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230 VOLUME REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDÊNCIA outubro a dezembro de 2014

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  • 230VOLUME

    REVISTA TRIMESTRALDE JURISPRUDNCIA

    outubro a dezembro de 2014

  • volume 230outubro a dezembro de 2014

    REVISTA TRIMESTRAL DE JURISPRUDNCIA

  • Disponvel tambm em:

    Secretaria-Geral da Presidncia Manoel Carlos de Almeida Neto

    Secretaria de Documentao Dennys Albuquerque Rodrigues

    Coordenadoria de Divulgao de Jurisprudncia Juliana Viana Cardoso

    Equipe tcnica: Ana Caroline Muniz Telles (estagiria), Juliana Aparecida de Souza Figueiredo, Priscila Heringer Cerqueira Pooter e Valquirio Cubo Junior

    Diagramao: Camila Penha Soares e Eduardo Franco Dias

    Reviso: Juliana Silva Pereira, Lilian de Lima Falco Braga, Rosa Cecilia Freire da Rocha e Vitria Carvalho Costa

    Capa e projeto grfico: Eduardo Franco Dias

    Solicita-sepermuta.Pdese canje.On demande lchange.Si richiede loscambio.We ask forexchange.Wir bitten umAustausch.

    Seo de Distribuio de Edies Renan de Moura SousaSupremo Tribunal Fe deral, Anexo II-A, Cobertura, Sala C-624 Praa dos Trs Poderes 70175-900 Braslia-DF [email protected] Fone: (61)3217-4780

    (Supremo Tribunal Fe deral Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

    Revista Trimestral de Jurisprudncia / Supremo Tribunal Fe deral. V. 1,n. 1(abr./jun. 1957) - . Braslia : STF, 1957- .

    v. ;22 x 15 cm.

    Trimestral.

    Ttulo varia: RTJ.

    Repositrio Oficial de Jurisprudncia do Supremo Tribunal Fe deral.

    Nome do editor varia: Imprensa Nacional / Supremo Tribunal Fe deral, 1957 a 2001; Editora Braslia Jurdica, 2002 a 2006; Supremo Tribunal Fe deral, 2007- .

    Disponvel tambm em formato eletrnico a partir de abr. 1957: http://www.stf.jus.br/portal/indiceRtj/pesquisarIndiceRtj.asp.

    ISSN0035-0540.

    1. Tribunal supremo, jurisprudncia, Brasil. 2.Tribunal supremo, peridico, Brasil. I.Brasil. Supremo Tribunal Fe deral (STF). Coordenadoria de Divulgao de Jurisprudncia. II. Ttulo: RTJ.

    CDD340.6

  • SU PRE MO TRIBUNAL FEDERAL

    Mi nis tro Enrique Ricardo Lewandowski (1632006), PresidenteMi nis tra Crmen Lcia Antunes Rocha (2162006), VicePresidenteMi nis tro Jos Celso de Mello Filho (1781989), DecanoMi nis tro Marco Aurlio Mendes de Farias Mello (1361990)Mi nis tro Gilmar Ferreira Mendes (2062002)Ministro Jos Antonio Dias Toffoli (23102009)Ministro Luiz Fux (332011)Ministra Rosa Maria Weber Candiota da Rosa (19122011)Ministro Teori Albino Zavascki (29112012)Ministro Lus Roberto Barroso (2662013)

    COMPOSIO DAS TURMAS

    PRIMEIRA TURMA

    Ministro Marco Aurlio, PresidenteMinistro Dias ToffoliMinistro Luiz FuxMinistra Rosa WeberMinistro Roberto Barroso

    SEGUNDA TURMA

    Ministr0 Teori Zavascki, PresidenteMinistro Celso de MelloMinistro Gilmar MendesMinistra Crmen Lcia

    PROCURADOR-GERAL DA REPBLICA

    Doutor Rodrigo Janot Monteiro de Barros

  • SUMRIO

    Acrdos 7

    Decises monocrticas 657

    ndice alfabtico 675

    ndice numrico 767

  • ACRDOS

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    ADPF186

    ARGUIO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 186DF

    Relator: O sr. ministro Ricardo LewandowskiRequerente: Democratas DEM Interessados: Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso da Universidade de Braslia Cepe,

    reitor da Universidade de Braslia, Centro de Seleo e de Promoo de Eventos da Universidade de Braslia Cespe/UNB

    Amici curiae: Educao e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes Educafro, Fundao Cultural Palmares, Movimento Negro Unificado MNU, Movimento Pardo-Mestio Brasileiro MPMB, Fundao Nacional do ndio Funai, Instituto de Advocacia Racial e Ambiental Iara e outros, Defensoria Pblica da Unio, Movimento Contra o Desvirtuamento do Esprito da Poltica de Aes Afirma-tivas nas Universidades Federais, Instituto de Direito Pblico e Defesa Comunitria Popular Idep, Associao Nacional dos Advogados Afrodescendentes Anaad, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil CFOAB, Associao Direitos Humanos em Rede Conectas Direitos Humanos

    Arguio de descumprimento de preceito fundamental Atos que instituram sistema de reserva de vagas com base em critrio tnicoracial (cotas) no processo de seleo para ingresso em instituio pblica de ensino superior Alegada ofensa aos arts 1, caput, III; 3, IV; 4, VIII; 5, I, II, XXXIII, XLI, LIV; 37, caput; 205; 206, caput, I; 207, caput; e 208, V, todos da Constituio Federal Ao julgada improcedente

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    ADPF186

    I No contraria ao contrrio, prestigia o princpio da igualdade material, previsto no caput do art 5 da Carta da Repblica, a possibilidade de o Estado lanar mo seja de polticas de cunho universalista, que abrangem um nmero indeterminado de indivduos, mediante aes de natureza estrutural, seja de aes afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitirlhes a superao de desigualdades decorrentes de situaes histricas particulares

    II O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distores resultantes de uma aplicao puramente formal do princpio da igualdade

    III Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das polticas de ao afirmativa

    IV Medidas que buscam reverter, no mbito universitrio, o quadro histrico de desigualdade que caracteriza as relaes tnicoraciais e sociais em nosso pas no podem ser examinadas apenas sob a tica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critrios sobre outros, devendo, ao revs, ser analisadas luz do arcabouo principiolgico sobre o qual se assenta o prprio Estado brasileiro

    V Metodologia de seleo diferenciada pode perfeitamente levar em considerao critrios tnicoraciais ou socioeconmicos, de modo a assegurar que a comunidade acadmica e a prpria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispe o art1, V, da Constituio

    VI Justia social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforo coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores queles reputados dominantes

    VII No entanto, as polticas de ao afirmativa fundadas na discriminao reversa apenas so legtimas se a sua manuteno estiver condicionada persistncia, no tempo, do quadro de excluso social que lhes deu origem Caso contrrio, tais polticas poderiam converterse em benesses permanentes, institudas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um

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    ADPF186

    todo, situao escusado dizer incompatvel com o esprito de qualquer Constituio que se pretenda democrtica, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos

    VIII Arguio de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente

    ACRDO

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os ministros do Supremo Tribunal Federal, em sesso plenria, sob a presidncia do ministro Ayres Britto, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigrficas, por unanimidade e nos termos do voto do relator, julgar totalmente improcedente a arguio Votou o presidente, ministro Ayres Britto Ausente, justificadamente, o ministro Dias Toffoli

    Braslia, 26 de abril de 2012 Ricardo Lewandowski, relator

    DEBATE

    O sr. ministro Joaquim Barbosa: Ministro Ricardo Lewandowski, so os chamados role models

    O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator): Os role models ExatamenteO sr. ministro Joaquim Barbosa: O maior expoente hoje, sem dvida, no

    mundo inteiro, o presidente dos Estados Unidos Da a concluso que podemos tirar: a que pode levar uma poltica de ao afirmativa em to curto espao de tempo So meros cinquenta anos

    O sr. ministro Ayres Britto (presidente): Ou menosO sr. ministro Joaquim Barbosa: Sim Talvez menos, se contarmos do Civil

    Rights Act de 1964/65

    DEBATE

    O sr. ministro Joaquim Barbosa: Ministro Ricardo Lewandowski, desculpeme, no sou de interferir tanto, mas s para sublinhar Volta e meia lemos, na imprensa brasileira, sobre esse tema que Vossa Excelncia est abordando; alguns dizendo que essas aes afirmativas foram banidas nos Estados Unidos, ou banidas na Califrnia

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    ADPF186

    Pela Corte Suprema dos Estados Unidos, h duas decises fundamentais sobre o tema: uma de 1978, que o Caso Bakke x Regents, que consagrou, confirmou a viabilidade constitucional da utilizao do critrio raa na seleo pelas universidades; e a deciso de 2003, que o famoso Caso Grtter, que confirmou Bakke nesse sentido

    O resto so decises espordicas como o referendo da Califrnia, que proibiu l no Estado da Califrnia, mas no em nvel nacional; aqui e ali, Texas tambm

    EXTRATO DA ATA

    ADPF 186/DF Relator: Ministro Ricardo Lewandowski Requerente: Democratas DEM (Advogada: Roberta Fragoso Menezes Kaufmann) Interessados: Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso da Universidade de Braslia Cepe, reitor da Universidade de Braslia, Centro de Seleo e de Promoo de Eventos da Universidade de Braslia Cespe/UNB Amici curiae: Educao e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes Educafro (Advogados: Joo Manoel de Lima Junior e outros), Fundao Cultural Palmares (Procurador: Procuradorgeral federal), Movimento Negro Unificado MNU (Advogado: Gustavo Trancho de Azevedo), Movimento PardoMestio Brasileiro MPMB (Advogada: Juliana Ferreira Corra), Fundao Nacional do ndio Funai (Procurador: Procuradorgeral federal), Instituto de Advocacia Racial e Ambiental Iara e outros (Advogados: Shirley Rodrigues Ramos e outros), Defensoria Pblica da Unio (Defensor: Defensor pblicogeral federal), Movimento Contra o Desvirtuamento do Esprito da Poltica de Aes Afirmativas nas Universidades Federais (Advogados: Wanda Marisa Gomes Siqueira e outros), Instituto de Direito Pblico e Defesa Comunitria Popular Idep, Associao Nacional dos Advogados Afrodescendentes Anaad (advogados: Mrcio Thomaz Bastos e outros), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil CFOAB (Advogados: Oswaldo Pinheiro Ribeiro Jnior e outros), Associao Direitos Humanos em Rede Conectas Direitos Humanos (Advogados: Daniela Ikawa e outros)

    Deciso: Retirado de pauta por indicao do relator Ausente, justificadamente, o ministro Joaquim Barbosa Presidncia do ministro Cezar Peluso Plenrio, 192011

    Deciso: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do relator, rejeitou as preliminares de cabimento da arguio e de sua conexo com a ADI3197 Votou o presidente No mrito, aps o voto do ministro Ricardo Lewandowski (relator), julgando totalmente improcedente a arguio, o julgamento foi suspenso Impedido o ministro Dias Toffoli Falaram: pelo requerente, a doutora Roberta

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    ADPF186

    Fragoso Menezes Kaufmann; pelos interessados, a doutora Indira Ernesto Silva Quaresma, procuradora federal; pela AdvocaciaGeral da Unio, o ministro Lus Incio Lucena Adams, advogadogeral da Unio; pelos amici curiae Movimento contra o Desvirtuamento do Esprito da Poltica de Aes Afirmativas nas Universidades Federais e Instituto de Direito Pblico e Defesa Comunitria Popular (IDEP), a doutora Wanda Marisa Gomes Siqueira; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o doutor Ophir Cavalcante Jnior; Defensoria Pblica da Unio, o doutor Haman Tabosa de Moraes e Crdova, defensorpblico geral federal; Associao Direitos Humanos em Rede Conectas Direitos Humanos, o doutor Hdio Silva Jnior; Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) e outros, o doutor Humberto Adami Santos Jnior; Movimento Negro Unificado (MNU), a doutora Silvia Cerqueira; Educao e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), o doutor Thiago Bottino; Associao Nacional dos Advogados Afrodescendentes (ANAAD), o doutor Mrcio Thomaz Bastos, e, pelo Ministrio Pblico Federal, a viceprocuradorageral da Repblica, a doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira Presidiu o julgamento o ministro Ayres Britto

    Presidncia do ministro Ayres Britto Presentes sesso os ministros Celso de Mello, Marco Aurlio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Crmen Lcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Rosa Weber Viceprocuradorageral da Repblica, doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira

    Braslia, 25 de abril de 2012 Luiz Tomimatsu, assessorchefe do Plenrio

    RELATRIO

    O sr. ministro Ricardo Lewandowski:

    Argumentos e pleitos da inicialTratase de arguio de descumprimento de preceito fundamental, ajuizada

    pelo Partido Democratas (DEM), com pedido de liminar, que visa declarao de inconstitucionalidade de atos da Universidade de Braslia (UnB), do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso da Universidade de Braslia (CEPE) e do Centro de Promoo de Eventos da Universidade de Braslia (CESPE), os quais instituram o sistema de reserva de vagas com base em critrio tnicoracial (20% de cotas tnicoraciais) no processo de seleo para ingresso de estudantes

    Pretende, em sntese, com esta arguio de descumprimento de preceito fundamental, desconstituir os seguintes atos: a Ata de Reunio Extraordinria do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extenso da Universidade de Braslia (CEPE); a Resoluo 38, de 18 de julho de 2003, do Conselho de Ensino Pesquisa e Extenso

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    ADPF186

    da Universidade de Braslia; o Plano de Metas para Integrao Social tnica e Racial da UnB; o Item 2, subitens 22, 221, 23, o item 3, subitem 398 e o item7, todos do Edital 2, de 20 de abril de 2009, do 2 vestibular de 2009 dessa instituio federal de ensino superior

    O arguente alega, em suma, que tais atos ofendem os arts 1, caput, III; 3, IV; 4, VIII; 5, I, II, XXXIII, XLI, LIV; 37, caput; 205; 206, caput, I; 207, caput; e 208, V, todos da Constituio Federal Sustenta, em sntese, que a discriminao supostamente existente no Brasil uma questo social e no racial

    Entre as disposies contestadas, destaca as diretrizes do Plano de Metas para a Integrao Social, tnica e Racial da UnB, a seguir listadas:

    1 Disponibilizar durante 10 anos, 20% das vagas do vestibular para estudantes negros, em todos os cursos oferecidos pela Universidade;

    2 Disponibilizar, por um perodo de 10 anos, um pequeno nmero de vagas para ndios de todos os Estados brasileiros ();

    3 Alocar bolsas para negros e indgenas em situao de carncia, segundo os critrios usados pela Secretaria de Assistncia da UnB;

    4 Propiciar moradia para estudantes indgenas e conceder preferncia nos critrios de moradia para estudantes negros carentes [Grifos meus]

    Primeiramente, alega que o pedido observou o requisito da subsidiariedade para a propositura da arguio de descumprimento de preceito fundamental, uma vez que no haveria outro meio eficaz para sanar a alegada leso constitucional

    Afirma, a seguir, que a constitucionalidade do sistema de cotas raciais nas universidades brasileiras tem sido objeto de decises contraditrias por parte da magistratura de primeira e segunda instncias, nos mbitos estadual e federal, com resultados contraditrios

    Argumenta mais que,

    () considerando a pluralidade de decises divergentes sobre o tema; considerando que os atos (normativos e administrativos) emanados da Universidade de Braslia so autnomos e infralegais; e considerando a jurisprudncia consolidada na Carta Maior no sentido de no cabimento de Ao Direta de Inconstitucionalidade contra atos normativos de carter secundrio, afigurase fora de dvidas o cabimento da ADPF [Fl 24]

    Quanto ao mrito, assevera, de incio, o seguinte:

    a) no se discute, na ADPF, sobre a constitucionalidade de aes afirmativas, como gnero e como poltica necessria para incluso de minorias;

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    b) no se discute acerca do reconhecimento de que o Brasil adota o modelo de Estado Social;

    c) no se discute sobre a existncia de racismo, de preconceito e de discriminao na sociedade brasileira; ()

    Na sequncia, alega que

    a) na ADPF, discutese se a implementao de um Estado racializado ou do racismo institucionalizado, nos moldes praticados nos Estados Unidos, frica do Sul ou Ruanda, seria adequada para o Brasil ();

    b) pretende demonstrar que a adoo de polticas afirmativas racialistas no necessria no pas ();

    c) o conceito de minoria apta a ensejar uma ao positiva estatal difere em cada pas Depende da anlise de valores histricos, culturais, sociais, econmicos, polticos e jurdicos de cada povo ();

    d) discute to somente a constitucionalidade da implementao, no Brasil, de aes afirmativas baseadas na raa ();

    e) ningum excludo, no Brasil, pelo simples fato de ser negro ();f) cotas para negros nas universidades geram a conscincia estatal de raa,

    promovem a ofensa arbitrria ao princpio da igualdade, gerando discriminao reversa em relao aos brancos pobres, alm de favorecerem a classe mdia negra [Fls 2629]

    Sustenta, ainda, que se institucionalizou na UnB um verdadeiro tribunal racial para definir quem negro e quem no , questionando os critrios utilizados para esse fim

    Assevera, tambm, que os defensores dos programas afirmativos adotam a Teoria da Justia Compensatria, a qual

    () se lastreia na retificao de injustias ou de falhas cometidas contra indivduos no passado, ora por particulares, ora pelo governo () Por meio dessa teoria, asseverase que o objetivo seria o de promover o resgate da dvida histrica que os homens brancos possuem com relao aos negros [Fl 32]

    Afirma, contudo, que no se mostra factvel a adoo dessa teoria, seja porque no se pode responsabilizar as geraes presentes por erros cometidos no passado, seja porque impossvel identificar quais seriam os legtimos beneficirios dos programas de natureza compensatria

    Aduz, ainda, que, se no se pode definir objetivamente, sem margem de dvidas, os verdadeiros beneficirios de determinada poltica pblica, ento sua eficcia ser nula e meramente simblica

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    Consta, tambm, da inicial a assertiva de que inexiste o conceito de raa, argumento que, segundo o arguente, teria sido olvidado nas discusses sobre as aes afirmativas Alega, ademais, que as desigualdades entre brancos e negros no tm origem na cor e, mais, que a opo pela escravido destes ocorreu em razo dos lucros auferidos com o trfico negreiro e no por qualquer outro motivo de cunho racial

    Alerta, assim, para o perigo de importaremse modelos de outros pases, salientando que em Ruanda e nos Estados Unidos a adoo de teorias de classificao racial teria promovido uma verdadeira segregao entre os distintos grupos sociais

    O arguente, de resto, aponta para uma manipulao dos dados estatsticos, asseverando que ora os pardos so includos entre os negros, para se afirmar, por exemplo, que estes representam metade da populao, ora aqueles so excludos para se dizer que apenas 3% dos negros esto na universidade

    Alm disso, critica o sistema birracial de classificao norteamericano, o qual s admitiria duas raas, brancos e negros, inaplicvel, no seu entender, realidade multirracial brasileira, caracterizada por intensa miscigenao, que inviabilizaria os programas afirmativos, entre ns, baseados nesse critrio

    Argumenta, por fim, ser necessria a anlise dos programas institudos pela UnB sob o prisma da proporcionalidade

    Nesses termos, em carter liminar, postula

    a) que se suspenda a realizao do registro dos alunos aprovados no vestibular de julho de 2009, mediante o sistema universal e o sistema de cotas para negros, na UnB;

    b) que o Cespe divulgue nova listagem de aprovados, considerando todos os candidatos como se todos estivessem sido inscritos no sistema universal de ingresso na universidade, a partir das notas de cada candidato, independentemente do critrio racial;

    c) que o Cespe se abstenha de publicar quaisquer editais para selecionar e/ou classificar candidatos para ingresso na UnB com acesso diferenciado;

    d) que os juzes e Tribunais de todo pas suspendam todos os processos que envolvam a aplicao do tema cotas raciais para ingresso nas universidades [Fl 77]

    Depois, requer

    () que a ao seja julgada procedente, declarando a inconstitucionalidade, com efeitos erga omnes, ex tunc e vinculante, dos seguintes atos administrativos e normativos:

    a) Ata de Reunio Extraordinria do Cepe da UnB;b) Resoluo 38 do Cepe;

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    c) Plano de Metas para a Integrao Social, tnica e Racial da UnB;d) Os itens do edital do vestibular da UnB de 2009 que tratam da reserva de

    cotas [Fls 7879]

    Caso esta arguio de descumprimento de preceito fundamental no seja conhecida, pede seja ela recebida, alternativamente, como ao direta de inconstitucionalidade (fl 80)

    fl 613, o ministro Gilmar Mendes, ento no exerccio da presidncia do Supremo Tribunal Federal, requisitou informaes ao reitor da UnB, ao diretor do Cespe e ao presidente do Cepe, bem assim as manifestaes do advogadogeral da Unio e do procuradorgeral da Repblica

    Informaes dos arguidoss fls 628668, constam as informaes do reitor da UnB, do diretor do Cespe

    e do presidente do CepeEssas consignaram, em resumo, que

    () o combate discriminao por si s medida insuficiente implementao da igualdade; fundamental conjugar a vertente repressivopunitiva com a vertente promocional, combinando proibio da discriminao com polticas que promovam a igualdade [Fl 644]

    Acrescentaram, ainda, que

    () o fato de no haver lei estabelecendo o racismo no Brasil, mas, ao contrrio, vedandoo, no foi suficiente para que no houvesse discriminao, apenas fez com que essa fosse velada, camuflada [Fl 649]

    Contestando ideia segundo a qual, do ponto de vista cientfico, no existiria raa, os arguidos alegaram que a discriminao resultante da cor e da aparncia do indivduo e no de sua identidade gentica (fl 652)

    Afirmaram, ademais, que o sistema de reserva de cotas raciais importante para a democratizao do ensino superior, e que s deve ser abandonado quando forem eliminadas todas as restries ao acesso de certas categorias sociais universidade, esclarecendo que, hoje, os negros correspondem a apenas 2% do contingente de universitrios no Pas, apesar de representarem 45% da populao brasileira

    Quanto ao mtodo de seleo, aduziram o seguinte:

    Ao contrrio do afirmado pelo requerente, a comisso no secreta, havendo, inclusive, entrevista pessoal com os candidatos O que acontece a inexistncia de comunicao prvia informando qual ser a comisso, a fim de evitar que

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    sofra presses e constrangimentos indevidos, exatamente como reiteradamente feito h dcadas no apenas no prprio certame vestibular, mas tambm em numerosos concursos para cargos pblicos federais conduzidos no pas [Fl 664]

    Por fim, pleitearam que no se conhea desta arguio de descumprimento de preceito fundamental ou, ento, seja ela julgada improcedente, haja vista a plena constitucionalidade do sistema de cotas adotado pela Universidade de Braslia (fl 662)

    Parecer da Procuradoria-Geral da Repblicas fls 713 e seguintes, a viceprocuradorageral da Repblica, Dbora Duprat,

    em nome do Parquet federal, manifestouse pela improcedncia desta arguio de descumprimento de preceito fundamental, com a rejeio do pedido de liminar

    No parecer, destacou, em resumo, que

    () a Constituio de 1988 inserese no modelo do constitucionalismo social, no qual no basta, para a observncia da igualdade, que o Estado se abstenha de instituir privilgios ou discriminaes arbitrrias Pelo contrrio, partese da premissa de que a igualdade um objetivo a ser perseguido por meio de aes ou polticas pblicas, que, portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveito dos grupos desfavorecidos [Fls 714715]

    Aduziu, mais, que

    () a justia compensatria no o nico nem mesmo o principal argumento em favor da ao afirmativa para negros no acesso ao ensino superior Ao lado dela, h a justia distributiva, a promoo do pluralismo nas instituies de ensino e a superao de esteretipos negativos sobre o afrodescendente, com o conseguinte fortalecimento da sua autoestima e combate ao preconceito [Fl 722]

    Acrescentou, ainda, que a medida cautelar na jurisdio constitucional no deve ser deferida quando existe periculum in mora inverso, como ocorre no caso sob exame, pois

    () a concesso da medida liminar reclamada no apenas atingiria um amplo universo de estudantes negros como tambm geraria graves efeitos sobre as polticas de ao afirmativas de corte racial promovidas por outras universidades [Fl 732]

    Manifestao da Advocacia-Geral da Unio fl 751, a AGU observou que a discriminao racial na sociedade brasi

    leira evidente, constituindo fato notrio que no pode ser ignorado, o qual

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    compeliu os arguidos a instituir a reserva de vagas em favor dos estudantes negros e ndios

    Em resumo, opinou pela integral constitucionalidade do estabelecimento de distines jurdicas entre os candidatos s universidades, baseadas em critrios tnicoraciais, para facilitar o ingresso de estudantes pertencentes a grupos socialmente discriminados

    Esclareceu, nesse sentido, que

    () a reserva de vagas no medida excludente de outras com semelhantes finalidades, que podem com ela conviver A mera existncia de outros meios mais brandos de possvel adoo no argumento apto a qualificar o sistema de cotas como desnecessrio ou desmedido [Fl 761]

    Pugnou, ademais, tal como a PGR, pelo indeferimento da cautelar, por ausncia de seus pressupostos, especialmente porque estaria caracterizado, na espcie, o perigo na demora inverso, vez que a concesso da medida poderia causar dano a todos os estudantes aprovados no exame vestibular da UnB realizado em 2009 (fls 764/765)

    Apreciao da liminar pela Presidncias fls 767794, o ministro Gilmar Mendes, presidente do STF poca, inde

    feriu o pedido de liminar, nos termos abaixo:

    Embora a importncia dos temas em debate merea a apreciao clere desta Suprema Corte, neste momento no h urgncia a justificar a sua concesso O sistema de cotas raciais da UnB tem sido adotado desde o vestibular de 2004, renovandose a cada semestre

    A interposio da presente arguio ocorreu aps a divulgao do resultado final do vestibular 2/2009, quando j encerrados os trabalhos da comisso avaliadora do sistema de cotas

    Assim, por ora, no vislumbro qualquer razo para a medida cautelar de suspenso do registro (matrcula) dos alunos que foram aprovados no ltimo vestibular da UnB ou para qualquer interferncia no andamento dos trabalhos da Universidade [Fl 793]

    Pedidos de ingresso como amicus curiaeA Central nica dos Trabalhadores do Distrito Federal (CUT/DF) requereu a

    sua participao no processo na qualidade de amicus curiae Afirmou ostentar, entre suas finalidades estatutrias, a luta contra a discriminao racial, alm

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    ADPF186

    de ser a favor de medidas tendentes ao desenvolvimento cultural, social e econmico dos grupos sociais discriminados (fl 821)

    A Defensoria Pblica da Unio (DPU) tambm solicitou sua admisso no feito nessa mesma condio. Sustentou que tem como misso precpua a assistncia jurdica gratuita a pessoas carentes Asseverou, mais, que os eventuais beneficirios das cotas coincidem com aqueles que merecem o seu atendimento e cuidado

    Ademais, pretendeu ser ouvida por versarem os autos sobre matria que, abstratamente considerada, enquadrase entre as suas atividades institucionais (fl 879)

    Tambm o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara), a Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Scio Cultural (Afrobras), o Instituto Casa da Cultura AfroBrasileira (ICCAB), o Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (IDDH), e a organizao no governamental Criola requereram o seu ingresso nesta arguio de descumprimento de preceito fundamental como amici curiae

    Em preliminar, alegaram a conexo da presente arguio de descumprimento de preceito fundamental com a ao direta de inconstitucionalidade ADI 3197/RJ, rel min Dias Toffoli, j que a causa de pedir a inconstitucionalidade do sistema de cotas para negros

    Alm disso, requereram seja esta ao inadmitida, de plano, porquanto no houve exaurimento das instncias jurisdicionais (fl 897), defendendo, outrossim, a manuteno do indeferimento da liminar (fl 900)

    Alegaram, ainda, que possuem

    () poderes estatutrios de se oporem a quaisquer formas de atos que possam concorrer para o prejuzo dos cidados por motivos de ordem social, econmica, racial, religiosa e sexual em todo o territrio nacional ou no, em especial, os afrobrasileiros [Fl 898]

    Acrescentaram, no mrito, que no h, no caso, qualquer violao ao princpio da isonomia, porquanto

    () a inteno de darse um tratamento mais favorvel a quem est em situao de desvantagem, em razo de serem grupos dbeis econmica e socialmente, no caracteriza arbtrio ou violao do princpio da igualdade, pelo contrrio, pretende viabilizar a isonomia material [Fl 906]

    Por fim, pugnaram fosse: (i) indeferida a liminar; (ii) afastada a pretenso de receberse, alternativamente, esta arguio de descumprimento de preceito fundamental como ao direta de inconstitucionalidade; (iii) julgada improcedente a ao; (iv) declarada a constitucionalidade da reserva de vagas em

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    favor dos grupos mencionados no ato impugnado; (v) autorizada a produo de provas documentais, especialmente pareceres de especialistas; e (vi) deferida a realizao de audincias pblicas (fl 925)

    Igualmente, o Movimento PardoMestio Brasileiro (MPMB) pediu a sua admisso no feito na qualidade de amicus curiae (fls 11671168), ao argumento de que

    () a primeira associao de mestios (pardos) do pas, atuando desde 2001, embora seu registro tenha ocorrido somente em 2006 [Fl 1171]

    Sustentou, em resumo, a inconstitucionalidade da reserva de vagas para o acesso ao ensino superior de candidatos considerados negros pela comisso julgadora da UnB, por entender que o referido sistema, ao exigir uma autodeclarao dos candidatos,

    () mostrase incompatvel com o dever do Estado de proteger todos os grupos participantes do processo civilizatrio nacional e de valorizar a diversidade tnica e regional que no se limita s culturas indgenas e afrobrasileiras [Fl 1171]

    A Fundao Nacional do ndio (Funai), da mesma forma, requereu o seu ingresso nesta arguio de descumprimento de preceito fundamental na condio de amicus curiae, asseverando que

    () o sistema de cotas da UnB alcana tambm os indgenas e que a ao visa acabar com qualquer sistema de cotas e no somente a dos negros [Fl 1265]

    Entendeu que esta ao no pode ser conhecida, pois,

    () levando em considerao que a Resoluo do CEPE no se baseia em nenhuma lei, mas deriva diretamente da autonomia universitria prevista no art 206 da Constituio Federal, uma Ao Direta de Inconstitucionalidade poderia ter sido ajuizada, e seria eficaz para sanar eventual lesividade [Fl 1271]

    Consignou, ainda, que a afirmao feita pelo arguente de que no existe racismo desqualifica a experincia de vida da pessoa discriminada, negando a sua realidade (fl 1279)

    Afirmou, tambm, que a ausncia de dio racial no significa ausncia de racismo, o qual no se manifesta apenas por meio desse sentimento extremo, mas revelase igualmente sob a forma de desprezo e excluso (fl 1282)

    Alegou, em acrscimo, que no Brasil no h necessidade de empregarse o critrio de ancestralidade para definir quem negro ou ndio, tampouco utilizar exames genticos, eis que aqui o preconceito de marca e no de origem (fl 1310)

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    s fls 17411806, a Fundao Cultural Palmares tambm pleiteou a respectiva habilitao na condio de amicus curiae Argumentou que a sua representatividade e seu interesse em integrar o processo tem como base o art 2, IX, do respectivo Estatuto (Decreto 6853/2009), qual seja, o de

    () apoiar e desenvolver polticas de incluso da populao negra no processo de desenvolvimento poltico, social e econmico dessa populao [Fls 17421744]

    Destacou, ademais, que

    () o sistema de cotas previsto para o acesso aos cursos superiores contm uma nota de corte, ou seja, os candidatos, independentemente de estarem ou no includos no programa de cotas, devem atingir uma nota mnima, nota que poderia habilitar todos para o ingresso na universidade, caso o Brasil dispusesse de um sistema de ensino superior que ofertasse mais vagas nas instituies pblicas Portanto, no se trata de colocar cotistas sem condies de aprendizado, que possa afetar a qualidade de ensino da universidade e muito menos vitimizar ou preterir candidatos no optantes das cotas Esse um grande equvoco que o debate pblico das cotas no aborda As pessoas, em geral, acham que os cotistas, independentemente da nota, ingressaro na universidade, o que errado [Fls 17641765]

    fl 1776, afirmou que a

    () reserva de vagas no processo seletivo da UnB e de outras universidades apresenta um juzo de adequao de diversos aspectos que cercam o tema: (i) tratase de uma poltica pblica que no est em sentido contrrio Constituio sendo, portanto, legtima e parte da esfera de discriminao poltica; (ii) o exame de seleo, que realizado por todos os candidatos inscritos, atendeu ao princpio da proporcionalidade, compatibilizando o princpio do art 208, V, da Carta Magna, com o princpio da igualdade material de acesso universidade (art 206, I, da CF/88) e o princpio da reduo das desigualdades sociais (art 3, III, CF/88)

    O Movimento Negro Unificado tambm solicitou sua habilitao nos autos como amicus curiae Enfatizou que

    () um dos movimentos sociais com mais slida atuao no combate ao racismo e que, em seu esprito de formao e em sua experincia, congrega diversas organizaes afrobrasileiras [Fl 1854]

    Deferi os pleitos de ingresso, como amicus curiae, das seguintes entidades: Defensoria Pblica da Unio (DPU); Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara); Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Scio Cultural (Afrobras);

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    Instituto Casa da Cultura Afrobrasileira (ICCAB); Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (IDDH); Movimento PardoMestio Brasileiro (MPMB); Fundao Nacional do ndio (Funai); Fundao Cultural Palmares; Movimento Negro Unificado (MNU); Educao e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro), Conectas Direitos Humanos e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB)

    Pronunciamentos veiculados na Audincia Pblicas fls 871876, 1202 e 1203, no uso das atribuies conferidas pelo art 21, XVII,

    do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, e nos termos do Despacho Convocatrio de 15 de setembro de 2009, determinei a realizao de Audincia Pblica sobre polticas de ao afirmativa para o acesso ao ensino superior pblico, que se realizou nos dias 3, 4 e 5 de maro de 2010

    No dia 3 de maro, falaram os representantes das instituies estatais responsveis pela regulao e organizao das polticas nacionais de educao e de combate discriminao tnica e racial, bem como do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), rgo responsvel por mensurar os resultados dessas polticas pblicas, alm das partes relacionadas aos processos

    A ProcuradoriaGeral da Repblica, representada pela viceprocuradorageral da Repblica, Dbora Duprat, defendendo as aes afirmativas, sustentou, em suma, que a poltica de cotas raciais, diferentemente do discurso que cria castas, inclui os grupos que, historicamente, tiveram seus direitos ignorados

    Explicou que: o direito, rigorosamente, nunca foi alheio s diferenas Pelo contrrio, tratou delas cuidadosamente Disse, ainda, que a Constituio de 1988, nos arts 215 e 216, reconhece e protege, expressamente, o carter plural da sociedade brasileira, recuperando o espao ontolgico da diferena Para a viceprocuradorageral, as cotas, antes de atentar contra o princpio da igualdade, elas realizam a igualdade material

    O representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Miguel ngelo Canado, registrou que a questo resumese em saber se as aes afirmativas, como as estabelecidas pela Universidade de Braslia, esto ou no em sintonia com a Constituio Federal, tendo em conta temas como o racismo e a excluso social Asseverou, no entanto, que a entidade que representa no adotou uma posio definitiva sobre o assunto

    J o advogadogeral da Unio, Lus Incio Lucena Adams, defendeu as polticas de cotas raciais Argumentou que elas revelam uma atuao estatal amplamente consentnea com a Constituio Federal, pois foram elaboradas a partir

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    da autonomia universitria Acrescentou que os programas de incluso estabelecidos no desbordaram das balizas da proporcionalidade

    Ademais, alvitrou o estabelecimento de medidas compensatrias para amenizar o quadro de discriminao no Pas, por meio de aes distributivas, sobretudo para integrar na sociedade as comunidades negras e indgenas

    Aduziu, ainda, que

    () o comando do art 208, V, da Constituio Federal deve ser lido a partir do influxo dos valores de igualdade, de fraternidade e pluralismo, que, somados, impem a desigualao dos candidatos a uma vaga no ensino superior de modo a compensar as injustias histricas cometidas contra os negros, permitindo a concretizao do primado da igualdade material

    O ministro de Estado Edson Santos de Souza, da Secretaria Especial de Polticas de Promoo de Igualdade Racial, por sua vez, salientou que a Constituio oferece os instrumentos para a atuao do Estado no campo da reduo da discriminao racial e da promoo da igualdade no Pas Ressaltou que, em 2002, o Brasil participou da Conferncia contra o Racismo, realizada em Durban, na frica do Sul, comprometendose com a criao de polticas e instrumentos de promoo da igualdade racial e combate ao racismo

    De sua parte, o coordenadorgeral de Educao em Direitos Humanos da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), Erasto Fortes de Mendona, consignou ser justo que se pratiquem

    () aes afirmativas de instituio de cotas raciais para o ingresso no ensino superior, uma vez que as polticas universais de acesso no lograram xito no sentido de incluir essa parcela da sociedade

    Acrescentou que ser branco pobre e ser negro pobre so conceitos muito diferentes Este ltimo discriminado duplamente, tanto por sua situao econmica, quanto pela sua condio racial De acordo com ele, o racismo no pergunta a suas vtimas a quantidade de sua renda mensal.

    Representando o Ministrio da Educao e a Secretaria de Educao Superior, Maria Paula Dallari Bucci sustentou a ideia de que as aes afirmativas so procedimentos adotados para promover maior equidade no acesso educao Elas reduzem as diferenas de oportunidades e possibilitam que a composio multirracial da sociedade brasileira esteja representada em todos os nveis e esferas de poder e autoridade Observou, tambm, que os estudantes cotistas tm desempenho igual ou at superior ao dos alunos que ingressaram pelo sistema universal

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    Carlos Frederico de Souza Mares, representante da Fundao Nacional do ndio, defendeu a poltica de cotas raciais nas universidades brasileiras Assegurou que seria no s inconstitucional e ilegal a extino do sistema de cotas, como tambm militaria contra o prprio desenvolvimento da cincia e do conhecimento no Pas Em seu entender, para que haja igualdade efetiva, necessrio que existam polticas pblicas e leis que transformem em iguais os desiguais

    Por seu lado, o diretor de Cooperao e Desenvolvimento do Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (IPEA), Mrio Lisboa Theodoro, afirmou que estudos realizados constataram que a desigualdade racial no Brasil patente e que a poltica de cotas no ensino superior constitui o principal mecanismo para superar esse problema O pesquisador apresentou dados estatsticos por meio dos quais procurou demonstrar: (i) a ocorrncia de um racismo institucionalizado; (ii) a persistncia da excluso dos negros do mercado de trabalho e do ensino em geral; e (iii) a existncia de uma desigualdade social de cunho racial

    O Partido Democratas (DEM), que ajuizou esta arguio de descumprimento de preceito fundamental, representado pela advogada Roberta Fragoso Menezes Kaufmann, sustentou a inconstitucionalidade do sistema de cotas nas universidades pblicas

    Disse que esta arguio de descumprimento de preceito fundamental apenas questiona as cotas para negros nas universidades, mas que, em nenhum momento, se insurge contra as polticas de incluso dos indgenas Alegou, mais, que, por meio desta ao, busca identificar o que, em cada sociedade, deva ser considerada minoria apta a proteo estatal

    J a Universidade de Braslia, representada por Jos Jorge de Carvalho, esclareceu, inicialmente, as razes da adoo do sistema de cotas raciais para o ingresso na instituio, lembrando que ele foi adotado no ano de 2003, em resposta a uma constatao de que o espao acadmico da universidade era altamente segregado racialmente

    Sugeriu, ademais, que as universidades deveriam estudar formas de promover aes afirmativas no s para os cursos de graduao, mas tambm para o mestrado e o doutorado

    Caetano Cuervo Lo Pumo, advogado do recorrente no RE 597285/RS, com repercusso geral reconhecida, destacou que seu cliente, Giovane Pasqualito Fialho, foi o 132 colocado no vestibular para o preenchimento de 160 vagas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, observando que, se a UFRGS tivesse utilizado exclusivamente o critrio de mrito, ele teria sido classificado

    Registrou, ainda, que a relativizao do critrio de mrito para o acesso ao ensino superior brasileiro pode trazer graves consequncias ao Pas, em especial

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    no mbito internacional, j que este signatrio do Protocolo de So Salvador, o qual garante o acesso ao ensino superior com base no citado critrio

    Representando a recorrida Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Denise Fagundes Jardim explicou que o sistema de cotas implantado naquela instituio resultou de um amplo debate realizado em 2004, quando se discutiu a reforma universitria Anotou que tal sistema tem alcanado resultados positivos, porquanto trouxe para a academia a questo tnicoracial, possibilitando, ao longo do tempo, a incluso de cidados diversos em diferentes campos de conhecimento Asseverou, mais, que

    () a adoo de aes afirmativas, alm de reverter os preconceitos raciais que causam impacto na estrutura social, constituem importante contribuio s polticas pblicas de promoo cidadania por sinalizarem direitos constitucionais da coletividade que foram relegados s margens da dignidade humana

    No dia 4 de maro, iniciouse o contraditrio entre os defensores da tese da constitucionalidade e da inconstitucionalidade das polticas de reserva de vagas para o acesso ao ensino superior, fazendo uso da palavra cinco representantes de cada lado

    A primeira expositora do segundo dia, Wanda Marisa Gomes Siqueira, que falou em nome dos estudantes alegadamente prejudicados pelo programa de ao afirmativa adotado na UFRGS, disse que a favor da implantao de aes afirmativas, mas no da forma como o faz a referida instituio de ensino, j que ela no exige a comprovao de renda dos alunos egressos de escolas pblicas e nem dos negros

    Afirmou, ainda, que nem todas as vagas destinadas aos autodeclarados negros foram preenchidas, o que acarretou srios prejuzos aos alunos que se prepararam para o vestibular, e que alcanaram as notas exigidas, pois se viram impedidos de preencher os lugares sobejantes

    O especialista em gentica humana Srgio Danilo Pena, ao usar da tribuna, apresentou o resultado de suas pesquisas, mediante as quais pretendeu comprovar que o conceito de raa no aplicvel aos brasileiros, uma vez que, sob a perspectiva da ancestralidade e da gentica, no existiria qualquer diferenciao entre eles Segundo o pesquisador,

    () do ponto de vista cientfico, raas humanas no existem e () no apropriado falar de raa, mas sim de caractersticas de pigmentao da pele E a cor da pele no est geneticamente associada a nenhuma habilidade intelectual, fsica e emocional

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    Habilitada para falar contra as aes afirmativas, Yvonne Maggie no compareceu Audincia Pblica em decorrncia de problemas de sade No entanto, enviou uma carta, lida por terceiros, na qual defendeu a inconstitucionalidade do sistema de cotas raciais, em particular por institurem, no seu entender, uma espcie de apartheid social

    Segundo ela, setores do governo e certas organizaes no governamentais, na busca de atalhos para a justia social, querem impor ao Brasil polticas j experimentadas em outras partes do mundo, as quais trouxeram mais dor do que alvio Acrescentou que leis raciais no tm o condo de combater as desigualdades, mas apenas estimulam a ideia de que as pessoas so desiguais e possuem direitos distintos conforme a raa

    Tambm George de Cerqueira Leite Zarur, da Faculdade LatinoAmericana de Cincias Sociais, criticou os programas de aes afirmativas baseados em cotas raciais, para acesso ao ensino superior Ressaltou que as pessoas no podem ser diferenciadas pela aparncia ou pela raa, no se mostrando vlida, no caso, a regra de tratarse desigualmente os desiguais, pois seres humanos, pretos ou brancos, no so desiguais

    Aduziu, mais, haver manipulao estatstica quando se fala no nmero de negros no Brasil Esse nmero teria sido multiplicado por 10, ao se dividir a populao brasileira entre negros e brancos Isso porque se incluiu naquele universo 5% autodeclarados negros, 45% de pardos e mestios, que se transformaram, fora, em afrodescendentes, quando na verdade so afro, ndio e eurodescendentes

    Eunice Ribeiro Durham, que tambm no pde comparecer Audincia Pblica, teve sua manifestao lida pela procuradora do DEM De acordo com o texto que enviou, a adoo de cotas nas universidades apresenta vrios aspectos negativos, a exemplo da avaliao e seleo de estudantes no por mrito, mas por questes que no influenciam o seu desempenho, como cor da pele, tipo de cabelo, feies faciais e origem tnica

    Acrescentou, mais, que o vestibular uma forma de neutralizar a manifestao de discriminaes, visto que alunos de qualquer raa, renda, sexo so reprovados ou aprovados exclusivamente em funo de seu desempenho Nesse sentido, registrou que

    () isso significa que os descendentes de africanos no so barrados no acesso ao ensino superior por serem negros, mas por deficincia em sua formao escolar anterior

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    O representante da Associao de Procuradores do Estado (ANAPE), Ibsen Noronha ressaltou, em sntese, que, com a instituio do sistema de cotas nas universidades, h um real perigo de se cometerem injustias tendose em conta uma suposta dvida histrica; pois, desde o sculo XVI, h registro de negros libertos no Brasil que prosperaram economicamente

    Luiz Felipe de Alencastro, representante da Fundao Cultural Palmares, defendeu as aes afirmativas destinadas a reservar vagas nas universidades pblicas Lembrou que, a partir de 2010, os afrodescendentes, quais sejam, os autodeclarados negros e os pardos, passaram a formar a maioria da populao no Pas

    De acordo com ele, a reduo das discriminaes que ainda pesam sobre os negros contribuir para consolidar a democracia brasileira Alm disso, recordou que a comunidade universitria e cientfica se beneficia com a presena dos estudantes cotistas

    Representando a Conectas, Oscar Vilhena posicionouse favoravelmente s cotas raciais Afirmou que os programas de aes afirmativas que incluem os critrios raa, pobreza e origem escolar, entre outros, no apenas so compatveis com o princpio constitucional da igualdade, como tambm representam um meio eficaz para darlhe concreo Nessa linha, aduziu que

    () as aes afirmativas ajustam aquelas condies que no foram dadas a determinados setores, para que todos possam concorrer em igualdade de condies O acesso educao universitria deve ser segundo a capacidade, mas o nosso vestibular no mede a capacidade, mede o investimento

    Falando pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade de So Paulo USP, Kabengele Munanga tambm se colocou a favor dos programas de cotas raciais por serem polticas de integrao de setores discriminados da sociedade, esclarecendo que

    () o que se busca pela poltica de cotas para negros e indgenas no para terem direito s migalhas, mas sim para terem acesso ao topo em todos os setores de responsabilidade e de comando na vida nacional em que esses dois segmentos no so devidamente representados, como manda a verdadeira democracia

    Leonardo Avritzer, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sublinhou a importncia da diversidade dentro das instituies acadmicas, defendendo a adoo do critrio de raa para a sua ampliao, embora no como nico fator para justificar as aes afirmativas Em sua opinio, essas polticas

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    transcendem o mbito da universidade, pois tambm contribuem para a diversificao do mercado de trabalho

    Em nome da Sociedade Afrobrasileira de Desenvolvimento Scio Cultural (AFROBRAS), Jos Vicente lembrou que aes afirmativas e reserva de vagas vm sendo adotadas h muito tempo no Pas, enfatizando que,

    () onde houver desigualdade, obrigao e dever moral, tico e constitucional do Estado agir de modo prprio, ainda que de forma extraordinria e excepcional, para a equalizao das oportunidades

    Destacou, ainda, que o papel do sistema de cotas da Universidade de Braslia, alm de promover e homenagear a justia, tem a capacidade de calcinar a profunda fratura exposta que mantm separados e desiguais negros e brancos em nosso pas

    No dia 5 de maro, pela manh, deuse continuidade ao contraditrio entre os defensores das teses da constitucionalidade e da inconstitucionalidade das polticas de reserva de vagas Nessa oportunidade, aqueles que se colocaram ao lado da constitucionalidade iniciaram o debate, seguidos pelos que se posicionaram contra a medida

    Fbio Konder Comparato, representante da Educafro, assinalou que a Constituio de 1988 adotou o chamado Estado Social, que tem a obrigao de atuar positivamente no combate s desigualdades de qualquer natureza Tal dever, segundo o mencionado professor, estaria estampado, em especial, no art 3, III e IV, do Texto Magno O descumprimento desse comando representaria completa desconfigurao do perfil do Estado brasileiro desenhado pelos constituintes, cuja principal misso seria promover a justia social

    Anotou, por fim, que ao Supremo Tribunal Federal competiria apenas decidir sobre a constitucionalidade ou no das polticas pblicas submetidas a seu exame, no cabendo Corte emitir qualquer juzo de valor acerca da eventual eficincia ou ineficincia delas

    Flvia Piovesan, por seu turno, manifestouse pela constitucionalidade do sistema de cotas, sustentando que, ao lado do direito igualdade, existe o direito diferena, o qual no pode ser utilizado para aniquilar direitos, devendo, ao revs, servir para afirmlos e promovlos

    Acrescentou que a Conveno sobre a Eliminao de todas as Formas de Preconceito, ratificada pelo Brasil, probe qualquer tipo de discriminao, prevendo, em seu art 1, 4, a adoo de aes afirmativas Preconizou, ainda, a busca da igualdade material a que se refere a Constituio vigente, em particular nos

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    arts 3; 206, III; e 215, os quais reconhecem, expressamente, a importncia das comunidades indgenas e afrobrasileiras na formao da cultura nacional

    Por derradeiro, assentou que o sistema de cotas raciais adotado nas universidades brasileiras est em plena harmonia com a ordem jurdica interna e internacional

    Denise Carreira, representante da organizao no governamental Ao Educativa, posicionouse a favor das polticas afirmativas Sustentou que no se pode esperar mais 67 anos para que os indicadores educacionais de brancos e negros se igualem Isso significaria o sacrifcio de mais de trs geraes, alm de dezenas que ao longo da histria brasileira foram penalizadas pelo racismo

    Assentou, ainda, que

    () a experincia das aes afirmativas no constitui modismo ou imposio de um modelo fechado como dos Estados Unidos, da ndia ou de qualquer outro pas Isso seria negar que o pas j possui uma histria de aes afirmativas desde a dcada de 1930

    O representante da Coordenao Nacional de Entidades Negras (CONEN), Marcos Antnio Cardoso, disse acreditar que as aes afirmativas no Brasil, baseadas no sistema de cotas raciais, objetivam, basicamente, tornar explcito o racismo e os conflitos tnicoraciais entre ns, buscando romper com a aceitao tcita das desigualdades raciais Ressaltou, mais, que as aes afirmativas e o sistema de cotas so medidas necessrias para promover o acesso da juventude negra e pobre ao ensino superior pblico Concluiu, assentando que essas medidas tm um efeito muito mais agregador sobre a nacionalidade

    No mesmo sentido, manifestouse Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra de So Paulo (GELEDS), para quem as medidas compensatrias em favor dos negros no representam apenas uma etapa da luta contra a discriminao, mas o fim de uma era de desigualdade e excluso social Afirmou, mais, que o mito da democracia racial fundamentado em uma sensao unilateral e branca de conforto nas relaes interraciais

    Defendendo a tese da inconstitucionalidade do sistema acolhido nas universidades pblicas, como meio de ingresso no ensino superior, o Juiz da 2 Vara Federal de Florianpolis/SC, Carlos Alberto Dias, asseverou que a reserva de vagas no resolve a questo do racismo no Brasil Segundo o magistrado,

    () a adoo de cotas transforma o judicirio em rbitro, segundo um critrio absolutamente artificial, o fentipo, para conceder direitos

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    Por sua vez, o representante da Comisso de Assuntos Antidiscriminatrios da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Estado de So Paulo OAB/SP, Jos Roberto Ferreira Milito, registrou que defende as aes afirmativas, mas acredita que o Estado no pode impor uma identidade racial Questionou se seria correto criar um racialismo estatal com o escopo de beneficiar um pequeno percentual de pessoas

    Jos Carlos Miranda, representante do Movimento Negro Socialista, asseverou que o sistema de cotas deveria ser direcionado aos estudantes de baixa renda e sem considerar a raa, j que os excludos das universidades so filhos de trabalhadores pobres, independentemente de sua cor Afirmou, tambm, que a aplicao das cotas raciais s pode ser um atestado de incompetncia do Estado brasileiro, que no logrou alcanar a universalizao dos servios pblicos gratuitos de qualidade

    A ltima a defender a inconstitucionalidade das cotas raciais, Helderli Fideliz Castro, representante do Movimento PardoMestio Brasileiro (MPMB), alegou que o sistema de cotas adotado pela Universidade de Braslia no configura ao afirmativa, pois tem por base

    () uma elaborada ideologia de supremacismo racial que visa eliminao poltica e ideolgica da identidade mestia brasileira

    De acordo com ela, o sistema no se destina a proteger pretos e pardos em si, mas apenas defende aqueles que se autodeclaram negros, excluindo os que se identificam como mestios, mulatos, caboclos e, ainda, aqueles que, embora se autodeclarem negros, so de cor branca

    No perodo da tarde do dia 5 de maio, foram apresentadas as experincias das universidades pblicas relativas aplicao das polticas de ao afirmativa destinadas a ampliar o acesso de estudantes ao ensino superior Depois dessas exposies, a Associao dos Juzes Federais (AJUFE) esclareceu como tm sido julgados os litgios decorrentes da aplicao dessas medidas, fazendo meno a decises conflitantes acerca do assunto

    Alan Kardec Martins Barbiero, representante da Associao Nacional dos Diretores de Instituies Federais de Ensino Superior (ANDIFES), em seguida, afirmou que as universidades, com base no art 207 da Constituio, possuem autonomia para adotar o sistema de cotas que julgarem mais apropriado para cada instituio, levando em conta a realidade de cada regio Asseverou, mais, que a sociedade brasileira ainda desconhece a sua realidade, caracterizada por elevados ndices de desigualdade socioeconmica, em particular os fundados em razes tnicoraciais

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    O presidente da Unio Nacional dos Estudantes, Augusto Canizella Chagas, posicionouse favoravelmente adoo de polticas de ao afirmativa Argumentou que a universidade brasileira excludente, elitizada e branca, pois os jovens que tm acesso a ela so, em regra, aqueles que fizeram cursinhos prvestibulares ou estudaram em escolas particulares Sustentou, ainda, que, para mudar esse cenrio, so necessrias polticas afirmativas de incluso e democratizao no tocante ao acesso s instituies de ensino superior

    Joo Feres, representante do Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), ao defender o sistema de cotas, afirmou que o argumento segundo o qual, no Brasil, o preconceito de classe, e no de raa, afigurase falso Os no brancos sofrem desvantagens crescentes ao tentarem subir na escala social, em todas as fases do processo de transio de um status social para outro

    Representando a Universidade de Campinas, o Coordenador da Comisso de Vestibulares, Renato Hyuda de Luna Pedrosa, explicou que a Unicamp direcionou a sua poltica antidiscriminatria para o processo seletivo dos estudantes de graduao, criando o Programa de Ao Afirmativa e Incluso Social (PAAIS), no qual levou em considerao o princpio da autonomia universitria, a busca da excelncia acadmica e a necessidade de promover a incluso social de grupos desfavorecidos

    Explicou que o referido programa, aplicado pela primeira vez para a turma ingressante de 2005, adota os seguintes critrios:

    1) Bonificao de pontos: a) +30 pontos na nota final se candidato cursou todo o Ensino Mdio na rede pblica, b) +10 pontos na nota final se, alm do acima, declarouse preto, pardo ou indgena

    2) Iseno da taxa de inscrio do vestibular (R$115,00): a) o candidato deve ter cursado toda a Educao Bsica na rede pblica (Ensinos Fundamental e Mdio) e b) deve ter renda familiar mensal de no mximo 5 salrios mnimos

    3) Ampliao do programa de apoio estudantil, para garantir a permanncia dos candidatos de baixa renda, visando a atender os cerca de 250 novos alunos nessa condio que seriam admitidos pela Unicamp

    Destacou, ainda, que, antes da adoo dessa poltica, o percentual de estudantes matriculados e oriundos de escola pblica era de 29%, passando para 32%, depois da implementao do programa (20052009) J o percentual de pretos, pardos e indgenas era de 11%, elevandose para 15% Ao final, observou que os alunos egressos de escola pblica e os que se autodeclararam pretos, pardos ou

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    indgenas tiveram bom desempenho ao longo do curso e no o abandonaram antes de conclulo

    Por seu turno, Eduardo Magrone, prreitor de Graduao da Universidade Federal de Juiz de Fora, explicou que nela so reservadas 50% das vagas de cada curso de graduao para egressos das escolas pblicas e 25% dessas vagas para candidatos autodeclarados negros

    A distribuio das vagas feita da seguinte maneira: Grupo A vagas do sistema de cotas para os candidatos que tenham cursado, pelo menos, sete sries do ensino fundamental ou mdio em escolas pblicas e se autodeclararem negros; Grupo B vagas do sistema de cotas para os candidatos que tenham cursado, pelo menos, sete sries do ensino fundamental ou mdio em escolas pblicas; e Grupo C vagas destinadas aos candidatos no optantes pelo sistema de cotas

    Registrou, ademais, que: (i) as vagas no preenchidas pelos candidatos do grupo A so reservadas aos do grupo B; (ii) as vagas no preenchidas pelos candidatos dos grupos A e B so destinadas aos do grupo C; e (iii) as vagas no preenchidas no grupo C so consideradas remanescentes

    Por fim, constatou, avaliando a poltica de ao afirmativa adotada na universidade, que:

    a) candidatos cotistas tm resultados mais modestos do que os que ingressaram na universidade pelo sistema de cotas universal Mas, sem a poltica de cotas, alunos que hoje esto estudando em cursos de alta demanda no estariam na universidade;

    b) os alunos cotistas deveriam ser submetidos a um processo de nivelamento mnimo, em especial quanto aos conhecimentos bsicos de cincias exatas, visto que todos os cursos com ndice de rendimento acadmico mediano inferior a 70 concentramse nesta rea;

    c) a condio escola pblica, tomada de forma geral, no se revela suficiente para favorecer o ingresso de alunos socialmente desfavorecidos;

    d) o apoio estudantil ao aluno cotista deve ir alm das garantias materiais para a sua permanncia nos cursos, abrangendo tambm os aspectos pedaggicos, psicolgicos e de socializao no meio universitrio

    Jnia Saldanha, representante da Universidade Federal de Santa Maria, anotou que o impacto da adoo de polticas afirmativas para lograr uma maior democratizao do acesso a universidades pblicas tem sido positivo, sustentando que

    () falar em aes afirmativas falar em luta por reconhecimento, que a luta contra qualquer violao dignidade e a honra

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    Disse, mais, que, do seu quadro de aproximadamente 1200 docentes, menos de 1% so negros, e que o percentual, no conjunto de alunos, historicamente, foi muito diminuto, praticamente, igual a zero, sobretudo nos cursos considerados nobres como Medicina, Direito e Engenharia

    O Programa de Cotas da UFSM, segundo ela, consiste em reservar 10% a 15% das vagas para negros, de forma progressiva, 5% para pessoas com necessidades especiais, 20% para oriundos de escolas pblicas e um nmero de 5 a 10 vagas, tambm progressivamente, para ndios, pelo perodo de 10 anos Alm disso, para atingir a finalidade do sistema de cotas, foram institudos pontos de corte especficos por categoria, que se dividem em: A (cotas raciais); B (cotas de pessoas com necessidades especiais); C (cotas para alunos integralmente procedentes de escolas pblicas); D (cotas para os ndios); e E (vagas para os demais vestibulandos)

    O vicereitor da Universidade do Estado do Amazonas, Carlos Eduardo de Souza Gonalvez, por sua vez, afirmou que o sistema de cotas ajudou a ampliar o acesso ao ensino superior em todo o Estado Lembrou que a universidade foi criada em 2001, exatamente, com o objetivo de interiorizar o ensino superior

    A referida instituio estabeleceu um sistema de cotas para ingresso na universidade assim dividido: 20% das vagas para estudantes de qualquer Estado e 80% delas para candidatos que cursaram o ensino mdio no Amazonas, sendo que, desses 80%, 40% so reservadas para egressos de qualquer escola e 60% para os que vm de estabelecimentos pblicos

    Por derradeiro, salientou que o sistema de cotas adotado na universidade possibilitou a diplomao de 17 mil estudantes do interior do Amazonas, de um total de 22 mil graduados

    O representante da Universidade Federal de Santa Catarina, Marcelo Tragtenberg, defendeu a seguinte ideia:

    () as aes afirmativas de recorte socioeconmico so essenciais para garantir direitos universais, que polticas universalistas no garantem, e possibilitar a diversidade e a convivncia de diferentes No adianta reservar vagas para escola pblica, que isso, no necessariamente, no automaticamente, inclui o negro

    O Programa de Ao Afirmativa da Universidade de Santa Catarina consiste em reservar 20% das vagas para estudantes oriundos do ensino fundamental e do ensino mdio pblicos, 10% para negros, prioritariamente do ensino fundamental e do ensino mdio estatal, e vagas suplementares para indgenas

    Quanto ao percentual de reprovaes, explicou que, tomando por base o primeiro semestre do ano de 2008, 18,8% correspondeu a alunos que

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    ingressaram pelo sistema de classificao geral, 19,4% a egressos de escola pblica e 27,7% a negros

    O ndice de evaso escolar da universidade, no entanto, considerados os dados do mesmo ano, maior entre aqueles que ingressaram pelo sistema de classificao geral (9%, ou seja, 261 estudantes), seguido pelos egressos de escola pblica (5,5%, isto , 48 estudantes) e, por ltimo, pelos autodeclarados negros (4,2%, a saber, apenas 14 estudantes)

    Isso significa, segundo ele, que alunos que ingressaram na Universidade Federal de Santa Catarina pelo Programa de Ao Afirmativa possuem o menor ndice de evaso, aduzindo que o percentual diminui ainda mais em relao aos alunos negros, mesmo que estes figurem entre os mais reprovados Alm disso, anotou que as vagas perdidas pelo sistema de classificao geral so aproximadamente iguais s reservadas para estudantes negros

    Finalmente, a juza federal Fernanda Duarte, representante da Ajufe, assentou que a questo ainda foi pouco analisada pelos magistrados da Unio e que no h um consenso sobre o tema Por esse motivo, a Associao no aprova, nem condena o sistema de cotas Registrou, porm, que a tendncia do Tribunal Regional Federal da 1 Regio a de referendar tal poltica, assim como ocorre no Tribunal Regional Federal da 4 Regio, ao passo que o Tribunal Regional Federal da 2 Regio vem entendendo que a matria carece de disciplina legal J no Tribunal Regional Federal da 3 Regio, no h registro de julgamentos sobre o tema Por fim, observou que o Tribunal Regional Federal da 5 Regio, em um nico caso julgado, assentou que a matria est sujeita reserva legal

    Alegaes dos arguidos acerca do mritoAps a Audincia Pblica, os arguidos aportaram sua manifestao acerca

    do mrito da presente arguio de descumprimento de preceito fundamental Nela, afirmaram que a Universidade de Braslia adotou o sistema de cotas porque hoje o meio acadmico brasileiro constitui um espao de formao de profissionais de maioria esmagadoramente branca (fl 10 da petio)

    Aduziram, ainda, que

    () a ausncia, no servio pblico, de negros e ndios em profisses tais como mdicos, juzes, procuradores, psiclogos, diplomatas, para citar exemplos, enfraquece a capacidade de o Estado lidar no apenas com a sua prpria diversidade tnica interna, mas com a mundial diferena das populaes

    A discriminao no Brasil e a necessidade de aes afirmativas para a populao negra no mbito da educao so reconhecidas inclusive pelo prprio Estado,

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    como se v no documento oficial brasileiro apresentado Conferncia das Naes Unidas contra o racismo [Fls 1112 da petio]

    Acrescentaram, em seguida, que

    () compreender a igualdade de acesso ao ensino como simples igualdade formal de processos seletivos representa consagrar e perpetuar a desigualdade que desafia a Constituio e requer a adoo de polticas pblicas compensatrias, em face da completa irrazoabilidade da desigualdade que atinge negros no Brasil [Fls 2930 da petio]

    Continuaram dizendo que, com base em estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), existe no Pas uma flagrante desigualdade de oportunidades entre os brancos e os negros (pretos e pardos) Ademais, notaram que a dificuldade de acesso dos negros universidade no diminui com a expanso de vagas Registraram, tambm, que, segundo dados do IBGE, colhidos em pesquisa realizada no ano de 2000, somente 19,55% dos universitrios eram negros (pretos e pardos), enquanto a populao negra correspondia a 44,66% do total da populao brasileira

    Quanto alegada ofensa ao art 208, V, da CF, sustentaram que o vestibular s mais um dos instrumentos que se emprega para medir o conhecimento, a capacidade e o mrito acadmico dos candidatos a uma vaga no ensino superior, no existindo um mtodo nico para a apurao do saber de cada estudante Afirmaram, ainda, que

    () desde o 2 Vestibular de 2004 j ingressaram na UnB 3980 alunos cotistas, sendo o percentual de j formados muito semelhante aos alunos da graduao que ingressaram pelo sistema universal (7,1% dos cotistas frente a 7,9% dos que ingressaram pelo sistema universal) Da mesma forma, o rendimento dos alunos cotistas semelhante ao dos alunos que ingressaram pelo sistema universal (ndice de Rendimento dos cotistas de 3,6%, enquanto daqueles que ingressaram pelo sistema universal de 3,7%, em escala que varia de 0 a5) [Fls 7374 da petio]

    No tocante Comisso de Verificao da Condio de Negro, esclareceram que ela no secreta, havendo inclusive entrevista pessoal com os candidatos Por fim, ressaltaram o seguinte:

    O que acontece a inexistncia de comunicao prvia informando qual ser a comisso, a fim de evitar que sofra presses e constrangimento indevido, exatamente como reiteradamente feito h dcadas no apenas no prprio certame vestibular, mas tambm em numerosos concursos para cargos pblicos federais conduzidos no pas

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    Obviamente, os critrios utilizados na seleo so o do Edital vinculante, como o do fentipo, em que se observa se a pessoa negra (preta ou parda), pois, como j suscitado na presente pea, essa a caracterstica que leva discriminao ou ao preconceito contra eles [Fls 7576 da petio]

    o relatrio, do qual devero ser extradas cpias para os ministros desta Suprema Corte

    VOTO

    O sr. ministro Ricardo Lewandowski (relator):

    Questes preliminaresInicialmente, assento o cabimento desta ao, uma vez que no h outro

    meio hbil de sanar a lesividade (art 4, 1, da Lei 9882/1999)Saliento, nessa linha, que o entendimento desta Corte o de que, para aferirse

    a subsidiariedade, preciso ter em conta a inexistncia ou no de instrumentos processuais alternativos capazes de oferecer provimento judicial com eficcia ampla, irrestrita e imediata para solucionar o caso concreto sob exame, conforme deflui do julgamento da ADPF 33/PA, rel min Gilmar Mendes, assim ementada:

    Arguio de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) Medida Cautelar 2 Ato regulamentar Autarquia estadual Instituto de Desenvolvimento EconmicoSocial do Par IDESP Remunerao de pessoal Vinculao do quadro de salrios ao salrio mnimo 3 Norma no recepcionada pela Constituio de 1988 Afronta ao princpio federativo e ao direito social fundamental ao salrio mnimo digno (arts 7, IV, 1 e 18 da Constituio) 4 Medida liminar para impedir o comprometimento da ordem jurdica e das finanas do Estado 5 Preceito Fundamental: parmetro de controle a indicar os preceitos fundamentais passveis de leso que justifiquem o processo e o julgamento da arguio de descumprimento Direitos e garantias individuais, clusulas ptreas, princpios sensveis: sua interpretao, vinculao com outros princpios e garantia de eternidade Densidade normativa ou significado especfico dos princpios fundamentais 6 Direito prconstitucional Clusulas de recepo da Constituio Derrogao do direito prconstitucional em virtude de coliso entre este e a Constituio superveniente Direito comparado: desenvolvimento da jurisdio constitucional e tratamento diferenciado em cada sistema jurdico A Lei 9882, de 1999, e a extenso do controle direto de normas ao direito prconstitucional 7 Clusula da subsidiariedade ou do exaurimento das instncias. Inexistncia de outro meio eficaz para sanar leso a preceito fundamental de forma ampla, geral e imediata. Carter objetivo do instituto a revelar como meio eficaz aquele

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    apto a solver a controvrsia constitucional relevante. Compreenso do prin-cpio no contexto da ordem constitucional global. Atenuao do significado literal do princpio da subsidiariedade quando o prosseguimento de aes nas vias ordinrias no se mostra apto para afastar a leso a preceito funda-mental. 8 Plausibilidade da medida cautelar solicitada 9 Cautelar confirmada [Grifos meus]

    Esse tambm foi o entendimento da ProcuradoriaGeral da Repblica, que transcrevo abaixo:

    A presente ADPF cabvel, pois se trata de arguio de natureza autnoma, e, no mbito do controle abstrato de constitucionalidade, no haveria qualquer outro meio apto para sanar as supostas leses a preceitos fundamentais apontados na inicial Com efeito, diante da natureza infralegal dos atos normativos e administrativos impugnados, a ADIn no seria o instrumento idneo para o enfrentamento da questo, ou tampouco qualquer das aes que compe o sistema brasileiro de jurisdio constitucional abstrata Assim, est satisfeito o pressuposto da subsidiariedade da arguio

    Afasto, igualmente, o argumento de que haveria conexo entre esta arguio de descumprimento de preceito fundamental e a ADI 3197/RJ, rel min Dias Toffoli, por ostentarem ambos os feitos a mesma causa de pedir, qual seja, a inconstitucionalidade do sistema de cotas para negros nas universidades pblicas

    que, conforme remansosa jurisprudncia desta Corte, as aes de ndole abstrata, por definio, no tratam de fatos concretos, razo pela qual nelas no se deve, como regra, cogitar de conexo, dependncia ou preveno relativamente a outros processos ou julgadores

    Com efeito, ao decidir sobre hiptese semelhante, em 6102004, envolvendo a ADI 3259/PA, rel min Eros Grau, e a Rcl 2687/PA, rel min Marco Aurlio, o ministro Nelson Jobim, ento presidente do STF, assim se pronunciou:

    Ocorre que a ao direta de inconstitucionalidade um processo objetivo, que visa declarar a inconstitucionalidade de lei ou de um ato normativo, abstratamente, prescinde, portanto, da existncia de um fato concreto No h que falar aqui, em face da natureza desta ao, em dependncia, preveno, em relao a outros processos

    Ademais, a questo relativa s aes afirmativas inserese entre os temas clssicos do controle de constitucionalidade, aqui e alhures, sendo de toda a convenincia que a controvrsia exposta nesta ao seja definitivamente resolvida por esta Suprema Corte, de maneira a colocar fim a uma controvrsia que

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    j se arrasta, sem soluo definitiva, por vrias dcadas nas distintas instncias jurisdicionais do Pas

    Feito esse breve introito de ordem instrumental, passo ao exame da questo de fundo discutida nesta arguio de descumprimento de preceito fundamental

    Abrangncia do tema em discussoA questo fundamental a ser examinada por esta Suprema Corte saber se

    os programas de ao afirmativa que estabelecem um sistema de reserva de vagas, com base em critrio tnicoracial, para acesso ao ensino superior, esto ou no em consonncia com a Constituio Federal

    Para enfrentar a questo da constitucionalidade dos programas de ao afirmativa institudos pela Universidade de Braslia e outros estabelecimentos de ensino superior no Pas, penso que cumpre ao Supremo Tribunal Federal discutir esse relevante tema do modo mais amplo possvel, fazendoo, em especial, luz dos princpios e valores sobre os quais repousa a nossa Carta Magna

    O primeiro passo, para tanto, a meu sentir, consiste em revisitar o princpio da igualdade agasalhado na Lei Maior, examinandoo em seu duplo aspecto, ou seja, no sentido formal e material

    Igualdade formal versus materialDe acordo com o art 5, caput, da Constituio, todos so iguais perante a

    lei, sem distino de qualquer natureza Com essa expresso, o legislador constituinte originrio acolheu a ideia que vem da tradio liberal, especialmente da Declarao do Homem e do Cidado francesa de 1789 de que ao Estado no dado fazer qualquer distino entre aqueles que se encontram sob seu abrigo

    escusado dizer que o constituinte de 1988 dada toda a evoluo poltica, doutrinria e jurisprudencial pela qual passou esse conceito no se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei

    toda evidncia, no se ateve ele, simplesmente, a proclamar o princpio da isonomia no plano formal, mas buscou emprestar a mxima concreo a esse importante postulado, de maneira a assegurar a igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros que vivem no Pas, levando em considerao claro a diferena que os distingue por razes naturais, culturais, sociais, econmicas ou at mesmo acidentais, alm de atentar, de modo especial, para a desequiparao ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos sociais

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    Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja levada a efeito, o Estado pode lanar mo seja de polticas de cunho universalista, que abrangem um nmero indeterminado de indivduos, mediante aes de natureza estrutural, seja de aes afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitirlhes a superao de desigualdades decorrentes de situaes histricas particulares

    Nesse sentido, assenta Daniela Ikawa:

    O princpio formal de igualdade, aplicado com exclusividade, acarreta injustias () ao desconsiderar diferenas em identidade

    ()Apenas o princpio da igualdade material, prescrito como critrio distributivo,

    percebe tanto aquela igualdade inicial, quanto essa diferena em identidade e contexto Para respeitar a igualdade inicial em dignidade e a diferena, no basta, portanto, um princpio de igualdade formal

    ()O princpio da universalidade formal deve ser oposto, primeiro, a uma preocu

    pao com os resultados, algo que as polticas universalistas materiais abarcam Segundo deve ser oposto a uma preocupao com os resultados obtidos hoje, enquanto no h recursos suficientes ou vontade poltica para a implementao de mudanas estruturais que requerem a considerao do contexto, e enquanto h indivduos que no mais podem ser alcanados por polticas universalistas de base, mas que sofreram os efeitos, no que toca educao, da insuficincia dessas polticas So necessrias, por conseguinte, tambm polticas afirmativas

    ()As polticas universalistas materiais e as polticas afirmativas tm () o mesmo

    fundamento: o princpio constitucional da igualdade material So, contudo, distintas no seguinte sentido Embora ambas levem em considerao os resultados, as polticas universalistas materiais, diferentemente das aes afirmativas, no tomam em conta a posio relativa dos grupos sociais entre si1

    A adoo de tais polticas, que levam superao de uma perspectiva meramente formal do princpio da isonomia, integra o prprio cerne do conceito de democracia, regime no qual, para usar as palavras de Boaventura de Sousa Santos,

    () temos o direito a ser iguais quando a nossa diferena nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza Da a

    1 IKAWA, Daniela. Aes afirmativas em Universidades. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2008. p. 150-152.

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    necessidade de uma igualdade que reconhea as diferenas e de uma diferena que no produza, alimente ou reproduza as desigualdades2

    Alis, Dalmo de Abreu Dallari, nessa mesma linha, adverte que a ideia de democracia, nos dias atuais, exige a superao de uma concepo mecnica, estratificada, da igualdade, a qual, no passado, era definida apenas como um direito, sem que se cogitasse, contudo, de convertlo em uma possibilidade, esclarecendo o quanto segue:

    O que no se admite a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condio econmica at o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situao de privilgio, mesmo que sejam socialmente inteis ou negativos3

    Justia distributiva bem de ver, contudo, que esse desiderato, qual seja, a transformao do

    direito isonomia em igualdade de possibilidades, sobretudo no tocante a uma participao equitativa nos bens sociais, apenas alcanado, segundo John Rawls, por meio da aplicao da denominada justia distributiva

    S ela permite superar as desigualdades que ocorrem na realidade ftica, mediante uma interveno estatal determinada e consistente para corrigilas, realocandose os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefcio da coletividade como um todo Nesse sentido, ensina que

    As desigualdades sociais e econmicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razovel, e (b) vinculadas a posies e cargos acessveis a todos4

    O modelo constitucional brasileiro no se mostrou alheio ao princpio da justia distributiva ou compensatria, porquanto, como lembrou a PGR em seu parecer, incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distores resultantes de uma aplicao puramente formal do princpio da igualdade

    Como sabem os estudiosos do direito constitucional, o nosso Texto Magno foi muito alm do plano retrico no concernente aos direitos e garantias

    2 SANTOS, Boaventura de Sousa Santos. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopoli-tanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p. 56.

    3 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. 25. ed. So Paulo: Saraiva, 2005. p. 309.

    4 RAWLS, John. Uma teoria da Justia. So Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 3.

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    fundamentais, estabelecendo diversos instrumentos jurdicos para conferirlhes plena efetividade

    Esse novo modo de encarar os direitos bsicos da pessoa humana isto , para alm do plano do mero discurso , como evidente, no avana sem resistncias; pois, como adverte Michel Rosenfeld,

    () a adoo de um novo princpio de justia distributiva possivelmente criar conflitos entre reivindicaes baseadas nos velhos e nos novos princpios5

    No que interessa ao presente debate, a aplicao do princpio da igualdade, sob a tica justia distributiva, considera a posio relativa dos grupos sociais entre si Mas, convm registrar, ao levar em conta a inelutvel realidade da estratificao social, no se restringe a focar a categoria dos brancos, negros e pardos Ela consiste em uma tcnica de distribuio de justia, que, em ltima anlise, objetiva promover a incluso social de grupos excludos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente, foram compelidos a viver na periferia da sociedade

    Polticas de ao afirmativaPasso, a seguir, ao exame do conceito de ao afirmativa, recorrentemente

    empregado nesta arguio de descumprimento de preceito fundamental, em torno da qual gira grande parte da discusso nela travada

    Sob uma tica acadmica e de modo conciso, Myrl Duncan explica que uma ao afirmativa configura

    () um programa pblico ou privado que considera aquelas caractersticas as quais vm sendo usadas para negar [aos excludos] tratamento igual6

    Outra definio um pouco mais elaborada a que consta do art 2, II, da Conveno para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial, da Organizao das Naes Unidas, ratificada pelo Brasil em 1968, segundo o qual aes afirmativas so

    () medidas especiais e concretas para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteo de certos grupos raciais de indivduos pertencentes a estes

    5 ROSENFELD, Michel. Affirmative Action, justice, and equalities: a philosophical and consti-tutional appraisal. Ohio State Law Journal, n. 46. p. 861.

    6 DUNCAN, Myrl L. The future of affirmative action: A Jurisprudential/legal critique. Harvard Civil Rights Civil Liberties Law Review, Cambridge: Cambridge Press, 1982. p. 503.

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    grupos com o objetivo de garantirlhes, em condies de igualdade, o pleno exerccio dos direitos do homem e das liberdades fundamentais

    necessrio ressaltar, porm, que o mencionado dispositivo contm uma ressalva importante acerca da transitoriedade desse tipo de poltica, assim explicitada:

    Essas medidas no devero, em caso algum, ter a finalidade de manter direitos desiguais ou distintos para os diversos grupos raciais, depois de alcanados os objetivos em razo dos quais foram tomadas

    Entre as diversas modalidades de aes afirmativas, de carter transitrio, empregadas nos distintos pases, destacamse: (i) a considerao do critrio de raa, gnero ou outro aspecto que caracteriza certo grupo minoritrio para promover a sua integrao social; (ii) o afastamento de requisitos de antiguidade para a permanncia ou promoo de membros de categorias socialmente dominantes em determinados ambientes profissionais; (iii) a definio de distritos eleitorais para o fortalecimento de minorias; e (iv) o estabelecimento de cotas ou a reserva de vagas para integrantes de setores marginalizados

    Interessantemente, ao contrrio do que se costuma pensar, as polticas de aes afirmativas no so uma criao norteamericana Elas, em verdade, tm origem na ndia, pas marcado, h sculos, por uma profunda diversidade cultural e tnicoracial, como tambm por uma conspcua desigualdade entre as pessoas, decorrente de uma rgida estratificao social

    Com o intuito de reverter esse quadro, politicamente constrangedor e responsvel pela ecloso de tenses sociais desagregadoras e que se notabilizou pela existncia de uma casta prias ou intocveis , proeminentes lideranas polticas indianas do sculo passado, entre as quais o patrono da independncia do pas, Mahatma Gandhi, lograram aprovar, em 1935, o conhecido Government of India Act

    A motivao que levou edio desse diploma legal, cuja espinha dorsal consiste no combate excluso social, assim explicada por Partha Gosh:

    A necessidade de discriminar positivamente em favor dos socialmente desprivilegiados foi sentida pela primeira vez durante o movimento nacionalista Foi Mahatma Gandhi () o primeiro lder a se dar conta da importncia do tema e a chamar a ateno das castas mais altas para esse antiquado sistema social que relega comunidades inteiras degradante posio de intocveis

    ()A Constituio de Independncia da ndia, que de modo geral seguiu o modelo do

    Government of India Act, de 1935, disps sobre discriminaes positivas em favor das Scheduled Castes e das Scheduled Tribes (Scs & STs) que constituam cerca de

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    23% da populao estratificada da ndia Alm disso, reservou, a eles, vagas no Parlamento, foram dadas vantagens em termos de admisso nas escolas, faculdades e empregos no setor pblico, vrios benefcios para atingir seu total desenvolvimento e assim por diante A Constituio, em verdade, garantiu o direito fundamental igualdade entre todos os cidados perante a lei, mas categoricamente tambm estabeleceu que nada na Constituio impediria o Estado de adotar qualquer disposio especial para promover o avano social e educativo de qualquer classe desfavorecida, das Scheduled Castes ou das Scheduled Tribes

    Algumas dessas disposies constitucionais que objetivam as discriminaes positivas so:

    Artigo 17: Abolio da intocabilidade e fazer desse tipo de discriminao uma prtica punvel por lei

    Artigo 46: Promoo da educao e do interesse econmicoArtigos 16 e 335: Tratamento preferencial na questo do emprego no setor

    pblicoArtigos 330 e 332: Reserva de vagas no Lok Sabha (Parlamento da ndia) e nas

    Assembleias Estaduais7

    Lembro, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, admitiu a constitucionalidade das polticas de ao afirmativa Entre os vrios precedentes, menciono a ADI 1276 MC/SP, rel min Octavio Gallotti; a ADI1276/SP, rel min Ellen Gracie; o RMS 26071, rel min Ayres Britto; a ADI 1946/DF, rel min Sydney Sanches; e a ADI 1946 MC/DF, rel min Sydney Sanches

    Por seu carter ilustrativo, reproduzo, aqui, trecho do voto proferido pelo ministro Nelson Jobim, na ADI 1946 MC/DF, rel min Sydney Sanches:

    Levantamentos feitos, principalmente por um grande economista americano, Prmio Nobel, Paul Samuelson, em seu famoso livro, Macro Economia, so incisivos

    Verificouse, no levantamento feito pelo MIT, que, no mercado de trabalho, em relao s mulheres, havia