revista movimento (4ed - 2015)

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Revista discente do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP SETEMBRO 2015 [ISSN: 2238-8699] # 4 # híbrido # performance # instalação # VJings # montagem # pixilation # cena teatral

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A Revista Movimento é um periódico científico semestral, organizado pelos alunos do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP. ISSN: 2238-8699 Projeto Editorial: Raissa Araújo https://www.facebook.com/revimovi/

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 2 3

Universidade de São Paulo

Reitor Marco Antonio Zago

Vice-Reitor Vahan Agopyan___

Escola de Comunicações e Artes

Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch

Vice-Diretor Eduardo Henrique Soares Monteiro___

Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais

Coordenador Mauro Wilton de Sousa

Vice-Coordenador Henri Pierre Arraes de Alencar Ger-vaiseau

Conselho EditorialAndréa C. Scansani, Carolina Berger, Damyler Cunha, Danilo Baraúna, Edson Costa, Marina Kerber, Raissa Araújo e Tainah Negreiros

Conselho Científico Prof. Dr. Almir Antonio Rosa

Prof. Dr. Cristian Borges

Prof. Dr. Eduardo Morettin

Prof. Dr. Eduardo Vicente

Profa. Dra. Esther Hamburger

Prof. Dr. Henri Gervaiseau

Prof. Dr. Marcos Napolitano

Profa. Dra. Mariana Villaça

Profa. Dra. Marília Franco

Profa. Dra. Patrícia Moran

Prof. Dr. Ronaldo Entler

Profa. Dra. Rosana Soares

Prof. Dr. Rubens Machado Junior

A Revista Movimento é um periódi-co científico semestral, organiza-do pelos alunos do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP.

ISSN: 2238-8699

___

Todos os artigos assinados são de re-sponsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. A reprodução total ou parcial dos mesmos é autorizada, mediante apresentação de créditos.

___

REVISTA MOVIMENTOEscola de Comunicações e Artes - ECA/USPPrograma de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais - PPGMPA

Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 - Prédio 4Cidade Universitária - ButantãCEP 05508-020São Paulo - SP - Brasil

[email protected]/revimovi

Capa:

Autorretrato com duração e sons va-riáveis III - de Viviane Vallades

Projeto editorial:Raissa Araújo

NÚMERO 4SETEMBRO 2015

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A quarta edição da Revista Movimen-to que aqui se apresenta nasce da necessidade de retomar o debate acadêmico iniciado há três anos pelo corpo discente do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Univer-sidade de São Paulo. Uma publicação desta na-tureza exerce dupla função no universo dos es-tudos da pós-graduação, pois além de divulgar as recentes pesquisas de integrantes dos mais variados programas e ampliar o diálogo das in-vestigações ainda em desenvolvimento, também cumpre seu papel no aperfeiçoamento crítico e na elaboração do pensamento científico ao pro-por recortes temáticos onde possam ser detecta-dos cruzamentos, contrapontos e propostas de interação entre as instituições que se dedicam à comunicação e às artes.

A atual produção audiovisual encon-tra-se inserida num território heterogêneo e de abrangência múltipla, pois contempla obras que ultrapassam os limites historicamente estabele-cidos pela teoria vigente. No desejo de dar maior visibilidade e criar entrelaçamentos entre as atuais pesquisas engajadas em zonas fronteiri-ças ao cinema, a Revista Movimento apresenta o dossiê Poéticas contemporâneas em audiovisua-lidades híbridas, proposto e elaborado por Caro-

lina Berger e Danilo Baraúna. A importância de colocarmos em discussão as recentes realiza-ções, que transitam em áreas que extrapolam os limites da categorização, se dá pelo desejo de concentrarmos nossos esforços num modo de investigação científica na qual a prática e o pensamento não possam ser debatidos separa-damente. Onde o trajeto de um é construído a partir do cotejo com o outro. Sendo assim, se-lecionamos uma série de artigos que têm como norte esse diferencial, quer seja por terem sido escritos por artistas realizadores, como forma de ressignificar sua própria obra, quer por estudos voltados para o caráter interdisciplinar de tais produções e que vivem mutações em suas for-mas trans, inter ou multimídia. Tais investidas artísticas priorizam o ato ao vivo, os hibridismos tecnológicos e a fruição do público onde muitas vezes os corpos presentes, quer sejam eles do performance e/ou da audiência, constituem a própria experiência.

No conjunto de artigos selecionados para integrar nosso Dossiê priorizamos a plura-lidade de tratamentos acerca das novas configu-rações da produção audiovisual contemporânea. Artistas como Henrique Roscoe (VJImpar), que colocam em perspectiva a própria criação - PON-TO, um videogame sem vencedor - mostram

Audiovisualidades híbridasConselho Editorial

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como o audiovisual potencializa a performan-ce e tem a capacidade de envolver a plateia na manipulação de seu conteúdo e de sua produ-ção de presença. Também sob a óptica analíti-ca acerca de um trabalho pessoal, desenvolvido de forma coletiva, Roderick Steel - Moléculas de contaminação afetiva em “Moonovosol” - uti-liza o viés da contaminação afetiva de Deleuze para demonstrar como as “energias colaborati-vas” seguem buscando novas perspectivas para práticas conectadas às artes de vanguarda e às expressões experimentais que transitam no hi-bridismo audiovisual e performático.

Já em O dispositivo audiovisual contem-porâneo – proposta para uma nova montagem audiovisual, Julieth Galvis esboça a construção de um movimento teórico que permite ampliar a concepção de montagem audiovisual para abar-car novas propostas no âmbito das tecnologias interdisciplinares emergentes. Uma relevante abordagem sobre os espaços de encontro com o público é o que podemos acompanhar no ar-tigo Em favor de uma cartografia cognitiva dos espaços festivos onde VJs atuam: estratégias na constituição de jogos dialógicos. Em seu texto Guilherme Cestari faz uma análise de relações entre VJ e público nos espaços festivos como lu-gares propícios à realização cognitiva de interfe-rências e inscrições a partir da teoria dos jogos e da teoria dos grafos existenciais de Charles Sanders Peirce.

Na sequência temos Experiências Au-diovisuais na cena teatral: luz, palco e tela onde Jair Sanches Molina Junior apresenta um breve percurso histórico do uso de dispositivos audio-visuais em tempo real como recurso cenográfico e interativo. Sua pesquisa concentra-se na Com-panhia Brasileira Teatro Oficina Uzyna Uzona, di-rigida pelo ilustre Zé Celso Martinez Corrêa que nos brinda com uma entrevista na qual discorre sobre o processo de transformação dos espetá-culos do grupo a partir da utilização das tecno-logias do vídeo.

Dando continuidade ao segmento Entre-vistas, Elisa Maria Rodrigues Barboza apresenta Vincent Morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais. Nessa conversa, o diretor de videoclipes interativos, Vincent Morisset, dis-

cute sua participação política para o reconheci-mento das narrativas digitais como uma forma autônoma pelo governo canadense. Seguindo a experiência canadense, Marina Kerber entrevis-ta o cineasta e professor de animação Marcos Magalhães em Norman McLaren, pixilation e a animação brasileira. Além de nos contar sobre sua atuação no festival Anima Mundi e as influên-cias do cinema de animação canadense no Bra-sil, o cineasta expõe o uso da técnica pixilation a partir de sua experiência no National Film Board of Canada e seu contato com Norman McLaren.

Dentro da concepção desta edição de colocar em evidência produções que mesclam prática e pensamento selecionamos dois traba-lhos para a seção Poéticas. A obra Autorretrato com duração e sons variáveis III de Vivianne Val-lades apresenta, por meio de fotos (capa desta edição) e texto, uma pesquisa sobre as telas que infringem e desafiam o formato plano e retangu-lar da projeção audiovisual. Suas investigações passam por suportes de gelo, quadros perfu-rados e espelhos para colocar em perspectiva os conceitos de duração e efemeridade. Ainda nesta seção, Rita Natálio apresenta o trabalho A máquina de imitar Global de Grosse Fatigue, de Camille Henrot no qual a autora propõe uma análise conjunta entre a forma e o conteúdo da obra de Camille Henrot. Seu questionamento reside na maneira como imagens, provenientes de diferentes contextos culturais e históricos, convivem num mesmo espaço e, desta forma, são capazes de produzir sentido através de uma investigação rítmica dessa aproximação.

Com essa série de artigos dedicados à heterogeneidade da realização audiovisual con-temporânea temos a oportunidade de oferecer nossa contribuição à expansão das diferentes formas de pensar a produção acadêmica da área. Agradecemos a colaboração de todos os autores e convidamos os leitores a percorrer as próximas páginas na consolidação de um víncu-lo de intercâmbios cada vez mais frutíferos.

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Su

rio

#DoSSiê

entreViStA

PoÉtiCAS

PONTO, um videogame sem vencedor | Henrique Roscoe Correa Pinto

Móleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol” | Roderick Peter Steel

O dispositivo audiovisual contemporâneo | Julieth Galvis Guzmán

Em favor de uma cartografi a cognitiva dos espaços festivos onde VJs atuam | Guilherme Henrique de Oliveira Cestari

Experiências audiovisuais na cena teatral | Jair Sanches Molina Jr.+ Entrevista com José Celso Martinez Corrêa

Autorretrato com duração e sons variáveis III | Viviane Vallades

A máquina de imitar global de Grosse Fatigue de Camille Henrot | Rita Natálio

Vincent Morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais - com Vincent Morisset | por Elisa Maria Rodrigues Barboza

Norman McLaren, pixilation e a animação brasileira - com Marcos Magalhães | por Marina Teixeira Kerber

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DoSSiêPONTO, um videogame sem vencedor

Henrique Roscoe Correa Pinto

Ponto, um videogame sem vencedorHenrique Roscoe Correa Pinto1

Resumo: “PONTO, um videogame sem vencedor” (2011) é uma perfor-mance audiovisual com sons e imagens sincronizados, tocadas por um console construído e programado por mim, e controlado por joysticks de videogame (Nintendo) retrô. O instrumento é completamente autô-nomo e funciona sem a necessidade de um computador, usando apenas um projetor e um sistema de som para reproduzir o seu conteúdo. Cinco pessoas da plateia são convidados a “jogar” a performance junto comi-go, acrescentando um aspecto aleatório, onde eu já não tenho o controle completo do trabalho. Este artigo passa por todo o processo de criação da performance, mostrando o conceito artístico, estética e algumas técnicas generativas usadas por mim para adicionar um pouco de aleatoriedade ao processo para que o show seja diferente cada vez que é realizado.Palavras-chave: arte digital; performance; instrumento customizado; ar-duino; audiovisual; ao vivo.

Abstract: “Dot, a videogame with no winner” (2011) is an audiovisual performance with synchronized sounds and images, played by a ‘game console’ built and programmed by myself, and controlled by retro videog-ame (Nintendo) joysticks. The instrument is completely autonomous and works without the need of a computer, using only a projector and a sound system to play its content. Five people from the audience are invited to play the performance along with me, adding a random aspect where I no longer have the complete control of the work. This paper passes through the complete process of creation of the performance, showing the artistic concept, aesthetics and some generative techniques used by me to add some randomness to the process so that the show is different each time it is performed.Key words: digital art; performance; custom instrument; arduino; audio-visual; live.

___________________________________________________

1 Artista digital, músico e curador. Trabalha na área audiovisual desde 2004. É graduado em Comunicação social pela UFMG e Engenharia Eletrônica pela PUC/MG e tem especialização em Design pela FUMEC.

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1. HOL

O projeto HOL, criado por mim no início de 2008, pretende fazer uma junção entre arte con-

temporânea, performances audiovisuais ao vivo, arte digital e criação de interfaces e instrumentos

personalizados.

O projeto acontece na forma de performances audiovisuais ao vivo. Inicialmente é criado um

conceito e, a partir dele, todos os elementos de som e imagem são desenvolvidos de modo a mostrar

emoções e sensações a respeito do tema tratado. Esta narrativa acontece de forma diferenciada do

cinema e do vídeo tradicionais, pelo fato de que é executada ao vivo, acontecendo de forma dife-

rente a cada apresentação, além de usar formas abstratas para criar metáforas para o mundo real.

Estas analogias se dão com o uso de elementos fundamentais da imagem que, através de suas cores,

formas e movimentos, sugerem sensações que vão dando ao espectador caminhos para entender a

poética de cada composição.

O uso destes elementos é baseado nos estudos dos artistas russos Kazimir Malevich e Was-

sily Kandinsky. Ambos acreditavam no poder de elementos fundamentais da imagem na construção

de narrativas próprias. Malevich, com seu Suprematismo2 , ressaltou o poder intrínseco das formas e

Kandinsky3 buscava, através de sua obra, ampliar a pintura através da sugestão do movimento e do

___________________________________________________

2 Kasimir Malevich, The Non-Objective World - The Manifesto of Suprematism (New York: Dover Publications. Inc., 2003), 67.

DoSSiêPONTO, um videogame sem vencedor

Henrique Roscoe Correa Pinto

Fig. 1 – Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL IV: Oo0ø•º•∞ =<

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uso de elementos musicais em suas obras4 (exemplificado em títulos emprestados de termos musi-

cais como Fuga, Improviso, etc.).

HOL é um projeto de alta tecnologia, e, ao mesmo tempo, usa elementos tradicionais da

arte moderna e contemporânea. Tem influência de um campo da arte chamado música visual, onde

elementos de som e imagem, de forma sincronizada, criam uma narrativa fluida na qual elementos

musicais como ritmo, harmonia, etc. são transpostos para o campo visual.

O projeto é inspirado em artistas pioneiros desta área como Oskar Fischinger, Norman

McLaren e, mais recentemente, Alva Noto, Ryoji Ikeda, entre outros. Entretanto, HOL acrescenta

ao enfoque puramente estético comum a este tipo de trabalho, a questão conceitual, inserindo um

elemento reflexivo e crítico a respeito de cada tema tratado.

Outra característica importante do projeto é a criação de toda a programação de cada per-

formance a partir de softwares modulares e generativos como vvvv e Max/Msp, que permitem uma

completa personalização do que será executado ao vivo, tanto em som quanto imagem. Seria algo

como criar um novo software para cada parte de cada apresentação. Além disso, a questão aleatória,

muito usada na obra musical de John Cage por exemplo, tem papel importante na determinação de

caminhos não totalmente controlados por mim. Este procedimento permite a ampliação ao infinito

das possibilidades de execução da performance. Assim, cada obra é única e acontece de forma dife-

rente a cada apresentação, apesar de sempre se manter fiel ao tema tratado.

___________________________________________________

3 Wassily Kandinsky, Concerning the Spiritual in Art (New York: Dover Publications. Inc., 1977), 27.4 Kerry Brougher and Jeremy Strick and Ari Wiseman and Judith Zilczer, Visual Music - Synaesthesia in Art and Music Since 1900 (Los Angeles: Thames & Hudson, 2005), 33

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Henrique Roscoe Correa Pinto

Figura 02 - HOL ao vivo no On_Off, Itaú Cultural. São Paulo, 2009. Foto Edouard Fraipont

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Levando o conceito de personalização a um nível mais alto, o projeto vai além, criando tam-

bém seus próprios instrumentos, alguns deles permitindo uma separação completa do computador

e possibilitando a execução de uma performance audiovisual ao vivo usando instrumentos autôno-

mos completamente criados e programados por mim.

O projeto já se apresentou ao vivo nos principais festivais da área no Brasil como Sónar, FILE,

Live Cinema, On_Off Itaú Cultural, Multiplicidade, FAD, além de alguns no exterior como WRO Media

Art Biennale (Polônia), NIME (Inglaterra), Rencontres Internationales (Alemanha), roBOt e LPM (Itália),

Athens Video Art (Grécia) e Festival de la Imagen (Colômbia). Com documentações das performances

na forma de vídeo participou de diversos festivais e exposições como Art Basel (Suíça), Magmart

(Itália), Kunstfilmtag (Alemanha), Generative Arts (Itália), Images Contre Nature (França), Espacio Enter

(Espanha), Computational Aesthetics (Canadá), Sismógrafo (BH, Brasil), Hacklab (Bahia, Brasil), entre

outros.

2. PONTO, um videogame sem vencedor2.1- Conceito e primeiras pesquisas

Trabalho com performances audiovisuais ao vivo desde 2004 e com criação de interfaces

personalizadas desde 2006, quando comecei a trabalhar com o microcontrolador Arduino5. Depois

de produzir algumas performances utilizando software e hardware convencionais, decidi começar a

construir minhas próprias interfaces e usar um software personalizado para alcançar resultados mais

criativos e originais e especialmente com o objetivo de que cada elemento tenha algo a dizer sobre o

tema que está sendo tratado.

Em 2008, criei um projeto audiovisual ao vivo nova chamada HOL que difere das minhas

performances de VJ, especialmente por causa da liberdade de construir um espetáculo que abrange

todo o processo, desde a definição do conceito e ferramentas, passando por construção de software,

programação de hardware, criação de todas as imagens e sons, até a apresentação final sob a forma

de uma performance audiovisual ao vivo.

A fim de alcançar essa liberdade para programar exatamente o que tinha em mente, co-

mecei a trabalhar com o software vvvv6. Diferentemente de outras aplicações de VJ que têm uma

interface padrão, vvvv (e outros softwares como Max / Msp7, Processing8, etc) tem inicialmente uma

página em branco e toda a programação tem que ser feita pelo artista, preenchendo exatamente

___________________________________________________

5 “Arduino”, 2011, http://www.arduino.cc6 “vvvv - a multipurpose toolkit”, 2011, http://www.vvvv.org7 “Cycling 74”, 2011, http://www.cycling74.com8 “Processing.org”, 2011, http://www.processing.org

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suas necessidades. Desta forma, ao invés de usar uma quantidade limitada de recursos dados pelo

software padrão de edição de imagens ao vivo como Resolume, Modul8, etc., o programador tem a

liberdade de construir sua própria lógica, funcionalidades e a própria interface. Em vvvv, você pode

gerar animações em tempo real e controlar cada parâmetro único ao vivo. O mesmo acontece no lado

de áudio com Max / MSP.

Todas as performances por HOL usam esse tipo de software e pensei em usar este método

também na parte de hardware. Então comecei a usar minha experiência recente com Arduino para

construir interfaces personalizadas que controlam partes da performance. A primeira interface foi

construída para a performance Aufhebung9, em 2009. Esta interface é composta por quatro cilindros,

cada um com um LED e um sensor de distância IR na sua parte inferior. Há uma tampa sobre a parte

superior de cada cilindro que, quando puxada para cima, muda parâmetros em áudio, imagens, ou

ambos, de acordo com a programação em vvvv.

Após algum tempo, decidi ir além do hardware padrão - um laptop e mouse - e comecei com

a ideia de construir o meu próprio hardware personalizado, que seria autônomo e não precisa de um

computador para tocar a performance. A primeira tentativa de construir um instrumento autônomo

audiovisual foi K-synth10(2011). Este pequeno instrumento audiovisual produz animações simples

___________________________________________________

9 “Aufhebung”, 2009, http://hol.1mpar.com/?page_id=87910 “k-synth”, 2011, http://1mpar.com/index1.php/portfolio/k-synth/

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Figura 03 - Interface construída para a performance “Aufhebung”. Belo Horizonte, 2009

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em preto e branco e frequências sonoras puras. Ele foi construído usando uma caixa de fita cassete

e tem duas saídas RCA, um para som e outra para imagens. A programação foi feita inteiramente no

software Arduino e, uma vez terminada a programação e feito o upload, o instrumento não necessita

de um computador para funcionar.

Em 2011, fui aprovado como residente no Marginalia + Lab para desenvolver uma pesquisa

sobre a construção de um sintetizador audiovisual utilizando a placa Arduino como base.

A ideia era que o instrumento seria independente e não precisaria de um computador para

funcionar.

Na residência, foi construído um protótipo onde as animações eram em preto e branco e

tinha sons simples, utilizando a técnica de Circuit Bending juntamente com a programação do Ardui-

no. Este instrumento foi chamado de Glitchy Square11.

A partir de um circuito básico usando Arduino, fiz alguns circuit bendings, acrescentei alguns

componentes e testei várias formas de conectá-los. O resultado foi um instrumento audiovisual onde

áudio e imagem se retroalimentam, gerando sons e animações inesperados. Quando o instrumento

está ligado a uma TV analógica, a saída de som gera os diferentes tipos de ruído de acordo com a

animação programada e com o tamanho das formas na tela. O som interfere na imagem à medida

que cada pulso de áudio também vai para a saída de vídeo, mudando o que é apresentado na tela.

O circuito foi inserido em uma caixa de madeira e nomeado Glitchy Square (2011) - uma ho-

menagem à famosa pintura Black Square12(1915), do pintor russo Malevich, que tentou alcançar os li-

___________________________________________________

11 “Glitchy Square”, 2011, http://hol.1mpar.com/?page_id=852 “Kazimir Malevich”, 2011, http://en.wikipedia.org/wiki/Kazimir_Malevich

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Figura 04 - K-synth - Instrumento audiovisual autônomo. Belo Horizonte, 2011

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mites do (não) representação e essa pintura seria, de acordo com ele, o máximo da não objetividade.

Este instrumento acrescenta movimento e som a essa ideia e busca as sensações da não

objetividade. Imagens recebem influência de sons e vice-versa, e os elementos fundamentais do

circuito (tensão, corrente, etc.) geram o conteúdo.

Para exibir o trabalho, o instrumento é colocado sobre uma mesa e um vídeo com a docu-

mentação e explicação sobre o seu funcionamento é exibido em uma projeção de vídeo. Neste vídeo,

apresento também uma composição audiovisual criada usando exclusivamente sons e imagens ge-

radas pelo instrumento13.

Mais tarde, em 2011, usando o Arduino e um shield chamado Gameduino, um novo instru-

mento foi construído. O circuito foi inserido em um console independente e programado para ter 5

animações diferentes, cada uma remetendo a um nível de um jogo. As imagens geradas seguem a

estética dos primeiros videogames, em função de algumas limitações de processamento da placa, li-

mitações estas que mais tarde se tornaram parte fundamental do conceito da performance “PONTO,

um videogame sem vencedor”.

2.2 O Instrumento

O instrumento é composto por uma placa Arduino, um shield Gameduino e dois controlado-___________________________________________________

13 “Glitchy Square”, 2011, http://vimeo.com/28944983

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Figura 05 - Glitchy Square - Instrumento audiovisual autônomo. Belo Horizonte, 2011

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res de SNES, inseridos em uma caixa de plástico. O Arduino recebe as informações dos dois joyticks e

cada botão é atribuído a uma variável. A programação foi feita dentro do ambiente Arduino, usando a

biblioteca Gameduino. Gameduino é um shield que pode ser ligado ao Arduino e tem saída de vídeo

VGA e áudio estéreo P2.

Gameduinoi é o núcleo do circuito. Ele pode gerar imagens a cores e 64 vozes independentes

de áudio sintetizadas. Mas esse shield tem muitas limitações. Ele pode lidar com um número máxi-

mo de 256 sprites na tela, ao mesmo tempo, cada um com 16x16 pixels. Ele pode exibir um pequeno

número de cores ao mesmo tempo, e tem também uma quantidade limitada de processamento. A

saída de vídeo tem 400x300 pixels e apenas 512 cores.

Uma biblioteca14 foi utilizada para obter as informações dos controladores de SNES e con-

vertê-los em variáveis que o Arduino consegue entender. Os joysticks controlam todas as funções

em tempo real durante a execução e cada “player” controla diferentes parâmetros de acordo com o

“nível” que está sendo jogado.

Depois de construído o circuito, todos os componentes foram colocados em uma caixa de

plástico com adesivo remetendo à estética retrô por cima. Uma fonte de alimentação de 12V é usada

para que ele funcione de forma independente. Para a performance ao vivo, a saída VGA deve ser co-

nectada diretamente ao projetor e a P2 a um sistema de som estéreo.

___________________________________________________

14 “Gameduino - a game adapter for microcontrollers”, 2011, http://excamera.com/sphinx/gameduino/

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Figura 06 - Instrumento construído para a performance “PONTO, um videogame sem vence-dor”. Belo Horizonte, 2011

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2.3 Conceito

Depois que o instrumento foi construído, a performance “PONTO, um videogame sem ven-

cedor” foi criada com a ideia de criticar alguns aspectos da lógica do jogo, mas usando sua estética,

sons e elementos gráficos característicos. A obra critica, através de imagens abstratas, temas ligados

a videogames e a vida cotidiana das pessoas. Todas as imagens e sons foram criados e programados

por mim e eles são gerados em tempo real, em uma performance de 30 minutos. Para a apresentação

ao vivo, o público é convidado a tocar comigo, e juntos produzimos a trilha sonora e os visuais.

A performance tem 5 partes, tal como os níveis de um jogo. Pessoas convidadas da plateia

ficam sentadas em almofadas, no palco, viradas para a tela, controlando todos os elementos da per-

formance usando dois joysticks da Nintendo - como se estivessem jogando um videogame em casa.

O título “PONTO, um videogame sem vencedor” é também uma crítica ao fato de que ape-

nas o fato de ganhar o jogo é valorizada, enquanto ao processo é dada baixa prioridade. O objetivo

deste “jogo” não é vencer, mas participar do processo de criação de um espetáculo audiovisual.

A performance funciona em níveis, como um jogo, e cada parte trata de um tema específico:

- Nível 1 - Estilhaço

Violência: crítica ao estímulo de violência nos jogos. Em um buraco que se abriu sobre um

fundo vermelho, os movimentos dos jogadores desenham veias que deixam rastros de sangue na tela.

- Nível 2 - Abaixo Você

O valor de cada um é medido pela diminuição do outro. Dois elementos em forma de parafu-

sos estão presos no chão. A única ação possível é a de bater no “adversário”, afundando-o mais e mais.

- Nível 3 - Capital

Excesso: cada jogador controla a posição e velocidade da queda de objetos na tela. Esses

objetos preenchem toda a tela, até que não há mais espaço para o jogador. Este nível trata de temas

como o consumismo e a necessidade de preencher todos os mínimos espaços vazios na vida das

pessoas. Quando este limite é alcançado, o sistema perde o controle e passa a exibir imagens desco-

nexas na tela e emitir ruídos incontroláveis.

- Nível 4 - Mimetismo

Massificação: crítica à moda e ao comportamento de imitação. Formas abstratas passam

pela tela e o jogador deve mudar a sua própria forma para ficar igual ou diferente dos outros.

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Henrique Roscoe Correa Pinto

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- Nível 5 - Para o Futuro

Sentido: para baixo. Final melancólico onde ambos os jogadores vão descendo uma rampa

de 45 graus. O único movimento possível é o adiamento da chegada ao fundo.

2.4 Aspectos da performance ao vivo

Cada parte da performance tem a sua própria programação, em que os aspectos conceituais

pode ser vistos em cada elemento. O instrumento não tem sons ou imagens pré-gravados e tudo é

criado em tempo real, em uma parceria entre mim e cinco jogadores convidados. Não há uma pon-

tuação a ser almejada, apenas as instruções para os jogadores sobre o tema relativo a cada parte e

qual a função de cada botão.

Outro conceito importante é a aleatoriedade. Esta característica aparece na composi-

ção na forma de parâmetros randômicos gerados pelo sistema e ainda pela própria participação do

público. Cada convidado pode interferir de maneira completamente imprevisível na performance ao

pressionar cada botão no joystick. Como vários parâmetros em som e imagem são controlados pelos

convidados, não tenho o controle completo sobre o que está acontecendo, embora existam algumas

limitações que coloquem esta aleatoriedade em uma faixa aceitável. De qualquer forma, o papel dos

participantes é fundamental para o sucesso da apresentação, e eu fico em parte dependente da sen-

sibilidade e sentimento musical dos convidados, a fim de construir uma trilha sonora interessante.

DoSSiêPONTO, um videogame sem vencedor

Henrique Roscoe Correa Pinto

Figura 07 - Partitura dada aos participantes para o Nível 3. Belo Horizonte, 2011

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No primeiro nível - uma crítica ao alto nível de violência nos jogos de hoje em dia - um fundo

vermelho é o cenário para as ações dos jogadores, que consistem em desenhar linhas vermelhas den-

tro de um quadrado de cor similar. Este quadrado é uma forma abstrata que simboliza um buraco de

bala, enquanto as linhas escorrendo lembram o sangue proveniente do ferimento. Apesar de o ponto

onde o desenho começa ser definido pelos jogadores, animações generativas também fazem parte

da cena, sob a forma de ramos que saem aleatoriamente da linha principal. Desta forma, apenas

uma parte da imagem é gerada pelos “jogadores”, enquanto que outras linhas randômicas têm seus

próprios comportamentos específicos. Cada som é composto por uma única frequência que segue

a posição atual X e Y do fim de cada linha. Outros sons completam esta composição: um padrão

contínuo semelhante a uma batida de coração, e alguns sons ruidosos acionados cada vez que um

jogador pressiona um botão - simbolizando um corte doloroso na carne.

Nível 2 é uma metáfora de um comportamento humano que utiliza a degradação do outro

como forma de auto-promoção. Cada jogador controla uma forma abstrata simbolizando um marte-

lo que, uma vez pressionado, cai sobre o avatar do outro participante, afundando-o no chão. O con-

vidado é capaz de fazer melodias pressionando os botões de seu joystick. Cada botão gera um som

sintetizado. Eu também posso tocar essas melodias, e meu joystick tem funções extras usadas para

adicionar alguns padrões para a trilha sonora e também alterar elementos visuais. As cores preto e

branco foram escolhidas para tornar mais explícito o contraste entre os jogadores.

DoSSiêPONTO, um videogame sem vencedor

Henrique Roscoe Correa Pinto

Figura 08 - Nível 1 - Estilhaço. Bologna, 2011. Foto Bruna Finelli

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Na terceira parte, intitulada “Capital”, cada jogador controla a posição vertical e horizontal

de elementos gráficos em queda. A posição em que cada novo elemento aparece é uma variável

aleatória, e os jogadores não sabem onde a próxima será exibida. O som é composto por alguns ele-

mentos generativos e a posição horizontal de cada forma muda o pitch das duas vozes principais. O

fim desta peça é controlada pelo jogador convidado, quando, uma vez preenchidos todos os espaços

disponíveis, a parte visual começa a ruir, mostrando imagens e sons ruidosos. Quando toda a tela é

preenchida com as formas antes controladas pelos “jogadores”, o instrumento entra em um modo

glitch onde imagens não programadas aparecem aleatoriamente na tela. Agora, os jogadores não têm

mais controle sobre suas ações. Esta parte é uma metáfora para o caos criado pelo nível máximo do

capitalismo. O som fica confuso e tudo fica deteriorado até que o cenário inicial não é mais reconhe-

cível. Isso acontece porque as variáveis de contagem entram em overflow, resultando em resultados

completamente inesperados em som e imagem.

O próximo nível - Mimetismo - é composto de um fundo gráfico preto e branco que muda

cada vez que pressiono um botão específico em seu joystick, e dois sprites verdes que representam

cada jogador. Os jogadores podem escolher entre diferentes formas, a fim de parecerem iguais (ou

não) em relação ao fundo. Se o jogador escolhe uma forma semelhante à do fundo ele irá quase de-

saparecer, ao passo que uma forma diferente vai distingui-lo da imagem de fundo. Esta programação

critica o comportamento de massa de pessoas que preferem se perder no meio da multidão, em

DoSSiêPONTO, um videogame sem vencedor

Henrique Roscoe Correa Pinto

Figura 09 - Nível 3 - Capital. Bologna, 2011. Foto Bruna Finelli

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vez de assumir suas particularidades. Este nível tem uma abordagem muito rítmica e eu controlo

padrões de áudio com elementos aleatórios em suas melodias.

O último nível é chamado de ‘Para o Futuro “, como uma metáfora para a decadência da

cultura no mundo de hoje. Assemelha-se a um movimento de retrocesso contínuo na evolução do

mundo. Tudo o que os jogadores podem fazer é adiar a sua queda, até finalmente desaparecerem

por completo na parte inferior da tela. As imagens referem-se à ideia de um mergulho de esqui mon-

tanha abaixo, com árvores passando rapidamente. Aqui, é a posição de cada jogador que constrói a

melodia principal da trilha sonora, à qual é adicionado uma sonoplastia remetendo aos elementos

que passam pela tela. Outros padrões são ligados e desligados por mim a fim de criar uma trilha so-

nora dinâmica. O ritmo é composto por elementos generativos, com notas aleatórias que compõem

sua melodia e ritmo.

3. Conclusão

A performance “PONTO, um videogame sem vencedor” é mais um passo na criação de

performances ao vivo audiovisuais, onde todos os elementos em software e hardware foram criados

especificamente para o tema que está sendo tratado. Um instrumento personalizado foi construído

a partir do zero e todos os sons e imagens programados para que possam ser gerados ao vivo por

mim e pelos participantes convidados. O comportamento generativo de todo o processo torna cada

apresentação única e o papel de cada convidado fundamental para a apresentação.

Muitas variáveis aleatórias contribuem para isso, tirando do compositor o controle completo

da performance. Aqui, a participação do público realmente interfere de forma contundente no resul-

DoSSiêPONTO, um videogame sem vencedor

Henrique Roscoe Correa Pinto

Figura 10 - Ao vivo no roBOt Festival. Bologna, 2011. Foto Bruna Finelli

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tado final. E, apesar de todo o esforço tecnológico colocado na construção do trabalho, o que real-

mente importa é transmitir o conceito, expondo o ponto de vista do artista sobre o tema e buscando

sensibilizar o público acerca dos temas tratados na obra.

Para mais informações, vídeo e fotos: http://hol.1mpar.com/?page_id=811

Outras composições do HOL: http://hol.1mpar.com/

Criação de instrumentos e interfaces: http://1mpar.com/index1.php/

REFERêNCIAS bIbLIOGRáFICAS

MALEVICH, Kasimir. The Non-Objective World - The Manifesto of Suprematism. New York: Dover Publi-cations. Inc., 2003.

KANDINSKY, Wassily. Concerning the Spiritual in Art. New York: Dover Publications. Inc., 1977

BROUGHER, Kerry and STRICK, Jeremy and WISEMAN, Ari and ZILCZER, Judith. Visual Music - Sy-naesthesia in Art and Music Since 1900. Los Angeles: Thames & Hudson, 2005.

“Arduino”, 2011. http://www.arduino.cc

“vvvv - a multipurpose toolkit”, 2011. http://www.vvvv.org

“Cycling 74”, 2011. http://www.cycling74.com

“Processing.org”, 2011. http://www.processing.org

“Aufhebung”, 2009. http://hol.1mpar.com/?page_id=879

“k-synth”, 2011. http://1mpar.com/index1.php/portfolio/k-synth/

“Glitchy Square”, 2011. http://hol.1mpar.com/?page_id=852

“Kazimir Malevich”, 2011. http://en.wikipedia.org/wiki/Kazimir_Malevich

“Glitchy Square”, 2011. http://vimeo.com/28944983

“Gameduino - a game adapter for microcontrollers”, 2011. http://excamera.com/sphinx/gameduino/

“nespad - NESpad Nintendo game pad library for Arduino”, 2011. http://code.google.com/p/nespad/

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DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

móleculas de contaminação afetiva em “moonovosol”

Roderick Peter Steel1

Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)

Resumo: Este trabalho relata o processo de criação do vídeo-tríptico MOONOVOSOL durante uma vídeo-residência de duas semanas na cida-de de Porto Alegre. Busca examinar estratégias para a captação, transfor-mação e propagação de energias dentro de um ciclo de experimentação entre uma série de 6 performances-rito e um corpo-vídeo em 3 telas.Palavras-chave: Vídeo-performance; Espelho; Movimento; Cinema; Resi-dência artística.

Abstract: This article dicusses the creation process of the video-triptych MOONEGGSUN du-ring a two week video-residency in the city of Porto Alegre, Brazil. It seeks to exami-ne artistic strategies for the capture, trans-formation and propagation of energies within a cycle of experimentation between a series of 6 performance-rites and a 3-screen vi-deo-body. Key words: Video performance; Mirror; Movement; Cinema; Artist’s res-idency.

___________________________________________________

1 Artista Visual, fotógrafo, cineasta e performer. Mestrando em Meios e Processos Audiovisuais na linha de Poéticas e Técnicas pela Escola de Comunicação e Artes (USP), sob a orientação do Prof. Dr. Atílio José Avancini.

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O projeto MOONOVOSOL (ou MOONEGGSUN em inglês) foi produzido durante uma vídeo

-residência de duas semanas na Galeria Mamute2, em Porto Alegre.

O processo, desenvolvido por Adriana Tabalipa, Andreia Vigo, o artista sono-ro Giancarlo

Lorenci e Roderick Steel, articulou um desejo antigo de juntar cineastas e performers para produzir

um trabalho colaborativo3. Este artigo, escrito impulsivamente alguns meses depois da residência,

tenta processar MOONOVOSOL4 enquanto vídeo-performance5, pelo viés da contaminação afetiva

de Deleuze. Ao colocar agen-das individuais de lado e direcionar energias colaborativas aos ma-

teriais em mãos, este coletivo temporário de artistas, reunidos durante a residência, procurava se

tornar “molécula, a ponto de se tornar imperceptível” (DELEUZE, 1997, p. 225)6.

Vestes moleculares

Através da introdução arbitrária de dezenas de espelhos, os corpos dos performers são sub-

metidos a uma possessão autopoiética: a uma imanência receptiva e transmissiva. Juntos se tornam

entidades liminares perfuradas por perspectivas e focos variáveis do mundo: refletindo e absorvendo

zonas experienciais livres dentro de lentes dispostas em série. Essas multidões de ovos moleculares

“definidas por eixos e vetores, gradientes e limiares, (...) pela trans-formação de energia e movimen-

___________________________________________________

2 Contemplado no Programa Rede Nacional Funarte Artes Visuais 10ª Edição, a Videoresidencia Território Expandido pro-pôs um espaço de inter-relações entre artistas e regiões do Brasil, no intuito de estimular a troca de conhecimento entre as diferentes produções e favorecer processos de Coletivos de videoarte. As produções artísticas oriundas da residencia foram expostas na mostra Paisagens Inven-tadas, com curadoria de Niura Borges, na Galeria Mamute.3 Agradecemos também ao artista Alexandre Antunes, cujo apoio durante o processo foi imprescin-dível. Culminou na filmagem do quinto capítulo de MOONOVOSOL em seu jardim-studio.4 Para ver MOONOVOSOL clique nos seguintes links: 1. vimeo.com/91799774 Parte 2: vimeo.com/91551839. Parte 3: vimeo.com/91794131, Parte 4: vimeo.com/91603096. Parte 5: vimeo.com/90971484. Parte 6: vimeo.com/90339559. A senha para todos os videos é abre.5 Sua transdução para outro video-corpo. Neste caso, para um corpo com 3 telas, ou “video-triptico”.O termo vídeo-performance é geralmente usado para descrever a exploração da relação entre obras de arte processuais e presenciais que foram concebidas para vídeo. Vídeo e performance surgiram juntos e influenciam-se mutuamente a partir do final dos anos 1960. Cinco das seis performances de MOONEGGSUN foram em locais remotos e inacessíveis. Em muito do nosso trabalho estamos interessados tanto nas qualidades efêmeras de uma performance ao vivo como em sua remediação. Ou seja, em sua transdução para um corpo de vídeo. Neste caso, para um corpo ampliado de 3-telas, ou “vídeo-tríptico”.6 Adriana Tabalipa e Roderick Steel desenvolvem performances em conjunto desde 2013 dentro do “coletivo S.T.A.R.” . Buscam, através de seus trabalhos, colaborar com outros artistas em vários estados brasileiros.

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

Fig. 1 – Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL IV: Oo0ø•º•∞ =<

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tos cinemáticos que propiciam o deslocamento do grupo”, devolvem estes corpos a um estado de

criação “antes da formação dos estratos.”7

Deleuze nos lembra que na imagem-tempo o corpo fica mais lento e, “se torna o revelador

[révélateur] do tempo, para mostrar o tempo por meio de seu cansaço e suas esperas” (DELEUZE,

1989, p.XI). Como tal, os artistas es-tampados por células se tornam modelos para todos os devires,

ao transformar os locais que encontram em zonas experimentais. Suas deliberações lentamente des-

vendam ritos potencialmente transformadores, ‘encarnados, promulgados, espacialmente e tempo-

ralmente enraizados’ a faculdades sensoriais agudas.

Anti-espelhos

No lugar da transcendência reflexiva do espelho e da cena, há uma su-perfície anti-reflexiva, uma superfície imanente onde as operações se desenrolam - a superfície lisa e operacional da comunicação (BAUDRIL-LARD, 1983, p.126).

Brian Massumi nos assegura que espelho-visão pertence a uma determinação recíproca en-

tre I-me / I-you, mas no mesmo fôlego introduz movimento na equação, como uma espécie de antôni-

mo do espelho. Que torna o movimento-visão absoluto e auto-distanciador: “Movimento-visão não

é apenas descontínuo com espelho-visão. É discontínuo com ele mesmo. Para se ver de pé como os

outros o veem não é o mesmo que se ver andando como os outros o veem”( MASSUMI, 2002, p.50).

O que fazer, então, de espelho / movimento-visão? Será que a fusão do espelho de Lacan com a velo-

cidade amplifica essa distância metafísica, ou cria um evento expressivo com a sua própria “taxa de

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

Fig. 2 – Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL III: —°‰—

Fig. 3 – Strata preênsil. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL V: •Ó···<=Ø=<···Ô•

___________________________________________________

7 DELEUZE, 1988, A Thousand Plateaus, p. 153.

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abstração vivenciada” capaz de criar uma contaminação afetiva? (MASSUMI, 2011, p.155).

Em “Crystals of time” Deleuze reconhece o processo pelo qual imagens espelhadas disputam

por supremacia virtual e real, um vencendo sobre a outra baseado na primazia de um determinado

campo de visão. Se a imagem-tempo de Deleuze se move na vertical e a imagem-movimento na

horizontal, o espelho convexo passa por uma combinação infinita de planos horizontais e verticais.

Como imagem-objeto móvel.

A superfície convexa do espelho reflete o mundo real como um Outro aparentemente dis-

torcido, proporcionando vistas de um universo policêntrico, desprovido de um ponto de fuga. Este

efeito dismórfico registra o objeto real não como Outro transcendental, nem como um duplo deslo-

cado: não há coalescência entre os dois, mas sim uma metamorfose dinâmica entre o objeto real de

um estado real e a trajetória física da sua reflexão para outro estado temporal.

No seu movimento duplo de revelação e rasura, estes planos sucessivos e circuitos inde-

pendentes esticam e encolhem a configuração espacial quantitativa ao redor do espelho. Como tal,

torna-se uma seleção móvel de tempo, um molde temporal or-gânico em fluxo perpétuo entre telas

interiores e exteriores.

O movimento/espelho-visão põe em movimento a união de intensidades de experiência,

enquanto inibe conexões entre eles. Os que manejam o espelho logo percebem sua evasão de uma

expressão pura. Sua superfície líquida acolhe forças imanentes que se aglomeram em forma de es-

piral para dentro de um centro de dispersões centrí-fugas e um campo relacional que rechaça a con-

tenção (MASSUMI, 2002, p.155). As vezes age como um cérebro, reduzindo o mundo a uma série de

imagens-pensamentos, ora age como um grão, germinando imagens-sementes.

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

Fig. 4 – Meditação convexa. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL II: Ø0º>=<0غ

Fig. 5 – Ad infinitum. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL II: Ø0º>=<0غ

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Em alguns aspectos, o espelho pertence ao paradoxo dos objetos absurdos, inimagináveis.

Incluído na definição do objeto impossível de Deleuze estão círculos e o chamado perpetuum mobile

(seus itálicos), que ele descreve como “objetos sem uma casa” e sem um devir que têm, no entanto,

“uma posição precisa e distinta dentro des-te fora: eles estão “além de ser” (DELEUZE, 1990, p.35).

Talvez o domínio do espelho sobre nós vem dessa afinidade especial com o objeto impossível em

movimento perpétuo. Ao mesmo tempo, quando empunhado, o espelho convexo nos arrelia com

uma metáfora potencial da própria arte quando nos apresenta com uma estética da “contra-realiza-

ção” do mundo por meio de sua interpolação de uma interpretação do que pode ser efetivamente

visto ocorrendo.

buscando situações

O ímpeto de desenvolver performances para vídeo em locais movimentados se desenvolveu

numa breve busca por locações8. Ficou claro que o funcionamento interno de cada locação teria que

ser revelado, até provocado a existir pelo viés dos materiais como o espelho investigativo, a lanterna

de sondagem e as vestes exploratórias. Em frente da câmera, em tempo real, e durante as performan-

ces, fomos restringidos a um paradoxo: por quanto tempo poderia o processo de descoberta e uso

criativo dos materiais – da mediação entre eles e o mundo e nós mesmos – permanecer emergente?

As duas últimas performances proporcionam uma relaxação dessas limitações, ao juntar todos os

materiais em uma onda de atividade entre os circuitos.

Uma das questões principais da proposta do coletivo (...qual o papel da vídeo-performance

dentro da própria performance?) se fez presente no reflexo ominoso da cinegrafista no espelho con-

vexo9. Uma capa metálica, coberta de pe-quenos espelhos ovais, foi usado por Andreia – cinegrafista

oficial do projeto – para ‘ativar’ seu próprio olhar performativo e autónomo10. Ela usou sua capa du-

rante as seis performances e foi capturada ‘registrando-performando” nas últimas três performan-

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

Fig. 6 – Objeto Impossível. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL VI: °·O0·—Ø—·0O·°

___________________________________________________

8 A progressão cinematica (o mais próximo que a série chega a uma narrativa) seguiu o conceito que um único conjunto de materiais seria utilizado em cada uma das quatro primeiras performances. E em seguida, nas últimas, seriam usados em conjunto. Isso reduziria cada performance a um circuito compacto de possibilidades. Restrição e limitaçao são vitais para a criação de um campo de atuação.9 The performances followed a production method not unlike that of observational documentary filmmaking.

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ces quando uma segunda câmera imóvel foi posicionada de fora para dentro.

A sessão do Jardim botânico

Quando vestidas, as vestes transformaram os performers em seres sensíveis, cientes da de-

sestabilização do processo de organização, identificação e interpretação sensorial do sistema nervo-

so da natureza.

No capítulo do livro Machinic orality and virtual ecology, Félix Guattari celebra as virtudes

de um descentramento estético dos pontos de vista, para enunciar “novas rachaduras entre outros

dentros e foras”. Enquanto os seres performativos de preto e branco exploraram as trilhas do Jardim

Botânico de Porto Alegre, refracionando e absorvendo imagens, eles se tornam a personificação da

sensação ótica pura. Deleuze criou a noção de tactisigns, ligados ao toque do olhar. (DELEUZE, 1989,

p.13) A fusão de espelho e corpo – já incorporada no DNA das vestes – incita tactisigns a se misturar

com chronosigns (imagens-tempo), noosigns (imagens-pensamento) e lectosigns (imagens-legíveis),

dentro de um estado de integração imanente. Além disso, este devir se dá através da co-presença

corporal dos artistas que se descobrem em relação com o mundo ao seu redor.

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

Fig. 7-9 – Ecologias virtuais. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL IV: Oo0ø•º•∞ =<

Fig.10 – Diferença e repetição. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL IV: Oo0ø•º•∞ =<

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Como mencionado, essas camadas de interações são testemunhados por uma ou duas câ-

meras de vídeo. Enquanto um destas registra a mise-en-scène de um ponto fixo, a outra câmara é coa-

gida para dentro de um movimento de “especialização”, pelas lentes de Andreia Vigo, que exercita

um elevado grau de contingência enquanto oscila entre o ato de registrar e de inscrever novos senti-

dos . Guattari nos assegura que a Performance “encaminha o instante para a vertigem do surgimento

de Universos que são simultaneamente estranhos e famili-ares.” (página 90). Guattari, novamente:

Engenhocas estranhas, você vai me dizer, essas máquinas de virtualida-de, estes blocos de percepções e afetos mutantes, meio-objeto, meio-su-jeito, presentes em sensação e fora de si nos campos do possível (GUAT-TARI, 1995, p.92)

Mas o que exatamente são estes afetos? Para Deleuze, eles ocorrem em uma lacuna entre a

imagem-percepção e a imagem-ação; para Massumi, na lacuna entre o conteúdo e seu efeito (2002,

p.24). Eles ocorrem no espaço entre a percepção do Jardim Botânico e do ato performativo de sentir

o seu campo de percepção, e fazer isso sem preencher este espaço. O espelho e a lanterna iluminam

fluxos de imagens-objetos que se apresentam aos raios refletidos do sol. Como um olho-espelho,

eles operam em planos múltiplos simultaneamente, descrevendo, alterando, iluminando, distorcen-

do: “Surgem no centro de inde-terminação... entre uma percepção que incomoda... e uma ação hesi-

tante.” (DELEUZE, 1986, p. 65).

A sessão do Viaduto

Dentro dessa nova configuração, o espelho móvel performativo empurra os principais tipos

de imagens-cinema de Deleuze (imagem-movimento e ima-gem-tempo) para dentro de um holofote

estróbico. A luz da lanterna segue a lente da câmera através do espelho, procurando encontrar seu

ponto de indiscernibilidade, iluminando o circuito interno de seu mecanismo fotográfico. O dispo-

sitivo dança entre os arcos do Otávio Rocha e o Passeio das Quatro Estações, registrando a ação da

lanterna que provoca o confronto óptico entre a superfície convexa do espelho e a própria superfície

lenticular da câmera, para alvejar o momento em que o espelho posicionado entre o obturador e a

lente pestaneja, fixando a imagem em movimento em um frame de vídeo. Embora tenhamos nos

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

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Fig.10 – Diferença e repetição. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL IV: Oo0ø•º•∞ =<

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acostumado com as vicissitudes do objeto-espelho, ele nos cativa novamente, enquanto brilha es-

plendorosamente gerando um efeito hipnótico.

Este curto-circuito do mecanismo da câmera cria falhas que abrem outro circuito ainda mais

profundo dentro das forças cristalinas já ativas. A luminosidade excessiva da lanterna parece repartir

o tempo ao estratificar a imagem en-tre espaços-tempos variáveis dentro de cada frame, empurran-

do o cristal ao “limite entre o passado imediato que já não é mais, e o futuro imediato que ainda não

é...” (DELEUZE, 1989, p.79).

A sessão do jardim molecular

Nesta ocasião, os performers se encontram dentro de um ambiente ótico projetado para

estender seus corpos para dentro do “movimento do mundo”, onde permaneceram “imóveis num

ritmo muito intenso” (DELEUZE, 1989, p. 59). Este movimento do mundo se verticaliza através da

expansão da totalidade do espaço e o alongamento do tempo através das múltiplas refrações entre

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

Fig.12 – Frame do plano-sequência de MOONOVOSOL II : Ø0º>=<0غ

Fig.12-13 – Falhas entre luzes e cristais. Frame do plano-sequência de MOONOVOSOL II : Ø0º>=<0غ

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luz e sombras, entre treliças e caleidoscópios. Esta situação é novamente agravada pelo fluxo entre

os estados ópticos e espectrais da própria lente da câmera (sua distância focal e abertura) e sua

distância dos espelhos-lentes.

Espectros, refrações e deformações proliferam a partir de uma multiplicidade de espelhos-

moléculas que absorvem a totalidade dos performers, os devolvendo às suas partes atômicas incons-

cientes e abrindo novos limites de alteridade. Como defendido por Deleuze e Guattari:

(...) em condições tais que o corpo sem órgãos substitui o organismo, a experimentação substitui toda interpretação da qual ela não tem mais necessidade. Os fluxos de intensidades, seus fluidos, suas fibras, seus contínuos e suas conjunções de afec-tos, o vento, uma segmentação fina, as micro-percepções substituíram o mundo do sujeito. Os devires, devi-resanimal, devires-moleculares, substituem a história individual ou geral (DE-LEUZE & GUATTARI, 1988, p. 162).

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

Fig.14-16 – Zonas espectrais. Frames do vídeo-tríptico MOONEGGSUN V: •Ó···<=Ø=<···Ô•

Fig.17 – Vórtice digital. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL V: •Ó···<=Ø=<···Ô•

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Enquanto isso, os espelhos de uma vestimenta refletem o outro, que reflete de volta o re-

flexo do outro, e assim por diante. A lanterna estróbica coloca a relação entre os performers preto

e branco em suspensão: o piscar hipnótico injeta luz para dentro do cérebro, comprometendo a ca-

pacidade já limitada da retina modificar a percepção e acompanhar as repentinas mutações de ima-

gens entrópicas. Outro vórtice, ou buraco negro, é formado quando o circuito eletrônico da câmera

gera um mancha preta, em forma de pixels, no momento que este aparato capta o momento exato

em que a luz direta da lanterna e seu reflexo no espelho convexo se encontram.

Essa esfera negra cria um feedback entre circuitos externos e internos, gerando um olho

eletrônico ondulante. Esta expansão e dilatação entre um ponto e um óvulo nos lembra o momento

anterior, quando os raios do sol se refracionaram na lente da câmera. Como dentro uma zona abis-

sal, essa mutação numérica abre um buraco através da fusão do branco sobre branco, para gerar um

estado digital alterado. É como se a própria luz se libertou do aparato sensorial cinematográfico para

explorar e expandir os horizontes de sua própria imagem-tempo.

Uma performance em três telas e três tempos

A fim de preservar a abordagem experimental de todas as seis performances-ritos para ví-

deo, optou-se por usar na integra todo o material filmado. Pois da mesma forma que os performers

tiveram liberdade para experimentar e descobrir as possibilidades performativas dos seu materiais

em suas ações, houve um desejo de preservar o processo de descoberta e reveleção do registro des-

sas ações pelo olhar do cinegrafista-performer e seu dispositivo.

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

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Fig.18-19 – Zona abissal. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL: •Ó···<=Ø=<···Ô•

Fig.20 – Zona abissal. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL VI: °·O0·—Ø—·0O·°

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A implantação do dispositivo de três telas gerou relações e junções imprevistas entre as

imagens. Em momentos o efeito se assemelhou ao exercício surrealista de montar imagens aleato-

riamente (cadaver exquis) para criar uma nova forma viva. O movimento entre as telas foge de qual-

quer tentativa de medição ou controle, e desencadeia um fluxo de montagens-tempo. Além disso,

momentos distintos são dispostos lado a lado e percebidos simultaneamente.

Uma das características mais surpreendentes do vídeo-tríptico é sua desconstrução diegé-

tica de qualquer ação linear. Isso se fez evidente na ação com tules de 50 metros na Ponte de Pedra

no Largo dos Açorianos (MOONOVOSOL III), em que as bolas de tecido transparente foram desem-

brulhadas, esticadas, e reembrulhadas. A unidade de tempo e espaço dessa ação e da própria ponte

é subdividida em três unidades-telas que se enfrentam num ciclo interminável de fluxos que inibem

perspectivas lineares. Desta forma o objeto (o tule) e o ato (manusear o tule) se emaranham no tem-

po e espaço do dispositivo tríptico.

O ato contínuo é seccionada em potencialidades do passado, presente e futuro, enquanto

um se enrola no outro. O ato e a percepção do ato são subdivididos em três outros intervalos tempo-

rais e afetivos. Enquanto uma tela contém as bolas de tecido, outra mostra a bola sendo desenrolada

e, em seguida, reenrolada, “como uma faixa de memória se desenrolando sob as imagens do próprio

filme,” para formar a camada inferior de um ciclo implícito. (MAYA DE-REN, 1960, p. 154-5.)

Estados atuais e anteriores se tornam gradativamente indistinguíveis um do outro, como

uma ‘espiral aberta em ambas as extremidades “(DELEUZE, 1986, p.32) A “cosmologia plural” da

“repetição-variação” da cena liberta o tempo, “invertendo sua subordinação ao movimento” (DE-

LEUZE, 1989, p.102).

DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

Roderick Peter Steel

Fig.21 – Subdivisões do espaço-tempo. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL III: —°‰—

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 30 31

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DoSSiêMóleculas de contaminação afetiva em “Moonovosol”

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Fig.22-24 – Espirais abertas. Frames do vídeo-tríptico MOONOVOSOL: —°‰—

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DoSSiêO dispositivo audiovisual contemporâneo

Julieth Galvis Guzmán

o dispositivo audiovisual contemporâneo

Julieth Galvis Guzmán1

proposta para uma nova montagem audiovisual

Universidade de São Paulo

Resumo: Tradicional e cinematograficamente, a montagem define o tra-balho de seleção e organização de imagens em fragmentos narrativos rít-micos e contínuos que obedecem coerentemente ao roteiro e às inten-ções do diretor. No entanto, se ampliarmos o conceito de montagem às práticas audiovisuais que não são propriamente cinematográficas, desco-brimo-nos cercados por conceitos e dogmas que dificilmente definem a sua semântica ou estruturam uma teoria para seu analise. É necessária a formulação de uma nova montagem, ampla, inclusiva, fundamentada na interdisciplinaridade e nas relações poéticas e funcionais das diversas práticas artísticas contemporâneas.Palavras-chave: Práticas audiovisuais; montagem audiovisual; criação in-terdisciplinar; práticas artísticas contemporâneas.

Abstract: Traditional and cinematographically, the montage (decoup-age) is defined as the task of selecting and organizing images into rhyth-mic-continuous-narrative fragments that coherently obey the film script and the director's intentions. But if we extend the concept of montage to audiovisual practices that are not exactly cinematographic, we find our-selves surrounded by dogmas that hardly define its semantics or that are able to structure a theory for its analysis. Arises a need for a new mon-tage, a contemporary one, broad, inclusive, founded on interdisciplinarity, which relates poetics and functional components in all artistic contempo-rary practices.Key words: Audiovisual practices; montage; decoupage; interdisciplinary creation; artistic contemporary practices.

___________________________________________________

1 Julieth Galvis Guzmán é formada em Artes Plásticas pela Universidade Nacional da Colômbia (2010); atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, na linha de pesquisa poéticas e técnicas, onde desenvolve o projeto de pesquisa intitulado Ki-netoscopes, aparelhos e imagens audiovisuais, sob a orientação do Prof. Dr. Almir Antonio Rosa e com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de São Paulo – FAPESP. O presente artigo é resultado da sua pesquisa de mestrado e do projeto de investigação/criação L´appareil sensible, desenvolvido na Universidade Paris VIII (2014-2015) com o apoio da FAPESP. E-mail: [email protected].

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O cinema (e o que não é cinema mas é audiovisual), é uma arte de caráter mecânico que para

ser efetivo na sua execução precisa de objetos, de aparelhos e dispositivos em toda sua plenitude

estrutural e funcional. Durante muito tempo a potência estética e poética da prática cinematográfica

ficou contida na técnica, no uso do dispositivo, na imaginação e na capacidade experimental do cria-

dor (limitado sempre pelas possibilidades2 do aparelho). Depois, já dentro da construção do cinema

clássico, foram valorizados o conteúdo, a narrativa, o tempo, a imagem fotográfica, o som e, mais im-

portante ainda, as relações entre todos os elementos que conformam as práticas audiovisuais. Com

o tempo as teorias da montagem cinematográfica nasceram, desenvolveram-se, foram discutidas e,

finalmente, desconstruídas para derivar em novas estéticas que a sua vez são repensadas e inter-re-

lacionadas num fluxo infinito que caminha sempre entre a arte e a tecnologia. A necessidade expe-

rimental e interdisciplinar que provém desta constante reestruturação, tem dado origem a diversos

movimentos (ou práticas) como a vídeoarte, o vídeoclipe, a videoinstalação, o cinema expandido, o

cinema imersivo, o cinema de exposição, o cinema de indústria, os videogames, e mais recentemente

o live-cinema, a música visual e o VJismo.

No seu artigo El cine, el ojo y el espíritu, Juan David Cárdenas tenta, entre outras coisas, depo-

sitar todo o poder estético da arte cinematográfica no vácuo existente entre o mecanismo e o espírito

(na distância entre a máquina e a subjetividade que o homem exerce sobre ela), na máquina e na sua

capacidade para ultra-documentar o mundo:

[Traduzido do espanhol] O cinema é, desde a sua base técnica, antiépico, prosaico. Na sua imagem, o mundo aparece sem sublimações simbóli-cas, só aparece na sua descarnada brutalidade física e, em consequência, na beleza da sua facticidade. Para ele, o mundo é, na sua modéstia, sufi-ciente, sem acréscimos simbólicos nem metáforas totalizantes. […] Atra-vés do cinema e da fotografia, o nosso olho se encontra em condições de mirar de volta ao mundo liberando-o dos nossos vícios cotidianos para oferecê-lo à nossa contemplação maravilhada. (2010, p. 102).

Porém, dentro da perspectiva que Cárdenas propõe, vista desde as práticas artísticas con-

temporâneas, esquece-se completamente o fato de que todos os parâmetros cinematográficos têm

se expandido através do tempo para uma concepção mais ampla, onde o foco principal dos seus

componentes já não é a construção fotográfica da realidade, nem uma apresentação poética da ima-

gem que a câmara captura (MAKELA, 2006, p. 1). O cinema, e em geral, a experiência audiovisual,

___________________________________________________

2 Ver DELEUZE, Gilles, especificamente o conceito de possível proposto em Différence et répétition (1968) e retomado por LÉVY, Pierre em Qu´est-ce que le virtual? (1995): [Em espanhol] “Lo posible se realizará sin que nada cambie en su determinación ni en su naturaleza. Es un real fantasmagórico, latente. Lo posible es idéntico a lo real; sólo le falta la existencia.” (páginas 10 e 11).

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Julieth Galvis Guzmán

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não se limita mais à técnica, ou ao aparelho, e sim contempla outros elementos que, embora con-

tinuem obedecendo com clareza dogmas propriamente cinematográficos, oferecem também novas

dinâmicas funcionais que se reconceitualizam constantemente e que transitam entre o clássico e o

contemporâneo.

Longe ficamos do conceito de “dispositivo máquina de imagem” (DUBOIS, 2004, p.31-33), ao

invés nos aproximamos a um dispositivo audiovisual que não está constituído unicamente por um

aparelho e as suas possibilidades físicas reais, mas também por um espaço-tempo, por um espec-

tador/corpo e, finalmente pela potencialidade destes elementos como agentes interativos dentro de

uma experiência estética unificada.

Neste sistema (relativamente novo nas suas relações e não na sua denominação), é preciso

considerar também as dinâmicas que ocorrem real e virtualmente3 entre os elementos, bem como

a quantidade de variações determinantes que a relação aparelho–espaço-tempo–espectador/corpo

oferece ao dispositivo audiovisual; podemos falar então de um novo dispositivo audiovisual: múlti-

plo e em evolução constante; que existe na medida em que é modificado. E assim como falamos de

novos dispositivos, podemos falar consequentemente de uma nova experiência audiovisual que vai

além do contemplativo ou do maquínico, na qual o valor estético não fica simplificado no seu conteú-

do mas complexificado na sua própria forma (quase retornando ao quadro primitivo)4.

A poética da experiência é enriquecida (quando não é criada) pela potencia manipulável do

aparelho, pela variabilidade do espaço-tempo e pela imprevisibilidade do espectador/corpo. Aqui,

o pensamento audiovisual, composto de novos diálogos entre todos estes conceitos, exige a cons-

trução de uma nova teoria de montagem que seja entendida como supra-cinematográfica: com uma

aproximação ampla e uma visão plástica que transcenda o problema do índice e da ultra-documen-

tação, que se fundamente na natureza do fenômeno audiovisual (mas do fenômeno contemporâneo,

que inclui o novo dispositivo); uma montagem e uma linguagem que não excluam a fragmentação e

a instabilidade como valores estéticos de uma experiência que agora é realmente plástica e que não

___________________________________________________

3 Ver DELEUZE, Gilles, especificamente o conceito de virtual proposto em Différence et répétition (1968) e retomado por LÉVY, Pierre em Qu´est-ce que le virtual? (1995): [Em espanhol] “A diferencia de lo posible, estático y ya constituido, lo virtual viene a ser el conjunto problemático, el nudo de tendencias o de fuerzas que acompaña a una situación, un acontecimiento, un objeto o cualquier entidad y que reclama un proceso de resolución: la actualización. Este conjunto problemático pertenece a la entidad considerada y constituye una de sus principales dimensiones. [...] Por otro lado, lo virtual constituye la entidad: las virtualidades inherentes a un ser, su problemática, el vínculo de tensiones, presiones y proyectos que las animan, así como las cuestiones que las motivan constituyen una parte esencial de su determinación.” (páginas 10 e 11).4 Quadro primitivo, na historia do cinema era o quadro que existia antes da introdução do conceito de montagem ou de decoupage. Nele tudo pode acontecer ao mesmo tempo (o movimento, a narrativa); a leitura do espectador é linear e completamente aberta. Geralmente, no quadro primitivo não existe a preocupação por expressar uma ideia e sim por relacionar e apresentar acontecimentos (ver MACHADO, Arlindo, Pré-cinemas e Pós-cinemas, 1997).

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abandona a expressão de uma ideia, nem o contexto histórico e tecnológico no qual se desenvolve.

Agora poderíamos nos remeter às teorias de montagem propostas por Eisenstein (2002) 5 e

Vertov (1984)6, abandonando, ou em alguns casos contradizendo qualquer ideia já estabelecida sobre

o proceder de criação audiovisual (que num momento foi unicamente cinematográfico); ou podemos

tomar suficiente distancia de qualquer problematização aguda entre o experimental e o clássico para

procurar refúgio nas artes plásticas, ou cênicas, e na teorização e apropriação dos termos inerentes a

estas práticas. Neste caso, será inevitável se adentrar na discussão, tão apropriada e atual, sobre os

limites turvos entre as diferentes práticas artísticas, uma discussão que irá nos deixar, logo após um

tempo, e para o infortúnio vertoviano, frente à impossibilidade de abandonar por completo as teorias

ou os conceptos clássicos. Porém podemos propor aqui três caraterísticas, que podem ser interpre-

tadas como reinvenções ou desconstruções teóricas e técnicas, e mesmo como diálogos transitórios

que podem nos aproximar á formulação de uma nova montagem ideal:

A individualização da experiência audiovisual ou a experiência audiovisual interativa

Idealmente, com esta nova montagem não existiria a necessidade de controlar a interpre-

tação do espectador ou de generalizar a percepção sobre um audiovisual; longe ficaria o problema

contínuo da socialização de uma experiência que supõe-se subjetiva, e a ambiguidade do intimo/

social (subjetivo/coletivo) que, no caso da arte constitui o eterno paradigma da apreciação estéti-

ca, pois outorga-se poder e valor à individualidade ao mesmo tempo que se procura, por qualquer

meio, avaliar coletivamente toda forma e todo conceito da obra de arte (audiovisual ou não), para

formular depois uma ideia impessoal e anónima que possa atingir falsamente todas as emotividades

e intelectualidades de artistas e espectadores (PERNIOLA, 1993, p. 11-95). O valor poético e estético

da experiência ficaria agora efetivamente exaltado na individualidade, transformando o espectador/

corpo num agente ativo não necessariamente consciente, que não só interage ou age operativamente

sobre o dispositivo, mas que também cria e resolve a sua própria experiência estética.

Podendo introduzir obras artísticas audiovisuais que respondessem a esta característica em

distintos níveis, apresento como exemplo Chinerama 7, um projeto teórico proposto alguns anos atrás

___________________________________________________

5 Ver EISENSTEIN, Sergéi, especialmente o capítulo Palavra e imagem escrito em 1937 e que se encontra no livro O sentido do filme (2002).6 Ver VERTOV, Dziga, especialmente os textos recopilados e publicados no livro Kino-Eye (1984).7 Chinerama, AGUILÓ, Nicolás e AGUIRRE, Ignacio, 2011. Este projeto (TCC) foi apresentado na Escuela de Comunica-ción y Multimedios da Universidad del Pacífico (Santiago de Chile, Chile) e a sua finalização teórica e execução prática encontram-se detidas, impossibilitando de momento, a obtenção de resultados experimentais. A ideia se fundamenta no Cinerama, tentativa de cinema imersivo dos anos 50´s que gravava utilizando três câmaras sincronizadas e, posterior-mente, projetava sobre uma tela de 146°.

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na Universidad del Pacífico (Santiago de Chile) que apresenta uma perspectiva de aproximação ana-

lítica inicial que torna extrema a potencialidade da relação entre o aparelho e o espectador/corpo

e que ressalta a função vital e transformadora de um sujeito que se relaciona com uma obra audio-

visual. O projeto propôs o desenvolvimento de um dispositivo de reprodução audiovisual imersivo

que, concentrando-se na retroalimentação dos comportamentos psicofísicos do espectador, lograria

afetar com sucesso os seus estados emocionais.

Tratou-se de uma proposta que procurava gerar uma obra audiovisual não-linear8, que ou-

torgara a cada espectador/corpo una narrativa distinta, nem repetível, nem compartilhável, sobre a

qual teria mínima ação consciente. Este dispositivo consistia, teoricamente, num sistema complexo

de sensores, microfones câmaras e projetores que, somados a uma programação específica, inter-

pretariam a leitura gráfica e sonora dos comportamentos, as reações físicas e as expressões faciais

do espectador, originando e projetando um único filme para cada individuo usuário.

Neste ponto, sobra anteciparmos a qualquer discussão fenomenológica ou psicofisiológica

que este projeto acadêmico possa suscitar, pois compete-nos de momento, unicamente a discussão

conceitual que se refere ao mecanismo de alimentação cíclica de imagem e som, que outorga ao es-

pectador/corpo a virtualidade que o transforma no valor poético da obra inteira.

A independência do espaço-tempo ou a impossibilidade de intervenção

De outro lado, o espaço-tempo, um elemento que, na dinâmica tradicional com o espectador/

corpo, presume-se manipulável e influenciável, fica liberado de todo condicionamento em trabalhos

como Masstransiscope (1980) de Bill Brand9 ou Juggler (1996), The Scream (1997) e Runner (2008) de

Gregory Barsamian10, obras que, limitando entre a plástica e o audiovisual, elevam o espaço-tempo

a principal protagonista, independente de toda vontade do espectador/corpo, constituindo-o em si

mesmo como dispositivo, como aparelho.

Masstransiscope, intervenção restaurada recentemente e instalada numa estação de metrô

de Brooklyn (New York), está composta por 228 painéis pintados à mão que são vistos unicamente

desde dentro do trem em movimento, através de uma série de fendas verticalmente dispostas em

caixas especialmente construídas. ___________________________________________________

8 Para aprofundar o conceito do não-linear, ver GIL VROLIJK, Carmen e a sua dissertação Estructuras no lineales en la nar-rativa (literatura, cine y medios electrónicos), 2002. Escrita para a obtenção do título de Magister em Literatura da Pontificia Universidad Javeriana de Bogotá.9 Bill Brand (1949, New York) é vídeoartista e cineasta experimental desde 1973 também é professor da Universidade de Massachusetts e ativista da preservação de arquivo de cineastas independentes. Mais informação sobre Masstransiscope encontra-se disponível em www.bboptics.com/masstransiscope.html.10 Toda a obra de Gregory Barsamian, vídeos e imagens das obras aqui citadas estão disponíveis em www.gregorybarsa-mian.com.

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De outro lado, Barsamian, tem produzido durante mais de 25 anos maravilhosas e comple-

xas obras que vão desde pequenos dispositivos, até grandes e complicadas narrativas surrealistas,

a maioria delas baseadas no funcionamento tradicional de um zootropo (inegável antecessor do

cinema), substituindo as imagens por esculturas ou pequenos cenários, e acrescentando sistemas

mecânicos e estruturais que ilustram a complexidade da nossa experiência perceptual.

Tipicamente, Barsamian apresenta sua obra acompanhada de luz estroboscópica e, as ve-

zes, sons industriais e mecânicos que ajudam a construir interessantes espaços imersivos; trabalha

com conceitos neurofisiológicos e psicológicos bem fundamentados como a persistência da visão e

a psicologia de Carl Gustav Jung, e cria esculturas representativas que provêm de realidades alterna-

tivas ou de sonhos.

Figura 1 - Juggler, Gregory Barsamian, 1996. Coleção ICC, TóquioAço, borracha de uretano, acrílico, motores e luz estroboscópica.

Figura 2 - The Scream, Gregory Barsamian, 1997Borracha de uretano, aço, motores e luz estroboscópica.

As esculturas, que representam as fases do movimento de um rosto gritando, são instaladas sobre uma estrutura de aço giratória; graças à luz estroboscópica, o espectador percebe o

movimento com fluxo e vida.

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No cinema o trabalho de dispor as imagens é do cinéaste11, é ele quem as detem, as alonga,

as repete, as multiplica; mas em Masstransiscope, um zootropo invertido de grande escala; e nas

obras de Barsamian, o cineasta é eliminado e qualquer processo representativo é realizado pela

memoria do espectador/corpo que não é mais corpo mas sim percepção e parte fundamental do

mecanismo do aparelho.

Não há mais lugar para abstração ou para a concepção semiótica do espaço-tempo que de-

pende aqui unicamente do spatium-tempus (do físico e real), da natureza física do fenômeno audiovi-

sual reduzido à luz, velocidade e percepção. A beleza e o valor estético destas obras se encontram na

exaltação da eterna contradição do cinema como arte: nascer de uma imagem em movimento que,

precisamente a causa de seu fluxo, não pode ser verdadeiramente contemplada.

O aparelho sensível ou o aparelho intervido

O que sempre pareceu impossível de desvelar ante os nossos olhos, converte-se agora em

potencia poética: o aparelho, o seu funcionamento (mecânico e abstrato), as suas incapacidades e

debilidades são agora matéria plástica para a criação de propostas que flutuam sempre entre a arte,

a magia e a tecnologia.

Para apreciar plenamente esta nova aproximação ao aparelho, primeiro precisamos entender

o seu caráter interdisciplinar e experimental. Interdisciplinar porque o sujeito criador (interpretando

o processo de criação como um lugar entre a desconstrução, a intervenção e a inovação) precisa de

Figura 3 - Runner, Gregory Barsamian, 2008Esculturas de bronze sobre lâmina de serra circular, acero, madeira.

O espectador observa através de uma abertura numa caixa de madeira, dentro da qual se instalam as esculturas sobre a serra em movimento; assim as pequenas figuras parecem

estar animadas constantemente.

___________________________________________________

11 Inserto aqui a definição francesa que da origem à palavra cineasta, que se refere ao artista que é autor-realizador-editor de imagens em movimento ou produtos audiovisuais.

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conhecimentos em todas as áreas possíveis, e não só nas que limitem com seu interesse maquínico12

ou conceitual; experimental porque, dentro do novo dispositivo já não existe a imperiosa necessida-

de de procurar como finalidade criativa uma imagem que adquira sentido fora do aparelho, na sua

significação e sublimidade, agora o aparelho e a sua criação processual são, em si mesmos, imagem

sublime.

Apresento para finalizar a obra de Martin Messier13, artista canadense que atua como perfor-

mer, compositor, realizador de vídeo e, principalmente, como criador de música eletroacústica e de

obras audiovisuais experimentais mediante objetos comuns como relógios ou lápis e apropriações

de aparelhos como máquinas de costura (Sewing Machine Orchestra, 2013) ou projetores de filmes

de 8mm (Projectors, 2014). Destacam-se também as suas colaborações interdisciplinares com outros

artistas (Machine_Variation, 2014 e La chambre des machines14, 2011) bem como as máquinas que ele

mesmo desenha.

A intenção principal de Messier é redefinir a funcionalidade de artigos e materiais comuns,

outorgando-lhes voz própria com a ajuda de micro-controladores e microfones, para assim produzir

novos imaginários e singulares diálogos entre os objetos e o som. As obras, com um importante com-

ponente digital, são um belo jogo entre o som mecânico e o sintético e oferecem uma experiência de

equilíbrio áudio-visual (escultórico, sonoro e performático) que caminha sempre entre a acústica e

a eletrônica.

Figura 4 - Sewing Machine Orchestra, Martin Messier, 2013Instalação sonora composta por doze máquinas de costura, doze microfones, doze luzes e

doze micro- controladores.___________________________________________________

12 A saber dentro da experiência audiovisual: física, ótica, cinematografia, artes plásticas, instalação, escultura, arquite-tura, ergonomia, eletricidade, computação, carpintaria, pintura, fotografia, semiótica, historia, anatomia, desenho indus-trial, mecânica, eletrônica.13 Toda a obra de Martin Messier, vídeos e imagens das obras aqui citadas encontram-se disponíveis em http://www.mmessier.com e em https://vimeo.com/martinmessier. 14 La chambre des machines: duas máquinas feitas de engrenagens, manivelas, relógios e outros artefatos comuns, são manipuladas e interferidas eletronicamente para amplificar e alterar o som dos mecanismos em movimento. São uma referencia direta às máquina sonoras produzidas pelos futuristas no inicio do século XX. O conceito e a performance foram realizadas junto com Nicolas Bernier, artista sonoro canadense cuja obra encontra-se disponível em http://www.nicolasbernier.com.

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Sabemos que a construção física e conceitual das obras aqui apresentadas (e de muitas

outras), não seria possível sem o diálogo constante entre diversas áreas do conhecimento; assim, os

processos científicos e abstratos, da mesma forma que os processos tecnológicos e plásticos, contri-

buem na evolução de todas as artes e se revelam hoje como elementos simbióticos que respondem

à necessidade de experimentação constante que um artista possui.

A nova montagem audiovisual se apresenta como um complexo processo de investigação/

criação, cuja resposta operativa encontra-se na interdisciplinaridade e cuja articulação final se origi-

na graças à plástica. Todas as explorações apresentadas no presente artigo, parecem descobrir ante

os nossos olhos a imperiosa necessidade de redefinir, através de uma intervenção teórica e poética,

Figura 5 - Projectors, Martin Messier, 2014Instalação sonora feita a partir da manipulação e intervenção sobre três projetores de filmes de

8mm, micro-controladores, microfones e dois projetores digitais

Figura 6 - Machine_Variation, M., Messier, N., Bernier e J., Villeneuve, 2014Aparelho de grande escala que é manipulado ao vivo pelos artistas Martin Messier e Nicolas

Bernier. O artefato é interferido eletronicamente para amplificar e modificar o som mecânico que emitem as partes da estrutura15, quando são movimentadas ou batidas

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15 A construção da estrutura de Machine_Variation, foi realizada por Jonathan Villeneuve, cuja obra encontra-se disponí-vel em http://www.jonathan-villeneuve.com

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os elementos e, sobretudo, as dinâmicas psicofisiológicas, artísticas e tecnológicas que originam as

imagens audiovisuais contemporâneas e o dispositivo que as contem.

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DoSSiêEm favor de uma cartografia cognitiva dos espaços festivos onde VJs atuam

Guilherme Henrique de Oliveira Cestari

Em favor de uma cartografia cognitiva dos espaços festivos onde VJs atuam1

Guilherme Henrique de Oliveira Cestari2

estratégias na constituição de jogos dialógicos

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: Fundamentado no contato promovido por Pietarinen (2013) en-tre teoria dos grafos existenciais de Peirce e teoria dos jogos, este trabalho descreve e analisa aspectos lógicos da relação entre videojóquei (VJ) e público no ambiente festivo. A pista de dança é espaço cognitivo, em que se podem realizar inscrições e interferências. A sociedade, como ser inte-ligente, interpreta performances dos VJs. Cada performance realizada por VJs contribui de modo diferente para o desenvolvimento contínuo de uma cultura do VJing no contexto social em que está inscrita.Palavras-chave: VJ; Grafos existenciais; Improviso; Imagem e inserção social.

Abstract: Based on contact promoted by Pietarinen (2013) between Peirce’s existential graphs and game theory, this work describes and ana-lyzes logical aspects of relations between video jockey (VJ) and audience in festive contexts. The dance floor is a cognitive space, where inscriptions and interferences can be done. The society, as intelligent being, interprets VJ’s performances. Each VJ performance contributes differently to the con-tinuous development of a VJing culture at the social context on which it is inscribed.Key words: VJ; Existential graphs; Improvisation; Image and social inclusion.

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1 Uma versão abreviada deste artigo foi apresentada no II Seminário Internacional de Imagem e Inserção Social, realizado em 10 de novembro de 2014 na Faculdade Cásper Líbero. A versão resumida será publicada em anais, editados como livro.2 Doutorando em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), orientado pelo Prof. Dr. Winfried Nöth e inscrito na linha de pesquisa Aprendizagem e Semiótica Cognitiva. Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e graduado em Design Gráfico também pela UEL. Email: [email protected]

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VJing como signo

Este artigo advém de uma apropriação livre da teoria dos grafos existenciais de Charles San-

ders Peirce para compor uma metáfora da cognição nos ambientes festivos em que o VJ se apresen-

ta; serve como esboço que descreve aspectos de complexidade identificáveis na relação entre VJ,

público e sociedade.

Ocupar uma pista de dança é instalar-se e circunscrever-se num espaço permeado por dia-

logismo e instabilidade; as configurações de iluminação, som e visualidade, além do eventual uso de

substâncias que alteram a normalidade da percepção, influem nas relações entre mente e ambiente.

Diante da profusão de estímulos, a energia corporal na pista é dispendida principalmente por meio

do improviso; em geral, danças coreografadas, por exemplo, acontecem em momentos pontuais,

depois, é de praxe que se retorne à improvisação. Há um conjunto mais ou menos definido de regras

(terceiridade) tácitas que instanciam o comportamento (segundidade) na pista de dança; ou seja,

existem diretrizes eminentemente aperfeiçoáveis que regulam a convivência no espaço festivo: vi-

goram informalmente permissões e restrições que dizem respeito ao relacionamento interpessoal.

A execução do improviso é orientada por acordos não necessariamente verbalizados ou expressos

formalmente. Um mapeamento cognitivo do espaço em que o videojóquei (VJ) atua passa pela des-

crição lógica da determinação da conduta antes, durante e depois de uma performance audiovisual.

Além de sons, luzes, imagens, gritos, gestos, jeitos de dançar e de se vestir, homens e mulhe-

res também são, por si sós, signos; o ser humano é signo e sua vida acontece na relação com outros

signos. Cada ser humano possui uma capacidade própria e singular de interpretar e de produzir

signos; por viver em sociedade, cada um faz parte também de um organismo maior, que interpreta

e produz signos comunitariamente. A capacidade de produção-interpretação de signos de uma co-

munidade tende a ser mais sofisticada que a de indivíduos quase-isolados. A tendência à individua-

lização e ao isolamento pode limitar o acesso à variedade; o pensamento coletivo tende a ser mais

complexo porque presume a coexistência de diferenças. Para Santaella (2003), merece atenção “[...]

a noção de uma mente cuja história é contínua e tem vindo a crescer como um organismo há alguns

milhares de anos” (p. 106); influenciando o comportamento desta mente, estão “[...] regras simples

aplicadas por um grande número de agentes que, ao trabalharem paralelamente, conduzem à auto

-organização de um sistema complexo e à emergência de propriedades imprevisíveis” (p. 107).

Cada ocupante da pista de dança é um agente constituinte do sistema; se todas as relações

entre os agentes forem extintas, o sistema se desarticula e deixa de existir: VJs, DJs, músicos e pro-

moters são agentes, aparatos tecnológicos são agentes, cada integrante do público é um agente. “Re-

gras simples” podem ser, aqui, as estratégias de comunicação utilizadas por cada agente. Um grande

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número de agentes atuando paralelamente origina um sistema complexo. A comunicação ininterrup-

ta entre VJ e público/sociedade contribui para a constituição de hábitos que, em parte, determinam a

convivência no ambiente urbano. As imagens produzidas e articuladas pelo VJ pertencem, inevitavel-

mente, a um contexto social. No processo eminentemente aperfeiçoável de conformação de regras e

culturas, o VJing gera comprometimentos sociais e culturais apenas parcialmente previsíveis.

Pressupondo a pista de dança como ambiente cognitivo, onde signos transitam e combi-

nam-se exercendo influência sobre mentes que vivem na cidade, este trabalho tem por principal

objetivo compreender aspectos lógicos da relação entre VJ e público no ambiente festivo; para isto

fundamenta-se no contato, proposto por Pietarinen (2013), entre a teoria dos grafos existenciais, de-

senvolvida por Peirce, e a teoria dos jogos. O Quadro 1, a seguir, sintetiza os propósitos deste texto.

QUESTãO DA PESQUISA HIPÓTESES OBJETIVO GERAL OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Como compreender, ado-tando parâmetros lógicos, aspectos da comunicação entre VJ e público antes, durante e depois do conta-to entre ambos na pista de dança?

A pista de dança é espaço mental caracterizado pela informalidade; é um lugar propício para que aconteça o fluxo gerativo e evolutivo de pensamentos originado pela ação dos signos.__

Ocupando um espaço co-municacional dialógico per-meado pela improvisação, o público configura-se como ser inteligente que, ao interpretar os signos do trabalho do VJ, pode ter algumas de suas condutas modificadas por ele.__

Ao produzir, em tempo real, interferências pou-co previsíveis no espaço compartilhado com o VJ, o público evita posturas meramente reativas diante da apresentação; ao as-sumir, por vezes, a posição de grafista, o público con-tribui criativamente para a evolução do diálogo entre VJ e sociedade.

Fundamentado no contato promovido por Pietarinen (2013) entre teoria dos gra-fos existenciais de Peirce e teoria dos jogos, compreen-der aspectos lógicos da relação entre VJ e público no ambiente festivo.

Caracterizar posições e interesses de grafista e gra-feu no jogo dialógico que culmina na composição e no desenvolvimento de um diagrama.__

Descrever estratégias que grafista e grafeu geralmente utilizam para defender seus interesses durante o jogo, destacando a importância, no caso da pista de dança, da paidia (CAILLOIS, 1990) e do improviso na atuação de ambos. __

Compreender como comunicação e oposição incessantes entre grafista e grafeu contribuem para a constituição e manutenção de hábitos e culturas es-pecialmente influenciados pelo VJing.

Quadro 1 – Quadro resumo

Fonte: elaborado pelo autor.

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A pista de dança é um dos lugares em que acontece a semiose. Por semiose, entende-se a

ação ou influência que é ou envolve a cooperação lógica entre três elementos, como o signo, seu ob-

jeto e seu interpretante; esta influência tri-relativa não pode ser simplificada ou reduzida em ações

meramente diádicas (observar CP5.484, 1907). A semiose é um processo dialógico e triádico, porque

se refere à mediação entre dois elementos, realizada obrigatória e indissociavelmente por um tercei-

ro. De acordo com Fabbrichesi (2013, p. 20):

A semiótica peircena baseia-se, acima de tudo, na ideia de interpretante. Isso porque sem a mediação do interpretante (que não é uma mente sub-jetiva) não há ativação significativa da relação sígnica. É exatamente esta referência ao interpretante que mantém a relação sígnica em movimento, fazendo dela uma ‘função ou referência relacional’, e a cadeia dinâmica de Interpretantes produz a semiose ou a ‘ação triádica do signo’ (CP5. 472).

Se a ação triádica do signo é condição para a vida, a análise da ação do signo produzido pela

ambiência do VJ se refere aos modos de vida e de pensamento que se desenvolvem em conjunto com

a performance audiovisual.

Para Makela (2008, p. 1), o VJing se assemelha a um DJing visual. A maioria dos DJs não

produz seu próprio material, eles mixam músicas do mesmo modo que VJs mixam materiais pree-

xistentes. Se desejarem, VJs podem criar seus próprios clipes, mas esta não seria uma característica

elementar do VJing. O que definiria o trabalho do VJ é a criação via seleção, mixagem e remixagem,

e não necessariamente via produção prévia, de conteúdo. Vários VJs podem usar os mesmos clipes

de modo distintos, e isto normalmente não compromete a originalidade de suas performances. Em

suma, de acordo com Makela (2008), para ser um VJ não é necessário saber produzir faixas musicais

ou clipes de vídeo, mas é essencial saber misturar materiais, linguagens e formatos, originando uma

apresentação performática híbrida.

Se visualidade e sonoridade do VJ acontecem na informalidade e no improviso, o desenvol-

vimento das relações sociais na VJ arena segue padrões semelhantes. É possível identificar corres-

pondências entre a organização do espaço, a sintaxe da imagem e da sonoridade articulados pelo

VJ e a configuração das relações interpessoais no público. Em suma, diante da presença do material

misturado e projetado pelo VJ, as relações sociais influem no contínuo rearranjo do terreno que é a

pista de dança, e vice versa: relações interpessoais modificam a disposição de elementos topográfi-

cos da pista, que, por sua vez, retroagem sobre as relações interpessoais, determinando-as. Assim se

caracteriza um sistema recursivo evolutivo parcialmente previsível.

Neste aspecto, considerando a coletividade como organismo, pode-se afirmar que visualida-

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de e sonoridade das imagens do VJ ressonam na conduta e no pensamento do público e da socieda-

de como entidades coletivas. O público em senso lato é ser inteligente que, ao interpretar os signos

do trabalho do VJ, pode ter algumas de suas condutas modificadas por ele.

Compondo diagramas

Pressupondo que o sistema de grafos existenciais desenvolvido por Peirce é um diagrama –

rústico e geral – da mente (observar CP4.582, 1906; Fabbrichesi, 2013, p. 32), o raciocínio diagramático

se mostra um recurso conveniente para considerar conteúdos articulados pelo VJ como intervenções

ressonantes no espaço e, também, para compreender o desenvolvimento da cognição no ambiente

festivo sobre o qual o VJ intervém.

Diagramar é ponderar relações entre elementos por meio da geração de um esquema visua-

lizável. Em acepção geral, a diagramação independe de materialização; o raciocínio diagramático é

instrumento da mente humana (mas não somente dela) para lidar com a experimentação. Diagramar

é dispor visualmente elementos numa superfície mental de modo a representar algumas qualidades

estruturais de um fenômeno; as relações entre os elementos sintáticos de um diagrama se asseme-

lham às relações entre os componentes do fenômeno representado.

A folha fêmica (ou folha de asserção) é a superfície material na qual são inscritas instâncias-

grafos; em outras palavras, é o contexto por meio do qual aquele que inscreve grafos e aquele que os

interpreta se relacionam. Signos podem ser inscritos ou apagados da folha fêmica (observar CP4.553,

c. 1906) desde que sejam respeitadas certas regras (permissões) lógicas de inserção e de deleção.

Qualquer conteúdo que ocupe a folha fêmica diz respeito a um universo arbitrário e hipotético, cria-

ção de uma mente; este conteúdo deve ser considerado sob a perspectiva de um vir a ser, ou seja: se

as premissas inscritas forem verdadeiras, então as relações serão verdadeiras se o universo/contexto

proposto deixar de ser hipotético.

Imagina-se que há duas pessoas, uma delas, chamada grafista, ocupada em realizar sucessi-

vas modificações no conteúdo da folha fêmica. A outra pessoa é o grafeu, que concebe um universo

por meio do desenvolvimento contínuo de suas ideias sobre este mesmo universo, adicionando, a

cada intervalo de tempo, fatos sobre este universo, conforme se desenvolve sua interpretação acerca

dos conteúdos disponíveis na folha fêmica. Enquanto o grafista inscreve modificações na folha fêmi-

ca, o grafeu lê, interpreta o que está na folha e cria continuamente um universo hipotético baseado

em seu entendimento das informações ali representadas.

A atividade realizada pelo grafista deve chegar a um fim antes do trabalho de interpreta-

ção-criação realizado pelo grafeu. O grafista deve esforçar-se para ser um suposto leitor de mentes,

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estimulando-se a estar ciente [de uma parcela ou mesmo da totalidade] do trabalho interpretativo-

criativo já realizado, no passado, pelo grafeu. O grafista pretende que os grafos por ele inscritos ex-

pressem aspectos de como o universo virá a ser caso, porventura, deixar de ser meramente hipotético

e vier a existir de fato. O grafista pode incorrer em contradição e sofrer punições caso arriscar uma

inscrição sem garantias do que já foi interpretado pelo grafeu (observar CP4.431, c. 1903).

Resumidamente, em se tratando dos grafos existenciais, uma certa folha, chamada folha

de asserção ou folha fêmica, é superfície material apropriada para desenhar grafos que expressam

asserções inscritas por uma pessoa imaginária chamada grafista, em um universo contínuo perfeita-

mente definido e inteiramente determinado. Este universo é uma criação arbitrária e hipotética de

uma mente imaginária chamada grafeu (observar CP4.432, c. 1903).

O VJ ajuda a constituir um diagrama porque inscreve – projeta – formas visuais (e também

luminosas e sonoras) num espaço de apresentação; espaço habitado pelo público, que, de modo in-

teligente, interpreta os signos, incorporando-os ou não à sua conduta. O VJ é grafista porque projeta

signos diretamente no espaço de apresentação e, indiretamente, na mente do público. O público é

grafeu porque interpreta e articula os signos então projetados pelo grafista. Interpretar diagramas

é articular formas e proposições, combinando-as e experimentando-as. Não há diagramação efe-

tiva que não pressuponha interpretação (experimentação por meio da articulação de elementos).

O grafeu não cria inscrições na folha assertiva, mas, na constante tentativa de falsear a verdade

inscrita pelo grafista, tem a liberdade de dispô-las na ordem em que desejar, problematizando-as e

testando-as. Se o grafeu se mostra meramente conivente com as verdades inscrita pelo grafista, sem

investigar possíveis problemas ou contradições, o sistema tende a se tornar monótono. É dever do

grafeu, então, buscar sair do comum, do óbvio; tentar demonstrar, de modo eminentemente falível e

por meio de sua interpretação crítica e insatisfeita, que a verdade desenhada pelo grafista não é su-

ficiente e deve ser continuamente complementada, aperfeiçoada. Formalmente, pode-se identificar

um revezamento por turnos: o grafeu interpreta a informação grafada e, problematizando-a, desafia

o grafista; este, por sua vez, incorpora a crítica e responde com uma inscrição mais sofisticada, de-

safiando o grafeu.

Para Fabbrichesi (2013, p. 33) a folha está para os grafos assim como a mente está para signos

-pensamentos e o universo para os fatos. A folha de asserção sem nenhum grafo já constitui um dia-

grama porque representa a existência daquele contexto em seu continuum. Pode-se considerar que o

branco de uma folha em branco expressa que o universo, criado num processo contínuo pelo grafeu,

é perfeitamente definido e inteiramente determinado (observar CP4.431, c. 1903). Equivalentemente,

seguindo a analogia, o espaço de apresentação vazio, sem estímulos projetados pelo VJ, também

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pode, por si só, ser considerado prenhe de signos e pensamento, uma vez que, em seu continuum

espaço-temporal, aquele ambiente contém inúmeras possibilidades de realização performática (ins-

crição formal).

Para exemplificar, a dança do público é interpretante dinâmico predominantemente energé-

tico da música-representamen escolhida pelo VJ. Além do interpretante dinâmico energético, existem

ainda ao menos oito outros tipos de interpretante produzidos pela performance-representamen do

VJ3. A música, representamen inscrita pelo VJ-grafista no espaço fêmico4 [equivalente à folha asser-

tiva], gera uma dança-interpretante que não é meramente reativa no público-grafeu. Por meio da

dança, o público faz com que o VJ perceba se a música e sua mixagem estão ou não de acordo com as

expectativas depositadas no espaço fêmico (a pista de dança da festa). Se o público busca surpreen-

der o VJ com sua dança, o VJ pode se sentir estimulado – desafiado – a inscrever novos e diferentes

estímulos. Se o público porventura recursar-se a dançar e se retirar do recinto, é também um indício

de que há algo a ser aperfeiçoado na performance.

Constituindo uma dinâmica de jogo, grafista e grafeu desempenham papeis opostos e com-

plementares; são oponentes porque têm interesses divergentes e, ao mesmo tempo, são mutuamen-

te dependentes. A relação entre aquele que escreve o diagrama e aquele que o articula, interpretan-

do-o, faz parte da dinâmica dialógica da comunicação. Grosseiramente, nos termos de uma teoria da

comunicação anterior a McLuhan, o grafista é o emissor, o grafeu é o receptor, a folha de asserção é

o meio e o grafo é a mensagem. Para ser um diagrama in actu, um grafo precisa ser manipulado, arti-

culado, experimentado pelo grafeu. Um intenso embate entre grafista e grafeu produz um diagrama

cada vez mais complexo e rico. O pensamento (ação e movimento dos signos) acontece por meio e

através do diálogo contínuo e evolutivo entre grafista e grafeu.

Grafista e grafeu elaboram estratégias para serem bem-sucedidos no jogo dialógico; estra-

tégias que façam valer e predominar seus interesses (a saber, validar e falsear as verdades até então

inscritas, respectivamente). Para Pietarinen (2013, p. 94), “A noção peirceana de um hábito como um

plano geral ou recomendação para ação é virtualmente idêntica àquilo que, em teoria dos jogos, se ___________________________________________________

3 O cruzamento de duas tipificações do interpretante realizado por Short (1996) e Silveira (2007, p. 55-56) resulta em pelo menos nove tipos de interpretante: Interpretante [1] imediato [1] emocional; [1] imediato [2] energético; [1] imediato [3] lógico; [2] dinâmico [2] emocional; [2] dinâmico [2] energético; [2] dinâmico [3] lógico]; [3] final [1] emocional; [3] final [2] energético; [3] final [3] lógico. Os interpretantes imediatos [1, primeiridade] são inerentes ao signo e independem da interpretação do público por serem meras potencialidades. Os interpretantes dinâmicos [2, segundidade] são as inter-pretações que efetivamente ocorreram durante a performance audiovisual. Os interpretantes finais [3, terceiridade] são uma tendência interpretativa, para onde os interpretantes dinâmicos convergem.4 Adaptação feita pelo autor a partir da expressão “folha fêmica” (Phemic sheet) utilizada por Peirce (por exemplo, em CP4.553-557, c. 1906; 570, 1913). O termo é derivado da palavra “pheme” (empregado em CP4.538-541, 1906; 552-553, c. 1906), que diz respeito a um signo proposicional. O espaço-fêmico funciona como a folha fêmica para o VJ-grafista, por-que é ali que ele faz suas proposições [desenvolve sua apresentação].

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entende por estratégia”. Os hábitos continuamente adquiridos pelo grafista visam a adequação de

sua conduta na tentativa de prever, com base na identificação de padrões de comportamento, possí-

veis modos de agir do grafeu no futuro; o grafeu, da mesma maneira, reconhecendo alguns padrões

comportamentais do grafista, aperfeiçoa constantemente sua interpretação crítica da folha fêmica.

Os equipamentos que o VJ-grafista utiliza para produzir inscrições no espaço fêmico são

hardwares (notebooks, mixers, telões, projetores) e softwares (Modul8, Resolume, Isadora, ArKaos, Neu-

romixer, VJamm), além de seu repertório digital, analógico ou híbrido de vídeos e sons. A capacidade

de pensamento do VJ está em parte alocada em seus equipamentos, já que sem eles [e na ausência

de algum outro recurso equivalente] não seria possível projetar conteúdo audiovisual no espaço de

apresentação. O pensamento precisa de veículos para acontecer; Fabbrichesi (2013, p. 31) entende

que “[...] os instrumentos da escrita são uma condição para elaboração de certos pensamentos”, e

complementa: “[...] sistemas diferentes de expressão de pensamentos fazem surgir diferentes for-

mulações.”: a faculdade de discussão e de argumentação de um grafista está localizada, também,

em sua caneta; ela é imprescindível para que os grafos sejam produzidos e para que pensamento se

desenvolva (observar CP7.366, 1902). A relativa fluência nestes equipamentos faz parte da estratégia

do VJ-grafista para se impor durante o jogo.

O conjunto mais ou menos definido de regras tácitas que instanciam o comportamento na

pista de dança faz parte da estratégia do público-grafeu. Ou seja, para desenvolver condutas inteli-

gentes, que a longo prazo possuam maiores chances de êxito no jogo, é necessário um planejamento

estratégico, a começar por um acordo comum de interação e integração entre os indivíduos-grafeus;

daí geram-se algumas das diretrizes eminentemente aperfeiçoáveis que regulam a convivência no

espaço festivo.

Caillois (1990) elabora e relata quatro categorias sociais para os jogos, duas delas, máscara

e transe, são úteis para descrever brevemente alguns recursos estratégicos utilizados pelo público-

grafeu para ler e interpretar as inscrições do VJ-grafista. Em todo sistema relacional sobrevive uma

espécie de jogo. Para constituir-se como tal, qualquer espaço lúdico deve respeitar determinados

princípios; a seguir, tópicos que caracterizam o lugar do VJing como um espaço lúdico na visão de

Caillois (1990, p. 29-30): (1) o público é livre para participar da performance, só a frequenta porque

tem relativa autonomia para assim decidir. É provável que a experiência perca sua ludicidade e se

torne desestimulante caso participação ou permanência no jogo forem impostas. (2) a performan-

ce acontece num lugar delimitado espacial e temporalmente (mas nunca totalmente isolado da so-

ciedade que o envolve); por mais prolongada, é certo que uma apresentação chegará ao fim. (3)

performances de VJs nunca possuem resultados totalmente previsíveis; maior ou menor parcela de

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incerteza alimentam expectativas e tornam o evento criativo e atraente. (4) estímulos geridos pelo VJ

incitam a aceitação de ficções consentidas: conduzem temporariamente à irrealidade ou mesmo ao

envolvimento com uma realidade simultânea [mas nunca completamente independente em relação]

à vida cotidiana.

A liberdade primeira que persiste no âmbito de qualquer jogo ou festa é nomeada paidia

(CAILLOIS, 1990, p. 47). A paidia é “maneira de jogar” (1990, p. 74) que privilegia excesso, animação,

algazarra, desregramento, agitação, risada, descontração, desordem, turbulência, recreação espon-

tânea; as raízes linguísticas do termo podem referir-se a movimentos bruscos, infantis ou infantiliza-

dos provocados por uma superabundância de vitalidade; a expressão pode adquirir acepção erótica

ou, ainda, referenciar algo que ondule despreocupado, ao sabor do vento. Paidia é alegria primitiva,

estado orgânico de confusão; é impulso para tocar, apanhar, provar, farejar, degustar e talvez, em

seguida, descartar; é gosto pelo contato transformador; é vontade juvenil, vigor alegre e impreme-

ditado. Motor indispensável para o ambiente do VJ, paidia se relaciona com intensidades e contras-

tes emotivos: medo, euforia, tensão, angústia, excitação, pânico, desespero. Celebrações sazonais,

orgias, cerimônias religiosas e rituais mágico-míticos possuem forte vínculo com as categorias de

máscara (mimicry) e transe (ilynx, vertigo), justo as mais intimamente relacionadas à paidia.

No contexto da festa, é relativamente comum o uso de adereços, disfarces, fantasias, ma-

quiagens e máscaras. A máscara (fantasia, mimese, imitação, mimicry) é categoria e recurso lúdico

que permite a portabilidade identitária, possibilita a encarnação de um personagem ilusório por

meio da adoção de seu respectivo comportamento; a fisionomia artificial, incorporável, serve de

disfarce e dá margem a atitudes não convencionais, inclusive ao desvario. O mascarado esquece-se

de sua personalidade, fingindo ser outro; quer fazer crer a si mesmo e aos circundantes que sua pre-

sença e identidade foram momentaneamente substituídas. A máscara pretende ser ego cambiante e

identidade indestrutível.

A festa é ambiente propício ao uso de recursos e substâncias que alteram a normalidade

da percepção: estimulantes, tranquilizantes, alucinógenos, embriagantes, anestesiantes... O transe

(espasmo, estado evasivo, centrífugo, de vertigem, síncope, convulsão, perturbação, subversão e

desordem da percepção sensorial, ilynx) mostra-se alcançável também por meio do olhar fixo em

luzes estroboscópicas. Durante o transe, o corpo desvia-se da normalidade neurológica, o sistema

nervoso é submetido a condições de estresse e instabilidade. A experiência emocional e ritualística

é frequentemente relacionada a capacidades sobrenaturais de comunicação, à busca pelo gozo e a

imersões impulsivas, oníricas e fugazes num estado desviado e anormal de consciência (CAILLOIS,

1990, p. 43, 107).

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Uso da máscara e busca pelo transe se retroalimentam: o fingimento aliena e extasia, usar

máscaras embriaga e liberta; simulação gera vertigem (observar Caillois, 1990, p. 97). Subverter a

identidade pelo uso da máscara (mimicry) e a percepção por meio da busca pelo transe (vertigo)

configuram, então, recursos inerentes a um “modo de jogar” (estratégia, hábito) eufórico e juvenil

(paidia). Máscara e transe não são estratégias em si, a estratégia é a paidia, porque possui cunho mais

abrangente; máscara e transe configuram recursos específicos baseados na estratégia paidia.

Concordamos com Caillois (1990, p. 96-97) quando ressalta que mimicry e ilynx supõem am-

bos um mundo onde o jogador está constantemente a improvisar, entregando-se a fantasias trans-

bordantes; discordamos quando afirma, na mesma passagem5, que este mundo é desordenado e

que nem fantasia e nem inspiração vividas pelo jogador reconhecem código algum. O improviso

não pode acontecer na ausência de códigos ou estruturas organizadoras; para ocorrer, o improviso

exige hábitos e repertórios que o favoreçam; improvisar nem sempre quer dizer falta de preparo ou

de treinamento. Existem jeitos para adquirir fluência no improviso; paidia é, então, habito-estratégia

que valoriza o improviso, e não pode ser reduzida, somente porque espontânea, a uma conduta me-

ramente desorganizada e infundada.

Quando se trata da comunicação em festas, o improviso transpassa qualquer estratégia de

produção, tradução e de leitura. Roteiros fixos prolongados tendem a ser pouco úteis e monótonos

para uma festa com VJs; pelo contrário, o ambiente festivo normalmente valoriza a espontaneidade,

o “criar na hora”, “arranjar de repente” e mesmo o “organizar às pressas”. Para Moran (2005, p. 157),

a poética do VJ está relacionada à manipulação de conteúdo “ao vivo” e à abertura para a influência

do acaso:

A interpenetração sonoro-visual quando se pensa em jam, jamming, ou jammer qualifica a poética do VJ. As jam-sessions, como muito bem sa-bem os admiradores deste gênero musical, são shows de jazz em que prevalece o improviso, e o jamming é o momento de improvisação nos shows. Jamming diz respeito a esta característica dos eventos com VJs, o improviso, o ao vivo.

Improviso e “ao vivo” pouco se dissociam, evoluem lado a lado. Durante a improvisação, a

comunicação entre performers se torna literalmente visível e audível (observar Makela, 2008, p. 5). O

improviso mostra-se condição para a realização da festa; é matriz estruturante das condutas tanto

do VJ-grafista como do público-grafeu. O VJ mostra e prova sua presença de espírito por meio, tam-

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5 Na íntegra: “[...] mimicry e ilynx supõem ambos um mundo desordenado onde o jogador está constantemente a impro-visar, entregando-se a uma fantasia transbordante e a uma inspiração soberana, nenhuma delas reconhecendo código algum.” (CAILLOIS, 1990, p. 96-97).

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bém, do improviso. A conduta improvisada assume sua falibilidade; de certo modo, quer ser nômade

e errática. O improviso é estratégia que faz surgir tentativas criativas e insistentes para interpretar

aquilo que permanece admirável, misterioso, incerto e arredio.

Festa como hábito e conjunto de princípios gerais

Na progressão do jogo, um fato menos evidente, mas igualmente relevante e frequente, é a

inversão de funções: o VJ assume o papel de grafeu e o público reivindica o de grafista. Por exemplo,

quando o público canta acompanhando a canção, emite vaias ou mesmo um grito de empolgação,

é ele quem inscreve um representamen no espaço fêmico. Uma vaia representa a verdade defendida

pelo público, necessariamente avessa à verdade defendida pelo VJ no mesmo contexto. Cabe então

ao VJ interpretar o signo e ajustar sua conduta, seguindo uma estratégia e esforçando-se para que

seus interesses sejam atendidos. “Ganhar” o jogo significa manter por mais tempo seus interesses

em vigor; é, no entanto, indesejável que algum interesse seja sempre mais potente que o outro, a

ponto de sufocá-lo. A dualidade deve ser preservada, caso contrário é provável que o jogo – e o dia-

grama – definhem.

Apenas didática e teoricamente há uma alternância estrita do tipo “vez de um” e depois

“vez de outro”, como no xadrez; na prática, o jogo é simultâneo: espontâneo, informal, embolado e

improvisado.

Quando se desligam os aparelhos e o público vai para casa, o jogo continua e persiste por-

que qualquer festa e projeção que esteja ocorrendo ou que já tenha ocorrido é apenas uma instância

física (réplica, segundidade) de uma abstração abrangente (lei, terceiridade). É na lei informal que

regula a produção de festas que o jogo entre VJ-grafista e público-grafeu sobrevive em plenitude.

Uma única festa, limitada no tempo e no espaço, é a atualização (interpretante dinâmico) desta lei

geral. A história do dialogismo lógico entre VJ e público não pode se restringir, então, a um número li-

mitado de performances; a história do jogo necessariamente engloba convenções e acordos [sociais,

políticos, culturais, econômicos...] que determinam relações entre grafista e grafeu em cada festa que

já aconteceu, acontece ou que pode ou não, um dia, vir a acontecer, ad infinitum. A história do jogo

como lei somente seria suficientemente explorada caso fossem consideradas exaustivamente e em

contexto ideal todas as performances audiovisuais possíveis; apenas desta maneira seria possível

desvendar, então, o verdadeiro e último fim desta história. Em outras palavras, a história dos jogos

como abstração reguladora é uma tendência interpretativa (interpretante final) para a qual toda e

qualquer festa individual aponta em maior ou menor medida.

Não se pode considerar que VJ e público vivam o momento da performance independente-

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mente da sociedade em que a festa acontece; a festa não é um espaço isolado, imune e asséptico,

é ambiente integrado ao restante da comunidade. VJ e público incluem-se em uma sociedade, têm

uma vida mais ou menos independente de uma única festa, são estudantes, empresários, cidadãos,

eleitores... As relações que acontecem na pista de dança são fenômenos sociais, o que acontece na

performance audiovisual faz parte da vida. Performances de um VJ, como signos, possuem influência

que extrapola as limitações espaço-temporais da pista de dança. A sociedade, como ser inteligente,

lê e interpreta as performances dos VJs. A sociedade, para além do público presente nas apresenta-

ções, é grafeu não apenas porque o público das apresentações desempenha funções sociais variadas

fora da festa, mas porque a própria festa é um fato inscrito na realidade social.

Cada performance realizada por VJs contribui de modo diferente e único para o desenvol-

vimento de uma cultura do VJing no contexto social em que está inscrita. Cultura é hábito geral que

instancia comportamentos. O VJing faz parte da comunicação na metrópole. Mesmo que alguém não

se interesse por performances realizadas por VJs, é provável que tenha uma parcela de sua conduta

[ainda que sutil e indiretamente, apesar da impossibilidade de se realizar qualquer medição] deter-

minada pelo trabalho dos VJs.

Como a maioria dos sistemas inteligentes, o trabalho do VJ, que é simultaneamente fruto e

produtor de complexidade, exerce influências múltiplas e ambivalentes nos contextos em que está

introduzido: para além do escopo deste trabalho, o VJ não atua apenas em festas; há influência do

VJing nas galerias de arte, nos shoppings, nas vitrines, nos cinemas, na televisão, nos teatros, na in-

ternet, nas fachadas, nas ruas e nas praças como protesto e como intervenção urbana. Fazer VJing é

exercer uma atividade aberta, é expressar-se e comunicar-se de modo alinear, é se dispor a misturar

e a deformar discursos de outrem; fazer VJing é contribuir para a geração coletiva e colaborativa, em

rede, de mediação (pensamento) e de cultura – hábitos, modos de conhecer a vida e de lidar com o

mundo.

REFERêNCIAS bIbLIOGRáFICAS

CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Edições Cotovia, 1990.

FABBRICHESI, Rossella. “O pensamento icônico e diagramático na obra de Peirce”. In: QUEIROZ, João; MORAES, Lafayette de (Orgs.). A lógica de diagramas de Charles Sanders Peirce: implicações em ciência cognitiva, lógica e semiótica. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013, p. 17-48.

MAKELA, Mia. “The practice of live cinema”. Media Space Journal, 2008. Disponível em: <miamake-la.net/TEXT/text_PracticeOfLiveCinema.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014.

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PEIRCE, Charles Sanders. The collected papers of Charles Sanders Peirce. HARTSHORNE, C., WEISS, P. e BURKS, A. (Orgs.) Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1931-35 e 1958; 8 vols. [Obra citada como CP seguido pelo número do volume e número do parágrafo].

PIETARINEN, Ahti-Veikko. “Grafos, jogos e a prova do pragmaticismo”. In: QUEIROZ, João; MORAES, Lafayette de (Orgs.). A lógica de diagramas de Charles Sanders Peirce: implicações em ciência cogni-tiva, lógica e semiótica. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2013, p. 83-104.

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SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. Curso de semiótica geral. São Paulo: Quartier Latin, 2007.

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DoSSiêExperiências audiovisuais na cena teatral

Jair Sanches Molina Jr.

experiências audiovisuais na cena teatral1

Jair Sanches Molina Junior1

Luz, palco e tela

Universidade de São Paulo

Resumo: Este artigo apresenta um breve percurso histórico das relações entre luz, palco e tela em diferentes períodos, grupos e peças teatrais que utilizam-se do mecanismo de exibir e projetar filmes e manipular imagens e sons em tempo real como recurso expressivo para composição de cená-rios, iluminação, videoinstalação, videomapping, videoarte, Vjing, audiovi-sual interativo, entre outros. Como exemplo de grupo teatral a utilizar-se das experiências audiovisuais em tempo real, focaremos na companhia brasileira Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, sediada em São Paulo, com aten-ção especial à ópera de carnaval Os Bandidos, encenada em 2008.Palavras-chave: experiência; audiovisual; luz; palco; tela.

Abstract: This article presents a brief historical background process of the relationship between light, stage and screen in different periods, groups, and theatrical plays that used up the mechanism of displaying and pro-jecting films and sounds in real time as an expressive resource for compo-sition of scenarios, lightning, video-installation, video-mapping, video-art, Vjing, interactive audiovisual, among others. As example of a theatrical group that uses audiovisual experiences in real time, we focus on the Bra-zilian company Oficina Theater, based in São Paulo, with special attention to the carnival opera The Robbers staged in 2008.Key words: experience, audiovisual, light, stage; screen.

___________________________________________________

1 Realizador e pesquisador em Audiovisual. Mestrando em Meios e Processos Audiovisuais pela Escola de Comunicações e Artes na Universidade de São Paulo (ECA-USP), na linha Poéticas e Técnicas, sob a orientação do Prof. Dr. Almir Almas.

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O primeiro projetor utilizado pela humanidade para refletir sombras em movimento foi a luz

solar. O relógio de sol, inicialmente utilizado pelas culturas egípcia e babilônica, é um exemplo de

instrumento que reflete sombras em movimento e temporalidade contínua amplamente conhecido.

Com o domínio humano sobre o fogo, a luz é levada para dentro das cavernas e as primeiras

imagens em sombras são projetadas nas paredes das moradas subterrâneas, algumas das quais vi-

riam a ser gravadas a tinta ou carvão, e se tornariam a conhecida arte rupestre.

A caverna de Chauvet, na França, por exemplo, possui imagens produzidas há aproximada-

mente 32 mil anos. São gravuras, pinturas e desenhos de búfalos e cavalos correndo, demonstrando a

necessidade de comunicar-se através de imagens em sombras ou em cores e que transmitem a sen-

sação de movimento.

A utilização da projeção de imagens, seja em cavernas ou paredes, leva-nos de volta à Grécia,

não somente pela célebre versão do teatro de sombras nas moradas subterrâneas de Platão, escrito

por volta de 350 a.C., mas também pelos teatros de estádio dedicados ao deus Dionísio: onde uma do-

minante tela retangular em algodão era pintada a cores para composição do cenário (skené, em grego),

concentrando a ação performática em um ambiente representativo.

A era romana e cristã imprime violenta censura e proibição aos teatros e festividades dioni-

síacas durante a Idade Média, transformando os palcos teatrais em espaços fechados e restritos às

multidões, criando o famoso palco italiano.

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Jair Sanches Molina Jr.

Figura 1 - Reconstituição do Teatro de Dionísio em Atenas, Grécia (600 a.C). Ilustra-ção no livro Harmsworth History of the World (1908), de Arthur Mee.

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Apenas no Renascimento, o primeiro projetor de imagens, produzido pelas técnicas huma-

nas e conhecido por lanterna mágica, é exibido sob ilustração no livro Arte Magna da Luz e Sombra,

em 1654. Mas não se sabe a data de sua invenção, e pode ser muito anterior à sua primeira publi-

cação. Por meio da queima de vela, carvão ou óleo, a luz do fogo projetava imagens em gravuras de

vidro, que refletidas em paredes ou telas transmitiam imagens em cores, além daquelas que pos-

suíam diversos slides em sequência, criando ilusão de movimento e capazes de realizar pequenas

animações. Apesar de rústicos, as lanternas mágicas contavam inclusive com lentes cambiáveis que

aumentavam o tamanho da projeção no espaço.

Figura 2 e 3 - O projecionista e a lanterna mágica. Ilustração no livro Arte Magna da Luz e Sombra (1645), de Athanasius Kircher.

O domínio da luz elétrica, em 1879, por Thomas Alva Edison, modifica completamente os

meios de comunicação de massa. Em 1891, William Kennedy Dixon inventa o filme de celulóide práti-

co para aplicação fotográfica em movimento, introduzindo a abordagem básica e que se tornaria pa-

drão para toda projeção cinematográfica a utilizar-se de películas e negativos, inspirando os irmãos

Lumière a desenvolver comercialmente o cinematógrafo em 1895.

Ainda no início dos anos 1900, sem o conceito de montagem ainda plenamente estabele-

cido, a maior parte das atrações fílmicas eram feitas por uma câmera fixa em posição central, e que

mantinha a visão do espectador fechada através de um quadro em plano geral, uma espécie de quar-

ta parede cenográfica e imaginária.

Um dos primeiros pensamentos que define a diferença entre o teatro e o cinema foi escrito

em 1916, pelo psicólogo Hugo Munsterberg, em um ensaio sobre o cinema:

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Se os movimentos das mãos de um ator no palco de teatro captam o nosso interesse, não olhamos mais a tonalidade da cena. (...) As coisas que não importam não podem ser subitamente tiradas do palco, pertur-bando os sentidos. O palco em nada pode ajudar. A arte do teatro tem aí limitações. Começa aqui a arte do cinema. (XAVIER, 1983, p. 33).

Dziga Vertov, em um outro extremo de experimentação cinematográfica, também renegava

o teatro, colocando-o como uma arte anti-cinema.

Mas ao longo dos anos, ao mesmo tempo em que o cinema buscou alcançar uma indepen-

dência e autonomia em relação ao teatro, também houve um percurso de aproximação entre estas

duas artes, com a utilização da estética cinematográfica dentro dos espaços cênicos, através de telas

e espaços para projeção.

Vsevolodov Meyerhold, um dos líderes do construtivismo russo, dizia em 1923: Vamos usar

todos os meios técnicos ao nosso dispor. Iremos trabalhar com filme, de modo que as ações ence-

nadas pelo ator no palco poderão alternar-se com cenas que ele desempenha na tela (SALTER, 2010,

p.144).

No caso específico de telas e projeções fílmicas inseridas na cena teatral, o cineasta russo

Sergei Eisenstein, ex-aluno de Meyerhold, é um dos principais expoentes. Em 1923, realiza pela com-

panhia Proletkult de Moscou, a obra teatral O Sabichão, no qual algumas cenas filmadas são exibidas

em película como flashbacks de ações que aconteceram no palco, ou que complementam a narrativa,

além das projeções dos créditos finais e de agradecimentos. Esta peça foi o primeiro trabalho de

agitação baseado no novo método de construção do espetáculo. Para Eisenstein, a teoria e a prática

do cinema derivam do teatro, e todo o seu percurso é um corpo a corpo com a questão geral da arte

e seus critérios, seja no palco ou na tela.

Movimentos da vanguarda histórica, como os dadaístas, futuristas e surrealistas, em seus

desejos e ensejos pela expansão das fronteiras entre as diferentes manifestações artísticas, passam

a questionar a noção de espetáculo exibindo filmes em ruas e em prédios, por exemplo.

O diretor teatral alemão Erwin Piscator também foi um dos precursores, ao empregar proje-

ções fílmicas em peças teatrais na década de 20. Soldado na Primeira Guerra Mundial, Piscator teve

acesso ao depósito de arquivos fílmicos e negativos, e projetou algumas destas imagens na peça As

aventuras do bravo soldado Schweik, em 1926.

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Figura 4 - Projeção fílmica e atores em ação no palco. Peça dirigida por Erwin Pisca-tor em 1926. Fonte: pinterest.com

No Brasil teríamos como precursor deste movimento o diretor Raul Roulien, artista brasi-

leiro que fez sucesso em Hollywood na década de 1930, como ator de grandes filmes comerciais

da época. Em seu retorno ao Brasil em 1936, Roulien cria com Oduvaldo Vianna, no Rio de Janeiro,

a Companhia de Filmes Cênicos, uma mistura de teatro com cinema, mas o projeto é abandonado

após alguns fracassos de bilheteria.

A conversão da luz e do som em ondas eletromagnéticas possibilita a invenção de um novo

híbrido das imagens e sons projetados: os monitores televisivos. Em 1936, os Jogos Olímpicos são

transmitidos diretamente para diferentes televisores espalhados por Munique, constituindo um mar-

co para a exibição de imagens e sons em movimento ao vivo na modernidade.

Em 1949, outras possibilidades de projeções fílmicas favorecem a moderna cenografia tea-

tral que também sofre influência artística. O cenógrafo Jo Mielziner desenha o cenário da montagem

nova-iorquina A Morte do Caixeiro Viajante (dirigida por Elia Kazan), dispondo no palco do esqueleto

de uma casa apertada entre arranha-céus, onde as janelas exibiam as imagens projetadas no cenário,

criando efeito cinematográfico de árvores banhadas pelo sol nas ações desenvolvidas em flashback.

O uso da câmera portátil de vídeo, a partir dos anos 60, liberta os artistas da pesada infraes-

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Figura 5 - Teatro Oficina e seu entorno no bairro do Bixiga, em São Paulo, 2014. Foto por Markus Lanz.

trutura de produção de imagens em movimento para a televisão ou cinema. O desenvolvimento do

equipamento eletrônico atua como catalizador de desejos da nova geração de artistas, assegurando

uma técnica de atraente fascinação, e começam a usar a imagem em movimento como objeto artís-

tico, profundamente ligado à contracultura. Isso acontece em contradição aos imperativos métodos

utilizados pela indústria de TV, que é vista como uma estética-política a ser combatida, devido, so-

bretudo, à forma alienante de se comunicar com o público de massa.

Uma das primeiras experiências a utilizar a tecnologia do vídeo em uma peça teatral foi rea-

lizada por Josef Svoboda, cenógrafo da produção Intoleranzza realizado pelo Grupo Ópera de Boston

em 1965. Svoboda cria um circuito fechado de televisão, que possibilita o registro ao vivo da ação no

palco por cinegrafistas e sua transmissão direta para uma gigante tela de projeção.

Durante o final da década de 1970 e início dos anos 80, com a popularização do vídeo VHS e

da sua introdução em performances e happenings, as projeções de imagens em movimento em obras

e espetáculos teatrais aumentam consideravelmente no mundo todo. Uma das criações marcantes

no teatro brasileiro desta época viria a ocorrer com direção de Luiz Antônio Martinez Correa, ao in-

tegrar as linguagens de teatro, cinema e dança na peça O Percevejo de Vladimir Mayakovsky, em 1981.

Com cenário de Hélio Eichbauer, teve enorme repercussão no Brasil e na Europa na época.

Neste período de redemocratização no Brasil, outros grupos de teatro começam a utilizar-se

do vídeo para realizar experiências audiovisuais, tópico que veremos com mais detalhes a partir da

análise da companhia Teatro Oficina, um dos grupos mais produtivos no país.

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Teatro Oficina

O grupo de teatro Oficina tornou-se expressão dramatúrgica ímpar na criação e produção de

peças teatrais e filmes, marcadas sempre pela inquietação nas escolhas políticas e estéticas.

Sobre o grupo Oficina, é necessário lembrar que iniciou suas atividades ainda como teatro

amador em 1958, por estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, en-

tre eles: Amir Haddad, Carlos Queiroz Telles, Jairo Arco e Flexa, Renato Borgui e José Celso Martinez

Corrêa. Em 1961, decidem profissionalizar-se e alugam um caduco e malconservado galpão de teatro,

construído na década de 1920, situado na rua Jaceguai, no bairro do Bixiga.

Assim, pela dificuldade em apresentar a extensa obra e toda produção deste grupo a partir

de 1958, preferimos neste artigo introduzir um breve histórico de como a utilização de projeções au-

diovisuais tornou-se crescente a partir do exame de algumas obras cênicas e fílmicas em específico.

Já que as produções deste grupo possuem muitas referências à evolução tecnológica dos meios e

processos audiovisuais, sejam elas no campo multimídia, transmídia ou hipermídia.

No final dos anos 60, a alma antropófaga dos jovens artistas do Oficina é acesa através da

leitura de textos variados de Oswald de Andrade, e passam a liderar com outros artistas a Tropicá-

lia, também inspirados no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha. A partir deste encontro entre o

grupo Oficina e Oswald de Andrade, é realizada uma das obras-primas da companhia em teatro: O

Rei da Vela (1967), dirigida por José Celso, peça que transformou-se em outro híbrido, o filme O Rei

da Vela (1983) codirigido por Noilton Nunes, ganhando o prêmio especial da crítica no Festival de

Gramado.

Nos meados dos anos 70, durante o período de chumbo da ditadura militar, o teatro é fecha-

do após invasão da polícia, e vários artistas da companhia tiveram prisões ilegais e outros sofrerem

tortura. Parte do grupo se exilou em Portugal, levando consigo câmeras super-8, negativos, rolos de

filmes, e fotografias que encontram-se atualmente no acervo da Unicamp. Durante esse período no

exílio o grupo realizou dois longas-metragens em documentário: Vinte e cinco (1975), sobre a revolu-

ção moçambicana, e O parto (1975) sobre a revolução dos cravos, ambos dirigidos por Celso Luccas e

José Celso. Já o longa-metragem de ficção Prata Palomares (1970), com roteiro de José Celso e direção

de André Faria, foi proibido pela censura e exibido inédito apenas em 1977, no Festival de Cannes. No

final da década de 70, com o enfraquecimento da ditadura militar e o fortalecimento das noções de

democracia e liberdade de expressão, uma parte do grupo inicia um movimento de retornar aos tra-

balhos no Brasil, e ao teatro que encontrava-se desocupado e sem atividades por um longo período.

No início dos anos 1980, o Grupo Silvio Santos tentou comprar o terreno do teatro Oficina

diretamente com o proprietário. O vídeo surge nesta fase do grupo Oficina como uma arma estética

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contra as pretensões do Grupo Silvio Santos - que se incorpora como antagonista da arte teatral e

representante da especulação financeira, midiática e imobiliária.

Em conflito pela posse do terreno, com o teatro em situações precárias, e sem meios de

financiar novas produções, o grupo Oficina, sob liderança de José Celso, cria um audacioso projeto

que viria a ser a Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona, e que tem como base um movimento

constante de repensar as fronteiras da criação artística ao misturar teatro, cinema, televisão, música,

ópera, vídeo, arquitetura, artes plásticas e carnaval.

Com uma câmera U-Matic em mãos, o Oficina registra encontros com autoridades políticas,

a situação decadente do espaço, com paredes demolidas e falta de encanamento e o cotidiano dos

artistas que ali produziam, trabalhavam e frequentavam o espaço.

A arquiteta Lina Bo Bardi, participante ativa do Oficina entre os anos 70 e 80, projeta a

arquitetura do teatro como um ‘terreiro eletrônico’, em referência a um terreiro de candomblé com

sofisticados recursos de transmissão audiovisual. Segundo Lina Bo Bardi:

Depois do Sturm und Drang (tempestade do ardor irresistível), o que vai acontecer? Em termos de arquitetura o Oficina vai procurar a verdadeira significação do teatro – sua estrutura Física e Táctil, sua Não-Abstração – que o diferencia profundamente do cinema e da tevê, permitindo ao mesmo tempo o uso total desses meios. Na base da maior simplicidade e da maior atenção aos meios científicos da comunicação contemporânea. (BARDI, 1999, p.3).

Atualmente, o que justifica a luta pelo espaço teatral e arquitetônico do Oficina é o desejo

e a dificuldade pela realização de um Teatro de Estádio em seu entorno no bairro do Bixiga, antiga

aspiração de muitos artistas brasileiros, e de Oswald de Andrade no manifesto Do Teatro, que é Bom

(1943), inspirado nos anfiteatros gregos:

Está aí um teatro para hoje, um teatro de estádio... participante dos de-bates do homem (...). Tudo isso indica o aparelhamento que a era da má-quina (...) propõe aos estádios de nossa época onde há de se tornar uma realidade o teatro de amanhã, como foi o teatro na Grécia, o teatro para a vontade do povo e a emoção do povo... (ANDRADE, 1971, p. 89-90).

Na parte videodeográfica deste período oitentista, fizeram parte como colaboradores do

Oficina: Tadeu Jungle, Walter Silveira, Noílton Nunes, Edson Elito e Otávio Donasci, entre outros,

realizando registros em super-8 e vídeo, principalmente. Mas o mero registro dos ensaios, leituras de

textos, ou dos conflitos territoriais com o vizinho hipermidiático, faz com que o grupo tenha novos

anseios e diferentes propostas em audiovisual.

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Havia neste momento do grupo Oficina o intuito de criar uma rede de televisão, a TV Uzyna,

que se concretiza apenas em experimentos. Em 1983, durante a leitura do texto O Homem e o Cavalo,

de Oswald de Andrade, é projetado o filme Linha Geral, de Eisenstein, no monitor de televisão ins-

talado na cabeça da videocriatura de Otávio Donasci. Já o vídeo documentário Caderneta de Campo

(52min.), produzido pelo grupo Oficina para a TV Cultura nos estúdios desta emissora em 1983, con-

tinua inédito e permanece censurado até hoje pelo Governo do Estado de São Paulo, que impede a

TV pública de exibi-lo.

Em comemoração ao tombamento do Teat(r)o, em 1984, diversos televisores espalhados

pelo espaço transmitem à plateia cenas ao vivo da encenação de Mistérios Gozozos, de Oswald de

Andrade.

Em 1993, o espaço teatral com projeto de Lina Bardi e Edson Elito é inaugurado e a compa-

nhia retoma às produções profissionais. Gradativamente, a projeção de imagens em vídeo passa a

ser incorporada às narrativas das peças dirigidas principalmente por José Celso, e codireção por Mar-

celo Drummond. Nesta nova fase, obras clássicas da dramaturgia mundial como Hamlet, de William

Shakespeare, e Bacantes, de Eurípides, são realizadas com estilo de modernos musicais brasileiros

com elenco coral, numerosa banda e introdução gradativa de recursos audiovisuais durante as en-

cenações.

Nas exibições de Para Dar um Fim no Juízo de Deus (1997), peça radiofônica de Antonin

Figura 6 - Coro de sátiros e cinegrafista-ator no ensaio de Bacantes, no início da década de 80. Foto no livro Teatro Oficina 1980-1984, de Lina Bardi e Edson Elito (1999).

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Artaud, as imagens eram registradas por apenas uma câmera, projetadas em um único telão e trans-

mitidas no momento em que a ação se realizava no palco. Um ‘cinegrafista-ator’ perseguia os mo-

mentos mais privados e corporais dos intérpretes, como, por exemplo, o de ejacular, de defecar e de

ter o sangue extraído pela seringa.

Na primeira Cacilda! (1998), sobre a atriz e primeira dama do teatro brasileiro, há inserção

de gravações pré-editadas: Cacilda Becker dançando quando criança; Cacilda Becker rindo em um

programa da TV Bandeirantes; registros do interior do corpo humano e a palavra ethernidade são

projetados pelo espaço teatral e eletrônico, e pela primeira vez funcionam em complemento à nar-

rativa.

Em meados dos anos 90, a internet se estabelece como novo meio de comunicação de mas-

sa e novas relações entre imagens e sons em movimento surgem. No caso do Oficina, a internet é

utilizada gradativamente para divulgar ações e a agenda do grupo e também para exibir as peças ao

vivo em transmissão direta na rede.

Em 2001, na obra Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, são realizadas as primeiras experiên-

cias com o corte ao vivo com mais de uma câmera em tempo real nas apresentações. Já durante a

pentalogia Os Sertões (2001 a 2007), de Euclides da Cunha, houve uma evolução considerável nas

projeções, quando diversos equipamentos como projetores profissionais, mesa de corte e câmeras

foram adquiridos.

Em 2008, o grupo Oficina completou 50 anos de atividades celebrados com a montagem

de novas peças, entre elas a peça Os Bandidos, adaptado da obra Die Rauber (1781), de Friederich

Schiller. Essa peça é exemplar quanto à evolução tecnológica e digital da era cyber em que vivemos,

e a adaptação aos recursos audiovisuais inseridas nas peças teatrais do grupo Oficina se solidifica.

Os bandidos

A obra cênica Os Bandidos2, sobre a disputa entre dois irmãos pelo amor e herança do pai

escrita por Friedrich Schiller, foi adaptada por José Celso como metáfora ao histórico conflito entre

o Teat(r)o Oficina, representado pelo grupo de bandidos da era cibernética Strume und Mangue, e o

Grupo Silvio Santos, representado pelos bandidos da corporação midiática e financeira Pro-World

Corporation $$.

A dramaturgia, adaptada na perspectiva de telenovela e plugada na era digital da comunica-

ção, permitiu que esta encenação se utilizasse de imagens projetadas pelo espaço de uma maneira

inovadora e sem precedentes na história do Oficina, tornando o audiovisual um recurso técnico pro-___________________________________________________

2 Os Bandidos tornou-se filme em 2011 e encontra-se disponível em dvd triplo.

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tagonista desta narrativa teatral.

Na peça, o vídeo entrou primeiro como cenografia. Um carpete branco foi inserido transfor-

mando o palco-pista do terreiro eletrônico em uma tela de 4m x 30m., refletindo imagens interligadas

e mapeadas por diversos projetores, além de monitores de TV espalhados pelo espaço, e outras duas

telas nas extremidades opostas da pista, transmitindo imagens diferenciadas em cada uma das telas.

Figura 7 - Videomapping transformado o palco-pista em tela de cinema no Teatro Oficina (2008). Foto Cassandra Mello.

Porém, a ideia de transformar o palco-pista em tela de cinema não foi inédita no Teat(r)o Ofi-

cina. As peças Taniko - O rito do mar (2008), direção de José Celso, e Cypriano e Chan-ta-lan (2008),

direção de Marcelo Drummond, se utilizaram deste recurso, ainda que de forma experimental.

A dramaturgia em Os Bandidos buscava nas experiências audiovisuais um complemento. É

a poética que apodera-se dos recursos técnicos disponíveis, através, primeiramente, da adaptação

verbal inserida sob forma de rubricas no texto.

No caso desta encenação, pude acompanhar atentamente de que forma a criação literária

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transformou-se em cenografia audiovisual, já que participei como colaborador técnico e criativo da

equipe videográfica no grupo, na função de VJ, sendo a equipe de vídeo desta encenação também

formada por Cassandra Mello, Gabriel Fernandes, Renato Banti e direção de Elaine Cesar.

A partir de uma extensa análise do texto e uma roteirização quanto às necessidades do

vídeo, iniciou-se o processo de pesquisa das imagens necessárias para transformar a literatura em

trilha audiovisual. A primeira parte da pesquisa ocorre diretamente em websites e em DVDs da fil-

mografia mundial. Além destas imagens, pesquisas em livros fotográficos, nos acervos do Oficina,

da Unicamp e da Cinemateca Brasileira, além de pinturas e desenhos, passam a compor a paleta

audiovisual, completando o processo de pesquisa.

Mas a maior parte do material imagético de Os Bandidos são gravações, filmagens e criações

realizadas pela própria equipe de vídeo. Sendo que as principais imagens criadas referem-se às tex-

turas, animações, à vinheta da novela, aos flashbacks: cenas realizadas com o elenco anteriormente

em bailes funk, em viagens de avião, ou em adegas, por exemplo, entre outras.

Com um amplo acervo imagético necessário para a criação da trilha visual, inicia-se o pro-

cesso de pós-produção, que poderia ser dividido em duas etapas.

Na primeira, há uma edição de vídeos em tempo linear, imagens que são experimentadas e

alteradas conforme o desenrolar dos ensaios técnicos. Sendo estas alterações tratamentos variados,

seja na cor, na velocidade da imagem, na colagem com outras imagens, na composição com outros

símbolos, na composição com outros sons, na montagem com outros signos etc.

A segunda etapa do processo refere-se à edição ao vivo, quando há montagem das imagens

transmitidas pelos cinegrafistas-atores, pelas dezesseis câmeras de segurança, pelas imagens pré-e-

ditadas e daquelas que seriam editadas em tempo real através de softwares para VJing.

Há cenas em que o vídeo prolonga a experiência de uma ação. Por exemplo, quando as

personagens deliram ou tem devaneios, a função das projeções é estimular essa sensação, e a ação

performática pode ser acompanhado de uma trilha audiovisual específica, alucinante ou psicodélica,

em convergência com a percepção da personagem.

Já a direção do corte ao vivo, para as imagens registradas pelos cinegrafistas-atores em tem-

po real e projetada nos telões, buscou seguir o fio da dramaturgia, sendo que a narrativa em Os Ban-

didos se divide em episódios como uma novela, possibilitando a montagem das cenas. Estas práticas

podem ser verificadas por meio da edição de duas linguagens distintas: a montagem televisiva e a

montagem cinematográfica.

Nas cenas da corporação midiática Pro World Corporation $$, a montagem televisiva das

novelas foi explorada, e os cinegrafistas-atores faziam principalmente enquadramentos close-up e

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planos-contraplanos respeitando o eixo do palco, enquanto que a edição das imagens ao vivo privi-

legiava o texto dito pelos atores.

Já nas cenas do grupo Strume und Mangue, pudemos realizar procedimentos relacionados

à montagem cinematográfica, com a peculiaridade de que nestas cenas a ênfase era por planos-se-

quência, pela quebra do eixo, e também por uma edição em tempo real que não privilegiava a perso-

nagem que transmitia o texto, mas sim as reações do coro.

Figura 8 e 9 - Cinegraf istas-atores e o dispositivo técnico audiovisual. Fotos por Lenise Pinheiro. Fonte: Blog Cacilda, 2008.

A ausência das projeções de imagens em algumas cenas desta encenação deve-se, geral-

mente, a dois fatores. O primeiro é a iluminação muito intensa, o que pode prejudicar as projeções.

O segundo fator é a própria dramaturgia, que em alguns momentos busca dos espectadores uma

concentração focada em uma única ação no palco, e o vídeo é retirado para não criar uma segunda

camada dispersiva.

Há na adaptação desta peça diversas referências à contemporaneidade, como a inserção

de elementos digitais, o recebimento de e-mails, exibição de vídeos no Youtube, vigilância através

de diversas câmeras de segurança espalhadas pelo espaço, diálogos virtuais e mensagens enviadas

através do telefone celular, tornando as projeções de imagens indispensáveis à narrativa.

Por isso, a característica principal das experiências audiovisuais nesta encenação é a inte-

ratividade com o elenco. Em sua maioria, as entradas e saídas do vídeo são pontuadas por ações do

elenco muito específicas, simulando um controle virtual sobre as imagens. São ensaiados alguns

movimentos com as mãos, um estalo do dedo ou um aperto em controle remoto invisível, um olhar

direcionado ou um rodopio na pista central. Estes sinais variavam conforme a sugestão do diretor ou

dos atores que contracenavam com as imagens.

Com mais de cinco horas de duração, esta peça teatral possui inúmeros exemplos que pode-

ríamos citar sobre os processos da projeção de imagens e sons em movimento, sendo que as princi-

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pais funções do audiovisual em Os Bandidos são:

1- ocupar o espaço arquitetônico.

2- criar cenários virtuais.

3- criar iluminação de cena.

4- enfatizar a entrada de personagens através de leitmotivs.

5 - apresentar cenas em flashback.

6 - apresentar grafismos, ilustrações, artes-plásticas e fotografias.

7 - apresentar legendagem para diálogos ou músicas.

8- invocar a experiência da vigilância através de câmeras de segurança.

9- invocar os fenômenos culturais do cinema, televisão, e internet.

10- articular a tensão entre o registro, o ao vivo e o tempo real.

11- articular a tensão entre luz, o palco, e a tela.

A partir destas análises, é possível perceber que Os Bandidos explorou diversas experiên-

cias interativas com imagens e sons em movimento, que se transmutam com rapidez e facilidade em

diferentes funções cênicas, transformando o terreiro eletrônico em aquário audiovisual.

Considerações finais

Por fim, busquei neste artigo apresentar um breve percurso histórico das relações entre luz,

palco e tela por grupos e obras que exploram a inserção de experiências audiovisuais na cena teatral

produzindo sensações e percepções complementares à narrativa.

Como percebemos, por meio das diferentes experiências audiovisuais aqui apresentadas,

não há um rigor de método na utilização de projeções fílmicas na cena teatral, e as técnicas utilizadas

variam em cada obra, tornando-se um elemento cênico híbrido e peculiar. Já as telas, os monitores,

os locais e superfícies para projeção, quando inseridas na obra teatral nunca se repetem, evoluindo

e modificando-se conforme a dramaturgia se apropria dos meios científicos disponíveis para refletir

imagens e sons em tempo real.

A partir destas observações, nos focamos na peça Os Bandidos como exemplo de obra ar-

tística que possibilitou inúmeras experiências interativas, e que se apropriou do audiovisual como

elemento cênico em suas diferentes funções possíveis.

Esse ambiente de múltiplas sensações táteis e audiovisuais contribui para a evolução das

técnicas, dos meios e dos processos na era da comunicação contemporânea, ampliando as experiên-

cias subjetivas e o acontecimento poético nas artes.

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 68 69

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DoSSiê + entreViStAJosé Celso Martinez Corrêa

Jair Sanches Molina Jr.

entrevista1 com José Celso martinez CorrêaJair Sanches Molina JuniorUniversidade de São Paulo

Jair S. Molina Jr.: Zé, como foi o início do vídeo

no Teatro Oficina?

José Celso M. C.: Foi na fase de O Homem e o

Cavalo. Eram 3 turmas: Sertões: Forró do Avan-

ço, Cozinha da Zuria e Surubim. A outra linha

era Bacantes, jovens atores que vinham do Bra-

sil todo. O outro grupo eram os cavalos da câme-

ra, os cavalos eletrônicos, que era a peça de Os-

wald de Andrade, justamente sobre o culto à

tecnologia. Peça sobre o período que se instalou

a União Soviética. E era o cavalo que a gente

usava para penetrar a brecha da abertura demo-

crática, que era muito fechada na época. E na

época só os índios faziam isso. Eles invadiam os

lugares com o vídeo e era uma coisa terrível. E a

gente imitou os índios para conquistar esse tea-

tro. A gente passou a dar muito valor para ter

uma câmera. Essa câmera foi adquirida pelo Fer-

nando Meirelles, que trouxe de contrabando do

Japão duas U-Matics com o dinheiro que foi le-

vantado para comprar o teatro na festa Domin-

go no Parque. E nós compramos essa câmera,

que era pesadíssima, e a gente invadia os luga-

res todos. Eu me lembro que a primeira grava-

ção, foi no início da abertura, era o pessoal do

Carnaval do Povo, um grupo que se formou no

teatro, montando a cena O Carnaval do Povo,

uma cena do Galileu Galilei, de Bretch, e a gente

invadiu o escritório do Portela em Brasília, e a

gente cercou, fez a primeira entrevista que foi

essa, foi em VHS ainda. Mas com a evolução

desse processo, essa câmera passou a servir

para a construção desse teatro e ao mesmo tem-

po a luta contra o Grupo Silvio Santos. Nós tería-

mos comprado o teatro, tínhamos o dinheiro

para a entrada, que era algo em torno de 2 mi-

lhões na época mas teríamos que pagar depois

mensalidades. E a Caixa Econômica Federal não

aceitou nossa proposta, dizendo que nenhuma

companhia de teatro no Brasil teria dinheiro

para comprar um teatro. Aí com o dinheiro nós

investimos no vídeo e passamos a utilizar ele

como arma, e que é muito diferente de agora,

naquele tempo você chegava com vídeo em al-

gum lugar era uma coisa que apavorava todo

mundo, por que não existia mesmo essa relação

com a câmera, e na época da abertura e era tudo

muito fechado, restrito aos canais de televisão. E ___________________________________________________

1 Entrevista cedida ao autor. Fita mini-dv, 60 min, outubro/2009. Anexo do texto "Experiências audiovisuais na cena teatral".

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DoSSiê + entreViStAJosé Celso Martinez Corrêa

Jair Sanches Molina Jr.

o vídeo tornava imediatamente tudo público,

por que a gente ficava com aquelas gravações e

mostrava em vários lugares. Começou muito

com esse momento de luta, uma arma imitando

os índios, e foi incrementando por que eram

pessoas de muito talento, veio o Tadeu Jungle,

veio o Walter Silveira, eles fizeram o logotipo da

Tv Uzyna. Veio o Noílton Nunes, que montou co-

migo o filme O Rei da Vela. Veio o Edson Elito,

que veio a ser depois o arquiteto do teatro. O

Edson Elito já trabalhava com Super 8. Eu tam-

bém já trabalhei muito com Super 8, mas depois

eu perdi todos. Eu cheguei a começar a traba-

lhar, eu me lembro, até com gravador de rolo. Eu

me lembro de ter gravado o Acordes, uma pri-

meira versão de uma oficina que a gente fez aqui

em 1979, na pré-história. Por que a gente sempre

fez cinema, e o Carlos Ebert filmou coisas inte-

ressantíssimas nas nossas viagens pelo Brasil,

mas esse material se encontra todo preso ou

perdido pela Polícia Federal. E a gente filmou

muita coisa em Super 8. Tinha uma arte. Num

certo sentido o Super 8 era muito parecido com

o processo do vídeo. Em 1980 a gente fez o show

Domingo de Festa no Ibirapuera, e começamos

o ano de 1981 com a câmera U-Matic e já apron-

tando, e nós conseguimos muita coisa. Esse tea-

tro foi construído por causa desta arma. Por

exemplo, uma vez a gente foi buscar (até tem

uma gravação) o Maluf, que botou dinheiro,

numa época em que o índio Juruna foi à televi-

são dizendo que não queria o dinheiro dele, eu

fui pra televisão dizendo que eu queria também.

Aí o Maluf pagou os alicerces do Teatro, mas ele

começou a fazer uma certa onda pra dar o di-

nheiro por que eu dizia coisas horríveis a respei-

to dele, dizia que dinheiro de ladrão é de todo

mundo, e que não tinha problema nenhum com

isso. Por que quem me incentivava nisso era o

João Carlos Martins, que era pianista e secretá-

rio do Maluf. E um dia chegamos na prefeitura e

invadimos o escritório dele, cercamos ele, com o

grupo que fazia o Homem e o Cavalo, onde o ví-

deo já era usado artisticamente, e a Elke Maravi-

lha fazia o papel de Dionísios e o Maluf de Pen-

teu. Fui com o Raul Cortez, o Dionisios de

Azevedo, a Célia Helena, o Pascoal da Concei-

ção. O grupo de atores o cercou, fizemos ele ler

Bacantes, de Eurípedes, e tudo isso foi filmado

para conseguir mais dinheiro ainda. A gente não

falava nada, a gente cantava como se fosse tea-

tro. O Maluf ficou fascinado, e então ele foi ler o

papel de Penteu e dizia: “Mas eu não vou me

vestir de mulher!” (gargalhadas) Isso tem no ví-

deo, é muito engraçado. Mas nessa época eu me

lembro, eu trabalhava muito com o Otávio Do-

nasci, a gente usou em vários espetáculos a vi-

deocriatura. Nós colocávamos a TV na cabeça

do ator, e podíamos colocar a imagem que qui-

séssemos na cabeça do ator. Pois tem uma cena

em o Homem e o Cavalo que é do camarada Ei-

senstein, uma cena de cinema em que entra um

filme lindo chamado Linha Geral, e gente ia usar

as próprias cadeiras como luz e transmissão,

mas acabou não dando certo, pois o Tadeu Jun-

gle tinha bolado, ali no Teatro Sérgio Cardoso,

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de colocar em todas as cadeiras um monitor de

vídeo. E nessa cena a gente acabou colocando o

vídeo na cabeça do próprio Donasci fazendo o

papel do Eisenstein. O próximo espetáculo que

utilizamos o vídeo foi em “Para dar um fim no

juízo de Deus” de Artaud, na verdade começou

um pouco discreto, mas então veio um câmera

de muito talento, o cinegrafista Dourado, que

fez uma bandeja giratória que projetava uma

imagem grande em forma de cone. Aqui no Ofi-

cina não teve tanto impacto, mas no Rio de Ja-

neiro, no Centro Hélio Oiticica, era impressio-

nante! E daí ele filmava, por exemplo, o cú do

Pascoal soltando cocô, mas enorme na tela! Pa-

recia aqueles quadros da Capela Sistina! E en-

tão a gente projetava em telas muito grandes a

cena da punheta, do pau, da porra, do sangue...

E aquilo ficava de uma beleza! Parecia uma coi-

sa de Miguel Angelo, por que era muito grande.

Aquele cu, aquele cocô, eu me lembro que em

São José dos Campos a gente fez para 1500 pes-

soas, e quando a gente começava a projetar

aquilo, saiam multidões apavoradas, famílias fe-

chando os olhos. E eu me lembro que tinham

dois gêmeos que riam muito, e criou uma eufo-

ria, e a partir daí o Sesc proibiu. Por que inclusi-

ve antes, a cena da masturbação era feita atrás

de um biombo, e o Pintado filmava muito bem,

por que ele tinha um sexo bem perverso, por

que ele sabia filmar aquele cu, aquele pau, ele

excitava até o próprio Fransérgio que se mastur-

bava e ele filmava super bem. E ao mesmo tem-

po tinha outro que ficava controlando aquela

bandeja pra pegar o espaço todo. Era um recur-

so muito bom plasticamente, extraordinário. Em

Boca de Ouro tinha projeções também. Foram

realizadas cenas muito bonitas. Ampliava as

imagens da Central do Brasil no final. E a Elaine

César dirigiu o vídeo de Boca de Ouro em Mos-

cou! Ela tinha um ciclorama imenso em Moscou.

E era um teatro todo de ouro. Tinha uma foice e

um martelo de ouro. Era a própria casa de um

bixeiro. (Gargalhadas). E eu me lembro do ator

Haroldo no palco contracenando com ele mes-

mo projetado bem imenso, num tamanho de

tela imenso. E a Elaine enriqueceu muito o ví-

deo, ela colocou muita coisa. O cenário era prin-

cipalmente a projeção, era o teatro entrar na tela

e dar a réplica para o público de que ele estava

dentro da casa de um bixeiro. E era uma porrada

de pessoas saindo do teatro também. Em Cacil-

da! (1998) eu me lembro das imagens dela no

final, e a gente fazia parecer chover. Eram cenas

da Cacilda na música da Maria Betânia. A pala-

vra Ethernidade passando pelo teatro. E a Lucia-

na Domske trouxe uma imagem do interior do

corpo humano, filmado dentro do corpo, que

era projetado na cena do aneurisma, que tinha

aquele plástico grande que corria o sangue. Eu

sempre que fazia oficina, leitura, eu usava o ví-

deo. Eu fazia os câmeras saírem do lugar, acom-

panhar a ação. E tudo o que eu fiz eu procurei

gravar. Tem uma coisa importante. Nós fizemos

um vídeo que está proibido, e eu estou queren-

do liberar há muitos anos, o vídeo Caderneta de

Campo. A gente até ganhou o primeiro prêmio

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do Festival de Vídeo de São Paulo em 1983, como

melhor vídeo. A gente fez na TV Cultura na ges-

tão que se encontrava o João Carlos Martins. E

foi na época que houve aqueles saques em São

Paulo e a gente acabou incorporando isso no ví-

deo, e o Governo do Estado daquela gestão proi-

biu o vídeo desde então, e nunca se divulgou se

exibiu o documentário. Até hoje a TV Cultura é

proibida de exibir este vídeo, porque o governo

tem medo das imagens que fizemos. Estava lem-

brando de outra coisa, que era na época em que

o Noilton Nunes estava aqui, a gente filmava

tudo o que podia, a gente tinha quase uma ma-

nia de vídeo. A gente ganhou uma vez vários mo-

nitores da Sharp, e agente espalhou pelo teatro

todo para o teatro virar terreiro eletrônico. Inclu-

sive transmitimos, no tombamento do teatro,

uma peça que era Mistérios Gozozos, por todo

espaço, e os atores faziam uma orgia, uma suru-

ba, e depois tinha na peça uma cena de sexo ex-

plícito. Mas os atores fizeram na Escola de Artes

Dramáticas-USP uma oficina sobre Mistérios

Gozosos, e depois eu quis fazer profissional-

mente, mas eles não toparam. Mas uns 10 topa-

ram e fizemos aqui, numa sala branca que tinha.

E era transmitido pelo espaço todo, tem até gra-

vado esse vídeo. O Pascoal, a Luciana a Magali

Biff. E o teatro inteiro assistia o que acontecia

naquela sala branca pelos monitores, a plateia

lotada, embaixo o Cabaré da Zuria lotado. E a

cozinheira, a Zuria, quando viu aquilo ela come-

çou a bater no teto: “Para com essa sem-vergo-

nhice, senão eu chamo a polícia! ” (Gargalha-

das) E nós tínhamos muitos vídeos, que nós

levávamos para a casa. Tem uma história engra-

çada. Nós fizemos a mesma coisa na casa da rua

Japurá. E nós instalamos os monitores no ba-

nheiro, na cozinha nos quartos, ligados a uma

câmera VHS que a gente ganhou como prêmio

no festival de vídeo. E virou uma mania essa coi-

sa de vídeo. E a Catherine Hirsch – uma das fun-

dadoras do Uzyna Uzona - bebia demais, e ela

um dia tava passando muito mal, foram uns mé-

dicos querendo levar ela ao hospital, e ela não

queria ir, pois ela teve uma irmã que se suicidou

no hospital. E nós dissemos aos médicos: ‘nós

vamos curar ela com o vídeo!’ Aí a gente ligou

todo o sistema da casa, ela completamente bê-

bada no banheiro, e todo mundo vendo pelos

monitores. Era aniversário do Pascoal que na-

morava a Luciana, que era médica. E nós tínha-

mos o compromisso de cuidar dela, e a Luciana

começou a cuidar dela quando chegou uma me-

nina que começou a filmar a Luciana cuidando

da Catherine. E a Catherine começou a fazer

sexo com a Luciana. E a Luciana, como era mui-

to louca, médica, ela não era dada muito a gos-

tar de mulheres, ela não era lésbica, mas ela foi

pra curar a outra. O Pascoal completamente de-

sesperado, os monitores pela casa inteira, e a

Catherine chupava ela, e mexia com o cabelo. E

a Catherine melhorou, teve um efeito terapêuti-

co. O vídeo curou, por incrível que pareça. De-

pois a Paula Gaitan montou esse vídeo. Pois o

vídeo tinha serventia para tudo, por que a gente

não tinha o menor pudor. Não fazíamos distin-

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ção entre público e privado, essas coisas que se

discutem hoje. Era um reality show total. Mas

com pessoas completamente doidas, por isso,

muito mais interessantes.

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entreViStAVincent Morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais - com Vincent Morisset

Elisa Maria Rodrigues Barboza

Vincent morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais1

Elisa Maria Rodrigues Barboza3

Entrevista com Vincent Morisset2

Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo: Vincent Morisset dirigiu três videoclipes interativos para a banda Arcade Fire, Neon Bible (2007), Sprawl II (2010) e Just a Reflektor (2013); além dos filmes interativos, BlaBla (2012) e Way to Go (2015). Nessa en-trevista o diretor aprofunda os processos de produção desses trabalhos, discute sua participação política para o reconhecimento das narrativas digitais como uma forma autônoma pelo governo canadense, fala sobre a utilização de diversos termos para nomear esse tipo de narrativa, entre outros temas. A entrevista faz parte da dissertação de mestrado “Música, audiovisual e interatividade: um estudo sobre videoclipe interativo a par-tir da banda Arcade Fire”, defendida em julho de 2015 na UFJF.Palavras-chave: Vincent Morisset; narrativas digitais; videoclipes.

Abstract: Vincent Morisset directed three interactive video clips for the Arcade Fire, Neon Bible (2007), Sprawl II (2010) and Just a Reflektor (2013); andalso the interactive movies, BlaBla (2012) and Way to Go (2015). In this interview the director delves into the production processes of these works, discusses their political participation for the recognition of digital narra-tives as an autonomously by the Canadian government, talks about the use of various terms to name this type of narrative, among other topics. The interview is part of the dissertation “Music, audiovisual and interac-tivity: a study of interactive music video from the Arcade Fire”, held in July 2015, through the Universidade Federal de Juiz de Fora.Key words: Vincent Morisset; digital narratives; music videos.

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1 Entrevista concedida ao vivo no dia 19/11/2015, em Montreal, no Canadá.2 Vincent Morisset é diretor canadense e fundador da produtora Aatooa. Morisset dirigiu grande parte dos clipes interati-vos da banda Arcade Fire e tem realizado diversos trabalhos que envolvem narrativas digitais.3 Elisa Maria Rodrigues Barboza é mestre em Artes, Cultura e Linguagens pela Universidade Federal de Juiz de fora, pos-sui graduação em Publicidade e Propaganda pela PUC Minas, tem experiência como educadora, fotógrafa e realizadora de projetos audiovisuais.

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1. Vincent, você dirigiu três videoclipes interati-

vos para o Arcade Fire: Neon Bible (2007), Sprawl

II (2010) e finalmente Just a Reflektor (2013).

Então, eu não dirigi de fato mas Mirror Noir, a

parte interativa, ah! Mirror Noir não, Black Mirror.

Black Mirror também é outro que eu fiz.

2. Ok, eu acho que é o mesmo, Neon Bible (2007)

e Black Mirror, não?

Não, é diferente.

3. Os dois primeiros foram produzidos princi-

palmente pelo AATOAA [produtora criada pelo

próprio Vincent Morisset] e o último por meio

de uma parceria com o Google Creative Lab.

Houve alguma diferença no modo de produção

para esses videoclipes? Considerando o proces-

so criativo, o acesso à tecnologia, o fluxo de tra-

balho, ou algo que você gostaria de destacar?

Não. O mesmo. Reflektor (2013) é... Quase tudo

foi feito aqui [em Montreal]. O Google principal-

mente financiou o projeto, mas toda a tecnolo-

gia foi projetada aqui pelo Édouard [Lanctôt-Be-

noit]. O Google fez a sincronização do áudio e

a página, mas toda a tecnologia foi criada aqui

em Montreal pelo nosso pequeno time. Então,

não há nada de diferente, e nós tivemos a mes-

ma liberdade criativa. Sim, eles foram apenas...

Quando eu conversei com o Aaron [Koblin, en-

tão diretor do Google Creative Lab] no começo

isso era apenas uma ideia, “vamos...”. Nós está-

vamos olhando algumas premissas tecnológicas

interessantes de internet e como nós podería-

mos usar essas novas possibilidades para contar

histórias e esse era o objetivo e então isso estava

realmente aberto e então nós...

4. E como isso aconteceu? Aaron veio até você

ou ...?

Nós nos conhecemos alguns anos atrás em Bar-

celona, na OFFF, e eu conhecia o trabalho dele.

Ele tinha feito o The Johnny Cash Project, Ra-

diohead... E eu tinha feito o Neon Bible, Sprawl

II e Blabla.

5. Mas vocês tinham alguma conexão antes dis-

so, antes do clipe Reflektor?

Não, nós nunca nos conhecemos antes disso.

Então, nos conhecemos e prometemos um ao

outro “vamos trabalhar juntos” e então nós tro-

camos ideias por dois anos e então eu estava

pronto para dizer: “vamos fazer isso!”. E então

nós apenas começamos. Ou seja, era apenas

esse desejo de trabalhar junto e no começo isso

não tinha sequer relação com o Arcade Fire. In-

clusive era algo como “vamos fazer algo juntos!”,

realmente aberto. E por alguma coincidência, o

Arcade Fire estava gravando uma música que en-

caixava com a nossa idéia, mas isso não era algo

como “vamos fazer um videoclipe para aquela

canção!”. Foi mais algo do tipo: “Vamos conec-

tar um telefone com isso e aquilo e então...”.

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2 Kasimir Malevich, The Non-Objective World - The Manifesto of Suprematism (New York: Dover Publications. Inc., 2003), 67.

entreViStAVincent Morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais - com Vincent Morisset

Elisa Maria Rodrigues Barboza

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6. Então, a ideia veio antes...

Antes da música, antes de qualquer coisa. Nós

queríamos contar, fazer um filme com atores.

Não tinha relação nenhuma com o Arcade Fire

no início, foi apenas uma curiosa sincronicidade.

7. É comum se referir a qualquer tipo de narrati-

va na internet como interativa, mesmo com um

nível bem baixo de interatividade. O que signifi-

ca que algo é interativo para você? O que você

procura quando está criando uma peça intera-

tiva?

Como você disse, eu acho que a palavra tem

sido usada tão frequentemente e para tudo

que ela perdeu um pouco da sua essência. Para

mim, é o modo como o espectador se relaciona

com a peça e como elas se conectam. Então, a

ideia não é necessariamente criar infinitas pos-

sibilidades. É mais no sentido de ser essa pon-

te invisível entre nós mesmos, nossas ações e a

peça se desdobrando na nossa frente. Então, é

aquela tensão entre o espectador e o que nós

apresentamos na frente dele. Para mim, isso é

o que eu relaciono com interatividade. Esse mo-

mento quando o espectador faz algo e existe um

eco ou reação disso. Mas em um sentido amplo,

qualquer coisa que não é cem por cento linear,

tecnicamente é interativo.

Então, eu acho que eu tento não classificar o

que eu faço como apenas pura interatividade.

É interativo, mas, bem, não sei... Algumas vezes

eu prefiro dizer que é web-amigável ou qualquer

outro termo apenas para deixar isso bem.

8. Você vê alguma diferença entre os três ter-

mos: digital storytelling, narrativas digitais, ou

vídeo interativo? Se sim, qual?

Não sei. Para mim eles são apenas palavras que

rasgam palavras para tentar definir um meio,

mas sabe, no presente momento estamos em-

polgados sobre o aspecto narrativo, agora tudo

é sobre storytellers e storytellying mas eu acho

que basicamente... Eu me esforço, como você

também, para definir... Em francês, no momen-

to, o que usamos é “nouvelles écritures”.

9. ...“Novas escrituras”, “new writings”?

Sim, mas em inglês não corresponde tão bem...

Não sei, é aquele sentido de, não sei... Uma pro-

posição do ser humano de juntar uma coisa a

outra, mas, novamente, não é algo que vai en-

velhecer bem, mas estamos apenas tentando

desviar do transmídia ou interativo “dâ dâ dâ...”.

Eu acho que o que eu faço são filmes interativos,

o que eu faço, eu mesmo; mas eu tenho outros

colegas que fazem peças que não podem real-

mente ser definidas com esse termo. É algo mais

baseado no formato instalação, ou mais net art,

que não usam vídeo. O que eu faço é combinar

gramática cinematográfica e aproveitar o com-

putador, usando-os para fazer uma articulação

diferente. Mas, são filmes interativos, eu acho.

10. Você acha que deve ter um sentido, quero di-

zer, a peça como um todo, no final... Quando se

fala sobre cinema, por exemplo, se tem um co-

entreViStAVincent Morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais - com Vincent Morisset

Elisa Maria Rodrigues Barboza

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 78 79

meço, um meio e um fim, mesmo que às vezes

eles estejam misturados. Você acha que para os

seus processos, isso tem que funcionar nesse

formato, ou não?

Essa questão sobre o filme foi desenhada desse

modo um pouco por causa da limitação física.

Você tinha que colocar em uma fita, no filme,

que tinha aquele diâmetro específico e você não

podia colocar mais de duas horas em um pro-

jetor. Então, muitas coisas eram..., quer dizer,

o jeito como contamos uma história era dessa

maneira devido ao aspecto físico. Um álbum é

sessenta minutos, um vinil tinha sessenta mi-

nutos de duração apenas devido à fisicalidade

dele. Para nós agora, essas coisas mudam, para

o novo projeto [Way to go, 2014], o fim é não ter

fim. Você pode continuar sem fim, por dias se

quiser, ele é apenas gerado, ou você pode pa-

rar depois de trinta segundos da última cena,

e está tudo bem. Se você é alguém ocupado...

Então apenas depende da ideia de que o tempo

é elástico e muda. Todo aspecto, eu acho que

existe algo que você tem umas história sobre...

Não sei... Storytelling... E tem algo de confortável

em jogar com esses códigos, mas algumas vezes

também é empolgante brincar e subvertê-los.

Mas, nós temos ainda, uma centena, um milênio

de anos de tradição, então, é aquela tensão en-

tre tradição e inovação.

11. Alguns esforços têm sido desenvolvidos e

implementados dentro das narrativas digitais,

você consegue imaginar quais são os próximos

passos para esse tipo de narrativa? Como você

vê esse tipo de narrativa no futuro? Não apenas

quanto ao formato, mas também sobre o efeito

que ele tem na vida das pessoas...

Frequentemente escuto essa pergunta sobre o

futuro e eu não gosto de me projetar dentro do

“qual é o próximo passo” e acredito que ter esse

tipo de perspectiva aliena um pouco a criativida-

de e o meio. Todo mundo fica discutindo “o que

vem a seguir?” e estamos constantemente pro-

curando por “oh, qual é o futuro?”, e para mim

isso cria muito ruído. Então eu prefiro dizer:

“Ok, qual é nossa tela, 2014, nós temos esse con-

junto de tecnologia, o que podemos fazer com

elas? Vamos aprender sobre o que temos feito

nos últimos dez anos...”. O que eu fiz em Neon

Bible, Sprawll II, Reflektor e BlaBla... Nós tenta-

mos diversas coisas e cometemos muitos erros

enquanto trabalhávamos duro neles e apren-

demos muito com eles, vamos fazer algo agora.

Então, estou realmente no momento atual e não

tentando estar em uma bola de cristal olhando

para o que vem a seguir. Eu acho que é algo que

nossa comunidade fica obsecada e algumas ve-

zes isso é contra-produtivo porque todo mundo

pensa “Oh, ok, isso é tão 2012, vamos...”. Não é

algo em você. Algumas vezes estamos em sin-

cronicidade com nosso tempo, no momento,

estamos desenvolvendo um projeto que é com

óculos V.R. [realidade virtual]. Mas quando pen-

samos sobre isso três anos atrás o aparelho nem

mesmo existia. Mas isso apenas aconteceu que

nós estamos em fase com a tecnologia de hoje.

entreViStAVincent Morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais - com Vincent Morisset

Elisa Maria Rodrigues Barboza

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 80 81

Mas algumas vezes fazemos coisas que estão

usando tecnologias velhas... Então esse é o meu

real senso sobre futuro.

12. Você assinou o Manifesto de Digital Story-

telling de Quebec. Você acha que os videocli-

pes que fez para o Arcade Fire se aproximam de

storytellings digitais? Se sim, de qual maneira

você acha que os clipes se aproximam dos story-

tellings e/ou narrativas?

Acredito, de maneira modesta, que eles estão

contando pequenas histórias, como, videocli-

pes, não sei... Os clipes musicais criam um uni-

verso, a música, o contexto, criam uma espécie

de extensão visual do álbum, especialmente

hoje, uma vez que quase ninguém possui mais

discos físicos. Então, os videoclipes, o site, estão

todos se tornando uma espécie de trabalho ar-

tístico, portanto, para mim, eu vejo essas coisas

como se elas fizessem esse papel. Então, não

sei... Neon Bible foi mais como um velho Méliès,

um estranho mágico experimental mas não real-

mente uma história por ela mesmo mas mais um

tipo de humor, tipo um esquisito “Woah, o que

está acontecendo? Eu clico, tem coisas acon-

tecendo, wah...”. Sprawl II foi... Régine foi como

uma protagonista, presa nos subúrbios ecoando

a letra da canção, e em Reflektor nós empurra-

mos a história para o uso da interatividade como

parte da mensagem e como a música fala sobre

nossa idade narcisista na qual constantemente

tiramos selfies de nós mesmos, como conecta-

mos com os outros, como a outra realidade e

como criamos um contraste entre nosso mundo

e algo realmente diferente como o Haiti por ins-

tância. Então, acho que todos eles dizem, todos

eles apresentam mundos, sim, eles são narrati-

vas, de modo modesto.

O manifesto foi... Eu aproximei um grupo de

pessoas...

13. Todas daqui (Quebec, Canadá), certo?

Certo.

... Para sensibilizar o governo daqui a dar supor-

te aos artistas como nós porque somos um ni-

cho de mídia que não é realmente reconhecido,

por exemplo, você tem filme, televisão, rádio, li-

vros, teatro, mas narrativas digitais ou qualquer

coisa do tipo, nós não realmente existimos, nós

estamos no meio disso tudo mas não somos re-

conhecidos como uma mídia específica. Então

nós queremos definir nós mesmos e pedir ao

governo para que ele diga “nós existimos, pre-

cisamos de programa de suporte para a nossa

prática” e adaptar a prática tradicional.

14. Está funcionando?

Sim, sim... Está progredindo muito bem. Sou

parte de um conselho agora, é lento, é governo...

Mas ainda tem etapas... A líder dessa parte da

cultura era a líder do NFB [National Film Board]

antes, então ela sabe, ela foi uma das produ-

toras do BlaBla, então ela entende essa mídia.

Então, são boas etapas... Vai levar um tempo,

mas é realmente importante que... Instituições,

o público e todo mundo mude o modo como

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Elisa Maria Rodrigues Barboza

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entreViStAVincent Morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais - com Vincent Morisset

Elisa Maria Rodrigues Barboza

eles vêem isso. Não é apenas algo tecnológico

geek. É apenas um outro modo de conectar as

pessoas e contar histórias e principalmente nes-

ses dias que consumimos tudo por meio dessa

plataforma, então... Ela nos dá oportunidades,

novas possibilidades, nós podemos aproveitar

disso ou não, elas estão lá... Apenas para ser

normal.

15. Você está conectado com as pessoas que es-

tão produzindo aqui, quero dizer, produzindo

coisas juntos, ou apenas para esse Manifesto?

Parece, mas não sou... Hugues [Hugues Swee-

ney, presidente do conselho dos diretores] é

meu produtor, ele foi um dos que fizeram par-

te do Manifesto, Pierre Mathieu, meu parceiro

de outra vida, nós tínhamos um estúdio juntos,

são aspectos comuns. Ainda é pequena a comu-

nidade, mas somos pessoas com pensamentos

parecidos que estão fazendo e compartilhando

o mesmo desafio e experimentando tudo de

maneira diferente, mas nos conectamos através

desses pontos, nós tentamos ter em vista esses

dez pontos do Manifesto... Nós existimos, so-

mos diferentes dos outros, mas, ao mesmo tem-

po, somos parte dessa grande família cultural,

então...

16. Você e o Arcade Fire tem Montreal como

sede. O primeiro contato para o videoclipe de

Neon bible foi motivado pelo seu desejo de pro-

duzir um clipe interativo ou a banda convidou

você para fazer esse trabalho? A ideia de produ-

zir um clipe interativo partiu desde o começo?

Como aconteceu esse primeiro contato?

Eles são meus amigos, eu conheço eles desde

sempre. Quando nós tínhamos dezesseis anos,

eles começaram com a banda e me pergunta-

ram se eu estava interessado em fazer o site para

eles, então eu fiz aquele site marrom, não sei se

você se lembra, mas era um pouco como Monty

Python... Nós nos divertimos bastante apenas

desenvolvendo as coisas e esse era um momen-

to no qual a indústria musical estava mudando.

Blogs estavam começando com as transmissões

e as pessoas estavam começando a ter e escutar

música nas plataformas digitais. Isso foi bem no

momento no qual estava acontecendo essa mu-

dança na indústria e tudo tinha que ser desco-

berto e nós estávamos dessa maneira... Bem low

fi, apenas fazendo as coisas. Nós fizemos o site,

apenas com coisas grosseiras experimentais,

mas divertidas e então eles me perguntaram se

eu queria acompanhá-los em uma turnê fazendo

fotos e arquivo, tirar fotos, fazer a visualidade, e

então quando eles lançaram o Neon Bible eles...

Nós continuamos, fizemos outro site, com todo

tipo de coisinhas estranhas e eles me pergunta-

ram se eu tinha interesse em fazer o videoclipe

para a música e então eu pensei... Era um tem-

po em que a MTV estava quebrando, mas não

realmente quebrando é a palavra... mudando,

clipes por reality shows, então eu colocaria muito

esforço e eles colocariam muito dinheiro no cli-

pe e ele não passaria na televisão. Naquele mo-

mento, o YouTube ainda era realmente pequeno

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e ruim, então pensei: “Todo esse trabalho para

algo minúsculo...”. Foi algo realmente pragmá-

tico... “Por que não aproveitar as vantagens da

plataforma e apresentar um clipe de modo dife-

rente”, e eu aprendi como programar...

17. Nesse momento você aprendeu a progra-

mar...

Não, antes disso, eu fazia cinema na universida-

de, eu estava lá e eles estavam abrindo um novo

programa chamado multimídia. Eu fui para ele

um pouco por acidente, eu aprendi a programar,

a trabalhar com todos os softwares como Pho-

toshop, After Effects, animar. Eu fazia um pouco

de tudo, era uma espécie de generalista, mas eu

sabia programar e conhecia o Flash, eu poderia

gravar e programar as coisas. Foi algo realmen-

te pragmático. Ninguém pensava “Claro, vamos

fazer isso!”.

18. Como você vê o papel da pessoa que inte-

rage com os seus videoclipes? Você acha que

eles participam como co-autores no trabalho?

Como você vê a autoria nesse tipo de trabalho?

E quanto ao processo de produção, como você

concebe o papel das pessoas que irão interagir

com o videoclipe?

Eu não os considero como co-autores no que eu

faço. Existe uma premissa, existe uma progres-

são nisso e eles, você sabe... É um pouco como

dançar ou jogar com Kite [surf], o vento sopra e

você se equilibra com ele. Então, para mim, tal

como a proposição, a autoria é minha - nós e

as pessoas entramos nela, nessa experiência e

é algo que eu tenho que estar pressionando e

lutando para ter reconhecimento. Também, essa

noção de autoria eu é que fui um dos primeiros

a dizer ‘Oh, projeto por Vincent Morisset’, mas

isso não era algo muito comum em meados de

2000, era mais como anônimo ou assinado por

um estúdio ou empresas, mas algo feito por um

indivíduo, como ‘dirigido por’, era algo bastante

incomum. Algo bastante reforçado no Manifesto

foi também sobre isso. Vamos reforçar a voz do

artista, assinaturas de pessoas que não tem vi-

são nessa proposta, algo... Quando nós projeta-

mos e escrevemos esses experimentos, nós ten-

tamos... Todos mundo é realmente diferente...

Por exemplo, o modo como eles... algumas pes-

soas são hiperativas, ou outras pessoas são mais

contemplativas, é a natureza, as pessoas são di-

ferentes, mas ao mesmo tempo e dependendo

do referencial cultural da idade... Por exemplo,

a minha mãe, não interage do mesmo jeito que

o meu sobrinho de seis anos, mas ainda existem

algumas regras comuns, como... Você está sem-

pre um pouco assustado ou desconfiado com as

coisas que não conhece, então, tem essa curva

de quando você não sabe, você apenas clica e

descobre o que é e então tem um outro momen-

to para você “Uh! Você está super empolgado...”

para avaliar os limites do quadro da sua areia no

parquinho e então você se reapropria dela. É um

design de reapropriação para fazer isso algo pró-

prio. Então existe essa espécie de tensão, mas

as pessoas ainda gostam de ser guiadas pelas

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Elisa Maria Rodrigues Barboza

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 82 83

mãos, em uma espécie de tensão “Ei, nós esta-

mos indo em...”. Estou contando uma história e

estamos indo lá mas ao mesmo tempo as pes-

soas não tem aquele sentido de controle, esta-

mos sempre tentando balancear e dar a ilusão

de que algo está vivo ou aberto e não sentir que

o computador está por trás. Estamos trabalhan-

do bastante para dar variações que provoquem

a sensação de que algo está vivo, que baseiam a

história em comportamentos e programação é

baseado nisso.

19. O videoclipe é um formato com caracterís-

ticas fortemente comerciais. No caso do Arca-

de Fire, parece que eles têm um interesse, ao

mesmo tempo, em explorar os novos meios de

modo criativo e também o seu potencial em

criar novas e consistentes maneiras de alcançar

seus fãs. Por outro lado, eles aparecem também

com vídeos que são bastante relacionados com

o conceito do álbum deles. Quando eles con-

tratam o seu serviço, o que importa mais para

você? Estar alinhado com o conceito e aberto

para algum nível de experimentação ou produ-

zir algo que possa gerar um buzz com o objetivo

de ter algum impacto na mídia? Ambos? Como

você concilia isso? Essa é uma questão durante

o processo de criação?

Quando Carol [Caroline Robert] e eu discuti-

mos com a banda, eles têm uma premissa do ál-

bum, por exemplo: “Esse álbum é influenciado

por isso e aquilo...”. O último álbum era sobre

o Haiti, o mito de Orfeu, eles têm essas espé-

cies de pilares, que são como pontos de partida

e é importante que isso se conecte fortemente

com o álbum, e esse é o primeiro passo. Nunca

é assim “Oh! Isso vai provocar buzz...”, eu acho

que internet é algo que você não pode... Você

não deveria tentar ser viral. Tem algo como, você

sente isso, quando as pessoas tentam isso. Para

mim, eu acredito de verdade em apenas fazer

algo que seja genuíno e divertido e as pessoas

irão gostar. Nós estamos tentando fazer algo

que é significativo e que as pessoas irão gostar

e nós colocamos muito amor e energia nisso,

mas não é uma estratégia de marketing. É mais

assim, “vamos fazer um bom produto!” e se as

pessoas gostarem, elas compartilharão, o que é

bom para a gente. Mas a parte mais importante

é fazer algo que nos deixe satisfeitos, que fica-

remos orgulhosos de conectar artisticamente

com o álbum. Uma vez que somos próximos da

banda, essa troca é fácil e começamos desde o

princípio; então eles estavam ainda gravando o

álbum quando nós ouvimos a primeira música e

pudemos trocar ideias... “Vamos fazer algo que

se desenvolve organicamente”.

20. As narrativas digitais estão apenas no seu

começo se compararmos com outros tipos de

narrativas, por exemplo, o cinema. Como você

procura por referências para inspirar o seu tra-

balho e quais ou quem são elas?

Eu acho que depende muito. Como você mes-

ma disse, você vai buscando coisas no cinema,

nas artes, ou apenas coisas realmente básicas

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Elisa Maria Rodrigues Barboza

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 84 85

da vida. O novo projeto tem inspiração princi-

palmente em uma caminhada na floresta e nos

videogames. Essas foram as duas principais

inspirações, então, algumas vezes isso não é

necessariamente um trabalho, é mais um sen-

timento, uma experiência que você teve e o dia

a dia. Para Reflektor foi mais “Ok! Traga a di-

versão de apenas jogar com as luzes ou com os

bonecos de sombra”, algo bem ótico e tangível.

Então, às vezes, a inspiração vem de coisas reais

porque a interatividade retoma essa viscerali-

dade, sentimentos verdadeiramente primitivos.

Nós jogamos com a tela e botões, mas como po-

demos trazer experiências que tivemos no nos-

so dia a dia?

entreViStAVincent Morisset e Arcade Fire: destrinchando as narrativas digitais - com Vincent Morisset

Elisa Maria Rodrigues Barboza

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 84 85

entreViStANorman McLaren, pixilation e a animação brasileira - com Marcos Magalhães

Marina Teixeira Kerber

norman mcLaren, pixilation e a animação brasileira1

Marina Teixeira Kerber3

Entrevista com Marcos Magalhães2

Universidade de São Paulo

Resumo: Entrevista com o cineasta e professor de animação Marcos Ma-galhães. O entrevistado fala sobre a experiência de estágio na National Film Board of Canada, o contato com o animador Norman McLaren, a cria-ção do festival Anima Mundi, o uso da técnica de pixilation e a influência da animação canadense na história da animação brasileira.Palavras-chave: animação; pixilation; Norman McLaren; Canadá; Brasil.

Abstract: Interview with filmmaker and professor of animation Marcos Magalhães. He tells about his treinee experience at National Film Board of Canada, the contact with the animator Norman McLaren, the creation of Anima Mundi Festival, the use of pixilation technique and the influences of canadian animation in the history of brazilian animation.Key words: animation, pixilation; Norman McLaren, Canada; Brazil.

___________________________________________________

1 Entrevista concedida via email no dia 4 de maio de 2015.2 Cineasta de animação autor de “Meow!” (Prêmio do Júri em Cannes), “Animando” (filmado no National Film Board of Canada) e do “Ratinho de massinha” do Castelo Ra-tim-bum. Um dos 4 diretores do Anima Mundi, é também Professor Pleno de Animação do Curso de Design da PUC-Rio. (Informação retirada do site oficial do ANIMAMUNDI: http://www.animamundi.com.br/quem-somos/. Acesso em 16 de agosto de 2015).3 Mestranda em Meios e Processos Audiovisuais na Universidade de São Paulo (USP).

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 86 87

1. Como foi o contato com Norman McLaren du-

rante seu estágio no National Film Board of Ca-

nada na década de 1980?

Como muitos outros animadores brasileiros,

sempre admirei os filmes de Norman Mclaren

e do National Film Board, que assistia graças

à filmoteca do consulado canadense que cedia

gratuitamente as cópias em 16mm para escolas

e cineclubes. Conhecê-lo pessoalmente e trocar

ideias com ele durante meu estágio no NFB de

outubro de 1981 a março de 1982 foi uma ex-

periência fantasticamente rica, da qual guardo

lembranças vivas até hoje. Ele já estava aposen-

tado, mas terminava a edição de seu último fil-

me, “Narcissus”. McLaren confirmou para mim

a imagem que transmite em sua obra, de uma

pessoa extremamente sensível e simples, aces-

sível, generosa e transparente na sua relação

com a arte e com as pessoas.

2. Norman McLaren lhe falou alguma coisa so-

bre os filmes que ele fez utilizando pixilation? Se

sim, por favor, escreva sobre.

Numa entrevista que fiz com ele em 1986, ao

voltar ao NFB para mostrar os filmes resultan-

tes da primeira turma do acordo Brasil-Canadá,

perguntei que filme de sua obra era o seu pre-

ferido. Ele me respondeu mencionando “Vizi-

nhos”, tanto pela mensagem social clara quanto

pela leveza da técnica de pixilation, que permi-

tia uma grande espontaneidade na filmagem.

Grant Munro, seu parceiro em muitos filmes e

um dos atores deste filme, estava também pre-

sente na entrevista. Grant destacou a diferença

desta técnica de animação para outras que exi-

gem um grande tempo de preparação e detalha-

mento, permitindo um fluxo mais livre de ideias

(o que teria acontecido durante a realização de

“Vizinhos”).

3. Quando você retornou ao brasil, após sua es-

tadia no National Film Board of Canada, você,

Aída Queiroz, César Coelho e Léa Zagury cria-

ram o Anima Mundi, um dos festivais de anima-

ção mais importantes do mundo. Em sua opi-

nião, qual a influência da animação canadense

na animação brasileira?

Norman McLaren e o NFB realmente têm esta

participação histórica na formação de uma boa

parte dos animadores brasileiros. A criatividade,

a engenhosidade tecnológica e a espontaneida-

de dos filmes de McLaren influenciaram anima-

dores do mundo todo. Isso foi facilitado através

da difusão feita pelas filmotecas dos consulados

canadenses, e pelo intercâmbio aberto esponta-

neamente nos anos 1960 por cineastas como

Roberto Miller, que também assumiu sua grande

influência por parte de McLaren, com quem se

correspondia. Após o meu estágio, surgiu o inte-

resse oficial dos governos brasileiro e canadense

em intensificar o intercâmbio cultural através da

animação, e foi criado o primeiro programa ofi-

cial de formação de profissionais de animação

no Brasil, programa que ajudei a formular. Fui o

coordenador do Núcleo de Animação do CTAv

de 1985 a 1987 e Aida, Cesar e Lea foram meus

entreViStANorman McLaren, pixilation e a animação brasileira - com Marcos Magalhães

Marina Teixeira Kerber

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 86 87

entreViStANorman McLaren, pixilation e a animação brasileira - com Marcos Magalhães

Marina Teixeira Kerber

alunos com mais outros seis animadores sele-

cionados em todo o país para este curso com

animadores canadenses (Jean-Thomas Bédard

e Pierre Veilleux) e eu. O Anima Mundi foi criado

seis anos após o fim do programa, em 1993. A

primeira edição incluiu, é claro, uma retrospec-

tiva de animações canadenses.

4. Você conhece algum centro de pesquisa no

brasil ou no exterior que estude o trabalho de

Norman McLaren ou que estude a técnica de

animação pixilation?

O NFB comemorou ano passado o centenário

de McLaren com uma série de atividades, e con-

tinua sendo a melhor fonte de informação sobre

ele. Sobre a pixilation, não conheço um local que

estude especificamente esta técnica, mas ela

costuma despertar interesse por quem pesquisa

técnicas de animação. Muitos de meus alunos

da matéria “História da Animação”, que leciono

na PUC-Rio, escolhem este tema para seus tra-

balhos finais.

5. A produção brasileira em pixilation é bastan-

te esparsa, sendo usada muito no meio publi-

citário ou de videoclipes. Você poderia citar e

comentar alguns trabalhos feitos no brasil que

usem esta técnica no cinema?

No festival Anima Mundi recebemos muitos fil-

mes brasileiros que incluem esta técnica, mas

poucos são feitos usando-a exclusivamente. Um

filme que me recordo bem é “L.E.R.”, de João

Angelini, de 2007, que explora de forma criativa

e comunicativa a pixilation para expressar uma

crítica sarcástica à burocracia e à automatização

do trabalho.

6. Qual a sua experiência com a técnica de ani-

mação pixilation?

Já a empreguei em diversos trabalhos experi-

mentais e até em raros trabalhos de publicida-

de que fiz, como as vinhetas que divulgavam

o projeto de apoio ao cinema do antigo Banco

Nacional.

O meu único curta em que usei a pixilation (em

todas as suas cenas filmadas ao vivo) é o “Ani-

mando”. A pixilation me permitiu fazer truques

como segurar desenhos que se movimentam ou

caminhar de maneira idêntica ao meu persona-

gem no final do filme.

Também em meu curta mais recente, “Doutor,

meu filho é animador”, o animador argentino

Juan-Pablo Zaramella participa com uma genial

cena feita com pixilation.

7. O seu curta “Animando” realizado durante

sua estadia na National Film Board of Canada

faz uso de varias técnicas de animação. Durante

minha pesquisa revi este filme algumas vezes e

tenho a sensação de que ele pode ser uma res-

posta para a pergunta “o que é animação?”. Na

minha pesquisa, eu utilizo o conceito de que

animação não é gênero e sim um conjunto de

técnicas. Você concorda com isso? O que é ani-

mação para você?

Para mim a animação é uma linguagem, uma

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 88 89

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4 BARBOSA JR., Alberto L. Arte da Animação: Técnica e Estética Através da História. 1ª. ed. São Paulo: Senac SP, 2002.5 http://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/grant-munro/ Acesso em 20 de julho de 2014.

forma de comunicação que é inerente à mente

humana (que está o tempo todo processando

imagens), mas só se tornou possível de exercitar

em larga escala quando as tecnologias de comu-

nicação audiovisual (começando pelo próprio

cinema, no final do século XIX) começaram a se

popularizar. O cinema é apenas uma das formas

mais automatizadas de se usar a linguagem da

animação, pois registra o tempo das cenas de

forma mecanizada na maioria das vezes, utili-

zando a fotografia.

A linguagem da animação se baseia na criação

(através da ilusão do movimento) de tempos

diferentes e não necessariamente relacionados

com a realidade em que vivemos. Estes tempos

podem ser sintetizados a partir de diversas e in-

finitas técnicas. E, é claro, abordar infinitos gê-

neros, temas, assuntos, sem qualquer restrição

de ordem física. Como fazemos com nossos so-

nhos e com nossos pensamentos...

8. Você enxerga diferença entre pixilation e stop

motion? Se sim, qual seria?

Em tese, todas as técnicas de animação são stop

motion, pois se baseiam sempre em uma suces-

são de imagens fixas que constroem uma ilusão

de movimento. Mas na indústria a expressão

stop motion tem sido ultimamente mais usada

para a animação feita com bonecos e objetos

reais (que em Portugal e na França é chamada

de animação de “volumes”).

Na pixilation, a diferença básica e essencial é

que estes bonecos e objetos são substituídos

por pessoas vivas. O que cria o efeito especial

da técnica, onde os seres humanos se compor-

tam de maneira estranha, como se estivessem

enfeitiçados (pixelated)...

9. Segundo Alberto Lucena barbosa Júnior (2005,

p. 934) o termo pixilation foi criado pelo animador

escocês, radicado no Canadá, Norman McLaren.

Entretanto, segundo The Canadian Encyclopedia,

no verbete sobre Grant Munro5, animador cana-

dense que trabalhou com McLaren em diversos

filmes, pixilation é “[...] uma palavra que Munro

disse ter inventado, apesar de alguns darem cré-

dito a McLaren.”. Como você teve contato com

Norman McLaren, qual versão você acredita ser

a mais correta?

McLaren e Munro eram muito amigos e se admi-

ravam mutuamente (Munro ainda está vivo no

momento em que escrevo). Eu testemunhei du-

rante meu estágio alguns momentos interessan-

tes entre os dois, quando me contavam histórias

sobre suas carreiras e discutiam amigavelmente

sobre quem teria feito o que em cada filme que

fizeram juntos. Norman McLaren também não

era pessoa de se importar com autorias e vai-

dades. Acredito que Grant possa estar certo, o

nome que vem do verbo pouco usado em inglês

pixilate (significando enfeitiçar, eletrizar) pode

muito bem ter sido criação dele, durante o entu-

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Marina Teixeira Kerber

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Marina Teixeira Kerber

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6 “(filme de efeitos), do qual o cineasta francês Georges Méliès foi o grande precursor. Para ele, o cinema se constituía num espetáculo de magia e, para tanto, tirava proveito de todas as trucagens ao seu alcance.” (BARBOSA JR., 2005, p. 41)7 WELLS, Paul. Understanding animation. 1. ed. Londres: Routledge, 1998.

siasmo da descoberta da nova técnica em filmes

como “On the Farm”.

10. Em minha pesquisa, traço relações entre pi-

xilation e o período chamado “pré-cinema” com

o surgimento de diversos aparelhos pré-cine-

matógrafo e também com o early cinema com

destaque para os trabalhos de mágicos como

Georges Méliès. Acredito que a magia do pixila-

tion seja descendente da dos trickfilms6 de dire-

tores como Méliès. Como você encara a técnica

pixilation? Em sua opinião, o que a torna mágica

e interessante?

Acho que em termos de linguagem ela pode ter

alguma relação com a magia dos filmes de Mé-

liès, mas tecnicamente é totalmente diferente.

Méliès nunca criou um filme quadro-a-quadro,

considero que ele é o precursor dos efeitos es-

peciais, mas não da animação. Ele usava truca-

gens como paradas de câmera e superposições

óticas de imagem no negativo, mas filmava sem-

pre com a velocidade contínua da câmera. A pixi-

lation nasceu a partir da ideia do stop motion dos

primeiros cineastas como James Stuart Blackton

e seu “Haunted Hotel”. Se seres humanos foram

eventualmente filmados quadro-a-quadro nes-

tes filmes (como acontece em alguns filmes de

Emile Cohl e Hans Richter), tecnicamente isso

já seria pixilation – mas só McLaren e Munro se

aprofundaram para explorar de forma definitiva

e especial este efeito em seus filmes, já então

batizados como pixilations.

Para mim o que torna a pixilation tão mágica e

atraente é o fato de seu princípio ser tão simples

e engenhoso, permitindo truques com o corpo

humano que sempre encantam o público.

11. Em minha pesquisa de mestrado eu destaco

os animadores Norman McLaren e Jan Svankma-

jer. Se possível, trace comentários sobre os tra-

balhos dos dois, como o filme “Vizinhos”, de

McLaren e “Comida”, de Svankmajer.

Sim, concordo que Svankmajer é outro autor

que foi ainda mais longe com as possibilidades

expressivas do stop motion e da pixilation. No en-

tanto, em filmes como “Comida”, os seres vivos

são eventualmente substituídos por bonecos

em escala humana em stop motion, para criar

efeitos ainda mais fantasiosos e surreais.

Em “Vizinhos”, McLaren conseguiu criar efei-

tos poderosos utilizando exclusivamente atores

reais filmados quadro-a-quadro.

12. Norman McLaren fala que “Animação não é

a arte de desenhos que se movem, mas a arte de

movimentos que são desenhados. O que acon-

tece entre cada frame é mais importante do

que o que acontece em cada frame. (MCLAREN

apud WELLS, 1998, p. 10, tradução nossa) 7 ".

Para você, o que há entre cada frame?

Concordo inteiramente e repito sempre esta

frase para os meus alunos. O que há entre cada

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REVISTA MOVIMENTO | set 2015 set 2015 | REVISTA MOVIMENTO 90 91

frame é o mistério mais fascinante, que só o

animador pode descobrir, ao fazer seus filmes.

Construímos as mais incríveis e trabalhosas ima-

gens (ou não...) que existem “dentro” de cada

frame apenas para podermos experimentar esta

mudança entre cada um deles, que é o que cria

tempos e movimentos e nos realiza como auto-

res e comunicadores com o nosso público.

Em técnicas como a pintura no vidro ou anima-

ção com areia, as imagens em si desaparecem ao

longo do trabalho – só se eterniza a animação.

Este mistério é a única coisa que motiva os ani-

madores a empregarem um grande tempo de

suas vidas para realizar apenas alguns segun-

dos, minutos ou quando muito algumas horas

em filmes de animação, que, no entanto, perma-

necerão para sempre...

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Marina Teixeira Kerber

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Autorretrato com duração e sons variáveis III, faz parte de uma série na qual pesquiso a relação

do corpo com a câmera e diferentes possibilidades de exibição das imagens em movimento captadas

nessa relação. Pesquiso assim formas de exibição das imagens em movimento diferentes da tela úni-

ca e retangular tradicional da sala de cinema ou monitor de TV, como a projeção de imagens sobre

telas de gelo, telas perfuradas, espelhos, para ampliar os efeitos metafóricos, conceituais das obras

que desenvolvo. Conceitos de efemeridade e de duração são as temáticas principais do trabalho que

estou apresentando. Esses conceitos estão metaforicamente na série pelo uso de exibição de meus

autorretratos projetados em telas de gelo e também por ser um work in progress iniciado em 2011 no

qual pretendo dar continuidade no decorrer de minha vida. A água congelada (tela de gelo) que der-

rete, deforma o que é projetado (autorretrato) é uma metáfora para a relação do corpo com o mundo,

sua efemeridade e sua transformação no decorrer do tempo (tanto física quanto psicológica).

Descrição da série: Esta série é composta de autorretratos captados em vídeo e projetados

sobre uma ou mais telas de gelo. A série, até o momento, compreende quatro obras. As telas são

produzidas com água e tinta congelada.

Os vídeos ficam projetados em looping até a quebra ou derretimento total das telas. Assim

que isso acontece, a projeção é desligada, retxomando-se sua exibição após a troca da (s) tela(s).

Os vídeos projetados não tem som. A parte sonora das obras da série acontece ao vivo pelo

derretimento das telas de gelo em um recipiente colocado abaixo delas durante a exibição. Os sons

PoÉtiCASAutorretrato com duração e sons variáveis III

Viviane Vallades

Autorretrato com duração e sons variáveis iii1

Viviane Vallades2

instalação audiovisual - duração variável / SP, Brasil

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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1 Vídeo registro do trabalho. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=DM1q_-FaQ1s >.Este trabalho foi exibido na Casa do Cactus em 2014. A obra I da série foi exibida no 39° Salão de Arte Contemporânea Luiz Sacilotto (SP), a de número II no 28º Salão Nacional de Artes Plásticas de Embu das Artes e a de número IV foi exibida no 13º Salão de Artes Visuais de Guarulhos no qual recebeu Menção Honrosa.2 Viviane Vallades é artista plástica formada pela UNESP, mestra em Meios e Processos Audiovisuais na ECA USP com orientação do Prof. Dr. Almir Almas, doutoranda em Artes visuais na ECA USP com orientação do Prof. Dr. Hugo Fernan-do Salinas Fortes Júnior. Participa em festivais e exposições com seus trabalhos do qual se destacam: FILE- Festival Inter-nacional de Linguagem Eletrônica, XI Bienal do Recôncavo (BA), Marp- Museu de Arte de Ribeirão Preto Pedro Manuel Gismonde, dentre outras.

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PoÉtiCASAutorretrato com duração e sons variáveis III

Viviane Vallades

das gotas marcam a passagem do tempo. As apresentações das obras da série de autorretratos por

trabalhar com exibição ao vivo nunca são repetidas igualmente. A cada apresentação, a duração da

obra, a visualização dos autorretratos e também os sons são diferentes.

As telas são produzidas uma a uma, elas passam por um preparo, semelhante ao preparo

que o pintor realiza em sua tela para receber tinta, com a diferença de que esta obra recebe uma

pintura de luz.

Descrição da obra III da série: Esta obra da série é constituída da projeção de meu corpo

inteiro e flutuante sobre três telas de gelo. Três vídeos projetam cabeça, tronco e pernas em looping

simultaneamente sobre três telas de gelo. A parte sonora acontece ao vivo como relatado na descri-

ção da série.

Figura 1 - Autorretrato com duração e sons variáveis III, ano 2012, instalação audiovisual. Vídeo registro do trabalho disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=DM1q_-FaQ1s>.

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PoÉtiCASA máquina de imitar global de Grosse Fatigue, de Camille Henrot

Rita Natálio

A máquina de imitação global de Grosse Fatigue, de Camille HenrotRita Natálio1

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Resumo: Propomos pensar a obra da artista francesa Camille Henrot (Grosse Fatigue, 2013) por uma lente reticular: como podem as imagens de diferentes contextos culturais e históricos conviver e produzir sentido por sua aproximação rítmica? Este texto é uma tentativa de compreender os processos da atenção contemporâneos imersos em redes sócio-técnicas, das quais não se separam como num grande sono fusional. Grosse Fatigue foi apresentado no contexto do “Il Palazzo Enciclopedico (O Palácio En-ciclopédico)” na 55ª Bienal de Veneza de 2013.Palavras-chave: Camille Henrot; imitação; invenção; rede; enciclopedis-mo rítmico.

Abstract: We propose to think, through a reticular lens, the work of the French artist Camille Henrot (Grosse Fatigue, 2013): how can images from different historical and cultural contexts produce new meanings through their rhythmical approach? This paper is an attempt to understand the contemporary processes of attention, immersed in socio-technical net-works, from wish they can’t break apart as if they were in a big fusional sleep. Grosse Fatigue was presented in the occasion of “Il Palazzo Enci-clopedico (The Encyclopedic Palace)” in the 55th Venice Biennale in 2013.Key words: Camille Henrot; imitation; invention; network; rhythmical ency-clopedism.

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1 Artista e pesquisadora portuguesa residente em São Paulo desde 2012. Mestre em Psicologia Clínica (Núcleo de Estudos da Subjetividade) da PUC-SP orientada por Prof.Dr Peter Pál Pdlbart e graduada em Artes do Espectáculo Coreográfico na Universidade Paris VIII. Rita Natálio trabalha regulamente com crítica de arte, performance e poesia. O seu último projeto de criação “Museu Encantador” foi apresentado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (www.museuen-cantador.com).

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No filme Grosse Fatigue de Camille Henrot, apresentado na Bienal de Veneza em 2013, apre-

senta-se uma coleção de fragmentos de mitos de criação do mundo, misturando narrativas orais

(Dogon, Inuit, Navajo), narrativas religiosas (Católicas, Hindus, Islâmicas, Judaicas) e narrativas cien-

tíficas (física quântica, química) que narram em voz off uma sequência de imagens/vídeos que, por

sua vez, também misturam níveis muito diferentes de conhecimento: filmagens de coleções botâni-

cas e ornitológicas, livros de antropologia, planos filmados em casa e em frente de lojas, corpos nus,

animais dissecados, animais embalsados, detalhes de esponjas perdendo água, paletas de cores,

bolas de gude chocando entre si, etc. A narrativa oral apresentada numa estrutura musical spoken

work altamente rítmica, acompanha a edição profusa de imagens que são apresentadas em diversas

janelas de vídeo dentro de um écran de computador (janelas dentro de janelas, janelas ao lado e em

cima de janelas), fazendo-nos viajar num desktop de estradas de informação paralelas e interconexas.

Firma-se uma aliança: a abstração da origem do mundo contada através da imitação e do

sincretismo de diferentes literaturas orais e escritas do mundo acompanha a abstração contada por

uma coleção de imagens de diferentes contextos históricos e geográficos, usando a simultaneidade

das janelas de vídeo que abrem e passam pelo nossos olhos, como um desdobramento intuitivo do

conhecimento (segundo as palavras da autora), sem hierarquização entre tipos de conhecimento,

nem tentativa de fechar a narrativa ou realmente explicar o mundo. Por mais ou menos que se saiba

sobre cada narrativa ou imagem isolada, é na operação de display dessas várias informações em si-

multâneo, na criação de ritmos hipnóticos de substituição e sobreposição de imagens e palavras que

tocamos algum sentido desse esboço de narrativa primordial. Como um banho de imersão composto

pelo movimento veloz de assemblage, colagem, comparação, composição de várias fontes de imagem

e som, ativa-se algo familiarmente “universal” e no entanto não totalizável, indeterminado, imprevi-

sível. Como diria Pierre Lévy (1999), o universal da realidade virtual não é conseguido pela totalização

do sentido mas pela “interação geral” de contextos hipertextuais inter-penetráveis.

Neste filme, a “força-invenção” que move este tipo de conhecimento é precedida pela “for-

ça-imitação” quase compulsória de fragmentos de várias culturas, sem seguir um ponto de vista

privilegiado ou um fundamento para a organização das imagens, mas tão só um certo nomadismo

reticular das mensagens e dos afetos. Na verdade, é quase como se o filme simulasse um percurso

da atenção numa viagem por uma rede super extensa de narrativas e contextos. No percurso hipnó-

tico dentro da rede, a atenção move-se, muda de foco, coloca imagens lado a lado, mistura, sampla o

conhecimento, deriva, divide a atenção e aproxima-se de um enciclopedismo rítmico. A distração é o

movimento pelo qual os cérebros são redes abertas de informação circulante, e a deriva estabelece

o pulso da atenção. Talvez fosse isso que Kenneth Goldsmith, poeta e fundador da Ubuweb, tivesse

PoÉtiCASA máquina de imitar global de Grosse Fatigue, de Camille Henrot

Rita Natálio

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PoÉtiCASA máquina de imitar global de Grosse Fatigue, de Camille Henrot

Rita Natálio

em mente quando publicou no New Yorker um artigo intitulado Why I Am Teaching a Course Called

‘Wasting Time on the Internet’, onde descrevia a importância dos seus alunos se perderem na internet

e na bruma digital, defendendo o mergulho na aceleração e a atualização da noção de deriva de Guy

Debord. Para ele, a deriva e a dispersão poderiam criar uma cultura navegante, deambulatória, sem

esteios, ou avançando sobre esteios de fumaça.

Figura 1 - Still de vídeo de Grosse Fatigue

Figura 2 - Still de vídeo de Grosse Fatigue

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Figura 3 - Still de vídeo de Grosse Fatigue

In the beginning there was no earth, no water – nothing. There was a sin-gle hill called Nunne Chaha. In the beginning everything was dead. In the beginning there was nothing; nothing at all. No light, no life, no move-ment no breath. In the beginning there was an immense unit of energy. In the beginning there was nothing but shadow and only darkness and water and the great god Bumba. In the beginning there were quantum fluctuations2.

O mais interessante da edição e seleção de Camille Henrot é que o cosmos descrito por

Grosse Fatigue aponta para um certo desconhecido onde entram múltiplos mundos possíveis, mun-

dos por vezes tão diversos como divergentes, o que parece tocar uma aparente desordem episte-

mológica. É como se Henrot se colocasse a favor da manutenção de um desconhecido, bombeando

“força-imitação” para dentro da sua recolha de imagens, para se esquivar de uma realidade total,

fechada e concordante. Como na teoria cosmopolítica de Isabelle Stengers onde se procura pensar

uma alternativa que não busque sua própria conclusão, que não busque alternativas definitivas, mas

antes uma “ecologia das práticas” onde os lugares de cada coisa são relativos.

Para além disso, Camille Henrot mistura propositadamente o tempo circular das cosmogo-

nias indígenas (um tempo onde se privilegia a imitação como ferramenta de construção do mundo

pela tradição) com o tempo linear das cosmogonias científicas (onde se privilegia a invenção como

ferramenta do progresso e marca da genialidade). Nesse cozinhado de tempos e perspectivas, a au-

tora usa-se de uma perspectiva animista no sentido que Isabelle Stengers (2012) pensa o animismo, ___________________________________________________

2 Transcrição da voz off de Grosse fatigue.

PoÉtiCASA máquina de imitar global de Grosse Fatigue, de Camille Henrot

Rita Natálio

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como mistura onde se recupera ou “cura” o pensamento de separações tomadas como vitalícias pelo

ocidente. Assim, recuperar e imitar um pensamento Inuit, não tem por objetivo tentar ressuscitar

este pensamento como autêntico ou verdadeiro, mas sim tentar reactivar esse pensamento como ca-

mada de experiência do que Nós (esse “nós” neutral e central do ocidente) não somos. Pela mistura

entre mundos, diminui-se o peso das narrativas auto-centradas do ocidente, ao mesmo tempo que

se aproxima a ciência ocidental de um processo de desconstrução antropológica nunca antes vivido

– jogo de pesos e ressonâncias ontológicas.

No entanto, trata-se também, como diz o título do filme, de um extremo cansaço (grosse

fatigue). Em primeiro lugar, porque o vídeo começa com a tela padrão de inicialização de um com-

putador da Apple e sabemos desde o início que a origem do mundo será narrada a partir dessa

tela cansativa do globalismo técnico corporativo, onde diferentes janelas nos conectam a tudo (ao

possível de reproduzir e imitar todas as imagens e todas as histórias) sem no entanto nos darem

uma chave de relação com essa conexão previamente dada e inquestionável (“veja a origem mundo

através da Apple!”, parece dizer-nos o écran). Em segundo lugar, a fadiga de tentar explicar o mundo

e a sua origem, de tentar atribuir um sentido e uma cosmogonia ao pesado globo que Atlas carrega

nas contas, de tentar dar conta de um “tudo” que apenas pode ser tocado por fragmentos. E por

fim, o cansaço da velocidade e de um “devir-repetidor” instalado como maquinismo: um projeto

cosmogónico contemporâneo que se define pela sua avidez de imitar e de replicar mundos, mesmo

os mais radicalmente separados (as narrativas vivas da mitologia Bakula e os mortos vivos da história

natural do Smithsonian Institute de Washington), sem nos dar a possibilidade de prever um resultado

desse encontro. Assistimos Grosse Fatigue entregues ao absurdo e ao encantamento de uma maqui-

nação quase involuntária, ainda que com a certeza de estarmos dentro de uma voragem de imitação

necessária, onde se inventa um tipo de conhecimento menos apegado às forças individuais e mais

entregue ao sabor da composição e dos agenciamentos de forças heterogéneas, onde se produz um

desapego e uma distância.

REFERêNCIAS bIbLIOGRáFICAS

GOLDSMITH, Kenneth. “Why I Am Teaching a Course Called ‘Wasting Time on the Internet’”, New Yorker, 13 nov. 2014.

HENROT, Camille. “Grosse Fatigue”, Courtesy the artist, Silex Films and kamel mennour, Paris, 2013.

LÉVY, Pierre. Cibercultura, Trad. Carlos Irineu da Costa, São Paulo: Editora 34, 1999.

STENGERS, Isabelle. “Reclaiming Animism”, e-flux #36, jul. 2012.

PoÉtiCASA máquina de imitar global de Grosse Fatigue, de Camille Henrot

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