se eu não sou a imagem do brasileiro no suriname, então quem é?

15
O Segundo Primeiro Cinema do Suriname Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então, quem é? Sushi em Folha de Bananeira e Frango no Curry Contagem Regressiva: Diário de bordo de um jornalista no Suriname

Upload: luiza-andrade

Post on 30-Mar-2016

213 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Reportagem especial sobre a comunidade brasileira no Suriname.

TRANSCRIPT

Page 1: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

O Segundo Primeiro Cinema do

Suriname

Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então, quem é?

Sushi em Folha de Bananeira e

Frango no Curry

Contagem Regressiva: Diário de bordo de um jornalista no Suriname

Page 2: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

Na porta da Zsa Zsa Zsu, a boate que já foi a mais badalada de Paramaribo e agora luta para sobreviver durante a semana – ainda enche aos sábados – duas garotas vestidas à base de salto alto e glitter, muito glitter, conversam com o segurança. Ele, enorme, vestido de preto, guarda a entrada enquanto observa os arredores. As moças, muito decotadas, falam Português. Não é uma surpresa. No Suriname, muita gente fala Português.As moças entram sem pagar, pela porta da esquerda. Os turistas, em maioria europeus, usam sandálias. Mesmo à noite, o calor é intenso e o clima abafado, nem sinal de brisa. “Jij kan niet binnen komen!”, o segurança alerta a turista européia. De sandália rasteirinha, é proibida a entrada. Já o salto de 10 centímetros das brasileiras é bem-vindo.

Aguardava na porta com a câmera na mão, pronta para tirar fotos, como combinado com o senhor Baldew, dono da boate, na noite anterior. Baldew havia me instruído a procurar Clyde, o chefe da segurança. Ele teria meu nome em uma lista, e a entrada seria gratuita. “Clyde? Prazer. Meu nome deve estar na lista”, abordo o segurança, delicadamente. “O senhor Baldew me disse para esperar uma jornalista brasileira, mas você não é brasileira”, ele responde. “Sim, eu sou... sou a jornalista brasileira”. Olho para cima, no canto esquerdo dos olhos, tentando entender a situação. O homem de quase dois metros me analisa dos pés à cabeça, deixando um sentimento de desconforto na garganta, e completa: “Você parece qualquer coisa, menos brasileira”, ele abre a porta da esquerda, desconfiado. A gratuidade me custou uma noite de sono. Se eu, morena quase índia, de olhos escuros e estatura baixa, não sou o retrato do brasileiro no Suriname, então quem é?

O Ministério de Relações Exteriores estima que no Suriname haja quase 30 mil Brasileiros. É um cálculo difícil de se fazer, uma vez que a fronteira entre os dois países é coberta de mata fechada, o que dificulta o levantamento de idas e vindas. Destes 30 mil, apenas cerca de 18 mil são registrados. O resto mora ilegalmente no

Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

“Você parece qualquer coisa,

menos brasileira”

Por Luiza Andrade

Page 3: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

Page 4: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

país. A presença dos conterrâneos é evidente. Nas ruas, nas lojas, nas casas. Em todo lugar se fala Português. No centro, as placas do comércio evidenciam a presença da nação do futebol até mesmo nos negócios: roupas brasileiras, música brasileira, discos, filmes e calçados.A maior concentração de brasileiros no país, entretanto, está nas corrutelas, os campos de garimpo. Por lá, além dos garimpeiros e suas famílias, existe um comércio de subsistência em função da distância entre o campo e as cidades. Outra grande parte dos imigrantes do país vizinho fica alojada nas proximidades da rua brasileira de Paramaribo, que os habitantes locais chamam de “Little Belém”. No meio de um país que fala Holandês e dança ao rítmo de salsa, os restaurantes da “Little Belém” vendem feijoada e picanha. Na padaria, pão de queijo e biscoito de polvilho. E nos supermercados, xampu Palmolive e latinhas de Guaraná.

Andando pela rua, que não passa de quatro quarteirões, imaginava como seria me sentir em casa fora de casa. Os brasileiros que vivem alí são bem servidos de produtos brasileiros. Além disso, têm a vantagem de se relacionar com pessoas da mesma origem, algo que faz falta para os emigrantes brasileiros por todo o mundo. A única sensação que tive, entretanto, foi a de um turista intrometido, bisbilhotando a vida da comunidade brasileira local. Das calçadas, brasileiros sentados em cadeiras às portas das casas se entreolhavam como quem desentende como a estrangeira foi parar ali, no

meio do retiro brasileiro. No Suriname não sou brasileira. Isso já havia ficado claro na declaração do segurança da boate. Fugindo dos olhos curiosos nas calçadas, entrei em um supermercado. 100% brasileiro, dizia a placa na porta do comércio. A organização do estabelecimento parece muito com pequenas vendas do interior do Brasil, chão de cimento, prateleiras improvisadas, preços na etiqueta branca, aquela que se divide em parte, com um toque de desorganização chinesa – produtos misturados, sem critério de separação por tipos ou grupos. Dentro, atravessava os corredores analisando os produtos à venda: maioria enlatados, muitos deles com rótulos chineses. A princípio, achei desconcertante um supermercado 100% brasileiro vender produtos chineses. Segundos depois me dei conta de que mesmo no Brasil os supermercados dispõem de produtos diversos importados da China.No terceiro corredor – havia cerca de cinco – me deparo com um chinês seguindo meus passos. Ele pergunta: “Procura algo?”. Pega de surpresa, apelei para o produto mais comum nos estabelecimentos brasileiros no exterior: “Pão de queijo congelado. Tem?”. O chinês não entendeu a retórica e me encaminhou para duas brasileiras. Sentadas no freezer, como quem trabalha sem clientes, as moças tinham vinte e poucos e quarenta anos. Nilde, mais velha, mora no país há 14 anos. “Aqui (no Suriname), tenho uma casa, um filho e um emprego. Já é mais do que eu teria em Belém”, afirma a senhora que exibe, sem pudor, as linhas de cansaço no rosto

No centro da cidade, boa parte do comércio divide os letreiros entre Português e Holandês.

Page 5: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

bronzeado de sol. Raquel, a mais jovem, também tem um filho. Recém-chegada ao Suriname, há cerca de um mês, trouxe o bebê nos braços. “Com uma semana arrumei um emprego”, conta sorridente, satisfeita com o resultado da escolha de se mudar para outro país e completa: “Lá (em Belém) estava há meses sem trabalhar”.

No Suriname, os brasileiros têm empregos. Esse parece ser um grande ponto levado em consideração quando eles pensam em se mudar do Brasil. Não são empregos maravilhosos. No supermercado, por exemplo, os brasileiros trabalham dez horas por dia, seis dias por semana, para ganhar US$300. Sem hora de almoço – eles têm apenas trinta minutos – e sem perspectiva de crescimento profissional, o emprego no supermercado ainda é um bom negócio. “Ganhando em dólares americanos, fica mais fácil viver aqui”, afirma Neia. O dólar Surinamês, moeda local, vale US$0,36. Um salário de trezentos dólares americanos vale, portanto, cerca de SRD800. Por lá, é equivalente a pouco mais que um salário mínimo. Apesar de artigos alimentícios e de limpeza custarem praticamente o mesmo que no Brasil, automóveis e artigos tecnológicos custam quase quatro vezes menos que no território brasileiro. Artigos de luxo no Brasil são objetos de primeira necessidade no Suriname. Todos têm carros e celulares cheios de funções especiais.“Você devia levar uma dessa panela de arroz! É SRD30,00, baratinho!”, afirma Shell, apontando para a panela elétrica de cozinhar arroz, muito

utilizada pelos chineses em todo o mundo. A praticidade da panela é evidente: coloca-se o arroz no recipiente envolvido por uma lâmina de aquecimento, com água até a marca indicada, e o resto é por conta da eletricidade. Na cozinha de Shell, e de mais quatro dos sete membros de sua família, a panela de arroz senta na bancada da pia como um trofeu. É o único artigo exposto, o resto é coberto pelas portas dos armários. Tudo muito organizado, como é de praxe nas famílias brasileiras. A limpeza é impecável e as mesas sempre cobertas por forros. “Ela não faz só arroz”, continua com um ar triunfal: “ela faz outras coisas também! Carne, batata. Tudo quanto é legume, pode colocar que ela cozinha. É elétrica. Muito prática”.

A panela senta na bancada como a prova da acessibilidade dos Brasileiros. Para a família de Shell ainda não é possível ter uma casa, mas a panela está na cozinha, bem à vista, como um atestado da possibilidade de subida na escala social. “TV aqui também é bem barato... e celular. Todo mundo têm Black Berry. Se você for comprar, compre aqui. É bem mais barato que no Brasil!”. O modelo de celular, que no Brasil custa de 970 a 1700 reais, no Suriname pode ser comprado por SRD499, o equivalente a 313 reais. Depois das oportunidades de emprego, o acesso à tecnologia e aos carros, a paixão dos brasileiros, são os aspectos mais mencionados como fatores de peso na imigração. Além disso, não só se pode ter acesso a artigos tecnológicos, no Suriname, como eles raramente

Separada por lençóis, a cozinha impecávelmente limpa dos brasileiros divide espaço com a sala.

Page 6: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

são roubados. “Aqui é tranquilo”, afirma Shell, cujo passatempo favorito é colocar a cadeira na calçada, do lado de fora da casa, sem medo de ser assaltada. “No Brasil isso não acontece mais. Se você sair de casa está pedindo para ser assaltado. Aqui não tem assalto.”, e continua,“As janelas podem ficar abertas durante a noite”.

Segundo o Embaixador brasileiro no Suriname, José Luiz Machado, esse é o país com o mais baixo índice de insegurança da America do Sul: “O que tem aqui (no Suriname) é ladrão de galinha”, explica. De fato, enquanto almoçava na casa de Shell e sua família, num belo domingo, ensolarado como a maioria dos dias no país, aos fundos do quintal algo se movia incessantemente. Ficamos observando, Shell, sua irmã caçula e eu, o vulto que passava pelos quatro quintais das casas, posicionados de frente um para o outro. Um homem negro, muito magro, sai da moita e começa a gritar palavras em Sranan Tongo, a língua local. Antes mesmo que eu percebesse, já

estava tirando fotos da situação. O homem, na verdade, gritava com a minha câmera. Segundo as brasileiras, tinha medo que as fotos fossem mostradas à polícia. Nas mãos, carregava apenas alguns restos de alimentos e frutas deixadas no quintal da casa ao lado.

A família de Shell tem oito pessoas. A mãe e uma irmã ainda moram em Belém, todos os outros tentam a vida no Suriname. A primeira a chegar no país foi Neia, a irmã mais velha, de 40 anos. No país há 19 anos, ela conta que conheceu um surinamês quando trabalhava em uma loja em Belém. Eles se apaixonaram e se casaram. Depois, um por um, sabendo do mar de oportunidades boiando nas ruas alagadas pelas chuvas de verão de Paramaribo, os irmãos acabaram seguindo a primogênita. A mãe da família de sete, nascida no Amazonas, não pretende morar no país vizinho. “Estou muito velha. Se algo acontece comigo, não tem médico para me tratar”, afirma. Já com alguns problemas de saúde, a senhora prefere ficar em Belém, onde tem acesso ao sistema único de saúde, do que confiar em um medico surinamês. Traumatizada por um acidente sofrido por Shell, quando, de moto, teve parte do rosto e do crânio destruídos por uma caçamba na rua, chegando a passar dias no hospital sem receber qualquer tratamento,

Acima, produtos brasileiros são anunciados nas paredes da capital. Ao lado, em uma tarde de calor intenso, a família de Shell almoça do lado de fora da casa, onde é mais fresco. Com os baixos salários, a família não mantém um aparelho de ar condicionado.

“Esse é o país com o mais baixo índice de insegurança da America do Sul”

Page 7: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?
Page 8: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

a mãe desconfia do sistema de saúde no país. No episódio, precisou voar de Belém, levando antibióticos prescritos por um médico brasileiro na mala de mão, porque no Suriname ninguém prescreveu remédios para a filha. “Aqui a saúde é horrível, e a Embaixada não ajuda em nada”, afirma a senhora, com os braços cruzados numa expressão de descontentamento. A insatisfação com a Embaixada Brasileira no país contagia toda a família. Os trabalhadores do supermercado e os visitantes das feiras locais também parecem não confiar nos representantes brasileiros no país. O desamparo é a maior preocupação. “Aqui paga-se tudo”, ela continua o depoimento. “Até para morrer você tem que pagar uma taxa pro governo. A Embaixada trata as pessoas muito mal. Ficamos aqui, pagando caro nos táxis pra tentar resolver os problemas, gastando nosso tempo de trabalho, e o povo da Embaixada lá no ar condicionado... Só carrão.”, afirma Shell, indignada com a demora da chegada de sua autorização de permanência no país. “Eles devem ter perdido meus documentos”, continua, gesticulando forte com o copo de Coca-cola na mão esquerda e um garfo de dentes tortos na direita. Segundo o Embaixador, os brasileiros têm uma impressão errada da Embaixada. “Não estamos aqui para condená-los, mas para ajudá-los”, afirma. “O problema é que as Embaixadas não são pró-ativas. Elas respondem a demandas”. Estando em um país estrangeiro, a Embaixada não tem qualquer poder político para intervir

ou realizar programas sem o consentimento do governo local. Tudo deve ser pensado e programado com cuidado. “Mas quando o brasileiro vem nos procurar, podemos ajudá-lo”. O Embaixador conta que desde o episódio do “massacre de Albina” a imagem do consulado local ficou um pouco abalada. “Tentamos de tudo para assessorar os brasileiros o mais rápido possível. Entretanto, nossa polícia não pode interferir na autoridade local”.

Existem algumas versões para o acontecimento da noite de Natal de 2009, na cidade Albina, há 120km de Paramaribo. A imprensa brasileira, nos dias seguintes ao episódio, havia registrado sete mortos e quatorze feridos. A briga teria sido iniciada por um quilombola, habitante local da região de Albina. O homem teria iniciado uma discussão com um brasileiro em um bar local. O brasileiro portava uma faca e, de temperamento abalado, assassinou o surinamês ali mesmo, ao lado das mesas do bar. Dias depois, na véspera de Natal, a comunidade brasileira festejava num espaço fechado. Foi quando centenas de maroons entraram no recinto, portanto armas, bastões e facões, ferindo e aterrorizando os brasileiros locais. Amedrontados, os brasileiros adentraram a mata local, fugindo pelo rio que faz fronteira com a Guyana Francesa. Muitos deles nunca mais apareceram.A versão dos brasileiros habitantes de Paramaribo

Na rua Anamoestraat, as placas dos comércios anunciam a presensença brasileira.

Page 9: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

difere um pouco da dos jornais brasileiros. Shell, que já morou em Albina durante um ano trabalhando no supermercado local, explica que não estava lá durante o ataque, mas tem amigos que presenciaram o massacre. A paraense conta que vários brasileiros ficaram feridos, mas foram apenas dois mortos, um deles uma amiga muito querida. Como os conterrâneos no Brasil, Shell ficou chocada com as notícias do massacre. “Quem fez a confusão foi o padre!”, afirma já bastante tensa com a conversa. O padre a quem ela se refere é um representante da comunidade de evangelização católica no Suriname, Padre Vergílio. Em janeiro de 2009, ele foi utilizado como uma fonte de informações à imprensa brasileira. Dava entrevistas com frequência e estava sempre no noticiário brasileiro contando os episódios desumanos de crimes e atrocidades. Segundo Shell, porém, muito do que foi dito pelo padre foi inventado. “Talvez para aparecer, né? Tem gente que gosta de aparecer”, ressalta. A moça conta, ainda, que quando os habitantes da Little Belém souberam, através de parentes no Brasil, da imagem que o padre desenhava deles na imprensa, “Selvagens, loucos, sem educação ou senso ético”, um grupo de cerca de 50 pessoas se juntou, se armou e, com facas e cabos de vassoura, marcharam até a porta

da Radio Katólila, onde o padre trabalhava, exigindo que ele mostrasse sua cara para que pudessem enfrentá-lo face a face. “Eles queriam matá-lo”, afirma Shell, ainda com o copo de refrigerante em uma mão e fazendo um gesto

de certeza com a outra, como quem concorda que a sensatez da retaliação pela honra não representa selvageria ou falta de senso ético. E completa “Foi a primeira vez que os brasileiros se juntaram para fazer alguma coisa aqui em Little Belém. Aqui ninguém convive. Não se pode confiar nos brasileiros, eles estão sempre tentando te passar para trás”.

Para os brasileiros de Little Belém, a comunidade brasileira local não é de fato uma comunidade. “São pessoas que, por acaso, moram no mesmo lugar”, explica Neia. Apesar do espaço comum e da convivência do dia a dia, os brasileiros daqui não ficam amigos entre si, não confiam uns nos outros e não

Cansada de intrigas, Shell não convive com a comunidade brasileira local. Para ela, só se pode confiar na própria família.

“Foi a primeira vez que os brasileiros se juntaram para fazer alguma coisa em Little

Belém...”

Page 10: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

se relacionam fora do local de trabalho. “A competição é intensa”, afirma o Embaixador, e completa: “Talvez por causa da origem, talvez por causa dos anos vividos sem oportunidade, os brasileiros competem entre si no Suriname”. Shell confirma a sentença, explicando que fora do supermercado onde trabalha, não convive com ninguém a não ser sua família.

O sentimento de distância é o mesmo para outro casal, Nalva e Cleo. No país há 14 anos, eles contam que vieram do Pará com o sonho de trabalhar durante um ano no garimpo e guardar dinheiro suficiente para comprar um carro no Brasil. O sonho não deu certo e as expectativas foram destruídas por um surto de malária e a falta de emprego: “Naquela época não tinha tanto brasileiro quanto tem hoje. Eram poucos os que se arriscavam”, explica Cleo. O homem teve a ideia de morar no Suriname através do irmão mais velho que, já na época, era bem sucedido no garimpo de ouro. “Ele era muito respeitado no garimpo, mas perdeu tudo no jogo e na bebida”, explica o irmão mais novo, com os olhos mirando o chão expressando descontento com o irmão, hoje considerado decadente na comunidade local. Durante os primeiros meses, o casal precisou pegar qualquer tipo de trabalho que aparecesse. Não chegaram nem perto de realizar o sonho que os moveu até lá. Depois de um ano, se viram numa situação complicada: não tinham nem dinheiro para comer, quanto menos para voltar a Belém. “A comunidade ainda era pequena e as oportunidades fora do garimpo eram poucas”. Nalva conta que quando Cleo teve malária no garimpo, eles não tinham dinheiro para comprar remédios. Precisaram revender dezessete garrafas de coca cola, acumulando um lucro irrisório, para comprar o almoço do dia. Com o tempo e a experiência a situação foi melhorando para o casal. Cleo já havia trabalhado em uma casa de câmbio no Brasil. Depois de algum tempo sem emprego, conheceu um chinês que precisava de um brasileiro para manter uma de suas filiais. Trabalha na casa há 12 anos. Nalva, com o dinheiro que conseguiram acumular, e alguns empréstimos, montou uma loja de roupas brasileiras “De qualidade!”, afirma, “Não são vagabundas (as roupas) como as dos chineses. Eles copiam tudo, e conseguem vender muito parecido e muito mais barato que a nossa mercadoria”. A moça, mãe de um garota de 18 anos, com frequência viaja ao Brasil para comprar novas mercadorias. “A cada mudança de estação”, ela acrescenta. Vai a São Paulo e Belo Horizonte, “onde as roupas

são de boa qualidade”. Os planos de manter a loja, porém, estão próximos de expirar. Segundo Nalva, a concorrência dos chineses tornou o negócio pouco lucrativo. Eles consideram novas possibilidades de comércio. O casal também não se relaciona com outros brasileiros. Segundo eles, a inveja é intensa. “Quando você não tem dinheiro, eles até ficam amigos, têm dó. Parece que gostam de te ver em situação pior que a deles. Já quando passa a ter algum dinheiro – e não digo ficar rico, não, só ter o suficiente para não passar tanta dificuldade – todo mundo olha para você torto, como se estivesse traficando drogas, ou roubando dinheiro de alguém.” E Nalva completa: “Ganhamos o nosso pão honestamente. Só porque não mais passamos fome, os brasileiros passaram a não gostar mais da gente. Acho que é inveja”. “Antes, eu pagava cerveja para todo mundo. Vivia fazendo churrascos. Agora que não posso mais beber (por causa do alto índice de colesterol), ninguém é meu amigo”, e completa Cleo “...mas é melhor assim. A gente vive nossa vida e eles a deles. É mais seguro, até para os filhos”. Apesar de já terem sido assaltados quatro vezes (duas em casa e duas na casa de câmbio), a família acha mais seguro morar no Suriname do que no Brasil. “Trabalhamos com ouro, o que chama muita atenção. Mas, ainda assim, aqui temos uma caminhonete Hilux, que no Brasil custa 300 mil reais. Aqui, andamos nela tranquilamente, sem medo de ser feliz. Lá, andar num carro desses é pedir para ser sequestrado em troca de resgate”, explica Cleo. Curiosamente, nas quatro vezes em que foram assaltados, afirma o casal, os assaltantes eram brasileiros.

A cartilha de imigração para o Suriname, elaborada pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro alerta para o fato que 69% dos eleitores surinameses têm uma imagem negativa dos brasileiros. Mas, pelo que parece, os próprios brasileiros têm uma imagem negativa de seus conterrâneos. “Aqui, Luiza, só se pode confiar em Deus”, alerta a moça. Nalva é evangélica e Cleo afirma não frequentar a igreja local. O casal pensa em voltar ao país de origem, mas sem esperanças de uma vida melhor: “O Brasil é bom, mas aqui a

69% dos eleitores surinameses têm uma imagem negativa dos

brasileiros.

Page 11: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

gente tem mais segurança”, diz o marido. Segundo o casal, o garimpo no Suriname não é perigoso como afirmam os jornais. “Perigoso é na Guyana, lá sim morrem cinco todos os dias”. Os brasileiros têm uma imagem ruim dos conterrâneos que moram no Suriname, mas se irritam quando um veículo da mídia vai visitá-los, e só mostra partes polêmicas da vida dos brasileiros no país. Da última vez em que uma rede de televisão brasileira foi ao Suriname após o episódio de Albina, o choque dos parentes brasileiros foi enorme. Na matéria: drogas, tráfico, prostituição, maus tratos e mortes. “E só!”, reclama Cleo. “...como se fôssemos um bando de selvagens... A gente sabe que existem problemas aqui, e que muita gente é pilantra, mas tem muita gente honesta também. Não gosto da imagem que o Brasil tem da gente que mora aqui. Parece que somos um bando de animais”.

Os brasileiros não confiam nos brasileiros, e os surinameses os interpretam como pilantras ou prostitutas. O clima de trabalho é diariamente tenso, e as brasileiras de Little Belém se sentem revoltadas com a situação. Shell afirma ter recebido diversas propostas indecentes em seu turno no supermercado. “Quando os garimpeiros vêm do interior comprar suprimentos, eles oferecem vagas nos cabarés. Nos cabarés (as pequenas boates de prostituição e entretenimentos no

interior dos garimpos) eles pagam muito bem”. Segundo conta a moça, apoiada pelas irmãs em seu depoimento, os garimpeiros lhes perguntam quanto elas ganham por mês trabalhando no supermercado. “300 dólares”, afirma Shell. E eles explicam: “No cabaré você ganha isso em uma noite”. A proposta é financeiramente tentadora, mas as irmãs preferem continuar trabalhando no comércio local, em posições “dignas”, como explica Shell.

Em Paramaribo há alguns cabarés brasileiros, três deles mais famosos. Quando tomava um táxi para ir de Little Belém até outro ponto afastado do centro, fui abordada por um taxista muito falante. Em Holandês, me perguntava se eu era européia. Quando disse que era brasileira, um arrependimento, o homem que se interpretava cheio de charme falou que procurava uma namorada brasileira, “...adoro mulheres brasileiras”, acrescentou. Presa no espaço de um metro quadrado no banco da frente do táxi, que tinha os forros destruídos pelo uso, com espumas saindo do estofado, sem ter para onde andar, respondi com cuidado que eu não estava interessada, menti ser casada. Não satisfeito, o taxista java-chinês continuou: “Você ia vender bem se trabalhasse no Pérola. Brasileiras vendem bem. Ainda mais se parecendo com homem branco (como eles chamam os europeus em Paramaribo)”. Pérola, para quem não pôde imaginar o olhar maluco

Bares dançantes para os estrangeiros são conhecidos como cabarés brasileiros pelos moradores locais.

Page 12: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

na cara do Java-chinês, é a maior casa de prostituição brasileira da capital. Segundo o Embaixador brasileiro no país, o trabalhador que vai tentar a vida no Suriname não tem mais o mesmo perfil que antigamente. Antes, os homens iam ao garimpo e acabavam gastando todo o ouro em bebidas e mulheres, e as mulheres eram intimadas a participar dos cabarés (prostituição). Havia histórias de passaportes retidos e mulheres que apanhavam quando tentavam fugir. Hoje, em geral, isso não acontece mais. Muitos dos homens são empreendedores. Eles trabalham no garimpo e investem o ouro em maquinário, em lojas de suprimentos, qualquer coisa que lhes possa garantir um futuro estável uma vez que não mais puderem participar do garimpo.

“A Embaixada Brasileira no Suriname monta, de tempos em tempos, um consulado itinerante. O grupo de pessoas (em geral mulheres) vai até as corrutelas no interior do Suriname, conversar com as mulheres dos cabarés para instruí-las com relação a seus direitos e deveres”, explica José Luiz Machado.O Embaixador conta que, antes de o consulado itinerante entrar nos cabarés, eles pedem a permissão dos donos (em sua maioria também mulheres), para conversar com as brasileiras de forma privada: “Só a Cônsul e a moça”. A Cônsul as instrui com relação a uma série de serviços desde apoio médico, até telefones gratuitos que podem ser contatados 24h, de qualquer telefone, celular ou fixo, caso as moças queiram dar queixa ou precisem de ajuda-.“O serviço já

Page 13: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

existe há muitos anos, mas, até hoje, o consulado não recebeu sequer uma ligação com pedido de ajuda ou queixa de maus tratos.” completa o Embaixador.As mulheres que trabalham nos cabarés ganham muito dinheiro. Elas são pagas em ouro pelos garimpeiros locais. Muitas sustentam as famílias no Brasil, além de poderem pagar uma vida confortável, cheia de roupas caras e luxos tecnológicos no Suriname. O Embaixador não foi o único a mencionar esse perfil das mulheres dos cabarés. Os brasileiros com os quais conversei durante minha estadia no Suriname, todos têm a mesma impressão da situação. No aeroporto mesmo, na ida a Paramaribo, as mulheres vaidosamente vestidas com suas bolsas Gucci e calças Dolce & Gabana

eram muitas. Todas falando Português em seus celulares Black Berry, a febre tecnológica do país. Difícil dizer qual das moças vaidosas trabalhava, ou não, no cabaré. Mas era fácil dizer que a vida lhes parecia financeiramente confortável.Dadas as opções de emprego brasileiros no país, não é de espantar que muitas optem pelos cabarés. As moças são valorizadas e ganham uma fortuna paga em ouro, enquanto no comércio local de Little Belém, em sua maioria mantido por empreendedores chineses, as horas de trabalho são mais longas e os salários mais baixos que o dos orientais. Segundo contam as brasileiras, para cada dois conterrâneos empregados nos supermercados de Little Belém a um salário de 300 dólares por mês, há um chinês, ganhando o dobro e trabalhando duas horas a menos.

Os brasileiros que vão parar no Suriname, segundo o Embaixador, em maioria, saem de regiões com os menores índices de desenvolvimento humano do Brasil. Por isso, são sujeitos a uma série de contratempos e situações injustas para manter uma pequena quantidade de bens ou uma vida quase agradável. No Suriname eles são acusados de poluir, de sujar, de crimes e de abusos, mas há uma conivência do governo local. Eles não são tirados de lá.“Por quê?”, questiona o Embaixador, com compostura, “Porque o país precisa dos brasileiros. Há um lucro saído do garimpo que é repassado para a comunidade local”, afirma, explicando o conflito da imigração. Como os brasileiros são ilegais, há, por exemplo, propinas e chantagens às quais eles são submetidos que geram lucros para o país. “Talvez não diretamente para o governo, claro, mas para a comunidade local, que vai ter dinheiro para investir na economia do país.”, completa.“Eles saem no jornal como criminosos, mas não são impedidos de fazer negócios no país.”, afirma o Embaixador, José Luiz. “É assim que vivem os brasileiros por aqui”.

Grande parte do comércio local gira em torno do garimpo. Até mesmo na capital, muito é pago em ouro.As casas de troca empregam dezenas de brasileiros. O português é imprescindível para se comunicar com os garimpeiros.

“...o país precisa dos brasileiros. Há um lucro saído do garimpo que

é repassado para a comunidade local.”

Page 14: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

O Conflito: Segundo informações oficiais da Embaixada Brasileira no Suriname, o episódio do Natal de 2009, em Albina, deixou 14 gravemente feridos e nenhum óbito. A partir de uma investigação com a comunidade local, foi elaborada uma lista de sete pessoas desaparecidas que, uma a uma, foram encontradas no interior do Brasil ou na capital do Suriname. Muitas delas haviam fugido para a Guyana Francesa e retornado meses após o conflito.

Dos criminosos, 28 habitantes do Suriname,

em sua maioria maroons, foram confirmados pela justiça do país como sendo participantes do crime. Foram presos e processados. Alguns respondem em liberdade. No avião da Força Aérea Brasileira foram levados de volta ao Brasil 80 vítimas, sendo 30 no primeiro voo e 50 no segundo. O último voo levou, também, famílias das vítimas que estavam instaladas na capital. De Albina a Paramaribo, foram levadas 90 pessoas. A princípio, a cidade ficou vazia. Até algumas semanas mais tarde, não havia a sombra de ninguém no garimpo.

Page 15: Se eu não sou a imagem do brasileiro no Suriname, então quem é?

Das 90 pessoas que foram encaminhadas aos hospitais da capital, cerca de 50 tinham algum tipo de ferimento. Desses, sete eram mais graves. A Embaixada ofereceu às vítimas passagens para Belém, mas não foram todos que aceitaram. Muitos deles não tinham documentos pessoais, ou de permanência no país. Alguns alegaram ter perdido todos os documentos durante o ataque. Para aqueles que não mais possuíam os documentos, a Embaixada formou um grupo de emergência de confecção de novos documentos. Esse grupo ficou encarregado de recolher todas as informações possíveis das vítimas, e conferir

nos cartórios brasileiros, para poder gerar novos documentos gratuitamente.

A verdadeira causa do ataque, segundo o Embaixador brasileiro, não foi a presença dos brasileiros no local. A presença de qualquer grupo não surinamês poderia ter disparado o gatilho. Ele afirma não existir um ódio generalizado pelos brasileiros. O ataque, segundo ele, poderia ter sido aos chineses e até aos próprios surinameses de outras regiões. “Foi uma questão de ocasião. Naquela região, vivem os antigos guerrilheiros, aqueles que lutaram contra a ditadura de Boutersi (antigo ditador e atual presidente eleito). Aquela região não segue as regras do país. É um caos total. Eles têm suas próprias leis”.

Para José Luiz, o acontecimento foi uma fatalidade: “Os habitantes locais são muito pobres, sem perspectiva de vida. Quando viram os brasileiros celebrando, com uma imensidão de comes e bebes, música, festa, luzes coloridas, e pensaram a respeito da própria situação, chegaram à seguinte conclusão: Nós, habitantes locais, estamos aqui, sem nada, enquanto os forasteiros invadem nossas terras, garimpam o nosso ouro e ficam ricos, fartos, festejando e celebrando. Por que permitir isso? Se eles não obedecem ao governo central, porque obedecer às leis dos brasileiros?”.

No bar, um maroon começou a provocar um brasileiro de baixa estatura. Cobrou um dinheiro relativo ao transporte de mercadorias que o brasileiro já havia pagado. O maroon disse que queria o pagamento novamente, uma vez que ele “mandava” naquele pedaço de terra. A pancadaria começou e o brasileiro, sabendo que não tinha chance de sobreviver, por ser pequeno e fraco, tirou do bolso a faca que carregava consigo. Segundo os moradores locais, ele não esperava que fosse resultar em morte, mas a autodefesa foi desleal.

“O local não tem um problema contra os brasileiros. É uma questão de política interna do Suriname, sobre a qual não temos controle, nem eles (o governo). Por sorte, ou falta de, acabou envolvendo um grupo de brasileiros”, avalia o Embaixador.

“...não é um problema contra os brasileiros. É uma questão de política

interna...”

Caminhando por Anamoestraat, tem-se a sensação de estar no Brasil.