revista opsis historia e sensibilidade

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  • OPSISUniversidade Federal de Gois/Campus Catalo

    Curso de Histria

    DossiHistria e Sensibilidades

    ISSN: 1519-3276

    Apoio:CPPG/CAC; PRPPG/UFG

    A Opsis pode ser acessada pela URL:http://www.catalao.ufg.br/historia no link publicaes

  • OPSISUniversidade Federal de Gois - Campus CataloCurso de HistriaAv. Dr. Lamartine P. de Avelar, 1120 - S. Universitrio - Catalo GO

    Revista indexada:Geodados: http://geodados.pg.utfpr.edu.br/ ; Sumrios de Revistas Brasileiras:www.sumarios.org ; Latindex: http://www.latindex.unam.mx/Pede-se permuta

    Editor Chefe:Dr. Valdeci Rezende Borges

    Editora deste Nmero:Dra. Mrcia Pereira dos Santos

    Conselho Editorial:Dr. Cludio Lopes MaiaDra. Eliane Martins de FreitasDr. Getlio Nascentes da CunhaDr. Luiz Carlos do CarmoDra. Luzia Mrcia Rezende SilvaDra. Mrcia Pereira dos SantosDra. Regma Maria dos SantosDra. Teresinha Maria DuarteDr. Valdeci Rezende Borges

    Comisso Editorial:Dra. Eliane Martins de FreitasDra. Mrcia Pereira dos SantosDra. Terezinha Maria Duarte

    Reviso Tcnica: Valdeci Rezende BorgesDiagramao: Cacildo Ferreira - Impresso: Grfica So JooCapa: Marte castigando a Cupido - 1613 - Bartolomeo Manfredi

    OPSIS - Curso de Histria. Dossi Histria e Sensibilidades. UniversidadeFederal de Gois - Campus Catalo. Catalo - GO, v. 8, n. 11, jul-dez.2008. p. 370ISSN: 1519-3276Histria Sensibilidades Peridicos

    Conselho Consultivo:Dra. Manoela Mendona(Universidade de Lisboa)Dr. Amalio Pinheiro (PUC/SP)Dr. Gilmar de Carvalho (UFC)Dr. Jlio Csar Bentivoglio(UFES)Dra. Knia Maria de AlmeidaPereira (UNITRI)Dr. Luiz Humberto MartinsArantes (UFU)Dra. Solange Fiza Yokozawa(UFG/CAC)Dr. Wolney Honrio Filho (UFG/CAC)Dra. Lucimar Bello P. Frange(UFU)Dra. Mrcia Elizabeth Bortone(UnB)Dr. Marcos Antnio de Menezes(UFG/ Jata)Dra. Vanda Cunha Albieri Nery(UFU)

  • S U M R I O

    Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07

    Dossi Histria e Sensibilidades

    1- O Brasil nasceu cansado? Entre louvor e horror aotrabalho na msica popular (anos 1930/1940) . . . . . . . . . 13Adalberto Paranhos

    2- A polifonia perdida do arraial do Tijuco . . . . . . . . . . . . . 37Jlio Csar de Oliveira

    3- Memria e afetividade: a importncia das emoes nastrajetrias sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59Veruska Anacirema S. da Silva

    4- A casa: lugar de afagos e conflitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77Pedro Vilarinho Castelo Branco

    Artigos

    5- A nova histria poltica e o marxismo . . . . . . . . . . . . . . 97Laurindo Mkie Pereira

    6- Teoria do discurso historiogrfico de Hayden White:uma introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120Ricardo Marques de Mello

    7- Tempo e narrativa na historiografia contempornea . . 146Cristiano Alencar ArraisElizer Cardoso de Oliveira

    8- A funo social do historiador existe? . . . . . . . . . . . . . . 174Maria Clarice Rodrigues de Souza

    9- Drummond e seu tempo: a vertente social emA Rosa do Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190Flvio Pereira CardosoLarissa Cardoso Beltro

  • 10- Memrias do Crcere: histria, memria e literatura . . 210Kamilly Barros de Abreu Silva

    11- Alguma coisa est fora da ordem: a luta femininapelo direito ao voto, educao e trabalho no incio dosculo XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222Tatiana Lima de Siqueira

    12- A morte e a morte de Tancredo Neves: controlandomuitas vidas atravs de uma morte . . . . . . . . . . . . . . . 240Mirian Bianca Amaral Ribeiro

    13- Consideraes breves sobre cultura rural . . . . . . . . . . . 258Maria Helena de Paula

    14- Uma esmola pelo amor de Deus: caridade, filantropiae controle social (Juiz de Fora, 1870 1930) . . . . . . . 275Jefferson de Almeida Pinto

    15- Vivncias urbanas e conflitos culturais: intervenes eaes na medicalizao da sociedade manauara daBlle poque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299Paulo Marreiro dos Santos Junior

    16- Os pardos forros e livres em Vila Rica: sociabilidadeconfrarial e busca por reconhecimento social(c.1747 c. 1800) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 318Daniel Precioso

    17- O Rio de Janeiro no tempo de D. Joo VI . . . . . . . . . 341Carollina Carvalho Ramos de Lima

    Resenha

    18- O legado artstico de Nicolas-Antoine Taunay e apolmica Misso Francesa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363Emerson Dionsio Gomes de Oliveira

  • C O N T E N T S

    Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07

    Dossier History and Sensitivities

    1- Was Brazil born tired? between praise and horror to workin te Brazilian popular music in the 1930s and 1940s . . 13Adalberto Paranhos

    2- The lost polyphony from arraial do Tijuco . . . . . . . . . . . 37Jlio Csar de Oliveira

    3- Memory ande affectivity: the importance of emotins onsocial trajectories . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59Veruska Anacirema S. da Silva

    4- The home: a place of caresses and conflits . . . . . . . . . . . 77Pedro Vilarinho Castelo Branco

    Articles

    5- The new political history and the marxism . . . . . . . . . . 97Laurindo Mkie Pereira

    6- Historiographical theory of the discourse of HaydenWhite: an introduction . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120Ricardo Marques de Mello

    7- Time and narrative in contemporary historiography . . 146Cristiano Alencar ArraisElizer Cardoso de Oliveira

    8- Does the social role of the historian exist? . . . . . . . . . . 174Maria Clarice Rodrigues de Souza

    9- Drummond and his epoch: the social perspective inA Rosa do Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 190Flvio Pereira CardosoLarissa Cardoso Beltro

  • 10- Memrias do Crcere: history, memory and literature. 210Kamilly Barros de Abreu Silva

    11- Something is out of order the fight for womens rightto vote, education, and work: in the home of thecentury XX . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222Tatiana Lima de Siqueira

    12- The death and the death of Tancredo Neves: controllingmany lives trough of a death . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240Mirian Bianca Amaral Ribeiro

    13- Brief considerations about rural culture . . . . . . . . . . . 258Maria Helena de Paula

    14- A donation for gods sake: charity, philanthropy socialcontrol (Juiz de Fora, 1870 1930) . . . . . . . . . . . . . . . 275Jefferson de Almeida Pinto

    15- Urban experiences ans cultural conflicts: interventionsna actions of the medicalization of society manauara ofBlle poque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299Paulo Marreiro dos Santos Junior

    16- The pardo man in lining and fredom in Vila Rica:confrarial sociability and searchs for social recognition(c.1747 c. 1800) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 318Daniel Precioso

    17- The Rio de Janeiro in the epoch of D. Joo VI . . . . . 341Carollina Carvalho Ramos de Lima

    Review

    18- The artistic legacy of Nicolas-Antoine Taunay and thecontroversial French Mission . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 363Emerson Dionsio Gomes de Oliveira

  • E D I T O R I A L

    A revista Opsis que se apresenta resultado de um duploesforo de sistematizao de discusses em histria. Primeiramente, peloprprio Dossi temtico Histria e Sensibilidades, que fruto de umareflexo iniciada no contexto do VIII Simpsio de Histria de mesmatemtica, promovido pelo Curso de Histria CAC/UFG em 2007.Naquele momento os organizadores do simpsio, sintonizados com asatuais preocupaes historiogrficas no Brasil, abriam espao paradebates que iam ao encontro de variadas formas de se fazer histria,mas principalmente dentro dos parmetros da Histria Cultural.

    Se, como Pesavento (2006, p. 161), entendemos que asensibilidade est no cerne da Histria Cultural, que se prope atrabalhar com as formas pelas quais os homens, a partir de suashistrias, representavam a si prprios no mundo, podemoscompreender que o campo do sensvel diz respeito a ns, comohistoriadores, mas tambm, a ns como sujeitos de histrias diversas.Assim, as discusses realizadas permitiram empreender debates dentrodos quais a questo da sensibilidade humana aparecia como vis deanlise, explicao e compreenso da histria.

    Portanto, motivo de alegria e orgulho, dois estados dalmapositivos, que significam otimismo e gosto pela histria, apresentar umapublicao que traz como escopo as discusses sobre as sensibilidadesna histria sem, no entanto, abrir mo da presena de outros temas eoutros recortes tericos que do conta do quo amplo e dinmico ocampo historiogrfico. Lembrando Paul Ricoeur (2007), em seumonumental A memria, a histria, o esquecimento, se a humanidadetem se assentado na busca por uma memria feliz, ao historiador, comoparte dessa mesma humanidade, caberia a formulao, ou a busca, deuma, tambm, histria feliz; o que no significa eximir-se da histriacomo tragdia e sofrimento, mas to somente cumprir um papel sociale humano de se ocupar da aventura de homens e mulheres no mundo.

    Dessas implicaes, do trato das sensibilidades pela histria,abre-se a revista com o Dossi: Histria e Sensibilidades, compostopor quatro artigos. Os dois primeiros se originaram das confernciasministradas pelos autores no simpsio acima referido e tratam, cada

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  • um a seu modo, de tons e sons da / na histria. Adalberto Paranhosproblematiza o culto ao trabalho do Governo Vargas atravs damusicalidade, glorificadora da batucada e que se expressa comoenfrentamento apologia ao trabalho como valor. Jlio Csar deOliveira, por seu lado, apresenta a polifonia, aparentemente perdida,do Arraial do Tijuco, nos sculos XIII e XIX, mas que o autorconsegue divisar e ouvir, valendo-se, para tanto, de diferentesdocumentos histricos.

    Ainda compondo o dossi temtico, mas sem vnculos com osimpsio em destaque, a revista traz o artigo de Veruska Anacirema S.da Silva que discute algumas noes de memria e afetividade, segundouma perspectiva interpretativa que se assenta na obra de Norbert Elias.Finalizando o dossi tem-se o artigo de Pedro Vilarinho Castelo Brancoque problematiza a casa como lugar de afetos e afagos num contextode transformao cultural, tal como aparece na literatura piauiense deincio do sculo XX.

    A segunda seo da revista, Artigos, traz trabalhos de temaslivres, nos quais os autores, propondo variados objetos de investigao,apresentam pesquisas ou preocupaes no campo das cincias humanas.

    Em discusses relacionadas teoria da histria, primeiramente,tem-se o artigo de Laurindo Mkie Pereira que debate as configuraesatuais da Nova Histria Poltica e do Marxismo. Tem-se, em seguida,o artigo de Ricardo Marques de Mello, ocupado em apresentar, deforma introdutria, a teoria do discurso historiogrfico de HaydenWhite. Tem-se, tambm na perspectiva de dilogo com a teoria dahistria e debates sobre tempo e narrativa, o artigo de Cristiano AlencarArrais e Elizer Cardoso de Oliviera e, para complementar taisdiscusses, Maria Clarice Rodrigues de Souza debate a funo socialdo historiador.

    Os dois artigos seguintes trazem baila as discusses sobreliteratura e histria. Flvio Pereira Camargo e Larissa Candido Beltrodialogando, em seu artigo, com a poesia de Drumond e Kamilly Barrosde Abreu Silva problematizando a literatura de testemunho a partir daobra de Graciliano Ramos.

    Em discusses que tratam do sculo XX, tem-se o artigo deTatiana Lima Siqueira, que problematiza as disputas e questionamentosdas fronteiras de gnero sentidas por mulheres que empreenderam aesde lutas pelo voto, educao e trabalho. Tem-se tambm o artigo de

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  • Mirian Bianca Amaral Ribeiro, cuja reflexo sobre morte realizadatomando a morte de Tancredo Neves como foco da anlise. J o artigode Maria Helena de Paula traz como hiptese de leitura a configuraocultural e lingstica, definidas por suas inter-relaes, tais como asmesmas se apresentam em recortes da cultura popular rural em Catalo GO. Os dois artigos seguintes tratam de cultura e sociedade, sendoque Jefferson de Almeida Pinto se dedica a pensar a filantropia e ocontrole social e Paulo Marreiro dos Santos Junior se dedica a pensara medicalizao da sociedade no contexto da Blle poque.

    J os dois ltimos artigos dessa seo, dedicando-se a temposmais recuados, apresentam a anlise dos aspectos da luta social depardos, forros e livres em Vila Rica no sculo XIII, no artigo de DanielPrecioso; e os vrios impactos da chegada da Famlia Real Portuguesaao Brasil, debatidos no contexto das comemoraes do bicentenriodesse marco histrico, temtica do artigo de Carollina Carvalho Ramosde Lima.

    Por fim, na seo Resenhas, encerrando as discusses propostaspor esse nmero da revista Opsis, Emerson Dionsio Gomes de Oliveiraapresenta sua resenha do livro O sol do Brasil, de Lilia M. Schwarcsz.

    Mrcia Pereira dos SantosDezembro de 2008

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  • Dossi

    Histria e Sensibilidades

    OPSIS, Catalo, v. 8, n. 11, p. 11-94, jul-dez. 2008

  • O BRASIL NASCEU CANSADO? ENTRE OLOUVOR E O HORROR AO TRABALHO NA

    MSICA POPULAR (ANOS 1930/1940)

    WAS BRAZIL BORN TIRED? BETWEEN PRAISEAND HORROR TO WORK IN THE BRAZILIAN

    POPULAR MUSIC IN THE 1930S AND 1940S

    Adalberto Paranhos1

    Resumo : Durante o primeirogoverno Vargas, valores antinmicoscircularam socialmente, como aquelesque envolviam o culto ao trabalhoregular e metdico e sua negao.Isso se retratou inclusive naproduo musical da poca, que, deuma forma ou de outra, tomou parteativa no debate que ento se instaloue que oscilava entre a afirmao dobatente e a glorificao da batucada.Palavras-chave: trabalho, ideologiado trabalhismo, msica popular,samba, governo Vargas.

    Teimosamente, um espectro ronda o Brasil, desde a suainveno. Dentre as muitas representaes que dele se forjaram, umadelas atravessou sculos e, sob certos aspectos, ainda persiste: ofantasma da preguia e da indolncia. Na contramo dessa concepo,nos anos 1930/40, com o advento do Estado Novo e em especialcom a entrada em cena do Departamento de Imprensa e Propagandada ditadura desencadeou-se uma autntica cruzada antimalandragem.

    Abstract: During the the Vargasadministration, antinomic valuescirculated socially, such as the cult tomethodic and regular work and therefusal to it. The musical productionof that period ref lected suchcontradiction by taking active parting,in one way or another, in thedebate that emerged then and thatoscillated between the affirmation ofwork and the glorification of thebatucada (bohemia).Keywords: work, laborism, popularmusic, samba, Vargas administration.

    1 Professor do Programa de Ps-graduao em Histria e dos cursos de CinciasSociais e de Msica da Universidade Federal de Uberlndia. Mestre em CinciaPoltica (UNICAMP) e doutor em Histria Social (PUC-SP). Editor de ArtCultura:Revista de Histria, Cultura e Arte. Vice-presidente da IASPM-AL (seo latino-americana da International Association for the Study of Popular Music). Autor, entreoutras obras, de O roubo da fala: origens da ideologia do trabalhismo no Brasil (2.ed. So Paulo: Boitempo, 2007). Co-autor de Msica popular en Amrica Latina(Santiago de Chile: Fondart, 1999). E-mail: [email protected]

    OPSIS, Catalo, v. 8, n. 11, p. 13-36, jul-dez. 2008

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  • Numa poca em que se procurava imprimir um novo impulsoao desenvolvimento capitalista nestes no to tristes trpicos, seupropsito explcito consistia em proceder valorizao do trabalho.Naquelas circunstncias, travou-se uma luta sem trguas contra aociosidade e tudo o que cheirasse a elogio ao no-trabalho. Da reada msica popular, em particular, esperavam-se exemplos edificantes.De toda maneira, como uma pedra no sapato de todos quantos secomprometiam com esse esforo civilizatrio, os apelos do batenteenfrentaram srias dificuldades para sobrepor-e aos apelos da batucada.

    Nos calcanhares da malandragem

    O Brasil, num certo sentido, foi inventado sob o estigma dapreguia. Pginas tantas da nossa histria, quase se confundindo como ato de seu batismo, j se faziam ouvir expresses de desdm defranceses e portugueses que se horrorizavam com a ociosidade doschamados selvagens. Guiados por seu olhar, formatado segundo asprticas e os valores que empurravam mar afora a civilizao europiaem tempos marcados pela acelerao das conquistas comerciais, elesno atinavam com o que encontraram por estas bandas. Afinal, osndios, com sua economia de subsistncia, podiam desfrutar de umcardpio variado, gozar de sade, preservar uma boa aparncia, tudoisso sem se lanarem sofregamente busca de alimentos. Portuguesese franceses, salienta o antroplogo Pierre Clastres (2003, p. 211),ficavam, de fato, embasbacados: Grande era a sua reprovao aoconstatarem que latages cheios de sade preferiam se empetecar, comomulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem com suor as suasreas cultivadas. 2

    Em muitos momentos da histria do Brasil, deparamo-nos como estigma da preguia. Entre o final do imprio e os primrdios da vidarepublicana, no eram, obviamente, os ndios o motivo de preocupaodas autoridades e dos membros das classes dominantes. Como ressaltaSidney Chalhoub (1986), com a desorganizao do modo de produofundado no trabalho escravo, os detentores do capital e seu brao polticovo criar condies para a emergncia de uma ideologia do trabalho.

    2 Sobre o assunto, ver Clastres (2003), captulo 11.

    OPSIS, Catalo, v. 8, n. 11, p. 13-36, jul-dez. 2008

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  • Tratava-se de condenar a ociosidade e favorecer, por todos os meiospossveis, a consolidao de um mercado de trabalho assalariado noperodo ps-escravido. A represso ociosidade figurou, ento, comoitem prioritrio da pauta dos debates parlamentares de 1888. Era inadivelconverter o liberto, dono de sua fora de trabalho, em trabalhador livre.Articulavam-se, dessa forma, a valorao positiva do trabalho e as noesde ordem, progresso e civilizao.3

    A vadiagem, estigmatizada nos relatrios policiais como viveironatural da delinqncia (FAUSTO, 1984, p. 35)4, era contraposta aotrabalho disciplinado sob as ordens do capital. Na sua campanha devalorizao do trabalho, o Estado Novo se nutria, portanto, dessatradio. E, na sua nsia de erigir uma sociedade disciplinar, no poderiaadmitir que se continuasse, a torto e a direito, a promover oenaltecimento da malandragem. Era preciso cortar o mal pela raiz, oque implicava, entre outras medidas, interromper a ntima relao que,no processo de formao da msica popular brasileira, acabara por uniro samba malandragem.5

    Desde o princpio dos anos 30, setores da sociedade civil, comoalguns jornais cariocas, comeariam a emitir claros sinais de aproximaocom a rea da cano popular, no que seriam seguidos porrepresentantes do Estado, principalmente a partir de meados da dcada.Sem querer refazer aqui o que j est documentado por outros autores6,lembro, de passagem, que se casavam o reconhecimento do significadoda festa carnavalesca e a explorao do seu potencial turstico. Aoficializao do desfile de carnaval, em 1935, pela Prefeitura do DistritoFederal um indicador disso.

    Com a instaurao do Estado Novo, Getlio Vargas, empessoa, passou a manter, de tempos em tempos, contato direto comos cartazes da msica popular brasileira. Realizaram-se apresentaespblicas de artistas nacionais em eventos bastante badalados, como oDia da Msica Popular e a Noite da Msica Popular. O Teatro

    3 Sobre trabalhadores e vadios, ver Chalhoub (1986), especialmente p. 39-58.4 Sobre a vadiagem no Rio de Janeiro e em So Paulo entre o incio da Repblica ea Primeira Guerra Mundial, ver Fausto (1984, p. 33-45). Ver igualmente Mattos (1991),esp. cap. 2.5 Sobre essa relao, ver Vasconcellos e Suzuki Jr. (1995) e Salvador (1990),espescialmente cap. III.6 Ver, por exemplo, Cabral (1966, cap. 6-8), Fernandes (2001), cap. 3 e 4, e Soihet(1998) cap. 5.

    OPSIS, Catalo, v. 8, n. 11, p. 13-36, jul-dez. 2008

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  • Municipal, na presena do alto escalo do governo federal, abriu suasportas ao samba. Cantores renomados integraram a comitiva presidencialem viagem a pases latino-americanos, carregando, claro, o samba nabagagem.

    Simultaneamente, transmisses radiofnicas oficiais, destinadasao pblico estrangeiro, se incumbiam de transportar o samba,identificado como genuno produto brasileiro, a diferentes pontos doplaneta. Um desses programas chegou ao requinte de ser irradiado paraa Alemanha nazista diretamente do terreiro da Escola de Samba EstaoPrimeira de Mangueira. Por outro lado, entre o final dos anos 1930 eo incio dos anos 40 estava em curso, a todo vapor, a ardilosa polticada boa vizinhana do governo norte-americano.7 Ela favorecia, emparte, as trocas culturais entre os pases latino-americanos e o grandeirmo do Norte, o que, seja como for, resultou em alguma aberturade mercado para o samba e um punhado de sambistas.

    Se voc misturar duas palavras, msica e Brasil, e mexerbem, obter o samba. E, se misturar vrios brasileiros, voc ter a danado samba.

    Esta era a receita sinttica que ningum menos do que ocineasta Orson Welles fornecia aos ouvintes dos Estados Unidos quepretendessem conhecer o b--b do Brasil e de seu ritmo caracterstico.O local de onde ele falava era sintomtico: o Rio de Janeiro, maisespecificamente o Cassino da Urca, durante uma transmisso para aAmrica do Norte de um programa de rdio especial da Blue Network(apud TOTA, 2000, p. 123).8

    O rumo que tomavam as coisas no Brasil deixava muitaspessoas de cabelo em p. Observador inclemente do cenrio polticoestado-novista, o escritor Marques Rebelo assistia, consternado, a esseestreitamento de contatos entre o poder institucionalizado e os artistaspopulares. Anos antes, em janeiro de 1939, na abertura da ExposioNacional do Estado Novo, ele acusava o comparecimento de muito

    7 Sobre a poltica da boa vizinhana made in USA, como parte integrante da estratgiade afirmao de sua hegemonia continental, ver Moura (1984), especialmente os trsprimeiros tpicos, e Tota (2000), especialmente cap. 2 e 3.8 A descrio, em mincias, desse programa se acha em Tota (2000, p. 120-126)(citao da p. 123). Tal programa de rdio, que foi ao ar em 18 de abril de 1942, sesomava ao rol de homenagens que se rendiam a Getlio Vargas pelo transcurso demais um aniversrio do ditador no dia seguinte.

    OPSIS, Catalo, v. 8, n. 11, p. 13-36, jul-dez. 2008

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  • povo encomendado. E as escolas de samba encaminhadas para l,cabritos que se engabelam com o chacoalhante bornal da subveno[...] todas desfilaram, inaugurando tambm um outro astuto veio depopularizao do chefe (REBELO, 2002, p. 11).9

    Esses novos captulos do processo de entronizao do sambacomo smbolo musical da nao10 repercutiam favoravelmente junto aossambistas em geral. Mas tinham tambm a sua contrapartida. Osinquilinos do Palcio do Catete cobravam essa fatura. Se, para muitosartistas, pagar esse preo era visto como compensador, o compositorcomunista Mrio Lago no via com bons olhos uns tantosdesdobramentos da situao a que fora alado o samba:

    Comeavam as subvenes para aqui, para ali. As grandessociedades no precisavam mais ficar correndo o livro de ouropara fazer seus prstitos. Eram pagas para alegrar o povo.Mas isso tinha um preo. Os carros de crtica talvez osmais esperados, pois extravasavam toda a irreverncia contraos abusos e mete-a-mo das autoridades foram minguando,desaparecendo dos desfiles (LAGO, 1997, p. 148).11

    O samba, que j invadira os cassinos e as telas de cinema,viveria dias de esplendor sob o Estado Novo. Despido, na versooficial, dos pecados de origem que o conservaram afastado de lugaresrespeitveis, ele ganhava terreno. No por acaso, esse seria o perodode florescimento de uma grande safra de sambas cvicos, os sambas-exaltao, dentre os quais sobressairia Aquarela do Brasil12, de Ary

    9 Esse dirio-romance, cujas anotaes iniciais datam de 1. de janeiro de 1939 e seprolongam at 31 de dezembro de 1941, est coalhado de crticas ao ditador, ditadura e aos engodos dipianos, sem contar os custicos comentrios sobre a vidacotidiana.10 Estas consideraes no me conduzem concluso, de aceitao generalizada, queinsiste em realar o papel decisivo, quando no nico, do Estado e do governo Vargasna promoo do samba a smbolo nacional. Esse tipo de anlise, vinculada a umahistria que prioriza a ao das elites, ignora ou faz pouco da atuao dos prprioscriadores e divulgadores do samba para a sua afirmao como cone musical do pas.Ver Paranhos, 2003.11 De todo modo, no procede, como esclarece Srgio Cabral, a informao,comumente veiculada, de que a obrigatoriedade das escolas de samba apresentaremenredos com motivos nacionais tenha sido uma imposio do Estado Novo. Elaconsta, isso sim, dos estatutos da Unio das Escolas de Samba, aprovado em setembrode 1934, com a inteno expressa de facilitar o entendimento com as autoridadesfederais e municipais para obteno de favores e outros interesses que possam reverterem benefcio de suas filiadas (art. 1.). (apud CABRAL, 1996, p. 97).12 Aquarela do Brasil (Ary Barroso), Francisco Alves. 78 rpm, Odeon, 1939.Relanamento (Relan.): caixa (cx.) Apoteose do samba (v. 1, CD n. 2), Emi, 1997.

    OPSIS, Catalo, v. 8, n. 11, p. 13-36, jul-dez. 2008

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  • Barroso, como exemplo mais bem acabado. Esta composio, saturadade nacionalismo, exalava o esprito oficial da poca, embora nocontivesse qualquer referncia ao regime estado-novista.13

    Com um ar grandiloqente, essa fornada de sambas-exaltao,lambuzados de clichs do ufanismo tupiniquim, faria com freqnciao elogio rasgado do Estado Novo. Da exaltao natureza se passaria exaltao mais ou menos explcita do regime poltico vigente. ocaso de Brasil!.14 Ou ainda de Brasil, usina do mundo15, sambaque nos coloca diante de trabalhadores cantando felizes, cmplices ouparceiros dos novos tempos simbolizados pelo Estado Novo. Nadamais conveniente ditadura, se levarmos em conta que os trabalhadoresfiguravam nos clculos governamentais como peas da estratgia queobjetivava reduzir o impacto da luta de classes e subordin-los aosprojetos de desenvolvimento capitalista em andamento.

    Por essa razo, Marilena Chaui (2000, p. 37 e 38) frisou que,se pusermos frente a frente o verde-amarelismo, que ento grassavaem terras brasileiras, e manifestaes como o nativismo romntico dosculo XIX, bem como o ufanismo que se instalou no princpio dosculo XX, notaremos que, antes, a nfase recaa sobre a Natureza,e, agora, algo mais apareceu. De fato, no se tratava apenas de mantera celebrao da Natureza e sim de introduzir na cena poltica uma novapersonagem: o povo brasileiro.16

    13 Nesse tempo se saudava, no campo da produo musical erudita, o decididopropsito de Getlio Vargas e do Estado Novo de estimularem toda msica queexprimisse profunda brasilidade, base sobre a qual se assentaria o lema trpticodisciplina, civismo, nacionalismo. Pronunciamento do msico Oscar LorenzoFernandes, registrado em disco pelo DIP, Arquivo Nacional, FC 103, por ocasiodo 10. aniversrio da revoluo de 1930.14 Brasil! (Benedito Lacerda e Aldo Cabral), Francisco Alves e Dalva de Oliveira.78 rpm, Colmbia, 1939. Relan.: LP Os rouxinis, Revivendo, s/d. Note-se que essacano foi gravada e lanada antes de Aquarela do Brasil.15 Brasil, usina do mundo (Joo de Barro e Alcir Pires Vermelho), Do. 78 rpm,Colmbia, 1942. Regravao (Regrav.): Rogrio Duprat, LP Brasil com S, Emi, 1974.16 Nas palavras de outro estudioso, a potica da brasilidade, mesmo considerandoa riqueza da terra como ddiva de Deus, no podia descuidar da importncia da obrahumana; assim, o aparentemente possvel conflito entre natureza e cultura resolver-se-ia pelo trabalho (FURTADO FILHO, 2004, p. 288). Sobre o samba-exaltao,ver cap. 6.

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  • O nacionalismo espontneo17 originrio de compositores deextrao popular e/ou de classe mdia, que se orgulhavam da sua condiode criadores do samba, era, portanto, ressignificado, em sintonia com apoltica cultural estado-novista. Ao mesmo tempo, os temas da mestiageme da conciliao de classes eram retrabalhados pelos idelogos do regime,tendo em vista o enaltecimento da democracia racial e da democraciasocial supostamente existentes no pas.

    a partir de todas essas mudanas na cena poltico-musicalbrasileira que se pode compreender o alcance da iniciativagovernamental de incorporao do samba galeria de smbolos danacionalidade. Tornava-se necessrio, no entanto, aparar algumas arestas,expurgar certas tradies para que, bem comportado, ele cumprisse acontento a funo que e desejava atribuir-lhe. E aqui nos deparamos,uma vez mais, com o legado histrico do culto malandragem.

    Ao assimilar o samba e, no mesmo movimento, procurardepur-lo, setores das elites e do governo Vargas teriam contas aajustar com seu passado negro. Tal qual a unha adere carne, onovo samba urbano carioca soldara o sambista ao malandro. Desataresse n era tarefa encarada como urgente e inadivel.18 Para atingiresse objetivo, valia tudo, at tentar apropriar-se da imagem de malandro.Foi o que se deu com Getlio Vargas.

    Marques Rebelo (2002, p. 192), no registro que lana em seudirio-romance em 26 de janeiro de 1940, informa que o ditador sedivertia larga com o anedotrio popular envolvendo seus golpes deesperteza. Era como se toda manh, ao despertar, ele se mirasse noespelho e perguntasse: espelho, espelho meu, existir no mundo algummais esperto do que eu?. J Mrio Lago (1977, p. 189) em suasmemrias, dispara um comentrio certeiro a respeito das proezaspolticas de Vargas, que sero concebidas como expresso da mais finamalandragem: acariocaram a imagem de Getlio, e ele passou a ser

    17 Refiro-me a uma espcie de nacionalismo que no se permitia arrebatamentos ouderramamentos tpicos do verde-amarelismo encampado pelos sambas-exaltao. NoelRosa e Assis Valente se alinham entre os seus mais destacados propagadores. Comapurado senso de percepo, eles flagram as coisas nossas, aquelas que compunhamo po-nosso-de-cada-dia da vida das classes populares urbanas. Sobre o assunto, verParanhos (2005) esp. p. 78-83.18 Nesse contexto, como assinala Kerber (2005), a entronizao da baiana, CarmenMiranda, como smbolo da nao, era muito mais interessante ao regime que aincmoda associao entre samba e malandragem.

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  • apresentado como o grande malandro, o que ia passando todo mundopra trs, o que sempre tinha um golpe escondido no bolso do colete,para derrotar a inimigalhada.19

    Da no se segue, como conclui apressadamente Tiago de MeloGomes (1999, p. 97), que, se o ditador gostava de ser tido comomalandro, esse procedimento desqualifica totalmente a tese de que esteteria sido um inimigo da malandragem. Malandro do bem, guiado,pretensamente, pelos mais elevados desgnios polticos, associados ao bemcomum, Vargas, as instituies estatais e as pessoas de bem certamentedeveriam mover um combate incessante malandragem tradicional.

    Isso no se restringiu ao plano das intenes. Dos propsitos ao, tudo se passou sem perda de tempo. Como se no bastasse apregao das boas-novas anunciando que o cu se inclinara em direo terra, com a era de justia social inaugurada com a revoluo de1930 e, mais particularmente, com o advento do Estado Novo, arepresso se abateu sobre os redutos da malandragem carioca. Seusmbolo-mor, a Lapa, foi alvo preferencial da polcia estado-novista edos rearranjos urbanos que redundaram na reabertura da temporada dedesapropriaes em massa para dar passagem modernidade e civilizao.

    Na Lapa, que, a rigor, transbordava seus limites territoriais eabraava outras regies da circunvizinhana, todos os vcios estavamrepresentados: o jogo, a droga, a trapaa, a prostituio, a sodomia(LUSTOSA, 2001, p. 12). O escritor Joo Antnio (2001, p. 140), aotraar o retrato falado dos tempos dourados da Lapa, definiu-a, entreoutros atributos, como uma zona

    famosa pela sua bomia, vida livre, rosrio de cabars, clubesde jogo, blitzen policiais, imprio, reinado e repblica damalandragem carioca, paraso dos sabidos e calvrio dosotrios, mostrurio de mulheres famosas, centro da vidapoltica do Pas em certa faixa da idade republicana.

    Identificado pelas autoridades como um cancro social, umevangelho em louvor ao desvario, as armas do Estado foram apontadaspara a Lapa. Longe de poup-la das intervenes urbanas em curso, aadministrao de Henrique Dodsworth (1937-1945) a golpeou em pleno

    19 Sobre a construo da imagem de Getlio Vargas como bom malandro e as referncias sua esperteza no teatro de revista, ver Velloso, (1998, p. 89-90 e 97-98).

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  • corao. O cerco sobre malandros, bomios, gigols, prostitutas se fezsentir, sem d nem piedade. Prostbulos e cabars foram fechados aosmontes, numa poltica de arrasa-quarteiro justificada pelo chefe depolcia, coronel Alcides Etchegoyen (sucessor do macabro FilintoMller) em nome dos bons costumes e da moral pblica. A ideologiado regime, num determinado sentido, se materializava nessas medidasdrsticas.20 Como nos ensinou Gramsci (2001, p. 78), o que ele designacomo material ideolgico compreende at a arquitetura, a disposioe o nome das ruas.

    Tais personagens da Lapa e de todas as lapas do Rio estavampredestinados a receber um tratamento de choque. Se recussemosbastante no tempo, deixando-nos conduzir aos idos da Idade Mdia,poderamos at localizar o lugar que lhes cabia. Quando o florentinoDante, acompanhado de seu guia, Virglio, tambm poeta, transps oRio Aqueronte e adentrou no Inferno, ambos se defrontaram com umaoutra realidade. Nesse mundo reservado aos pecadores, eles toparam,na primeira vala do oitavo crculo, com os rufies e os sedutores. Paraos fins deste texto, eles podem, perfeitamente, ser assemelhados aosmalandros.

    Em compensao e isso digno de nota , a segunda vala toda ela ocupada pelos aduladores. E a concepo dantesca dosaduladores (que, evidentemente, no se afina com a estreiteza dosvalores estado-novistas) lhes prescreve um lugar efspecialssimo: viversubmersos no esterco. A eles, quem sabe, poderiam somar-se ainda oshipcritas, habitantes da sexta vala, que se locomoviam a passos decgado, vergados sob o peso de suas capas de chumbo douradas(ALIGUIERI, cantos XVIII e XII).

    Entre a orgia e a regenerao

    A oposio entre o batente e a batucada no se apresentava aossambistas de forma linear, como dois plos ou dois horizontes de vidaque no se tocam. O espelho no qual se enxergavam os criadores do sambaurbano carioca refletia imagens partidas e justapostas de protagonistas deuma histria que muitas vezes no dispunham de condies de viver

    20 Sobre a poltica de terra arrasada posta em prtica na Lapa e arredores, verLenharo (1995, p. 17 e 18), e Velasques (1994), especialmente cap. 2 e 4.

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  • simplesmente a seu bel-prazer21. s voltas com uma queda-de-braopermanente com as necessidades do dia-a-dia, discriminados como pessoasde atitudes suspeitas, que parcelas responsveis da sociedade buscavamrecuperar para o mundo do trabalho, no de todo surpreendente que odiscurso do abandono da orgia22 e do chamado ao batente se entrecruzassecom a exaltao da malandragem.

    Logo se v que a temtica do malandro regenerado no obrado Estado Novo. Se este iria investir muita saliva e cassetete em seuesforo de convencimento pr-trabalho, no prprio campo da msicapopular brasileira se detectavam sinais de que, mais ou menoscontraditoriamente, conviviam as duas tendncias mencionadas.

    Num pas em que, apesar da industrializao emergente e dosavanos da urbanizao, o desemprego, o subemprego ou o empregoocasional compunham o cotidiano de muitos trabalhadores (quantosdeles em estado potencial...), essa situao representava um reforo nadadesprezvel queles que se utilizavam dos mais diversificados expedientespara fazer frente luta pela sobrevivncia. O culto ao samba, batucadae malandragem nutriu-se, como no poderia deixar de ser, dessarealidade. de dentro dela que brota, como diz Muniz Sodr (1979,p. 34), o discurso transitivo dos sambistas: em outras palavras, otexto verbal da cano no se limita a falar sobre (discurso intransitivo)a existncia social. Ao contrrio, fala a existncia, transformando amatria-prima das experincias vividas em samba.

    Esse movimento pendular entre o batente e a batucada (ou,no limite, entre o prazer e o sacrifcio, entre o amor ao samba e omartrio) como elementos que no se excluem perceptvel em muitascomposies. Vou me concentrar aqui em algumas canes, antes deretornar a discusso e reenquadr-la no perodo do Estado Novo.

    Jornalista e bomio inveterado, Orestes Barbosa (1978, p. 81)testemunhava um certo desequilbrio de foras: os que combatem otrabalho [...] so em maioria, assegurava ele sem pestanejar. O que

    21 Malandro, por sinal, nunca teve um significado unvoco. Pelo contrrio, possvelregistrar, em diferentes momentos histricos e numa mesma poca, variadas econtraditrias acepes do que era ser malandro. Ver, por exemplo, Tinhoro (1981,p. 128-134), Matos (1982) especialmente cap. 3 e 8, Oliven (1982), especialmente p.189-192, Vasconcellos e Suzuki Jr. (1984), em especial p. 511-514 e 520-523, Mximoe Didier (1990) especialmente p. 289-295, e Salvadori (1990) especialmente p. 189-192.22 Atirar-se orgia era, acima de tudo, sinnimo de festa, regada a samba, batucada,boemia e coisas que tais.

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  • ser de mim23, Leno no pescoo24 e inmeras outras canes seinscrevem nesse bloco. A elas se acrescenta, por exemplo, Nem bomfalar25, um dos sucessos que embalaram o carnaval de 1931. Nele osujeito do samba pressente seu fim ante a perspectiva do trmino daorgia, ao mesmo tempo em que se alegra quando sua companheirabate asas e voa para longe:

    Nem tudo que se diz se fazEu digo e serei capazDe no resistirNem bom falarSe a orgia se acabar [...]

    Embora grande parte dos compositores da msica popularbrasileira vivessem na pindaba, ps-rapados que eram, isso por si sfreqentemente no servia de estmulo para entrarem nos eixos. Aoinsinuar, em Com que roupa?26, a existncia de um Brasil no qual amaioria da populao, vivia com as calas na mo, Noel retratava,indiretamente, a situao de muitos sambistas que ofereciam resistncia introjeo das normas disciplinares burguesas. Mesmo eu sendo umcara trapaceiro/ no consigo ter nem pra gastar, queixava-se opersonagem desse samba. Mais revelador, entretanto, era o que, margem da gravao disponvel em disco, Noel cantava em suasapresentaes ao vivo e em programas de rdio nos quais divulgavaessa cano que arrebatou o Rio de Janeiro:

    [...] Eu nunca sinto falta de trabalhoDesde pirralhoQue eu embrulho o paspalhoMinha boa sorte o baralhoMas minha desgraa o barracoDinheiro fcil no se poupaMas agora com que roupa? [...] (apud MXIMO; DIDIER,1990, p. 157)

    23 O que ser de mim (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves), FranciscoAlves e Mrio Reis. 78 rpm, Odeon, 1931. Relan.: CDs Duplas de bambas (CD n.1), Revivendo, s/d.24 Leno no pescoo (Wilson Batista), Silvio Caldas. 78 rpm, Victor, 1933. Relan.:coleo (col.) Os grandes sambas da histria (CD n. 10), Globo/BMG, 1997.25 Nem bom falar (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves), Francisco Alves.78 rpm, Odeon, gravao (grav.): 1930, lanamento (lan.): 1931. Regrav.: LP MrioReis, Odeon, 1971, relan.: CD Mrio Reis, Emi, 1993.26 Com que roupa? (Noel Rosa) Noel Rosa. 78 rpm, Parlophon, 1930. Relan.: cx.Noel pela primeira vez (CD n. 1), Funarte/Velas, 2000.

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  • No ano anterior, um outro samba tinha ido para os ares. Seutema, a Vadiagem27. Seu autor, ao que consta, seria Francisco Alves.Vale a pena transcrever sua letra na ntegra porque ela condensaelementos presentes em um bom nmero de sambas que abordam aregenerao dos malandros ou o final da malandragem.

    A vadiagem eu deixeiNo quero mais saberArranjei outra vidaPorque deste modoNo se pode mais viver

    Eu deixei a vadiagemQuando eu digo, ningum crQuem j foi vadio um dia vadio at morrerMas pouco me importaDigam tudo que disserEu deixei a vadiagemPor causa de uma mulher

    Se malandrear era uma expresso smblica da definioidentitria da gerao de sambistas formados de acordo com ospadres dos bambas do Estcio e de outros pontos do Rio de Janeiro,nem por isso, dialeticamente, sua afirmao deixava de segregar suanegao em uns tantos sambas. Como observou Sandroni (2001, p.168, 164 e 165), neles, ora o homem ora a mulher que sodesprezados pelo seu par, por ser da orgia, isto , por no ter deixadoa malandragem, como parece ser a exigncia dos tempos de hoje emdia. Da, segundo o mesmo autor, a importncia da temtica damalandragem no estilo novo e o carter problemtico dessa temtica,que ao mesmo tempo a do abandono da malandragem.

    Mas esse terreno, com seus aclives e declives, visivelmenteacidentado. Quantas vezes a desero da malandragem no foidecantada de maneira ambgua, como que a sugerir a possibilidade deum eterno retorno orgia. O peso da instituio familiar, as promessasde uma nova vida como decorrncia do ato de entrega sresponsabilidades sociais, a perspectiva de afastar de sobre si ossobressaltos de quem se situa na tnue fronteira entre o lcito e o ilcito,tudo isso contava... at certo ponto.

    27 Vadiagem (Francisco Alves), Mrio Reis. 78 rpm, Odeon, 1929.

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  • A dubiedade contamina, por exemplo, A malandragem28,samba bem acolhido no carnaval carioca de 1928. Desertar dela pareceser a porta de acesso a outra modalidade da vida malandra, com todosos seus caminhos tortuosos. Seno vejamos:

    A malandragem eu vou deixarEu no quero saber da orgiaMulher do meu bem-quererEsta vida no tem mais valia

    Mulher igual para a gente uma belezaNo se olha a cara delaPorque isso uma defesaArranjei uma mulherQue me d toda vantagemVou virar almofadinhaVou tentar29 a malandragem [...]

    Para dizer o mnimo, tudo indica que a figura em questo nofoi recuperada para as labutas do trabalho. De mais a mais, na estrofeseguinte, o samba escarnece do otrio, cuja mulher lhe d o sute, ereconhece que malandro seu Abbora/ que manobra com as mulh.

    Outra composio contagiada pela ambigidade um clssicodo carnaval, Se voc jurar30, tambm da lavra do Estcio. O canto deseu protagonista no soa como se ele estivesse plenamente convencidodas vantagens da vida regenerada. Tanto que ele ensaia sua volta orgia no exato momento em que anuncia a disposio de abandon-la:

    Se voc jurarQue me tem amorEu posso me regenerarMas se para fingir, mulherA orgia assim no vou deixar[...]

    28 A malandragem (Bide e Francisco Alves), Francisco Alves. 78 rpm, Odeon, 1928.Relan.: fascculo (fasc.) Bide, Maral e o Estcio, Nova Histria da Msica PopularBrasileira (NHMPB), So Paulo, Abril Cultural, 1979.29 Apesar de, primeira audio, parecer fazer mais sentido, aqui, o verbo deixar,em vez de tentar, Francisco Alves canta, de fato, tentar, ao contrrio do que aparecena transcrio da letra de A malandragem em Cardoso Junior (1998, p. 90), e emAlencar (1980, p. 183). Convm recordar que uma das acepes de tentar provocar,o que restabeleceria a coerncia da mensagem veiculada.30 Se voc jurar (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves), Francisco Alves eMrio Reis. 78 rpm, grav.: 1930, lan.: 1931. Relan.: CDs Duplas de bambas(CD n. 1), Revivendo, s/d.

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  • A minha vida boaNo tenho em que pensarPor uma coisa toaNo vou me regenerar [...]

    Esses vaivns reaparecem inclusive numa das mais veementesdefesas de quem decide pegar no batente. No samba Vou ver seposso...31, Heitor dos Prazeres coloca na boca de um malandro o discursoda regenerao via trabalho. Por mais enftico que ele seja, uma dvidaexistencial quase implode o que transparece na superfcie da letra. Omalandro, na verdade, promete se esforar para tentar suportar a fainado trabalhador: vou ver se posso/ conseguir a [sic] trabalhar...

    E por a andavam as coisas at chegarmos, mais uma vez, aoEstado Novo. Se agora j est claro que a safra de sambas que tratamda regenerao dos malandros no foi obra patenteada pelo regimeestado-novista, teriam eles dominado inteiramente a cena musicalbrasileira entre 1937 e 1945? Ou isso somente teria ocorrido sob oreinado do DIP, que, na prtica, se prolongou de 1940 a 1945?

    Em vrios casos, os cortes temporais que figuram emdeterminados trabalhos permitem supor que, com a instaurao doEstado Novo, tudo se modificou. O tom preponderante, nesses casos,bate na tecla do abafamento, do silenciamento de vozes destoantes dapoltica estatal, bem como da assimilao dos sambistas aos propsitosda ditadura, que, ao se apropriar do samba como smbolo nacional, oteria despojado de seu contedo crtico.32

    Ao se analisarem as gravaes que se sucederam entre 1937 e1939, antes, portanto, da entrada em ao do DIP o que, obviamente,no significa desconhecer a existncia de uma censura ditatorial pr-dezembro de 1939 , fica evidente que o trabalho continuava a sofrer,em vrios sambas, uma crtica ardida. Uma trabalhadora, na pele dafuzarqueira Aracy de Almeida, no tinha por que se orgulhar de suacondio. Sua esperana parecia projetar-se rumo ao alm. Sua vida,um rosrio de ais, ela ia desfiando em Tenha pena de mim33 comose fora a encarnao de uma maria-das-dores:

    31 Vou ver se posso... (Heitor dos Prazeres), Mrio Reis. 78 rpm, Victor, 1934.Relan.: cx. Mrio Reis: um cantor moderno (CD n. 2), BMG/RCA, 2004.32 Ver, por exemplo, Martins (2004), esp. p. 2, 13, 145 e 146. Para a autora, com oadvento do Estado Novo a polifonia/dialogia cederia lugar ao monlogo.33 Tenha pena de mim (Baba e Ciro de Souza), Aracy de Almeida. 78 rpm, Victor,1937. Relan.: CD Sambistas de fato, Revivendo, s/d.

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  • Ai, ai, meu DeusTenha pena de mim!Todos vivem muito bemS eu que vivo assimTrabalho, no tenho nadaNo saio do miserAi, ai, meu DeusIsso pra l de sofrer

    Sem nunca terNem conhecer felicidadeSem um afetoUm carinho ou amizadeEu vivo to tristonhaFingindo-me contenteTenho feito foraPra viver honestamente

    O dia inteiroEu trabalho com afincoE noite voltoPro meu barraco de zincoE pra matar o tempoE no falar sozinhoAmarro essa tristezaCom as cordas do meu pinho

    Tenha pena de mim escancarava a transitividade do samba.Feito a quatro mos, por um compositor da Vila Isabel, Ciro de Souza,e o ento desconhecido Baba (Valdomiro Jos da Rocha), a quemcoube dar o ponta-p inicial da composio, a recepo popularalcanada foi consagradora, como lembra Edigar de Alencar (1980, p.265) ao se referir ao samba que seria o vitorioso do ano34 noprimeiro carnaval sob o Estado Novo. Aracy de Almeida, por suavez, admite que Tenha pena de mim foi o primeiro sucesso que aelevou ao status de uma cantora de grande popularidade.35

    Quem era o crioulo de morro que atendia pelo apelido deBaba? Ningum mais que um humilde empregado de uma biroscafincada no alto da Mangueira, que um dia se encheu de coragem eresolveu mostrar a Ciro de Souza um samba que comeara a esboar.

    34 A confirmao desse xito est tambm em Severianoe Mello (1998, ver. 1, p. 169),que prestam maiores informaes sobre o surgimento dessa cano.35 Ver depoimento no CD Aracy de Almeida, col. A msica brasileira deste sculopor seus autores e intrpretes, So Paulo, SESC-So Paulo, 2001.

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  • Detalhe: o nome original da composio foi alterado, pois a censuracostumava vetar o emprego da palavra Deus nos ttulos das msicas.Com Deus ou sem Deus, Tenha pena de mim seguiu sua trilha emdireo ao sucesso, estabelecendo, como se pode imaginar, umaprofunda relao de empatia com a massa da populao trabalhadora/sofredora, e convertendo-se, momentaneamente, numa espcie de hinodos escanteados.

    Orlando Silva emplacou outro destaque do carnaval de 1938,o samba Abre a janela.36 Sem desfazer do seu amor pela bem-amada,o eu lrico confessava que a seduo exercida pela orgia era irresistvel:

    Abre a janela, formosa mulherE vem dizer adeus a quem te adoraApesar de te amar como sempre ameiNa hora da orgia em vou embora

    Vou partir e tu tens que me dar perdoPorque fica contigo meu coraoPodes crer que acabando a orgiaVoltarei para a tua companhia

    Para incmodo de uns e outros, a orgia, associada populaa,no se despregava do repertrio das canes da poca. Duas legendasdo Estcio, Bide e Maral, revisitavam o tema em Ando na orgia37,nesse mesmo ano. Porm, a composio mais emblemtica de que, adespeito da funo tutelar assumida pelo Estado Novo na suaproteo aos pobres, muita coisa prosseguia malparada, O trabalhome deu o bolo38, interpretada por um dos cones da malandragem,Moreira da Silva no ritmo quente da batucada. Gravada, originalmente,em 1937, ela seria regravada em 1939, de olho no carnaval de 1940.O repdio ao trabalho, aqui, anda de par com a glorificao da orgiapor um trabalhador escaldado pela experincia do batente:

    36 Abre a janela (Arlindo Marques Jr. e Roberto Roberti), Orlando Silva. 78 rpm,Victor, grav.: 1937, lan.: 1938. Relan.: cx. O cantor das multides (CD n. 2), RCA/BMG, 1995.37 Ando na orgia (Bide e Maral), Carlos Galhardo. 78 rpm, Victor, grav.: 1937,lan.: 1938.38 O trabalho me deu o bolo (Moreira da Silva e Joo Golo), Moreira da Silva.78 rpm, Odeon, 1939. Relan.: col. Carnaval, sua histria, sua glria (CD n. 30),Revivendo, s/d.

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  • Enquanto eu viver na orgiaNo quero mais trabalharTrabalho no pra mimOra, deixa quem quiser falar

    Eu fui trabalharO trabalho estava cruelEu disse ao patro:Senhor, me d o meu chapuEu no quero trabalharTrabalho v pro infernoSe no fosse a minha negaNunca que eu botava um terno

    Posto na encruzilhada, entre o batente e a batucada, a escolharecaa sobre a batucada. Era ela, em 1939, que, no selo do disco,identificava o gnero dessa cano. E o arranjo para a OrquestraOdeon, concebido, com toques de sofisticao, pelo maestro SimonBountman, no abafava, antes deixava fluir, o ronco da batucada, comoque a sacramentar musicalmente a letra de O trabalho me deu o bolo.

    De volta ao comeo

    Com certeza, esse estado de coisas desgostava muita gente. Osempresrios logicamente so as ltimas pessoas na face da terra aaceitarem, de bom grado, o repdio ao trabalho regular e metdico.39

    Os governantes, preocupados em polir a imagem do Brasil como umanao constituda por trabalhadores de todas as classes, estavam muitolonge de assistir, sem qualquer reao, louvao ao no-trabalho, sdeclaraes de amor orgia e celebrao da malandragem. Intelectuaiscomprometidos com o regime tambm se incomodavam com aperpetuao dessa situao, para eles uma ofensa lesa-ptria aos nossosforos de civilizao. Urgiam providncias para debelar essa onda queparecia interminvel.

    E foi a que se acionou o DIP para tentar pr um paradeironisso tudo. Imprensados entre a ideologia do trabalhismo, as medidaslegislativas promulgadas pelo governo Vargas pretensamente embenefcio dos trabalhadores, e pesando sobre si a mo de ferro da

    39 Organizao racional do trabalho e disciplina eram lemas constantes do empresariadopaulista nucleado em torno do IDORT (Instituto de Organizao Racional doTrabalho). Ver, por exemplo, editorial da Revista de Organizao Cientfica, 1942.

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  • represso, teriam, finalmente, os compositores e intrpretes da msicapopular, seno aderido ordem estado-novista, pelo menos calado oque sua voz trazia de inconveniente aos novos tempos?

    O ar poltico sob o qual se vivia era turvo e tenso. MarquesRebelo (2002, p. 117 e 51) anotaria que o clima que se respirava [...] odo medo, da delao, da espionagem, quando mais no seja porque asparedes so de papel. A tesoura da censura, com sua lmina de corteafiada, operava com desenvoltura. Num certo aspecto, para alm da simpatiaque sua atuao granjeava, ela respondia ainda a apelos de determinadossegmentos da sociedade brasileira. No caso especfico da cano popular,sabe-se que Villa-Lobos, assim como outros msicos eruditos e intelectuaisfiliados ao modernismo nacionalista, chegou ao ponto de incentivar eaplaudir iniciativas dessa natureza. Como ressalta Arnaldo Contier (1988,p. 321, 324 e 325), o exerccio da censura era considerado um meio vlidopara coibir a proliferao de vulgaridades como a linguagem ch e chula,num momento em que a expanso, sem freios, do rdio e do disco minavaas expectativas que eles tinham alimentado, no mbito esttico, ao seabrigarem sob o generoso guarda-chuva do Estado.

    Se, de um lado, houve um elevado nmero de composies ecompositores populares afinados com o regime e com a valorizaodo trabalho40, de outro despontaram, como um tipo de discursoalternativo, canes (sambas em sua maioria) que traaram linhas defuga em relao palavra estatal. Neste caso, ao menos at 1943/1944, no nos deparamos, bvio, com a contestao aberta aosprincpios ideolgicos oficiais. Nem por isso deixaram de circularsocialmente imagens e concepes que colocaram em movimento outrosvalores. Essa constatao equivale a um atestado de que, ao intervirdiscursivamente nas questes ligadas ao mundo do trabalho, a rea damsica popular no se resumiu a mera caixa de repetio do discursohegemnico.41 A partir da, ficam, no mnimo, abaladas umas tantascrenas generalizadas que ainda perduram acerca das relaes Estado/msica popular sob o Estado Novo.

    40 Tota apresenta um Apndice: letras de sambas e marchas para ilustrar suadissertao. Ver Tota (1980, p. 105-144). Outro pesquisador tambm se reporta sletras de canes gravadas entre 1937 e 1945: ver Severiano (1983, cap. 6).41 Em Paranhos (2002 e 2006), eu arrolo e analiso uma srie de composiesrepresentativas das vozes dissonantes sob a ditadura estado-novista, envolvendo tantoa temtica do mundo do trabalho como das relaes de gnero.

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  • Apesar da lavagem cerebral que se tentou realizar, um nmerono desprezvel de composies ainda continuava a elaborar rimas dep quebrado, nas quais trabalho rimava com martrio e miser. Atitudeperfeitamente compreensvel, porque, como Marx (2004, p. 83)salientou, o trabalho, em termos gerais, no corresponde a um atovoluntrio, sendo, antes de mais nada, um trabalho forado ouobrigatrio na sociedade capitalista. Do seu estranhamento resulta queto logo inexista coero fsica ou outra qualquer, foge-se do trabalhocomo de uma peste. Sem ser marxista, uma trabalhadora no muitoconvicta exprime sai moda tal realidade em Passeei no domingo42:

    Passeei no domingoAcordei na segundaCom o corpo cansadoDe tanto sambarAssim mesmo eu fui trabalharTera-feira, noQuarta, tambm noMas na quinta novamenteEu tornei a me cansarSexta-feira descanseiPra no sbado continuar

    H muita gente que trabalha tantoQue no sambaQue no danaE vive se matandoTrabalhando o dia inteiroSem sambar de noiteAcabando a mocidadeQue no d prazerPor isso que eu samboMe deixa sambarSei l se hoje mesmo eu posso morrer

    De quebra, Passeei no domingo um samba contagiante,interpretado com muito balano por Dircinha Batista, realando-se umsolo de clarineta e a reconstituio do ambiente musical de gafieira.Este mais um exemplo, entre tantos disponveis, de que, em muitoscasos, nas representaes da vida social presentes nas canes populares,a tentao da orgia atingia em cheio aqueles que eram intimados a sealistar no exrcito nacional de trabalhadores. Viver base de expedientes

    42 Passeei no domingo (Ari Monteiro), Dircinha Batista. 78 rpm, Continental, 1945.

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  • os mais variados com os prs e contras que isso acarretava erapor vezes percebido como algo prefervel a escravizar-se sob um regimede trabalho metdico, regular e sobretudo financeiramente poucocompensador.

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    Passeei no domingo (Ari Monteiro), Dircinha Batista. 78 rpm,Continental, 1945.

    Que ser de mim (O) (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves),Francisco Alves e Mrio Reis. 78 rpm, Odeon, 1931.

    Se voc jurar (Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves),Francisco Alves e Mrio Reis. 78rpm, Odeon, 1931.

    Tenha pena de mim (Baba e Ciro de Souza), Aracy de Almeida. 78rpm, Victor, 1937.

    Trabalho me deu o bolo (O) (Moreira da Silva e Joo Golo), Moreirada Silva. 78 rpm, Odeon, 1939.

    Vadiagem (Francisco Alves), Mrio Reis. 78 rpm, Odeon, 1929.

    Vou ver se posso... (Heitor dos Prazeres), Mrio Reis. 78 rpm, Victor,1934.

    Artigo recebido em dezembro de 2008 e aceito para publicao emdezembro de 2008.

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  • A POLIFONIA PERDIDA DO ARRAIALDO TIJUCO

    THE LOST POLYPHONY FROM ARRAIALDO TIJUCO

    Jlio Csar de Oliveira1

    Resumo: O artigo visa a refletirsobre alguns fragmentos sonoros quemarcaram a paisagem sonora doArraial do Tijuco no decorrer dossculos XVIII e XIX. Para a plenarealizao deste desafio recorreu-se adiversas fontes de pesquisas, dentreelas, literatura, a msica, os relatosde viajantes e as obras dosmemorialistas locais.Palavras-chave: paisagem sonora,Tijuco.

    Analisando-se a paisagem sonora2 do Arraial do Tijuco, pormeio das obras produzidas por memorialistas, historiadores e viajantes,depreende-se que ela era labirntica, conflituosa e denunciadora doautoritarismo portugus.

    Abstract : This article aims atref lecting about some sonorantfragments which were crucial to thesoundscape from Arraial do Tijucothroughout the XVIII and XIXcentury. In order to fully carry outthis challenge several search sourceswere studied, among which literature,music, travellers speech and thewritings memorialist of the local.Keywords: soundscape, Tijuco.

    1 Doutor em Histria Social pela PUC/SP. Professor da Universidade de Uberaba eda Universidade Presidente Antnio Carlos. E-mail: [email protected] Concebida como todo e qualquer campo de estudo atinente acstica, em particulara polifonia e a musicalidade existentes nas cidades, paisagem sonora caracteriza-sepor ser composta por sons fundamentais, sinais e marcas sonoras. Quanto aos sonsfundamentais, cabe destacar que eles tanto podem ser criados pelos elementos danatureza, como pelas mquinas de combusto interna. Por fim, verifica-se que elesno precisam ser ouvidos conscientemente, uma vez que se tornaram hbitos auditivos,porm, deve-se salientar que eles so notados quando mudam ou desaparecemtotalmente, sendo, nestes casos, relembrados com afeio. No que se refere aos sinais,verifica-se que eles so sons destacados e ouvidos conscientemente. Alguns destessinais, tais como sirenes, sinos e apitos, constituem-se em recursos de avisos acsticos,que tanto podem anunciar um acontecimento aprazvel e/ou catastrfico. No queconcerne marca sonora, observa-se que ela se refere a um som da sociedade queseja nico ou que possua determinadas qualidades que o tornem significativo ounotado pelos habitantes daquele lugar (SCHAFER, 2001).

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  • Nesse contexto, ocupam uma posio singular as reflexesrealizadas pelo memorialista Joaquim Felcio dos Santos3 diante daopresso portuguesa junto sociedade tijucana, posteriormente,diamantinense4. Nessa perspectiva, antes de esquadrinhar-se algumasobras por ele produzidas, mais especificamente Acayaca5 e Memriasdo Distrito Diamantino da Comarca do Serro do Frio, deve-sesalientar que elas foram geradas em um momento histricocaracterizado pela luta em prol da implantao da repblica e peloressurgimento da imprensa liberal, silenciada desde 1832, emDiamantina.6

    Nesse sentido, o jornal O Jequitinhonha, objetivando o retornodos assuntos liberais s conversas cotidianas, passou a publicar, emfolhetins, diversas obras relembrando populao o seu passado delutas e rupturas, conclamando as elites retomada dos tempos de glria

    3 Joaquim Felcio dos Santos (1824-1895) nasceu na Vila do Prncipe, atual cidade doSerro. Com residncia fixada em Diamantina, esse republicano histrico foi senador,jurista, memorialista e romancista. Ao longo de sua vida publicou diversas obras, dentreelas, um projeto de Cdigo Civil Brasileiro, Memrias do Distrito Diamantino e umtrabalho crtico-humorstico-histrico intitulado O Brasil do ano 2000.4 Para alguns viajantes e historiadores, a implantao do Regimento Diamantino,fundamentado em uma legislao draconiana, foi responsvel por aprofundar oisolamento do Distrito, fazendo com que ele se tornasse uma colnia dentro de outracolnia, desligado do restante do Brasil por uma extensa barreira legal e administrativa,mais eficaz naquela sua forma do que as pedras e tijolos da Grande Muralha daChina. Para outros pesquisadores, possivelmente influenciados por Joaquim Felciodos Santos, a excessiva centralizao administrativa vigente no Distrito, ao contrriodo restante da Colnia, obteve excelentes resultados, pois fora organizada de formaespecial, isto , completamente independente de quaisquer outras autoridades daColnia, portanto, prestando contas to somente ao governo metropolitano. Emsentido contrrio a essas abordagens sugerimos, entre outras, a leitura das obras deJnia F. Furtado citadas no artigo.5 O romance Acayaca foi publicado em 1866, por meio da tipografia PerseveranaFluminense, sendo em 1869 relanada na srie Leitura Para Todos. Alm do referidoromance o autor produziu Poo do Moreira, Acaba-mundo, O Intendente dosDiamantes, Fragmentos de um Manuscripto e O Capito Mendona.6 Para Furtado, a referida obra caracteriza-se, alm de denotar a construo que oautor faz da histria do referido Distrito, pelo fato de estar impregnada pelas histriasde diversos heris e viles que povoaram a regio diamantina, destacando-se entreeles, Chica da Silva: Chica da Silva foi a nica mulher do sculo XVIII elevada, porJoaquim Felcio, categoria de personagem histrica. Todos os homens - fossemlibertos ou escravos - nascidos na terra brasilis figuravam nas Memrias como mrtiresno panteo dos heris nacionais. Com Chica no entanto no aconteceu o mesmo.Homem do sculo XIX, o autor reconstruiu a personagem conforme a viso quepredominava em sua poca, e fez projees de suas impresses no sculo anterior.Baseou-se em cenas de seu cotidiano social, em que a mulher e a famlia deviamregrar-se pela moral crist e onde imperavam os preconceitos contra ex-escravos,mulheres de cor e unies consensuais (FURTADO, 2003, p. 266).

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  • e de honra. Nesse contexto, foram publicadas as seguintes obras deJoaquim Felcio dos Santos: Acayaca e Memrias, reproduzido o Libelodo Povo, assinado com o pseudnimo de Timandro, que interpreta aluta pela nacionalidade, segundo a perspectiva do projeto liberal, eculmina com as Pginas da Histria do Brasil Escritas no ano 2000.

    Imiscudo entre os editoriais inflamados, em franca oposioao regime monrquico, o romance Acayaca publicado no Jequitinhonha,equipara-se, segundo Souza (1993) ao Guarani de Jos de Alencar, porapresentar em seu mago o mito da fundao da terra. Insatisfeito como presente, estando ele margeado por instituies opressoras, Santosnarra a fundao mtica do Arraial e a luta titnica empreendida pelosndios Puris contra os invasores portugueses e, por extenso, a gnesepoltica e sonora dessa opresso.

    Do ponto de vista literrio, observa-se que a referida obra foiinspirada em diversos romances romnticos ambientados no perodomedieval, em particular na obra Eurico, o presbtero, do portugusAlexandre Herculano, que remete o tempo de sua narrativa s lutasnacionais portuguesas no sculo VIII, ocasio em que os mourosinvadiram a pennsula ibrica.

    Outro aspecto de cunho literrio e, portanto, histrico, a serenfatizado conduz a interlocuo do autor com o iderio preconizadopela primeira gerao do romantismo brasileiro que, de uma forma geral,acreditava no existir nada mais significativo do que a natureza, em suadinmica mtica, para expressar a idia de Nao. Ou seja, os romnticosacreditavam que era possvel, sob o fulgor das estrelas, sobre a terra ecom os ndios, comear a contar as histrias referentes s diferenasentre Brasil e Europa e tambm aquelas relativas identidade nacional.

    Do ponto de vista histrico, deve-se salientar que asrepresentaes que buscam o mito de origem no so exclusividadeda histria que Santos lutou para engendrar, pois algo muito semelhanteteria ocorrido no mbito da historiografia produzida em outrocontinente, conforme ressaltou Marc Bloch (2001, p 56-57). O mesmoprocedimento tambm teria sido adotado para explicar a fundao demuitas cidades brasileiras. Pesavento (2002) tambm toca nessa questo,ao tratar dos discursos que tiveram como objetivo analisar as origensda cidade de Porto Alegre no Rio Grande do Sul. Segundo a autora,atravessa esses discursos a tentativa de reconstruir a gnese da cidadea partir da mitificao das origens. Nesse caso, o mito fundador teria

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  • por funo promover o sentido da pertena e, com ele, garantir aunidade da populao em torno de projetos polticos.7 O retorno sorigens tambm caracterizaria, no dizer de Bresciani, os trabalhosdesenvolvidos pelos intelectuais que se debruaram sobre os estudosacerca das colnias europias instaladas no continente americano:Todas as elaboraes intelectuais sobre o que veio a ser cada umadas antigas colnias europias nas Amricas sentem-se irresistivelmenteatradas para a origem, um comeo, para os tempos da colonizao(BRESCIANI, 2003, p. 69).

    No entanto, outro elemento tambm pode ser observado naobra de Santos, isto , a forte presena de uma cosmogonia na qualos deuses apresentam-se, criam-se ou criam outros deuses ou o mundoa partir do som. Nesse sentido, verifica-se no romance a marcantepresena de uma fonte cultural de origem judaico-crist que acentua omundo como eco e materializao da palavra8 e, que, segundo a qual,o autor explica o surgimento do Arraial. Influenciado, respectivamente,pela Gnesis e pelo evangelho de So Joo, observa-se no romanceAcayaca que as coisas irrompem para a vida ao serem nomeadas pelavoz do Criador e so ressaltadas constantemente pelo verbo divino,sendo, esse ltimo, responsvel pela constituio do cu, da terra e,por conseguinte, do prprio Arraial.

    Dessa forma, observa-se na narrativa do memorialista, assimcomo naquelas de diversos povos em diferentes momentos histricos,o fato de o autor recorrer aos sons para explicar e ao mesmo tempojustificar a origem do Arraial e, conseqentemente, da opresso aliexistente. Nesse contexto, destaca-se novamente em meio paisagemsonora de cunho mtico, descrita por Santos, assim como nas demaisque se seguiram, mais especificamente Memrias do DistritoDiamantino, os sons tabus. Isto , sons considerados por diversos

    7 Ao tratar da obra de Augusto Porto Alegre, a autora tece o seguinte comentrio:Sua obra histrica tem uma posio literria, e seu discurso sobre o passado compeuma coerncia de sentido mtica. O horizonte de temporalidade desse mito opassado, e a sua narrativa busca reconstruir a sociedade antiga com vistas a consolidarum sentimento identitrio. O mito fundador, como se sabe, fundamental pararepresentao de um pertencimento, que construra uma comunidade simblica desentido (PESAVENTO, 2002, p. 246).8 Segundo SantAnna (2001, p. 23-33), duas so as fontes culturais pelas quais oshomens explicaram o surgimento do universo e da terra, quais sejam, uma que ressaltao mundo como eco e materializao da palavra e outra que concebe o universo regidopor uma msica csmica.

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  • estudiosos de enorme ressonncia simblica que, quando proferidos ouproduzidos, tinham o poder descomunal da criao e da destruio,por isso eram somente conhecidos pelos membros do grupo e, emparticular, pelos mais velhos e sbios.9

    Mediante o poder atribudo a esses sons, verificava-se que eramzelosamente guardados, constituindo-se, dessa forma, em segredos e,por extenso, em silncios cuja manuteno garantia a sobrevivnciado grupo. No caso dos Puris, retratados por Santos em Acayaca, ossons tabus estavam vinculados ao culto de uma rvore por elesdenominada de acayaca. Segundo a crena vigente no seio dessa naoindgena, enquanto aquela rvore existisse, eles estariam protegidoscontra todos os males e defendidos de todos os perigos e ameaas.

    Entretanto, durante os festejos do casamento de Cajubi, umadas inmeras filhas do paj Pyrakassu, em local distante, os homensbrancos, informados pelo mameluco Toms Bueno sobre o segredoda tribo, derrubaram a acayaca. Interpretando o acontecimento comosinal de mau agouro e tomados de pnico, os ndios passaram a rebelar-se contra o paj, estabelecendo entre si uma luta atroz. Diante dessequadro desolador que conduzia extino da nao Puris, fosse pelaslutas internas e/ou pelas constantes incurses militares do homembranco, o paj ateou fogo ao cedro sagrado e proferiu sua maldiosobre os invasores das terras sagradas do Puris:

    Quereis riquezas, achareis muitas debaixo da terra quecalcamos debaixo dos ps; mas o ouro h de escaldar-vosas mos, a cobia h de devorar-vos as entranhas. Tomastesnossas terras, expulsastes-nos da taba: mas vossos filhossero tambm expatriados, e v-lo-eis arrastados emcorrentes para irem perecer em um pas, onde o sol crestae enegrece a pele. Hoje, nossos perseguidores, amanh sereisperseguidos por outros, que viro disputar-vos as riquezasque descobrirdes. Fugireis para bosques, esconder-vos-eis nasbrenhas, nos abismos, nos precipcios, no meio dos animaisbravios, e a mesmo sereis caados a moaba, como noscaastes a ns. Profanastes nossas ibicoaras, onde

    9 Segundo Schafer (2001, p. 282), os sons tabus, alm de serem ouvidos nacontemporaneidade na forma de sirenes da defesa civil, que quando tocadas soseguidas por um desastre, foram tradicionalmente proferidos de maneira imprpria esempre seguidos por morte e destruio. Nesses casos, so para ele so emblemticosa palavra hebraica Jaweh e o termo chins Huang chuang (sino amarelo), que, setocado pelo inimigo, seria suficiente para causar um colapso no Imprio e no Estado.

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  • repousavam as cinzas dos bravos; e vossos corpos jazeroinsepultos sobre a terra para serem pastos de corvos, ousero lanados no Jequitinhonha, e arrojados ao mar; vossosossos branqueados os rochedos, e ningum se animar abusc-los para o jazigo sagrado (SANTOS, 1866, p. 21).

    Aps ter proferido tais palavras e ateado fogo rvore sagrada,seguiu-se um dilvio, e, logo em seguida, comearam a aparecerpedrinhas rijas, brilhantes, transparentes, ordinariamente cristalizadas naforma de octaedro, isto , o diamante - carbonizao da acayaca, rvoreconsiderada sagrada pelos Puris. Mediante esse fato, a brasa adormecidados diamantes faria arder sempre as mos de todos aqueles que seatirassem com voracidade sobre o seu cintilar.

    Continuando a auscultar a paisagem sonora do Arraial doTijuco e/ou cidade de Diamantina, por meio das obras de Santos, maisespecificamente Memrias do Distrito Diamantino, que visa narrar asaga da populao do Distrito na luta pelo direito cidadania, assimcomo, a presena de idias republicanas no momento da luta pelaindependncia, constata-se, inicialmente, que essa paisagem sempreesteve direta e indiretamente associada a uma polifonia denunciadorada presena incmoda, autoritria e opressiva da Coroa portuguesa, pois,segundo seu autor:

    ramos regidos com leis particulares, debaixo do mando dasautoridades, especiais, como uma colnia isolada, segregadado resto do Brasil. [...] As vistas da Corte eram haver todoproveito do descobrimento dos diamantes: da deviam osgovernadores tirar regras de sua conduta, e assim no valiamas melhores intenes. Procuravam no se desviar dasdeterminaes da Corte, embora com sacrifcio dos povos,porque conheciam que tanto mais confiana gozariam,quanto mais promovessem os interesses do Fisco (SANTOS,1976, p. 61).

    Abordando-se paisagem sonora desse perodo da histria doArraial descrita por Santos em Memrias do Distrito Diamantino,observa-se nela a constante presena dos sons tabus. Na referida obra,eles aparecem envoltos em uma narrativa de cunho histrico, fazendo-se notar na forma reservada dos indivduos, ou seja, daqueles que sabemguardar um segredo, sendo, portanto, sucintos em seus atos e palavras.Tambm, na forma de discrio dos mais diferentes sujeitos sociais,isto , em uma atitude de segredo na qual observa-se o desejo de

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  • ocultar as misrias que constituem tudo aquilo que o indivduo aprendeuque no deve ser (PAULA, 1999).

    A reserva constituiu-se, inicialmente, em uma maneiraencontrada pela populao do Tijuco para preservar a prpria vida eliberdade, pois ela silenciava sobre si com medo de ser delatada e, porextenso, deportada, tendo dessa forma seus bens confiscados.Posteriormente, ela incorporou outra faceta, ou seja, uma forma deocultar as misrias, sendo emblemtico o prprio ato de garimparescondido que ganhou na regio diamantina uma conotao associadaao bandidismo e delinqncia.10 Nesse contexto, detecta-se no interiorda sociedade tijucana o silncio de Harpcrates e de Lara:11

    O silncio de Harpcrates o silncio do tijucano, quando,no desejo de preservar sua vida e sua liberdade, calava-se.Esse silncio um preldio para a revelao. Abre passagem.Confere s coisas grandeza e majestade. o silncio daprudncia e da circunspeco. Diferentemente desse silnciode abertura e de revelao, temos o mutismo que oimpedimento desta, seja pela recusa de receb-la, seja pelarecusa de transmiti-la. [...] o mutismo est ligado s lnguascortadas para esconder as manchas e as misrias doindivduo, quando ele no corresponde quilo que deve ser.O corte impede a revelao e a realizao do ritual depassagem (PAULA, 1999, p. 116-117).

    Alm dos sons tabus, a obra Memrias do Distrito Diamantinotambm possibilita observar que a paisagem sonora do Tijucocaracterizava-se por ser composta de sons separados que podiam serclaramente ouvidos em razo do baixo nvel de rudo ambiental. Isto, devido ao fato de os sons se sobreporem com menos freqncia,podia-se ouvir noite os sinais acsticos da opresso portuguesa por

    10 Segundo Santos (1976, p.79): Garimpo era a minerao furtiva, clandestina dodiamante, e o garimpeiro o que a exercia. [...] Garimpeiro tornava-se muitas vezesaquele que obrigado a expatriar-se ou a passar uma vida de misrias, porque com aproibio da minerao se lhe tirava o nico meio de subsistncia, ia exercer umaindstria, a minerao clandestina, que julgava um direito seu, injustamente usurpado;era aquele que, condenado a degredo para o solo ardente africano, vendo sua famliana misria, por lhe terem confiscados todos os bens [...].11 Harpcrates, denominado deus do silncio, era representado sob a figura de umjovem em p com o dedo sobre os lbios, como a impor silncio, vestindo uma pelede lobo coberta de olhos e de orelhas, significando que devemos falar pouco. Lara,chamada Roma Deusa do silncio, que teve a sua lngua cortada por Jpiter ao contar mulher deste a sua paixo por Juturna (PAULA, 1999, p. 116-117).

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  • meio do tinir das armas, do andar compassado e autoritrio dossoldados que cotidianamente percorriam as ruas e becos do Arraial:

    Vivamos como estivssemos em um eterno bloqueio,isolados do resto da colnia, sendo-nos interdita todacomunicao com os povos de fora. Ningum podia julgar-se seguro em sua casa. O senhor via com desconfiana noescravo um inimigo oculto que, denunciando-o, obtinha aliberdade e partilhava seus bens com a Fazenda Real.Era assim que, noite, as ruas do Tijuco tornavam-semelanclicas e silenciosas, como lgubres galerias de umvasto cemitrio: apenas se ouviam o tinir das armas e oandar compassado e montono dos soldados que rondavam(SANTOS, 1976, p. 110).

    Nas noites ecoavam, desde a fundao do Arraial, alm do tinirdar armas, do rufar dos tambores, dos passos dos soldados s margensdo So Francisco ou na mata densa, o cricrilar dos grilos, o rufar furtivodas asas dos pssaros noturnos e o pio noturno das corujas,invariavelmente, seguidos por seus vos silenciosos. Tambm ocupavauma posio singular nessa paisagem sonora noturna, maisespecificamente nos primeiros anos de fundao do Arraial, os gritosdesbragados das onas, o isolado, porm, persistente uivo dos lobos,cuja alta tessitura invadia os ouvidos dos homens instalando em suasalmas o medo e o receio de se sair noite:

    [...] onde o Arraial de Baixo e que ento era um covil deferas bravias. As ruas do Macau, Chafariz, So Francisco eCavalhada, descendo da Grupiara at o Rio Grande, eramum vasto tremedal que no tempo das guas se alagava,tornando-se intransitvel e servia como barreira s feras queacossadas, pelos ndios, subiam pelos desfiladeiros apertadosdo Arraial de baixo (SANTOS, 1976, p. 43).

    No mundo labirntico das ruas e becos era possvel, segundoos romances de Santos e as pesquisas realizadas por algunshistoriadores, encontrar-se por todos esses espaos diversas formas desilncios e sons provenientes da voz. Nesse contexto, deparava-se comhomens livres e pobres, como os garimpeiros de vida difcil e incerta,que silenciosa e cotidianamente subiam e desciam as ladeiras, vestidosde largos sortus de pano grosso azul que lhes estendiam at os joelhos,tendo nas cabeas chapus de imbs de longas abas. Pelo universomultifacetado das ruas e becos, defrontava-se, freqentemente, com

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  • homens de poucas e speras palavras, como os sisudos capites-do-mato, trajados de jaqueta de couro de veado, calas de tr, camisa dechita ou riscado.

    Prximo aos chafarizes pblicos ou cruzando as pequenaspraas, deparava-se constantemente com a presena ruidosa e incmodade diversos desclassificados.12 Mal vestidos, quando no esfarrapadas eseminus, estes agentes sociais eram constantemente impedidos oudesobrigadas de assistirem missa, especificamente, nos diasconsiderados santos, por no terem recursos suficientes para vestiradequadamente a si mesmos e aos seus familiares. O que, no entanto,no impedia, apesar de considerados turbulentos e intratveis pelasautoridades e pelas classes hegemnicas, de serem freqentementeutilizados como mo-de-obra alternativa escrava (SOUZA, 1982).

    Alm das vestes, dos gestos rudes e do olhar desconfiado,tambm lhes denunciavam a condio social, os termos, o tom e aaltura da voz empregada em seus dilogos cotidianos. Acostumados acomunicarem-se por meio de berros e gritos estridentes, suficientementealtos para serem ouvidos a metros de distncia, esses sujeitos sociais,com suas vozes e gestos ruidosos, contribuam para definir os territriosa serem ou no freqentados pelos homens de bem:

    [...] os escravos passam uma parte dos momentos deliberdade que se lhes concedem e dos que podem furtar aseus senhores; para l que levam o produto de seusroubos, dos quais os proprietrios das vendas no foramtalvez os menores cmplices; e a acabam por se corromper,comunicando-se reciprocamente seus vcios e que seesquecem, na embriaguez, a escravido e suas misrias. Nadase pode comparar ao rudo confuso e discordante que reinanas vendas muito freqentadas: uns riem, outros discutem;todos falam com loquacidade; este aqui, sem ligar ao quese passa em redor, dana sapateando; aquele outro,encostado indolentemente parede, canta com voz afinadauma cano brbara, acompanhando-se de um instrumentomais brbaro ainda (SAINT-HILAIRE, 1975, p. 63).

    12 Sobre a presena ruidosa e incmoda destes sujeitos sociais Mawe (1975, p. 156 -158), teceu os seguintes comentrios: No me recordo de ter visto em outro lugartantos pobres, sobretudo mulheres. Cento e cinqenta desses infelizes vinham todasas semanas receber farinha, que o intendente lhes dava. So absolutamentedesocupados [...] por estar situado em distrito estril, que, nada produz paraalimentao de seus habitantes, em nmero de seis mil, o Tijuco se abastece emfazendas afastadas vrias lguas. O po era a extremamente caro.

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  • Ao lado destes, estavam cotidianamente presentes nas esquinas,ruas, praas e becos, outros sujeitos sociais, cada qual com suasrespectivas vestimentas, vozes e silncios. Entre eles, destacavam-sealgumas mulheres que, por meio de seus trajes ricos e pomposos, seusgestos, suas falas e seus sorrisos espalhafatosos provocam a ira e aindignao de alguns moradores do Arraial:

    Devendo-se atender, mais que a nenhuma outra coisa, a evitarpelos meios possveis as ofensas de Deus e com especialidadeos pecados pblicos, que com tanta soltura corremdesenfreadamente no Arraial do Tijuco, pelo grande nmerode mulheres desonestas que habitam no mesmo Arraial, comvida to dissoluta e escandalosa que, no se contentando deandarem com cadeiras e serpentinas acompanhadas deescravos, se atrevem irreverentes a entrar na casa de Deuscom vestidos pomposos, e totalmente alheios e imprpriosde suas condies (SANTOS, 1976, p. 56).

    Contrastando com a forma rude e simples de se vestir, falar ese comportar no mbito domstico ou pblico desses sujeitos sociais,tambm transitava pelas ruas, becos e praas do Arraial um reduzidonmero de pessoas pertencentes s classes hegemnicas, geralmentebem trajadas, de costumes delicados e de fala mansa. Por essesterritrios tambm circulavam e conversavam entre si, por meio depalavras comedidas e de forma afvel, indivduos oriundos dos setoresintermedirios cujos parcos recursos, invariavelmente, eram aplicadosna aquisio de um escravo para, posteriormente, alug-lo a uma taxade juros de 16% Real Extrao (FURTADO, 1996, p. 51).Reportando-se ao perodo do Terceiro Contrato (1748-1751), quandoocorreu o aumento da populao, do comrcio e da riqueza, devido indolncia das autoridades e tolerncia do Contratador FelisbertoCaldeira Brant para com o contrabando, pode-se observar que talprtica culminou, como sempre, no bem esta