma resposta em milhares de formas parciais ou rudimentares: na naclO­nalização, na cartelização, na competição dos preços, nos jogos infantis. Surge no problema de saber se a ciência e a religião produzem valores de vida mais profundos se ordenados num sistema harmonioso ou se, ao contrário, cada uma delas tenta ultrapassar a realização apresentada pela outra e é assim forçada pela competição a desenvolver seus esforços máximos. A questão se tàrna importante na direção de peças teatrais. É mais apropriado para o efeito global deixar cada ator revelar sua

plena individualidade, intensificando e animando o todo pela compe;i~ão de ·esforços individuais, ou é ·melhor deixar logo que a 1magem artlstlca global confine a individualidade a uma adaptação fácil àquela imagem? A questão se reflete dentro do próprio inoivíduo, quando por sua vez sente o conflito entre impulsos éticos e estéticos, entre soluções inte­

lectuais e instintivas como a base de decisões que mais verdadeira e

vividamente expressam seu ser real, mas noutras vezes só dá ouvidos a estas forças individuais contraditórias na medida em que pode incor­

porá-las num sistema de vida· coerente, guiado por apenas uma das

orientações. Em seu sentido comum de uma tendência econômico-política, o

socialismo não- será inteiramente compre_endido ~c não_ f() r reconhecict,e>_ _ __._ como uma técnica de vida madura e purificada que, assim como seu .1

oposto, . encontra-se nos primórdios e nas realizações menos claramente

reconhecíveis, através de toda área do problema da administração de

negócios complexos. A compreensão do caráter puramente técnic~ .de tais ordenações induziria a organização socialista a abandonar sua retvm-

dicação de ser uma meta autojustificada e um valor supremo, e a se

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avaliar e estimar em comparação com a competição individualista, na medida em que esta também é um meio para fins supra-individuais. No entanto, não se pode negar que nossos poderes intelectuais caem freqüentemente numa avaliação desse tipo, e que assim as decisões depen­dem dos impulsos básicos de nossa natureza individual. Considerado de um ponto de vista puramente abstrato, com certeza esses impulsos pro­duzem apenas as metas máximas, enquanto que os meios são determina­dos por compreensões objetivas e teóricas. Na prática, todavia, a com­preensão não é só tão imperfeita, que os impulsos devem escolher em seu lugar; é também tão fraca que não pode resistir a seus poderes de persuasão. Assim a atração imediata da forma grupal que é coerente­mente organizada e internamente equilibrada, e dessa maneira exclui todos os atritos - do modo como esta forína tornou-se agora subli­mada n() socialismo - prevalecerá com freqüência para além de toda justificativa racional sobre o caráter rapsódico, complexamente desin­tegrado e acidental, da forma competitiva de prodúção, com seu desper­. dício de energia. Na medida em que os indivíduos se aproximem de tal disposição, excluirão a competição até mesmo rias áreas cujo conteúdo não se opõe a ela.

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10. CONFLITO E ESTRUTURA DO GRUPO *

Até agora a discussão mostrou ·numerosas regularidades entre as partes, em relação a u:rn conflito - combinações de antíteses e sínteses, a sobreposição de uma a outra, restrições mútuas assim como inten­sificações. Mas o conflito tem uma outra significação sociológica: não para as relações fí;<;{procas das partes diante dele, mas para a estrutura interna de cada parte em si mesma.

A experiência éotidiana mostra quão facilmente um conflito entre dois indivíduos transforma cada um deles, não apenas em sua rélação um com o outro, mas também consigo mesmo. Antes de mais nada existem para o indivíduo as conseqüências desfiguradoras e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras do conflito~ Além do mais, existem as condições para o conflito, as mudanças e adaptações interiores que gera, pelo que significam de sua utilidade para efetivá-h ·Nossa língua oferece uma fórmula extraordinária, · reveladora da essência destas mu­danças: o lutador deve "se concentrar" (sic zusammennehmen), isto é, todas as suas energias devem estar, por assim dizer, condensadas em um ponto, de modo que possam ser usadas a qualquer momento, em qual­quer direção. Na paz, o indivíduo pode "se abandonar" - o "se" refe-

*Reproduzido de SrMMEL, G. Conflict and the structure of the group. In: .-. Conflict ... Ed. cit., p. 87-107. Trad. por Dinah de Abreu Azevedo. Tradução revista pelo Organizador e cotejada com o original alemão: Der Streit. In: Soziologie. Ed. cit., p. 232-45.

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re~se às diversas forças e interesses de sua natureza, os quais podem se deiXar desenvolver em várias direções e de forma independente uns dos outros. Em tempos de ataque e defesa, todavia, isto poderia causar uma perda de . energia - devido às tendências contrárias de partes de sua natureza - e uma perda de tempo, por causa da necessidade contínua de .. reuni-los e organizá-los. Conseqüentemente, todo ·o indivíduo deve utlhzar, como posição interior de conflito e chance de vitória, a forma da conéentração.

Conflito e c_entralização do grupo

Exige-se do grupo um comportamento f()rmalmente idêntico numa situação idêntica. Esta necessidade de centralização, de cerrada concen­tração de todos os elementos, que garante sozinha a sua utilização. -sem perda de energia ou de tempo - para quaisquer que sejam as exi­gências do momento, é óbvia em caso de conflito. E tão óbvia que há inúmeros exemplos históricos onde tal centralização substitui até a mais ~erfei~a democracia dos tempos de paz. Tomemos, por exemplo, as· notá­nas drferenças entre a organização dos tempos de paz e a organizaÇão dos tempos de guerra dos índios norte-americanos. Ou os alfaiates lon­drinos que, nos primeiros vinte e cinco anos do século XIX; tiveram uma organização muito diferente, uma para a paz e uma para a guerra contra seus empregadores. N<,:>s tempos tranqüilos, a organização consistia de pequenas assembléias, autônomas e gerais, em cerca de trinta albergues. Nos tempos de guerra, cada albergue tinha um representante~ esses repre­sentantes formavam um comitê, o qual por sua vez elegia um comitê bem pequeno que. emitia todas as ordens e era incondicionalmente obede­cido. Naquele tempo, as organizações dos trabalhadores geralmente se­guiam o princípio do interesse de todos, a ser decidido por todos. Aqui, todavia, a .necessidade levou à formação de um órgão da mais rigorosa eficiência; tinha um efeito totalmente autocrático e sua vantagem era reconhecida por todos os trabalhadores, sem .exceção.

AA .notória relação recíproca entre uma constituição despótica e as t,endencras guerreiras de um· grupo repousa sobre essa base formal: a guerra precisa de uma intensificação centralista da forma grupal, e a melhor maneira de garanti-la é· o despotismo. E vice-versa: uma vez que o despotismo exista e que aquela forma centralizada tenha se· materiali-­zado, as energias assim acumuladas e represadas buscam muito facil­mente um extravasamento natural; a guerra com o exterior. Podemos mencionar um exemplo do inverso desta conexão, devido a seu caráter

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surpreendente. Os esqmmos da Groenlândia são tiro dos _povos ·mais anarquistas do mundo, sem qualquer tipo de chefia. Quando pescam, _

go~tam de seguir o mais experiente entre ~les; mas este não tem auto­ridade nenh:uma e não há meios para coagir um indivíduo ·que se isola

do empreendimento comum do grupo. Conta-se deste povo que, entre eles,_o único modo _de resolver desavenças é o desafio musi_cal.. A pessoa

que se julga prejudicaçla por outra inventa versos sarcásticos · contra

ela e os. recita numa assembléia tribal especialmente reunida para esse propósito; ao que o adversário responde de maneira semelhante. A

ausência absoluta de qualquer impulso guerreiro tem correspondência

com a ausência igualmente absoluta de centralização política. Por ess~ razão, a organização do exército é a mais c-entralizada de

todas· as organizações do grupo total - com a possív,Çi exceção do __ · corpo ·de bombeiros, que opera com base em exigências formalmente ·

semelhantes. O exército é a organização na qual a regra incondicional

da autoridade central exclui qualquer movimento independente dos ele­mentos. Por isso, cada impulso procedente daquela autoridade se traduz

em movimento do todo, sem qualquer perda dinâmica. Por outro lado, o que caracteriza uma fedéração de Estados é sua unidade e enquanto

poder que comanda a guerra. Em todos os outros aspectos, cada Estado

pode preservar sua autonomia; neste não, se deve haver uma federação

qualquer. A perfeita federação de ·Estados bem pode ser descrita como

aquela que, em suas relações com outros Estados (no fundo, latente ou

declaradamente guerreira), forma uma unidade absoluta, enquanto que

em suas relações mútuas seus membros possuem absoluta independência.

O comportamento do grupo centralizado no conflito

Em vista .da íílcomparável utilidade da organização unificada par~.

propósitos de luta, poder-se.,ia supor ,que cada parte estivesse extremá­

mente interessada na ausência . de tal unidade na parte oposta. Não

obstante, há casos completamente diferentes. A forma centralizada para

a qual a parte é impelida pela situação de conflito desenvolve-se para

além da própria parte e a leva a preferir que seu oponente também utilize

essa forma. Nas contendas entre trabalhadores e empresários das últimas

- décadas este tem sido inequivocamente o caso. Na Inglaterra, a Royal

Labour Commission · (Comissão Real do Trabalho) aprovou em 1894 a

declaraÇão de que a sólida organização dos trabalhadores favorecia os

empresários numa dada atividade e, da mesma forma, a dos empresários

· favorecia os trabàlhadores, pois embora o resultado de tal organização

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fosse- que uma greve incipiente pudesse se espalhar rapidamente e durar muito tempo, isto ainda era mais vantajoso e econômicÔ para ambas as partes· do que numerosas disputas locàis, interrupções de trabalho e con­flitos insignificahtes, que não podiam ser impedidos na ausência de uma

rigoro_sa organização de empresários e trabalhadores. Isto é comparável à guerra entre os Estados modernos que, não importa quão destrutiva e

cara possa ser, resulta, c<:mtudo, num equilíbrio global melhor do que os atritos e conflitozinhos incessantes característicos dos períodos em que

os governos são menos fortemente centralizados. Também na Alemanha os trabalhadores entenderam que uma organização sólida e eficaz dos

empregadores, especialmente para resolver conflito de interesses é vanta-. ' Josa para os próprios trabalhadores, pois só pma organização desse tipo pode fornecer representantes com os quais é possível negociar com toda

segurança; apenas se tal organização existe é que os trabalhadores podem

estar certos de que o êxito obtido não será posto em perigo por empre-gadores discordantes. - ·

.. A desvantagem que uma parte sofre, em função da org~nização unificada de seu oponente - pois isto é uma vantagem para o oponente

- é mais o que compensada pelo fato de que, se ambas as partes estão

assim organizadas, o próprio conflito entre elas pode se concentrar, pode

ficar dentro de seu campo de ação e levar a urna paz realmente comum

a ambas. Se, ao· contrário, uma pessoa se defronta com uma difusa

multiplicidade de inimigos, ela consygue vitórias particulares mais fre­

qüentes, mas tem grande dificuldade em realizar ações decisivas que

fixem· Befinitivamente a relação mútua entre as forças. Esse ç:aso é tão

píofu~aamente instrutivo em relação- à interdependência entre a forma

unitária do" grupo e seu 'comportamento no conflito porque deixa a

efiCiência _desta interdependência triunfar até mesmo sobre a vantagem

imediata do inimigo. Esse caso mostra que a forma objetivamente ideal

de organização para o conflito deve ser aquela. centripetalidade que o

resultado real da luta apresenta do modo mais rápido e seguro. Essa

teleologia que, por assim dizer, transcende as partes, permite a cada uma

delas encontrar a sua vantagem e chegar ao paradoxo aparente de que

cada uma delas torna sua a vantagem do oponente. ·

O efeito do conflito intergrupal sobre o grupo

Para o significado sociológico da formação de grupos e de conste­

lações grupais, é essencialmente diferente segundo se trate de urna ou

outra das duas alternativas seguintes. Por um lado, o grupo como um

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todo pode entrar numa relação de antagonismo com um poder exterior

a ele e é por causa disso que ocorre o estreitamento das relações entre

seus membros e a intensificação de sua unidade, em consciência e ação.

Por outro lado, cada elemento de uma pluralidade pode ter seu próprio

oponente, mas .como 'esse oponente é o mesmo para todos os elementos,

todos-el~s se unem ~ e nesse caso os elementos podem não ter tido

qualquer relação entre si antes disso; ou podem ter tido, mas agora

novos grupos emergem entre eles. . .

A respeito da primeira alternativa, é preciso enfatizar que enquanto

o conflito ou guerra de um grupo pode permitir a superáÇão de certas

discrepâncias e alienações individuais internas, . ele freqüentemente . evi­

dencia as relações intergrupais com uma clareza ·e uma determinação

impossíveis de outro modo. Isso po~e ser particularmente bem observado

em grupos menores que ainda não atingiram o grau de objetivação

característico do Estado moderno. Quando um partido político, que

unifica muitas correntes de interesse diferentes, é impelido para uma

posição de conflito decisiva e unilateral, resulta uma oportunidade para

a cisão. Em tais situações, existem apenas duas alternativas: ou esquecer

as correntes contrárias internas, ou dar-lhes uma expressão verdadeira,

expulsando certos membros. Se uma família abrange personalidades

entre as quais existem discrepâncias fortes, embora latentes, então o

momento em que o perigo ou o ataque impele a família a cerrar fileiras

ao máximo é o mesmo momento em que, ou assegura'sua unidade por

muito tempo, ou a destrói definitivamente; é este o momento qut:: decide

com aguda precisão se é possível a cooperação entre tais personalidades.

Se uma turma de colégio planeja pregar uma peça no professor ou uma

. briga com outra classe, todo tipo de inimizades internas silencia; mas

por outro lado, certos estudantes se vêem forçados a se separar do resto,

devido não só a razões objetivas, mas tambéril.iporque em tais ataques

decisivos eles não querem se juntar a certos alunos com os quais, não

obstante, não hesitariam em· cooperar em outros aspectos dentro da

estrutura da classe. Em síntese: em condição de paz, o grupo pode per­

mitir que membros antagônicos convivam em seu interior numa situação

indeterminada, porque cada um deles pode seguir seu próprio caminho

e evitar colisões. Uma condição de conflito, todavia, 'aproxima os mem­

bres tão estreitamente e os sujeita a um impulso tão uniforme que eles

precisam concordar ou se repelir completamente. Esta é a razão pela

qual a guerra com o exterior é, algumas · vezes, a última chance_ para

um Estado dominado por antagonismos internos superar estes antago­

nismos, ou então dissolver-se definitivamente.

155

Flexibilidade e rigidez dos grupos diante do conflito

_ Por isso, em_ qualquer tipo de situação guerreira, · os grupos não

sa~ tolerantes .. N~o. podem se dar ao luxo de desvios individuais da

~m~ade do prmcrplO coordenador além de um grau definitivamente

hmrtado .. A ~écnica paraisso é às vezes uma tolerância aparente, exercid~ com a fmahdade de ser ~~p.az de expulsar com a maior determinaÇão

aquele~ elem~n.tos que defmrtrvamente não podem se incorporar ao grupo.

A Ig~e!a Catohca realmente se encontrou, desde o começo, numa dupla

~ondrçao de g~erra: contra todo o conjunto das várias doutrinas que,

JUntas, .c~ractenzam a heresia; e contra os poderes e interesses vitais em

~ompetrçao com a Igreja e. a rei~indicação de/ uma esfera de poder algo

mdependen.te. Ela consegum a linha de frente estritamente unitária -de

que _necess1tava em tal situação tratando os dissidentes, tanto quanto

po~srvel, ~orno seus membros, mas no momento em que isso não erá mars possrvel, ~xpulsando-os com incomparável energia. Para estruturas

g;u~ars ~esse trpo, uma ~erta flexibilidade de forma é da maior impor­

tancra, nao _para consegurrqualquer mudança nas forças antagônic'as ou

qualquer reconciliação com elas mas, ao contrário, para se contrastar

com elas com a máxima agudeza, ao mesmo tempo em que não perde.

qual~uer eleme~to _que de algum modo lhe possa ser· útil. A fiexibilidade

consrste em nao tentar ultrapassar os próprios limites; áqui 0 limite

encerra o ~orpo flexível tão inequivocamente quanto um corpo rígido.

~ssa capac~dade de expansão caracteriza, por exemplo, as ordens monás­

t~cas, atraves das quais os impulsos místicos ou fanáticos da Igreja Cató­

lica (como os de todas as religiões) podiam se exaurir de um modo

completa~ente inofensivo e incondicionalmente subordinado a ela. No

Pr~testant:smo, ao -contrário, com sua intolerância dogmática às vezes

murto ~aror, esses mesmos impulsos levaram freqüentemente a grupos

separatistas fragmentados, que prejudicaram a sua unidade. [ ... ]

Oposição interna ',e externa e C()esão grupa]

. . P~l: mesma razão, um partido político pode se beneficiar de uma

drmm~~çao em seu número de sócios na medida em que essa diminuição

o purifrqu~ ~os elementos que tendem à mediação e à contemporização.

J?uas :ondiçoes devem ser usualmente satisfeitas, se é este o caso: uma

srtuaç_ao de conflito agudo e que o grupo combatente seja relativamente

~ed~rdo. O modelo é o partido minoritário, especialmente se não se

limrta à defensiva. A história parlamentar inglesa mostra isso em muitos

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casos. Quando, por exemplo, em 1793, o Partido Whig já estava muito desagregado, fortaleceu-se pela deserção de todos os· eleirientos que eram ainda algo mediadores ou tíbios. Os poucos remanescentes, pe:t;sonali­dades muito decididas, somente então puderam se ocup·ar com uma ação política radical e totalmente unida. O grupo majoritário não precisava exigir-uma -.:definição tão Glara de . pró. ali contra. Membros con_9.ic!oriais e vacilantes são menos perigosos para o grupo majoritário porque seu grande número pode permitir estes fenômenos periféricos, sem ser afetado no centro. Mas quando - como no grupo menor - a periferia está mais próxima do centro, cada incerteza de um membro ameaça imediata­mente o núcleo e daí a coesão do todo. A distância insignificante entre os elementos favorece a ausência daquela .flexibilidade do grupo que é

aqui condição para a tolerância. Conseqüentemente, grupos ___.,. e especialmente minorias - que vi~

vem em conflito e perseguição, muitas vezes rejeitam a aproximação ou a tolerância do outro lado. A natureza fechada de sua oposição, sem a qual não poderiam continuar lutando, seria obscurecida. Isso já foi de­monstrado mais de uma vez nas contendas de congregações eclesiásticas na Inglaterra, pôr exemplo. Tanto sob James 11 quanto sob Williám e Mary, o governo aproximou-se ocasionalmente· dos Não-Conformistas e dos Independentes (Batistas, Quakers), · mas eles não receberam bem, de modo algum, essas aproximações, pois ofereciam aos mais condescen­dentes e indecisos entre eles a tentaçã<;J e a possibilidade de formar po-

. sições intermediárias ou, no mínimo, de atenuar sua oposição. Cada concessão do outro lado, que é apenas parcial, em todo caso, ameaça a uniformidade na oposição de todos os membros e, por isso, a unidade de sua coesão, sobre a qual a minoria combatente deve insistir sem

contemporizações. Por causa disso, a unidade de um grupo muitas vezç.s se perde,

quando não há mais um adversário, como foi enfatizado em várias discussões do Protestantismo. Diziam que, já que lhe é necessário "pro­testar", o Protestantismo perde .energia ou sua unidade interna, uma vez que o adversário contra quem protesta sai de seu alcance. O grupo perdeu sua unidade interna ao ponto mesmo de repetir no seu próprio interior o conflito com o inimigo, ao se dividir num partido liberal e num partido ortodoxo. De modo semelhante, na história dos partidos políticos dos Estados Unidos, a completa submissão de um dos dois grandes partidos teve muitas vezes o efeito de dissolver o outro e subgrupos e facÇões divergentes. Também não constitui qualquer vantagem para .·a unidade do Protestantismo o fato de não ter alguns hereges verdadeiros.

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A co.nsciênc~~ de unidade da Igreja Católica, ao contrário, tem s~ fortalectdo declSlvamente, graças à heresia e ao comportamento agres­stv~ contra ela. A irreconciliabilidade · de.sua oposição à heresia permitiu a dtversos elementos ,de~tro da Igreja se orientarem e, por assim dizer, s~ ~e~brarem de sua umdade, apesar de certos interesses divergentes. A vtton~ comp!eta de um grupo sobre seus inimigos não lhe é sempre favoravel ass~m, no sentido sociológico. A vítórl.a diminui a energia que garante ~ umdade do grupo e as forças da dissolução, que estão sempre em fu~ctonament~, g~nham terreno. A decadência do Império Romano do Octdente, no seculo V, tem sido explicada pela subjugação dos inimi­gos comuns. Talvez a sua base - proteção de um lado dedicação do outro - não fosse mais exatamente natural há algum ~empo, mas só se. tornou aparente quando nenhuma inimizade comum elevou 0 todo actma ~de s~as ,c?ntradições internas. No interior de certos grupos, pode :-e~ ~te um t~d1c10 de sabedoria política cuidar para que existam alguns tmmtgos, a ftm d~ que a unidade dos membros continue efetiva e para q~e o grupo contmue consciente desta unidade como a1go de interesse vttal.

O conflito como base de formação do grupo

O último exemplo leva a casos de uma intensificada função unifi­cadora ~o co~~lito .. O conflito pode não só elevar a concentração de uma umdade Ja extstente, eliminando radicalmente todos os elementos que ~ossam obscure~er a clareza de seus limites com o inimigo, como ta~bem pode aproxtmar pessoas e grupos, que de outra maneira não tena~ qualquer relação entre si. O poderoso efeito do conflito a este . r~spetto surge de modo mais claro no fato de que .a conexão entre a sttu~ção de conflito e a unificação é suficientemente forte para chegar a ser Importante mesmo no processo inverso. As associações psicológicas ?eral~ente mostram sua força no seu efeito retroativo. Se, por exemplo, tmagmamos uma dada pessoa sob a categoria de "herói", a conexão entre a representa~ão da pe~~oa e a do herói é mais íntima se não podemos pensar na categona de herm sem o surgimento automático e simultâneo da imagem daquela personalidade. , .

De m?do ~emelhante, a unificação com o propósito de luta é um processo vtvenctado tão freqüentemente que às vezes o mero. confronto de elementos, mesmo quando ocorre sem qualquer propósito ·de. agressão ou de outra forma de conflito, aparece aos olhos dos outros como uma ameaça e um ato hostil. O despotismo do Estaclo moderno dirigiu-se

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acima de tudo contra a idéia medieval de unificàção .. Eventualmente qualquer associação como tal - entre cidades, categori~s sociais, cava­leiros ou quaisquer outros elementos do Estado - parectam ao governo uma ~ebelião, uma luta latente contra ele. Carlos Magno proibiu • as corporacõeLengl}-ª_nto associa_ções juramentadas e as permitiu exp~i~it_:r­mente para propósitos de caridade, sem jun1menTo. A-ênfase--da-prmbtçao repousa sobre a obrigação juramentada mesmo para propósítos legítimos, porque estes podem facilmente se combinar com outros, os 'quais são perigosos •.para o Estado. Assim, a ordenança de terras da Morávia de 1628 diz: "De acordo com isso, filiar-se ou erigir federações .• ou sindi­catos, para quaisquer propósitos ou contra quem quer que seja, :não é permitido a mais ninguém além do rei". O fato de que o própriq poder governante às vezes favorece ou mesmo inicia tais associações não con­tradiz esta conexão, antes a confirma. É assim não apenas quando a associação vai contra um partido de oposição existente (no qual isso'·é óbvio), mas também no caso mais interessante em que se destina inofen­sivamente a distrair a tendência geral para se associar. Depois que os romanos dissolveram todas as associações políticas dos gregos, Adriano criou uma organização de todos os helenos ( koinón synédrion ton H ellé­non) com propósitos ideais: jogos e comemorações - para· .. a manu­tenção de um pan-helenismo ideal e completamente apolítico. ·

Para a direção tomada pela relação que vamos discutindo, os exem­plos históricos se encontram tão à mão que o único ponto sobre o qual vale a pena insistir é a observação dos graus de unificação possíveis através do conflito. Essencialmente, a França deve a consciência de sua unidade nacional apenas à sua luta contra os ingleses é somente a guerra moura trap.sformou as regiões espanholas num povo. O próximo gralÍ dect!lscente de unificação é constituído pot confederações e federa­ções de/estados, com numerosas gradações àdicionais, de acordo com sua co~são e. com a extensão do poder atribuído às autoridades centrais. Os Estados Unidos precisaram da Guerra da Independência; a Suécia, da luta· contra a Áustria; a Holanda,· da rebelião contra a Espanha; a Liga Aqueana, da luta contra a Macedônia; e a fundação do novo Impé­rio Germânico fornece um paralelo a todos essés exemplos.

Aqui também se inclui a formação das categorias sociais unificadas. o elemento de ç;onflito . (contrastes latentes ou declarados) tem uma im­portância tão evide~te para elas que menciona apenas um exemplo nega­tivo. O fato de a Rússia não ter uma aristocracia propriamente dita, enquanto categoria social fecfuada, pareceria estar destinado a favorecer um desenvolvimento amplo e irrestrito de uma burguesia. Na realidade,

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dá-s~ o contrário. Se, como em outras partes, tivesse existido uma aristo­cracia poderosa, esta certamente teria se oposto muitas vezes ao príncipe 0 qu~l, por seu lado, teria dependido de uma burguesia urbana. Entr; os pnnctpes, tal situação de conflito teria feito surgir um interesse em desenvolver uma classe burguesa unificada. Os próprios burgueses não encontr~r~m estímulos firmes (nesse caso, absolutamente nenhum)_ para cerrar. ftleuas enquanto categoria social. Caso os tivessem encontrado, podenam ter ganho com o conflito ao se juntar a· um lado ou a outro.

Em todos ·os c.a~os positivos desse tipo, é característico que a uni­d,ade, embora ~e ongme ~o conflito e com propósitos de conflito, man­tem-se para a:e~ do penado de luta. Chega a ter interesses adicionais e for~a.s as.s~c~atlvas que não mantêm mais qualquer relação com o firme p~opostto I~nctal. De fato, a importânCia do conflito consiste na· artic:ula­çao da un.t~ade_ e da. relação latente; o conflito é mais a oportunidade par~ as umftcaçoes ~x1gidas internamente do que o propósito dessas unifi­caçoes. De fato, no mteresse coletivo pelo conflito, há mais uma gradação, a. saber, de ~cordo com o fato de a unificação com o propósito de con­flito se refe;n a a:aque e defesa ou apenas à defesa. Só com o propósito de defesa, e provavel que a unificação ocorra na maioria das coalizões de grut:.os existentes, especialmente quando os grupos são numerosos. e heterogeneos. Esse propósito de defesa é o mínimo coletivo, porque mesmo para o grupo Isolado e para .·o indivíduo isolado constitui o teste meno~ dispensável do impulso de autopreservação. E~identemente, quanto ,mms, numeros?s e variados são os elementos que se associam, meno! e o numero de mteresses nos quais coincidem - no caso extremo o .núAme~o se ~eduz à necessidade mais primitiva, a defesa da própri~ exts:en~ta. As.stm, em resposta ao medo dos empresários de que todos os smdtcatos mgleses possam se unir algum dia um de seus mais ardo­rosos partidários observou que mesmo chega~do a isso seria apenas com o prósito de defesa. '

Em comparação com esses casos, nos quais o efeito coletivizante ?o conflito transcende o momento e o propósito imediato do grupo (e tsso ~ode acontecer mesmo em relação ao mínimo que acabamos de menciOnar) a extensão desse efeito é menor quando a unificação ocorre ape~as ad hoc. Devemos distinguir dois tipos aqui. Por um lado, existe a aha?ça para ~ma ação isolada. Muitas vezes, especialmente nas guerras pr~pnament~ dttas, essa aliança requer todas as energias dos elementos. Cna uma umdade sem resíduos, mas depois de obter êxito ou de falhar em s~u ~bj.etivo imediato, essa unidade deixa suas partes voltarem à sua, exis­tencta mdependente anterior - como, por exemplo, fizeram os gregos,

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depois de eliminar o perigo persa. No segundo tipo, a unidade é menos completa, mas também menos transitória. Aqui os elementos se agrupam em torno de um propósito bélico singular, não tanto em termos de tempo, como em termos de conteúdo e que não produz qualquer outro contato entre eles _além deste. Desse modo, existe na Inglaterra 1Jllla Fed~ração dos Empr~g~ciores Associados (Fe,dera_!i()n s>f Asso_ci~~ci liii1Pls>Y~ts . of Labour), fundada em 1873, para combater a influência dos sindicatos; e alguns anos mais tarde, uma associação semelhante formou-se nos Estados Unidos, a fim de neutralizar greves em_ qualquer ramo da indústria.

O caráter de ambos. os tipos de unificação parece, é claro,_ mais agudo, quando se compõe de elementos . que em outros tempos ou a respeito de outras coisas qúe não aquela em questão, não são apenas indiferentes, mas hostis um ao outro. O poder unificador do prinCípio do conflito não surge com mais força em nenhum outro caso .·do que quando produz uma associação temporal ou reai em circunstâncias de competição ou de hostilidade. Sob certas circunstâncias, o contraste entre o antagonismo habitual e a associação momentânea· com propósitos de luta pode ser tão agudo que é precisamente a profundidade da hostilidade mútua das partes que produz a causa direta de sua aliança. No paria-

-- mento inglês, algumas vezes a oposição foi criada quando. os partidários extremados da política ministerial não estavam satisfeitos com a admi..: nistração e se aliavam a seus adversários radicais, aos quais se ligavam pelo antagonismo comum contra o ministério. Sob Pulteney, por exemplo, os ultra-Whigs uniram-se aos high-Tories contra Robert Walpole. Foi precisamente o radicalismo do princípio de inimizade 6ontra os Tories que uniu 'seus adeptos aos Tories: se seu anti-Toryism não tivesse sido tão fundamental, não se teriam unido a seus inimigos a fim de conseguir a queda do ministro Whig, que não era suficientemente whiguista para eles.

Esse caso é particularmente exemplificativo, porque o adversário copmm une os que de outra forma são inimigos mútuos; do ponto de vista de cada um desses inimigos, ele - o adversário comum - inclina-se de­masiadamente para o outro lado. Mas esse caso extremo é apenas o mais puro exemplo da experiência trivial de que ne~ mesmo as mais amargas inimizades impedem uma união, se esta se dirige contra um inimigo comum. Isso é particularmente verdadeiro se ambas ou ao menos uma das partes agora em colaboração têm em vista ·metas muito concretas e imediatas, para· cuja consecução é necessário eliminar um determinado adversário. A história da França, dos huguenotes a Richelieu, mostra

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161

que era suficiente um dos partidos internos aumentar sua. hostilidade para com a Espanha ou a Inglaterra, a Sabóia ou a Holanda, para que o outro se aliasse imediatamente a essa potência estrangeira - sem considerar a harmonia ou desarmonia entre aquela potência e suas pró­prias metas positivas. Esses partidos da França tinham, contudo, obje­tivos muito concretos e precisavam apenas de- "espaço", de se libertar do adversário, bastando que tjvesse a mesina intenção, num-a -suprema desconsideração por suas relações habituais com ele. Quanto mais pura­mente negativa ou destrutiva é uma determinada inimizade, tanto mais ·. facilmente será realizada uma: unificação daqueles com os quais comu­mente não têm nenhum outro motivo de qualquer associação.

O grau mais baixo nessa escala de unificações à base de conflito, sua forma menos aguda, constitui-se de associações mantidas apenas por um estado de espírito comum. Em tais casos, os membros reco­nhecem que se mantêm unidos na medida em que têm a mesma aversão ou o mesmo interesse prático contra um terceiro. Esse interesse, todavia, não leva necessariamente a uma agressão comum contra aquele terceiro. Também aqui é preciso distinguir dois . tipos. O primeiro é exemplificado pela oposição entre massas de trabalhadores e uns poucos empresários da grande indústria. Na luta por condições de trabalhq, esta situação

-produz, evidentemente, não só as coalizões específicas e realmente efe­tivas entre os operários, mas também o . sentimento bem genérico de que todos eles comungam de algum modo, porque estão todos unidos na luta basicamente idêntica contra os empregadores. Naturalmente que em certos pontos este sentimento se cristaliza em ações específicas de formação político-partidária ou de lutas por salário. Como um todo, entretanto, .e.sse sentimento não pode, por sua própria natureza, tornar-se prático. Permanece como o estado de espírito de uma comunhão abstrata, em virtude da oposição .comum a um adversário abstrato. Aqui, então, o sentimento de unidade é abstrato, mas duradouro.

No segundo tipo, esse sent~ento é concreto, mas temporário. É

exemplificado por pessoas que não se conhecem, mas que compartilham o mesmo nível de educação ou de sensibilidade e que se encontram juntas, talvez num vagão da estrada de ferro - ou em circunstâncias semelhantes -, com outras pessoas de comportamento grosseiro ou vul­gar. Sem qualquer cena, sem nem mesmo trocarem uma palavra ou um olhar, ela!; se sentem, não obstante, como um partido, unidos pela aversão comum à vulgaridade (que é agressiva ao -menos no sentido ideal) dos outros. Essa unificação, com seu caráter extremamente gentil e delicado, embora totalmente inequívoco, marca o ponto extremo na escala de

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unificação de elen_;entos completamente alienígenas através de l11Il·. anta­gonismo comum. ·· . •. . · .· .·. . ' .

A força sintética de uma oposição comum pode se determinar, não pelo número dos pontos de. interesse compartilhados, mas pela .duração e intensidade da unificação. Nesse caso, é especialmente favorável à unificação se, em vez da luta real. contra o inimigo, existe uma ameaça permanente de sua parte. Em relação ao primeiro período da Liga Aquea­na, isto é, cerca de 270 a.C., já foi observado que a Aquéia. estava rodea­da de inimigos; todos eles, porém, tinham algo 1flais a faze~ além de atacá-la. Diz-se que esse período de. perigo sempre ame:1çl!dor, mas nunca materializado, foi especialmente adequado para fortalecer o sen-timento de unidade. ·"'

Esse é um caso de tipo peculiar: uma certa distância ~ntre os elementos a serem unidos, de um lado, e o objetivo e o interesse que os une, do outro, é uma constelação particularmente favorável à unificação, notavelmente em grupos maiores. As relações religiosas são um exemplo característico. Em contraste com . entidades tribais e nacionais, o Deus da Cristandade, espalhado pelo ·mundo inteiro, mantém uma distância infinita de seus· devotos; é inteiramente desprovido de traços relacionados ·com o caráter específico do indivíduo. Em compensação, pode incluir .os mais heterogêneos povos e personalidades, numa comunidade religiosa incomparável. Outro exemplo: a roupa sempre caracteriza certos estratos sociais como senqo da mesma posição; e parece preencher melhor essa função social quando é importado. Vestir-se como se veste em Paris significa ter uma associação íntima e exclusiva com. um certo estrato social de outros países - já o profeta Sofonias fala dos nobres como os que usavam roupas estrangeiras.

. Os significados bem diversos relacionados com o símbolo "distân­cia" têm muita afinidade psicológica entre si. Por exemplo, uma imagem de objeto representada de algum modo como "distante" pàrece ter quase sempre um efeito mais impessoal. Se, acompanhada de tal representação, a reação individual seguinte à proximidade imediata e ao toque é menos aguda, tem imediatamente um caráter menos subjetivo e desse modo pode ser o mesmo para um número maior oe indivíduos. O conceito geral que abrange uma pluralidade de pormenores é tanto mais abstrato (isto é, mais dist.ante de cada um deles), quanto mais numerosos e diferentes uns dos outros forem estes pormynores. Assim, um ponto de unificação social a uma distância maior dos elementos a serem unificados (tanto no sentido espacial quanto figurado) p'arece do mesmo modo ter efeitos especificamente unificadores e abrangentes. A unificação decor-

163

rente de um perigo mais crônico do que agudo, decorrente de um conflito sempre latente mas nunca detonado, será mais efetiva quando o problema é a unificação duradoura de elementos algo divergentes. Isto foi próprio da Liga dos Aqueus, já mencionada. Na mesma tendên~ cia, Montesquieu observa que enquanto a paz e a confiança são a gl9.ria e a segurança d,as monarquias, as repúblicas precisam de alguém a quem temet."Essa observaÇão se-oaseia aparentemente no sentime!ú:o a respeito da constelação já discutida. A própria monarquia cuida para que elemen­tos possivelmente antagônicos se mantenham unidos. Mas quando tais elementos não têm ninguém acima deles para forçar sua unidade, mas gozam em vez disso de uma relativa soberania, facilmente se dividirão, a menos que um perigo compartilhado por .todos os obrigue a ficar juntos. Evidentemente, um perigo desses só pode durar e garantir uma estrutura grupal permanente por meio de uma ameaça permanente de conflito, mais que uma luta declarada e isolada.

Embora seja mais uma questão de grau, a conexão básica entre coletividade e hostilidade requer os comentários adicionais que se se­guem. A partir de sua própria origem, os empreendimentos agressivos, niais que os pacíficos, tendem a solicitar a cooperação do maior número possível de elementos que de outra maneira permaneceriam dispersos e que não teriam iniciado a ação por conta própria. No todo, as pessoas comprometidas em ações pacíficas costumam se limitar àqueles que lhes estão próximos também em outros aspectos. Por "aliados", todavià - e o uso lingüístico tem realmente dado uma coloração bélica a esse conceito intrinsecamente neutro - muitas vezes aceitamos elementos com os quais difiçilmente temos, ou mesmo queremos ter, algo em co- · mum. Há muitaJ razões para isso. Primeiro, a guerra, e não só a guerra política, freqüentemente constitui uma emergência na qual não se pode ser muito exigente em termos de amigos. Em segundo lugar, o objeto da ação está fora ou na periferia de outros interesses imediatos· dos aliados, de modo que após o término da· luta, eles podem voltar à sua distância primitiva. Em terceiro lugar, embora a vantagem por meio da luta seja perigosa, se a luta é bem-sucedida, a vantagem costuma ser rápida e intensiva. Por. iss.o,. para certos elementos a luta tem uma atração formal que os empreendimentos pacíficos só podem engendrar através de um conteúdo específico. Em quarto lugar, no conflito, o elemento especificamente pessoal do combatente regride, e assim é pos­sível a unificação de elementos de outra forma completamente hetero­gêneos. Finalmente, deve ser observado o motivo da fácil estimulação mútua da hostiliàade. Mesmo no im:erior de um grupo que luta com

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ou'cro, ctodos _os tipos de hostilidades latentes ou meio esquecidas de seus membros· contra os do outro grupo vêm à tona. Des_se modo, a. guerra entre dois grupos costuma evocar num terceiro a malevolência e o :ressen~ timento contra um dos dois. Por si mesmos, esses sentimentos não .teriam chegado· a uma-eclosão, mas agora que um outro grupo achou o caminho, por assim dizer, levam o terceiro .gr1,1po a se juntar· a ele em s1,1a aÇão. Isso está bem de acordo com o que, em relações genéricas e convergentes entre povos_ como totalidades, especialmente nos tempos primitivos, exis­tia apenas com propósitos de guerra, enquanto outras relações, tais como o comércio, a hospitalidade e o casamento, só diziam respeito a índi.,. víduos. Os acordos entre os povos tornaram essas relações individuais possíveis, mas não as criaram por si mesmos.

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11. SOCIABILIDADE -' UM EXEMPLO DE SOCIOLOGIA PURA OU FORMAL *

No capítulo introdutório, mencionei! o motivo responsável pela cons­tituição da "sociologia pura" em uma área de problema específica. Esse motivo deve ser formulado agora mais -uma vez, antes que seja dado um exemplo de sua aplicação, pois em sua qualidade de um, entre muitos princípios de investigação, este não só determina o exemplo: mais que isso, o próprio motivo fornece a matéria da aplicação a ser descrita.

Çonte-ódos (materiais) versus formas de vida social

O motivo deriva de duas proposições:' uma delas é que em qualquer sociedade humana pode-se fazer uma distinção entre seu conteúdo e sua forma. A outra proposição é que a própria sociedade em geral se refere à interação , entre indivíduos. Essa interaÇão sempre surge com base em certos impulsos ou em função de certos propósitos. Os instintos eróticos, os interesses objetivos, os impulsos religiosos e propósitos de defesa ou ataque, de ganho ou jogo, de auxílio ou instrução, e incontáveis outros, fazem com que o homem viva com outros homens, aja por eles, com eles, contra eles, organizando desse modo, reciprocamente, as . suas con-

* Reproduzido de SIMMEL, G. Socíability - An exampk of pure, or formal, socíology. In: The sociology of Georg Simmel. Ed. cit., p. 40-57. Trad .. por Dinah de Abreu Azevedo. Tradução revista pelo Organizador e cotejada com o original alemão: Die Geselligkeít (Beíspiel der Rei~en oder Formalen Soziologie). In: Grundfragen der Soziologie. Ed. cit., p. 48-6g.

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diçõ~s - em resumo, para influenciar os outros e para· ser-influenc~ado

por eles. A impo:t:tância dessas interações está no fato de obrigar os

indivíduos, que possuem aqueles instintos, interesses, etc., a formarem

uma unidade- precisamente, uma "sociedade". Tudo que está presente

nos indivíduos (que são os dados concretos e imediatos . de qualquer

realidade. histórica) sob a forma de impulso, interesse, propósito, incli­

nação, estado psíquico, movimento - tudo que está presente neles

de· maneira: a engendrar ou mediar influências sobre outros, ou que

receba tais influências, designo como conteúdo, como matéria, por assim

dizer, da sociação. Em si mesmos, essas matérias com as· quais a vida

é preenchida, as motivações que a impulsionam, não são sociais. Estrita­

mente falando, nem fome, nem amor, nem trabalho, nem religiosidade,

nem tecnologia, nem as funções ·e resultados da inteligência são sociais.

São fatores de sociação apenas quando transformam o mero agregado

de indivíduos isolados em formas específicas de ser com e para um

outro - formas que estão agrupadas sob o conceito geral de interação.

Desse modo, a sociação é a forma (realizada de incontáveis maneifàs

difer.entes) pela qual os indivíduos se agrupam em unidades que satis­

fazem seus interesses. Esses interesses, quer sejam sensuais ou ideais,

temporários ou duradouros, conscientes ou inconscientes, causais ou teleo­

lógicos, formam a base das sociedades humanas.

A autonomização de conteúdos

Esses fatos têm conseqüências de longuíssimo alcance. Na base das

condições práticas e das necessidapes, nossa inteligência, nossa vontade,

nossa criatividade e nossos sentimentos trabalham os materiais que

desejamos arrancar da vida. De. acordo com nossos propósitos, damos

a esses materiais certas formas e apenas sob estas formas nós os aciona­

mos e usamos como elementos de nossa vida. Mas acontece que estes

materiais, estas forças e interesses, afastam-se, de um modo muito

peculiar, do exercício de vida que originariamente os produziu e empre­

gou. Tornam-se autônomos no sentido de que não são mais inseparáveis

dos objetos que criaram e através dos quais eram utilizáveis para nossos

propósitos. Passam a viver livremente em si mesmos e por si mesmos;

produzem ou fazem uso de materiais que servem exclusivamente ao

seu próprio funcionamento ou realização.

Qualquer conhecimento, por exemplo, ~arece ter sido originalmente

um recurso na luta pela sobrevivência. O conhecimento exato do com­

portamento das coisas é, de fato, de. extraordinária utilidade para a

167

manutenção e promoção da vida. No entanto, o conhecimentu não é mais

usado a serviço desse empreendimento prático: a ciência tornou-se um

valor em si mesma; escolhe seus objetos de forma completamente autô­

noma, modela-os de acordo com suas próprias necessidades e não se

interessa por mais nada além de sua própria perfeição. Outro exemplo:

a interpretação de realidades concretas ou abstratas, em termos de siste­

mas espaciais, oU de ritmos ou sons, ou de importância e organiZação,

teve certamente suas origens em necessidades práticas. Entretanto, essas

interpretações tornaram-se um fim em si mesmas, efetivas em sua pró~

pria força e em seu próprio direito, seletivas e criativas de maneira total­

mente independente de seu envolvimento com a vida prática, e não por

causa dele. Essa é a origem da arte. Completamente estabelecida, a- arte

é inteiramente separada da vida. Toma dela apenas aquilo que pode

usar, criando-se desse modo a si mesma, por assim dizer, uma segunda

vez. Ainda assim, as formas pelas quais a arte faz isto, e nas quais

realmente consiste, foram produzidas pelas exigências e pela própria

dinâmica da vida. A mesma dialética determina a natureza do direito. Os reql!-isitos

da existência social forçam ou legitimam certos tipos de comportamento

individual que assim são válidos e seguidos, precisamente porque satis­

fazem tais requisitos práticos. Mas com o surgimento do "direito", esse

porquê de sua disseminação retrocede ·para segundo plano: agora os

requisitos são_ seguidos simplesmente porque se tornaram o "direito", e

de forma completamente independente da vida que originalmente os

engendrou e dirigiu. O pólo extremo desse desenvolvimento .expressa-se

pela idéia de "fiat justitia, pereat mundus" (faça-se justiça, mesmo que

o mundo pereça). Em outras palavras, apesar do comportamento jurí­

dico ter suas raíies'nos propósitos da vida social, o direito propriamente

dito não t~m nenhum "propósito", desde que não é um meio para algum

fim posterior; ao contrário, determina - por si próprio e não por legiti­

ma,çã_o através de qualquer função exterior mais alta - de que forma

os CQiiteúdos da- vida deveriam ser modelados.

Essa reviravolta completa - da determinação das formas pela

matéria da vida à determinação de sua matéria pelas formas, que se

tornaram valores supremos~- talvez esteja funcionando plenamente nos

numerosos fenômenos que reunimos sob a categoria de jogo. As forças

reais, as necessidades e os impulsos de vida produzem as formas de com­

portamento adequadas ao jogo. Estas formas, todavia, tornam-se con­

teúdos independentes e estímulos no próprio jogo, ou melhor, enquanto

jogo. Há a caça, por exemplo; o ganho ardiloso; a prova de força

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física e intelectual; a competição; e. a dependência da sorte e do favor de poderes que não podem ser influenciados. Todas estas formas são içadas para fora do fluxo da vida e liberadas da sua matéria com sua gravidade. inerente .. Por decisão própria, escolhem ou criam os .. opjetos

· nos quais provam ou personificam a si mesmas em toda a sua ·.pureza. t isto que dá ao jogo tanto a sua jocosidade quanto seu sentido simbólico, através do qual se diferencia da mera brincadeira. Aqui repousa tudo que pode justificar a analogia entre arte e jogo. Ein ambos, as formas foram originalmente desenvolvidas pelas realidades da vida e criaram esferas que preservam sua autonomia em face destas realidades. t de suas origens - que os mantêm permeados de vida - que extraem sua

· profundidade e sua força. Quando esvaziados de vida, tornam-se respecti­vamente um artifício e um "jogo vazio". No entanto, sua importância e sua verdadeira natureza derivam dessa mudança fundamental, através do que as formas engendradas pelos propósitos materiais da vida sepa,­ram-se deles e tornam-se, elas mes~às, a finalidade e a matéria de sua própria existência. Das realidades da vida, tomam apenas o cjué podem adaptar à sua própria natureza, apenas o que podem absorver em sua existência autônoma.

A sociabilidade como forma autônoma ou lúdica, de sociação

Esse processo funciona também na separação do que chamei de conteúdo e forma da vida societária. Aqui, "sociedade" propriamente dita é o estar com um outro, . para um outro, contra um outro que,

através do veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma é desenvolve os conteúdos e os interesses materiais ou individuais. As formas nas quais resulta esse processo ganham vida própria. São liberadas de todos

os laços com os conteúdos; existem por si mesmas é pelo fascínio que difundem pela própria liberação destes laços. Ê isto precisamente o

fenômeno a que chamamos sociabilidade. Interesses e necessidades específicas certamente fazem com que os

homens se unam em associações econômicas, em irmandades de sangue, em sociedades religiosas, em quadrilhas de bandidos. Além de seus con­

teúdos específicos, todas estas sociações também se caracterizam, precisa­

mente, por um sentimento, entre seus membros, de estarem saciados, e

pela satisfação derivada disso. Os saciados sentem que a formação de

uma sociedade como tal é um valor; são impelidos para essa forma de existência. De fato, às vezes é apenas esse impulso o que sugere os

conteúdos concretos de uma sociação particular. Aquilo que pode ser

169

chamado de impulso artístico extrai da totalidade dos fenômenos sua mera forma, a fim de moldá_-la em estruturas específicas que correspon­dem a esse impulso. De maneira semelhante, o "impulso de sociabilidade" extrai das realidades da vida social o puro processo da sociação como um valor aphciado, e através disso constitui a sociabilidade no sentido estrito da palavra. Não é por mero acaso do hábito lingüístico que :mesmo a sociabilidade mais primitiva, desde que de alguma importância ou duração, dá tanta ênfase à forma, à "boa forma". Pois a forma é a mútua determin~ção e interação dos elementos da associação. :g através da forma que constituem uma unidade. As verdadeiras motivações- da sociação, con­dicionadas pela vida, não têm importância para a sociabilidade. Conse­qüentemente, é compreensível que a pura forma, por assim dizer, a inter­-relação interativa, suspensa, dos indivíduos seja enfatizada da maneira mais vigorosa e efetiva.

A sociabilidade se poupa dos atritos com a realidade por meio de uma relação meramente formal com esta. Ainda que exatamente por isso, essa relação formal extrai da realidade - mesmo para o espírito da pessoa mais sensíVel - uma importância e uma riqueza de vida simbólica e lúdica que são tanto maiores quanto mais perfeita ela é. Um racionalismo superficial procura sempre essa riqueza apenas entre os conteúdos concretos. Como não a encontra ali, prescinde da socia­bilidade como de uma tolice superficial. Contudo, não deixa de significar algo que em muitas - talvez em todas - as línguas européias, sociedade designa simplesmente uma reunião sociável. Ê claro que qualquer socie­

dade, política, econômica, ou qualquer que seja a descrição de seus

objetivos, é uma "sociedade". Mas apenas a sociável é "uma sociedade"

sem outras qualificações. Ê assim precisamente porque representa a

forma pura que se ergueu acima de todos os conteúdos, tais como os que caracterizam aquelas "sociedades" mais "concretas". Isso nos dá uma imagem ·abstrata, na qual todos os conteúdos se dissolvem no mero jogo da forma.

a) Irrealidade, tato, impessoalidade

Como categoria sociológica, designo assim a sociabilidade como a forma lúdica da sociação. Sua relação :com a sociação concreta, determi,..

nada pelo conteúdo, é semelhante à relação do trabalho de arte com a realidade. O grande, talvez o maior, problema da sociedade encontra

nessa relação uma solução que não é possível em outro· lugar. Este problema é a questão concernente às proporções de importância e peso

que, na vida total do indivíduo, são dele propriamente e os que são

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170'

propriamente de sua esfera social. Visto que na pureza de suas mani­

festações a sociabilidade não tem propósitos objetivos, nem conteúdo,

nem resultados exteriores, ela depende inteiramente das personalidades

entre as. quais ocorre. Seu alvo não é nada -além do sucesso do momento

sociável e, quarido muito, da lembrança dele. Em conseqüência disso,

as condições e os resultados do processo de sociflbmdade são exclusiva­

mente as pessoas que se encontram numa reÚnião' social. Seu caráter

é determinado por qualidades pessoais tais como amabilidade, refina­

mento, cordialidade e muitas outras fontes de atração. Mas exatamente

porque tudo depende de suas personalidades, não é permitido aos parti­

cipantes realçá-las de maneira demasiado evidente. Quando interesses

específicos (em cooperação ou conflito) determinam a forma social,

são estes interesses que impedem o indivíduo de exibir sua peculiaridade

e singularidade de modo tão ilimitado e independente. Onde estes inte­

resses não existem, sua função deve ser assumjda por outras condições.

Na sociabilidade, derivam da mera forma da reunião. Sem a redução

da autonomia e da exacerbação pessoal - que é efetuado por essa

forma -, a própria reunião não seria possível. O tato é aqui, portanto,

de · peculiar importância: onde nenhum interesse egoísta imediato ou

externo dirige a auto-regulação do indivíduo em suas relações pessoais

com outros, é o tato que preenche essa função reguladora. Talvez sua

tarefa ·mais essencial seja traçar os limites, que resultam das reivin­

dicações dos outros; ·dos impulsos do indivíduo, da ênfase do ego e dos

desejos intelectuais e materiais.

A sociabilidade surge como uma estrutura sociológica muito pe­

culiar. O fato é que, sejam quais forem os atributos objetivos que os

participantes de uma reunião possam ter - atributos esses centralizados

fora da reunião particular em questão -, eles estão proibidos de parti­

cipar dela. Riqueza,. posição social, cultura, fama, méritos e capacidades

. excepcionais não podem representar ·qualquer papel na sociabilidade.

Quando muito podem desempenhar o papel de meras nuances daquele

caráter imaterial, com o qual apenas à realidade é permitido, em geral,

penetrar no trabalho social de arte chamado sociabilidade. Mas além

desses elementos objetivos que, por assim dizer, circundam a personali­

dade, aqueles traços mais genuína e profundamente pessoais da ,vida

de alguém, o caráter, a disposição e o destino, devem igualmente ser

eliminados como fatores de soéiabilidade. É· falta de tato - pois se opõe

à interação que monopoliza a sociabilidade ~- a manifestação de dispo­

sições meramente pessoais de depressão, exci~ação, desespero - em

resumo; o claro e o escuro da vida mais íntima. Essa exclusão dos

171

elementos mais pessoais se estende até mesmo a certos aspectos externos

do comportamento. Assim, por exemplo, num encontro intimamente pes-

/soal e afável com um ou vários homens, uma senhora não pode aparecer

com uma roupa sumária que usa sem qualquer embaraço numa festa mais

concorrida. A raz.~o é que na festa ela não se sente envolvida como

um indivíduo na mesma extensão em que se sente numa reunião mais

íntima, e pode, por isso, dar-se ao luxo de se abandonar à libe~dade

impessoal de uma máscara: embora sendo apenas ela mesma, não é,

entretanto, totalmente ela mesma, mas somente um elemento de um

grupo que se conserva formalmente.

b) "Os limiares da sociabilidade" /

Em sua totalidade, o homem é, por assim dizer, um complexo dinâ­

mico de idéias, forças e possibilidades. De acordo com as motivações

· ·e relações de vida e suas mudanças, faz de si mesmo um fenôme~~

diferenciado e claramente definido. Como ser político e econômico, como

membro da. família e c_omo representante de uma profissão, é, por assim

dizer, uma elaboração construída ad hoc. Em qualquer dessas qualifi­

cações, o material de sua vida é determinado por uma idéia particular

e moldado numa forma particular. Contudo, a relativa autonomia de

suas vidas se nutre numa fonte comum de sua. energia, que é difícil

de classificar. O homem sociável também é um fenômeno peculiar _

não existe em lugar nenhum, a não ser nas relações sociáveis. Por um

lado, o homem perde aqui todas as qualificações objetivas de sua perso­

nalidade; penetra na forma da sociabilidade equipado apenas com as

qualificações, atrações e interesses com que o muniu a sua :pura huma­

nidade. ·Por outro lado, todavia, a sociabilidade também o afasta das

esferas puramente 'interiores e inteiramente subjetivas de sua persona­

lidade. A discreção, que é a condição primeira da sociabilidade, no que

diz respeito ao comportamento de uma pessoa em relação a outras, é

igualmente muito exigida com respeito à relação consigo mesmo: em

ambos os casos, sua: violação provoca a degenerescência da forma de

arte sociológica da sociabilidade num naturalismo sociológico. Dessa

maneira, pode-se falar dos "limiares de sociabilidade" superiores e infe­

riores do indivíduo. Esses limiares são transpostos quando os indivíduos

interagem motivados por propósitos e conteúdos objetivos e quando seus

aspectos subjetivos e inteiramente pessoais se fazem sentir. Em ambos

os casos, a sociabilidade deixa de ser o princípio formativo e central de

suas sociações e se 'torna, no melhor dos casos, uma conexão formalista _

e superficialmente· mediadora.

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172

c) O "impulso de sociabilidade" e a natureza democrática da.sociabilidade

Todavia, talvez seja possível encontrar o motivo formal positivo da

sociabilidade, correspondente à sua determinação negativa de limites e

limiares. Como fundamento do direito, Kant postulou o axioma de que

cada indivíd~o deve gozar de liberdade na extensão compatível. com a

liberdade de todos os outros indivíduos. Se aplicamos·,_este prinCípio ao

impulso de sociabilidade (corria a fonte ou a substância da própria socia­

bilidade), poderíamos dizer que cada indivíduo deveria ter tanta satis­

fação deste impulso quanto seja compatível com a satisfação deste por

parte de todos os outros. Também podemos exprimir esse pensamento,

não em termos do próprio impulso de sociabilidade, mas em termos de

seus resultados. Formulamos então o princípio de sociabilidade como o

axioma de que cada indivíduo deveria oferecer o máximo de valores

sociais (de alegria, de realce, de vivacidàde, etç.), compatível com o

máximo de valores que o próprio indivíduo recebe.

Assim como aquela norma kantiana é completamente democrática,

também este princípio mostra a estrutura democrática. de toda sociabi­

lidade. Entretanto, esse caráter democrático só pode se realizar no inte­

rior de um dado estrato social: sociabilidade entre membros de clásses

sociais muito diferentes é amiúde inconsistente e dolorosa. Como vimos,

a igualdade resulta da eliminação tanto do inteiramente pessoal quanto

do inteiramente objetivo, isto é, resulta da eliminação do próprio material

da sociação, do qual esta é liberada quando toma a forma de sociabi­

lidade. Mesmo entre pares sociais, a democracia da sociabilidade é ape­

nas algo jogado. A sociabilidade, se se quiser, cria um mundo · socio~ó­

gico ideal, no qual o prazer de um indivíduo está intimamente ligado

ao prazer dos outros. Em princípio, ninguém pode encontrar satisfação

aqui se esta tem de ser realizada à custa de sentimentos diametralmente

opostos aos que o outro pode ter. Essa possibilidade é com certeza

excluída por muitas outras formas sociais além da sociabilidade. Em

todas elas, porém, é excluída por. meio . de alguns imperativos éticos

superpostos: Apenas na sociabilidade é excluída pelo princípio intrín­

seco da própria forma social.

d) O mundo artificial da sociabilidade

Mas esse mundo da sociabilidade - o único em que a democracia

e entre os igualment~ privilegiados é possível sem atritos - é um mundo

artificial. ~ composto por indivíduos que não têm nenhum outro desejo

além de criar com os outros uma interação completamente pura, que

não é desequilibrada pelo realce de nenhuma coisa material. Podemos

[

I i (

173

ter a noção errônea de que ingressamos na sociabilidade puramente

" h " I como omens , como rea mente somos, sem nenhum encargo ou con-

flito, sem nada de mais riem de menos que perturba a pureza de nossa

imagem na vida real. Podemos ter essa noção porque a vida moderna

· é sobrecarregada pelos conteúdos objetivos e pelas exigências; e esque­

cendo todas essas sobrecargas diárias numa reunião social, imaginamo-nos

de volta à nossa existência natural-pessoal. Mas sob esta impressão nos

esquecemç~ também que o homem sociável é constituído por esse aspecto

pessoal, nã~ em seu caráter específico e sua plenitude naturalista, mas

apenas COJl1.; uma certa reserva e uma certa estilização. Em períodos mais

antigos da história, o homem sociável não tinha de ser privado de tantos

con~f~dos objetivos e reais. Sua forma, portanto, surge mais completa

e d1stmtamente contrastada com sua vida pessoal: o comportamento

numa reunião social era mais rigoroso, mais cerimonioso e mais severa­

mente regulado por uma forma supra-individual do que é hoje. Esta

redução do caráter pessoal, que a interação homogênea com outros im­

~õe sobre o indivíduo, pode até mesmo fazer com que este regrida, se

e que podemos falar assim: um traço caracteristicamente sociável do

comportamento é a cortesia, através da qual o indivíduo forte e extraor­

dinário não só. se nivela aos mais fracos, mas inclusive age como se o mais

fraco fosse superior e mais valoroso.

· Se a própria sociação é interação, sua expressão mais . pura e mais

estilizada se dá entre iguais - assim como a simetria e o equilíbrio são

as formas mais plausíveis da estilização artística. Visto que é abstraída

da sociação através da arte ou do jogo, a sociabilidade demanda o mais

puro, o mais transparente, o mais eventualmente atraente tipo de inte­

ração, a intert;y;ão entre iguais. Devido ·à sua verdadeira natureza, deve

criar seres humanos que renunciem tanto a seus conteúdos objetivos e

assim modifiquem sua importância externa e interna, a ponto de se

tornarem socialmente iguais. Cada um deles deve obter valores de soda~

bilidade para si mesmo apenas se os outros com quem intentge também

os obtêm. A sociabilidade é o jogo no qual se "faz de conta" que são

todos iguais e, ao mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reve­

renciado em particular; e "fazer de conta" não' é mentira mais do que

o jogo ou a arte são mentiras devido ao seu desvio da realidade. O

jogo só se transfmma em mentira quando a ação e a conversa sociável

se tornam meros instrumentos das intenções e dos eventos da realidade

prática - assim como uma pintura se transforma· numa mentira quando

tenta, num efeito panorâmico, simular a realidade. O que está perfeita­

mente correto e em ordem se praticado no interior da vida autônoma

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174

da sociabilidadé, com seu jogo de formas autocontrolado,· transforma-se

numa mentira decepcionante quando dirigido por . finalidades não-sociá­

veis, ou quando pretende disfarçar tais finalidades. A confusão de .fato

da sociabilidade com os eventos da vida . real torna seguramente tal

-decepção, com freqüência, muito tentadora.

e) JôgQs sociais "

· Aconexão entre jogo.e sociabilidade explica por que esta deve abran-

ger todos os fenômenos que já por si mesmos podem ser considerados

formas sociológicas lúdicas. Isto se refere acima de tudo a jogos propria­

mente ditos que, na sociabilidade de todos os tempos, ·desempenhou

um papel notável. A expressão "jogo social" é significativa no seu sen­

tido mais profundo, para o qual já chamei a atenção. Todas as formas

de interação ou de sociação entre os homens - o desejo de sobrepujar,

de trocar, a formação de partidos, o desejo de arrancar. alguma coisa

do outro, os ·azares de encontros e separações acidentais, a mutação

entre inimizade . e cooperação, o domínio por meio de artifídos e a

revanche - na seriedade do real, tudo isso está imbuído de conteúdos

intencionais. No jogo, estes elementos levam sua própria vida;· são im­

pulsionados exclusivamente pela sua própria atração, pois mesmo quando

o jogo envolve uma aposta monetária, não é o dinheiro (afinal de con~

tas, este poderia ser adquirido de muitas outras maneiras que não a

aposta) a característica específica do jogo. Para a pessoa que realmente

gosta dele, sua atração está mais na dinâmica e nos azares das próprias

formas de atividade sociologicamente significativas. b sentido mais pro­

fundo, o duplo sentido de "jogo social" é que o joge> não só é praticado

em uma sociedade ( coino seu meio exterior), mas que, com ele, as

pessoas "jogam" realmente "sociedade".

f) Coqueteria

Na sociologia do sexo encontramos uma forma lúdica: a forma

lúdica do erotismo é a coqueteria. Encontramos na sociabilidade a sua

realização mais simples, mais jocosa e mais amplamente difundida 1•

Falando genericamente, a questão erótica entre os sexos é de_ ofereci­

mento e recusa. Naturalmente seus objetos são infinitamente variados

e graduados e não são de modo algum indiferentes, e muito menos ex­

clusivamente fisiológicos. A natureza da coqueteria feminina é jogar alter-

1 Tratei longamente da coqueteria em meu livro Philosophische Kultur (A cultura

filosófica). I

I J

175

nativamente com prom~ssas e com retraimentos. alusivos _para atrair

o, homem, mas para. d~ter-~e s~mpre antes de uma decisão, e para rejei­

~a-lo, .n:as nunca pnva-lo Inteiramente de esperança. A mulher coquete

mtensiflca enormemente sua atração se demonstra seu consentimento

como uma possibilidade quase imediata, mas que, no fim das contas

não era a sério. Seu comportamento oscila entre o "sim" e 0 "não"'

sem fixar-se em nenhum deles. Exibe jocosamente a forma pura e sim~ pies das decisões eróticas e vem encarnar aquelas oposições polares num

comportamento perfeitamente consistente: seu conteúdo bem-entendido

decisivo, que a entregaria a um dos dois pólos, nem mesmo se admite:

Essa liberação de qualquer gravidade dos conteúdos imutáveis e

dAas ~eal~dad:s permanentes dá à coqueteria seu caráter de flutuação, dis­

tancia, Ideahdade, . que levou alguém a falar, com certa razão não só

de seus "artifícios", mas de sua "arte". Mas para a coqueteri~ crescer

no s.olo da sociabilidade, como por experiência sabemos que cresce, é

preciso encontrar um comportamento específico por parte do homem.

Enquanto este r~jei.ta s_uas atrações ou, inversamente, é mera vítima que,

sem vontade propna, e arrastada pelas vacilações entre um meio "sim"

e um meio "não", a coqueteria ainda não assumiu para ele a forma com­

patível com a sociabilidade, pois falta a livre interação e equivalência de

e~e~entos, que. são os traços fundamentais da sociabilidade .. Estes traços

so sao consegmdos quando o homem n,ão pede mais que esse jogo livre­

mente flutuante, que reflete apenas de maneira vaga o eroticamente defi­

nido como um símbolo remoto; quando não for mais. atraído pela cobiça

ou ~e~o medo do elemento erótico, que é tudo quanto pode ver nos

preludws ou nas alusões coquetes. A coqueteria que reveii:t seu charme

precisamente no auge da civilização sociável, deixou muito atrás a reali­

da;d~ do d:sejo erótico, do consentimento ou da recusa; é . personificada

··na mteraçao de meras silhuetas, por assim dizer, de seus significados

senos. Q~ando estes entram ou estão constantemente presentes em

~ub.e~tendidos, o processo todo se torna um. assunto privado entre dois

mdlVld.uo~:. tem lugar no plano da realidade. Mas sob o signo sociológico

da sociabihdade, da qual o centro da personalidade concreta e da vida

total está barrado, a coqueteria é um jogo galante, talvez irÔnico no

qu~l o erotismo liberou de seus materiais, . conteúdos e traços pess~ais, o Simples contorno de. suas interações. Assim como a sociabilidade joga

com as formas da sociedade, a coqueteria joga com as do erotismo · e

essa afinidade de suas naturezas predestina a coqueteria como um elem~n­to da sociabilidade.

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·--------;------------------~·~·~-··--

176

g) Conversação Além da sociabilidade, as formas sociológicas de interação são im­

portantes em termos de seus conteúdos. A sociabilidade abstrai essas formas _;_ que giram em torno de si mesmas - e lhes fornece córpos de sombra. A extensão em que se consegue esse objetivo torna-se evi­dente afÍnal,~na- conversação, O VeÍCUle>mais~genérico-para -tude~a(:'p.iilG que ~s homens têm em comum. O ponto decisivo pode ser apresentádo aqui pelo destaque de uma experiência muito trivial: na seriedade da vida, as pessoas conversam por causa de- algum conteúdo que querem comunicar ou sobre o qual querem se entender, enquanto que numa reunião social, conversam por conversar. No primeiro caso, a conversa atinge seus verdadeiros fins, mas não · no sentido naturalista que faria dela mera tagarelice, mas como arte da conversação, que possui suas próprias leis artísticas. Numa conversação puramente sociável, o assunto é simplesmente o meio indispensável para a viva troca de palavras reve­lar seus encantos. Todas as fonp.as pelas quais essa troca se realiza -o conflito e apelo a normas reconhecidas por ambas as partes; a pacifi­cação por acordo e pela descoberta de convicções comuns; a aceitação grata do novo e ocultamento de tudo aquilo para o que não se pode esperar nenhum entendimento - todas estas formas estão usualment~ a serviço de inúmeros conteúdos e propósitos da vida humanà. Mas aqm sua importância deriva delas mesmas, do fascinante jogo de relações que criam entre os participantes, juntando e separando, ganhando e per­dendo, dando e tomando. O duplo sentido de sich unterhálten torna-se compreensível. Para que a conversação satisfaça como mera forma, não se pode permitir que nenhum conteúdo ganhe importância por si mesmo. Tão logo a discussão se torna objetiva e faz da determinação . de uma verdade o seu propósito (pode muito bem ser o seu conteúdo), a discussão deixa de ser· sociável e assim trai sua própria natureza -tanto quanto se degenerasse num conflito sério. Pode existir a forma da determinação de uma verdade .ou de um conflito, mas a seriedade de seus conteúdos pode tanto tornar-se o foco da conversação sociável quanto uma pintura em perspectiva pode conter uma parte da realidade

efetiva e tridimensional de seu objeto. Isto não implica que o conteúdo de uma conversação seja indife-

rente. Ao contrário, deve ser interessante, atraente e mesmo importante. Mas não pode se transformar no propósito da conversação, que nunca deve estar .atrás de um resultado objetivo; este possui uma vida inde­pendente, fora, por assim dizer, da conversação. Portanto, de duas conversações exteriormente semelhantes, só é propriamente sociável

177

aquela na qual o assunto, apesar de todo o seu interesse e valor encontra se:r direito, se': lugar e seu propósito apenas no jogo funcion~l da pró­?na c~nv~rsaçao, . que estabelece suas próprias normas e que tem sua 1mportanc1a pecuh~r. Portanto, a habilidade em mudar fácil e rapida­mente de assunto e parte da natureza da conversação social. Uma vez

· __ -~g~~ o assunto é · apex:as um meio,_.ll1Qª-trª__jod_a -ª-ºªsu_ali<:lª.c:l.~....s:~.R(!r_!lluta_-_ : bthd~de que cara~t~nz~ todos. os meios, quando comparados a fins esfa~

~e~ectdos. Como Ja f01 menciOnado, a sociabilidade apresenta talvez o umco caso em que a conversa é o legítimo propósito de si mesma. ·Conversar pressupõe duas partes: é um caminho de ida e volta. De fato, entre todos os fenômenos sociológicos, com a possível exceção de "olhar u~ para o ouqo", a, conversa é a forma mais, pura e elevada de recipro­ct~~de. _A con~ersa e desse modo a realização de uma relação que, por assim dt~er, nao pretende ser nada além de uma relação - isto é, na qual aqullo que usualmente é a mera forma da interação torna-se seu conteúdo auto-suficiente. Por isso, mesmo contar histórias, piadas e ane­dotas, embora seja muitas vezes apenas um passatempo, quando não um atestado de pobreza intelectual, pode revelar toda a sutileza de tato que reflete os elementos de sociabilidade. O tato mantém a conversação fora d~ intimidade individual e de todos os elementos puramente pessoais,

· que nao podem se adaptar aos requisitos sociáveis. Entretanto não se cultiva a ob_ietividade com vistas a nenhum conteúdo em particdiar, mas apenas no mteresse da própria sociabilidade. Ouvir e contar histórias etc., não é um finí · em si mesmo, é apenas um veículo da animação' da harmonia e da consciência comum da "reunião", pois não sÓ fornec~ um conteúdo do qual todos podem participar igualmente, como também é uma dádiva particular do indivíduo ao grupo - mas uma dádiva atrás da qual seu doador fica invisível: as histórias mais engenhosas e bem contadas são aquelas em que a personalidade do narrador desapa-rece completamente. A anedota perfeita consegue um equilíbrio feliz de ética sociável, por assim dizer, com sua absorção completa tanto dos elementos subjetivo-individuais quanto dos elementos objetivos-de-con­teúdos a serviço da pura forma sociável.

h) A sociabilidade como a fonna lúdica de problemas éticos e de sua solução

Desse modo, a sociabilidade também surge como a forma lúdica das forças éticas na sociedade concreta. Há dois problemas em parti­cular que devem ser resolvidos por estas forças. Um deles é o fato de o indivíduo ter de funcionar como parte de uma coletividade para a

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qual vive, mas da qual, por outro lado, retira s~us. ~róprios valores . e contribuições. O outro é o fato de a vida do md1v1duo ser uma v1a indireta para os propósitós do todo; mas por outro lado, a vida do todo tem a mesma função para os propósitos do indivíduo. A sociabilidade transfere o caráter sério - freqüentemente trágico - destes problemas para o jogo simbólico de seu reino de sombras, que não conhece atritos, já que as sombras, sendo o que são, não podem colidir. Outra tarefa , ética da sociação é fazer da união e da separação. dos indivíduos asso­ciados o reflexo exato das relações entre estes indivíduos, embora estas relações sejam espontaneamente determinadas pela vida em sua totali­dade. Na sociabilidade, esta liberdade de fazer relações e esta adequação de sua expressão estão desobrigadas de quaisquer determinantes con­cretos de conteúdo. O modo pelo qual os grupos se fazem e se desfazem e o modo pelo qual a conversação, surgida por mero impulso e oportu­nidade, começa, se aprofunda, se afrouxa e termina, numa "reunião social" fornece uma miniatura do ideal societário que poderia ser cha­mado ~ liberdade de se prender. Se todas as convergências e divergências são estritamente proporcionais a realidades interiores, numa "recepção social", elas existem na ausência destas realidades. Nada resta além de um fenômeno, cujo procedimento obedece às leis de sua própria forma e cujo encanto está contido em si mesmo. Esteticamente revela a mesma proporção que a seriedade daquelas realidade~ requerem como

proporções éticas.

i) Exemplos históricos

Nossa concepção geral de sociabilidade é bem exemp~ificada por certas manifestações históricas. Nos primórdios da Idade Médía alemã, existiam irmandadés de cavaleiros. Consistiam elas de famílias nobres que mantinham relações amistosas entre si. Os propósitos originalmente religiosos e práticos desses grupos parecem ter-se perdido bem cedo .. No século XIV, só restavam os interesses e as formas de comportamento cavaleirescos como características de conteúdo, mas logo depois mesmo estes desapareceram, e nada ficou além de associações puramente aristo­cráticas. Este é, pois, evidentemente, um caso em que a sociabilidade se desenvolveu como o resíduo de uma sociedade, que tinha sido deter­minada por seu conteúdo. Uma vez que todo o seu conteúdo se perdeu, restou somente um resíduo que só podia consistir na forma e nas formas

de comportamento recíproco. O fato da autonomia de tais formas ser obrigada a mostrar a natu-

reza de jogo, ou, mais profundamente, de arte, torna-se até mais sur-

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179

preendente na sociedade cortesã do Ancien Régime. Neste, o desapa­recimento de qualquer conteúdo concreto da vida ~ que a realeza por assim dizer, absorveu da aristocracia francesa - resultou no surgi~ menta de certas formas livremente suspensas. A consciência da nobreza cristalizou-se nelas. Suas forças, suas características e suas relações eram puramente sociáveis. Não eram de modo algum símbolos ou funções de qualqu~r importância ou força real de p~ssoas ou instituições. A etiqu~ta da soc1edade cortesã tornm;t-se um valor em si mesmo; não se referia mais a nenhum conteúdo; 'desenvolveu suas próprias leis internas com­paráveis às leis da arte. As leis da arte só são válidas em ter~os de

_ arte: não têm absolutamente o propósito de imitar. a realidade dos mode­los, das coisas fora da própria arte.

j) O caráter "superficial" ·da sociabilidade

A sociabilidade talvez tenha conseguido sua expressão suprema no Ancien Régime. Ao mesmo tempo, entretanto, esta expressão aproxi­mou-se \çle sua própria caricatura. Certamente é da natureza da sociabi­lidade liberar as interações concretas de qualquer realidade e erigir seu reino aéreo de acordo com as leis da forma destas relações, que passam a mover-se por si mesmas e a não reconhecer qualquer propósito estra­nho a elas. No entanto, a fonte profunda que alimenta esse reino e sua representação não repousa nestas formas, mas exclusivamente na vitali­dade. de indivíduo_s concretos, com todos os seus sentimentos, encantos, con:1cções e impulsos. A sociabilidade é um símbolo da vida quando a v1da surge no fluxo de um jogo alegre e fácil; ela é, contudo, um símbolo da vida. A sociabilidade não muda a imagem da vida além do ponto exigido por sua própria distância em relação a esta. Da mesma maneira, para não parecer vazia e falsa, mesmo a arte mais livre e mais fantástica, não importa quão longe esteja de qualquer cópia da realidade, alimenta-se de uma relação profunda e leal com esta reali­dade. A arte, igualmente, está acima da vida, mas está também acima da vida. Se a sociabilidade corta inteiramente. os laços com a realidade da vida, da qual elabora sua própria estrutura (num estilo todavia dife­rente), deixa de ser um jogo e se transforma num namoro leviano com formas vazias, num esquematismo inanimado que inclusive se orgulha de sua falta de vida. ·

Nossa discussão mostra que as pessoas lamentam com e sem razão a superficialidade do intercurso sociável. Para explicar isto, devemos lembrar e considerar uma das características mais impressionantes da vida intelectual: é o fato de que, se certos elementos são tomados de

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180

uma totalidade de existência e reunidos num todo que Vive segundo suas

próprias leis · e não segundo as leis da ·totalidade, .. isto mostra - se

há um isolamento completo da vida da totalidade ~ uma natureza vazia

e desenraizada, apesar de toda a sua perfeição interna. E freqüentemente,

entretanto, este mesmo todo - através de uina mudança imponderável

-, exatamente por sua distância da realidade imediata, pode revelar a

natureza mais ;profunda desta realidade, de maneira mais completa, con­

sistente e realista que qualquer tentativa de apreendê-la. mais diretamente.

Aplicando esta reflexão ao fenômeno da sociabilidade, .compreendemos

por que podemos ter duas reações diferentes diante dela, pois a vida

independente e auto-regulada, que os aspectos superficiais da. interação

social atingem na sociabilidade, vai nos parecer algo sem vida, padroni-.

zado, irrelevante, ou um jogo simbólico, cujos encantos e.stéticos encàr­

nam a dinâmica mais sutil e mais refinada de uma existência social

rica e ·plena. Em relação à arte e em relação a qualquer simbolismo da vida

eclesiástica e religiosa e, numa granqe extensão, mesmo em relação às

formulações da ciência, dependemos de Ufi?.a certa fé, ou sentimento,

que nos assegure que as normas internas de' fragmentos oU as combina­

ções de elementos superficiais tenham de fato uma conexão com a profun~

deza e a totalidade da realidade. Embora isso não possa, freqüentemente,

ser formulado, é esta conexão, todavia, que faz dos fragmentos encar­

nações e representações da vida imediatamente fundamental e real. Isso

explica o efeito de redenção e de alívio que alguns reinos, construídos

de meras formàs de vida, têm sobre nós: embora dentro deles não esteM

jamos carregados de vida; não obstante nós a possuímos. Assim, a visão

do mar nos liberta interiormente, não apesar de, mas pelo fato de o

fluxo e o refluxo da maré .e das. ondas estilizar a vida, na expressão mais

simples de sua dinâmica. Tal expressão é completamente independente

de qualquer realidade vivenciável e de qualquer gravidade do destino

individual, cuja importância suprema parece ainda fluir nesta imagem do

mar. De maneira semelhante, a arte parece revelar o mistério da vida,

isto é, o fato de que não podemos nos livrar da vida simplesmente des­

viando dela o olhar, mas somente através da configuràção e vivência

do sentido e das forças de sua realidade mais profunda no jogo irreal

e aparentemente autônomo de suas formas.

Para muitas pessoas sérias, que se expõem constantemente às pres­

sões da vida, a sociabilidade não poderia oferecer nenhum lado de libe~

ração, alívio ou serenidade se não fosse realmente nada mais além de

fuga da vida ou de suspensão meramente momentânea de sua seriedade.

181

Talvez a sociabilidade não seja, muitas vezes, nada além de um conven­

cionalismo negativo, de uma troca de fórmulas essencialmente sem vida.

Talvez tenha sido isso, freqüentemente; no Ancien Régime, quando o .·

medo estarrecido de uma realidade ameaçadora forçava os homens a

simplesmente desviarem o olhar desta realídade e suspenderem todas as

relações com ela. Mas é exatamente a pessoa mais séria que colhe dasocia.:.

bilidade um sentimento de liberação e alívio. Pode conseguir isto porque

desfruta aqui, como numa representação artística, de uma concentração

e de uma troca de efeitos que apresentam sublimadas todas as tarefas

e toda a seriedade da vida, e as dilui ao mesmo tempo, pois as forças

carregadas de conteúdo da realidade soa.m apenas vagamente, uma vez

que sua gravidade evaporou-se em mero atrativo.

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12. O ESTRANGEmO *

Se viajar é a liberação de qualquer ponto definido no espaço, e . é assim a oposição conceitual à fixação nesse ponto, a forma sociologiCa.

do "estrangeiro" apresenta, por assim dizer, a unificação dessas duas características. Todavia, este fenômeno também revela que as relações espaciais são,. de uw lado~ apenas a condição, e do ·outro, o ~ímbolo~ de relações humanas. É desse modo que se discute o. estrangeuo a~m e não no sentido em que muitas vezes no passado se tocou neste assunto; considerando o viajante que chega hoje e parte amanhã, porém mais no sentido de uma pessoa que chega hoje e amanhã fica. Este é, por assim dizer, o viajante potencial: embora não tenha partido, ainda., não supe­rou completamente a liberdade de ir e vir. Fixou~se em um grup,o espaftal particular, ou em um grupo cujos limites são semelhantes áos limites espaciais. Mas sua posição no grupo é determinada, essencialmente, pelo fato de. não ter pertencido a ele desde o começo, pelo fato ·de ter intro­duzido qualidades que nãÓ se originaram 'nem poderiam se originar no próprio grupo.

A unificação de proximidade e distância envolvida em toda relação humana organiza-se, no fenômeno do estrangeiro, de um mo_gQ_8ue pode

*Reproduzido de SrMMEL, G. The stranger; In: The sociology of Georg Simmel. Ed. cit., p. 402-8. Trad. por Dinah de Abreu Azevedo. Tradução revista pelo Organizador e cotejada ·com o original alemão: Exkurs über den Fremden. · In: Soziologie. Ed. cit., p. 509-12.

183

ser formulado da maneira mais sucinta dizendo-se que, nesta relação, a distância significa que ele, que está próximo, está distante; e a condição de estrangeiro significa que ele, que também está distante, na verdade está próximo, pois ser um estrangeiro é naturalmente uma relação muito positiva: é uma forma específica de interação. Os habitantes de Sirius não são realmente estrangeiros para nós, ao menos em qualquer sentido sociologicamente relevante: para nós, não existem em absoluto; estão além da distância e da proximidade. Assim como o indigente e as variadas espécies de "inimigos internos", o estrangeiro é um elemento do próprio grupo. São elementos que se, de um lado, ·são imanentes e têm uma posição de membros, por outro lado estão fora dele e o confrontam. As afirmações que se seguem - que de forma . alguma pretendem esgotar o assúnto - indicam como, nas relações do estrangeiro e nas relações com ele, os elementos que repelem e que aumentam a distância produzem um modelo consistente de coordenação e interação.

-Através cia história da economia, o estrangeiro aparece em toda parte como comerciante, ou todo comerciante como estrangeiro. Se uma economia é essencialmente auto-suficiente, ou seus produtos são trocados dentro de· um grupo espacialmente reduzido, então não há necessidade de intermediários: um comerciante só é requerido por produtos proce­

;dentes de fora do grupo. Na medida em que os membros não deixam seu círculo com a finalidade de comprar essas mercadorias - e neste caso, estes membros são os mercadores "estrangeiros" naquele território exterior - o comerciante tem de ser um estrangeiro, já que ninguém mais tem chance de viver disso.

Esta posição do estrangeiro aparece de forma mais nítida se este se estabelece no local de sua atividade, em vez de sair de novo: em inumeráveis casos, mesmo isto só é possível se ele pode viver de comér­cio intermediário. Uma vez que uma economia seja algo fechada, uma vez que a terra seja dividida e que se estabeleça a mão-de-obra que satis­faça a demanda, o comerciante também pode achar aí seu meio de subsistência. Pois o comércio - que sozinho possibilita combinações ilimitadas e no qual a inteligência sempre encontra meios de expansão e novos territórios - é um empreendimento muito difícil para o pro­dutor original, com sua pouca mobilidade e sua dependência de um círculo de consumidores que só pode aumentar lentamente. O comércio sempre absorve mais gente que a produção primária pode absorver; esta é, portanto, a esfera indicada para o estrangeiro, que se intromete- como uma peça extra, por assim dizer, num grupo em que as posições econô­micas, na verdade, estão ocupadas - o exemplo clássico é a história

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dos judeus da Europa. Por natureza, o estrangeiro não é "proprietário de terra" - não apenas no sentido físico de terra, mas também no sentido figurado de uma substância vital que é fixa, se não· em um ponto do espaço, ao menos num ponto ideal do ambiente social. Embora em relações mais íntimas . possa desenvolver todo tipo de atração e impor­. tância, assim que é tido por estrangeiro aos olhos do outro, ele não é um "proprietário de terra". A restrição ao comércio intermediário e. muitas vezes (se considerada como sublimação deste) à pura finança, lhe dá o caráter específico de mobilidade. Se ·a mobilidade tem lugar em um grupo fechado, personifica aquela síntese de proximidade e dis­tância, que constitui a posição formal do estrangeiro, pois a pessoa funda­mentalmente móvel entra ocasionalmente em contato com todos os ele­mentos do grupo, mas não está organicamente ·ligada com qualquer deles por laços estàbelecidos de parentesco, localidade e ocupação.

A objetividade do estrangeiro é outra expressão desta constelação. O estrangeiro não está submetido a componentes nem a tendências pe:­culiares do grupo e, em conseqüência disso, aproxima-se com a atitude específica de "objetividade". Mas objetividade não envolve simplesmente passividade e afastamento; é uma estrutura particular composta de dis­tância e proximidade, indiferença e envolvimento. Refiro-me à discuss.ão (no capítulo "Superordenação e Subordinação") sobre as posições do­minantes da pessoa que é um estrangeiro no grupo; seu exempl? mais· típico encontra-se na prática daquelas cidades italianas de requisitar seus juízes de fora, porque nenhum natural da cidade estava livre do enredamento dos interesses familiares e partidários.

Com a objetividade do estrangeiro liga-se também o fenômeno aci­ma mencionado, embora seja válido principalmente (ainda que não ex­clusivamente) para o estrangeiro que se locomove: é o fato deste ,receber muitas vezes a mais surpreendente franqueza - confidências que têm às vezes o caráter de confissão e que. deveriam ser cuidadosamente guar­dadas de uma pessoa muito chegada. Objetividade rião significa de ma­neira alguma não-participação (que geralmente exclui tanto a interação subjetiva quanto a objetiva), mas um tipo específico e positivo de parti­cipação - assim como a objetividade de uma observação teórica njo se refere à mente como uma tabula rasa passiva onde as coisas inscrevem suas qualidades, mas, ao contrário, refere-se à sua atividade total que opera segundo suas próprias leis, e à eliminação, através.- disso, de ênfa­ses e deslocamentos acidentais, por meio dos quais as diferenças indivi­duais e subjetivas produziriam retratos diferentes do mesmo objeto.

185

A objetividqde também pode ser definida como liberdade: o indi­víduo objetivo não está amarrado a nenhum compromisso que poderia prejudicar . sua percepção, entendimento e avaliação do que é dado. Todavia, a liberdade que permite ao estrangeiro se entender e ter expe­riências até mesmo com suas relações mais íntimas a partir de uma

·perspectiva distanciada, contém muitas possibilidades perigosas. Nas in­surreições de todos os tipos, a facção ataca~a tem reivindicado, desde o começo dos tempos, que a provocação veio de fora, por meio de emis-

. sários e instigadores. Na medida em que seja verdade, istó é um exagero do papel específico do estrangeiro: ele é mais livre, prática e teorica­mente; examina as condições com menos preconceito; seus critérios para isso são mais gerais e mais objetivamente ideais; não está amarrado à sua ação pelo hábito, pela piedade ou por precedente 1•

FinalD?-ente, . a proporção de proximidade e distância que dá ao ·estrangeiro o caráter de objetividade, também encontra expressão prá­tica na natureza mais abstrata da relação com ele, isto. é, com o estran­geiro têm-se em comum apenas certas qualidades mais gerais, enquanto que a relação com pessoas mais organicamente ligadas baseia-se em diferenças específicas, originadas nos traços simplesmente genéricos que se têm em comum. De fato, todas as relações algo .pessoais seguem esse esquema em vários pad'rões. Não são determinadas apenas pela circuns­tância de existirem certos traços comuns entre os indivíduos, os quais, a par de diferenças individuais, ou influenciam a relação, ou permanecem fora dela; pois os próprios traços comuns são basicamente determinados, em seu efeito sobre a relação, por uma dupla questão: ou existem apenas entre os participantes desta relação particular - e são assim totalmente genéricos com respeito a esta relação, mas específicos e singulares com respeito a tudo fora dela; ou os participantes percebem que estes traços são comuns a eles porque são comuns a um grupo, a um tipo ou à humanidade em geral. No caso da segunda alternativa, a efetividade dos traços comuns se dilui na proporção do tamanho do grupo com­posto por membros semelhantes neste sentido. Embora o que se tem

1 Mas, quando a facção atacada faz declàrações falsas, obedece a ten­dência dos que estão' em posição superior de desculpar os inferiores que, até a rebelião, . tiveram com eles uma relação bastante estreita. Entretanto, ao criar a ficção de que os rebeldes não são realmente culpados, mas apenas ·foram instigados, e que a rebelião não começou com eles realmente, isentam-se de res­p~ms'abilidade, visto que negam completamente ·qualquer fundamento real da insurreição.

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186

em comum funci-one como sua base unificadora, não torna estas pys­soas em particular dependentes. uma da outra, porque isso poderia ligá­-las de modo igualmente fácil com todos os tipos de pessoas, além das que são membros do grupo. Evidentemente, este também é um modo pelo qual uma relação compreende, ao mesmo tempo, tantà a proximi­dade quanto a distância: na medida em que são genéricos, os traços comuns acrescentam, ao calor da relação baseada neles, um el(;lmento de frieza, um sentimento de contingência desta relação precisamente -as forças de ligação perd,eram seu ·caráter centrípeto específico.

Em relação ao estrangeiro, assim me parece, esta constelação tem uma preponderância fundamental e extraordinária sobre os elementos individuais que. são exclusivos daquela relação em particular. O estran­geiro está próximo na medida em que sentimos traços comuns de nàtu­reza social, nacional, ocupacional, ou genericamente humana, entre ele e nós. Está distante na medida em que estes traços comuns se estendem para além dele ou para além de nós, e nos ligam apenas porque ligam

muitíssimas pessoas. Nesse sentido, um traço da condição de estrangeiro ptmetra facil-

mente ainda nas relações mais íntimas. No estágio de primeira paixão, as relações eróticas rejeitam energicamente qualquer idéia de generali­zação: os amantes acham que nunca houve um amor como o deles; que nada pode se comparar, nem à pessoa amada, nem aos sentimentos por essa pessoa. Uma desavença - se é causa ou conseqüência, é difícil dizer - vem usualmente no momento em que este sentimento de singu:.. laridade desaparece da relação. Um certo ceticismo em relação a seu valor, em :si mesmo e para eles, recai sobre a própria idéia de que sua relação, apesar de tudo, apenas realiza um destino genericamente huma­no; que vivenciam uma experiência que já aconteceu antes milhares de vezes; que, se não tivessem encontrado por acaso este companheiro em particular, teriam dado. a mesma importância a outra pessoa.

Provavelmente algo deste sentimento não está ausente de qualquer relação, ai~da que íntima, porque o que é comum a dois nunca é comum apenas a eles, mas está contido numa idéia geral, que inclui muito mais além disso, muitas possibilidades do que se tem em comum. Não im­porta quão pouco estas possibilidades se tornem reais e com que fre­qüência, aqui e ali,_nos esquecemos delas; apesar disso, das se esgueiram entre nós como sombras, como uma neblina que escapa de qualquer palavra conhecida, mas que deve concretizar-se numa forma solidamente encarnada, antes de poder ser chamada de ciúme. Em alguns casos,

l l

187

talvez os mais genéricos e no mínimo os mais intransponÍveis, este traço da condição de estrangeiro não se deve a questões incompreens~veis e dife­rentes. É causado antes pelo fato de que a similaridade, a harmonia e a proximidade são acompanhadas pelo sentimento de que não são r~al­mente a propriedadç~ exclusiva desta relação em partictJlar: são algo mais geral, algo qué potencialmente prevalece sobre os parcdros e sobre um número indeterminado de outras pessoas e não dá, portanto, à rela­ção, que apenas se realizou, nenhuma necessidade interior e exclusiva.

Por outro lado, há uma forma de "ser estrangeiro" que rejeita até mesmo aquilo que se tem em comum, com base em algo mais geral que abrange ambas as partes. A relação dos gregos com os bárbar~s talvez seja típica aqui, como todos os casos· em que precisamente . os atributos . genéricos, percebidos como pura e especificamente humanos, são aqueles não permitidos ao outro. Mas aqui, "estrangeiro" não tem qualquer sentido positivo; a relação com ele é wrta não-relação; não é ele que tem relevância aqui, como membro do próprio grupo.

Antes, enquanto membro do grupo, ele está ao mesmo tempo pró­ximo e distante, como é característico de relações fundadas apenas na-

- quilo :que é ·genericamente comum aos homens. Mas entre os dois ele­mentos produz-se uma tensão_ particular entre a proximidade e a distância, quando a consciência· de só ser comum o absolutamente geral faz com que se acentue especialmente o não-comum: No caso de uma pessoa estranha ao país, à cidade, à raça, etc., este elemento não-comum,· toda­via: mais uma vez, não tem nada de individual, é meramente a condição de origem, que é ou poderia ser comum a muitos estrangeiros. Por essa razão, os estrangeiros não são realmente concebidos . como indivíduos, mas como estranhos de um tipo particular: o elemento de distância não é menos geral em relação a eles que o elemento de proximidade.

Esta forma é a base de um caso especial tal como, por exemplo, o imposto cobrado· aos judeus da Idade Média em Frankfurt e outros lugares. Enquanto o Beede (imposto) pago pelos cristãos mudava com as variações de sua fortuna, este era fixado, para cada judeu, de uma vez por todas. Esta fixação repousavà no fato de que o judeu tinha sua posição social como judeu, e não como o indivíduo possuidor de certos conteúdos objetivos. Todos os outros cidadãos eram donos de uma quan­tidade particular de propriedade, e o imposto seguia suas flutuações. Mas como pagador de impostos, o judeu era, em primeiro lugar, um judeu, e .assim sua situação fiscal tinha um elemento invariável. Esta mesma posição aparece mais nitidamente, é cla.ro, quando estas caracte.,

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188

rizações individuais (embora limitadas por uma não-variação rígida) são omitidas e todos os estrangeiros pagam em conjunto o mesnio imposto per capita.

A despeito de não estar organicamente anexado ao grupd, o estran­geiro ainda é um membro orgânico do mesmo. Sua vida regular inclui as condiçõ~s comuns deste elemento. Apenas não sabemos como designar a unidade peculiar de sua posição, além de dizyr que se compõe de certas medidas de proximidade e distância. Embora certas quantiçl.ades 'delas caracterizem todas . as relações, uma proporção espedal e uma tensão recíproca produzem a relação formal particular com o "estrangeiro".

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íNDICE ANALITICO E ONOMÁSTICO

Abbagnano, N., 40 Abel, Th., 21, 22, 25, 40, 42 ação social, 20 Adler, Max, 41 alienação, 19 antagonismo, 132-4 Antoni, C., 23 aristocracias, 93-6 Aron, R., 16, 28, 42 autoridade e prestígio, 109-11 Ayala, Fr., 43 Azevedo, Fernando, 39

Baldus, H. 39 Banfi, A., 40 Barnes, Harry E., 42 Barreto, R., 39 Bauer, W., 16 Becker, Howard, 27, 28, 42 Berger, P., 28 Birnbaum, P., 28, 40 · Blau, P. M., 25, 41 Bloch, Ernst, 13, 14 Bodstein, Flora, 7 Bottomore, T., 23, 40, 41 Bouglé, Cel. G. Simmel, 41

Cardoso, F. H., 40 Carli, F., 28 Carvalho, C. Delgado de, 39 Chazel, F., 28, 40 ciência(s) social(is), 63, 64

objeto das, 64 coesão social, 46-58, 97-9

e tamanho do grupo, 97, 98 ver tb., conflito, subordinação

Cohn, G., 41 Collingwood, R. G., 43

Colônia, /escola de, 27 competição, 13 5-49

forma indireta de conflito, 23 formas de, 138-41 intelectual, 139 na família, 144 nos grupos religiosos, 144-6 passiva, 145

compreensão, 87-9 concepção histórica, 89 concepção mecanicista, 88, 89 concepção vi ta lista, 87, 88

condições lógicas a priori das relações sociàis, 22, 23, 90-164

conflito, 23, 122-64 determinação quantitativa dos gru­

pos, 22, 90-106 dominação-subordinação, 22, 107--21

conflito, 23, 122-34, 150-64 condição lógica a priori das rela-

ções sociais, 23 e estrutura do grupo, 150-64 fator de unidade social, 126-27 forma de sociação, 122, 123 indireto, ver competição intergrupal, 153, 154 ver tb., competição; grupo, formas

de conservação; unidade social conhecimento, 15, 16, 25, 82

histórico. 15. 16 teoria do, 16, 25, 82

continuidade social, 52 contrato, social, 113, 114

de trabalho, 117 controle social, formas de, 55 conversação, 176, 177 coqueteria, 174, 175 Coser, Lewis A., 11, 13, 43, 44

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190

costume, 104-6 e direito, 101:6 e moralidade, 101-6

cultura, 8, 9, 18, 19 concepção de, 18, 19 e instituições da época, 8, 9

Cuvillier, A., 22

Dahrendorf, R., 23 darwinismo, 14, 15

· Demerath, N. J., 23 democracia, 96 despotismo, 151, 152 determinação quantitativa dos grupos,

22, 90-106 . Dilthey, W., 20, 27 direito, 112-4 dominação, 22, 107-49

fotmas de, 107-49 legitimação da, 115-21 -subordinação, 22, 107-49

Driesch, Hans, 15 Durkheim, Émile, 4, 25, 31, 41

economia, 18, 19 monetária, 18 política, 19

empresários, associação de, 160 · emulação, 146 espaço social, 182-8 esquimós, organização social dos, 152 Estado, 113, 114 estrangeiro, I 82,8 _ética, 10, 15

Familistêre de Guise, 92 fato histórico, 15, 16, 84, 85 fenômenos sociais, 84, 85 Fernandes, Florestan, 23, 39, 41 Ferraroti, F., 23 filosofia, 17, 26, 30

concepção de, 17 de vida, 17, 30

forma(s), 14, 20-2, 46-63, 67, 165-81 . e conteúdo, dicotomia, 14, 20-2, 59-

·63, 67' 165-9 lúdica de sociação, ver sociabilidade pura, 22 social(is), 46-58, 165-81

manutenção da~s), 46-58 ver tb., sociaçãé!

formalismo, 25, 28-31, 58 de Simmel, crítica ao, 25, 28-31

Freyer, H., 21, 42 . · Freyre, G., 39 Friedliinder, Julius, 7

Gassen, K., 11, ~o. 44 geometria, 65-7

social, 21 Gerth, H., 19, 42, 40. ·: Giddens, A., 11, 40 Ginsberg, M., 21 Giuss·o, L., 43 grupo(s) social(is), 26, 50-8, 90-106, 126-

·8, 150-64 . coesão do, 97-9

· determinação quantitativa dos, 22, 32, 90-106

estrutura do(s), 98-100, 143, 144, 150-64 .

formas de manutenção dos, 55-8, 126-8 ver tb., conflito; competição

grandes, 96, 97 indivíduos proeminentes no, 100,

101 papel do estrangeiro no, 182-8 papel do indivíduo no, 100-6 pequeno(s), 91-6

aristocracias, 93-6 seitas religiosas, 93 socialismo, 91-3

guerra, 132-3 campanha em favor da, 10

Gurvitch, G., -22, 28;· 43 Gusmão, P. Dourado, 40

Heberle,. R.,. 23, 43 hierarquia, militar, 120

religiosa, 12 I história, 8-10, 15, 16, 84, 85

fato histórico, 15, 16, 84, 8 5 quadro econômico, social, político

e cultural da época, 8-10 Hobbes, Thomas, 113, 114 Honigsheim, Paul, 8, 9, 11, 14, 43 Horowitz, I. L., 23 Hoselitz, Bert F., 25

Ianni, 0., 40 idealismo nominalista, 28 individualismo, 147

ético, 10 indivíduo(s), 20, 25, 26, 28, 48, 49,

81-3, 90-106 e grupo social, 90-106 e liberdade, 25, 26

· e sociedade, 28, 48, 49; 80c3 lnke}es, A., 40 intei:açãó social, 20, 21, 59-62, 65, 84,

107-49, 165-81

I entre iguais, 173

ver tb., sociabilidade formas de, 107-49, 165-88

autoridade e prestígio, 109-11 conflito, 122-34 contrato de trabalho, 117 direito, 112-4 dominação, 107-9 estrangeiro, 182-8 hierarquia militar, 120 hierarquia religiosa, 121 legitimação da dominação, 115-2 liderança, 111, 112 serviço doméstico, 119 sociabilidade, 165-81 subordinação, 115-21 superordenação, 107-14 ver tb., sociação

intuição, 68, 69 intuicionismo-irracionalista, 30 isolamento, 1S'2-8

Janne, H., 23 jogos sociais, 17 4

Kant, E., 14, 20, 24, 172 Keller, A. G., 29 Kinel, Gertrud, 8

Landmann, M., 11, 30, 44 legitimação, 167 Levine, D. N., 8, 44 liberalismo, 140, 141 liderança, 111, 112 Liga dos Aqueus, 162, 163 Lins, Mário, 39 Luckmann, T., 28 Ludwig, Emil, 11 Lukács, George, 26, 30, 43 Lyra, Roberto, 39

Mamelet, A., 41 Mandelbaum, M., 16; 42 Mannheim, Karl, 18, 43 Martindale, Don, I 1, 25, 44 marxismo; -18 massas, 96, 97 materialismo histórico, 16-8 Maus, Heinz, 13, 14, 28 metafísica, 25 metodologia, 19, 20, 30, 61-3, 69-76

científica, 61-3 sociológica, 69,. 70, 75, 76

Miranda, F. C. Pontes de, 39 .. monismo ético, ·15 Moore, J. W., 25 Mora, J. Ferrater, l4, 42. Moraes Filho, Evaristo de, 39 moral, ciência da,. ver ética moralidade, 101-6 mudança social, 54-7

Naegele, K. D., 23, 25 Nisbet, Robert, 13, 23, 25, 41 nominalismo, 26

Oberlander, K., 43

191

objetividade do estrangeiro, 184, 185 ontologia, 15 oposição, 55-8, 127, 128, 155-7

ver tb., competição; grupos, formas de manutenção dos; unidade so­cial

Oppenheimer, F., 22 Ortega Y Gasset, J., 12, 13

Paci, Enzo, 44 parlamentarismo inglês, 155, 156 Parsons, T., 23 partidos políticos, 161 pesquisa científica, 70-5 Peterson, R. A., 23 pobreza, 24 pragmatismo, 17 processo, histórico, 15

social, 21 psicologia, 15-7

e sociologia, 25, 26

radicalismo, 96, 97 Ramos, Arthur, 39 Recaséns Siches, L. Wiese, 28, 43 relações, eróticas, 130

espaciais, 182-8 sociais, homogeneidade e heteroge­

neidade, 128, 131 condições lógicas a priori das, 22,

23 ver tb., interação social; socia­

ção; sociedade subjetivas .e pessoais, 131

relativismo filosófico, 15 Rex, J., 23 Rickert, H., 26 Rosenthal, E., 43 Rossi, Pietro, 44

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:*t· ..

3 ; ~ •• y

192

Salomon, A., 22, 24, 43 ·_ .. ) Salomon,. G., 22

Santayanna, George, 11 Schmalenbach, Herman, 13 seitas religiosas, 93 serviço doméstico, 119 Simmel, Edward, 7 Simmel, Georg, 7-44

bibliografia, 32-44 biografia, 7-32 campanha belicista, participação

na, 10 conclusão crítica, 28-32 filosofia de vida, 26 individualismo ético, 10 influência de, 26-8 obra e idéias gerais, 12-9 sociologia de, 19-21 vida e época, 7-11

Skidmore, W., 40 sociabilidade, 168-81

e classes sociais, 172 conversação, 176, 177 coqueteria, 174, 175 '' exemplos históricos de, 178-81 forma lúdica de problemas éticos

177, 178 . , forma lúdica de sociação, 168-71 jogos sociais, 17 4 superficialidade da, 179-81

sociação, 21-4, 29, 31, 47, 60, 122-49, 166-81

formas de, 22-4, 47, 60 competição, 135-49 conflito, 122-34 sociabilidade, 168-81

ver tb., forma(s) social(is); intera-ção social; sociedade

sociaÍização, 31 socialismo, 91-3, 147-9 sociedade, 20-5, 28, 47-9, 64, 81-3, 90-. -164, 168

conceito de, 25, 28, 47-9, 64, 81-.3 168 '

condições lógicas a priori das rela­ções sociais, 22-4, 90-164 conflito, 23, 122-64 determinação quantitativa dos

grupos, 22, 90-106 dominação-subordinação, 22,

107-21 Sociedade Alemã de Sociologia, 11 sociologia, 15, 19-21, 24, 25, 29, 30, 46,

47, 59-86, 165 campo da, 79-86

filosófica, 24 formal, 21, 24, 29, 30, 47, 165 geral, 24 objeto da, 21, 46, 47, 77-86 o problema da, 59, 78 pura, ver sociologia formal tipos de, 24, 25

solidariedade orgânica 141-3 Sorokin, P., 21, 25, 'Í2 Spykman, N. J., 11, 41 Steinhoff, Maria, 42 Strasser, H., 11; 23, 25 subordinação, 22, 107~14, 1 i5-i1

condição lógica a priori das rela­ções sociais, 22

ideal, 1 i5 · legitimação da, 116, 117 real, 115

Sumner, W. G., 29 superordenação, 107-14

Tenbruck, F. H., ·22 Tonnies, Ferdinand 11 trabalhadores, orga~ização dos, 151-3 trabalho, contrato de, 117-21

divisão social do, 91 relações de, 117-21

Treves, R., 42 Troeltsch, Ernst, 13, 14

unidade, social, 20, 50-8, 86, 123-6, 159 ver tb., competição; conflito; gru­

pos, forrnas de conservação dos territorial, 50, 51

verdade, 17 Vereinigung, ver unidade social Vergellschaftung (socialificação), ver

sociação vida, 26 Vierkandt, A., 26, 28, 42 vitalismo, antimecanicista, 30

de Hans Driesch, 15

Weber, Max, 10, 11, 22, 27, 28, 31 Weingartner, R. H., 26, 44 Wetteifer, ver emulação W!ese, Leopold von, 22, 27, 41, 42 Willems, E., 39 Wolff, Kurt H., 4, 11, 14, 22, 26, 43,

44, 90-106 Wright Mills, C., 19,, 22, 40 -

Ziegenfuss, W., 22

'\

.. . 11~ 1

24. MALTHUS Tamás Szmrecsányi

25. MANNHEIM Marialice M, Foracchi

26. CAIO PRADO Jr. Francisco lglésias

27. MARIATEGUI Manoel L. Bellotto e Anna Maria M. Corrêa

28. DEUTSCHER Juarez Brandão Lopes

29. STALIN José Paulo Netto

30. MAO TSE-TUNG Eder Sader

31. MARX (Economia) Paul Singer

32. MELANIE KLEIN Fábio A. Herrmann e Amazonas A. Lima

33. CELSO FURTADO Francisco de Oliveira

34. SIMMEL Evaristo de Moraes Filho