saul newman - stirner y foucault

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 101 verve Stirner e Foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana stirner e foucault: em direção a uma liberdade pós-kantiana saul newman* Max Stirner e Michel Foucault são dois pensadores que raramente são analisados juntos. No entanto, já foi suge- rido que o tão ignorado Stirner pudesse ser visto como o precursor do pensamento pós-estruturalista contemporâ- neo. 1  De fato, há muitos extraordinários paralelos entre a crítica de Stirner sobre o humanismo iluminista, a racio- nalidade universal e as identidades essenciais, e as críti- cas similares realizadas por pensadores como Foucault,  Jac ques Der rida, Gilles Del euz e, e out ros . Contudo, o pro- pósito deste artigo não é meramente situar Stirner na tradição “pós-estrutural ista”, mas analisar seu pensamen- to a respeito da liberdade, e pesquisar as conexões com o próprio desenvolvimento do conceito de Foucault no con- texto das relações de poder e subjetividade. Em linhas ge- rais, os dois pensadores enxergam a clássica idéia kanti- * Professor no Departamento de Ciência Políti ca da University of W estern  Australi a. verve, 7: 101-130, 2005

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stirner y foucault - sobre el post-humanismo

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    Stirner e Foucault: em direo a uma liberdade ps-kantiana

    stirner e foucault: em direo a umaliberdade ps-kantiana

    saul newman*

    Max Stirner e Michel Foucault so dois pensadores queraramente so analisados juntos. No entanto, j foi suge-rido que o to ignorado Stirner pudesse ser visto como oprecursor do pensamento ps-estruturalista contempor-neo.1 De fato, h muitos extraordinrios paralelos entre acrtica de Stirner sobre o humanismo iluminista, a racio-nalidade universal e as identidades essenciais, e as crti-cas similares realizadas por pensadores como Foucault,Jacques Derrida, Gilles Deleuze, e outros. Contudo, o pro-psito deste artigo no meramente situar Stirner natradio ps-estruturalista, mas analisar seu pensamen-to a respeito da liberdade, e pesquisar as conexes com oprprio desenvolvimento do conceito de Foucault no con-texto das relaes de poder e subjetividade. Em linhas ge-rais, os dois pensadores enxergam a clssica idia kanti-

    * Professor no Departamento de Cincia Poltica da University of WesternAustralia.

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    ana de liberdade como extremamente problemtica, porenvolver pressupostos essencialistas e universais queso freqentemente opressivos. O conceito de liberdadedeve ser repensado. Este no pode ser visto exclusiva-mente em termos negativos, como a liberdade de coa-o, mas deve envolver mais noes positivas de auto-nomia individual, particularmente a liberdade do indi-vduo para construir novas formas de subjetividade.Stirner, como veremos, dispensa a noo clssica deliberdade como uma totalidade e desenvolve a teoria da(Eigenheit)2 para descrever esta autonomia radical doindivduo. Eu proponho, neste artigo, que tal teoria dapropriedade de si como uma forma no essencialista deliberdade tem muitas similaridades com o prprio pro-jeto de liberdade de Foucault, que envolve um ethos cr-tico e uma esteticizao de si. De fato, Foucault questi-ona os fundamentos racionais universais e antropol-gicos do discurso de liberdade, redefinindo-os em termosde prticas ticas.3 Tanto Stirner quanto Foucault so,portanto, cruciais para o entendimento da liberdade nacontemporaneidade eles mostram que a liberdade nopode mais ser limitada por absolutos racionais e cate-gorias morais universais. Eles tomam o entendimentode liberdade para alm dos limites do projeto kantiano apoiando-se em estratgias concretas e contingen-tes de si.

    Kant e a liberdade universal

    Para compreender como esta reformulao radical daliberdade pode acontecer, devemos ver como o conceito deliberdade est situado no pensamento iluminista. Nesteparadigma, o exerccio da liberdade visto como a heran-a de uma propriedade racional. Segundo Immanuel Kant,por exemplo, a liberdade humana pressupe uma lei mo-ral que racionalmente entendida. Na Crtica da razo

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    prtica, Kant busca estabelecer um fundamento racionalabsoluto para o pensamento moral alm dos princpiosempricos. Argumenta que os princpios empricos noso uma base apropriada para as leis morais, por nopermitirem que sua verdadeira universalidade seja es-tabelecida. A moralidade deveria, ao contrrio, ser ba-seada em uma lei universal um imperativo categri-co que pode ser racionalmente compreendido. ParaKant existe, ento, apenas um imperativo categrico, oqual sustenta o fundamento para todas as aes racio-nais do homem: Age somente pela mxima segundo aqual tua ao e vontade tornam-se uma lei universal.4Noutras palavras, a moralidade de uma ao est deter-minada pela lei universal quando aplicvel a todas assituaes. Kant traa trs caractersticas de todas asmximas morais. Em primeiro lugar, elas devem ter umformato universal. Em segundo lugar, devem ter um fimracional. E, em terceiro, as mximas que provm de le-gislaes autnomas do indivduo, devem estar de acor-do com uma certa teologia de fins.

    Este ltimo ponto trs conseqncias importantespara a questo da liberdade humana. Para Kant, a leimoral baseada na liberdade o indivduo racionalescolhe livremente pelo senso de dever aderir s mxi-mas morais universais. Dessa maneira, para que asleis morais sejam racionalmente fundamentadas, elasno podem estar baseadas em qualquer forma de coer-o ou constrangimento. Elas tm que estar livrementeincorporadas como um ato racional do indivduo. A li-berdade vista por Kant como uma autonomia da von-tade a liberdade do indivduo racional para seguir ospreceitos de sua prpria razo pela adeso a estas leismorais universais. Esta autonomia da vontade, ento, para Kant o princpio supremo da moralidade. Ele adefine como aquela propriedade pela qual ela uma leipara si mesma (independentemente de qualquer pro-

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    priedade dos objetos da vontade).5 A liberdade , portan-to, a habilidade do indivduo em legislar para si, livre deforas externas. No entanto, esta liberdade da auto-le-gislao deve estar de acordo com as categorias moraisuniversais. Por conseguinte, segundo Kant, o princpioda autonomia : nunca escolher, exceto quando estivernuma condio em que as mximas da escolha estejamcompreendidas na mesma vontade como uma lei uni-versal.6 Pode parecer que h um paradoxo central nestaidia de liberdade voc livre para escolher desde quefaa a escolha certa, desde que escolha as mximas damoral universal. Porm, para Kant, aqui no h contra-dio, pois apesar da adeso s leis morais ser um devere um imperativo absoluto, ela continua sendo um deverlivremente escolhido pelo indivduo. Leis morais so ra-cionalmente estabelecidas, e pelo fato da liberdade ape-nas poder ser exercida por indivduos racionais, eles ironecessariamente, ainda que livremente, escolher obe-decer estas leis morais. Noutras palavras, uma ao livre somente na medida em que est de acordo com amoral e os imperativos racionais caso contrrio ela patolgica e, portanto, no-livre. Neste sentido, a liber-dade e o imperativo categrico no so antagnicos, masantes, conceitos mutuamente dependentes. A autono-mia individual para Kant a principal base das leis mo-rais. Mas este princpio da autonomia (...) o nico prin-cpio das morais que pode ser mostrado prontamente poruma mera anlise dos conceitos da moralidade; por estaanlise ns descobrimos que este princpio tem que serum imperativo categrico, e este (o imperativo) coman-da, nem mais nem menos, que sua prpria autonomia.7

    O reverso autoritrio

    Todavia, pode parecer haver um autoritarismo es-condido na formulao da liberdade de Kant. Enquanto o

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    indivduo livre para agir de acordo com os preceitos desua prpria razo, ele deve, contudo, obedecer s mxi-mas da moral universal. A filosofia da moral de Kant uma filosofia da lei. Este o porqu Jacques Lacan foicapaz de diagnosticar um jouissance escondido ou aapreciao em excesso da lei que anexou ao impera-tivo categrico de Kant. Segundo Lacan, Sade o com-plemento necessrio a Kant o prazer perverso incor-porado s leis se torna, no universo sadiano, a lei doprazer.8 O que une a liberdade kantiana lei so suasvinculaes a uma racionalidade absoluta. porque aliberdade deve ser exercida racionalmente que o indiv-duo se encontra obedecendo, obrigatoriamente, as leismorais universais, racionalmente fundamentadas.

    Contudo, tanto Foucault quanto Stirner colocaram emquesto tais categorias universais, racionais e morais,centrais para o pensamento iluminista. Eles insistemque categorias absolutas da moralidade e racionalidadesancionam diversas formas de dominao e excluso, enegam a diferena no indivduo. Para Foucault, porexemplo, a centralidade da razo em nossa sociedadeest baseada na excluso violenta e radical da loucura.As pessoas permanecem excludas, encarceradas e opri-midas devido a esta arbitrria diviso entre a razo e ano-razo, racionalidade e irracionalidade. Do mesmomodo, o sistema penitencirio est baseado na divisoentre bem e mal, inocncia e culpa. O encarceramentodo prisioneiro possvel somente pela universalizaode cdigos morais. O que deve ser contestado, segundoFoucault, no so apenas as prticas de dominao quese encontram nas prises, mas tambm a moralidadeque justifica e racionaliza tais prticas. O foco principalda crtica de Foucault sobre as prises no necessari-amente relativa dominao interna, mas no fato deque esta dominao est justificada em bases moraisabsolutas a base moral que Kant busca para cons-

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    truir o universal. Foucault quer romper com a serenadominao do Bem sobre o Mal, central nos discursosmorais e prticas de poder.9

    Este o absolutismo moral ao qual Stirner tambm seope. Ele v a moralidade como um fantasma umideal abstrato colocado alm do indivduo e que age sobreele de forma opressiva e alienante. Moralidade e racio-nalidade se tornam idias fixas idias tidas comosagradas e absolutas. Uma idia fixa, de acordo com Stir-ner, um conceito abstrato que governa o pensamento uma fico discursivamente fechada que nega a dife-rena e a pluralidade. Estas so idias abstradas domundo e que continuam a dominar o individuo pela com-parao de cada um a uma norma ideal impossvel de seratingida. Noutras palavras, o projeto de Kant de retirar asmximas morais do mundo emprico para o interior deum reino transcendental, em que poderiam ser aplica-das universalmente, isto poderia ser visto por Stirnercomo um projeto de alienao e dominao. A invocaoda obedincia absoluta s mximas morais universaisde Kant, seria vista por Stirner como a pior negao pos-svel da individualidade. Para Stirner, o indivduo su-premo, e qualquer coisa que pretenda se aplicar a ele oufalar por qualquer um, universalmente, uma anulaoda diferena da unicidade do indivduo. O indivduo estinfestado por estes ideais abstratos, estas aparies queno so criaes suas e a ele impostas, confrontando-ocom padres racionais e morais impossveis. Como vere-mos, alm disso, o indivduo para Stirner no uma iden-tidade ou essncia fixa e estvel isto seria uma abs-trao idealista assim como os espectros que o oprimem.A individualidade deve ser vista, neste caso, em termossimilares aos de Foucault como uma forma radical-mente contingente de subjetividade, uma estratgia aber-ta que se empenha em questionar e contestar os limitesdo essencialismo.

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    A crtica ao essencialismo

    O exorcismo que Stirner executa neste esprito doreino de absolutos morais e racionais parte de umacrtica radical do humanismo iluminista e do idealis-mo. Seu rompimento epistemolgico com o humanis-mo pode ser visto mais claramente em seu repdio aLudwig Feuerbach. Em A essncia do cristianismo, Feu-erbach aplicou a noo de alienao para a religio. Areligio alienante, de acordo com Feuerbach, pois elaexige que o homem abdique de suas qualidades e pode-res essenciais para projet-los em um Deus abstrato,alm da compreenso da humanidade. Para Feuerbach,os predicados de Deus, eram somente os predicados dohomem como espcie. Deus era uma iluso, uma proje-o fictcia das qualidades essenciais do homem. Nou-tras palavras, Deus era uma reificao da essnciahumana. Como Kant, que tentou transcender o dogma-tismo da metafsica reconstruindo sobre bases racionaise cientficas, Feuerbach procurou superar a alienaoreligiosa restabelecendo as capacidades morais e racio-nais universais do homem como base essencial para aexperincia humana. Feuerbach corporifica o projetohumanista do Iluminismo de restaurar ao homem seujusto lugar no centro do universo, fazendo do humano odivino, o finito, o infinito.

    Stirner argumenta, contudo, que por meio da buscado sagrado na essncia humana, posicionando umsujeito essencial e universal, e atribuindo-lhe, certasqualidades que foram, at agora, de Deus, Feuerbachsomente re-introduziu a alienao religiosa, substitu-indo o conceito abstrato de homem na categoria do Divi-no. Por meio da inverso feuerbachiana o homem setorna Deus, e apenas como homem foi rebaixado sobDeus, ento o indivduo posto abaixo deste ser perfei-to, o homem. Para Stirner, o homem to opressivo, se

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    no mais, que Deus. O homem se torna o substituto dailuso crist. Feuerbach argumenta Stirner, o sacer-dote de uma nova religio universal o humanismo:A religio humana somente a ltima metamorfoseda religio crist.10 importante notar que o conceitode alienao de Stirner essencialmente diferente dacompreenso humanista feuerbachiana da alienao daessncia do indivduo. Stirner radicaliza a teoria de ali-enao para ver a essncia por si s alienante. Salien-to, que a alienao neste exemplo pode ser vista muitoalm da noo foucaultiana de dominao como umdiscurso que amarra o indivduo a certa subjetividadepor meio da convico de que dentro de qualquer umexiste uma essncia para ser revelada.

    Para Stirner esta noo de uma essncia humanauniversal que estipula as bases para a absolutizao damoral e das idias racionais. Estas mximas tornaram-se sagradas e imutveis porque esto agora fundadasna noo de humanidade, na essncia humana, e trans-gredi-las seria uma transgresso na essncia. Nestesentido o tema levado a um conflito consigo mesmo. Ohomem , de certa forma, perseguido e alienado por elemesmo, por meio do espectro da essncia dentro dele:A partir de agora, em casos tpicos, o homem no maisestremecer diante de fantasmas externos, mas diantede si mesmo; ele est aterrorizado por si mesmo.11 ParaStirner, a insurreio de Feuerbach no destruiu acategoria da autoridade religiosa apenas instalou ohomem dentro dela, revertendo a ordem do sujeito e dopredicado. Da mesma forma, podemos sugerir que a in-surreio metafsica de Kant no destruiu as estrutu-ras dogmticas da crena, mas apenas instalou a mora-lidade e a racionalidade dentro delas.

    Enquanto Kant procurava retirar a moralidade do do-mnio da religio, fundamentando-a na razo, Stirner

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    sustenta que a moralidade apenas o velho dogmatis-mo religioso em um novo e racional aspecto: A f moral to fantica quanto a f religiosa!.12 Stirner no seope moralidade em si, mas o fato que esta se tornouuma lei sagrada e indestrutvel, e expe o desejo pelopoder, a crueldade e a dominao por trs das idiasmorais. A moralidade est baseada na profanao, nadestruio da vontade do indivduo. O indivduo deve seconformar aos cdigos morais; seno, ele se torna alie-nado de sua essncia. Para Stirner, a coero moral to viciosa quanto a coero realizada pelo Estado, s mais insidiosa e perspicaz, pois no exige o uso da forafsica. O guardio desta moralidade est instalado naconscincia do indivduo. Esta moral internalizada davigilncia tambm se encontra em Foucault na discus-so sobre o panoptismo na qual ele argumenta, re-vertendo o paradigma clssico, que a alma se torna apriso para o corpo.13

    Uma crtica similar deve estar relacionada racio-nalidade. Verdades racionais so sempre colocadas aci-ma das perspectivas individuais, e Stirner sustenta queisto apenas uma outra forma de dominar o indivduo.De maneira similar ao que afirmou sobre a moralidade,Stirner no necessariamente contra a verdade racio-nal em si, mas contra o modo como ela se torna sagra-da, transcendental e deslocada da compreenso indivi-dual, anulando o poder do indivduo. Stirner diz: enquan-to voc acreditar na verdade, voc no acredita em simesmo, e voc um servo, um homem religioso.14 Averdade racional, para Stirner, no possui nenhum realsignificado para alm das perspectivas individuais algo que pode ser usado pelo indivduo. Sua verdadeirabase, assim como para a moralidade, o poder.

    Enquanto para Kant as mximas morais so racio-nais e livremente obedecidas, para Stirner elas so pa-

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    dres coercitivos, baseadas em uma noo alienante deessncia humana compelida sobre o indivduo. Almdisso, elas se tornam a base para prticas de punio edominao. Por exemplo, em resposta idia iluminis-ta que o crime era antes uma doena a ser curada doque uma moral enfraquecida a ser punida, Stirner afir-ma que estratgias de cura e punio so dois lados domesmo velho preconceito moral. Ambas estratgias con-tam com a adeso a uma norma universal: meios decura sempre anunciam inicialmente que indivduossero supervisionados ao serem chamados para umasalvao especfica e tratados de acordo com as exi-gncias deste chamado humano.15 Para Kant, o indi-vduo no tambm, chamado para uma salvaoespecfica quando solicitado a cumprir uma de suas obri-gaes ou a obedecer aos cdigos morais? Neste senti-do, o imperativo categrico kantiano no seria tambmum chamado humano? Noutras palavras, a crtica deStirner sobre a moralidade e a racionalidade pode seraplicada ao imperativo categrico de Kant. Para Stirner,embora as mximas morais possam ser livremente se-guidas, elas continuam ocultando uma coero e umautoritarismo. Isto porque, na formulao kantiana, elasforam universalizadas como normas absolutas que re-servam um pequeno espao para a autonomia do indiv-duo, e que no podem ser transgredidas, pois isto signi-ficaria ir contra o prprio chamado humano racional euniversal.

    A crtica de Stirner moralidade e sua relao coma punio possui similaridades impressionantes comos escritos do prprio Foucault sobre a punio. ParaStirner, como j vimos, no h diferena entre cura epunio a prtica da cura a re-aplicao dos velhospreconceitos morais sob uma nova mscara ilumi-nada: os meios de cura ou tratamento so o reverso dapunio, a teoria da cura segue paralela teoria da pu-

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    Stirner e Foucault: em direo a uma liberdade ps-kantiana

    nio; se esta ltima enxerga em uma ao um pecadocontra o direito, o primeiro entende isso como um peca-do do homem contra si mesmo, deixando de lado a suasade.16

    Isto muito prximo ao argumento de Foucault so-bre o preceito moderno da punio em que as normasmdicas e psiquitricas so apenas a velha moralidadeem uma nova roupagem. Enquanto Stirner consideraos efeitos de tais formas da higiene moral na conscin-cia do indivduo, o foco de Foucault est mais na mate-rialidade do corpo e a frmula de cura e punio so asmesmas: a noo do que propriamente humano,que autoriza uma srie de excluses, prticas discipli-nares, moral restritiva e normas racionais. Tanto paraFoucault, como para Stirner, a punio possvel pormeio do sagrado ou do absoluto no sentido que Kantfaz da moralidade uma lei universal. H inmeros pon-tos a serem sublinhados. Primeiro, Stirner e Foucaultvem os discursos racionais e morais como problemti-cos eles geralmente excluem, marginalizam, e opri-mem aqueles que no vivem sob as normas implcitasdestes discursos. Segundo, os dois pensadores vem aracionalidade e a moralidade implicadas nas relaesde poder, mais do que constituindo um ponto crtico epis-temolgico fora do poder. No somente estas normas setornam possveis por prticas de poder, por meio da ex-cluso e dominao do outro, mas tambm, justificam eperpetuam prticas de poder como as encontradas emprises e asilos. Terceiro, ambos os pensadores vemna moralidade uma relao ambgua com a liberdade.Enquanto Stirner discute que superficialmente as nor-mas morais e racionais so livremente admitidas, elasimpem, contudo, uma opresso sobre ns mesmos uma autodominao que muito mais incidiosa eefetiva que a coero explcita. Noutras palavras, emconformidade com a prevalncia universal da moral e

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    da norma racional, o indivduo abdica de seu prprio po-der e se deixa dominar. Foucault, tambm, desmascaraesta dominao oculta da moral e da norma racional que encontrada atrs do calmo semblante da liberdade hu-mana. A clssica idia iluminista da liberdade, argumen-ta Foucault, permite apenas uma pseudo-soberania. Istoclama pela posse da soberania conscientemente (sobe-rania no contexto do julgamento, mas sujeita s neces-sidades da verdade), o indivduo (um controle nominal dedireitos pessoais sujeitos s leis da natureza e da socie-dade), a liberdade bsica (a soberania interna, mas acei-tando as demandas de um mundo externo e alinhadocom o destino).17 Noutras palavras, o humanismo ilu-minista clama pela liberdade individual sobre qualquerforma de opresso institucional enquanto, ao mesmo tem-po, exige uma intensificao da opresso sobre o indiv-duo e a negao do poder de resistir a esta sujeio. Estasubordinao no corao da liberdade pode ser vista noimperativo categrico kantiano: mesmo baseada em umaliberdade de conscincia, esta liberdade est ainda as-sim sujeita a categorias morais e racionais absolutas. Aliberdade clssica permite somente uma certa forma desubjetividade, ao intensificar a dominao sobre o indi-vduo subordinado a estes critrios morais e racionais.Enfim, o discurso de liberdade est baseado em uma for-ma especfica de subjetividade o homem autnomo eracional do iluminismo e do liberalismo. Como mostramFoucault e Stirner, esta forma de liberdade s se faz pos-svel por meio da dominao e excluso de outros modosde subjetividade que no se encaixam neste modelo ra-cional. Noutras palavras, enquanto a moralidade no negaou constrange a liberdade de forma evidente no casode Kant as mximas morais esto baseadas na liberdadede escolha do indivduo esta liberdade est, no obs-tante, restrita a um modo mais sutil por necessitar seconformar a absolutos morais e racionais.

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    Stirner e Foucault: em direo a uma liberdade ps-kantiana

    Para Foucault e Stirner, a idia clssica de liberdadeem Kant profundamente problemtica. Ela constri oindivduo como livre e racional enquanto o assujeitaa normas morais e racionais absolutas, e o divide emseres racionais e irracionais, morais e imorais. O indi-vduo se adapta livremente a estas normas racionais, eneste sentido sua subjetividade construda como umlugar para sua prpria opresso. A tirania silenciosa danorma auto-imposta se torna o principal modo de sujei-o. Enquanto para Kant as mximas morais e as nor-mas racionais existem em uma relao complementar liberdade, para Stirner e Foucault a relao muito maisparadoxal e conflituosa. A moral transcendental e as nor-mas racionais no negam a liberdade em si no para-digma kantiano elas pressupem a liberdade. A forma deliberdade trazida por meio destas categorias absolutas,implica outras formas de dominao muito mais sutis.Esta dominao possvel precisamente porque a rela-o da liberdade com o poder mascarada. Para Kant,como j vimos, a liberdade uma ausncia de coero.Entretanto, para Stirner e Foucault, a liberdade implicasempre em relaes de poder relaes de poder tocriativas quanto restritivas. Ignorar isso, e ainda, perpe-tuar a iluso confortante de que a liberdade assegura umaliberao universal do poder, significa atirar-se direta-mente nas mos da dominao. Pode-se argumentar,ento, que Foucault e Stirner, de maneiras diferentes,decifram o autoritrio lado obscuro, ou a outra face, daliberdade kantiana.

    A liberdade foucaultiana: o cuidado de si

    Stirner e Foucault no rejeitam a idia de liberdade.Ao contrrio, eles interrogam os limites do projeto ilu-minista de liberdade, de modo a expandi-lo para in-ventar novas formas de liberdade e autonomia que vo

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    alm das restries do imperativo categrico. Comomostra Olvia Custer, Foucault est to engajado quan-to Kant na problemtica da liberdade. Entretanto, comoveremos, ele procura levar a questo da liberdade porum caminho diferente por meio de estratgicas ti-cas concretas e prticas de si.

    Para Foucault, a iluso do estado de liberdade paraalm do mundo do poder deve ser dissipada. Alm disso,o vnculo entre liberdade e categorias essencialistas ecoordenadas morais e racionais pr-ordenadas, devemser pelo menos questionadas. Porm, o conceito de li-berdade muito importante para Foucault ele noprescinde do conceito, mas antes o situa no domnio dasrelaes de poder que necessariamente o fazem inde-terminado. somente repensando a liberdade nestesentido, que esta pode ser arrebatada do mundo metaf-sico e trazida para o nvel do indivduo. Melhor que anoo abstrata de liberdade kantiana como uma esco-lha racional alm de constrangimentos e limitaes, aliberdade para Foucault existe em situaes mtuas erecprocas de poder. Mais do que uma liberdade pres-suposta por uma mxima moral absoluta, ela na reali-dade pressuposta pelo poder. Segundo Foucault, o poderpode ser entendido como uma srie de aes sobre aao dos outros, nas quais mltiplos discursos, contra-discursos, estratgias e tecnologias confrontam-se umascom as outras relaes especficas de poder sempreprovocam relaes de resistncias especficas e locali-zadas. A resistncia algo que excede o poder e aomesmo tempo algo integrado sua dinmica. O poderse baseia numa certa liberdade de ao, numa certaescolha de possibilidades. Neste sentido, o poder exer-cido somente sobre sujeitos livres, e somente na medi-da que estes so livres.18 Diferentemente do esquemaclssico no qual a liberdade e o poder so diagramatical-mente opostos, o pensamento foucaultiano sustenta a

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    Stirner e Foucault: em direo a uma liberdade ps-kantiana

    total dependncia de um ao outro. Onde no h liberda-de, onde o campo de ao absolutamente restrito edeterminado, de acordo com Foucault, no pode haverpoder: a escravido, por exemplo, no uma relao depoder.19

    A noo de liberdade em Foucault uma quebra ra-dical com a noo de Kant. Enquanto, para Kant, a liber-dade abstrada dos constrangimentos e limitaes dopoder, para Foucault, a principal base destes limites econstrangimentos. Liberdade no um conceito meta-fsico e transcendental. Ela pertence inteira a este mun-do e existe em uma relao complicada e emaranhadacom o poder. De fato, no existe possibilidade de ummundo sem relaes de poder, assim como poder e li-berdade no existem um sem o outro.

    Foucault percebe a liberdade implicada nas relaesde poder, pois para ele liberdade muito mais que so-mente ausncia ou negao do constrangimento. Ele re-jeita o modelo repressivo de liberdade que pressupe aessncia de si uma natureza humana universal que restrita e precisa ser liberada. A liberao de umasubjetividade essencial a base das noes clssicas deliberdade para o iluminismo e continua sendo centralpara o nosso imaginrio poltico. Foucault e Stirner re-jeitam esta idia da essncia de si isto meramenteuma iluso criada pelo poder. Como diz Foucault: O ho-mem descrito para ns e que somos convidados a liber-tar, j em si o efeito de um assujeitamento muito maisprofundo que ele prprio.20 Enquanto ele no reduz osatos de liberao poltica por exemplo, quando um povotenta se libertar das regras coloniais isto no pode ope-rar como a base de um modo contnuo de liberdade. Su-por que a liberdade pode ser estabelecida eternamentena base deste ato de libertao inicial significa apenasum convite para novas formas de dominao. Se a liber-

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    dade deve ser um aspecto permanente de qualquer so-ciedade poltica, ela deve ser tida como uma prtica um modo de ao e uma estratgia em curso, que desa-fia e questiona continuamente as relaes de poder.

    Esta prtica de liberdade tambm uma prtica cri-ativa um processo contnuo de auto-formao do su-jeito. neste sentido que a liberdade pode ser vista comopositiva. Um dos aspectos que caracteriza a modernida-de, segundo Foucault, uma atitude herica baudele-riana em relao ao presente. Para Baudelaire, o con-tingente, a natureza fugaz da modernidade deve ser con-frontada com uma certa atitude em relao ao presenteque concomitante ao novo modo de relao que se temconsigo. Isso envolve a reinveno de si: esta moderni-dade no liberta o homem em seu prprio ser; obriga-oa encarar a tarefa de produzir a si prprio.21 Antes daliberdade ser uma libertao da essncia do homem decoaes externas, ela uma prtica ativa e deliberadada inveno de si. Esta prtica de liberdade pode serencontrada no exemplo do dandy ou do flanur, que fazdo seu corpo, do seu comportamento, dos seus sentimen-tos e paixes, de sua prpria existncia, uma obra dearte.22 esta prtica de auto-esteticizao que nos per-mite, de acordo com Foucault, refletir criticamente so-bre os limites de nosso tempo. No se procura um lugarmetafsico alm de todos os limites, mas obras dentrodos limites e coeres no presente. Mais importante,no entanto, tambm uma obra conduzida sobre os nos-sos limites e nossas prprias identidades. Pelo fato dopoder operar por meio do processo de assujeitamento amarrando o indivduo a uma identidade essencial areconstituio radical de si um ato de resistncia ne-cessrio. Esta nova forma de liberdade define, ento, umanova forma de poltica mais relevante aos regimes con-temporneos de poder: o problema poltico, tico, sociale filosfico de nossos dias no libertar o indivduo do

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    Stirner e Foucault: em direo a uma liberdade ps-kantiana

    Estado e suas instituies, mas de nos libertar do Esta-do e do tipo de individualizao ligada a ele.23

    Para Foucault, alm disso, a libertao de si umaprtica tica distinta. Ela envolve a noo de cuidadode si, pela qual o desejo e o comportamento so regula-dos por si prprios de modo que a liberdade possa serpraticada eticamente. Esta sensibilidade com o cuidadode si e a prtica tica da liberdade pode ser encontrada,sugere Foucault, entre os gregos e romanos da antigui-dade. Para eles a liberdade do indivduo era um proble-ma tico. O desejo pelo poder sobre os outros era tam-bm uma ameaa prpria liberdade, e o exerccio dopoder era algo que tinha que ser regulado, monitorado,e limitado. Ser escravo de seus prprios desejos era toruim quanto ser escravo do desejo de outros. Esta regu-lao de prticas e desejos requer um comportamentotico que cada um constri para si. Para praticar a li-berdade eticamente, para ser sinceramente livre, pre-ciso obter o poder sobre si mesmo, sobre os prprios de-sejos. Foucault mostra, no antigo pensamento grego eromano que o bom governante precisamente aqueleque exerce seu poder corretamente, ou seja, exercendoao mesmo tempo o poder sobre si mesmo.24

    Esta prtica tica da liberdade associada ao cuidadopara si comea, entretanto, a soar de certo modo como opensamento kantiano. Na realidade, como diz Foucault,para que a tica, seno para a pratica da liberdade? [...]A liberdade a condio ontolgica da tica.25 Isso noparece re-invocar o imperativo categrico onde, paraKant, a moralidade pressupe e fundada na liberdade?Ser que Foucault, em sua tentativa para escapar doabsolutismo da moralidade e racionalidade, re-introdu-ziu o imperativo categrico nesta cuidadosa regulaodo comportamento e do desejo? No h dvidas sobre origor desta forma de tica. Em O uso dos prazeres e O cui-

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    dado de si, Foucault descreve as prescries gregas e ro-manas sobre tudo, da dieta ao exerccio do sexo. Entretan-to, eu sugeriria que h uma diferena importante entre atica do cuidado e as mximas morais universais insisti-das por Kant. A regulao do comportamento e a proble-matizao da liberdade, central para a tica do cuidado,so coisas que cada um aplica a si mesmo, no algoimposto externamente por uma perspectiva universal forado indivduo. A prtica de liberdade em Foucault , portan-to, uma tica mais do que uma moralidade. Supe umacoerncia de modos e comportamentos que tm como ob-jeto a considerao e a problematizao de si. Noutras pa-lavras, permite que o sujeito seja visto como um projetoaberto a ser constitudo por meio de prticas ticas doindivduo, e no como algo definido a priori por leis univer-sais e transcendentais. Leis morais no se aplicam aqui no h nenhuma autoridade transcendental ou impe-rativos universais que sancionem estas prticas ticas epenalize infraes. Segundo Foucault, a moralidade de-finida pelo tipo de assujeitamento que ela acarreta. Deum lado h a moralidade que faz com que os cdigos sejamcumpridos, por meio de interdies, e que exige uma for-ma de subjetividade que se refere conduta do indivduosob estas leis, submetendo-o uma autoridade universal.Isso, que pode ser discutido, a moralidade do imperativocategrico de Kant. De um outro lado, afirma Foucault,existe a moralidade na qual a nfase colocada na rela-o consigo que permite no se deixar levar pelos apetitese pelos prazeres, manter uma superioridade sobre eles,manter seus sentidos num estado de tranqilidade, per-manecer livre de qualquer escravido interna das paixes,e atingir a um modo de ser que pode ser definido pelo ple-no gozo de si ou pela supremacia de si sobre si mesmo.26

    A noo de Foucault de liberdade como uma prtica ti-ca radicalmente diferente da idia de Kant de liberdadecomo base da lei moral universal. Para Foucault, a liber-

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    Stirner e Foucault: em direo a uma liberdade ps-kantiana

    dade tica porque implica um projeto em aberto conduzi-do sobre a pessoa, com o intuito de expandir o poder que seexerce sobre si mesmo, e limitar e regular o poder emexerccio sobre os outros. Desta forma, a liberdade e a au-tonomia da pessoa so expandidas. Para Kant, por sua vez,a liberdade a base de uma moralidade metafsica quedeve ser obedecida universalmente. Para Foucault, a ti-ca intensifica a liberdade e a autonomia, enquanto paraKant, liberdade e autonomia esto circunscritas princi-palmente pela mxima moralidade possvel.

    H, portanto, dois aspectos relacionados com o concei-to de liberdade de Foucault que devem, aqui, ser enfatiza-dos. Primeiro, existe a prtica de liberdade que permite pessoa libertar-se, no dos limites externos que reprimema sua essncia, mas dos limites impostos pela prpria es-sncia. Exige a transgresso destes limites por meio deuma transgresso e re-inveno de si. Esta forma de li-berdade opera dentro dos limites do poder, permitindo aoindivduo fazer uso destes limites na inveno de si mes-mo. Segundo, existe o aspecto da liberdade claramentetico a prtica do cuidado de si que tem como intuitoo aumento do poder de si sobre seus desejos, colocando emcheque, desta forma, o poder de um sobre os outros. A pr-tica do cuidado de si permite ao indivduo navegar um per-curso tico de ao por dentro das relaes de poder, com oobjetivo de intensificar a liberdade e a autonomia pessoal.Portanto, a liberdade concebida como uma prtica de sicontingente e em curso que no est determinada poruma moral fixa e por leis racionais.

    Os dois iluminismos

    Em seu ltimo ensaio O que so as Luzes?, Foucaultconsidera a insistncia de Kant em um uso livre e pbli-co da razo autnoma como uma evaso, uma sada do

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    homem do estado de imaturidade e subordinao. Fou-cault acredita que esta razo autnoma til por per-mitir um ethos crtico sobre a modernidade, mas recusaa chantagem do iluminismo a insistncia com queeste ethos crtico, no corao do iluminismo, inscritoem uma moralidade e racionalidade universais. O pro-blema de Kant que ele abre caminho para uma auto-nomia individual e reflexo crtica nos limites do sujei-to, apenas para reinscrev-lo no espao fechado por umanoo transcendental de racionalidade e moralidade querequer obedincia absoluta. Para Foucault a herana doiluminismo extremamente ambgua. Segundo ColinGordon, para Foucault h dois iluminismos o ilumi-nismo da certeza racional, identidade absoluta, e do des-tino, e o iluminismo do questionamento contnuo e daincerteza. Segundo Foucault, esta ambigidade estrefletida no prprio pensamento de Kant sobre o ilumi-nismo.

    Talvez exista um momento kantiano em Foucault (oudeveramos dizer um momento foucaultiano em Kant?).Foucault mostra, como Kant pode ser lido de uma formaheterognea, enfocando o aspecto mais oscilante de seupensamento em que somos encorajados a interrogaros limites da modernidade, a refletir criticamente so-bre como somos constitudos como sujeitos. Como mos-tra Foucault, Kant v o iluminismo (Aufklrung) comouma condio crtica, caracterizada por uma audciade saber e um uso pblico livre e autnomo da razo.Esta condio crtica concomitante com uma vontadede revoluo com a tentativa de entender a revolu-o (no caso de Kant a Revoluo Francesa) como umevento que permite interrogar as condies da moder-nidade uma ontologia do presente e a forma, comosujeitos, que lidamos com isso.27 Foucault sugere queadotemos esta estratgia crtica para refletir sobre oslimites do discurso do iluminismo em si e de suas in-

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    terdies morais e racionais universais. Deveremos,neste sentido, usar as capacidades crticas do iluminis-mo contra ele mesmo, abrindo caminho, deste modo,para a autonomia individual dentro de seus edifcios,alm da compreenso de leis universais.

    A postura crtica relativa ao presente e a prtica docuidado de si com a qual est ligada, esboa uma es-tratgia genealgica da liberdade uma estratgia,como afirma Foucault que no procura tornar possveluma metafsica que finalmente se tornou uma cincia;procura dar novo mpeto [...] para o trabalho indefinidoda liberdade.28

    A teoria da propriedade de si de Stirner

    o desejo de dar um novo mpeto liberdade, de atirar do domnio de promessas e sonhos vazios, que sereflete na teoria da propriedade de si de Stirner. Ele adotaum caminho genealgico, prximo ao de Foucault, tra-zendo o foco da liberdade de si e situando a liberdade nointerior das relaes de poder.

    A idia de transgredir e reinventar-se libertando-sede identidades fixas e essenciais tambm o tema cen-tral do pensamento de Stirner. Como j vimos, Stirnermostra que a noo de essncia humana uma ficoopressiva derivada de um idealismo cristo invertido, quetiraniza o indivduo e est ligada a vrias formas de domi-nao poltica. Stirner descreve um processo de assujei-tamento que muito similar ao de Foucault: mais do queo poder operar com uma represso depressiva, esta gover-na o assujeitamento do indivduo, definindo-o de acordocom uma identidade essencial. Stirner afirma: o Estadodenuncia sua inimizade a mim, exigindo que eu seja umhomem... ele impe ser um homem como um dever.29 Aessncia humana impe uma srie de morais fixas e

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    idias racionais no indivduo, que no so parte de suacriao e que reduz a sua autonomia. E precisamenteesta noo de dever, de obrigao moral o mesmo sen-tido de dever que est na base dos imperativos categri-cos que Stirner considera opressiva.

    Para Stirner, o indivduo deve se livrar destas idiasopressivas e obrigaes livrando-se, em primeiro lugar,da essncia da identidade essencial que lhe impos-ta. A liberdade envolve, portanto, a transgresso da es-sncia, a transgresso de si. Mas como deve ser estatransgresso? Como Foucault, Stirner desconfia da lin-guagem de libertao e da revoluo baseadas nanoo de um ser essencial que supostamente joga foraas correntes da represso externa. Para Stirner, pre-cisamente esta noo de essncia humana que opres-siva. Alm disso, busca diferentes estratgias de liber-dade que abandonam o projeto humanista de liberta-o e procuram reconfigurar o sujeito em caminhosnovos e no-essencialistas. Para este fim, Stirner con-vida a uma insurreio: Revoluo e insurreio nodevem ser vistas como sinnimos. A primeira consistena derrubada das condies, das condies estabeleci-das ou posies, do estado ou da sociedade, um ato pol-tico ou social; a outra tem de fato, por suas conseqn-cias inevitveis, uma transformao das circunstnci-as, comea pelo descontentamento dos homens consigomesmos, no um levante armado, mas um levantedos indivduos, um levante sem se incomodar com asimplicaes da decorrentes. A revoluo pretendia no-vas disposies; a insurreio nos leva a no mais dei-xarmo-nos ser arranjados, mas nos arranjar sem aca-lentar uma esperana nas instituies. No umaluta contra o estabelecido, pois se este prospera ele searruna a si mesmo, apenas um trabalho alm de mime do estabelecido.30

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    Enquanto a revoluo pretende que a essncia hu-mana prospere, a partir da transformao das condiessociais e polticas existentes, uma insurreio procuralibertar o indivduo da essncia. Como a prtica de li-berdade em Foucault, a insurreio procura transfor-mar a relao que o indivduo tem consigo. A insurrei-o comea, portanto, com a recusa do indivduo em fa-zer cumprir sua identidade essencial: comea, segundoStirner, com o descontentamento dos homens com elesmesmos. A insurreio no tem como objetivo destruirinstituies polticas. Ela procura, de certo modo, trans-gredir no indivduo sua prpria identidade o resulta-do, contudo, uma mudana na ordem poltica. A insur-reio, portanto, no o tornar-se humano, homem mas tornar-se o que no .

    Este ethos de escapar das identidades essenciais pormeio da reinveno de si, tem muitos paralelos impor-tantes com a estetizao de si baudelairiana, que inte-ressa a Foucault. Como na afirmao de Baudelaire emque o sujeito deve ser tratado como uma obra de arte,Stirner v o sujeito ou o eu como um nada criati-vo, um vazio radical que cabe somente ao indivduodefinir: eu no me pressuponho, pois estou a cada mo-mento posicionando ou criando a mim mesmo.31 O su-jeito, para Stirner, est em processo, um fluxo contnuode auto-criao este um processo que se esquiva daimposio de identidades fixas e essncias: nenhumconceito me expressa, nada designado como minha es-sncia me exaure.32

    A estratgia insurrecional de Stirner e o projeto do cui-dado de si de Foucault so ambas prticas contingentes deliberdade, que envolvem a reconfigurao do sujeito e suarelao consigo. Para Stirner, assim como em Foucault, aliberdade um projeto indefinido e sem uma finalidadena qual o indivduo se empenha. A insurreio, como afir-

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    ma Stirner, no confia em instituies polticas para sub-sidiar a liberdade do indivduo, mas procura, que o indiv-duo invente suas prprias formas de liberdade. uma ten-tativa de construir espaos de autonomia dentro das rela-es de poder, limitando o poder que exercido sobre oindivduo pelos outros, e aumentando o poder que o indiv-duo exerce sobre si mesmo. O indivduo, alm disso, li-vre para reinventar-se de formas novas e imprevisveisescapando dos limites impostos pela essncia humana eas noes universais de moralidade.

    A noo de insurreio envolve uma reformulao doconceito de liberdade de maneira radicalmente ps-kan-tiana. Stirner sugere, por exemplo, que no pode havernenhuma idia universal de liberdade; a liberdade sem-pre uma liberdade particular disfarada de universal. Aliberdade universal que , para Kant, o domnio de todos osindivduos racionais, mascararia interesses particularesocultos. Liberdade, segundo Stirner, um conceito amb-guo e problemtico, um sonho lindo e encantado que se-duz o indivduo, mesmo sendo inatingvel, e do qual o indi-vduo deve acordar.

    Alm disso, liberdade um conceito limitado. S vis-ta em seu sentido mais estreito e negativo. Stirner quer,ao contrrio, ampliar este conceito para o de uma liberda-de mais positiva. Liberdade em seu sentido negativo en-volve apenas uma auto-renncia pra livrar-se de algo,para negar a si mesmo. Segundo Stirner, quanto maisostensivamente livre o indivduo se torna, de acordo comos ideais emancipadores do humanismo iluminista, maisele perde o poder que exerce sobre si mesmo. De outrolado, a liberdade positiva ou da propriedade de si uma forma de liberdade criada pelo indivduo para elemesmo. Diferente da liberdade kantiana, a propriedadede si no garantida por ideais universais ou imperativoscategricos. Se assim fosse, isto s poderia resultar em

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    mais dominao: um homem que colocado em liberda-de, no nada alm de um homem libertado [...] ele umhomem no-livre travestido com liberdade, como o asnona pele do leo.33

    A liberdade deve antes ser apoderada pelo indivduo.Para que a liberdade tenha algum valor ela deve estar ba-seada no poder do indivduo para cri-la. Minha liberdades se torna completa somente quando a minha prpriafora; mas a partir disso eu deixo de ser meramente umhomem livre e me torno e sou este homem.34 Stirner foium dos primeiros a reconhecer que a verdadeira base daliberdade o poder. Ver a liberdade como uma universalausncia do poder mascarar sua base principal no po-der. A teoria da propriedade de si o reconhecimento, e defato a afirmao, da relao inevitvel entre poder e liber-dade. A propriedade de si a realizao do poder do indiv-duo sobre si mesmo a habilidade de criar suas prpriasformas de liberdade, que no esto circunscritas pelametafsica ou categorias essencialistas. Neste sentido, apropriedade de si uma forma de liberdade que vai almdo imperativo categrico. Est baseada na noo de si comoum contingente e um campo aberto de possibilidades, eno numa adeso absoluta e submissa s mximas mo-rais externas.

    Concluso

    Esta noo de propriedade de si crucial na formula-o de um conceito de liberdade ps-kantiano. Talvez,nas palavras de Stirner, a propriedade de si cria uma novaliberdade.35 Primeiro, a propriedade de si permite que aliberdade seja considerada alm dos limites da moral uni-versal e das categorias racionais. A propriedade de si aforma de liberdade que o sujeito inventa para si mesmo,ao contrrio daquela garantida por ideais transcendentais.

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    Foucault, tambm, procurou libertar a liberdade desteslimites opressivos. Em segundo lugar, a propriedade de siaproxima-se do argumento de Foucault sobre a liberdadesituada nas relaes de poder. Foucault, assim como Stir-ner, mostra como ilusria a noo de liberdade comoalgo que possa acarretar uma absteno total do poder eda coao. O indivduo est sempre envolvido em uma redecomplexa de relaes de poder, e a liberdade deve ser ba-talhada, reinventada, e renegociada dentro destes limi-tes. A propriedade de si deve ser vista, portanto, comocriadora de possibilidades e resistncias ao poder. Prxi-mo a Foucault, Stirner defende que a liberdade e a resis-tncia podem existir sempre, mesmo nas mais opressi-vas condies. Neste sentido, a propriedade de si umprojeto de liberdade e resistncia dentro dos limites dopoder o reconhecimento da natureza fundamental-mente antagnica e ambgua da liberdade. Em terceirolugar, a propriedade de si no somente uma tentativapara limitar a dominao do indivduo, mas tambm ummodo de intensificar o poder que o sujeito exerce sobre si.Para Stirner e Foucault, a liberdade universal em Kantest baseada numa moral absoluta e em normas racio-nais que limitam a soberania do indivduo. Foucault e Stir-ner esto interessados, de formas diferentes, em refor-mular o conceito de liberdade: por meio da prtica tica docuidado de si e por meio da estratgia da propriedade desi, que pretendem aumentar o poder que o indivduo temsobre si mesmo.

    Estas duas estratgias nos permitem conceituar a li-berdade de uma forma mais contempornea. A liberdadeno pode mais ser vista como uma emancipao univer-sal, a promessa eterna de um mundo alm dos limites dopoder. A liberdade que forma a base do imperativo categ-rico, a liberdade exaltada por Kant como a providncia darazo e da moralidade, no pode mais servir como basepara as noes contemporneas de liberdade. Tanto Stir-

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    ner quanto Foucault mostraram que ela exclui e oprimionde inclui, e escraviza onde tambm liberta. A liberdadedeve ser vista no mais como subserviente s mximasabsolutas de moralidade e racionalidade, aos imperativosque invocam a fria, a sombria inevitabilidade da lei e dapunio. Para Stirner e Foucault, a liberdade deve ser li-berada destas noes absolutas. Antes de ser um privil-gio garantido ao indivduo por um ponto metafsico, a li-berdade deve ser vista como uma prtica, uma crtica doethos e do eu, e uma batalha que assumida pelo indiv-duo dentro da problemtica do poder. Isso abrange neces-sariamente uma reflexo sobre os limites de si e das con-dies ontolgicas do presente uma problematizao ereinveno constante da subjetividade. Uma liberdade ps-kantiana, neste sentido, no apenas um reconhecimentodo poder, mas uma reflexo sobre os limites do poder uma afirmao das possibilidades da autonomia individu-al dentro do poder e das capacidades crticas da subjetivi-dade moderna.

    Traduo do ingls por Anamaria Salles e Eliane Knorr deCarvalho.

    Notas1 ver Andrew Koch. Max Stirner: The Last Hegelian or the First Poststructu-ralist. Anarchist Studies 5 (1997): 95-107.2 O termo alemo Eigenheit foi traduzido para a lngua inglesa como Owness,porm tal termo inexistente no vocabulrio ingls. Nesta traduo Eigenheitser referido como Propriedade de Si, forma que consideramos mais adequa-da, lembrando que o conhecido livro de Max Stirner chama-se Einzige und SeinEigentum (O nico e a sua propriedade). (N.T.).3 Esta rejeio de fundamentos antropolgicos da liberdade discutida tam-bm por Rajchman. Na realidade Rajchman v o projeto de liberdade deFoucault como uma atitude tica de um questionamento contnuo das margense limites de nossa experincia contempornea uma liberdade da filosofia

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    assim como uma filosofia da liberdade. Minha discusso sobre a re-configura-o da problemtica da liberdade em Foucault em termos de estratgias ticasconcretas de si, tambm pode ser vista neste contexto.4 Immanuel Kant. Critique of Practical Reason. Traduo de Thomas KingsmillAbbot. London, Longmans, 1963, p. 38.5 Idem.6 Ibidem.7 Ibidem.8 Ver Lacan. Neste ensaio, Lacan mostra que a lei produz suas prprias trans-gresses, e que esta s pode operar por meio de suas transgresses. O excessode Sade no contradiz os mandatos, leis, e imperativos categricos de Kant;antes, eles esto inexoravelmente ligados a estes. Como a discusso de Fou-cault sobre as espirais do poder e prazer, na qual o poder produz o prprioprazer que este deve reprimir, Lacan sugere que a negao do gozo incor-porado na lei, no imperativo categrico produz sua prpria forma desatisfao perversa, ou um gozo a mais le plus de jouir. Sade, segundoLacan, expe este prazer obsceno revertendo o paradigma: ele torna esteperverso prazer como uma lei, uma espcie de imperativo categrico kantia-no ou princpio universal: Deixe-nos enunciar a mxima: Eu tenho o direi-to de prazer sobre o seu corpo, qualquer um pode me dizer, e eu exercerei estedireito, sem nenhum limite que me intercepte a satisfao da exatido doscaprichos. Desta forma o prazer obsceno da lei que est desmascarado emKant revertido na lei do prazer obsceno por Sade. Como Zizek aponta, emKant com (ou contra) Sade, o insight crucial do argumento de Lacanaqui no que Kant um sadista em segredo, mas ao contrrio, que Sade um kantiano em segredo. O excesso em Sade levado a tal extremo quese torna esvaziado de prazer, e toma a forma de um sangue frio, triste leiuniversal.9 Michel Foucault. Intellectual and Power: a conversation between Michel Foucault andGilles Deleuze. Foucault, Language, pp. 204-217.10 Max Stirner. The Ego and Its Own. Traduo de David Leopold. Cambridgeand London, University of Cambridge Press, 1995, p. 158.11 Idem.12 Ibidem.13 Michel Foucault. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. Traduo deAlan Sheridan. London, Penguin, 1977, pp. 195-228.14 Max Stirner, op. cit., p. 312.15 Idem., p. 213.

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    16 Ibidem.17 nota 17: Michel Foucault. Revolutionary Action: Until Now. in Langua-ge, Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews. Ed. DonaldBouchard. Oxford: Blackwell, 1977, p. 221.18 Michel Foucault. The Subject and Power. Michel Foucault: Beyond Struc-turalism and Hermeneutics. By Hubert L. Dreyfus and Paul Rabinow. Chicago,University of Chicago Press, 1982, pp. 208-226.19 Idem, p. 221.20 Michel Foucault, op. cit., 1977, p. 30.21 Michel Foucault. What is Enlightenment? The Foucault Reader. Ed. PaulRabinow. New York, Pantheon, 1984, p. 42.22 Idem, pp. 41-42.23 Michel Foucault, op. cit., 1982, p. 216.24 Ethics: Subjectivity and Truth. Essential Works of Michel Foucault, 1954-1984. Ed. Paul Rabinow. Trad. Robert J. Hurley. Vol. 1. London, Penguin,1997. p. 288.25 Idem., 1997, p. 284.26 Michel Foucault. The Use of Pleasure: The History of Sexuality, Volume 2.Traduo de Robert Hurley. New York, Pantheon, 1985, pp. 29-30.27 Michel Foucault. Kant on Enlightenment and Revolution. Traduo de ColinGordon. Economy and Society 15.1, 1986, pp. 88-96.28 Michel Foucault, op. cit. 1984, p. 46.29 Max Stirner. op. cit., p. 161.30 Idem, pp. 279-180.31 Ibidem, p. 135.32 Idem, p. 324.33 Ibidem, p. 152.34 Idem, p. 151.35 Ibidem, p. 147.

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    RESUMO

    A filosofia universalista de Kant problematizada por meio dasintensas aproximaes entre as reflexes de Max Stirner e MichelFoucault, as noes de propriedade de si e cuidado de si, e osdesdobramentos polticos de resistncias disseminando ticas deliberao. A atualidade de Stirner e Foucault ao liberarem a liber-dade da moral.

    Palavras-chave: Propriedade de si, cuidado de si, liberao.

    ABSTRACT

    The universalist philosophy of Kant is questioned when facedwith the reflections by Max Stirner and Michel Foucault, the con-cepts of property of the self and care of the self, and the politicalunfold of resistances that spreads ethics of liberation. The verveof Stirner and Foucault when they free liberty from moral.

    Keywords: Property of the self, care of the self, liberation.

    Indicado para publicao em 1 de maro de 2004.