rosanvallon, pierre - por uma história conceitual do político

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Por uma Histria 1 Conceituai do Poltico* (nota de trabalho)Pierre Rosanvallon**

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RESUMO A formulao de unta Histria Conceituai do Poltico busca preencher as lacunas metodolgicas que tim dificultada a apreenso da dimenso histrica do politico. Pretende ser um recurso na compreenso do presente (passado ou in flux) atravs da observaflo e anlise dafnrmnn da qui o uuor chama de "racionalidades politicas". Sua originalidade e contribuio residem, portanto, no mtodo de abordagem de um objeto jd conhecido, o poltico, adquirindo um carter complementar Histria das Mentalidades, das Idias e mesmo dos acontecimentos, com as quais reconhece a necessidade de dialogar e interagir.

ABSTRACT The formulation of a concept of politic tries to overcome the methodological difficulties involved in the apprehenfion of the historial dimension of politics. The Author proposes in this article an approach which analyses what he calk the "rationalits of politics". The main contribution of this article ii the rescue of politics in association with the history of "mentalits", of ideas and of the events with which the Author recognizes the need of interation.

O historiador das idias, o filsofo e o historiador dos acontecimentos c das instituies durante muito tempo repartiram a apreenso do campo poltico, compartimentando-o em trs territrios disciplinares estritamente separados. Os herdeiros de Langlois-Seignobos e de Fustel de Coulanges, os rivais de Emile Faquet c os descendentes de Victor Cousin cultivaram tranqilamente, por m s de meio sculo, seus pequenos jardins de "especialistas" universitrios sem darem uma olhada, sequer, nos jardins de seus vizinhos. E isso, quaisquer que fossem suas preferncias partidrias e as orientaes filosficas, que impregnavam seus trabalhos. Da o desgaste progressivo destes gneros tradicionais. Quanto a isso, os jovens historiadores mais brilhantes guardavam, nitidamente, distncia desde a dcada 1930. Os termos de suas crticas so bastante conhecidosTraduo de Paulo Martinez. Universidade de Sio Paulo. NCLEO DE SO PAULO. cole des Houtes tudes eu Sciences Sociales. Paris.

para nos determos aqni. Desta forma, em sua contribuiio ao Faire de Vhistoire2, Jacques JuIKard explica coro propriedade a m reputao de que goza a histria poltica entre os historiadores franceses de quarenta anos para c. Isto quer dizer que o estudo do poltico foi progressivamente abandonado, cedendo completamente o lugar a novos interesses, voltados para o econmico, o social ou o cultural, trabalhados pela gerao dos Aris, dos Braudel e dos Febvre? No exatamente. O declnio da histria poltica tradicional tambmfoiacompanhado peto desenvolvimento da histria das mentalidades polticas e sobretudo da sociologia politica. Em Ia Rpublique au Village\ Maurice Agulhon enalteceu a primeira, buscando abrir caminho para uma nova abordagem da histria poltica preocupada em manter suas distncias (rente s problemticas deterministas (cf. Ernest Labrousse: "O social est em descompasso com o econmico, e o mental no acompanha o social") e s estritas descries etnolgicas. A sociologia poltica, por sua vez, recebeu um fava- incontestvel, a criao de uma agregao de cincias polticas consagrando sua especificidade universitria em meados dos anos 1970.0 desenvolvimento dessa disciplina, alm da retomada dp interesse pela histria das idias que dissoresultou,traduziu-sc, sobretudo, pela multiplicao dos trabalhos sobre as foras polticas e o sistema poltico. Precipitando-se na senda aberta, no incio do sculo, por Robert Michels4 e Moiss Ostrogorski', Anni Kriegel6, Maurice Duverger7 c Georges La vau*, para citar somente algum nomes e livros que se tornaram clssicos, no estudo do PCF ou ao estudo global dos partidos. Por outro lado multiplicaram-se os trabalhos sobre as elites polticas e o funcionamento geral do sistema poltico. Muitos dos livros publicados nestas duas direes da histria das mentalidades polticas e da sociologia poltica, inovaram e permitiram renovar a abordagem do campo poltico. Mas eles nSo preencheram o vazio deixado pelo perecimento progressivo da histria das idias t da histria das instituies. O deslocamento de mtodo e do objeto que eles operaram tambm marcou rapidamemte seus limites. O que fica claro tomando-se como exemplo o fato comunismo. A multiplicao dos estudos sobre o PCF ou O movimento comunista internacional, e h excelentes, nSo permitiu entender melhor a essncia do totalitarismo, limitando dessa forma a compreenso que se poderia ter do funcionamento das sociedades comunistas. Da o interesse crescente pela filosofia poltica desde o comeo da dcada de 1970. Desta forma, a abordagem dos problemas polticos foi marcada.

Peu Bros, de Hist. S. Paulo

v. 15,n30

pp. 9-22

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nos ltimos trinia anos, por ama srie de deslocamentos sucessivos, seja simplesmente por resvalar no seio da profisso dos historiadores, seja por meio da reativao disciplinar. De um lado, os historiadores das mentalidades sucederam aos historiadores ditos factuais. Por outro, os socilogos deram continuidade aos historiadores, depois os filsofos aos socilogos. Uma vez constatado isto, uma primeira discusso poderia ter lugar na tentativa de avaliar a contribuio especfica das grandes obras que caracterizaram cada uma dessas etapas. Duvido que ela tenha verdadeiramente um grande interesse, se a questo posta nestes termos. Percebo isso tanto melhor, porquanto eu mesmo j fui tentado, num certo momento, a pensar nesta perspectiva a renovao do estudo da poltica (transformando naturalmente a filosofia polftica na via privilegiada de acesso ao poltico, supondo realizar, em relao aos socilogos e aos historiadores das mentalidades uma ruptura equivaleste que os pais fundadores dos Annales tinham provocado frente a seus predecessores). Que a contribuio da filosofia politica seja decisiva inquestionvel nio duvido disso, evidentemente. Bem como estou intimamente persuadido de que eia abriu novos horizontes compreenso do mundo contemporneo. Afortepresena da filosofia poltica diante da cena intelectual francesa da dcada de 1980 certamente um fenmeno significativo, que se explica por um certo esgotamento das grandes correntes que marcaram o desenvolvimento das cincias sociais nos anos 60. Contudo, este fenmeno no se confunde com outro mais difuso, conexo, porm distinto: a formao progressiva de uma "histoire conceptuelle du politique", superando o jogo de fragmentao e dos deslocamentos que acabo de evocar. O fato intelectualmente mais interessante dos ltimos dez anos, parece residir na aproximao progressiva das problemticas de anlise do poltico e de especialistas oriundos de diferentes disciplinas. Todo um conjunto de reorientaes disciplinares, autnomas na origem, configurou pouco a pouco, um espao comum Citemos, ttulo indicativo, para ilustrar o que foi dito: - a redescoberta e a renovao da histria das idias com trabalhos como os de C. Nicolet (Histoire de l'ide rpublicaine en France1"), de P. Manent (Naissance de la Politique Moderne11), de P. Benichou (Le sacre de l'crivain") ou de L. Dumont (Homo Aequalis"); - a renovaofilosficadahistria poltica com os livros de F. Furet (Penser la rvolution franaise") ou de B. Baczko (Lumire de l'utopie'*);11

- afilosofiapoltica do acontecimento com os ensaios de C. Lefort reunidos em L'invention dmocratique - o desenvolvimento de uma antropologia politica ca linhagem das obras de P. Cias trs (La socit contre l'tat") e de M. Gauchet e G. Swain (La pratique de l'esprit humain1*); - areativaodafilosofiado direito por jovens filsofos como L. Fterry e A. Renant (Des droits de l'homme l'ide rpublicaine19). Todas essas obras tm em comum uma certa dimenso filosfica. Mas esse trao nio suficiente para caracterizar sua semelhanas. A unidade desses trabalhos reside mais precisamente em um pressuposto metodolgico e em uma questo. O pressuposto metodolgico deriva da definio implcita do poltico sobre a qual des se fundam O poltico no para des uma "instncia" ou um "domnio" entre outros da realidade: o lugar onde se articulam o social e sua representao, a matriz simblica onde a experincia coletiva se enraza e se reflete ao mesmo tempo. A questo? a da modernidade, de sua instaurao e de seu trabalho. Parece-me que chegada a hora de super a simples constatao dessa convergncia globalmente definida, para construir, de maneira mais rigorosa, a noo de histria conceituai do poltico, da qual esses diferentes trabalhos participam. O primeiro passo dessa construo implica em diferenciar com clareza essa histria conceituai da histria tradicional das idias. Diferenciao necessria, pois temi a impresso que os autores e obras citadas, esto muitas vezes, sobre ofioda navalha - posio precria, naturalmente, que tambm sinto como sendo a minha.* * *

A tradicional histria das idias me parece marcada por um certo nmero de fraquezas metodolgicas que precisam ser cuidadosamente identificadas. Podemos enumerar pelo menos cinco: I) A tentao do dicionrio: consideremos algumas obras clssicas dofinaldo sculo XIX como as de mile Faquet, Politiques et moralistes au XfC sicleou de Paul Jaoet, Histoire de la philosophie morale et politique11. De fato, elas se constituem somente de uma adio de monografias consagradas a autores. Cada um desses estudos pode ter mritos intrnsecos, mas seu reagrupamento no compe uma obra que permita compreender o movimento intelectual do sculo. Podemos fazer a mesma restrio aos livros mais recentes, como o de Pierre Mesnard,12

L'essor de la philosophie politique au seizime siclen. Se eu no tiver lido Althussius ou Hotman, esse livro me dar uma idia de suas obras, mas a apresentao sucessiva de duas dezenas de grandes autores da poca no fornece a chave das mudanas radicais que se operam ento oa filosofia poltica. Le temps des prophts" de Paul finichou ou L'histoire des idologiesu publicadas sob a direo de Franois Chtelet tem o mesmo inconveniente. Isso no significa que essas obras devam ser rejeitadas. A maioria delas constituem, ao contrrio, preciosos instrumentos de trabalho. Essas obras no tm nada de histrico. So dicionrios especializados de obras ou manuais de doutrinas polticas. Elas podem ser notveis no detalhe de suas anlises, fornecer um manancial de indicaes bibliogrficas teis, apresentar uma hbil sntese desta ou daquela obra, at mesmo renovar a apreenso de um autor particular, mas, geralmente, no so sustentadas por nenhuma problemtica global. So livros feitos para serem "consultados", no precisam ser iidos de maneira sistemtica para dar sua contribuio. Em nossas bibliotecas so guardados nas prateleiras do dia a dia, ao lado dos dicionrios. Um lugar importante. 2) A histria das doutrinas: comeando por uma "doutrina" qualquer: a idia de progresso, o socialismo, o liberalismo, o contrato social, o utilitarismo, etc. A "histria" de uma doutrina consiste geralmente em um difcil trabalho de demarcao do encaminhamento da "idia" na histria Neste sentido so obras exemplares como as de E. Halvy, La formation du radicalisme phUosiphiquede R. Dcrath, J. J. Rousseau et la science politique de son temps, de A. Lichtenberger, Le Socialisme au XVIII Sicle". Eles pressupem que as doutrinas que estudam representam qualquer coisa de definitivo ou de estvel. Concepo abertamente finalista que transforma tais obras em longas buscas de precursores. Partem de Rousseau, de Benthan ou de Marx para identificar todos aqueles que os "anunciam", os "prefiguram", ou "marcam uma etapa" na formao da doutrina que eles encarnam. O leitor v desfilar diante dele captulos nos quais algumas obras s so interrogadas em relao a um ponto de chegada j conhecido. Na sua fotma erudita (R. Desath, E. Halvy), tais histrias tm ao menos o mrito de reunir um verdadeiro material documentrio e tm a prudncia de colocar li13

mites muito estritos na sua investigao das antecipaes da doutrina que estudam. Na sua forma vulgar, tendem inevitavelmente a alargar seu campo, para fazer da doutrina em considerao, o resultado radioso de toda a histriafikisfica Por exemplo, histrias do materialismo histrico que, partindo dos filsofos da antigidade, erguem laboriosamente a longa lista de todos aqueles que "perceberam" a dita doutrina, sem se dar conta, at que ela seja, por fim, apreendida em sua totalidade por Marx. As doutrinas so como germes, cujo crescimento podemos contemplar em obras que, no fundo, no tm nenhum outro interesse, seno o de refletir o tortuoso percurso. Paradoxalmente uma histria como essa no tem nada de histrico. a noo mesma de doutrina que est em questo. 3) Ocomparativismo textual: coabita freqentemente com a histria das doutrinas. Consiste somente em pensar uma obra em relao quelas que a sucedem ou a precedem, a s faz-la existir relativamente ao que lhe exterior. Quantas apresentaes de Maquiavel, Auguste Comte ou Locke, nas quais trata-se sobretudo de questes que no sito suas, mas de obras s quais emprestam sua contribuio, aos trabalhos futuros aos quais abrem a via. A histria das idias consiste ento em manipular uma espcie de caleidoscpio graas ao qual ns podemos amimar uma multiplicidade de figuras sempre bem ordenadas. Este comparati vismo sistemtico dissimula freqentemente uma ausncia total de capacidade de interrogao dos textos. A arte do comentrio consiste em se abrigar sempre atrs da pressuposio de uma caracterstica explicativa da referncia. Dizer de Sieys que ele anuncia Benjamim Constant no ensina evidentemente nada, se ns sabemos apenas que este ltimo anuncia Tocqueville ou que se ope Joseph de Maistre. A histria das idias atua no entanto frequentemente desta forma. Este comparatvismo generalizado marca geralmente uma pobreza da reflexo que se esconde 'atrs de um exerccio de pseudoerudio. A este defeito de base acrescenta-se, na maioria dos casos, uma cegueira quanto s diferenas de contexto nas quais as obras tomam sentido. Compara-se Adam Smith e Benjamim Constant como se suas obras procurassem responder mesma questo. A obra implicitamente apreendida como um texto autnomo, ela no concebida jamais como um trabalho do14

qual se trataria de compreender os determinantes. Ms, disto resulta, geralmente, uma acumulao dr equvocos, supem-se que as prprias palavras no tm histria. Comparar-se- Rousseau, Tocqueville e Gambetta sem se preocupar com o foto de que o termo democracia no tem o mesmo sentido para nenhum deles. 4) O reconstrutivlsmo : a anlise e o comentrio tm nesse caso por objeto prtico reescrever uma (Ara para estabelec-la numa coerncia e clareza que se supe fazer falta ao autor. O Marx de Althusser o exemplo quase perfeito desse reconstrutivismo. Cada um tambm pode ter seu Burke, seu Maquiavel, ou seu Tocqueville. uma maneira de pensar por procurao, ao abrigo de uma obra sobre a qual podemos at projetar qualquer coisa. No fundo, a obra no levada a srio, apenas o suporte de uma interpretao que a sufoca e a invade, sendo observada a distncia. 5) O tipologismo: causa estragos sobretudo em manuais como L'histoire des ides politiques de Jean Touchard (Thmis) ou a obra de Marcel Prlot que leva o mesmo ttulo (Dalloz), que infelizmente ainda constituem a base da preparao universitria nas Faculdades de Direito e de Cincia Poltica. A histria das idias se reduz nessas obras confeco de uma espcie de vasto catlogo das escolas de pensamento e das doutrinas. Os autores distribuem algumas centenas de obras em pequenos compartimentos bizarramente etiquetados. Abramos o Prlot Nele, aprendemos a distinguir o nacionalismo "emotivo" (Barrs, Peguy), "integral" (Mauras), "totalitrio" (Hitler, Mussolini), "personalizado" (De Gaulle). Quanto ao liberalismo, ele pode ser "puro" (Constant), doutrinrio, democrtico, catlico, construtivo, extremista; contudo, o termo liberalismo jamais definido. No h histria nenhuma nesses manuais, propensos a organizar tudo em termos de escolas, de etapas, de perodos, de correntes. A arte da classificao substitui o pensamento e a compreenso das obras. No acredito que possamos compreender algo de Benjamin Constant qualificando-o de liberal puro, tampouco, saber apenas que Saint-Simon um socialista utpico pode ser de grande valia para algum. Estas cinco fraquezas da histria das idiasfrequentementese misturam nos diversos graus. O problema, not-mo-lo, no se limita ao nico15

debate textofcontsxto tal como ele se desenvolveu, por exemplo, na Inglaterra e nos Estados Unidos no incio dos anos 1970.0 maior defeito de todas essas obras tradicionais da histria das idias que no nos permitem compreender nada de histrico mesmo quando nos ensinam muitas outras coisas. Em primeiro lugar, em funo desse limite fundamental que se faz necessrio considerar a contribuio da histria conceituai do poltico.* * *

O objeto da histria conceituai do poltico a compreenso da formao e evoluo dasracionalidadespolticas, ou seja, dos sistemas de representaes que comandam a maneira pela qual uma poca, um pas ou grupos sociais conduzem sua ao encaram seu futuro. Partindo da idia que estas representaes no so uma globalizao exterior conscincia dos ator - como o so por exemplo as mentalidades - mas que elas resultam, ao contrrio, do trabalho permanente de reflexo da sociedade sobre ela mesma, tem por objetivo: 1) fazer a histria da maneira pela qual uma poca, um pas ou grupos sociais procuram construir as respostas quilo que percebem mais ou menos confusamente como um problema, e 2) fazer a histria do trabalho realizado pela interao permanente entre a realidade e sua representao definindo os campos histrico-problemticos. Seu objeto assim a identificao dos "ns histricos" em volta dos quais as novas racionalidades polticas e sociais se organizam; as representaes do poltico sc modificam em relao s transformaes nas instituies; s tcnicas de gesto e s formas de relao social. Ela histria poltica na medida em que a esfera do poltico o lugar da articulao do social e de sua representao. Ela hi stri a conceituai porque ao redor de conceitos - a igualdade, a soberania, a democracia, etc. - que se amarram e se comprovam a inteligibilidade das situaes e o princpio de sua ativao. Alguns exemplos destes "ns" e destas questes: como trabalhar a questo "terminar a revoluo" na cultura poltica do sculo XIX na sua relao com a percepo de Thermidor? Como se produz a questo do liberalismo e da democracia durante a revoluo? Como e porque o pensamento da dependncia social se transforma na Inglaterra do sculo XVM? Esses exemplos pontuais nos levam a fazer uma observao fundamental: se a histria conceituai do poltico pode apreender muitos objetos distintos, por outro lado, est sempre relacionada a uma perspectiva central, aquela da interrogao sobre o sentido da modernidade poltica, de seu16

advento e de seu desenvolvimento; modernidade poltica ligada emergncia progressiva do indivduo comofigurageradora do social, colocando a questo das relaes entre o liberalismo e a democracia no centro da dinmica da evoluo das sociedades. Contrariamente histria das idias, a matria desta histria conceituai do poltico no pode se limitar anlise a ao comentrio das grandes obras, mesmo se aquelas se permitem, em certos casos, serem consideradas como plos, cristalizando as questes que uma poca se coloca e as respostas que tema apontar. Ela toma emprestado da histria das mentalidades9 a preocupao de incorporar o conjunto dos elementos que compem este objeto complexo que 6 uma cultura poltica: o modo de leitura das grandes obras tericas, as obras literrias, a imprensa e os movimentos de opinio, os panfletos e os discursos de circunstncias, os emblemas e os signos. Ns no podemos por exemplo nos contentarem apreender a questo das relaes liberalismo/democracia durante a revoluo francesa supondo que ela consiste em um tipo de debate de cpula entre Rousseau e Montesquieu. preciso fazer um esforo de compreenso do que foi retido desses autores por aqueles que se dizem seus seguidores, ou, por aqueles que deles fazem uso, interrogar a massa de peties enviadas Assemblia, mergulhar no universo das brochuras e dos libelos, reler os debates parlamentares, penetrar nos clubes e nas comisses. preciso igualmente fazer a histria das palavras e estudar a evoluo da lngua. (Por exemplo, no emendemos a mesma coisa em 1789 ou em 1793 quando falamos de democracia.) Mais largamente ainda, a histria dos acontecimentos deve ser levada em conta de forma permanente. Nessa medida, no h matria prpria histria conceituai: ela consiste desde logo em coletar o conjunto de materiais sobre os quais se apiam, de forma separada, os historiadores das idias, das mentalidades, das instituies e dos acontecimentos. Sua originalidade reside antes no seu mtodo que em sua matria. Este mtodo ao mesmo tempo interativo e compreensivo. Interativo, pois consiste em analisar a forma como uma cultura poltica, as instituies e os fatos interagem uns nos outros, compondofigurasmais ou menos estveis: a anlise dos hbitos, das separaes, dos recobrimentos, das convergncias, dos vazios que acompanham esta interao e assinalando tanto seus equvocos ou ambigidades como as formas de realizao. Compreensivo pois se esfora por compreender unia questo re-situando-a em suas condies efetivas de emergncia. impossvel nestas circunstncias limitar-se a uma abordagem "objeti vista" que pressupe da parte do histo18 16

riador que ele paire acimae domine, do exterior, um objeto inerte. A abordagem compreensiva busca apreender a histria em sua gestao, enquanto ela uma possibilidade de vir a ser, antes que ela seja estabelecida em seu estatuto passivo de necessidade. Compreender, no sentido de Max Weber (verstehen), no campo histrico implica em reconstruir a forma como os atores elaboram sua compreenso das situaes, em detectar as recusas e atraes a partir das quais os atores pensam sua ao, em desenhar a rvore dos impasses e das possibilidades que estrutura implicitamente seu horizonte. Mtodo cmptico, porque supe a capacidade de retomar uma questo situando-se no interior de seu trabalho. Mas empatia naturalmente limitada pelo distanciamento que permite pensar as zonas escuras e as contradies dos atores ou dos autores. Empatia controlada, se preferirmos.2* Esta abordagem compreensiva extrai sua justificativa da pressuposio de um invariante entre a situao do autor ou do ator estudado e a nossa. Para o socilogo weberiano esta invariante a da natureza humana. No caso da histria conceituai das idias, consiste na conscincia que temos de permanecer imersos nas questes estudadas. A obra do historiador pode assim abrir a via a um engajamento intelectual de novo tipo. Este no consiste em atacar idias, preferncias ou "a priori" em uma leitura ou conferncia; este engajamento tambm no a simples apresentao dos grupos sociais ou dos autores, para os quais o intrprete pode se sentir atrado. A meta fazer desta histria conceituai umrecursode compreenso do presente. Idia extremamente banal, poderamos dizer: a histria do passado sempre tem por interesse esclarecer o presente. Vistas de perto, as coisas no so assim to simples. Muitos livros de histria procuram antes reinterpretar o passado em funo do presente, ou mesmo do futuro, tal como ns o imaginamos. Esta inverso dos termos da operao de compreenso me parece particularmente marcante no domnio da histria poltica. Tomemos o exemplo da histria poltica da Revoluo Francesa. O livro de Aulard"', que constitui a obra clssica de referncia sobre o assunto, analisa o movimento poltico da Revoluo relacionando permanentemente os discursos e as instituies polticas do perodo com o que ele acredita ser a forma estvel e acabada da idia democrtica.91 Segue assim os avanos e os recuos da democracia de 1789 1799 a partir de sua prpria viso da democracia (o governo para o povo e pelo sufrgio universal). Ele julga este perodo a partir do presente tomado como ponto fixo. Uma histria gradualista e linear deste tipo, considera, assim, como um dado e uma aquisio garantida (o sufrgio universal = a democracia),

o que , de fato, o lugar de trabalho de um problema (a reduo progressiva da idia democrtica quela do voto). Auiard age como se a idia democrtica estivesse presente de sada, desde o incio, s estando impedida de realizar-se plenamente dadas as circunstncias, o insuficiente discernimento dos atores ou a situao da luta de classes entre o povo e a burguesia. A histria entendida desta forma sempre simples: ela o lugar onde se afrontam as foras contrrias (a ao e a reao, o progressista e o retrgrado, o moderno e o arcaico, o burgus e o popular) cuja resultante explica os avanos e os recuos da idia. O passado julgado do ponto de vista de um presente que no , ele mesmo, pensado. A histria torna-se nestas condies um verdadeiro obstculo compreenso do presente. A histria conceituai do poltico, em sua dimenso compreensiva, permite, ao contrrio, suprimir a barreira que separa a histria poltica da filosofia poltica. Compreenso do passado e interrogao do presente participam de uma mesma empreitada intelectual. Ela oferece, alis por si mesma, um terreno de reencontro ao ensasmo e erudio que so apresentados freqentemente como antagnicos. A erudio a condio indispensvel da apreenso do trabalho que se opera na histria (a soma das informaes que precisamos mobilizar e das leituras que precisamos realizar , com efeito, considervel para efetuar uma operao compreensiva) e o ensasmo, como forma de interveno na atualidade, o motor da interrogao que funda o desejo de conhecer e compreender.* * *

Em Unhas gerais estas observaes, esboadas grosso modo, voluntariamente, sugerem que a histria conceituai do poltico no conduz propriamente rejeio das Yias tradicionais da histria das idias, dos acontecimentos e das instituies, ou aquelas mais recentes da histria das mentalidades, mas apenas recuperao de suas matrias em uma perspectiva diferente. Trabalho de recuperao que pode explicar, em certos casos, o risco de um simples retorno. Isto particularmente visvel em matria de histria das idias. Este campo esteve, com efeito, longamente abandonado sendo preciso muitas vezes reconstruir a matria mais tradicional antes de faz-la trabalhar na perspectiva da histria conceituai. preciso levar adiante, pela fora das circunstncias, um duplo esforo de recuperao e de inovao. A histria conceituai assim definida deve, enfim, ser distinguida de algumas tentativas que foram realizadas recentemente para renovar a his19

tria das idias: a da histria contextual das idias (cf. os trabalhos de Quentin Skinner) em particular. Skinner, autor do maravilhoso The foundations of modem politicai thoughtB, procurou superar o antagonismo, particularmente marcado nos pases angto-saxdes, entre a leitura "filosfica" dos grandes autores, criada sobre a ereo do texto em objeto fechado e auto-suficiente34, e a leitura "histrica" que, impregnada de elementos do marxismo, tende a fazer das obras simples produtos ideolgicos derivados das circunstncias e por das determinadas. Fortemente marcado pelo trabalho de J. L. Austin55, Skinner, alm de sua preocupao de no se limitar aos "grandes autores", buscou ler os textos como "atos lingsticos" situados nos "campos de significao convencionalmente reconhecveis". O texto lido como um discurso cuja ponta somente pode ser apreendida se restituirmos as intenes do autor em um contexto de convenes. Esta abordagem renovai substancialmente a histria das idias e permitiu estabelecer um dilogo entre o historiador e o filsofo, mas cuja caracterstica inovadora esteve, segundo me parece, limitada pela no-distino da problemtica dos "problemas eternos dafilosofia"e aquela do trabalho das questes. Os termos nos quais o debate metodolgico sobre a forma de fazer a histria das idias se processou nos Estados Unidos e na Inglaterra5*', conduziram Skinner a suspeitar, sistematicamente, de "filosofia perene", de todo aquele que tendia intelectualmente a articular a leitura das questes do presente com a leitura do passado.37 As condies nas quais ele desenvolveu suas criticas da histria tradicional das idias levaram-no a no dar o passo que o teria conduzido, muito naturalmente, a prolongar seu movimento cm direo histria conceituai do politico: ele quis, ou teve que permanecer, em seu papel de professor em Cambridge. Sua contribuio , no entanto, incontestvel e reconheo minha dvida para com ele.+

A histria conceituai do poltico no se funda sobre a aplicao mecnica de receitas, bastando aplic-las na redao de um livro que possa ilustrar, melhor que uma desajeitada "declarao de intenes", o que ela aspirarealizar.Toda obra permanece uma frgil tentativa de produzir um suplemento de inteligibilidade pela escrita. Esta, talvez, mais que outras.

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