salvadores de línguas

2
62 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR/CARTA-NA-ESCOLA Tecnologia M etade das línguas fa- ladas no planeta te- rá desaparecido até o fim do século. A pre- visão foi apresenta- da pela Organiza- ção das Nações Uni- das para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na nova edição do Atlas das Lín- guas do Mundo em Perigo. De acordo com o relatório, dos cerca de 6,5 mil idiomas de todo o planeta, mais de 2,5 mil correm ris- co de sumir nas próximas gerações. A pri- meira edição do Atlas, de 1996, recensea- va 600 línguas em perigo, e a segunda, de 2001, indicava 900. A culpada é a globali- zação. Segundo a Unesco, a pressão de cul- turas dominantes nos pequenos povoados provocou a intensificação das extinções. A tecnologia, agora, pode ajudar a pre- servação, afirma Thiago Chacon, linguis- ta e consultor do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Antes da era digital, a metodologia de pro- dução de dicionários não dava conta da dinâmica das línguas. “Hoje, ao mesmo tempo que a sociedade muda e os falan- tes dessas línguas também, as ferramen- tas, como aplicativos, sites e programas de computador, têm se especializado.” Ano passado, o Google passou a apoiar a proteção da diversidade linguística. Em junho, a empresa lançou o site colabora- tivo Endangered Languages Project. A página tem 3.176 idiomas cadastrados e classificados de acordo com sua vitalida- de: verde para “ameaçados”, amarelo pa- ra “em risco” e vermelho para “sério risco”. Chacon explica que são três os princi- pais critérios para determinar a ameaça de extinção de uma língua: a transmissão pa- ra as novas gerações, o número de pessoas que a dominam e o contexto em que é fala- da. Se o idioma contar com poucos falantes ou não estiver sendo ensinado às crianças, ele estará ameaçado. Porém, mesmo que os números sejam positivos, ainda haverá risco se houver imposição de outra língua. A ideia do Endangered Languages é permitir que qualquer usuário comparti- lhe vídeos, imagens e documentos sobre a cultura das línguas. A maioria das cola- borações é de idiomas da Oceania, Sul da Ásia, África Subsaariana, Costa Leste da América do Norte e América do Sul. No Brasil, são cerca de 150 idiomas e dialetos, a maioria de origem indígena e em risco. A preservação também se tornou por- tável graças a aplicativos para smartpho- nes e tablets. O iwaidja é um idioma indíge- na falado por pouco mais de 150 pessoas numa ilha do extremo-norte da Austrália. Para evitar sua extinção, foi criado o apli- cativo Ma Iwaidja. Ele conta com um di- cionário de iwaidja-inglês com mais de 1,5 mil termos, uma coleção de 450 frases, um conjugador de verbos e informações sobre a cultura local. Todas as palavras são A tecnologia não pode salvar uma língua, mas o caráter colaborativo dessas iniciativas incita a comunidade a viver seu patrimônio, diz a pesquisadora Ana Suely Cabral, da UnB Sem voz. No Endangered Languages, do Google, há 150 idiomas e dialetos brasileiros em risco, a maioria indígenas Salvadores das línguas CULTURA | Sites e aplicativos mapeiam e permitem compartilhar registros de idiomas em risco de extinção POR ISABELA MORAIS JOANNE RORIZ/ESTADÃO CONTEÚDO 2012 2100 Idiomas em risco Apenas 50% dos idiomas falados hoje deverão estar em uso até 2100 •CETecnologia74.indd 62 26/02/13 11:51

Upload: isabela-morais

Post on 18-Jul-2015

26 views

Category:

Education


0 download

TRANSCRIPT

62 WWW.CARTACAPITAL.COM.BR/CARTA-NA-ESCOLA CARTA NA ESCOLA 63

Tecnologia

Metade das línguas fa-ladas no planeta te-rá desaparecido até o fim do século. A pre-visão foi apresenta-da pela Organiza-ção das Nações Uni-

das para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) na nova edição do Atlas das Lín-guas do Mundo em Perigo. De acordo com o relatório, dos cerca de 6,5 mil idiomas de todo o planeta, mais de 2,5 mil correm ris-co de sumir nas próximas gerações. A pri-meira edição do Atlas, de 1996, recensea-va 600 línguas em perigo, e a segunda, de 2001, indicava 900. A culpada é a globali-zação. Segundo a Unesco, a pressão de cul-turas dominantes nos pequenos povoados provocou a intensificação das extinções.

A tecnologia, agora, pode ajudar a pre-servação, afirma Thiago Chacon, linguis-ta e consultor do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Antes da era digital, a metodologia de pro-dução de dicionários não dava conta da dinâmica das línguas. “Hoje, ao mesmo tempo que a sociedade muda e os falan-tes dessas línguas também, as ferramen-tas, como aplicativos, sites e programas de computador, têm se especializado.”

Ano passado, o Google passou a apoiar a proteção da diversidade linguística. Em junho, a empresa lançou o site colabora-tivo Endangered Languages Project. A página tem 3.176 idiomas cadastrados e classificados de acordo com sua vitalida-de: verde para “ameaçados”, amarelo pa-ra “em risco” e vermelho para “sério risco”.

Chacon explica que são três os princi-pais critérios para determinar a ameaça de extinção de uma língua: a transmissão pa-ra as novas gerações, o número de pessoas que a dominam e o contexto em que é fala-da. Se o idioma contar com poucos falantes

ou não estiver sendo ensinado às crianças, ele estará ameaçado. Porém, mesmo que os números sejam positivos, ainda haverá risco se houver imposição de outra língua.

A ideia do Endangered Languages é permitir que qualquer usuário comparti-lhe vídeos, imagens e documentos sobre a cultura das línguas. A maioria das cola-borações é de idiomas da Oceania, Sul da Ásia, África Subsaariana, Costa Leste da América do Norte e América do Sul. No Brasil, são cerca de 150 idiomas e dialetos, a maioria de origem indígena e em risco.

A preservação também se tornou por-tável graças a aplicativos para smartpho-nes e tablets. O iwaidja é um idioma indíge-na falado por pouco mais de 150 pessoas numa ilha do extremo-norte da Austrália. Para evitar sua extinção, foi criado o apli-cativo Ma Iwaidja. Ele conta com um di-cionário de iwaidja-inglês com mais de 1,5 mil termos, uma coleção de 450 frases, um conjugador de verbos e informações sobre a cultura local. Todas as palavras são

A tecnologia não pode salvar uma língua, mas o caráter colaborativo dessas iniciativas incita a comunidade a viver seu patrimônio, diz a pesquisadora Ana Suely Cabral, da UnB

Sem voz. No Endangered Languages, do Google, há 150 idiomas e dialetos brasileiros em risco, a maioria indígenas

Salvadores das línguas CULTURA | Sites e aplicativos mapeiam e permitem compartilhar registros de idiomas em risco de extinção POR ISABELA MORAIS

JO

AN

NE

RO

RIZ

/E

ST

AD

ÃO

CO

NT

DO

2012 2100

Idiomas em risco Apenas 50% dos idiomas falados hoje deverão estar em uso até 2100

•CETecnologia74.indd 62 26/02/13 11:51

62 www.cartacapital.com.br/carta-na-escola carta na escola 63

Tecnologia

transcritas e disponibilizadas em áudio. O usuário pode inserir novos termos ou fra-ses. As contribuições são moderadas pela equipe desenvolvedora do aplicativo e fi-cam à disposição para download.

De acordo com Bruce Birch, linguis-ta da Universidade Nacional da Austrá-lia e coordenador do projeto, o constante desenvolvimento de conteúdo permite resgatar um idioma fadado a desapare-cer rapidamente. Oito escolas da região possuem iPads equipados com o aplica-tivo. Com isso, crianças e adolescentes se mantêm em contato com o iwaidja, o que aumenta o número de falantes e ga-rante sobrevida à língua.

Já o Living Tongues Institute for En-dangered Languages – instituto que se de-dica à documentação científica de línguas ameaçadas e ajuda comunidades na revi-talização de seus idiomas nativos – lan-çou o Tuvan Talking Dictionary, dicioná-rio digital da língua tuvana. O tuvano é fa-lado na República de Tuva, no Centro-Sul

da Sibéria, por cerca de 200 mil pessoas. O aplicativo reúne mais de 2,9 mil termos transcritos e em áudio, que mostram a pro-núncia segundo um falante nativo.

Nos Estados Unidos e no Canadá, o por-tal First Voices fornece ferramentas para comunidades indígenas que desejam apri-morar a documentação e o ensino de su-as línguas nativas. O site hospeda milha-res de entradas de texto em diversos siste-mas de escrita e arquivos de som, imagens, vídeos e jogos de 60 idiomas e dialetos. A página destinada a crianças e adolescen-tes de comunidades com línguas em risco contém jogos e gravações de pessoas mais velhas falando em sua língua materna.

O First Voices já desenvolveu aplicati-vos para iPhone e iPad com dicionários bi-língues, coleção de frases, áudios e infor-mações de 12 línguas indígenas da Améri-ca do Norte. Lançado em 2012, o aplicativo First Voices Chat permite manter conver-sas no Facebook, Google Talk e outros pro-gramas de conversação. Os teclados foram

personalizados para suportar centenas de idiomas nativos da América do Norte, No-va Zelândia e Austrália. A ferramenta foi pensada para permitir o uso cotidiano das línguas, ajudando-as a se revitalizar.

Ana Suely Arruda Câmara Cabral, pro-fessora de Linguística da Universidade de Brasília, avalia positivamente o uso de re-cursos digitais. “As comunidades podem opinar sobre o que postam sobre elas e os dados não ficam nas mãos de instituições ou pesquisadores, mas em um banco ao qual todos têm acesso”, comenta.

A tecnologia não pode salvar uma lín-gua, mas o caráter colaborativo das inicia-tivas pode incitar nas comunidades falan-tes, sobretudo na juventude, a curiosida-de e o gosto pelo idioma de seus antepas-sados. Para a professora, “o que pode real-mente salvar uma língua é a vontade das comunidades de fazer viver o seu patri-mônio linguístico e cultural, transmitin-do sua língua, fazendo-a funcionar como meio principal de comunicação”. •

SitesEndangered Languageswww.endangeredlanguages.com

Ma Iwaidja www.iwaidja.org/site/ma-iwaidja-phone-app

Tuvan Talking Dictionaryhttps://itunes.apple.com/br/app/tuvan-talking-dictionary/id354960516?mt=8

First Voiceswww.firstvoices.com

First Voices Chat e outros aplicativoswww.firstvoices.com/en/apps

Saiba MaisFontes sobre

o tema

•CETecnologia74.indd 63 26/02/13 11:51