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Salvaguardando o princípio da moralidade e a integridade da nação: a apropriação de Anchieta pelo regime militar Prof a . Dr a . Eliane Cristina Deckmann Fleck UNISINOS, São Leopoldo, RS Resumo Desde a morte de José de Anchieta, em 1597, biógrafos e historiadores têm procurado ressaltar a importância deste missionário jesuíta na formação religiosa e moral do povo brasileiro. As motivações para a instituição, em 1965, do “Dia de Anchieta”, no entanto, constitui tema ainda não abordado pela historiografia, o que justifica uma incursão analítica nos discursos e conferências que fundamentaram o processo de sua instituição e que se encontram reunidos na Coletânea Anchietana. As estratégias discursivas perceptíveis tanto no processo de construção de uma “memória” sobre Anchieta através do incremento da produção de biografias, como na apropriação do pensamento anchietano sobre os fins da política e da religião pelo regime militar são o tema deste artigo. Palavras-Chave Anchieta, Regime Militar, Memória Abstract Since the death of José of Anchieta, in 1597, biographers and historians have been outstanding the importance of this Jesuit missionary for the devotional and ethic formation of Brazilian folk. The motivations for the institution, in 1965, of “Anchieta’s Day”, remains a not attended subject by historiography, what justifies an analytic incursion in the speeches and lectures that grounded the process of his institution and meet gathered in the Collectanea Anchietana. The discursive strategies visible so much in the constructional process of a “memory” about Anchieta through the increment of the production of biographies, as in the appropriation of anchietan thought about the purposes of politics and religion by the military government are the subject- matter of this article. Keywords Anchieta, Military Government, Memory

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Salvaguardando o princípio da moralidade e a integridade da nação: a apropriação de Anchieta pelo

regime militar

Profa. Dra. Eliane Cristina Deckmann Fleck UNISINOS, São Leopoldo, RS

Resumo

Desde a morte de José de Anchieta, em 1597, biógrafos e historiadores têm procurado ressaltar a importância deste missionário jesuíta na formação religiosa e moral do povo brasileiro. As motivações para a instituição, em 1965, do “Dia de Anchieta”, no entanto, constitui tema ainda não abordado pela historiografia, o que justifica uma incursão analítica nos discursos e conferências que fundamentaram o processo de sua instituição e que se encontram reunidos na Coletânea Anchietana. As estratégias discursivas perceptíveis tanto no processo de construção de uma “memória” sobre Anchieta através do incremento da produção de biografias, como na apropriação do pensamento anchietano sobre os fins da política e da religião pelo regime militar são o tema deste artigo.

Palavras-Chave

Anchieta, Regime Militar, Memória

Abstract

Since the death of José of Anchieta, in 1597, biographers and historians have been outstanding the importance of this Jesuit missionary for the devotional and ethic formation of Brazilian folk. The motivations for the institution, in 1965, of “Anchieta’s Day”, remains a not attended subject by historiography, what justifies an analytic incursion in the speeches and lectures that grounded the process of his institution and meet gathered in the Collectanea Anchietana. The discursive strategies visible so much in the constructional process of a “memory” about Anchieta through the increment of the production of biographies, as in the appropriation of anchietan thought about the purposes of politics and religion by the military government are the subject-matter of this article.

Keywords

Anchieta, Military Government, Memory

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Introdução

[…] o Brasil permanece aberto aos evangelizadores que se disponham a seguir os ensinamentos de Anchieta, de quem se disse com justiça, que pela nossa pátria êle “deu a vida, o apostolado, a santidade”. (Discurso do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, em 09/06/1965, In.: Anchietana, 1965, p.12-13.)

Em 1965 não havia qualquer razão para homenagear o padre jesuíta José de

Anchieta, como vinha sendo feito por ocasião dos centenários de sua morte. A

ausência de motivo para celebrar não impediu, contudo, que em sessão solene

realizada no dia 9 de junho de 1965, no Teatro Municipal de São Paulo, o Senhor

Presidente da República, Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, proferisse

um discurso, dando início à série de conferências programadas pela Comissão

Nacional por ele convocada para as Comemorações do “Dia de Anchieta”:

Ao aceitar o honroso convite para presidir esta sessão, marco inicial das

comemorações do padre José de Anchieta, quis expressar o alto aprêço do

govêrno ao jesuíta cuja obra admirável de evangelização, fez dele o Apóstolo do

Brasil. Esta terra é nossa empresa, dissera Nóbrega. E ninguém melhor do que

Anchieta lhe ouviu a palavra.

Hoje, volvidos quatro séculos, a Igreja continua a ter no Brasil largo

campo de ação espiritual. Nem importa que tanto hajam mudado as condições, a

começar pela separação entre o Estado e a Igreja, pois tal circunstância tem

também contribuído para o aprimoramento das relações entre o temporal e o

espiritual. Podemos afirmar que, graças à feliz e mútua compreensão, cada qual

se conservando no seu âmbito de deveres e objetivos, suprimos graves motivos

de divergências, como ocorreu no Império, evitando que o Estado intervenha na

vida da Igreja, do mesmo modo que esta não sofre os prejuízos de se imiscuir

nas atribuições daquele. Assim, enquanto o desenvolvimento material está,

principalmente, a cargo do Estado, à Igreja cabe, sem dúvida, conquistar e

aperfeiçoar os espíritos. O que em nada impede, e até aconselha, que ajude a

ação governamental, inclusive no campo educacional.

O govêrno federal persevera no comportamento que garante os

benefícios daquela separação e conveniência dessa ajuda.

A lei e o próprio bom senso não permitem repartir atribuições financeiras,

econômicas ou mesmo educacionais, das quais os únicos responsáveis sejam

os detentores da coisa pública. Nem delegar poderes a quem não constitui um

órgão de direção ou setor operacional do aparelhamento específico do Estado.

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Assim, se porfia, não só por uma questão de responsabilidade, mas também

para se conseguir a última eficiência.

Não cabe ao Estado, por outro lado, invadir atribuições em qualquer

comunidade religiosa.

Dessa forma, temos assegurado o melhor ambiente para o govêrno

receber aquela ajuda, tão necessária e só possível de ser exercida pelo bom

pastor.

No particular das boas relações entre o espiritual e o temporal,

podemos, assim, considerar o nosso país como extraordinário exemplo para o

mundo moderno, tão cheio de lutas, restrições e mutilações. Mas, graças à

maneira por que se formou, o Brasil permanece aberto aos evangelizadores que

se disponham a seguir os ensinamentos de Anchieta, de quem se disse com

justiça, que pela nossa pátria êle “deu a vida, o apostolado, a santidade”.I

Eleito presidente da República, por votação indireta do Congresso Nacional,

em 15 de abril de 1964, o general Humberto de Alencar Castelo Branco – apoiado por

grupos da sociedadeII que fizeram da religiosidade e da família uma arma contra a

“possível intervenção comunista no Brasil” – reafirmava, através do grande evento de

1965, seu compromisso com esta parcela da população. Utilizados como um

instrumento de combate ao comunismo e para garantir a manutenção e legitimação

dos grupos conservadores no poder, os símbolos religiosos deveriam ser resgatados,

e dentre eles, Anchieta, tido como o maior exemplo de santidade do Brasil.

A importância desta figura no imaginário nacional viria a ser resgatada e

apropriadaIII pelos militares para a solidificação dos laços com uma importante parcela

da população brasileira que foi às ruas protestar contra a direção esquerdista do

governo de João Goulart e que temia pelo bem-estar de suas famílias. Este resgate

fica evidenciado no Decreto nº 55.588, de 18 de janeiro de 1965, que dispôs sobre a

instituição do “Dia de Anchieta” que “será oficialmente comemorado em todo o país na

data de 9 de junho”, cabendo ao Ministério da Educação e Cultura adotar “as

necessárias providências para dar excepcional relevo às comemorações do ‘Dia de

Anchieta’”.IV

Apresentado como o “santo símbolo de nossa nacionalidade”, “taumaturgo que

vela pela felicidade da nossa Pátria” e “ilustre construtor da nacionalidade”, por ter

salvaguardado “o princípio da moralidade em face da corrupção”, por ter alimentado “a

chama do patriotismo”, por ter repelido “as missões estrangeiras”, por ter conservado a

“unidade e integridade da nação” e por ter integrado índios e portugueses “na bela

obra que é a nação brasileira cujo batismo foi ato de suas santas mãos”, pelos

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integrantes da Comissão Nacional encarregada da promoção de atividades que

respaldariam a instituição do “Dia de Anchieta” e abrilhantariam as comemorações, o

missionário jesuíta terá sua atuação valorizada para atendimento dos interesses

sociais e motivações políticas dos ideólogos do regime militar e dos segmentos civis

da sociedade brasileira.V

O que se constata, portanto, é que as representações sobre Anchieta serão

apropriadas e difundidas com a finalidade de reforçar e impor sentidos que se

associam à moral pretendida pelo novo regime político. VI Ao assumirem o poder, os

militares reafirmaram a importância da família, da religião e da moral. Portanto,

ninguém melhor do que Anchieta para ser apresentado como exemplo destes valores.

Além da proposição de comemorações alusivas ao missionário jesuíta, o

evento revela a intenção do estabelecimento de uma espécie de parceria entre Igreja e

Estado e reforça o papel de cada uma destas instituições na sociedade, sem que uma

necessariamente interfira nos assuntos de outra. Quem melhor do que a Igreja para

reforçar a importância dos valores cristãos ameaçados pelo comunismo?VII Quem

melhor do que Anchieta como modelo perfeito de cristão?

A instituição, em 1965, do “Dia de Anchieta” constitui tema ainda não abordado

pela historiografia, VIII razão pela qual entendemos como plenamente justificada uma

incursão analítica nos discursos e conferências realizados por ocasião do decreto de

09 de junho de 1965 que se encontram reunidos na Coletânea Anchietana. IX

No Prefácio dessa Coletânea, Julio de Mesquita Filho apresenta o programa

que deveria ser desenvolvido pela Comissão Nacional convocada por Castelo Branco

para as comemorações do “Dia de Anchieta”. Presidida pelo próprio Mesquita Filho,

integravam a Comissão o Dr. Aureliano Leite, o Prof. Eurípides Simões de Paula, o Dr.

João Fernando de Almeida Prado, o Dr. César Salgado, o Dr. Marcio Neme e a Sra.

Lúcia Falkenberg. Foram também convidadas personalidades importantes da

intelectualidade brasileira, assim como representantes do mundo cultural hispânico

para proferirem uma série de conferências, cujo tema central seria a figura de

Anchieta.

No discurso proferido por Mesquita na sessão de abertura das Conferências

realizada no Teatro Municipal de São Paulo, no dia 9 de junho de 1965, fica evidente

sua posição no contexto político de deposição do presidente João Goulart:

Atravessam o País e o mundo um dos instantes mais graves da História.

Dentro da grande Revolução que se processa por tôda parte, vive o Brasil

aquela que, sob a chefia do Exmo. Sr. Marechal Castelo Branco, nos levou à

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vitória de 31 de março. Se aceitou S. Excia. o encargo de conduzir a Nação ao

campo em que se feriria o último embate entre a liberal democracia e aquêles

que desejavam arrastá-la para a órbita dos países em que nos últimos cinqüenta

anos se implantaram regimes inspirados no materialismo dialético, foi porque

jamais duvidou dos sentimentos profundos da nossa coletividade.

É, pois, um ato de afirmação que neste instante participamos –

afirmação que se traduz no propósito em que está a Revolução de permanecer

fiel àquele humanismo cristão que nos legou Anchieta e que a subversão

comuno-nacionalista pretendia banir da nossa comunhão.

[...] temos nós a convicção de que a luta em que nos empenhamos, integrados

na humanidade cristã, contra as potências das trevas que, a tôda fôrça,

pretendem apagar da terra a lembrança da civilização mediterrânea, se decidirá

a nosso favor. Eles não lograrão o seu sinistro intento. A experiência de 2.000

anos vividos à sombra de Roma eterna não poderá desaparecer ante a ofensiva

dos que querem substituir as leis do espírito, no seu sentido mais alto, por

aqueles, que regem o universo formal da matéria. X

Os excertos extraídos do discurso proferido por Julio de Mesquita Filho não

somente apontam para um diagnóstico das intenções do governo militar com a

instituição do “Dia de Anchieta” como atestam a plena identificação de propósitos.

Mesquita Filho era o proprietário do jornal O Estado de São Paulo, jornal que servia de

órgão de divulgação da propaganda anticomunista e anti-Goulart promovida pelas

organizações patrocinadas pelo IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais). Além

disso, era irmão de Antonieta Pellegrini, presidente da entidade feminina paulista

conhecida como MAF (Movimento de Arregimentação Feminina), um dos grupos

empenhados no desgaste e, posterior deposição, do governo Goulart.

As mulheres, como sabido, desempenharam um importante papel nesta

mobilização. As que se destacaram eram, geralmente, esposas ou parentes próximas

de líderes do IPES. Incentivadas e auxiliadas por seus maridos ou irmãos,

organizaram sua ação política apoiadas em sua religiosidade, seu moralismo e medo

da desagregação de suas famílias. Dona Eudóxia Dantas, que chegou a ocupar o

cargo de presidente da CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia), da

Guanabara, era esposa do ipesiano José Bento Ribeiro Dantas. Referindo-se à

motivação de sua ação política, ela afirmou que “sentiu na carne o perigo que

representava para a sua família e para a religião. E foi daí o verdadeiro impulso que

nós tivemos, sentimos que nós íamos perder tudo isso. Com uma ideologia comunista,

você não se pertence mais. Você pertence ao Estado. Portanto, o Estado toma conta

da vida e a religião é abolida”.XI

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Dentre as várias iniciativas culturais promovidas pela Comissão Nacional

destaca-se o Concurso Literário para obras sobre José de Anchieta; a organização,

por sugestão do Papa Paulo VI, de uma coletânea com a obra completa de Anchieta

que se denominou Monumenta Anchietana e, por fim, o patrocínio do traslado, de

Roma para São Paulo, de uma relíquia do Padre José de Anchieta.

A presença de um representante do Papa, o padre Molinari, conhecedor do

processo de beatificação de AnchietaXII na sessão de abertura das comemorações, é

destacada por Mesquita Filho:

[...] no intuito de emprestar às comemorações o caráter de uma decisiva

contribuição à campanha em prol da beatificação de Anchieta dirigiu-se à Santa-

Sé, rogando-lhe que indicasse um representante seu para figurar entre aqueles

que estariam presentes nos festejos em organização. E foi com desvanecimento

que, em resposta à solicitação, recebeu, logo a seguir, o nome do padre Molinari

– o grande estudioso que no processo em curso no Vaticano desempenha o

papel entre todos delicado de postulador da beatificação de José de Anchieta. XIII

Acreditamos, no entanto, que este não tenha sido o único e mais importante

objetivo da programação, pois além desta série de conferências promovidas pela

Comissão, foram estimulados trabalhos na área de cinema e teatroXIV, como referido

no Prefácio redigido por Mesquita Filho:

Em convênio com o setor de cinema da Universidade Nacional de

Brasília, a Comissão subvencionou a realização de uma fita sobre o padre José

de Anchieta a que será assegurada a mais larga divulgação, inclusive com

exibições nas escolas. Em convênio com a Escola de Arte Dramática de São

Paulo estabeleceu-se que a Comissão subvencionaria representações públicas

de autos de Anchieta. XV

Em nenhum momento, Julio de Mesquita Filho esclarece o propósito destas

iniciativas, a não ser quando se refere à causa da canonização. O próprio decreto é

muito vago em relação aos objetivos específicos do governo em relação ao “Dia de

Anchieta”, limitando-se à sua instituição.

Neste artigo, contudo, nos deteremos na análise das estratégias discursivas

que perpassam a produção de biografiasXVI sobre José de Anchieta, no período que se

estende do século XVI ao XX, com o intuito de desvendar as razões para o crescente

interesse em Anchieta no período imediatamente anterior e posterior ao golpe militar

em 1964.

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Em busca de um modelo perfeito de cristão.

No início de 1964, o presidente João Goulart havia dado início à instituição de

reformas através de decretos, que foram anunciadas em grandes comícios. O primeiro

destes comícios foi o “Comício da Central” realizado no dia 13 de março em frente à

Estação da Central do Brasil no Rio de Janeiro e no qual participaram cerca de 150 mil

pessoas para ouvir a palavra de Jango e Brizola.

Neste comício, Goulart também condenou o uso dos símbolos religiosos para a

arregimentação política, afirmando que “os rosários não podem ser levantados contra

a vontade do povo e suas aspirações mais legítimas”. A referência condenatória feita

por Goulart ao rosário foi o pretexto para o engajamento de milhares de pessoas nas

marchas, sendo que “o motivo encontrado para se mobilizar amplos setores da

população contra o governo e as reformas foi um suposto ‘movimento de desagravo

ao rosário’ que teria sido ‘insultado’ pelas palavras do presidente”.XVII

Logo após o Comício da Central, a direita começou a se articular e a organizar

as marchas que teriam seu maior momento de expressão com a Marcha da Família

com Deus pela Liberdade, que tomou as ruas do centro de São Paulo no dia 19, em

resposta ao ato de 13 de março. Esta Marcha teria sua semente num movimento

protagonizado pelo padre americano Patrick Peyton, enviado ao Brasil pelo governo

dos Estados Unidos e que deu início no Brasil à “Cruzada do Rosário em Família”.

Esta cruzada de alcance mundial já havia levado milhares de pessoas às ruas em

nome da obsessão pelo rosário. Os discos em que o padre rezava 15 Padre-Nossos e

15 dezenas de Ave-Marias, juntamente com artistas de cinema, figuravam entre os

mais vendidos na época e, devido ao seu gosto por multidões e holofotes, era também

conhecido como “o padre de Hollywood”.

Com grande poder de apelo junto à população católica brasileira, reunindo

500.000 pessoas, em Belo Horizonte, e 1.000.000, no Rio, “as concentrações

realizadas pela Cruzada do Rosário em Família não deixaram de ser uma preparação

ou um ensaio para as ‘Marchas da Família com Deus pela Liberdade’”XVIII.

Em fevereiro de 1964, o rosário era lançado como símbolo das manifestações

femininas. As mulheres da LIMDE (Liga da Mulher Democrata) de Minas Gerais

ocuparam o palco do auditório da Secretaria da Saúde local, onde Leonel Brizola

proferiria discurso em defesa das reformas de base. Exibindo terços, velas e imagens

“As mulheres puseram-se a rezar, transformando o palco num ‘altar para a exorcização

do anticristo Brizola’”XIX. A partir de então, o rosário seria utilizado pelas mulheres

como o grande símbolo do movimento anticomunista.

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A Grande Marcha teria sido articulada na Feira do Couro que acontecia no

Parque Ibirapuera, em São Paulo. Logo após o Comício da Central, Cunha Bueno

recebeu do deputado Edgar Batista Pereira, a sugestão de procurar a Irmã Ana de

Lurdes, freira psiquiatra do hospital São Paulo e neta de Ruy Barbosa, que lhe deu a

idéia do “movimento de desagravo ao rosário”. Inspirada nas marchas realizadas pelo

padre Peyton, Ana de Lurdes sugere a organização deste movimento para 19 de

março, dia em que se comemora o dia de São José, padroeiro da família. A proposta

da Irmã Ana viria a se encaixar perfeitamente nas estratégias de mobilização popular

contra Jango.

A imprensa estimou em meio milhão os participantes da Marcha, número que é

contestado por muitos historiadores. Mas, apesar de não haver consenso em torno do

número de participantes, pode-se dizer que se tratou da maior manifestação da direita

até então. Vários discursos foram proferidos em frente à catedral. Entre eles,

destacamos o do senador Pe. Calazans:

Hoje é o dia de São José, padroeiro da família, o nosso padroeiro. Fidel

Castro é o padroeiro de Brizola. É o padroeiro de Jango. É o padroeiro dos

comunistas. Nós somos o povo. Não somos do comício da Guanabara,

estipendiado pela corrupção. Aqui estão mais de 500 mil pessoas para dizer ao

presidente da República que o Brasil quer a democracia, e não o tiranismo

vermelho. Vivemos a hora altamente ecumênica da Constituição. E aqui está a

resposta ao plebiscito da Guanabara: Não! Não! Não!.XX

A professora Carolina Ribeiro, ex-secretária da Educação, orou ao microfone

por São Paulo e pelo Brasil e a multidão presente acompanhou a oração do Pai-

Nosso, seguida da Ave-Maria. Depois da oração, a Sra. Ribeiro proferiu as seguintes

palavras: “Temos que pedir a Deus, neste momento em que nossos corações fervem

de indignação, que não caiamos na tentação da revolta, porque só a Deus compete

levar-nos pelo caminho certo”. Ciro Albuquerque, presidente da Assembléia Legislativa

Paulista, prosseguiu, afirmando que “A liberdade é como saúde: somente lhe damos

valor depois que a perdemos. Queremos paz, tranqüilidade. E, sobretudo, exigimos

respeito à Constituição e às instituições democráticas”. Continuando, conclamou os

membros das casas legislativas brasileiras a “estudar as reformas, que o povo deseja

e merece, mas que devem ser feitas dentro do respeito à soberania do Congresso

Nacional” XXI. Várias outras personalidades se pronunciaram como o deputado Arnaldo

Cerdeira, o Sr. Amaro César, o deputado Everardo Magalhães, representante da

delegação da Guanabara, os deputados Plínio Salgado, Cunha Bueno, Herbert Levy,

além de outros representantes de diversos Estados brasileiros.

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Nos discursos realizados por ocasião das Marchas não são apresentados

projetos político-econômicos alternativos. Simplesmente reforça-se a idéia do perigo

que o regime comunista representaria para a Nação, atrelando-se claramente o

governo de Jango com a implantação deste regime no país. A Grande Marcha de São

Paulo não foi a única grande manifestação da direita neste período. Em vários Estados

e cidades brasileiras foram organizadas marchas. Algumas antecederam o golpe e

outras o sucederam, buscando legitimar a intervenção militar. Ao que parece, as

“Marchas do Rosário” foram um importante estímulo para a intervenção militar, pois

eram tidas como uma prova de que as senhoras católicas do Brasil estavam

descontentes com o governo de João Goulart.

Após março de 1964, o governo militar se empenharia justamente em atender

aos apelos fortemente assentados na religiosidade, na moral e na integridade da

família brasileira feitos por diversos segmentos da sociedade, sobretudo, dos grupos

femininos que desempenharam um importante papel político no período que

antecedeu o golpe.

Um missionário, muitas biografias.

José de Anchieta deixou Portugal, aos dezenove anos, numa expedição que

partiu para o Brasil em 1553. Doente, seguiu a recomendação de buscar os ares

saudáveis da América, onde permaneceu por mais de 44 anos. Foi um escritor prolixo,

entre tratados, relatos, cartas, poesias e autos teatrais, produziu uma documentação

rica em possibilidades para a pesquisa histórica. Em seus escritos figuram descrições

sobre a natureza americana, sobre seus habitantes e, especialmente, sobre as

condições adversas impostas por um território que urgia ser povoado, cristianizado e

incorporado ao projeto expansionista português.

Embora a catequese e o comportamento dos índios tenham sido as

preocupações centrais de Anchieta, a conduta moral e religiosa dos colonos assumiu

importância em seus sermões, cartas e demais trabalhos, nos quais destacava a

missão providencialista da qual estava imbuído e a legitimidade do uso da força contra

os infiéis ou hereges que comprometiam o sucesso da empresa da conversão. A

concepção política e religiosa medieval – que facultava o uso da força contra os infiéis

– desfrutava de pleno consenso no pensamento anchietano, o que fica evidenciado na

percepção de que Deus intervinha e agia em favor dos interesses católicos. O

pensamento anchietano, assim como o medieval, não via fronteira nítida entre os fins

da política e os da religião, aproximava e estabelecia o diálogo entre o mundano e o

espiritual, subordinando o primeiro ao último.

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Anchieta viveu e agiu em nome de um Deus único, presente, militarizado,

direcionando a guerra e o governo para Deus. Personagens pervertedores e diabólicos

foram constantes nos Autos anchietanos, nos quais é exposta uma bipolaridade

maniqueísta: os inimigos são os demônios que encarnam o pecado, os costumes

antigos e os vícios, enquanto Deus é apresentado como aliado e amigo. Por

decorrência, Anchieta percebia o missionário como instrumento da ação do Senhor

que “por sua misericórdia e bondade infinita quer seduzir algumas ovelhas perdidas ao

rebanho de sua Igreja e isto não com pequeno trabalho que com eles temos,

predicando-lhes continuamente e trazendo-os por quantas vias podemos”XXII. Aos

pecadores, ressaltava a importância da punição para a salvação e a redenção,

destacando os benefícios da confissão e da comunhão.

As biografias produzidas sobre José de Anchieta nos séculos XVI, XVII e XVIII

são muito semelhantes em sua forma narrativa. Seguindo uma ordem cronológica, os

autores simplesmente expõem fatos relevantes da vida do biografado sem se

preocupar em analisar sua atuação dentro de uma estrutura histórica mais ampla.

Como exemplo deste tipo de narrativa, podemos citar as biografias produzidas pelos

padres Quirício Caxa, Pero Rodrigues e Simão de Vasconcelos.

Nos séculos XVIII e início do século XIX, constata-se a ausência de produções

e publicações sobre a vida de Anchieta, decorrente, em grande medida, da expulsão

dos jesuítas, ocorrida em 1759, durante a administração pombalina. A supressão da

Ordem também prejudicará o andamento do processo de canonização de Anchieta

que havia se iniciado logo após a sua morte em 1597.

No século XIX, é perceptível a preocupação em empregar um método científico

mais rigoroso na produção historiográfica, o que se refletirá nas narrativas que

incorporarão minuciosos estudos documentais. Esta é a preocupação, por exemplo, do

Pe. Hélio Abranches Viotti ao escrever “Anchieta: o apóstolo do Brasil”.

Em fins do século XIX e início do século XX percebe-se uma significativa

mudança, pois Anchieta passa a ser lembrado por seu importante desempenho na

formação da identidade nacional brasileira. Desde meados do século XIX predominava

no discurso historiográfico o tema relativo à questão nacional. A fundação do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, é indicativa desta necessidade de

construção da idéia de nação brasileira que “não se assenta sobre uma oposição à

antiga metrópole portuguesa; muito pelo contrário, a nova Nação brasileira se

reconhece como continuadora de certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização

portuguesa”XXIII .

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Segundo esta visão, os missionários jesuítas desempenharam um importante

papel na tarefa civilizadora e contribuíram de forma decisiva para a formação da nação

brasileira. Daí, a ênfase dada à vida e à obra de Anchieta nesse período. Na

perspectiva de difundir a construção da idéia de nação, o Instituto Histórico Geográfico

Brasileiro abriu espaço às biografias, consideradas importantes por fornecerem

exemplos às gerações vindouras e valiosas por contribuírem para a construção da

galeria dos heróis nacionais. As comemorações de centenários, especialmente de

fatos relevantes da nossa história ou do nascimento e morte de “heróis nacionais”

passam a ser também comuns a partir de então.

Em 1897 ocorreram, pela primeira vez, as comemorações do III Centenário da

morte do Padre José de Anchieta. Nessa ocasião foram realizadas várias conferências

públicas sobre o trabalho missionário de Anchieta e sobre seu tempo. Entre elas

destacamos: “O Catolicismo, a Companhia de Jesus e a colonização no Brasil”, pelo

Dr. Eduardo Prado; “São Paulo no tempo de Anchieta”, pelo Dr. Theodoro Sampaio;

“Sublimidade moral de Anchieta. Exposição e análise do processo da sua

beatificação”, pelo Cônego Manuel Vicente da Silva entre outras. A importância da

comemoração é apresentada pelo Cônego Vicente da Silva:

Rememorar as virtudes dos mortos, relembrar os feitos humildes, mas

grandiosos, a dedicação, o sacrifício, o esforço, de que encheram sua vida, em

benefício da pátria, em benefício da humanidade, é dever sagrado, cujo

cumprimento se torna fecundo e salutar. Nota-se que há, em nossos dias, um

sentimento único a este respeito. Estão todos de accôrdo em fazer solemnisar

os centenários dos grandes homens e das grandes descobertas. O nosso paiz

não podia escapar a este movimento dos povos civilizados.XXIV

Nem todas as conferências preparadas para a festa do III Centenário de morte

do Padre José de Anchieta, puderam ser pronunciadas. Uma anotação nas primeiras

páginas do exemplar consultado esclarece ou pelo menos aponta para alguns indícios

que podem ajudar a explicar a interrupção deste evento:

Aos dignos Irmãos e imitadores do Vel. P. Joseph de Anchieta, em a

Província do Rio Grande, offerece esta recordação das festas commemorativas

do centenário do Apóstolo do Brazil, em parte não realisadas, devido a acção

diabólica do governo republicano, mação e positivista: um antigo aluno do

Collégio da Imm.da Conceição.XXV

Em relação às biografias produzidas no século XX, principalmente aquelas que

foram produto do Concurso Literário promovido pela Comissão Nacional das

comemorações do “Dia de Anchieta”, constata-se que os autores reforçam a

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religiosidade e a moralidade em Anchieta. A ênfase dada a estes aspectos pode ser

compreendida quando analisamos o contexto histórico desta produção. O medo do

comunismo levava milhares de pessoas à rua, que em defesa da religião e da

integridade da família, apoiavam e legitimavam o golpe militar. É notório o interesse

em Anchieta neste período, resultando em inúmeras publicações ou reedições de

biografias.

A primeira biografia de Anchieta se intitula “Breve relação da vida e morte do

Padre José de Anchieta” e foi produzida logo após a sua morte em 9 de junho de

1597, mais especificamente, no ano de 1598, por Quirício Caxa. Incumbiu-o desta

tarefa o Padre Pero Rodrigues, Provincial de então, ciente da importância de Anchieta

no trabalho de missionação realizado no Brasil. Serafim Leite, referindo-se a Caxa no

prefácio da obra “Páginas de História do Brasil”, publicada em 1937, afirma que a

“Breve Relação” que nos legou “é utilíssima para fixar o processo de santidade de

Anchieta” e que ele “dirigia-se aos de sua ordem para que com o exemplo do grande

morto procuremos ser fiéis a Deus e verdadeiros filhos da Companhia”XXVI.

Da “Breve Relação” existem três cópias manuscritas que se encontram na

Biblioteca do Porto, na Biblioteca da Ajuda e outra no Arquivo Romano da Companhia

de Jesus. Serafim Leite publica pela primeira vez esta biografia em 1934. Na obra

“Páginas de História do Brasil”, Leite reproduz a biografia editada em 1934 em

homenagem ao quarto centenário de nascimento do Pe. Anchieta. No Prefácio dessa

obra podemos ler: “Dado o valor intrínseco deste precioso documento resolvemos

publicá-lo. Será também a nossa homenagem a Anchieta neste quarto centenário do

seu nascimento. Cremos que não nos fica mal recordar esta data, tão celebrada no

Brasil”XXVII.

Além das edições publicadas por Serafim Leite existem outras publicadas

posteriormente. A oitava edição, que é parte de uma coleção conhecida como

“Monumenta Anchietana – obras completas do Pe. José de Anchieta” foi recomendada

pelo Papa Paulo VI por ocasião da instituição do Dia de Anchieta, em 9 de junho de

1965. Em discurso proferido por Julio de Mesquita Filho, na abertura das Conferências

realizadas nesta ocasião, podemos ler:

Quando da chegada do padre Molinari, soube por ele a Comissão que,

S. S. o Papa Paulo VI lhe lembrara que, para maior relevo do Ano Anchietano,

seria interessante assinalá-lo com a edição das obras completas do suave

apóstolo do Brasil. Dando a atenção devida a tão feliz sugestão, deliberamos

entrar em contacto com a Universidade de São Paulo, instituição que nos

parecia a todos nós ser, pela sua própria natureza, a mais indicada para levar a

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bom termo o desejo do Sumo Pontífice. Não seria necessário dizer que foi com

grande satisfação que o Magnífico Reitor do nosso principal instituto de ensino

superior se colocou incondicionalmente à disposição dos que o procuraram,

tomando desde logo as providências necessárias para que ainda neste ano seja

oferecida ao mundo culto a edição das obras completas do patrono da

nacionalidade brasileira.XXVIII

Esta edição, segundo o Pe. Hélio Abranches Viotti, S. J., tem como base a

cópia existente no Arquivo Romano da Companhia de Jesus que foi levada para a

Europa pelo Pe. Fernão Cardim no ano de 1600. Poucos anos depois da produção da

primeira notícia biográfica sobre Anchieta, o próprio Pe. Pero Rodrigues, a pedido do

então Provincial do Brasil, Fernão Cardim, se dedica à tarefa de escrever uma

biografia sobre o jesuíta. Produzida no início do século XVII serviu de fundamento a

muitas outras biografias publicadas na Europa ao longo do mesmo século.

No Brasil, a biografia escrita por Pero Rodrigues foi publicada pela primeira vez

em 1955, pela Livraria Progresso Editora da Bahia. Para fins do levantamento

representativo das biografias produzidas sobre o Pe. José de Anchieta, S. J. utilizamos

a segunda edição que faz parte da mesma coleção que a “Breve Relação” de Caxa -

Monumenta Anchietana – obras completas do Pe. Jose de Anchieta. Para esta edição,

segundo o Pe. Hélio Abranches Viotti S.J., serviu como base principal o manuscrito de

Lisboa. Além desta, existem outras duas cópias, uma em Évora e outra, ainda, no

Arquivo da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

A “Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus” escrita pelo Pe.

Pero Rodrigues encontra-se organizada em quatro livros. A primeira parte ou Livro

Primeiro trata da vida do Padre Anchieta. Serve de base fundamental a esta primeira

parte a biografia escrita por Quirício Caxa. Por vezes, temos a impressão de estarmos

lendo a mesma obra, apesar de a narrativa de Pero Rodrigues ser um pouco mais

densa ou detalhada. No Livro Segundo, o Pe. Rodrigues apresenta as virtudes do

Padre José de Anchieta. Este Livro possui, também, uma proximidade muito grande

com o décimo segundo capítulo da notícia biográfica de Caxa, intitulado “De algumas

virtudes que mais se enxergam no Padre José”. Rodrigues, no entanto, amplia a

importância destas virtudes, apresentando uma série de exemplos práticos.

Em relação às biografias produzidas no século XVII, destacamos a obra do

Padre Simão de Vasconcelos já referida anteriormente. A biografia produzida por este

autor pertence à série de biografias de Anchieta publicadas na Europa a partir da obra

de Pero Rodrigues. A primeira edição da “Vida do Venerável Padre José de Anchieta”

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de Simão de Vasconcelos foi impressa em Lisboa no ano de 1672. A segunda edição

foi publicada em 1943, no Rio de Janeiro, pela editora Imprensa Nacional.

“A Vida do Venerável Padre José de Anchieta” encontra-se dividida em dois

volumes. O primeiro formado por três livros e, o segundo, por quatro livros. Assim

como Quirício Caxa e Pero Rodrigues, Vasconcelos segue uma ordem cronológica na

exposição dos fatos relativos à vida do seu biografado. Introduz cada um dos livros

situando-o cronologicamente. Impressiona na obra de Vasconcelos o detalhismo da

narrativa como evidenciado no Livro Segundo, no qual o autor descreve

minuciosamente as diversas batalhas entre tamoios e tupis que resultaram na

expulsão dos franceses do Rio de Janeiro. Além desta paticularidade da narrativa, a

leitura desta obra nos causa a impressão de que nenhum fato ocorre naturalmente,

tudo é relegado a um plano divino, estando envolto numa aura mística. O Anchieta

apóstolo cede lugar a um Anchieta profeta e operador de maravilhas. Enquanto Pero

Rodrigues dedica dois livros de sua obra às profecias e milagres realizados em vida

por Anchieta, a obra de Vasconcelos, diferentemente, está repleta de fenômenos

sobrenaturais que acompanham toda a trajetória de Anchieta e não cessam com a sua

morte.

Simão de Vasconcelos não encerra sua narrativa com a morte de Anchieta. O

Livro Sexto é todo dedicado à exposição de milagres operados através do contato com

alguma relíquia do missionário jesuíta. Sobre as fontes documentais utilizadas na

elaboração deste Livro, o autor informa que “Tudo o que disser, será tirado de

processos autênticos, ou dos que foram originados por ordem na santa sede

apostólica, em ordem à sua canonização, ou doutros processados nos tribunais dos

bispos e ordinários”XXIX. Esta imprecisão ou ausência na referência das fontes

documentais é evidente em toda a obra de Vasconcelos. Seu objetivo, talvez, não

tenha sido o de produzir uma obra histórica, mas, contribuir no andamento do

processo de beatificação e canonização solicitado à Santa Sé por jesuítas da Bahia no

ano de 1617. Somente em 1736, no entanto, a Santa Sé, por decreto do papa

Clemente XII, concede a Anchieta o título de Venerável, o primeiro passo para sua

beatificação.

As obras que destacamos não apresentam muitas distinções, já que os autores

não fazem muito mais do que reproduzir biografias anteriores. O discurso apologético,

no entanto, é muito mais evidente na obra de Simão de Vasconcelos, o que pode ser

justificado pela intenção que o autor tinha ao redigir sua obra que era contribuir para o

processo de canonização de Anchieta.

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O levantamento bibliográfico preliminar das biografias de Anchieta nos fez

constatar uma ausência de produções ou publicações brasileiras nos séculos XVIII e

XIX. Possivelmente esta ausência esteja relacionada a uma das medidas efetivadas

pela administração pombalina no Brasil: a expulsão dos jesuítas no ano de 1759. A

ausência de produções biográficas neste período pode ser também explicada pelo

redirecionamento das publicações dos missionários jesuítas exilados e que se

caracterizaram, sobretudo, pela defesa da América e da atuação da Companhia de

Jesus entre os indígenas americanos.

A única biografia deste período da qual temos conhecimento é intitulada “Vida

do Venerável Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus” produzida por Charles

Sainte-Foy. A primeira edição em português é publicada em São Paulo, pela Editora

Jorge Seckler, no ano de 1878. No prefácio, o autor francês , justifica a produção de

sua obra, chamando a atenção para aqueles que consideram a Companhia de Jesus

como uma ordem religiosa dedicada somente às missões, à pregação e ao magistério,

sem considerar a importância da contemplação e da santidade para os membros desta

ordem. Com o intuito de preencher esta lacuna, Sainte-Foy escreve uma biografia de

Anchieta, justificando que era um “homem incomparável que soube tão bem unir a

vida mais activa á mais sublime contemplação, e cuja longa carreira é um tecido de

continua oração e milagres que, há menos de três séculos, nos fazem lembrar os

maiores thaumaturgos dos primitivos tempos da Egreja”XXX.

Pouco difere, no entanto, esta biografia daquelas que já relacionamos.

Podemos considerá-la menos apologética do que a obra de Vasconcelos, observando,

no entanto, a mesma forma narrativa e desenvolvimento linear na apresentação dos

fatos importantes relativos à vida de Anchieta. Esta obra, contudo, torna-se valiosa

para nossa investigação por apresentar encartado na edição o “Decreto de

Beatificação e Canonização do Venerável Servo de Deus, José de Anchieta, sacerdote

e religioso professo da Companhia de Jesus”:

Aos trinta e um de Julho do corrente anno de 1736, em presença de

Nosso Sancto Padre o Papa Clemente XII, teve logar a Congregação Geral dos

Ritos na qual o Reverendíssimo Senhor Cardeal Imperiali propoz a causa de

beatificação e de canonização do Venerável Servo de Deus, o P. José Anchieta,

religioso professo da Companhia de Jesus. Nesta Congregação se propoz o

seguinte quesito. “Se consta das virtudes theologaes e cardeaes do Venerável

Servo de Deus, no caso e para o effeito de que se tracta”. Sua Sanctidade,

depois de ouvir os votos dos Consultores e Reverendissimos Senhores

Cardeaes, julgou que era melhor, segundo o costume, differir a solução da

presente duvida, e invocar primeiro, tanto com suas supplicas como com as dos

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outros, o especial auxilio do Pae das Luzes. Depois do que, chamando Sua

Sanctidade, neste dia, consagrado a S. Lourenço, ao Reverendo Padre Luiz de

Valentibus, Promotor da fé, e a mim, Secretário abaixo assignado, ordenou que

se desse resposta affirmativa à dúvida proposta, e que se declarasse:

Constar das virtudes do Venerável Servo de Deus, José Anchieta, em

grao heróico, no caso e para o effeito de que se tracta, tanto das Virtudes

theologaes a saber: fé, esperança e caridade; como das cardeaes, prudência,

justiça, fortaleza e temperança.

Passado a 10 de Agosto de 1736

A. F. Cord. Zondadari, Pref.

T. Patriarcha de Jerusalém

Secretário da Sagrada Congregação dos RitosXXXI

Este decreto resultou de um processo que se iniciou no começo do século XVII

a partir da solicitação de beatificação e canonização encaminhada pelos padres

jesuítas da Bahia à Santa Sé. Mais adiante, no século XX, ocorrerá uma intensificação

desse movimento, culminando na instituição do “Dia de Anchieta”, em 9 de junho de

1965.

A versão para o português da obra de Sainte-Foy é dedicada ao então bispo de

São Paulo, D. Lino Deodato Rodrigues de Carvalho. Na dedicatória, escrita por um

tradutor anônimo, podemos ler:

A subida veneração que V. E. R. professa ao inclyto Apostolo do Brasil, o

Venerável P. JOSÉ ANCHIETA, da Companhia de Jesus, e o ardente desejo que

tem de ver concluída a causa de beatificação desse benemérito Servo de Deus;

animaram-me a dedicar a V. E. R. esta vida do mesmo Venerável Anchieta,

composta em francez por Mr. Sainte-Foy, e por mim vertida em portuguez. XXXII

Continuando, o tradutor ressalta que seu “fim único ao fazer esta traducção foi

avivar em meus conterrâneos a memória de nosso Apostolo, cujas virtudes já foram,

por decreto da S. Egreja, qualificadas de heróicas; e ao mesmo tempo despertar

n’elles o reconhecimento e veneração que todos os brasileiros lhe devemos”XXXIII.

Se a publicação das primeiras biografias, mais especificamente das biografias

produzidas por Quirício Caxa e por Pero Rodrigues, tinha como principal objetivo

resgatar a vida do jesuíta Anchieta para que esta servisse de exemplo a outros

membros da Companhia, as produções e publicações posteriores evidenciam um

especial interesse na divulgação das profecias e milagres realizados por Anchieta com

fins de sua beatificação e canonização.

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Pela formação cristã da nacionalidade brasileira

De todas as biografias produzidas no século XX, acreditamos que mereça ser

destacada a obra do Pe. Helio Abranches Viotti, S. J., intitulada “Anchieta – o apóstolo

do Brasil”, premiada com o primeiro lugar no Concurso Literário promovido pela

Comissão Nacional das Comemorações do Dia de Anchieta, instituído em 1965. Esta

biografia diferencia-se das anteriores pelo emprego de um rigoroso método científico e

pela vasta documentação em que se apóia o Pe. Viotti. Tudo o que escreve é fruto de

um minucioso estudo documental, as fontes utilizadas são constantemente referidas

ao longo de seu trabalho. As apologias, por exemplo, dão lugar a uma descrição dos

depoimentos prestados nos processos, realizados entre 1602 e 1628, para a

beatificação do Apóstolo do Brasil. Sua intenção com a produção desta obra fica

evidenciada no prólogo da segunda edição:

Divergimos de seus biógrafos antigos, […] procurando oferecer, a

propósito desses fatos miraculosos, que de quando em quando afloram na

nossa narrativa, os elementos humanos de credibilidade. […] Queremos crer

que, desta nossa tentativa, surja um Anchieta mais humano e mais ligado

historicamente aos empolgantes sucessos da formação cristã da nacionalidade

brasileira [...]. XXXIV

Ressaltando suas posições teóricas e o rigor metodológico empregado em sua

investigação sobre a vida de Anchieta, o Pe. Viotti afirmou:

As filosofias materialistas mutilam completamente a explicação histórica

do progresso humano, ao reduzir seus fatores todos – naturalmente correlativos

à complexidade de nossa natureza – ao fator econômico exclusivamente. A

verdade é que a própria prosperidade econômica depende também de fatores

de ordem moral. O desenvolvimento do Brasil nesse primeiro século está

claramente vinculado ao seu progresso moral. E este, não menos claramente,

ao influxo religioso.XXXV

Dentro desta perspectiva moralizante, Viotti analisa a atuação da Companhia

de Jesus e, mais especificamente, de Anchieta num momento em que estavam

presentes os acontecimentos que levaram ao golpe de 64. Com o golpe saíram

vitoriosas as forças da direita que se mobilizaram contra o governo nacional-reformista

de João Goulart.

No capítulo 23, contudo, o Pe. Hélio Abranches Viotti, inova ao fazer um estudo

sobre a produção literária do Padre José de Anchieta, pouco evidenciada nas outras

biografias. Ao contrário, o biógrafo aprofunda o estudo, analisando, por exemplo,

excertos do Poema “De Beata Virgine Dei Matre Mariae”, através dos quais destaca a

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intensa devoção deste jesuíta à Virgem Maria. São apresentadas, também, outras

composições de Anchieta e das quais ele se utilizou em seu trabalho de missionação:

Com suas composições populares, oferecia ao povo simples e rude, que

se ia forjando aqui pela fusão de três raças diferentes – fusão moral e religiosa

antes que qualquer outra – interessantes espécimes de uma poesia ingênua, de

cunho eminentemente popular, pábulo artístico que a todos instruísse e

deleitasse, elevando as almas, recalcadas pela mesquinhez do ambiente, para

os ideais sublimes do cristianismo.XXXVI

Ainda em relação a esta obra, merece ser destacado o último capítulo em que

o autor faz um estudo exaustivo, dedicando-se a investigar o paradeiro das relíquias

do Padre Anchieta. Considerando que uma das realizações da Comissão Nacional das

Comemorações do Dia de Anchieta foi o traslado de uma dessas relíquias ao Brasil

transcrevemos o trecho no qual o Pe. Viotti se refere a esse fato:

Para Roma, por ordem de Cláudio Acquaviva, seguiu em 1609, quiçá no

ano seguinte, um dos fêmures, até há pouco ali existentes na Cúria Generalícia

dos jesuítas, e que nos foi restituído ao Brasil, devendo guardar-se no

Monumento Histórico da Fundação de São Paulo, no Pátio do Colégio.XXXVII

Além do Pe. Viotti, outros autores também se ocuparam deste tema durante o

século XX, como Álvaro do Amaral. Sua obra, “O Padre José de Anchieta e a

Fundação de São Paulo”, foi premiada pela Comissão para as Comemorações do Dia

de Anchieta, no ano de 1966. Um dos membros da 2ª Comissão foi o Padre Hélio

Abranches Viotti S. J. que inclusive assina o prefácio da obra de Álvaro do Amaral.

Na introdução de sua obra, Álvaro do Amaral refere-se à instituição do Dia de

Anchieta pelo Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco como um “momento de

inspiração do mais puro patriotismo”. Também, faz referências ao discurso proferido

por Julio de Mesquita Filho na abertura das conferências realizadas em 1965, e ao

Cardeal Arcebispo de São Paulo, D. Agnello Rossi, que, em missa proferida no Pátio

do Colégio em 9 de junho de 1965, fez uma oração, reproduzida em parte por Amaral:

Bem agiu, portanto, o Exmo. Presidente Humberto Castelo Branco, num

ato de fidelidade e de reconhecimento das nossas mais belas tradições cristãs,

instituindo o “Dia de Anchieta” para que o povo brasileiro retempere no ideal

cristão suas energias e pela meditação das virtudes do ínclito sacerdote e

bandeirante procure imitar seus exemplos e multiplique suas preces a Deus para

que possamos, quanto antes, venerá-lo em nossos altares como o Santo

Símbolo de Nossa Nacionalidade [...].XXXVIII

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A obra de Álvaro do Amaral é, portanto, mais uma contribuição ao resgate da

vida e da obra de Anchieta no contexto da implantação do regime militar no Brasil:

[...] com a intenção de chamar a atenção dos paulistas e de todos os brasileiros

em geral, para aquêle que é o Taumaturgo que continua a velar pela felicidade

da nossa Pátria, solicitando ao bom Deus que apresse a sua Canonização com

a qual, estamos certos, maiores serão as bênçãos que ele fará espargir sôbre a

sua Terra, sôbre a sua Pátria.XXXIX

Resgatar a memória de Anchieta e assegurar seu importante papel e

contribuição parece ter sido o intuito principal do autor com esta obra. Nas próprias

palavras de Álvaro do Amaral:

Desde 1954, quando se comemorou o IV Centenário da nossa cidade,

vêm os paulistanos assistindo a uma estranha disputa, entre entendidos em

História, pelos postos-chave da Fundação. No seu pendor sentimentalista, a

nossa gente gostava de ver no Irmão José, adolescente e suave taumaturgo,

mestre e poeta, a figura central do nascente burgo jesuítico. Popularmente, não

era possível separar de São Paulo o nome de Anchieta, o “Apostolo do Novo

Mundo”. Entretanto, conseguiram os estudiosos desviar essa mística fumarada

de incenso votivo para a imagem do vice-provincial Manuel da Nóbrega. Mais

tarde, esclareceram que o celebrante da missa de 25 de janeiro foi o Padre

Manuel de Paiva. E agora, assentaram que o primeiro mestre-escola do Colégio

de Piratininga foi o Reverendo Antônio Rodrigues. De sorte que José de

Anchieta vai recuando, recuando, envolto numa névoa opaca, para um obscuro

recanto da Verdade Histórica.XL

O autor continua referindo-se a fatos ocorridos por ocasião do IV Centenário e

manifestando sua contrariedade em relação ao encaminhamento dado às discussões

em algumas sessões:

Convidado por estrangeiros, um representante da “brava gente lusitana”,

traindo a fidalguia dos verdadeiros representantes da nossa Mãe-Pátria, timbrou

em obscurecer a posição de José de Anchieta naquele magno acontecimento,

para enaltecer alguns portugueses em detrimento daquele verdadeiro ídolo de

nós brasileiros.XLI

Logo a seguir, podemos ler: “Chegou ao cúmulo de acertar com o seu Govêrno

a remessa de um magnífico acervo de peças do mais subido valor histórico, mas

dentre as quais não aparece uma única que se refira a Anchieta!”. Duras são as

críticas feitas por Amaral a Serafim Leite. Entre tantas, destacamos a que segue: “[…]

o Padre Serafim acusou os Conferencistas paulistas de 1897 de terem criado um

movimento emocional em torno de Anchieta, para proclamar o maior dos Jesuítas, da

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fase heróica, no Brasil”. Diante destas constatações, ou seja, da tentativa de

obscurecimento do nome de Anchieta, Álvaro do Amaral aplaude a iniciativa de

Castelo Branco em propor a instituição do “Dia de Anchieta”. XLII

Também as datas comemorativas relacionadas com Anchieta se associaram ao

crescente interesse – durante o século XX – na divulgação da vida e da obra desse

jesuíta e acabaram implicando a produção de novas biografias ou a republicação de

biografias produzidas em séculos anteriores. É nesse sentido que registramos

algumas comemorações: em 1933-34, o IV Centenário de seu nascimento; em 1954, o

destaque dado ao missionário jesuíta na comemoração dos 400 anos da cidade de

São Paulo e, em 1965, a instituição do Dia de Anchieta.

Ainda hoje, percebemos a presença marcante deste jesuíta no imaginário

nacional, como pôde ser constatado na comemoração dos 450 anos da cidade de São

Paulo, em 2004, ocasião em que Anchieta foi relembrado inclusive em enredos das

escolas de samba paulistas no Carnaval daquele ano. Além disso, foi organizada uma

exposição com 17 cartas originais de Anchieta. e a Mostra “Os empreendedores: de

Anchieta aos Novos Tempos” esteve em cartaz até o dia 25 de junho de 2004 no Pátio

do Colégio, local da fundação da cidade de São Paulo. Foi a primeira vez que as

Cartas foram retiradas do Arquivo Histórico da Companhia de Jesus, no Vaticano.

Estas comemorações revelam o quanto se mantém viva a imagem de José de

Anchieta na memória da população brasileira.

Em 1933-34, comemorou-se o IV Centenário do nascimento de Anchieta. A

organização deste evento foi proposta e justificada pelo Instituto Histórico Geográfico

Brasileiro:

Considerando que a magnitude innegável da obra realizada durante

quasi meio século pelo inclyto missionário, em prol da catechese e da civilisação

brasileira, colloca justamente o seu nome entre os dos mais illustres

constructores da nacionalidade.

Considerando que o nome da Companhia de Jesus se acha

indissoluvelmente ligado à História do Brasil, e, de modo tão estricto que

relembrar os seus fastos e assignalar ao mesmo tempo os extraordinarios

serviços que na triplice missão humanitaria, politica e social, prestaram os

jesuítas ao Brasil, durante mais de dois séculos, evangelisando as tribus

selvagens, salvaguardando o principio da moralidade, em face da corrupção e

execrável cubiça dos colonos, alimentando a chama do patriotismo, que repelliu

as missões estrangeiras, concorrendo efficazmente para a conservação da

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unidade e integridade da nação, e diffundindo por toda parte a cultura intellectual

que preparou o surto brilhante da nossa literatura XLIII

Por ocasião deste Centenário de nascimento, várias conferências foram

proferidas em sessões promovidas pelo IHGB, dentre as quais destacamos as

seguintes: “O Apóstolo do cristianismo no Novo Mundo”, por Teodoro Sampaio; “José

de Anchieta, o santo do Brasil”, por Pedro Calmon; “O misticismo de Anchieta”, por

Celso Vieira entre outras.

Esta não foi a primeira vez que o Instituto se ocupou de Anchieta e dos

jesuítas. No Primeiro Congresso de História Nacional realizado em 1914, a Companhia

de Jesus também foi tema de destaque. Também, no Primeiro Congresso Internacional

de História da América, promovido pelo IHGB por ocasião do Centenário da

Independência do Brasil, em 1922, mereceram destaque os temas relativos à atuação

da Companhia de Jesus na América. Todas essas iniciativas se preocuparam em

demonstrar a importância dos jesuítas e, especificamente, de Anchieta como um

elemento central na construção de uma identidade nacional. Uma identidade, aliás,

fortemente assentada em valores religiosos e morais.

Acreditamos que esta imagem de Anchieta construída a partir da segunda

metade do século XIX será resgatada pelos militares logo após o golpe de 1964, por

apresentar Anchieta como aquele que promoveu a integração nacional através da

missionação. Esta percepção fica evidenciada no posicionamento de João de

Scantimburgo, um dos colaboradores envolvidos na comemoração do Dia de Anchieta:

De Anchieta se pode dizer que foi o primeiro integracionista; animado

pela fé, pôs a inteligência e a vontade na consecussão desse fim, e conseguiu-o.

A nação brasileira começou a amoldar-se com os capitães gerais, com a

vocação missionária da Casa de Bragança, mas quem lhe soprou o primeiro

hálito de vida foi Anchieta, o inexausto integracionista. Trazendo para o Brasil o

crucifixo como única arma, a fidelidade ao sangue de Cristo como suprema

virtude, e a obediência como rija qualidade, Anchieta aproxima índios e

portugueses, integrando-os na bela obra que é a nação brasileira cujo batismo

foi ato de suas santas mãos.XLIV

Este Anchieta – inexausto integracionista – servirá como elemento de coesão

da sociedade brasileira num momento crítico da nossa história política recente,

aspecto que foi retomado no discurso proferido pelo Marechal Umberto de Alencar

Castelo Branco no dia 09 de junho de 1965: “Esta terra é nossa empresa, dissera

Nóbrega. E ninguém melhor do que Anchieta lhe ouviu a palavra”XLV, ou seja, Anchieta

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fez do Brasil sua empresa, uma empresa que foi dirigida a partir de uma concepção

cristã.

Considerações Finais

Nas biografias e nas conferências acima referidas, identificamos indícios que

podem nos ajudar a desvendar o crescente interesse em Anchieta na segunda metade

do século XX. A primeira biografia que apresentamos foi produzida por Quirício Caxa e

tinha por objetivo principal salientar a vida exemplar de Anchieta. Pero Rodrigues,

mantém a proposta de Caxa, orientando sua produção para o processo de beatificação

encaminhado à Santa Sé, em 1607. Simão de Vasconcelos, igualmente, tem a

pretensão de contribuir para o processo de beatificação; a tradução de Sainte-Foy é

dedicada ao então bispo de São Paulo, admirador de Anchieta, e a todos os

brasileiros, com a intenção de avivar a memória sobre este jesuíta que muito

contribuiu para formação do Brasil. No século XX, a produção historiográfica parece

tomar outros rumos, já que a obra do Pe. Helio Abranches Viotti, como vimos, é

resultado de um concurso realizado em 1965, por ocasião da instituição do Dia de

Anchieta.

Já ressaltamos, anteriormente, a importância do contexto histórico para o

entendimento desta produção e da ênfase dada por cada autor à contribuição de

Anchieta para a formação moral e religiosa do povo brasileiro. Parece-nos que a

questão da moral que, de uma forma ou outra perpassa toda a produção biográfica

sobre Anchieta, é enfatizada nas obras produzidas durante o século XX. Anchieta,

visto como expoente máximo desta moral, já não é tido unicamente como um exemplo

para os Irmãos da Companhia, mas, também, e, principalmente, para toda a

população brasileira. XLVI

Coerentes com esse objetivo, os militares promoveram a divulgação de obras

de caráter mais “didático”, ou seja, obras que tinham por alvo um público mais amplo,

e que estavam associadas à divulgação do nome e das obras de Anchieta

patrocinadas pela Comissão Nacional para as Comemorações do “Dia de Anchieta”. A

Comissão não poupou esforços no sentido de levar o nome do Padre José de Anchieta

a todos os recantos do Brasil, utilizando-se, para tanto, do cinema, teatro e literatura.

Como exemplo deste tipo de literatura, destacamos a obra de Renato Sêneca Fleury

intitulada “Anchieta” e que faz parte da Coleção Testemunhos das Edições Loyola. A

quinta edição, corrigida e aumentada, é de 1978. Esta produção caracteriza-se pela

simplicidade da narrativa, observando uma ordem cronológica e apresentando, ao

final, todas as datas importantes da vida de Anchieta.

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Além do aludido compromisso de manter a fidelidade aos valores cristãos,

invocados por ocasião da instituição do Dia de Anchieta, os militares estimularam

outras iniciativas que atenderam ao seu projeto ideológico-político e que se estendeu,

na prática, à escolarização dos brasileiros. É nesta perspectiva que se insere o Art. 2°

da Lei N° 5.196, de 24 de dezembro de 1966, através do qual “O “Dia de Anchieta”

passa a ser comemorado nas escolas primárias e médias do País, através da

realização de palestras alusivas à sua vida e à sua obra”.

Acreditamos que a instituição dessa data comemorativa e alusiva à Anchieta, e

sua difusão por todo o país, possa ser entendida, à luz do que foi exposto, como

indicativo da apropriação não somente da memória de Anchieta, como também do

pensamento anchietano, em especial, no que se refere à sua compreensão dos fins da

política e da religião, pelos ideólogos do regime militar e por segmentos civis da

sociedade brasileira.

Notas I ANCHIETANA, 1965, p. 12-13.

II Apelando para a importância da religião cristã na sociedade brasileira esses grupos se valeram especialmente da mídia impressa para forjar uma certa idéia de comunismo. Caso não fossem contidos os avanços do nacional-reformismo do presidente João Goulart, a república sindicalista a ser instalada seria “a primeira forma assumida por um ‘comunismo ateu’ que ‘aboliria as classes sociais’, proletarizando as classes médias, que separaria os filhos dos pais, destruindo a família, e que, por fim, proibiria o livre exercício das religiões, destruindo assim, de maneira radical e total, os supostos valores ocidentais e cristãos da sociedade brasileira” (SIMÕES, Solange de Deus. Deus, Pátria

e família: as mulheres no golpe de 1964. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 37).

III Para Roger Chartier, as representações se inserem em um “campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e dominação” que se configuram em verdadeiras “lutas de representações”. Estas, por sua vez, geram inúmeras apropriações possíveis das representações de acordo com os interesses e as motivações que se apresentam em um dado contexto. (CHARTIER,Roger. A História Cultural – entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990, p.17).

IV Comemorar é, essencialmente, “trazer à memória”, “fazer recordar” através de cerimônias de caráter público. As comemorações previstas pelo Decreto de 1965 devem ser entendidas como mecanismos empregados para a manutenção e perpetuação das memórias e que desempenham, através de diferentes rituais, a função de repetição e de reatualização de um passado social.

V Trata-se aqui de considerar a construção de uma memória acerca do missionário jesuíta a partir das iniciativas e comemorações realizadas pelo Estado ou entidades civis, avaliando sua repercussão política e social. A memória de Anchieta pode ser enquadrada na categoria de “memórias nacionais, geralmente identificadas como memórias oficiais que se caracterizam por serem essencialmente unificadas e integradoras e, em geral, aspiram ao caráter mítico e heróico”. (TEDESCO, João Carlos (org.). Uso de memórias (política, educação e identidade). Passo Fundo: UPF, 2002. Introdução, p. 27)

VI Deve-se reconhecer que a memória e suas esferas mediadoras, como os objetos e os símbolos, “são abaladas no contexto das alterações e desintegrações de valores e de antigas representações, as quais cimentavam e construíam os liames sociais, o presente e o passado (...), a moldura social e os indivíduos na sua socialização (...)”. A construção de imaginários, por sua vez, se dá “através de diferentes meios, pelo discurso e pela imagem, fazendo com que as lutas pelo controle da memória e dos imaginários sociais sejam muito importantes para as lutas políticas e para a obtenção de legitimações políticas e dominações”. (TEDESCO, João Carlos (org.). Usos de

memórias (política, educação e identidade). Passo Fundo: UPF, 2002, p.10-25)

VII Cabe ressaltar que o papel da Igreja no golpe, como fenômeno político, foi limitado. Não havia unanimidade dentro da Igreja a respeito do seu papel na mudança social, o que levou a crises que se tornaram sérias depois do golpe. Elementos conservadores na sociedade e no governo se empenharam em desprestigiar os setores mais

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progressistas e identificados com reformas e mudanças estruturais consideradas subversivas, impondo uma nova orientação à Igreja no Brasil. Apesar de não enfatizarmos esta questão neste artigo, a consideramos fundamental para a compreensão do resgate da memória, especificamente de Anchieta, e da manipulação dos símbolos religiosos pelo regime militar.

VIII A proposta preenche, portanto, uma lacuna investigativa sobre a história política brasileira recente e se aproxima das questões postas pela nova história política, por esta considerar a importância dos mitos e mitologias políticas como instrumentos para a inteligibilidade das sociedades e por propor trabalhos sobre a sociabilidade, análises de discurso e história da cultura. Vale destacar a afirmação de Pierre Rosanvallon, para quem o político “é o lugar onde se articula o social e sua representação, a matriz simbólica na qual a experiência coletiva se enraíza e se reflete”. (ROSANVALLON, Pierre. Pour une histoire conceptuelle du politique. Revue de Syntèse, n.1-2, jan-juin 1986, p. 93-104)

IX Consideramos pertinente a advertência feita por Roger Chartier de que a literatura e os documentos que descrevem ações simbólicas do passado não são textos inocentes e transparentes, pois foram escritores por autores com diferentes intenções e estratégias. Algumas dessas estratégias são explícitas e se fundamentam no discurso, outras, contudo, são implícitas e transformam o texto num mecanismo que deve impor uma compreensão considerada legítima. (CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e

XVIII. São Paulo: Ática, 1995).

X ANCHIETANA, 1965, p. 10-11.

XI Apud SIMÕES, 1985, p. 53.

XII O processo de beatificação de Anchieta foi encaminhado inicialmente em 1617, tendo sido suspenso em 1773 e reaberto apenas em 1875. Somente em 22 de junho de 1980, 383 anos após seu falecimento, o missionário jesuíta José de Anchieta foi beatificado pelo Papa João Paulo II. Cabe esclarecer que beato tem o significado de “bem-aventurado”, alguém com virtudes heróicas e que pode ser cultuado, diferentemente do santo, apenas localmente, em seu país ou pela ordem religiosa à qual pertenceu.

XIII ANCHIETANA, 1965, p. 6.

XIV Cabe lembrar aqui também a criação, em 1967, da Fundação Rádio Anchieta com a finalidade de promover atividades educacionais e culturais e que iniciou efetivamente sua programação de radiodifusão em 1968.

XV ANCHIETANA, 1965, p. 7.

XVI As explicações para a emergência do gênero biográfico devem ser buscadas num contexto social marcado, na maioria das vezes, pela perda de referenciais ideológicos e morais que demandam “a busca, no passado, de trajetórias individuais que possam servir como inspiração para os atos e condutas vivenciados no presente”. 9SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias, historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos. Estudos Históricos. (Rio de Janeiro, 1997, n.19). Cabe ressaltar que no período em questão eram valorizadas as biografias tradicionais que abordavam a vida dos grandes vultos, o que se aproximava da intenção dos militares que buscavam em Anchieta um exemplo para a formação cristã da nacionalidade brasileira.

XVII SIMÕES, 1985, p. 92-93.

XVIII SIMÕES, 1985, p. 91.

XIX SIMÕES, 1985, p. 77.

XX São Paulo parou ontem para defender o regime. São Paulo: Folha de São Paulo. 20 de março de 1964. Disponível em: http://www.folha.uol.com.br/folha/almanaque/brasil_20mar1964.htm Acesso em 17 de abril de 2004.

XXI Ibidem.

XXII ANCHIETA José de. Apud LEITE S. J., Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil (1553-1558). T. II. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo. Coimbra: Tipografia da Atlântida, 1957, p. 313.

XXIII GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos trópicos. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. In: Estudos Históricos. Caminhos da Historiografia n. 1. Rio de Janeiro: CPDoc/FGV, 1988, p. 6

XXIV SILVA, Manoel Vicente da. Sublimidade moral de Anchieta: exposição e analyse do processo da sua beatificação. In: III Centenário do Venerável Joseph de Anchieta. Paris: Editora Aillaud, 1900, p. 285.

XXV III Centenário do Venerável Joseph de Anchieta. Paris: Editora Aillaud, 1900.

XXVI LEITE, Serafim. Páginas de História do Brasil. São Paulo/ Rio de Janeiro/ Recife: Companhia Editora Nacional, 1937.

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XXVII LEITE, 1937.

XXVIII ANCHIETANA. Comissão Nacional para as Comemorações do “Dia de Anchieta”. São Paulo: Gráfica Municipal/Divisão do Arquivo Histórico/Prefeitura do Município de São Paulo, 1965, p. 7.

XXIX VASCONCELOS S.J., Simão de. Vida do venerável Padre José de Anchieta. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943, p. 153.

XXX SAINTE FOY, Charles. Vida do Venerável Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus. São Paulo: Editora Jorge Seckler, 1878, p. 11.

XXXI SAINTE FOY, 1878.

XXXII SAINTE FOY, 1878. Dedicatória.

XXXIII SAINTE FOY, 1878. Dedicatória.

XXXIV VIOTTI S. J., Hélio Abranches. Anchieta: o apóstolo do Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1980. p. 7.

XXXV VIOTTI S. J., 1980, p. 15.

XXXVI VIOTTI S. J., 1980, p. 237.

XXXVII VIOTTI S. J., 1980, p. 277.

XXXVIII AMARAL, Álvaro do. O Padre José de Anchieta e a fundação de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1971, p. 8.

XXXIX AMARAL, 1971, p. 8.

XL AMARAL, 1971, p. 11.

XLI AMARAL, 1971, p. 14.

XLII AMARAL, 1971, p. 15-17.

XLIII FLEIUSS, Max. (org.) Collecção de História Brasileira. Porto Alegre: Editora Livraria do Globo, 1935, p.6.

XLIV ANCHIETANA, 1965, p. 273.

XLV ANCHIETANA, 1965, p. 12.

XLVI Como bem apontado por Tedesco, “O peso simbólico das memórias pode sofrer alterações ao longo de sua manutenção/perpetuação e ocorre em face das contingências conjunturais”, o que decorre de sua condição de “partes do universo simbólico” e de “instrumento e objetivo de poder”. (TEDESCO, João Carlos (org.). Uso de

memórias (política,educação e identidade). Passo Fundo: UPF, 2002, p.25-28)