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Revista Uma publicação do Instituto Pombas Urbanas - Dezembro de 2013 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo Com a celebração dos 4 anos da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade Da aldeia à periferia, viva a cultura que gera desenvolvimento social! No Brasil, experiências culturais dialogam e inspiram políticas publicas Da aldeia à periferia, viva a cultura que gera desenvolvimento social! No Brasil, experiências culturais dialogam e inspiram políticas publicas 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo Com a celebração dos 4 anos da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade Revista Semear Asas - Uma publicação do Instituto Pombas Urbanas - Dezembro de 2013

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5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São PauloCom a celebração dos 4 anos da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade

Da aldeia à periferia, viva a cultura que gera desenvolvimento social!No Brasil, experiências culturais dialogam einspiram políticas publicas

Da aldeia à periferia, viva a cultura que gera desenvolvimento social!No Brasil, experiências culturais dialogam einspiram políticas publicas

5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São PauloCom a celebração dos 4 anos da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade

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“Nenhum povo é dono de seu destino, se antes não for dono de sua cultura”

Jose Martípolítico, poeta, jornalista e pensador cubano,

mártir da independência de seu país em relação ao domínio espanhol

índice6 A juventude teatral de algumas das quebradas do Brasil e sua produção artística

Em Medellín, na Colômbia, a Corporação Cultural Nuestra Gente, incide diretamente nas políticas públicas em cultura de sua cidade e país 10

8 Saiba de onde vieram os grupos que participaram do 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo

18 Os quatro anos da Rede Latino-americana de Teatro em Comunidade

21 Adhemar Bianchi fala sobre os 30 anos do grupo argentino, Catalinas Sur

29 Ideias e ações no Fórum: Nossa Pátria é o Teatro – Transformando com nosso corpo continente

27 Há uma década o Centro Cultural Arte em Construção faz a diferença na Cidade Tiradentes, em São Paulo

32 A troca de experiências realizadas nos Intercâmbios do 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo

34 Os espetáculos teatrais do 5ºEncontro de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo em imagens

13 Já no Brasil, uma opinião direta de como caminha a política cultural do país

36 No Peru, a intrínseca relação entre arte e território no trabalho do grupo Vichama

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Café Memória: memórias e identidades reunidas e compartilhadas

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Pantolocos e Palombar: o Circo no Brasil e na Colômbia

46 Em Belém, o projeto Rios de Encontro

48 Grupo Vivarte: a experiência de teatro comunitário na floresta

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Notícias do 13º Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua

52 A revolucionária proposta da Universidade Popular de Arte e Ciência

16 Duas visões sobre o processo vivenciado em La Paz, na Bolívia, durante a realização do I Congresso Cultura Viva Comunitária

ExpedienteEdição: Christiane GomesDiagramação e Arte Gráfica: Dedê Paiva Fotos: Tatit Brandão Revisão: Estela Carvalho

Elaboração, Realização e Distribuição:

Instituto Pombas Urbanas Avenida dos Metalúrgicos, 2100 -

Cidade Tiradentes - São Paulo - SP. Tels: (11) 2285.5699 I [email protected]

www.pombasurbanas.org.br Distribuição gratuita - ISSN 2318-9347

Há um processo em curso na América Latina. Ele não acontece sob os holofotes da televisão ou com a bênção das grandes corporações econômicas. Tampouco recebe os louros do poder público com investimentos milionários de leis de incentivo.

Este processo já vem acontecendo há décadas. É realizado por mentes, corações e corpos que sabem que o poder transformador da arte é algo que não tem volta: vem pra ficar. Nele, o protagonismo é da comunidade. Nele, as estrelas são homens, mulheres, jovens de todas as idades que desenvolvem um fazer artístico comprometido com o território em que vivem. Este processo acontece nas periferias de grandes centros urbanos, na floresta, em áreas de mananciais, onde tem povo, onde tem gente, onde tem comunidade!

Nesta terceira edição da Revista Semear Asas, temos a honra e a alegria de apresentar uma parte destes processos. Alguns puderam ser compartilhados e conhecidos nas atividades do 5º Encontro de Teatro Comunitário de Jovem da Cidade de São Paulo, realizado em setembro de 2013, na Cidade Tiradentes, extremo leste da maior capital da América Latina; outros tantos seguem sendo desenvolvidos em terras latino-americanas, nas quebradas deste grande mundaréu, mostrando, para quem quiser ver, ouvir e sentir a potência de uma produção artística comprometida com seu território.

Apenas com raízes fincadas em nossa terra é que podemos voar para o mundo. Comunidade, vínculo e trabalho em rede: é isso que levamos para a ação e o coração. Afinal, nossa pátria é o Teatro!

Somos todos uma multidão polifônica de cantos, cores, toques, sentidos e intenções que dia a dia faz a utopia presente em seus territórios, construindo vínculos e fortalecendo práticas neste fértil caminho do teatro em comunidade.

parceriaapoio institucional

patrocínio co-patrocínio realização

Noss

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A criação dramatúrgica dos jovens atores e atrizes de distintas periferias no BrasilQuem pensa que não há pesquisa nestes grupos, se engana!

Filhos da Dita

Em Mogi das Cruzes, região metropolitana de São Paulo, dois jovens nada perdidos se juntam e se propõem a manter vivo o espetáculo teatral que criaram, apresentando onde forem chamados, inclusive numa represa da zona sul de São Paulo, onde provavelmente encontrarão outros jovens que pesquisam e representam as histórias de uma comunidade que vive à margem da cidade. Num outro extremo da capital paulista, no bairro Cidade Tiradentes, outros jovens estão de olhos e ouvidos atentos para representarem o cotidiano do bairro onde vivem. Isso é o que acontece diariamente num beco de Belo Horizonte, onde, em dia de espetáculo, a comunidade se arruma e vai se ver representada. Qualquer semelhança não é mera

coincidência. Esses quatro grupos: Cia do Esculacho, Humbalada, Filhos da Dita e Casa do Beco, possuem em comum, além do amor ao teatro, a decisão de criar sua dramaturgia a partir de seu território: a periferia.

A palavra dramaturgia vem do idioma grego e significa ação. O jovem que quer fazer teatro na periferia tem de estar sempre em ação para existir e resistir, certo? Ou seja, este jovem é um dramaturgo, cria, produz e atua nesse espaço que lhe serve de inspiração. Entendemos então, que esses processos são tão dinâmicos e particulares, como a própria Vida! Não há uma pesquisa linear ou uma fórmula, mas nem por isso, as criações são superficiais. O que acontece é que não conseguimos nos encaixar em nenhum adjetivo ou metodologia teatral. Somos abusados mesmo, inventamos e reinventamos nossos processos e, no final, o mais legal é que cada um que vê, o relaciona a partir de sua experiência. Somos atores periféricos, moradores das comunidades e isso nos dá características próprias também enquanto fazedores, produtores e criadores de um processo artístico.

Somos sujeitos periféricos, marginais e percebemos que o contexto e o território de cada coletivo são decisivos nesse processo. Além de fortalecerem a identidade desses grupos, também influenciam no processo de criação dramatúrgica, pois definem, inclusive, o modo de produção artística, de conteúdos e de conhecimento inerentes a montagem de uma obra teatral. O espetáculo é um meio de valorizar as comunidades, resgatar memórias e denunciar.

Casa do Beco - “A pesquisa que nós propomos em nossos trabalhos parte através do dia a dia e dos conflitos diários vividos na comunidade”.

Para os jovens da Cia do Esculacho (Mogi das Cruzes), o teatro transforma quem faz e quem assiste

O grupo Casa do Beco atua na periferia de Belo Horizonte (MG)

Ainda assim, muita gente se pergunta: “É possível jovens de periferia, tidos como violentos, marginais, vândalos e desordeiros, produzirem arte?”. É necessário responder? #ficadica.

Fique atento:Casa do Beco: http://www.casadobeco.org.brCia Humbalada: http://ciahumbalada.blogspot.com.br/Cia do Esculacho:http://doishomenseumsapato.blogspot.com.br

Os Filhos da Dita são jovens artistas, atrizes e atores, filhos das “ditas” mães solteiras e desamparadas, filhos de uma “dita” nação de todos, filhos de uma “dita” cultura valiosa, porém desvalorizada cotidianamente. São filhos de Pombas Urbanas, gerados de um processo artístico coletivo, humano e concreto, que escolheram, como forma de existência e resistência no mundo, o Teatro

filhosdadita.wordpress.com

Finalmente, podemos dizer que esses processos de criação dramatúrgica também refletem a realidade. São fragmentos poéticos que, recheados de expressividade, do desejo de liberdade, da musicalidade, de dores e cores do ser humano, arriscamos representar nesse grande palco chamado Teatro! Buscamos compreender a diversidade de coisas que nos rodeiam e, para além de repetirmos processos já existentes, estamos a representar para propor a transformação. Nesse sentido, nossas armas e estratégias de combate são os nossos espetáculos, a Arte e nossas ma-neiras coletivas de criar e viver.

O Humbalada (Jardim Primavera) vem da zona sul da capital paulista, de uma área de mananciais

Os Filhos da Dita (Cidade Tiradentes) em cena do espetáculo A Guerra

Cia Humbalada – “Em um projeto de formação de público em uma escola do Grajaú, apresentávamos cenas fragmentadas e os alunos comentavam. Nessa época começamos a nos preocupar com qual era a plateia pra quem apresentávamos e como ela influenciava nosso trabalho. Hoje entendemos que a forma (fazer teatral) vem a partir da preocupação com o público. Não nos perguntamos como estamos fazendo e sim para quem estamos fazendo”.

Cia Humbalada – “A gente é contra a domesticação do público; contra a ideia de que eles têm que ficar sentados em silêncio. A gente sempre foi o oposto disso. Esse público, que se manifesta durante o espetáculo, tem muito mais graça do que aqueles que sentam e fazem cara de paisagem, podemos dizer com todas as palavras que a gente não faz teatro pra quem faz teatro, mas sim para quem nem gosta de teatro e pra quem nunca foi ao teatro”.

Cia do Esculacho - “O que nos move é acreditar. Nós acreditamos muito nesse espetáculo (Dois perdidos). Acreditamos pra caramba! Acreditamos nos seus personagens. Acreditamos uns nos outros”.

Outro importante aliado é o público. Em todos os coletivos é clara a decisão por fazer teatro para quem geralmente não o vê.

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Saiba de onde vieram os grupos que participaram do 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo

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Entre a REPRESENTAÇÃO e o APLAUSOA experiência do Nuestra Gente, de Medellín, na Colômbia, que a partir de sua organização cultural conseguiu incidir nas políticas públicas da cidade e do país

Jorge Blandón

Viver a democracia, hoje, implica uma nova compreensão do mundo atual, segundo a qual se faz necessário e justo valorizar um sujeito de direitos, um cidadão com plenos poderes, um ser vivo que se compromete com suas próprias transformações, sejam elas de ordem social, cultural, educativa, ambiental, política, econômica, estética ou ética. Este sujeito político vê o mundo com o frescor da manhã e o calor do entardecer a partir de qualquer janela virtual. Este é um ponto de chegada desejado que, apesar de estar sendo construído, ainda tem muito que conquistar.

No começo dos trabalhos da Corporação Cultural Nuestra Gente, em 1986, tudo o que sabíamos da democracia era que ela tinha cores vermelhas e azuis e que seu assunto principal era a representação. Em nosso país, até então, era proibido sonhar. As palavras “esperança” e “liberdade” estavam vetadas, a política

Caro leitor, a partir de agorafalaremos um pouco sobre a atuação de grupos artísticos na incidência de políticas públicas em cultura. Por isso, é importante que você saiba:

O Programa Cultura Viva foi criado em 2005 pelo Governo Federal para reconhecer, apoiar e fomentar grupos e iniciativas culturais brasileiras das mais diversas linguagens, promovendo maior democracia cultural em todo território nacional. Após 10 anos de implantação do programa, com mais de 3 mil pontos reconhecidos e articulados em uma grande rede colaborativa, o Programa inspira políticas públicas em toda América Latina. No Brasil, a proposta é que deixe de ser uma política de governo e se transforme na Lei Cultura Viva. Aprovado na Câmara dos Deputados, até o fechamento desta edição, seguia aguardando a análise do Senado.

Plano Nacional de Cultura - é um instrumento de gestão brasileiro, de médio e longo prazo das políticas públicas de cultura, com duração decenal, segundo a Constituição Federal de 1988. O PNC é elaborado conjuntamente entre o poder público e representantes da sociedade civil - o qual objetiva orientar a implementação das políticas culturais e assegurar a continuidade enquanto política de Estado - promovendo, assim, a participação popular, a descentralização dos recursos federais e protegendo a diversidade cultural brasileira.

Congresso Cultura Viva Comunitária - Evento

realizado em maio de 2013 em La Paz,

na Bolívia e que reuniu mais de 600

representantes de todos os países da

América Latina, participantes de redes

de organizações de cultura comunitária.

A Campanha Continental Cultura

Viva Comunitária busca destinar

legalmente um mínimo de 0,1% do

orçamento público para o fazer cultural

autônomo e protagonista, potencializando

os pontos de cultura existentes em cada

país da América Latina.

era feita por alguns senhores que, por sua vez, tinham herdado o poder de seus pais, em uma sucessão infinita de poder corrupto. Na Colômbia, vimos de perto o massacre a um partido político de oposição. Assim, fomos entendendo que a participação política a qual estávamos acostumados, a chamada representativa, significava que “todos” (na Colômbia o voto é facultativo e as eleições têm um índice de abstenção 65%, em média) votavam.

Naquela época, a vida era medida pelo número de massacres e todos estávamos à mercê do terror e da miséria. Somente quando nos unimos a outras pessoas, fomos entendendo que a ordem estabelecida era imposta de fora, que as receitas para nossos países vinham de outros lugares, que as mensagens eram claras e a dívida externa, impagável. Percebíamos que conseguir vida digna para nossas famílias era cada vez mais difícil. E ainda assim, com esse contexto social, econômico e político, tomamos uma decisão: criar uma organização cultural. Um lugar de viver em comunidade, de memórias, encontros e espaço para as palavras que deram razão a uma real democracia!

E, ao abrir aquele espaço cultural, social e comunitário, nos demos conta de que não existiam estímulos diretos para a participação. Havia alguns senhores que faziam política e que intermediavam a necessidade da população com o governo, negociando auxílios que vinham dos parlamentares. Não estávamos de acordo com essa forma de fazer política, porque ela vinha de uma concepção influenciada por clientelistas e narcopolíticos.

Desejávamos ser protagonistas de nossa própria realidade. Era preciso resistir, insistir e persistir para que o nosso tempo chegasse. As formas mais solidárias que aprendemos naquele tempo foram a troca, o boca a boca, o somar de sonhos de todos, o caminhar pelas ruas com nossos pares. Entendemos que tudo deveria ter um tempo de autogestão, de autocrítica, de autodeterminação, de autoestima e de autonomia.

O país ia-se enchendo de outras vozes, ruídos, bombas, disparos, escuridão e delírio. E, no meio de tudo isso, mobilizações que pediam mudanças na ordem estabelecida, uma nova constituição que desse lugar a uma forma diferente de participar, de decidir e eleger mecanismos de participação cidadã, por meio dos quais os “sem voz” fossem ouvidos.

E com essa nova Constituição, promulgada em 1991, veio a “maioridade” para a cultura, quando se assumiu a Colômbia como uma nação pluriétnica e cultural, condição que, além de enriquecer o país em sua diversidade, constituiu-se como um novo desafio em todas as comunidades e grupos étnicos do país, dando-se forma ao reconhecimento e ao respeito ao direito às diferenças.

Localizada no bairro de Santa Cruz, periferia de Medellín, a Casa Amarela é a sede do Nuestra Gente e referência para a comunidade

Cortejo nas ruas do bairro de Santa Cruz reúne toda a comunidade. O trabalho artístico trouxe a necessidade de se lutar também por políticas públicas

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Neste momento, a Colômbia vive uma mudança importante. Para que possamos compreendê-la, creio ser necessário retomar as palavras de nosso amigo e professor Luis Alfredo Atehortúa Castro: “É conhecido, de antemão, que a ideia e definição que se tem de política pública está medida por razões e interesses de diversas índoles. Há razões de ordem acadêmica, ideológicas e, sobretudo, políticas. Em uma visão tradicional, de cunho positivista, a política pública se reduz aos assuntos de Estado e do governo. Para os autocratas ou técnicos das burocracias, sempre será mais conveniente que se siga acreditando que o que se concede ao público se esgota nas decisões de quem governa, sem nenhuma influência dos governados”.

O país começava, então, a colocar em prática uma cidadania cultural. Mulheres e homens que por longos anos incentivaram processos socioculturais começaram a compreender que, para falar de políticas públicas de cultura, é necessária uma intervenção, ou melhor, uma incidência na comunidade, uma cidadania ativa que, em nosso caso, era real, de carne e osso, já que íamos ao centro administrativo municipal do bairro, viajávamos à capital, Bogotá, para participar de marchas e dos debates sobre a cultura da vida e da paz. Outro momento absolutamente esclarecedor para a Corporação Cultural Nuestra Gente foi nossa participação ativa, em conjunto com outras organizações, nas discussões públicas para a criação da Lei Geral de Cultura, promulgada em 1997 e que estabelecia como assunto primordial a criação do Ministério da Cultura. Ali iniciamos uma intensa tarefa de trabalho pelos direitos culturais das crianças, adolescentes e jovens, de maneira que eles incidissem nas políticas culturais para que elas fossem mais públicas e abertas, que a voz adulto-centrista não fosse a que seguisse imperando e que as vozes desta nova infância, reunidas em torno da Rede de Organizações Culturais da Infância (ROCIN), programa da Direção de Infância do Ministério da Cultura de

influi no desenvolvimento de uma pessoa? Como a formação artística contribui para a transformação social?

Nesta perspectiva, o coletivo foi permeado por crianças, adolescentes e jovens que contribuíram para que houvesse mais clareza pedagógica, técnica e organizacional. Houve também a compreensão no sentido de tornar as políticas mais públicas, com uma forte incidência para a transformação social em que a arte e a cultura sejam o centro de compreensão para o desenvolvimento humano.

Para a Corporação Cultural Nuestra Gente, todos estes processos de formação artística têm como característica fundamental ser a base cultural e comunitária, ou seja, eles respondem às necessidades e realidades das comunidades que, de forma voluntária, decidem aproximar-se de práticas artísticas, adaptando-as dentro de seu cotidiano e protegendo-as em seus espaços públicos.

A arte se faz dentro de suas próprias realizações. A aposta é formar sujeitos autônomos e com capacidade para incidir na esfera pública e nos processos sociopolíticos que acontecem em seu território. Para conseguir isso, é necessário garantir presença, protagonismo, autonomia, empoderamento e trabalho em rede.

Tudo o que aconteceu conosco reafirma que devemos ser conscientes da importância de estarmos juntos. É isso que nos possibilita incidir em novas políticas públicas, entendidas como uma expressão que privilegia a cultura, em vez de produtos. Uma cultura que vive e se renova permanentemente nas comunidades, com a contribuição das pessoas que lá vivem, na ideia de que todos produzem cultura e, assim, constroem seus territórios. Um marco deste processo é a atual Campanha Continental da Cultura Viva Comunitária. Uma política pública construída a partir das necessidades das pessoas e que reafirma uma

Colômbia, fossem ouvidas.

Nesta perspectiva, a ROCIN foi muito importante, já que

este foi um espaço reconhecido como o componente cultural da

política do Faça Paz, coordenada pelo Instituto Colombiano de Bem-Estar e Família (ICBF).

A um grupo de jovens de Medellín e do estado de Antioquia somaram-se os que fazem parte de Nuestra Gente, além de outras organizações e atores sociais, e juntos fizeram parte dos forúns e propostas para a política pública de infância e juventude de Antioquia. Este trabalho coletivo tornou possível que as novas gerações dos processos formativos da Corporação Cultural Nuestra Gente façam perguntas como: por que a arte? Por que a arte na sociedade e na comunidade? Em que a arte Jorge Blandón

forma de governo que recupera a relação do Estado com as comunidades a partir do reconhecimento e incentivo aos processos sociais de caráter cultural em que as pessoas são as protagonistas na melhoria de suas condições de vida.

Vamos avançar, depois não conseguirão nos fazer retroceder!

Escutei essa frase em um ensaio do diretor Amir Haddad com o grupo Tá Na Rua em uma praça do Rio de Janeiro, entre mendigos e loucos, em 2003, início da gestão do presidente Lula e do Programa Cultura Viva. Avançamos. Isso é inegável, mas é hora de reconstruir nosso caminho enquanto caminhamos, para que possamos seguir avançando.

Há alguns anos a sociedade civil vem sendo chamada pelo Governo Federal para o diálogo na construção de políticas de Estado para a Cultura. Nesse sentido, assistimos, no decorrer dos últimos dez anos, à criação do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e à construção do Plano Nacional de Cultura (PNC). Entretanto,

Jorge Blandon é professor de Artes Dramaticas, co-fundador da Corporacion Cultural Nuestra Gente de Medellin - Colômbia, articulador da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade e da Plataforma Ponte Cultura Viva Comunitaria Valle de Aburra - Colombiawww.nuestragente.com.co

Meninas participam de cortejo de abertura do 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade Tiradentes - SP: é até a comunidade que as políticas públicas devem chegar

Adriano Mauriz

O seguinte é esse:

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apenas recentemente, em 6 de setembro de 2013, o governo do estado de São Paulo aderiu ao SNC, e só em agosto de 2013 a Lei Cultura Viva foi encaminhada ao Senado.

E como está o andamento das metas do PNC, se o que vemos é a redução do orçamento público? Qual é a agenda política do atual governo e o que ela tem a ver com as metas que os movimentos culturais trabalharam para construir? Vale Cultura, arenas da Copa, CEUs da Cultura, Procultura – esses programas NÃO chegarão a nossas comunidades. Como serão geridos os Fundos de Cultura se a própria cidade de São Paulo e o estado sequer têm Conselhos de Cultura?

Sentimos o descaso com que aqueles que dão as cartas na política de Estado na área de Cultura se relacionam conosco, e concluímos: somos o cocô do cavalo do bandido que fugiu... A percepção é que o Ministério da Cultura é somente uma moeda de troca para adequar os interesses dos politiqueiros de plantão, e nossos sonhos ficam a serviço desses joguinhos de poder.

Diante essa percepção, questionamos: temos mesmo um diálogo com o governo para a construção de

“Queremos, exigimos uma participação verdadeira.

Contagiar a todos a partir de nossa ação,

que é verdadeiramente transformadora, e

transmitir o encantamento e a crença na utopia

do presente”

políticas de Estado ou fomos usados?Queremos, exigimos uma participação verdadeira. Contagiar a todos a partir de nossa ação, que é verdadeiramente transformadora, e transmitir o encantamento e a crença na utopia do presente.

Mas, infelizmente, hoje vemos que alguns amigos estão enfermos, sofrendo de “conferencite”, “conselhovite”,

“politicarreia”, entre outras patologias transmitidas pelo Estado de desânimo governamental.

Mas, não podemos dirigir nosso inconformismo apenas ao governo federal: também há os vários anos da gestão estadual, encerrada nos editais do Programa de Ação Cultural (Proacs) e de uma esperança engasgada de diálogo com o município. Essa política de editais não dá conta da demanda da sociedade e, pior, só nos coloca em situação de disputa.

Porém, nossa natureza não se engana. A insatisfação e indignação contidas extravasam de muitas formas. Somos artistas e nosso instinto é expressar e comunicar, de forma verdadeira, amorosa e algumas vezes até violenta, o que o sistema tenta esconder.

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Somos essa alegre rebeldia!

Estamos em sintonia com a revolta que tomou o povo brasileiro no ano de 2013 e que não dizia respeito apenas ao valor da passagem de ônibus, mas aos valores que realmente importam.

O povo brasileiro quer ser tratado com dignidade!

A cultura que realmente dialoga com o ser humano já é politica por si só; por isso, sem dúvida cada artista de rua, cada teatro comunitário e cada mestre popular já realiza muito mais que o Ministério da Cultura.

Nossos grupos fortalecem suas comunidades criando “uma nova cultura política” que transforma as relações humanas. Uma verdadeira revolução, pois acreditamos que ela acontece a partir das práticas culturais inseridas na vida cotidiana da sociedade. Utopias vividas nas rodas de conversa, na busca coletiva para solucionar problemas comuns, no afeto incondicional, na fé na vida!

E assim os coletivos ultrapassam seus próprios territórios, reunindo cada vez mais movimentos, redes, caravanas culturais, como a Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), que se reúne duas vezes por ano de forma independente, com recursos próprios, em diferentes estados do país, e que prolifera como um vírus da ação artística, aparecendo todos os dias novos grupos que levam seus trabalhos para o público de forma gratuita. Podemos lembrar também das caravanas de vários países que cruzaram nosso continente rumo a La Paz, na Bolívia, para o Congresso Cultura Viva Comunitária, que, como em um assalto poético, conclamaram aos seus governantes: queremos 2% do orçamento dos países para a Cultura! Por meio do diálogo, entendemo-nos cada vez mais, crescendo de forma horizontal. Assim como os pontos de cultura, que no III Fórum Paulista dos Pontos de Cultura, na Conferência Livre Cultura Viva, tiveram a coragem de destituir definitivamente a representação dos pontos de cultura no estado de São Paulo. E a Rede Latino-Americana de Teatro Comunitário, que, durante o 5° Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo, posicionou-se contra a verticalização do Movimento Cultura Viva Comunitária na América Latina. Cada um de nós é representante dessa teia.

Quando essa cultura é viva, pulsante, ela é o povo e o povo somos nós. Seguimos avançando e nada nos detém. Nem a mais tacanha politica pública voltada apenas para a economia da cultura, eventos e suas festinhas da moda.

Lamento o panorama que a política pública aponta e aproveito para compartilhar mais um “causo”: um dia desses, tive a oportunidade de conhecer um importante gestor público que tinha a incumbência de zelar por muitos problemas da cidade. Em nossa conversa, ele me disse que não podia fazer nada pela Cultura, já que tinha outros problemas muito mais urgentes, como, por exemplo, as enchentes. E comentou comigo algo mais ou menos assim:

“Os rios não foram feitos para serem canalizados, porque eles mudam constantemente seu curso conforme a força da água; quando influímos nisso e tentamos mudar sua natureza, cria-se um problema que não seremos capazes de resolver nunca. Eles inevitavelmente transbordarão e eu, como gestor, não posso fazer nada a não ser limpar seus estragos”.

Esse pobre homem me dizia que nada pode diante da grandeza da natureza. Pena que é ele o responsável por isso e que em São Paulo o rio está cheio de merda... “Ninguém te ama em SP” seria uma boa campanha de marketing para esses gestores.

Mas... Seguimos fazendo o que sempre fizemos, continuamos avançando e o governo, que não conhece nossa natureza, vai ficando para trás nessa história.

Não somos eixos paralelos, e sim afluentes desencanados que fluem, e nenhum obstáculo pode nos parar. Irrigamos e nas cheias vemos muitos cardumes que, mesmo sem líder, mudam de direção conforme seu instinto de sobrevivência.

Mais uma vez me lembro do Amir: Somos a Peste! Teatro é filho da história, não da ideologia!Evoé!

Adriano Mauriz é ator do grupo Pombas Urbanas

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E OS TAMBORES ECOAM NA AMÉRICA LATINA

Baby Amorim

Em 17 de maio de 2013, representantes dos Pontos de Cultura do Brasil chegaram em La Paz, na Bolívia, para vivenciar a arte e a poesia do I Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária. Entre eles, o ponto de cultura Ilú Ònà Caminhos do Tambor, da instituição Ilú Obá De Min – Educação, Cultura e Arte Negra.

Caravanas de 17 países latino-americanos invadiram as calles (ruas), teatros, saguões e praças de La Paz, somando mais de 1.500 atores culturais. O assalto poético da vida, da interculturalidade, da troca, dos saberes e da ousadia; a cultura latino-americana pulsando; a cultura viva brasileira mais viva que nunca, aproximando-nos dos nossos pares, criando laços e fortalecendo as redes interculturais.

Foi este o clima que nos tomou de assalto e, nesse cenário, o Ilú Obá De Min pôde, por cinco dias, vivenciar as tradições locais, a diversidade, as redes culturais, as trocas, a reflexão sobre os desafios da cultura na América Latina e colaborar na produção de documentos. Pudemos também nos “esperançar” e nos espelhar em realidades bem próximas da nossa e em sonhos tão parecidos.

A presença feminina do Ilú Obá De Min em La Paz, cidade rica em tradições e abençoada pela Mãe Terra, nos fez pensar em diversas questões, como o nosso papel enquanto ponto de cultura, agentes culturais de transformação social; a defesa do Programa Cultura Viva, a força do nosso projeto no território local, no estado, no país, na América; e nos avanços e retrocessos das políticas culturais brasileiras. Também nos abriu caminhos para a interlocução com grupos culturais, entre eles o Parío Paula, do Peru, com o qual desejamos fortalecer o diálogo intercultural, pela semelhança dos trabalhos desenvolvidos em nossas instituições.

O I Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária foi, sem dúvida, um momento de avanços e resultados para a cultura na região, com o lançamento da Frente Parlamentar Latino-Americana de Cultura Viva Comunitária, a Rede de Gestores, a Declaração de La Paz e pelos compromissos assumidos por diversos gestores presentes, o que, inevitavelmente, fez-me refletir, enquanto coordenadora do Ponto de Cultura Ilú Ònà e integrante da extinta Comissão Paulista dos Pontos de Cultura, acerca do desmonte do programa em nosso país. Não queremos o redesenho do Programa Cultura Viva: ainda clamamos pela sua continuidade e pelo retorno de todas as ações que ele compreendia. Ainda aguardamos a aprovação da Lei Cultura Viva. Ainda aguardamos pelos novos editais.

O programa do ex-secretário Célio Turino ganhou a América, mas por aqui segue na UTI e sobrevive graças à nossa crença nessa potência. E está ligado aos fios de esperança dos militantes culturais que veem o programa como um marco na política cultural do Brasil.

Baby Amorim é coordenadora de projetos do Ilú Obá De Min e produtora cultural

www.facebook.com/pages/Ilú-Obá-de-Min

As mulheres do Ilú Obá de Min ocuparam as ruas de La Paz, durante o I Congresso Cultura Viva Comunitária

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povos, sem discriminação de raça, credo, gênero, posicionamento político-partidário e condições sociais.

Acredito que esta vivência nos permitiu reconhecer os deslocamentos de emoções, a importância dos intercâmbios e o protagonismo, com liberdade, principalmente dos jovens e adolescentes, na terra alheia.

Destaco o profundo respeito à ancestralidade dos povos latinos, como fonte de afirmação e reconhecimento dos espaços comunitários, que nos atualiza e nos ressignifica, e que abre uma integração da América Latina por meio da cultura.

Subimos e conhecemos a cidade de El Alto, originalmente um subúrbio-satélite da cidade de La Paz que em 1986 tornou-se município, com expressiva diversidade cultural a partir da imigração. Em El Alto dançamos, cantamos, nos abraçamos, poetizamos e nos reconhecemos potentes guerreiros que, em um grande cortejo com todos os participantes do Congresso, desceram rumo à capital boliviana, em uma caminhada de quase dez horas, ditando que a poesia, a arte e a cultura precisam ser fortalecidas e valorizadas na vida dos bolivianos e latinos.

A UNIÃO DA CULTURA INDÍGENA LATINO-AMERICANA

Vera Cristina Athayde

Ao sair da Aldeia de Carapicuíba, em São Paulo, para o Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária na Bolívia, na cidade de La Paz, ultrapassamos uma fronteira traduzida por sonhos e possibilidades culturais, por meio de uma construção coletiva revelada por um pensar, um fazer e, mais, um forte pulsar das memórias afetivas jamais esquecidas e fortalecidas pela expressão cultural de uma comunidade indígena que estava indo ao encontro do povo boliviano.

Foi um bailado no cotidiano, nos encontros festivos, nas construções de políticas culturais e espaços abertos para o afeto. Essa vivência foi composta por adolescentes, jovens e educadores do Ponto de Cultura OCA Escola Cultural, situado na Aldeia de Carapicuíba, em rede com diversos setoriais de cultura e pontos de cultura latinos.

Assim, no papel de dançarina-pesquisadora e educadora da OCA, compartilhei e intensifiquei um especial convívio social, trocas de saberes, louvação à natureza, leitura de mundo, valorização do afeto e, por fim, a desconstrução de barreiras de qualquer convivência, histórias pessoais e coletivas de todos os universos simbólicos presentes neste congresso, como foco desta relação em rede. Rede que se constituiu em um território de valorização da humanidade dos

Vera Cristina Athayde é dançarina, pesquisadora, arte-educadora e coordenadora do Centro de Referência da Cultura Brasileira da OCA – Escola Cultural

www.facebook.com/pages/OCA-Escola-Cultural

1918

como, por exemplo, no Encontro de Teatro Comunitário, em Medellín, na Colômbia, organizado pela Corporação Cultural Nuestra Gente; ou durante processos de cursos e intercâmbios, como a formação em Stanislavski coordenada pelo diretor cubano Rolando Hernandez junto ao Pombas Urbanas. Outro momento fundamental foi a montagem de El Quijote, em 2009, ousada iniciativa que culminou na produção de um épico, clássico da literatura mundial, feita coletivamente por atores, atrizes e musicistas de grupos de diversas regiões da América Latina. Este trabalho coletivo gerou o encontro Sanchos e Quijotes, que aconteceu em 2011, em Medellín.

“Encontramo-nos, por partes, em diversos lugares da América Latina. Mas este momento é muito especial porque a Rede completa quatro anos e chega a hora de fazer uma avaliação do que temos feito e acredito que foi muito satisfatório e pleno saber que os grupos, em suas comunidades, estão crescendo e ganhando visibilidade; e outros que não sabiam da existência deste trabalho estão ganhando consciência”, conta Cesar Escuza, do grupo Vichama, de Lima, no Peru. (Confira artigo sobre os 30 anos do grupo na página 36).

É importante destacar também que o processo de construção da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade, na verdade, é algo que data de antes de 2009. Ele é fruto de um mecanismo de produção alternativa que acontece entre as comunidades, por meio de encontros e articulações regionais e nacionais em que, desde a criação até a difusão, a obra teatral vem acompanhada de uma pedagogia própria, que traz amadurecimento das experiências de gestão da comunidade. Um trabalho que vai muito além do teatro: engloba também a responsabilidade com os vínculos comunitários, fazendo da arte uma potente ferramenta de transformação social.

UTOPIA PRESENTE, ATIVA E COMUNITÁRIA

Depois de quatro anos de sua formação, Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade se reencontra e fortalece suas estratégias de ação

Christiane Gomes

Era setembro de 2009, nos dias que antecedem a primavera. No extremo leste da cidade de São Paulo, mais especificamente no bairro de Cidade Tiradentes, diversos grupos de teatro comunitário da América Latina estavam reunidos para a realização do 1º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo, organizado pelo Instituto Pombas Urbanas. Neste encontro de almas e corações que levam e constroem juntos o fazer artístico em suas comunidades, nasceu a Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade, uma articulação que, como o próprio nome diz, se desenvolve em todo o território da América Latina, com o objetivo principal de fortalecer o fazer teatral nas quebradas do mundaréu.

No 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo estiveram presentes grupos de 11 países latino-americanos, além de outras seis companhias de teatro do Brasil. Nestes dias, as reuniões avaliaram os trabalhos e ações dos quatro anos de formação oficial da Rede além de planejar os próximos passos e ações. Mas, quem acha que desde a sua criação, em 2009, até este reencontro em 2013 nada aconteceu, se engana. Muita água passou por baixo desta ponte. Ponte que interligou países e trabalhos que, apesar de separados geograficamente por grandes distâncias e distintas realidades políticas, sociais e econômicas, estão próximos por suas ações e pela certeza de que a arte para a, com a e na comunidade é um caminho que se faz ao andar.

Neste sentido, diversos países conseguiram impulsionar a Rede com ações de distintas naturezas, desde criativas, de formação, até de articulação política. Este fomento ocorreu em reuniões intergrupos, realizadas em outros encontros e festivais promovidos em terras latinas,

Isso foi sendo espalhado em um processo orgânico, quase natural, que culminou na formação da Rede. “A possibilidade de fazer coisas articuladas é muito melhor do que estar só. É um princípio fundamental de nosso trabalho”, afirma o colombiano Orlando Cajamarca, do grupo Esquina Latina, de Cali, que em 2013 completou 40 anos de trabalho teatral na comunidade.

A Colômbia tem uma experiência grande em trabalho em rede por conta da Rede Colombiana de Teatro em Comunidade, em curso há dez anos. Orlando conta que essa articulação é uma experiência extremamente positiva, porque traz a possibilidade do encontro e do reconhecimento das diferenças. Além disso, ensina, pois com o tempo houve o entendimento de que o excesso de formalidade poderia engessar as ações. Horizontalidade e ausência de linhas pré-definidas são a marca da experiência colombiana. “Há processos bem diferentes se pensarmos em distintas cidades como Bogotá, Medellín e Cali. A mim me interessa nos encontrarmos e fazermos atividades em conjunto, mas que cada grupo resolva suas coisas, sem manuais padronizados”, pontua Cajamarca.

No Peru, outro país com vasta experiência em rede nacional, Cesar Escuza, do Vichama, conta que os processos também são orgânicos e dinâmicos: “Uns grupos chegam, outros se distanciam para refletir. É um permanente processo em construção e um espaço de encontro”.

Inspiração para os brasileirosA atriz Nikka Barros, do grupo Piollin, de João Pessoa, conta que a experiência da Rede Latino-Americana foi inspiradora. Ela teve o primeiro contato com a organização quando esteve em um encontro com o Nuestra Gente, em Medellín. Mas foi o 5º Encontro que trouxe a possibilidade de amadurecer esse conhecimento. “Foram dias muito produtivos. Tivemos conversas significativas que fizeram com que eu entendesse melhor o que é a Rede , a importância dela, o diálogo proporcionado entre países. Estarmos juntos e percebemos que temos muita coisa em comum e, quanto mais a gente se encontra, mais temos esta certeza. Existe uma essência que nos une, apesar das particularidades.”

Vinda da capital do Acre, Rio Branco, do grupo Vivarte (depois vai lá na página 48 para saber mais sobre o teatro na floresta), Dani Mirini engrossa o coro: “Estar em rede é fortalecer tudo. Com a troca a gente vê que não está só. Nosso foco é a comunidade. Isso nos une. Seja na cidade ou na floresta, nosso foco maior é o teatro e a comunidade. Por mais diferenças que tenhamos, encontramos elos que nos unem e criamos vínculos afetivos e artísticos”.

Toda esta atmosfera semeou nos grupos brasileiros presentes o entendimento da importância desta articulação acontecer, também, em nível nacional.

Neste encontro, diversas gerações do teatro comunitário estiveram juntos e fortaleceram a organização da Rede

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o desenvolvimento das comunidades. Difundir essa compreensão é um desafio para a Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade. A cultura forma seres críticos e é a que recebe os menores orçamentos”, afirma Juliana Flory.

Outra estratégia clara de ação também foi traçada pelas cabeças e corações pensantes da Rede: a Escola Aberta da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade, vislumbrada como um espaço amplo de aprendizagem que inclua processos de formação entre os coletivos que integram a Rede.

Há um desafio interno nos grupos: conseguir vencer a sobrecarga de trabalho, a falta de estrutura e os “leões” que se têm de matar diariamente para fazer com que os trabalhos nas comunidades avancem. Mas, não há dúvidas de que nessa luta há uma poderosa arma: o amor, o afeto, a esperança. E foram estes os valores que permearam as discussões deste encontro de quatro anos da Rede.

Nesta caminhada, a internet é um instrumento para realizar discussões, produzir conteúdos para seguir fortalecendo a articulação enquanto o próximo encontro presencial não acontece. Afinal, a Rede não para. Na comparação de Cesar Escuza: “É como os neurônios do cérebro: um sozinho não faz nada, mas milhões juntos são capazes de muita coisa”.

E assim a utopia real segue seu caminho, sendo forte e presente na transformação que o teatro proporciona a todos aqueles que com ele se relacionam.

organiza, o sistema engole a gente. Se estamos juntos, somos mais fortes”, acredita Dani.

Com a propriedade de quem há muito tempo trabalha de forma articulada, sendo um elo fundamental na formação da Rede Latino-Americana, Juliana Flory, do Pombas Urbanas, complementa: “A articulação em termos nacionais foi crescendo com o tempo e agora, com a Rede Brasileira de Teatro Comunitário, vamos potencializar isso. Será uma forma de atrair grupos que existem, mas que não conhecemos e que podem muito se aproximar, porque somos unidos pelo teatro comunitário. Teatro além do espetáculo, como um instrumento de crescimento humano e social das comunidades. É preciso vencer o preconceito com o teatro comunitário como se fosse algo menor artisticamente. O teatro precisa estar próximo das pessoas, não pode ser privilégio de poucos. Cada região do país, com sua especificidade, pode contribuir e fazer com que seus saberes circulem, e a rede brasileira pode potencializar isso”.

Adelante, compañeros!De volta para a América Latina, as reuniões da Rede avaliaram o que aconteceram nestes anos e foram traçadas estratégias de ação para 2014 e 2015. Há a certeza de que a Rede, para sua própria sobrevivência, precisa ser organizada de forma horizontal e sem hierarquias, evitando padrões rígidos. “Temos claro que a questão da gestão e da dramaturgia são fundamentais para o trabalho com teatro em comunidade. Queremos pensar na maneira como nos relacionamos, buscando uma linguagem comum”, defende Orlando Cajamarca.

Um dos principais desafios colocados foi a incidência nas políticas públicas como forma de viabilizar o trabalho dos grupos em suas comunidades. Para que propostas possam ser materializadas, é preciso negociar, aponta Jorge Blandón. Para ele, a necessidade não é teoria, é prática, o que significa melhores condições para que os grupos possam trilhar seus caminhos artísticos e estéticos, criando uma estrutura para que esse teatro se

O trabalho da Rede vai além do teatro, envolve formação e atuação política,

sempre tendo como sul o vínculo

comunitário

Christiane Gomes tem dúvida se é uma jornalista que dança ou uma dançarina que escreve. Fato é que desempenha as duas funções com a mesma paixão

Quer saber mais sobre a Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade e acessar o documento produzido no 5º Encontro? Fique atento: http://encontrodeteatrojovem.blogspot.com.br

Como todos sabem, o Brasil é um país de dimensões continentais, formado por muita diversidade e complexidade. Um desafio que os grupos presentes no 5º Encontro e que acompanharam as reuniões da Rede Latino-Americana toparam encarar. Assim, nasceu a Rede Brasileira de Teatro Comunitário, uma iniciativa que germinou da certeza de que a união propicia diálogo e ação. “Se a gente não se

materialize, por meio de processos de criação e de formação. Sobre este ponto, o fortalecimento da Plataforma Ponte (articulação de redes culturais e artísticas), que prevê que 1% do orçamento dos países seja destinado à cultura, é uma reivindicação da Rede . “O teatro em comunidade traz o entendimento de que o fazer cultural é fundamental para a educação, para a saúde, para

ELES VIERAM DE MUITO LONGE

Conheça mais sobre o Catalinas Sur, grupo argentino que há 30 anos trabalha com e para a comunidade do bairro de La Boca

Christiane Gomes

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Eram anos sombrios. A ditadura militar, que assolou a maior parte da América Latina na década de 1970, fazia mais e mais vítimas na Argentina, país conhecido por ter o regime ditatorial mais violento da região, com cerca de 30 mil pessoas assassinadas. Diante de um cenário tão terrível, um grupo de pais resolveu tomar uma atitude e, usando a arte, a solidariedade e o trabalho comunitário, deu início a um projeto artístico que começou aos poucos e hoje ocupa um importante lugar no coração e na alma de sua comunidade: o grupo Catalinas Sur.

Em 1983, um diretor de teatro uruguaio e pai de uma das alunas da escola Carlos de La Penna, do bairro de La Boca, periferia de Buenos Aires, quis usar a rua para fazer teatro. Na rua? – questionaram, um tanto incrédulos, os outros pais; mas, mesmo reticentes, toparam a empreitada. Assim, começaram as festas teatrais na Praça Malvinas, que culminaram no nascimento do grupo. Em 30 anos, 18 peças teatrais foram encenadas (uma até virou filme) e o trabalho para e com a comunidade de La Boca se fortalece, envolvendo gerações e inspirando grupos na Argentina e na América Latina.

Durante o 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo, a Revista Semear Asas conversou com o homem que sonhou esta utopia real e coletiva, o diretor Adhemar Bianchi, que, com a maestria e simplicidade que lhe são peculiares, compartilhou suas ideias, o começo e para onde mais o Catalinas Sur pode chegar.

Ficou curioso, caro leitor? Então aproveite e conheça mais da história deste grupo que fez e faz história no teatro comunitário, não apenas para a comunidade do bairro de La Boca, mas em todo o território latino-americano.

Revista Semear Asas – Em nossas pesquisas sobre o Catalinas Sur, descobrimos que você propôs a criação do grupo em uma associação de pais, dizendo que queria levar o teatro para a rua. Por que este desejo?

Adhemar Bianchi – Estamos falando dos anos em que ainda vivíamos uma ditadura militar. Ir para a rua ou para a praça fazer teatro significava recuperar o espaço público para criar coletivamente, além de resgatar as redes sociais, afetivas e territoriais, que toda ditadura quebra. Voltar a ocupar o espaço público com o teatro significava voltar a celebrar o estar juntos em um espaço que nos pertencia. Do grupo inicial, quase todos eram pais com filhos na escola, que se localiza bem no meio do bairro, uma urbanização essencialmente coletiva em todos os seus espaços. O próprio projeto arquitetônico contribuía para esse caráter comunitário. Assim, o processo foi natural, pois já trabalhávamos juntos em outras coisas, como compras ou trazer espetáculos de teatro para os bairros.

RSA – E depois da criação do grupo, como foi esse processo de consolidação? Como se deu a compreensão de que era necessário ter um espaço, uma sede?

O Catalinas Sur no começo de seus trabalhos, ainda na Praça Malvinas. Com a conquista de um espaço próprio, seguiu mobilizando a comunidade de La Boca para seus espetáculos e as atividades desenvolvidas em sua sede

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Sur AB – O simples fato de estarmos em praça pública já era

um fator importante de significação do espaço público. E isto foi fundamental para o grupo, que trabalhou durante muitos anos na Praça Malvinas. Começamos a sair para outras praças, outros bairros onde éramos convidados a estar. Daí o grupo foi precisando de um espaço, primeiro para guardar nossos objetos e roupas e depois porque, acima da praça onde estávamos, foi construída uma pista cujos ruídos nos obrigaram a pensar em outro espaço para as apresentações. E foi aí que encontramos um galpão parecido com o do Pombas Urbanas. Um lugar vazio que alugamos e, com nossas próprias mãos, limpamos e trabalhamos nele. E assim foi: primeiro um espaço para ser nossa sede e depois o transformamos também em um teatro. É um local a 200 metros da praça onde começamos a trabalhar. Somos muito territoriais. Pertencemos ao bairro de La Boca.

RSA – Conte-nos um pouco sobre as peças produzidas pelo Catalinas Sur.

AB – A primeira montagem foi Los comediantes, uma peça espanhola que fizemos em 1983, ainda no período da ditadura militar. Na sequência, adaptamos Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare, e o convertemos em Pesadillla de una noche en el conventillo, com a transformação dos duendes em seres da cultura urbana portenha. Divertimo-nos muito. Fizemos mais outras duas obras e, depois, Venimos de muy lejos, um espetáculo em que começamos a trabalhar com a memória e a identidade de nosso bairro, de nossos avós, da imigração italiana na Argentina. Cada um de nós foi pesquisar sua própria história e a contamos na obra, que estreou em 1989. São quase 22 anos encenando esta obra, que segue em nosso repertório.

Este espetáculo é muito forte, pois fala da identidade do bairro de La Boca. Uma identidade imigrante, que cobre toda uma época de lutas por moradia digna e a história dos anarquistas, ou seja, um período muito rico de

tornou um homem, quis adaptar a peça para o cinema e contar essa história.

Depois disso, montamos outras obras, entre elas El fulgor argentino, sobre a política no país, envolvendo cem anos de história, desde a primeira ditadura até um hipotético ano de 2030.

Estes dois espetáculos que falam sobre memória nos obrigaram a pensar em um terceiro, que falasse sobre a formação, a criação da Argentina. Assim, nosso mais recente espetáculo é La carpa quemada, no qual utilizamos um caso real, que foi o atentado a uma loja popular que estava no centro de Buenos Aires para festejar seu centenário. Como vinha gente importante do mundo todo para as comemorações, os representantes da classe alta não acharam bom que os populares participassem e a queimaram. E até aqui chegamos com a parte do trabalho de teatro realizado por Catalinas.

RSA – Esse trabalho, hoje, vai mais além do teatro, oferecendo à comunidade muitas outras atividades. Quais são elas?

AB – Nós somos bem territoriais e temos muita relação com outras organizações e hoje também com instâncias governamentais, já que muitas vezes vamos até eles apresentar nosso trabalho e mostrar a arte e a cultura como instrumento de transformação e impulsão social.

O bairro de La Boca, onde trabalhamos, é uma comunidade integrada por pessoas de classe média

baixa, trabalhadora, uma parte dela abaixo da linha de pobreza. Há muitos imigrantes:

antes eram os italianos, que deram origem ao bairro; hoje é uma imigração do Peru, Uruguai, Chile e Bolívia. Isso sem falar nas

pessoas que chegam das cidades do interior da Argentina. É, então, um bairro popular com características próprias. Temos uma orquestra de 60 integrantes, formada por pessoas que não eram profissionais e outras que já tinham o instrumento, sem nunca terem tocado. Uma nossa história popular. Falar

sobre identidade e contar nossas próprias histórias tem um valor afetivo importantíssimo. A peça virou filme, por iniciativa de gente do bairro; o diretor era uma das crianças que fazia teatro com a gente na praça. E esse menino, que se

escola de música com cerca de cem alunos. Há também um projeto de circo, chamado Palhaços Voluntários

de La Boca, com artistas jovens que trabalham em organizações e festas sociais. Temos também

o Festival Internacional de Títeres, evento de primeira

grandeza e comunitário, em Adhemar Bianchi, diretor do Catalinas Sur

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não têm uma boa formação e, não encontrando seu lugar, vão até o bairro justamente para fazer teatro de qualquer maneira. No fundo, é teatro pobre para os pobres. Na minha concepção, esta é uma imensa sacanagem política e ideológica. Nós temos uma formação muito clara e nossa preocupação é que nossos jovens se formem muito bem tecnicamente. Para nós, a qualidade do espetáculo é tão importante quanto sua mensagem política e ideológica, o que nos dá muito orgulho. Nosso grupo não deixa nada a dever a outros e, em alguns aspectos, fazemos até melhor. A qualidade para nós envolve conteúdo, formas e territorialidade.

RSA – Mesmo com tanta experiência e um trabalho reconhecido, você acredita que esta equivocada visão ainda permanece, principalmente com grupos de teatro que estão começando sua caminhada?

AB – Sim, permanece. Mas cada vez mais as pessoas se dão conta de que não é bem assim. A Rede Nacional

que convidamos artistas de todo o mundo, com o apoio financeiro das embaixadas, e levamos espetáculos a favelas, restaurantes populares, organizações sociais e, claro, em nosso galpão.

Nas férias escolares, levamos aos bairros espetáculos que, no centro, seriam caríssimos; e temos o grupo de títeres. Enfim, um centro cultural com muitas atividades, que agora tem um convênio com o Ministério do Trabalho para capacitação em iluminação, cenografia e sonoplastia, os ofícios técnicos da arte, que se mostram também como possibilidade de trabalho para os integrantes da comunidade.

RSA – A comunidade se envolve, então, com tudo isso?

AB – Sim, completamente. Diferentemente do que acontece com trabalhos de teatro comunitário na América Latina, não é que os artistas fazem teatro com a identidade do bairro, mas o teatro é feito pela

Catalinas Sur em cena: em 30 anos de trabalho, cerca de 18 espetáculos foram montados pelo grupo, sempre com a comunidade do bairro

comunidade. Por isso são tantas pessoas. Em nosso galpão passam, em média, 500 pessoas por semana. Tudo isso vai criando uma relação muito forte com o bairro e o grupo. Hoje, a maior parte dos professores que temos começaram crianças, nas oficinas. Jimena, hoje diretora do Festival Internacional de Títeres, começou com 12 anos. Gilda, nossa atriz e também diretora da parte musical, hoje com 23 anos, entrou quando tinha 8 anos. Temos três gerações trabalhando juntas e formando novas crianças e jovens para a arte.

RSA – Há uma visão equivocada de que o teatro comunitário é uma arte menor. O que você tem a dizer sobre isso?

AB – Aqui temos dois problemas. Um é que as pessoas que tem esta visão pejorativa muitas vezes

de Teatro Comunitário, que se formou na Argentina nos últimos anos e na qual o Catalinas Sur e o Circuito Barracas são os mais velhos, tem permanentemente ajudado e facilitado para que o modelo desse teatro tenha sempre qualidade. Então, as pessoas que vão ver os espetáculos nas ruas e nas praças admiram-se com o canto, com o figurino, com as performances. Pouco a pouco, então, essa visão está mudando. Já temos muitas publicações sobre teatro comunitário, pesquisas, interesses em diversas universidades. Na Argentina, o teatro comunitário já ganhou respeito e na América Latina é considerado a continuidade do velho conceito de teatro de grupo independente.

RSA – Vocês, na Argentina, têm uma forte tradição com o teatro comunitário e a criação da Rede Nacional de Teatro Comunitário. Nós, aqui no Brasil, ainda estamos aprendendo a fazer esse

trabalho mais articulado. Como foi e é essa construção coletiva e como isso é fundamental para o fortalecimento do trabalho dos grupos que a integram?

AB – Os grupos de teatro comunitário

Argentina, nos encontramos uma vez por mês: delegados, diretores e coordenadores, para nos escutar, saber como está o trabalho e falar, não das nossas virtudes, mas dos problemas. Estes encontros são regionais, mas fazemos os nacionais,

nos dispusemos a ajudar. E, assim, foram surgindo muitos grupos. Em 2001 houve uma grande crise na Argentina e começaram a acontecer as assembleias populares nos bairros, em que as comunidades se encontravam para decidir o que fazer ante o desastre que estava acontecendo. Nisso, as pessoas se deram conta da potencialidade que há no trabalho conjunto e começaram a compreender que o território do bairro não era mais de dormitório, mas de vida. Enfim, o que fizemos foi revitalizar a vida no bairro.

Para nós, os saberes artísticos existem para serem compartilhados. Então, um grupo foi contagiando o outro e, assim, se retroalimentando. Se um grupo precisa de algum conhecimento, o outro pode ter e ajudar, e desse modo foi-se desenvolvendo algo grande e particular, fortalecendo a relação de afetos. Nós, da Rede Nacional de Teatro Comunitário da

foram as principais alegrias, lágrimas e sorrisos da caminhada?

AB – Na vida, muitas vezes os sorrisos e as lágrimas estão juntos. Por exemplo, no primeiro espetáculo que fizemos, o final terminou com sorrisos, mas poderiam ter sido lágrimas. Ainda estávamos em estado de sítio, por conta da ditadura, e apareceu um helicóptero com policiais para impedir a apresentação, mas, quando olharam e viram que ali havia 800 pessoas, se foram. Depois, houve momentos econômicos muito difíceis para o grupo. Ou, então, quando a democracia voltou ao país, os funcionários estatais de cultura começaram um projeto de “levar cultura aos bairros”, como se as comunidades não tivessem seu trabalho cultural.

Então nos chamaram, porque ficaram conhecendo nosso trabalho, mas eles tinham uma visão

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“Para nós, os saberes

artísticos existem para serem

compartilhados”

foram crescendo em função das necessidades das pessoas. Catalinas Sur nasce de uma organização prévia, que já existia. O Circuito Barracas, grupo de teatro de rua, conhecemos em um processo de organização do movimento de teatro popular quando quase não havia grupos de teatro comunitário ao nosso estilo. Eles se contagiaram por nosso trabalho e começamos a fazer coisas juntos.

A partir disso, cada vez que íamos nos apresentar em algum bairro, ao final do espetáculo, sempre chegava alguém perguntando, querendo saber mais sobre nosso projeto e se nós poderíamos ajudá-los a formar seus próprios grupos em suas comunidades, e nós sempre

em que todos nos encontramos e, juntos, trabalhamos no intuito de cuidar para que o teatro comunitário não se transforme em mera marca.

Estamos na Rede Latino-Americana de Teatro Comunitário, onde estão o Pombas Urbanas e diversos outros grupos que têm o mesmo conceito de territorialidade que nós. Cada um tem a sua característica, mas temos também o que nos une. Na Rede, lutamos para conseguir incidir nas políticas públicas, para que o Estado olhe também para a arte e a cultura.

RSA – Nestes 30 anos de Catalinas Sur, quais

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completamente equivocada do trabalho cultural no bairro. Queriam impor suas ações sem dialogar com as pessoas. Chegaram a levar uma professora de teatro que ficou – coitada da mulher – sozinha na praça, porque ninguém ia fazer suas aulas, e a gente a 50 metros. Momentos difíceis em que as pessoas da cultura estatal não entendiam o processo que estava em curso ali.

Aos poucos foram entendendo, e agora vivemos momentos mais felizes. Mas a economia é sempre uma questão. A Colômbia, por exemplo, tem leis de apoio à cultura muito melhores que as nossas. A Argentina não é considerada pelas ONGs como um lugar para desenvolver projetos, porque uma parte do país é muito rica. O Estado está presente sempre para o bem e para o mal, mas, no se que refere à cultura, os incentivos são mínimos.

Nos últimos anos, estamos começando a brigar para que os Ministérios de Desenvolvimento e de Segurança Social entendam que a cultura e a arte no espaço público implicam segurança, educação e, por isso, construam e apoiem projetos culturais.

Nosso grupo começou com as dores das mortes de muitos companheiros na ditadura, mas também com as alegrias de nossos filhos e sempre como uma

família. Podemos dizer que nossa vida foi muito feliz, não podemos nos queixar.RSA – E o que podemos esperar dos próximos 30 anos do Catalinas Sur?

AB – Catalinas Sur é um grupo que está seguro, pois há uma nova geração presente e forte. Pessoas que tinham 8, 10 anos quando chegaram e que hoje estão conduzindo o trabalho. Parte dessa geração tem seus filhos que já participam de nossas oficinas, espetáculos. Então, a mudança geracional já está segura.

Depois, acredito que o grupo terá sempre seus altos e baixos, mas o mais importante é a influência que provocou em outros grupos, na Argentina e na América Latina, que ainda não desenvolviam um trabalho como este, de teatro comunitário.

Podemos esperar novos diretores, iluminadores, cenógrafos, músicos, artistas. Um grupo grande que tem sua autonomia criativa e está aberto para todas as linguagens possíveis. Catalinas Sur seguirá em frente, caminhando com seus passos, comprará o galpão ao lado e assim seguiremos por muitos e muitos anos.

www.catalinasur.com.ar

Carpa Quemada. El circo del centenário, peça encenada pelo Catalinas em 2013.

espaço e nele construir um espaço cultural para começar um novo ato dessa história. “Esse lugar é um chamado. Aqui estão as histórias, os personagens do teatro que vamos fazer. Se aqui tocarmos um sino, todo o bairro vai escutar!”, dizia Lino Rojas, fundador e pai artístico do grupo.

E o processo começou. Antes mesmo do início das reformas do espaço, as oficinas de teatro já estavam sendo realizadas; na sequência, os cursos de teatro e circo para crianças e jovens, e uma programação constante e gratuita de espetáculos, saraus, festas. Um trabalho de aproximação com a comunidade de um bairro onde a arte não tinha nenhum lugar. Criado durante a ditadura militar, para abrigar as famílias que não eram mais aceitas no centro da cidade, dentro de uma clara política higienista, a Cidade Tiradentes sofria com a falta de saúde, educação, transporte e o estigma de ser uma das áreas mais violentas da Região Metropolitana de São Paulo.

E então, os Pombas Urbanas foram para as ruas do bairro. Atores do grupo e artistas convidados vestiam-se com roupas coloridas, com figurinos de espetáculos e usavam até instrumentos musicais em cortejos nas ruas, praças e feiras livres. Apesar do estranhamento, a população respondia com muita empatia, pois naqueles cortejos era representada uma cultura popular de extrema riqueza, o que ia de encontro à origem nordestina da maior parte dos moradores.

Quando a arte faz a diferença na comunidadeHá 10 anos um galpão abandonado renascia no coração de CidadeTiradentes

Christiane Gomes

Diferente daquela canção de Toquinho e Vinícius de Moraes que fala de uma casa engraçada que não tinha teto, não tinha nada, aquele antigo galpão abandonado de 1.600 metros quadrados tinha paredes e chão, mas, apesar disso, estava em uma situação de abandono e insalubridade. Repleto de entulho, seu entorno era um lugar perigoso, cenário de assaltos e consumo de drogas, o que amedrontava as pessoas da comunidade do bairro de Cidade Tiradentes, extremo leste da capital paulista, que conta com o maior complexo habitacional da América Latina. Poderia aquele lugar renascer, tornar-se uma referência positiva para a comunidade, onde a arte, a alegria e o sentimento de transformação brotassem e reverberassem para todas as pessoas ali próximas? A resposta é SIM e atende pelo nome de Centro Cultural Arte em Construção (CCAC).

Tudo começou em 2004, ano que marcou a chegada do grupo Pombas Urbanas à Cidade Tiradentes. Se bem que “chegada” não é bem a palavra; melhor seria “volta”. O grupo – que havia sido formado a partir de uma oficina de teatro ministrada pelo diretor teatral Lino Rojas, em 1989, em São Miguel Paulista, também na Zona Leste de São Paulo – tinha seu lugar no bairro da Barra Funda, em um sobrado que acumulava as funções de sede, escritório, sala de ensaio e moradia para a maior parte de seus integrantes. Mas o Pombas Urbanas buscava novos caminhos, novos desafios.

E então, o grupo colocou nas malas suas roupas, cenários, figurinos, computadores e sonhos e partiu rumo àquele galpão abandonado no extremo leste da selva de pedra. O objetivo era claro: recuperar aquele

A chegada do CCAC fez com que a arte se aproximasse da comunidade

Em 2005, um baque: a perda do mestre Lino. A dor repentina deixou os Pombas sem chão. Mas a raiz já estava fincada. Nos anos que se seguiram, a continuidade do trabalho de formação cultural da juventude do bairro caminhou simultaneamente à luta pela garantia da estrutura do espaço: luz, telefone, pequenas reformas, projetos e, claro, o fortalecimento do vínculo comunitário.

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“Para aprofundar a aproximação com o bairro, começamos a divulgar as atividades do Centro Cultural de porta em porta. Com isso, as pessoas passaram a nos conhecer melhor. Havia muitos preconceitos em relação ao grupo por conta de uma visão estereotipada de que o artista é um boêmio que não deve ser levado a sério. As intervenções nas ruas, praças e feiras foram fundamentais para quebrar este rótulo e promover um diálogo com a comunidade, desmistificando que o lugar do artista é só na televisão ou no palco convencional”, relembra Natali Santos, integrante do Pombas Urbanas.

A atriz conta também que, de segunda a segunda, o grupo se dedicava a elaboração de projetos e de estratégias para se inserir na comunidade e envolver a juventude, que participavam das oficinas, na própria gestão do Centro Cultural.

Este trabalho, realizado com dedicação, amor e, acima de tudo, respeito pela comunidade, fez com que, cada vez mais, as pessoas chegassem, se apropriassem e se envolvessem nas diversas tarefas que implicam

manter um espaço como o do Centro Cultural Arte em Construção. Um exemplo é a história de Cleidionéia de Oliveira, conhecida por todos como Neia. Ela começou a frequentar o Centro Cultural Arte em Construção, as oficinas, colaborar nas atividades e hoje é a responsável pela Biblioteca Comunitária Milton José Assunção. “O Centro Cultural foi uma transformação em minha vida. Aqui eu aprendo o tempo todo e passei a ter uma visão ampla da arte. A biblioteca é uma extensão de casa, um lugar de encontro, companheirismo e convivência. Este espaço é um verdadeiro berçário, porque todo dia a vida renasce”, conta a poeta.

O espaço também foi palco para a criação dos grupos Filhos da Dita, Palombar, Bico de Lata e Aos Quatros Ventos, integrados por jovens que hoje, além do fazer teatral e do circo, integram a equipe que administra o CCAC, compartilham e multiplicam o conhecimento adquirido em aulas para crianças e jovens. “Aqui encontrei meu espaço e percebi outras possibilidades de vida. Além disso, o espaço intensificou o vínculo com a comunidade e sentir o carinho dos moradores me deixa muito feliz”, afirma Luana Gonçalves, moradora da Cidade Tiradentes e integrante do Aos Quatro Ventos.

Ano a ano a comunidade se apropria cada vez mais do Centro Cultural. Para se ter uma ideia, em 2012, cerca de 22 mil pessoas passaram pelo Centro Cultural Arte em Construção para participar de suas atividades. E assim a vida vai seguindo seu fluxo no espaço que, antes abandonado e cheio de entulho, hoje se fortalece como uma referência de vida e arte na comunidade, sendo construído cotidianamente pela juventude de todas as idades que vive na Cidade Tiradentes.

Os Filhos da Dita encenam seu primeiro espetáculo: Os Tronconenses

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Novas gerações de artistas estão sendo criadas no CCAC

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Começar e terminar o encontro com um fórum não é escolha qualquer. Veja só que curioso: na etimologia da palavra fórum está “praça pública”. Isso mesmo. Começar e terminar um encontro comunitário na praça pública. Afinal, onde mais isso poderia acontecer, não é?

Aquela preciosa mistureba de bandeiras e sonhos

As conversas do primeiro dia de fórum foram a chave de conhecimento e aproximação entre trabalhadores do teatro de toda a América Latina, que trouxeram suas bandeiras e trajetórias para botar na roda.

A conversa que celebra a experiência viva do fazer

Juliene Codognotto

O diálogo – realizado com palavras e de todas as outras maneiras pelas quais nosso corpo é capaz de se comunicar – é, sem dúvida, o que pode haver de mais potente em uma atividade como o 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo, que aconteceu entre os dias 7 e 15 de setembro de 2013. Foi desta maneira que os fazedores de cultura comunitária compartilharam experiências, sonhos, estratégias, complicações, alegrias, pães caseiros, cafés sem açúcar e utopias ao longo das nove manhãs, tardes e noites da programação do 5º Encontro.

O fórum Nossa Pátria É o Teatro! Transformando com Nosso Corpo-Continente permitiu, nos dias 8 e 14 de setembro de 2013, um total de seis horas especificamente dedicadas a oficializar a conversa. Em roda. Em assembleia. Inventando formas de estar verdadeiramente juntos nesta pátria-teatro.

FÓRUM

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O melhor jeito de nos conhecermos é fazendo o que fazemos

Café, pão com manteiga, sanfona e portunhol. Riso, sorriso, sono. Muita cor nas saias, nos brincos de flor, nos cabelos, nos batuques.

Uma semana juntos – a segunda etapa do fórum aconteceu no

penúltimo dia do encontro – e os sorrisos já se misturavam, e as piadas já eram compreendidas para além das fronteiras imaginárias patriotas.

“Una canción, una canción”, pediu-se ao microfone. E a conversa começou cantada porque, afinal, “es América Latina! Está llena de canciones!”. Em roda, todos

puderam ouvir músicas tradicionais de cada país. Nessa brincadeira,

cantamos o Hino do Corinthians, Guantanamera, Volver

a los 17, Viva mi patria Bolivia!,

Cirandeiro,

Foram experiências de Fortaleza (Ceará – Brasil), Lima (Peru), Amazônia, Medellín (Colômbia), João Pessoa (Paraíba – Brasil), El Alto (Bolívia), Belo Horizonte (Minas Gerais – Brasil), Montevidéu (Uruguai), Cidade da Guatemala (Guatemala), Chalatenango (El Salvador), Havana (Cuba), comunidades indígenas do Chile, San Jose (Costa Rica), São Paulo e tantos outros lugares. São as histórias que o teatro conta, reconta, compartilha e fortalece. É a memória viva dos periféricos, indígenas, ribeirinhos, professores, famílias, povos urbanos, povos da floresta, jovens, crianças, avós (70 avós que fazem teatro, de Medellín!), solidários, corpos livres em construção, ativos, atentos, descolonizados, removidos, expulsos, refugiados, marginais, resistentes, lutadores, os que rompem fronteiras, itinerantes, os de fora.

Tudo junto e misturado nas bandeiras e nas presenças de grupos e redes como Vichama Teatro, Nóis de Teatro, Vivarte, Pantolocos, Nuestra Gente, Piollin, Teatro Trono, Grupo do Beco, Esquinas de la Cultura, Caja Ludica, TNT – Tiempos Nuevos Teatro, Teatro Andante, Rede Cubana de Teatro em Comunidade, Rede Latino-Americana de Teatro Comunitario, Rede de Teatro da Floresta, Rede Nacional de Teatro Comunitário da Costa Rica, GTO da Garoa – Centro de Teatro do Oprimido, Grupo Alma, Pombas Urbanas e outros tantos.

O diálogo entre diferentes experiências do fazer teatral comunitário foi extremamente enriquecedor para os participantes do 5º Encontro

O encontro entre diferentes culturas é a riqueza do compartilhar

La Adelita, A mi me gustan las pupusas e várias outras canções que são também identidade, memória, cultura popular, vínculo.

O encontro seguiu com a apresentação de um exercício cênico resultado prático dos trabalhos de intercâmbio que aconteceram durante o 5º Encontro. Em cena, os atores de diversos países tocaram, cantaram, contaram. Compartilharam suas vidas, sua ética, suas escolhas estéticas, as questões de que se ocupam cotidianamente. Falaram da comunicação entre as pessoas, da tradição ancestral, do samba, da rumba, da ciranda e da cúmbia, do povo mapuche. Perguntaram-se “qual é a sua historia?”. Para a roda-público, passaram um jornal-fanzine. Cada pessoa que pegava o jornal tinha como instrução dizer “extra, extra”, completar com sua contribuição e passar adiante dizendo “vívelo y pásalo” (viva e passe adiante). Surpreendida com a missão, umas das pessoas da roda, depois de procurar muito o que dizer, soltou: “extra, extra... [...] tá tudo muito lindo!”. E resumiu, assim, a alegria do encontro teatral como encontro de luta compartilhada.

Após a cena, o fórum promoveu a leitura e discussão de uma carta que documenta o encontro e o expande para as próximas ações locais, articuladas pela Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade (leia matéria na página 18). Os três eixos – Integração, Comunicação e Formação – dão conta de princípios comuns e estratégias para questões ligadas a políticas públicas, horizontalidade, efetivação presencial e online das redes, escolas e formações livres e integradas em teatro popular.

A conversa terminou com uma discussão que provavelmente já aconteceu inúmeras vezes e

acontecerá outras muitas: o que é teatro comunitário? O que é comunidade? O que une, de fato, esses grupos, esses trabalhadores, essas ações? Pode parecer repetitivo, mas voltar à reflexão sobre o que se é significa recontar a própria história. E recontar a própria história é coisa pra se fazer um milhão de vezes. Um trilhão de vezes. Um sem-número de vezes. Como bem lembrou um participante do fórum, o termo “comunitário” está na moda. Então, de que teatro comunitário estamos falando? Que teatro comunitário estamos fazendo e desejando fazer e criando condições para que aconteça? O que nos diferencia e nos dá um sentido comum, concluem, é um compromisso ético específico: com a transformação. Não com qualquer transformação, mas a que é feita junto com a comunidade, em diálogo; que nega práticas que vão contra o bem comum e a participação democrática. A mudança, enfim, que está associada aos conceitos de descolonização, autonomia, protagonismo, empoderamento, emancipação, luta. Um participante acrescenta: são assuntos pedagógicos, dramatúrgicos, criativos que são um, que não se separam. Outro lembra: as palavras são limites, definições. Outro, ainda, especifica: a palavra “comunitário”, como qualquer outra, se define pela prática.

E assim, juntos, em roda na pátria-teatro, encontram um sentido comum que valoriza a palavra. Não qualquer palavra, mas aquela que realmente comunica.

Juliene Codognotto é uma pessoa interessada em educação, memória, luta, teatro, poesia e comida, entre outras coisas muitas. Além disso, é jornalista, trabalha na área de Comunicação do Centro Cultural São Paulo, participa do coletivo de crítica teatral Bacante e estuda teatro e educação no Instituto de Artes da Unesp

Registro da montagem coletiva El Quijote, realizada em 2009

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Seja numa praça, em uma casa, ou em um espaço abandonado. Em clima árido, junto à floresta ou em meio a um conjunto de habitações populares. A história se repete: um grupo de artistas, um espaço cultural comunitário e uma intensa transformação local.

O Teatro Comunitário tem entre suas características a formação artística na comunidade, o que tem dado origem a uma geração de jovens que, aos poucos, vai se empoderando dos processos de desenvolvimento local através da arte.

Por isto, no 5° Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo, cada país que integra a Rede Latinoamericana de Teatro em Comunidade foi representado por um diretor e um jovem artista. Por meio de um processo auto-gestionado, estes jovens se reuniram em quatro intercâmbios para discutir: comunicação, articulação comunitária, fazer teatral e teatro e incidência.

Era como visualizar a Rede por outro ângulo, onde víamos não apenas os fundadores, mas os primeiros frutos destes processos. O teatro em comunidade, para muitos dos presentes, está atrelado à seu próprio crescimento. É uma geração que representa a multiplicação destas iniciativas espalhadas por toda América Latina e que retomam, a partir do fazer artístico, a identidade de seus povos, que durante séculos foram marcados por confrontos e exploração. “Minhas raízes são indígenas e estou descobrindo isso. Porque na educação não está implementada a memória. O teatro, a arte e a cultura, têm me permitido descobrir minhas raízes, quem sou e pra onde vou”, diz Diana Flores, do Caja Lúdica, Guatemala.

Da Colômbia, nos chegam relatos sobre a capacidade de diálogo da arte em comunidade. A Corporacion Cultural Nuestra Gente, nasce no momento em que Medellín era considerada uma das cidades mais violentas do mundo. E era com teatro, música e circo que o coletivo conseguia transpor as barreiras territoriais impostas pelo narcotráfico, conta Freddy Bedoya.

Já Sergio Andrés, 13 anos, começou a fazer circo aos sete, junto aos jovens do Pantolocos, que tem em média 20 anos e hoje são responsáveis por um espaço cultural em Medellin (corre lá na página 42 para saber mais sobre eles). Gilda Arteta, cresceu no bairro de La Boca, em Buenos Aires, em meio a suas características cosmopolitas registradas pela dramaturgia do Grupo

Inspiração para seguir caminhandoIntercâmbios realizados durante o 5° Encontro Comunitário de Teatro Jovem mostram a potência do fazer artístico em toda América Latina

Cínthia Arruda

Catalinas Sur, que atua há 30 anos no bairro (mais sobre o Catalinas na página 21).

Diante de tantas potências, como travar esse diálogo? Como condensar, em algumas horas, um processo que é como tocar a própria vida de cada um dos presentes?

Definitivamente, não nos cabiam formalidades. Era preciso permitir que a intensidade daquelas mentes e corpos ocupassem o espaço, se expressassem. Era necessário romper as paredes, transformar vivência em ações, corpos, vozes, risos, EM TEATRO!

- Extra! Extra! Encontro une amor, vida e esperança!Assim noticia o jornal escrito no intercâmbio de comunicação comunitária.

E o diziam não timidamente, mas em alto e bom som. Homens, mulheres, meninos, que, dia a dia, constroem a utopia em suas comunidades, acreditam e realizam a transformação na medida em que expressam suas histórias.

Em conversas, cada coletivo relatou os meios de comunicação utilizados para dialogar com sua comunidade, sendo estes os mais diversos: desde publicações sobre arte e educação distribuídas em escolas, como é o caso do Tiempos Nuevos Teatro, em El Salvador; até a inusitada Rádio de rua, uma bicicleta com equipamento de som utilizada pelo Núcleo Teatral Filhos da Dita, de Cidade Tiradentes, em São Paulo, para atrair a atenção em ruas, feiras e praças do bairro. -E todas as histórias tinham desaparecido...Já no intercâmbio de articulação comunitária, discutiu-se como os processos de dominação trabalham (há séculos) para apagar a memória local. Afinal a não identificação de uma população dificulta as ações coletivas da mesma. A partir desta reflexão

construíram-se cenas sobre a importância de nossas histórias para, a partir deste sentido de pertencimento, atuar em comunidade.

Falamos do surgimento de nossas iniciativas e do envolvimento das mesmas nos assuntos pertinentes a seus bairros. Não são estes artistas detidos por uma quarta parede, mas artistas que cotidianamente transpõe as muitas barreiras impostas por uma arquitetura excludente, por uma mídia que defende os interesses de poucos, pelas políticas para minorias, pela violência minuciosamente delineada por este sistema. São seres inquietos pela própria natureza, agregadores, multiplicadores, que fazem brotar sua arte dos morros, becos, lajes, vielas e campos.

Teatro e incidênciaMinistrada por Freddy Bedoya, a oficina Teatro e Incidência falou de como as práticas culturais comunitárias reverberam nas politicas públicas. Além da discussão em si, foram propostos exercícios cênicos onde os jovens artistas deparavam-se com figuras do poder público. O resultado foi divertido e ao mesmo tempo capaz de ampliar o debate.

No penúltimo dia do 5º Encontro, iniciamos o fórum “Nossa Pátria é o Teatro: Transformando Com Nosso Corpo Continente” com uma demonstração das cenas construídas nestes dias. E era uma mistura só: brasileiro cantando salsa, colombiano dançando samba, peruano entoando maracatu. Todos juntos afirmando essa pátria-teatro. Para saber mais sobre a alegria deste fórum, leia matéria da página 29.

Nestes intercâmbios foram compartilhadas nossas diferenças e semelhanças em dias plenos de emoção e felicidade de encontrar nossos pares por todo o continente.

Seguimos inquietos e sabendo que há muito por construir. Como jovens vindos destes processos, nos cabe refletir e agir na direção de apropriar-nos cada vez mais destas propostas para que nossas comunidades sejam cada dia mais reconhecidas por suas potências, revertendo este quadro histórico de estigmatização. Seguimos agora com estas fagulhas acessas para continuar construindo e transformando com nossa alegre rebeldia!

Cinthia Arruda é jovem, moradora de Cidade Tiradentes e filha de Cearences. Gosta de Teatro, Musica e de Tapioca. Fez parte do Grupo Teatral Bico de Lata. Desde 2013 é atriz do Grupo Pombas Urbanas

Diferentes oficinas foram realizadas durante os Intercâmbios 3534

Respeitável público!Confira um pouco dos espetáculos teatrais apresentados na programação do 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo.

Entre el Cielo y la Tierra, Teatro de Los Volcanes, México

Águas profundas,grupo Vichama, Peru

Dois Perdidos, Cia do Esculacho, São Paulo

O Morro do Pássaro Falante, Casa do Beco, Minas Gerais

Tudo Está Organizado Para que Nada Aconteça, Cia Humbalada, São Paulo Schoolombia, grupo Pantolocos, Colômbia Sketch, grupo Pantolocos

Nós da Lona - Uma Arriscada Trama de Picadeiro e Asfalto - Grupo de Circo Teatro Palombar, São Paulo

Contos eróticos africanos – Esquina Latina, Colômbia

Mingau de Concreto, do Pombas Urbanas, São Paulo

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das Forças Armadas Velasco. A segunda metade da década de 1970 foi marcada pela complexidade da organização do bairro e uma mudança ideológica na direção da ditadura militar, ocorrida após o golpe de 1975. O governo de Francisco Morales Bermúdez afastou-se progressivamente das políticas socialistas de Velasco, até que, em 1980, voltou ao poder Fernando Belaunde Terry, que havia sido presidente da República antes do golpe de Estado de 1968, promovido por Velasco.

Com as eleições diretas, a democracia começou seu retorno ao país, mas teve início também a insurreição dos guerrilheiros maoístas do Sendero Luminoso, liderados por Abimael Guzmán, que era professor de Filosofia na Universidade de Ayacucho. Ninguém sabia o quanto a história do Peru, e em particular de Villa El Salvador, seria marcada pelas consequências destrutivas desse conflito fratricida.

O teatro como memória coletiva

O Vichama foi criado em 20 de junho de 1983, como parte da Oficina de Teatro do Centro de Comunicação Popular, no contexto da difícil transição política entre a estrutura comunitária da organização Cuaves e a estrutura estatal do distrito de Villa El Salvador.

VICHAMA TEATRO:

flor do deserto

Simon Van Vliet

“Não esqueça que são as raízes que fazem nascer as flores”, diz o personagem Urpy à sua irmã, Suyay, no primeiro diálogo da peça Águas Profundas.

É fato que, para crescer no deserto, as flores precisam de raízes para entrar nas profundezas da terra. E é assim que, há 30 anos, o Vichama Teatro e seu trabalho estão enraizados na comunidade da Villa El Salvador.

A comunidade – que hoje é uma cidade com cerca de 400 mil habitantes na periferia de Lima – nasceu de um dos maiores movimentos populares do Peru no começo da década de 1970, durante a ditadura militar liderada por Juan Velasco Alvarado. Em 11 de abril de 1971, cerca de 200 famílias tomaram as terras do deserto em Pamplona. Apesar dos despejos violentos por parte da polícia, mais e mais famílias chegavam para tomar a terra. Em 1973, a população já tinha atingido mais de 100 mil habitantes.

“Sem água, sem luz, era um deserto”, disse Adelina Salazar, conhecida por todos como Lady Adela, relembrando sua chegada em Villa El Salvador, em 1972. Ante as necessidades, os moradores formaram a Comunidade Urbana de Villa El Salvador (Cuaves), estrutura de gestão coletiva e uma forma de articulação e afirmação do poder popular, que tinha como tema: “Porque nada temos, faremos tudo”.

O desenho urbano original de Villa El Salvador foi concebido pelo arquiteto Miguel Romero, do Ministério da Habitação, com o apoio do Governo Revolucionário

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atro Um processo de pesquisa e criação teatral coletiva,

dirigido por César Escuza Norero, deu à luz uma série de obras sobre a história política e social de Villa El Salvador. A peça Dialogos entre zorros, apresentada pela primeira vez em 1985, conta a história da comunidade desde a sua fundação. Este trabalho, que permanece sendo encenado mesmo depois de 30 anos, “ajudou a abrir um processo de reflexão sobre o que é Villa El Salvador a partir da memória e do teatro”, conta Escuza Norero.

O trabalho de construção de uma memória teatral comunitária continuou durante a guerra civil, que durou de 1980 a 2000. As peças Memoria para los ausentes Carnaval por la Vida (1987), Lirio de la Esperanza (1996) e Memoria para los ausentes (2001), dentre outras obras, são um testemunho das feridas abertas do Peru e de Villa El Salvador por 20 anos de violência política: do assassinato de Maria Elena Moyano, ativista social, líder comunitária e feminista em Villa El Salvador, cometido pelo Sendero Luminoso, às 70 mil pessoas mortas e desaparecidas em todo o país, vítimas da guerra entre o Estado e o Sendero Luminoso, antes e durante a ditadura de Alberto Fujimori.

As produções teatrais do grupo Vichama são reconhecidas tanto pela sua qualidade estética quanto por seu radicalismo político, e sempre foram criadas em diálogo com a comunidade e sua história. “Vichama tem sido não apenas uma escola para atores e atrizes de Villa El Salvador, mas também uma escola para os dramaturgos peruanos”, afirma o ex-diretor artístico do grupo e pesquisador teatral Carlos Vargas Salgado.

A interculturalidade da Arte

“O Vichama é uma fonte de vida que sai do deserto”, diz Michel Rondeau, “animador espiritual” e pedagogo quebequense que testemunhou, nos anos de 1992 e 1993, a Oficina de Teatro do Centro de Comunicação Popular e a construção da Casa do Teatro, onde o grupo se instalou quando assumiu o nome de Vichama.

De volta ao Canadá, Michel Rondeau formou um grupo de jovens em Montreal, Quebec, em 1998, para participar de um intercâmbio artístico com Vichama, em Villa El Salvador. Este encontro foi o começo de uma relação contínua de encontros interculturais que segue até hoje, completando 15 anos de troca e à qual outras iniciativas em todo o mundo se somaram. “Interessa-nos, além da troca, formarmos este cruzamento de fronteiras da América Latina com outros espaços alternativos do mundo. É algo muito importante para nós: o intercâmbio e a formação de redes”, explica Cesar Escuza Norero.

A partir do início dos anos 2000, Vichama intensifica o desenvolvimento de uma rede de relações internacionais e interculturais. A peça Memoria para los ausentes termina seu processo criativo em Montreal em 2001, montada com Vichama Collectif, experiência que é fruto dos intercâmbios iniciados em 2008 e apresentada no Canadá em 2001; em 2005, no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, Brasil; e no Congresso Mundial IDEA, em Hong Kong, Taiwan e Coreia, em 2007. Em 2009, Vichama participou da montagem coletiva de El Quijote, em São Paulo, Brasil, durante o encontro que marcou a criação da Rede Latino-Americana de Teatro em Comunidade.

O trabalho Águas profundas foi criado durante um processo de intercâmbio artístico cultural no Congresso Mundial da Idea, realizado em 2010, em Belém, Brasil. A obra foi apresentada no Festival de Arte Social em 2011, em Santa Coloma de Gramenet, Espanha e, agora, no 5º Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo, em setembro de 2013.

Cultura e transformação social

A participação ativa do Vichama nas redes internacionais de arte social, teatro em comunidade, de arte-educação e no Movimento Cultura Viva Comunitária é sempre realizado com a preocupação de voltar à comunidade de Villa El Salvador com ferramentas de transformação social emancipadora.

O encontro Criadores Criando na Comunidade, organizado em junho de 2013 como parte da celebração do 30º aniversário do Vichama, foi uma oportunidade de compartilhar com a comunidade a experiência de grupos de todo o Peru e América Latina.

“Ver o público na sala e a capacidade de mobilização do Vichama durante o I Festival Internacional de Teatro em Comunidade foi maravilhoso”, diz Monica Rojas, da Corporação Cultural Nuestra Gente, de

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Café (de la) MemóriaContar e ouvir histórias como ação política. E ainda comer pão caseiro

Juliene Codognotto

“A uva e o vinho

Um homem dos vinhedos falou,

em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo: A uva – sussurrou – é feita de vinho.

Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a

uva é feita de vinho, talvez a gente seja as

palavras que contam o que a gente é.”

Eduardo Galeano, escritor uruguaio, em O livro dos abraços.

A comunidade de Villa Salvador é a raiz do trabalho do Vichama

Símon Van Viliet é pesquisador integrante do Teatro Vichama, onde atua como músico

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Medellín, na Colômbia. Ela ficou impressionada com a qualidade do trabalho e o processo desenvolvido na comunidade.

Por exemplo, no espaço do laboratório pedagógico foi possível compartilhar, de forma direta com a comunidade de Villa El Salvador, experiências artísticas, comunitárias e pedagógicas do Pombas Urbanas (São Paulo, Brasil), do Instituto Transformance (Cabelo Seco, Brasil), Nuestra Gente (Medellín, Colômbia ) e Los Últimos (Espanha). Nestas trocas foi possível explorar diversas formas de educação e ação política por meio da arte. Sem ter sido planejado, tais intercâmbios resultaram na formação de uma rede de arte-educadores em Villa El Salvador.

Marlene Negreiros Terrones, professora na Instituição Educacional 6076 Villa El Salvador, explica que, para ela e seus colegas, o laboratório foi uma oportunidade de “reforçar algumas estratégias e técnicas para melhorar o apoio a nossas crianças, com a arte em geral e o teatro em particular. Isso é fundamental para o desenvolvimento de nossas crianças”.

Tanto em nível comunitário quanto internacional, Vichama especializa-se na criação de espaços para o diálogo intercultural por intermédio da arte, com o objetivo de desenvolver processos artísticos e educacionais de transformação social emancipadora da comunidade.

A Cultura Viva Comunitária é construída nesses espaços, nasce e se desenvolve a partir das raízes, crescendo de baixo para cima. Conectando suas raízes com outras, Vichama une-se a redes de solidariedade que podem suportar a seca, mas florescem com uma alegre rebeldia, mesmo que seja nos desertos mais áridos do mundo.

foram comemorar e bebemorar na igreja!!! O padre, que provavelmente era torcedor do outro time, não gostou nada, nada. E amaldiçoou: enquanto aqueles jogadores estivessem vivos, o Cartago nunca mais seria campeão. E passou ano atrás de ano e a maldição cumprindo-se. Então, enfim, sem assassinato de torcedor fanático nem nada, morreu o último jogador que restava. Foi em 2012. E o Cartago, em milagre, começa a vencer. “Vive, vive, Cartago vive!”, gritavam torcedores esperançosos no estádio. Tudo azul e branco, as cores do time. Uma alegria sem fim. E eis que o time estava na final. Toda a tensão do mundo estava lá. Todo o mundo estava coberto de azul e branco. Eram 60 anos sem serem campeões. Foram duas partidas. Na primeira, 3 X 1. Na segunda, 1 X 3. Empate. Pênaltis. Não há números oficiais, mas certamente o atendimento a enfartados no hospital da cidade nunca foi tão alto. Os que aguentaram até o final do jogo puderam ver, enfim, mais uma derrota do Cartago. É, o Cartago perdeu. E, quem sabe, os torcedores tenham deixado de acreditar em maldições de padres.

A Nika Barros trouxe em seu corpo uma história de Sossego e João Pessoa (PB). Aos 12 anos, ela conheceu o teatro e nele se grudou. Um dia, antes de uma apresentação, soube da morte da avó. Apresentou-

se assim mesmo, dolorida, na promessa de glorificá-la por meio da arte. Tantos anos depois, com seu grupo, montou uma peça que homenageava sua avó e os cinco anos de seca que a cidade enfrentara. Foi então, no preciso momento em que a obra de arte anunciava chuva, que a natureza anunciou o mesmo. E choveu. E choveram lágrimas de celebração e memória. Os colegas de grupo diziam: “Nika, você fez chover!”. E ela, convicta: “Não fui eu. Foi a minha avó.”

“Dulces, dulces, dulces”. Da Bolívia, uma encenação nos mostrou crianças vendendo doces na rua e sendo expulsas pelo “dono” do lugar. Dono? As atrizes contaram que, quando começaram

a fazer teatro, eram confundidas com meninos de rua. Depois, ao fazerem trabalhos em escolas, os alunos considerados os “piores” eram enviados para fazer as atividades com elas. Esse pessoal da escola parece que não entendia muito da vida, não. “É que eles olhavam os exames e as provas de matemática e português deles, mas nunca olharam suas mãos”. Mãos que traziam calos de trabalho.

Batucando, entramos na sala ainda em obras da sede do Pombas Urbanas, na Cidade Tiradentes, onde aconteceu, em 14 de setembro de 2013, a edição especial do Café Memória, ação do grupo que começou como parte de um projeto que recebera fomento e continuou como parte de uma ação política comunitária. “Que as histórias alimentem nossas almas e os pães alimentem nossos estômagos”, anunciou uma “pomba urbana”, e completou: “o que nós fazemos aqui não tem ordem, não tem sentido... Se transforma”. E o que se faz no Café Memória? Se fazem duas das melhores coisas que se tem pra fazer na vida: conversar e comer. As pessoas se sentam em roda e se escutam. E ali ao lado há uma mesa cheia de comida.

O mesmo Eduardo Galeano com cujas palavras comecei esse texto também escreveu, no mesmo livro, que “alma” e “pança” são dois nomes para a mesma coisa. Então, aqui vamos, dando ouvidos a nossa alma-pança, escutar o que é preciso contar. E “hacer memoria” (fazer memória).

O encontro era para começar com um vídeo. No entanto, houve um problema técnico. A reação, imediata, nos informou: “a história não é feita só de acertos”. E rimos. E seguiríamos rindo, porque é também de riso que se faz a escuta.

Da Colômbia, veio a história da loja do Don Juan, ali em Santa Cruz, bairro periférico da cidade de Medellín, em frente ao... Ao... Ao bordel. El Perdido era o ótimo nome do estabelecimento. Já o humor do vendedor não era dos

melhores: tratava todo mundo muito mal, dizendo que não tinha nada na loja, mesmo que tivesse. A verdade, enfatizou o narrador, com olhar de dó, é que “no le gustava vender” (ele não gostava de vender). O bordel é hoje teatro. E nesse teatro se investigam as histórias dos velhos desse bairro, se caçam lembranças. Se experimenta o afeto pelo outro. O El Perdido? Ainda existe, firme e forte, tocado pela filha de Don Juan. E continua sem vender.

Da Costa Rica, conhecemos o time de Cartago, provavelmente um dos piores times de futebol do mundo. Mas, em 1950, foi campeão nacional. Felizes, os torcedores

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compartilhada com o acompanhamento constante do tambor.

Acompanhado de pandeiro, chegou o Zé Gogó. Quem nos apresentou esse caboclo pé-rapado foi a Dani Mirini, do Vivarte, do Acre. Zé Gogó traz a marca clara da oralidade (indígena, brasileira) e da rapidez. Impossível traduzir ao espanhol as falas ligeiras, recortadas, inventadas e o encantamento com as palavras que tem. Toda palavra bonita que ouvia, Zé Gogó pegava pra ele. E a mais bonita que achou foi “inadimplente”.

Pelo caminho, ainda ouvimos falar de guerra, de paz, de barricadas de poemas, de conversas ao redor do fogo, de grãos de café que procuram as quebradas ao deslizarem nas maquetes em 3D, de resistência, de padre que expulsa a polícia com revólver na mão, de jornais que substituem notícias violentas pela nota de um “recorrido artístico”, de ruas de barro em que é preciso ter dois sapatos pra não ser chamado de patiamarillos (pés de barro) na cidade. E cantando “No a la guerra, si a la paz, suenan maracas de amor y de paz”, voltamos da nossa viagem latino-americana para a sala ainda em obras da sede do Pombas Urbanas.

Cidade Tiradentes, esse pedaço do fantástico e assustador Monstro-São-Paulo, apresenta-nos a Dona Geralda, 28 anos de vida num bairro que tem 29 anos. Chegou lá em busca de casa própria.

A história que veio de El Salvador é feita de pura resistência: 14 mil refugiados, 14 mil atentados contra a memória, as relações, a solidariedade e o trabalho coletivo. Quando retornam, procuram

reconstruir a comunidade e voltar a ser “un pueblo pitoresco y alegre” que faz roupas e sapatos de milho para a Rainha do Milho usar no festival. “Somos mulheres e homens que resistimos a perder nossa memória. E celebramos o Pombas Urbanas por esse espaço que tem aroma”. Que vivam, então, na nossa resistência, os espaços que têm aroma de realidade e utopia.

O que ouvimos do Chile é canto, história e memória mapuche. Aprendemos, então, que os mapuche (analogamente a tantos outros povos em sua sabedoria) sempre saúdam as pessoas que estão no lugar e os espíritos

ancestrais antes de contar histórias, já que o que vão contar são histórias muito antigas sopradas por esses espíritos. A história da estrela transformada em mulher cujo sangue dos pés cultivava a terra seca foi

Não tinha... PadariaNão tinha... FeiraNão tinha... MercadoNão tinha... LojaNão tinha... Unidades básicas de saúdeNão tinha... Respeito.

Era um bairro violento, onde a polícia matava “para limpar”. E limpava especificamente os 65% de negros da população do bairro. E, não à toa, a limpeza continua, sob o pretexto da violência.

Dona Geralda afirma que todas as conquistas, tudo que se tem hoje, é fruto de luta e união da população para acabar com a violência e ter mais saúde. Aos poucos, com muito atraso, com um atraso absolutamente inadmissível, a estrutura foi chegando a Cidade Tiradentes, mas em migalhas, em respostas insuficientes aos gritos e exigências da população.

Ouvimos “Epa epa, olha o pão”, a música que o entregador cantava, quando não tinha padaria. Descobrimos que o lugar em que estamos foi supermercado por dez anos, passou outros dez abandonado e há mais dez sedia as ações do Pombas Urbanas.

E conhecemos o Luiz, com sua sapatilha de ponta, que aos 23 anos já tem a memória do enfrentamento: enfrentou tudo que se colocou entre ele a dança. A mãe

não aceitava que fosse bailarino, nem homossexual. E ele, aos 12 anos, tomou para si a construção da sua identidade: fugiu de casa e procurou seu caminho. Duro, difícil, suado. Hoje, ele diz que se considera “muy feliz” e dança samba de sapatilha de ponta para artistas de toda a América Latina aplaudirem e compartilharem sua resistência e força.

A Dona Dalva, que já chegou dançando e cantando, convidada para encerrar o encontro, nos ensinou que tradição é coisa pra se respeitar e também pra se inventar. Isso mesmo. A Dona Dalva chegou ao Pombas para procurar um curso de percussão para o filho. Encontrou. E trouxe também suas invenções para o espaço. A .cada dia, trazia uma música nova. “Já não sabia mais se a música tava na minha memória ou se eu que tava inventando ela”. E esse não saber é de uma sabedoria e tanto.

Foi relembrando a Dona Dalva que me permiti assumir uma coisa. Com a missão de registrar o Café (de la) Memória, eu guardei as histórias que ouvi num gravador. Mas, depois, não quis ir buscá-las lá, não. Acho que foi porque parecia roubar no jogo. Juntei, então, os papeizinhos de anotações – tão bagunçadas quanto as políticas públicas da cidade de São Paulo – com o que me sobrou no cérebro-coração. E inventei um pouco também, porque no Café (de la) Memória me disseram que isso de inventar faz parte do jogo. E porque, afinal, estou contando com outros pedaços de memória e invenção guardados em outros tantos cérebros-corações.

Emoções a flor da pele com as lembranças de Dona Geralda e Dona Dalva, moradoras da Cidade Tiradentes

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Um paralelo entre os grupos Pantolocos (Colômbia) e Palombar (Brasil)

Cinthia Arruda

O circo está presente na história do homem desde a antiguidade. Nas mais diferentes civilizações e períodos históricos, há registros desta linguagem como parte da cultura dos povos, resistindo a diversas transformações ao redor do mundo e, mais que isto, expressando-as através dos tempos.

Com esta característica de constante reinvenção e relação com seu meio, nasce recentemente, no início da década de 1990, o conceito de “circo social”, que objetiva não somente o ensino das técnicas circenses, mas a utilização desta arte como uma ferramenta de promoção de cidadania e transformação.

Segundo verbete elaborado pelos integrantes da Rede Circo no Mundo-BR: “Educar com circo é apostar na alegria e recuperar todo o potencial civilizatório de uma arte milenar, que desde suas origens teve por base a diversidade, a aceitação do outro, o sentimento do fantástico e do mágico, a superação dos limites, a convivência e criação coletivas e, acima de tudo, a brincadeira e o jogo levados a sério.”

Este conceito está presente em diversas iniciativas, espalhadas dentro e fora do país, e tem um caráter político-pedagógico transformador. A linguagem circense, em experiências culturais comunitárias, tem resultado numa intensa produção artística na qual o jovem é protagonista. É possível visualizar toda uma geração que deixa o papel de beneficiária para tornar-se proponente de iniciativas culturais em seus bairros.

É como encontrar um lugar no mundo onde se deixa de ser objeto para tornar-se sujeito da ação. No bairro de Altavista, em Medellín, na Colômbia, o Grupo Pantolocos (composto por jovens de 13 a 25 anos) faz, hoje, a gestão do Casa Arte, um espaço artístico comunitário com oficinas e apresentações.

Em Cidade Tiradentes, zona leste da capital paulista, o grupo de Circo Teatro Palombar, cuja formação artística tem origem no Instituto Pombas Urbanas, começa a ocupar parques e praças de São Paulo, buscando caminhos para a profissionalização.

Os dois grupos estiveram juntos no 5° Encontro Comunitário de Teatro Jovem da Cidade de São Paulo. De longe, o que se via era gente jovem, cabelos longos, alargadores nas orelhas, roupas coloridas, malabares, acrobacias e uma energia interminável. Olhando rápido, não dava direito para saber quem era do Pantolocos e quem era do Palombar.

Mas não se engane: as aparências vão muito além das superficialidades.

Os territórios são diferentes, mas as histórias se encontram. Jovens nascidos na periferia que, ainda na infância, tiveram contato com o fazer artístico, encontrando nele uma nova perspectiva de vida. Transformando as ruas, praças e parques em palco para essa arte milenar que se reinventa a todo o tempo, com o objetivo claro de se expressar e se relacionar com seu público.

A Revista Semear Asas reuniu os dois grupos para uma troca de ideias. E foi tanta conversa que, para você saber mais da trajetória, perspectivas e desafios destes grupos, preparamos uma entrevista especial.

Senhoras e senhores, com vocês, Pantolocos e Palombar:

Revista Semear Asas – Como surge o Pantolocos?

Camilo Baenna (Pantolocos) – O Pantolocos é um processo de formação de jovens que começou em um projeto chamado Corporación Cultural de Altavista, localizado em um bairro sem nenhum espaço cultural. Um professor do colégio criou essa associação e me convidou para coordenar um grupo de perna-de-pau, com 40 jovens; quando eu tinha 13 anos, acreditou em mim e passei a compartilhar tudo o que eu sabia. Busquei oficinas e técnicas para me aperfeiçoar, e passei a fazer apresentações. Foi assim que conheci o irmão da Tatiana, que tinha 9 anos e disse que queria atuar comigo. A Tatiana nos acompanhava, nos apoiava, fazia a produção e logo deixamos a corporação e criamos o Pantoclown. Queríamos viver de arte, mas sem perder o caminho comunitário. Nosso objetivo não era sermos famosos. Nossa essência está no bairro Altavista. Outra corporação nos convidou para dar oficinas e nos pagava. Com esse recurso, pagamos um espaço, compramos instrumentos musicais, figurinos e fomos crescendo. Nosso sonho era fazer um espetáculo com música ao vivo, bailarinos, artistas plásticos. Ensaiávamos em um lugar muito pequeno, o grupo tinha bateria, baixo, guitarra elétrica, teclado, e convidamos músicos, que formaram uma banda. Logo apareceu uma bailarina que formou um grupo de dança. Por isso, já não podíamos nos chamar Pantoclown, porque remetia a um grupo apenas de palhaços. Fazíamos outras coisas, porque éramos o centro cultural de Altavista. Essa era a necessidade da comunidade. Também não podíamos nos chamar Casa de Cultura porque a cultura é ampla e o que fazemos é arte, estão ficou: Casa Arte. Alugamos a casa dos meus pais, e para cada coordenador demos um espaço: esse é de música, esse é de dança, aqui

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que aqui não tinha futuro. Mas com o passar do tempo, eu peguei amor a este bairro. Hoje não o troco por nada. Quando a gente dá aula, vê o sorriso de cada criança, a vê trocando uma arma por uma bolinha, uma clave... Para mim não tem coisa melhor, não tem palavra pra explicar. Um dia eu fiquei muito emocionado. O grupo foi apresentar na Praça Silvio Romero (localizada no bairro do Tatuapé, começo da zona leste), e passamos o chapéu. No final, um menino me perguntou de onde éramos e respondi: de Cidade Tiradentes. Aí ele falou: “caramba, eu sou de lá também! Não sabia que tinha lá essas coisas. Olha, o que eu tenho pra dar no chapéu é isso aqui”. Ele tinha 20 centavos. O que valeu não foi o dinheiro, mas eu vi que ele queria contribuir, participar. O que vale é ver os jovens daqui fortalecendo o bairro.

Adriano Mauriz – É difícil ser uma referência no bairro?

Camilo Baenna – Já não se pode levar qualquer coisa, porque cada vez a comunidade se torna mais exigente. O público identifica quando estamos improvisando e até aceita, porque sabem que é um processo de criação dos atores e nós queremos que eles façam parte dessa investigação. Por exemplo, se inventamos uma cena hoje e apresentamos, eles sabem que é um improviso, mas que no futuro ou em poucos dias vai ser melhorado.

Tatiana Muñoz Uribe (Pantolocos) – No bairro tem um reconhecimento da Casa Arte. Eles sabem que diariamente estamos ali, que somos jovens e trabalhamos pela arte e cultura no bairro. Isso os faz acreditar em nós. E, obviamente, para a corporação torna-

teremos artes plásticas. Em 2009, por falta de recursos para pagar as pessoas, decidimos só trabalhar circo. Já não podíamos manter os outros artistas: se eles queriam fazer arte, tinham de batalhar recursos com a gente. Os que continuaram decidiram que a casa seria o espaço do grupo e nos organizamos em dois processos: Pantoclown, mais voltado para as técnicas de circo, e o Pantolocos, voltado somente ao palhaço.

RSA – Como surge o Palombar?

Adriano Mauriz (Palombar) – Em 2004, o Pombas chegou na Cidade Tiradentes com um projeto de teatro. Percebemos que chegavam crianças, com uma potência, uma capacidade muito grande. Por isso, fomos incentivando o gostar de aprender a partir da arte e o circo era o lugar da brincadeira. Como não tínhamos os equipamentos, fazíamos muitos jogos para aquecer, depois a parte técnica e a imaginação: vamos pensar que temos um circo, você é o mágico, você é o leão, você é isso, você é aquilo... Chegou um momento em que o circo tinha 40 alunos, formado por adolescentes e crianças, meio a meio. Para marcar esse momento, fizemos um espetáculo. Depois disso, muitos saíram do projeto. Muitas das meninas engravidaram. Era um grande desafio, porque víamos eles crescerem, cada um com sua história de vida, às vezes muito dura, e eu me via com uma grande responsabilidade. Pensava que o circo poderia ser um projeto de vida para eles. Nosso último projeto dessa formação foi pesquisar a história do circo. No bairro tem muita gente que deixou o circo para trabalhar na cidade, que veio morar na periferia. Fomos estudar essas pessoas do bairro e fizemos um projeto chamado Elos da Tradição, que deu origem ao nosso espetáculo. Agora ganhamos o Projeto Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) para apresentar em parques da cidade, e eles começaram a perceber que podem ser profissionais, se quiserem.

RSA – Como o circo dialoga com o bairro?

Camilo Baenna – Acredito que é como um espelho que reflete a comunidade. Nós temos um projeto que se chama Arte en lo Ecoparque, que é em um bosque com teatro ao ar livre, onde nos apresentamos. Refletimos elementos do cotidiano nas cenas. O circo é um espaço de encontro que cria diálogo entre os vizinhos.

Paulo Wesley (Palombar) – Nós temos uma visão do bairro que, às vezes, os jovens daqui não têm. Eu mesmo, quando era pequeno, achava que ia crescer, ser advogado, sair daqui, ganhar dinheiro, para que meus filhos crescessem em um lugar melhor. Achava Cena do espetáculo

Sketch, do Pantolocos

se um compromisso, pois a Casa Arte transforma-se no meio para a comunidade se expressar, refletir sobre sua história, seu dia a dia e rir dele ao mesmo tempo. Agora estamos fazendo um projeto de formação de público. Quando apresentamos o palhaço triste, mostramos uma situação dramática e, quando as risadas surgem, perguntamos: por que riem? Porque isso acontece na vida. A história que o Palombar apresenta faz rir, mas

são as coisas sutis, que rapidamente captamos do espetáculo, que nos fazem pensar. Quando montamos um espetáculo, isso tem um conteúdo que sentimos necessário dizer na comunidade. Por exemplo, em Schoolombia, fazemos uma crítica à educação na Colômbia; assim, a Casa Arte é uma formação tanto para nós atores quanto para o público.

RSA – Como incidem nas políticas do bairro?

Tatiana Muñoz Uribe – Nós sempre tentamos participar dos cenários de decisão politica como, por exemplo, o Orçamento Participativo, que é onde se decide como os recursos públicos serão investidos. Ele está dividido por setores e nossa incidência é na cultura, e nós participamos das decisões sobre o investimento. Mas, em outros setores, como educação, é mais complexo, porque a discussão acontece junto com os líderes do bairro, que estão mais envolvidos com os projetos de desenvolvimento. Nós, da Casa Arte, mantemos esse diálogo e nos sentimos com respaldo para incidir na cultura local.

RSA – Por que escolheram o circo para suas vidas?

Tatiana Muñoz Uribe – Quando alguém caminha com decisão, não importa se é teatro, se é circo, se é dança, se é musica, se é poesia, importa que seja com o coração.

Sergio Andrés Higuita Muñoz (Pantolocos) – Está dentro de mim e é muito bonito, porque sou muito feliz pelo que faço.

Paulo Wesley – É inexplicável. Você se supera a cada dia, sente-se bem e faz bem aos outros também.

Daniel Baenna (Pantolocos) – Porque o circo me permite ser eu mesmo, sem que me julguem pelo que faço.

Rafael Garcia (Palombar) – Quando criança, fui ao circo e caiu uma tempestade muito forte antes do espetáculo e saiu a lona da parte onde estava o leão. O leão se agitou, bateu na grade pra lá e prá cá e todo mundo fugiu apavorado. Nesse dia não teve espetáculo e eu fiquei com aquela coisa: não vou nunca mais. Fiquei querendo conhecer o circo, mas acabei me privando, até que acabei me superando.

Esmael Ferreira (Palombar) – Quando entrei no circo, eu entrei não por interesse de ser artista, mas pra conhecer. Eu tinha uma curiosidade em fazer circo, mas não sabia se era bom ou ruim. Assistia na TV o Chaplin e fiquei curioso: como será o circo?

Leo Galdino (Palombar) – Quando eu entrei no circo, eu entrei mais por diversão mesmo, depois eu fui gostando e agora pra mim é algo que me motiva. O circo é a mãe de todas as artes. O circo pode ter teatro, música, skate... E estou no circo até agora e quero isso pro meu futuro.

Ana Muñoz Uribe (Pantolocos) – Quando comecei a fazer circo, era muito pequena, e quando percebi já não me via capaz de fazer outra coisa, porque me faz bem.

Telber Victor (Palombar) – Não tem nada que eu goste de fazer mais do que o circo. É uma coisa que eu posso sentir no meu coração e expressar com meu corpo. Também é algo que, desde quando eu me conheço por gente, sou apaixonado. Mesmo que um dia eu possa sair do circo, o circo não vai sair de mim...

Tão longe e tão perto: o diá logo entre os grupos vence a distâ ncia geográ fica

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Convive há cinco anos no coração deste bairro excluído e violentado por um século de exploração, transformando sua riqueza cultural adormecida por meio de formação artística, gestão cultural e produção transcultural, em uma proposta que integra quatro gerações da comunidade, gestores do poder publico e profissionais de educação, saúde, cultura e segurança.

Formado por um núcleo gestor de jovens artistas de microprojetos artístico-culturais da comunidade Cabelo Seco, apoiados por um núcleo gestor de suas mães produtoras em sua Casinha de Cultura, o projeto hoje atua em sete frentes: o grupo musical Latinhas de Quintal; a companhia de dança AfroMundi Pés no Chão; o projeto de jornalismo social Nem um Pingo; o coletivo áudio visual Rabetas Vídeos; o Cine Coruja, e Folhas da Vida: Bibliotecas Famílias. Juntos, lentamente, integraram as janelas, portas, ruas estreitas e praças de Cabelo Seco em um palco comunitário de transformação que se estende de seu Barracão de Cultura para abraçar as escolas e bairros populares vizinhos, a mídia, as universidades, o aeroporto, os shoppings e até a Câmara de Vereadores de Marabá, em debate corajoso sobre a preservação da vida juvenil e da Amazônia diante da ganância velada das mineradoras. O coletivo comunitário do projeto é composto por dois núcleos gestores, coordenados pelo Instituto Transformance: Cultura e Educação.

O início do projeto foi nos Quintais de Cultura, na orla do Rio Tocantins, onde aconteciam encontros artísticos em suas festas culturais mensais. O primeiro ciclo de cinco anos do Rios de Encontro culminou no Festival de Beleza Amazônica, em dezembro de 2012, e em um monumento musical comunitário-internacional, o CD Amazônia nossa terra, lançado em abril de 2013. Em setembro de 2013, o projeto fundou sua Universidade

Saiba como o projeto de Marabá no Pará, utiliza o fazer artístico para fortalecer vínculos

Dan Baron

Pr o jetoRios deE ncontrorevela o potencialda arte educação

Nosso Projeto Rios de Encontro localiza-se na comunidade ribeirinha afrodescendente Cabelo Seco – bem na ponta entre os Rios Tocantins e Itacaiúnas –, o bairro matriz da cidade amazônica de Marabá, que tem o terceiro maior índice de violência no país.

Comunitária dos Rios, que firmou um acordo com a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará e o secretário de Educação. Estamos agora preparando nosso segundo Festival Beleza Amazônica, que em dezembro anunciará nosso Ano Cultural de Paulo Freire, a se realizar em 2014.

O projeto foi impulsionado no contexto do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), por dois Prêmios Interações Estéticas com Pontos de Cultura da Funarte – Ministério da Cultura (em 2008 e 2010), para desenvolver um processo que cuidava da e celebrava a raiz cultural afrodescendente do bairro. Ganhou o prêmio regional e nacional Educação Integral: Experiências que Transformam, do Itaú/Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) em 2011, em função de suas dimensões inovadoras: sustentar um processo de resgate cultural, a partir da formação artística de jovens em risco pelo mestre Zequinha Sousa, da comunidade, e os transformar em lideranças comunitárias, democráticas e criativas, capazes de ressignificar um bairro violentado, em uma fonte de cultura viva comunitária, apoiados por suas mães-gestoras.

Assim, cuidadosamente, estamos levando a nova cultura para as famílias e as escolas vizinhas, para reenraizá-las na produção artística de uma nova cultura popular, com valores e éticas de cooperação, generosidade, solidariedade e a coragem de criar em roda.

Toda esta história encontra-se no www.riosdeencontro.wordpress.com e no Facebook: Amazônia Nossa Terra

Acesse e conheça mais o Rios de Encontro.

Dan Baron é coordenador artístico-pedagógico do Projeto Rios de Encontro e co-fundador do Instituto Transformance, criado com Manoela Souza

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A proposta deste trabalho integra quatro gerações

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Formado por um núcleo gestor de jovens artistas

de microprojetos artístico-culturais da comunidade Cabelo Seco, apoiados

por um núcleo gestor de suas mães produtoras

em sua Casinha de Cultura. O projeto hoje atua em sete frentes.

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interior, demandando dias e dias de barco para se chegar. Levar a arte do teatro às aldeias indígenas e seringais também é compromisso permanente. A ideia é acessibilidade, difusão e fruição a todos, sem distinção de classe social, etnia ou religião.

Em uma sociedade onde a estrutura capitalista destrói e devora o mundo, saímos do imaginário amazônico e assumimos a responsabilidade de construir ideias que nos impulsionam na busca por novos horizontes. Assim, atuamos ativamente em duas comunidades.

Há 15 anos o Vivarte atua de forma coletiva e integrada com os povos da Amazônia

Juliano Espinhos

Criado no município de Rio Branco, estado do Acre, o Grupo Experimental de Teatro Vivarte surgiu em 1998. Sua atuação está focada no teatro de rua, com ênfase na cultura popular brasileira, no imaginário e nas tradições acreanas e amazônicas.

Os textos trabalhados sempre resultam de pesquisas feitas pela própria companhia, sendo inspirados em histórias e “causos” da região, coletados por intermédio de entrevistas e registros, bem como em oficinas de arte disponibilizadas gratuitamente às comunidades onde circulam os espetáculos e projetos.

A opção pelo teatro de rua se deu a partir de 2005 e é coerente com a realidade da Região Norte, mais especificamente com o estado do Acre, que, de acordo com as pesquisas nacionais, apresenta uma das mais escassas ofertas de bens e equipamentos culturais no país. Por meio da circulação, principalmente no interior do estado, o grupo mostra a arte do teatro em vários palcos, muitos deles feitos do próprio asfalto ou de chão de terra batida. As apresentações são acompanhadas pelo som de instrumentos como violão, triângulo, pandeiro e tambor. Sempre gratuitamente, nas ruas e espaços públicos, como praças, coretos e parques, o Grupo Vivarte busca contribuir para garantir a todas as camadas sociais a oportunidade de participar e ter acesso às manifestações artísticas e culturais. A partir dessa filosofia, os espetáculos circulam desde a capital acreana, onde surgiu o grupo, chegando a municípios de difícil acesso no

NOSSA COMUNIDADE É A FLORESTA

Uma é urbana, à qual nos referimos como Comunidade das Barquinhas, devido ao surgimento histórico de uma importante linha espiritual do Santo Daime, que está na raiz da formação do povoamento humano, cultural, social e religioso da região. Foi lá que Frei Daniel, com o aval de Mestre Irineu, recebeu o Livro azul, que deu início à missão dessa doutrina existente até hoje e que funciona como forte foco e referência na cultura e tradição dessa comunidade.

A outra, localizada na zona rural, dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA) do Igarapé São Francisco, chama-se Área Viva, lugar privilegiado com vasta extensão de floresta, onde temos a prática de aprender como zelar pela natureza, construindo propostas e ações que preservem a Floresta Amazônica e a cultura local.

Somos também construtores dessa arte pública, que surpreende, desafia, ousa, floresce, desabrocha e

transborda as histórias e melodias, poesia do povo. Um povo sem patente ou hierarquia, fonte de tantos saberes, que, em sua simplicidade, colabora para que nós, eternos estudantes na escola do mundo, aprendamos a fértil diversidade e a arte de cada ser. O teatro comunitário é a expansão desse conhecimento sem fronteiras, nesse amor em compartilhar o saber; uma revolução cultural e artística que não impõe seu poder. O caráter revolucionário do teatro comunitário vem de dentro para fora, flui pela arte-cultura e articula caminhos na direção de uma politica de base, fundamentando nossos ideais na busca do

no esquecimento, quebrando o presente.

A causa desse esquecimento, desse descaso, vem do antigo império do homem-deus, dominado por homens inteligentes, astutos, mas ambiciosos, egoístas, doentes, com febre de poder. Ao plantar armas regadas a sangue, colheram a guerra; ao colherem a guerra, a terra tornava-se infértil e nada mais nascia naquele antigo império. De presente, recebemos o capitalismo; e esse presente deixado pelo antigo império empesteou grande parte do nosso planeta.

Mas, não basta criticar. Temos de propor. E agir. Para zelar pelo acervo sem deixá-lo cair no esquecimento, mantendo firme nosso presente, sentimos a necessidade de outra proposta de desenvolvimento, que não represente risco ao equilíbrio da vida em nosso planeta e que garanta a preservação de nossa biodiversidade. Este respeito implica a garantia da qualidade de vida dos povos indígenas, extrativistas e ribeirinhos por meio da demarcação das terras, de educação e saúde, fortalecendo o desenvolvimento da cultura de maneira a reconhecer seu papel no desenvolvimento político e social, pois a arte-cultura é veículo de conhecimento.

Nessa luta, temos de construir os meios de transformação. O primeiro passo é estudar a realidade com a qual nos propomos a trabalhar; depois, vivenciar para dentro essa realidade, propondo meios que transformem, para melhor, o nosso viver.

Temos organizações indígenas, seringueiros, ayahuasqueiros, agricultores. Como irmãos nesta luta, realizamos ações diversas: apresentações artísticas nas áreas de teatro, música e cinema, além de oficinas, debates, encontros e intercâmbios, assim como a articulação e organização de propostas e práticas na parte ambiental. A inspiração para tudo isso vem da rica arte e cultura das comunidades e povos da Amazônia.

Juliano Espinhos é integrante do Vivarte, articulador da RBTR (Rede Brasileira de Teatro de Rua) e PUIPISI (Rede Acreana dos Movimentos Populares de Rua e Floresta), presidente da Associação Área Viva, integrante do GETA (Grupo de Estudos das Tradições Ayahuasqueiras) e agente voluntário ambiental do IBAMA

desenvolvimento social, reconhecendo que somos parte da natureza e dela dependemos para existir.

Na prática de tais ideais, encaramos uma realidade nada romântica. A própria natureza, dentro de seu equilíbrio, desafia-nos a todo momento. Cada ato exige grande esforço para transcender. Para viver, temos de buscar a superação; transcender é iniciar o próximo ato, estruturando mais uma parte desse espetáculo no qual somos atores sem dramaturgia, sem literatura e sem papel, que improvisam, encarando o desafio de construir o ator permanente no ato imprevisível, em cena no mundo.

Do ponto de vista da sociedade dominante, focando no presente construído artesanalmente por nossos ancestrais e entregue para nossos pais, a orientação de como cuidar deste acervo foi recebida por todos, mas são poucos os que aprenderam a zelar pela lembrança ancestral. Sem cuidados, esse acervo cai

A cultura popular brasileira e o imaginário da floresta é o foco do trabalho do Vivarte com sua comunidade

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13º Encontro

da Rede Brasileira de Teatro

de Rua

Foi na Área Viva, espaço mantido pelo Grupo Vivarte – Teatro de Rua e de Floresta, que dezenas de grupos e articuladores de teatro de rua, num total de mais de cem pessoas de todas as regiões do país, fizeram o 13º Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR). A expectativa era grande, já que teríamos uma grande confraternização, intercâmbios, debates, a 1ª Mostra de Teatro de Rua e Floresta e a experiência de conhecer terras brasileiras tão distantes da maioria. Somos paulistanos, bichos urbanos carentes de natureza e sabíamos que uma forte vivência na floresta nos aguardava. A experiência superou a expectativa. Uma das belas lições aprendidas refere-se à percepção de que, na cidade, esquecemos de que somos parte da natureza e que desta separação surgem tantos desequilíbrios e enfermidades. É importante respirar, ouvir, sentir, reencontrar a natureza em nós. E na natureza do movimento teatral está a paixão e o desejo de consolidar um mundo melhor, mais justo e humano.

Recentemente, em diferentes espaços teatrais, têm crescido ações relacionadas à saúde, ao meio ambiente e ao resgate das raízes étnicas e culturais. Exemplos deste movimento encontram-se tanto na reunião da RBTR no Acre quanto no OcupaNise da Universidade Popular de Arte e Ciência, a UPAC, no Rio de Janeiro (saiba mais sobre isso na matéria da página a seguir). A experiência no Acre criou uma nova perspectiva de olhar o mundo. De maneira solidária e colaborativa, superando as limitações encontradas pelo Vivarte na produção do encontro, todos os grupos se articularam para formar equipes de almoço, limpeza, de buscar água.

Esta união refletiu-se nas reuniões da plenária da RBTR, cujo objetivo era criar estratégias para promover e reivindicar políticas públicas para o teatro de rua. Assuntos e demandas não faltaram,

como a nossa própria organização, suas comissões de comunicação, colaboração artística, política e ações estratégicas e de pesquisa. Outros pontos discutidos foram a proximidade da Copa do Mundo, que já provoca mudanças estruturais duvidosas nas cidades, agredindo os vínculos humanos em favor dos interesses econômicos; o andamento de propostas de leis e manifestações; e a questão enfrentada por diversos grupos que estão sendo ameaçados de perderem suas sedes. Durante a plenária surgiu, num outro contexto, o problema de território que atinge a tribo indígena Huni Kuin, que, com estímulo do grupo Vivarte, tem feito teatro na aldeia. A tribo – que viajou cinco dias de barco para participar do 13º Encontro da RBTR – apresentou questões enfrentadas pela falta de demarcação de terras e comunicou sua decisão de ingressar na RBTR.

Cada momento foi muito bem aproveitado, como as apresentações de espetáculos, debates, até os jantares que se tornaram sessões de cinema, com vídeos e documentários sobre os grupos de teatro de rua de todo país. Todo o trabalho foi lindamente harmonizado com as noites cheias de estrelas, música, conversas e fogueiras. Além da potente experiência vivida e compartilhada, este Encontro resultou na construção de uma carta que, após sofrer um acidente de barco e naufragar, foi recuperada e pode ser lida no teatroderuanobrasil.blogspot.com.br. Assim o teatro de rua avança, reconhecendo e vivenciando todas as dimensões do Brasil, conhecendo seus interiores, expressando-se em praça pública.

teatroderuanobrasil.blogspot.com.br

Juliana Flory

Na natureza, o

teatro de rua!

Juliana Flory nasceu em Assis, SP e é atriz do Grupo Pombas Urbanas

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E como é que você sabe que sabe uma coisa se você não faz? Como você faz para fazer uma coisa se você não sabe? Apesar das aparentes especializações, fazemos e sabemos, sabemos e fazemos ao mesmo tempo. Ciência é bem saber e arte é bem fazer. Assim, a arte e a ciência são irmãs unas e necessárias do ato de criação, da própria vida humana.

Do ser ao fazer é o título do livro-entrevista do professor Humberto Maturana, um dos maiores biólogos vivos da atualidade. Maturana propõe visão revolucionária sobre a biologia, sobre o conhecer e a linguagem, observando que o próprio viver é um processo de conhecimento, que aprendemos o tempo inteiro, mesmo que não queiramos, e que o ensinar é impossível; que as emoções são nomes que damos a estados de nossos corpos e que é impossível separar a cultura da biologia em nossa espécie. Essa forma de explicar propõe que nós, seres humanos,

A VACINA CONTRA A LOUCURA É O

TEATRO!

somos grandes primatas bípedes, sem pelos, que, por processos que desconhecemos, iniciamos a escalada da linguagem e da cultura, num passado de aproximadamente 60 mil anos atrás, quando começamos a coordenar consensualmente nossas condutas, a nos comunicar, a dançar juntos, fazendo mímica, cantando, poetizando e dando nome às coisas, às pessoas e animais. Fundando ritos antiquíssimos, as primeiras formas de conhecimento e cultura.

São rituais simbólicos que evocam imagens, narram mitos, informam-nos sobre nossa ancestralidade e natureza. Começamos assim, colhendo vegetais, alimentando-nos de sementes, frutos, episodicamente caçando animais e comendo carne,

fazendo gestos rítmicos, observando o mundo, interagindo, apreendendo impressões, construindo memórias, criando e recriando o mundo.

Entretanto, o primata bípede ficou poderoso e perigoso demais. Hoje ameaça destruir o planeta, que está mergulhado em guerras e violências inomináveis. Dessa capacidade de coordenar condutas e produzir símbolos, de se relacionar com a natureza, surgiram a política, as religiões, deuses, tribos, reinos, reis, impérios, exércitos, armas, bombas atômicas, dinheiro, exploração da natureza e do homem, miséria, doenças epidêmicas, entre dores e delícias do ser quem somos.

Construímos modelos conceituais que são tratados como se fossem verdades objetivas, absolutas e que validam e são validados por nossas ações e políticas públicas. E o entendimento mais profundo sobre nossa natureza e modo de vida nos possibilitará a mudança cultural e adequação de nossas ações e rituais à natureza.

Vitor Pordeus

EUREKA:

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“Você estuda mitologia, minha filha?”

Com essa pergunta, Jung abriu o caminho para a psiquiatra brasileira, dizendo que, sem a mitologia, seria impossível acessar o significado das pinturas e dos delírios dos esquizofrênicos. Trabalhando no atelier do que viria a ser uma das maiores coleções de arte e loucura do planeta, o Museu de Imagens do Inconsciente, localizado no Rio de Janeiro – que segue resistindo à profunda mediocridade científica nacional e internacional sustentada pela baixa política sistemática da indústria farmacêutica –, Nise demonstrou cientificamente a arqueologia dos símbolos do inconsciente que surgem na expressão espontânea, livre, não dirigida, dos ditos doentes mentais com longo tempo de internação (que, hoje, sabemos ser verdade não apenas para os indivíduos presos nos hospitais psiquiátricos, mas para qualquer ser humano). Mais que isso, foi autora pioneira na demonstração de que a expressão cultural tem efeito terapêutico mesmo nos cenários mais sombrios da

esquizofrenia.

“Esquizo” quer dizer partido em grego; “frenus” quer dizer mente, significando, assim, “mente partida”, isto é, a estrutura psíquica do indivíduo é destruída de

modo geral por histórias de violência, abusos, assédios, miséria, ausência de

perspectivas de desenvolvimento, o que hoje é conhecido por determinação

Nise da Silveira: caminhos de uma psiquiatra rebelde

Nise é uma das maiores cientistas do Brasil. A partir de suas investigações realizadas no antigo Hospício do Engenho de Dentro – campo de concentração do espírito de subúrbio de terceiro mundo –, trabalhando em condições precaríssimas, isolada dentro da comunidade médica e científica, Nise fez uma verdadeira revolução médica e científica. Iniciando seu trabalho na década de 1940, quando os procedimentos terapêuticos mais modernos da psiquiatria eram o eletrochoque, a lobotomia e a indução de coma por insulina, ela se recusou a tomar parte em métodos que ela própria, tendo sido presa política na ditadura Vargas na década de 1930, dizia que cheiravam a métodos de tortura.Então, Nise assumiu o abandonado setor de “terapêutica ocupacional” do hospital, trabalhando sozinha, em um ano, 17 diferentes oficinas. Destas, duas foram de prolífica produção: pintura e escultura.

Das abundantes gravuras, desenhos e pinturas, ela observou o aparecimento de símbolos, particularmente circulares, que ela fotografa e enviava para o prof. Carl G. Jung, considerado o maior psiquiatra vivo da época (anos 1950). Um mês e meio depois, Jung respondeu à carta, confirmando o achado experimental, dizendo que os símbolos eram, de fato, mandalas: símbolos circulares observados nas religiões orientais, relacionados à ideia de unidade, de totalidade, da imagem de Deus. Como é possível seres considerados brutos e inferiores serem capazes de expressar símbolos com tamanha significação antropológica e histórica? Nise foi, então, convidada a ir ao Instituto Jung, em Zurique, na Alemanha, onde passaria dois anos estudando e trabalhando com aquele que seria o grande mestre de sua trajetória.

Nise da Silveira é representada em um boneco. A cientista é uma grande referência para a pedagogia da UPAC

É muita celebridade para pouca humanidade

tradições identitárias cuja pesquisa em antropologia médica demonstra serem essenciais para o cuidado de si, do outro e do mundo.

A prática política também é um ritual carregado de símbolos. Entretanto, devido à extrema manipulação e

socioeconômica da saúde. Dados nacionais e internacionais mostram que a pobreza está sistematicamente associada com formas clínicas mais graves, menor expectativa de vida ao nascer e maior mortalidade. Pesquisas internacionais mostram que, nas camadas mais populosas e menos favorecidas, a morte chega em média de cinco a dez anos antes, configurando verdadeiro genocídio, econômica e politicamente construído, de enormes setores de nossa população: os pobres.

A natureza simbólica e política da saúde

A partir da obra de mestres como Maturana e Nise nos será possível compreender melhor os desafios envolvidos na construção da saúde das coletividades e o papel vital das práticas culturais e simbólicas nessa mediação. A organização política está organizada segundo símbolos muito antigos, que remontam às origens da humanidade, nossas primeiras práticas culturais, como a dança, o canto e a comunicação profunda, simbólica, poética. É no mínimo intrigante que todas as culturas e civilizações humanas apresentem rituais de dança, música e teatro em suas origens e ao longo de sua evolução. Por meio dos gestos rítmicos, da mímica e da representação, os seres humanos interagem com seu ambiente, apreendem informações sobre o mundo, conservam conhecimento e ideias, narram mitos, criam sentimentos coletivos,

corrupção de tradições ancestrais, os símbolos que antes eram utilizados na mediação da relação do homem com as forças da natureza essenciais ao seu viver hoje são utilizados e explorados para a venda de produtos da chamada sociedade do consumo, como automóveis, armas, cartões de crédito e serviços bancários, e toda a humanidade converte-se em hordas de consumidores agressivos, que atropelam a si próprios e a seus semelhantes em nome do culto fanático e autodestrutivo do Deus do Dinheiro, levando ao surgimento de uma classe de celebridades arrogantes e violentas que, quanto mais têm, mais querem. É muita celebridade para pouca humanidade.

Neurônios em espelho

Recentes descobertas do campo da neurociência revelam fenômenos que nos informam da gravidade do impacto do aparelho cultural hegemônico na saúde de nossas populações. Por meio de estudos utilizando ressonância nuclear magnética, neurocientistas identificaram circuitos de neurônios que rotineiramente são ativados quando um animal anda, corre ou fala. Em seres humanos foi observado que, em indivíduos que assistem a outros realizarem ações, os mesmos circuitos neuronais são ativados Isto quer dizer que, numa perspectiva neurobiológica, assistir é muito parecido com atuar: o que passa aqui, passa aí. Este mecanismo pode explicar o conhecido efeito de imitação, segundo o qual a plateia se identifica empaticamente com os atores e passa a imitá-los, de forma geralmente inconsciente. A indústria e o marketing modernos apropriaram-se de teorias importantes da produção cultural e psicológica da primeira metade do século 20, e vêm manipulando, com eficiência assustadora, toda a população mundial por intermédio de aparelho cultural global audiovisual (teatro filmado), assim como os gregos; só que estes, com muito mais poesia e conteúdos mitológicos, por meio de seu teatro formaram a cultura, as cidades e a base do sistema político ocidentais.

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Você sabe o que é a UPAC?A Universidade Popular de Arte e Ciência, a UPAC, foi criada em 2010 por Vítor Pordeus como um movimento que tem como missão promover o aprendizado da arte e da ciência de forma livre e aberta.

Nesta Universidade, a visão de educação toma a vivência como caminho, considerando o saber e a experiência, bases primordiais da produção de conhecimento; e compreendendo o ser humano como inacabado em sua incompletude. Por isso, a valorização do outro e o respeito às diferenças é fundamental.

Formado em medicina, Vitor escrevia seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), quando foi convidado a se retirar devido a conflitos científicos e filosóficos. Foi quando começou a estudar teatro e, ao mesmo tempo, se reaproximar da ciência, da medicina e da saúde. Ao ser convidado para criar a pasta de saúde e cultura na secretaria municipal de saúde do Rio de Janeiro, criou a UPAC e o Hotel da Loucura, formado para abrigar os congressos da UPAC. Nise da Silveira, Paulo Freire, Amir Haddad, Baruch de Spinoza, são alguns dos nomes inspiradores para a caminhada da UPAC.

Talvez a visão hermética do conhecimento que vemos hoje torne um pouco complexo o entendimento da proposta da UPAC, mas o que a sociedade precisa é, justamente, compreender a urgência de formas alternativas de produção de conhecimento para caminhar rumo ao verdadeiro desenvolvimento humano. Sejamos nós os agentes da mudança que queremos ver no mundo.

www.upac.com.br

Organize seu discurso ou morra no percurso

Desse modo, nossa experiência no Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro nos últimos cinco anos, e na Universidade Popular de Arte e Ciência (Upac) nos últimos três anos, tem-nos mostrado como os rituais culturais são essenciais na organização coletiva e política, na produção da saúde e da doença de nossas coletividades. Ninguém adoece sozinho, nem se cura sozinho. A doença é manifestação individual de processo coletivo. Assim, a prática de linguagens expressivas em ambiente livre de restrições ou coações, com afeto e criatividade, conforme demonstraram tantos autores essenciais, é capaz de resgatar indivíduos afetados por formas gravíssimas de sofrimento psíquico. O homem é o destino do homem. Assim, é necessário que deixemos a posição de espectadores e passemos para a de atores de nossas coletividades, culturas, comunidades, cidades, países e planeta. Nossa vida e saúde dependem disso.

DioNise-se (Edu Viola)Vem lá do Engenho de DentroO Hotel da LoucuraÉ nóis que vamo mostrar como tudo tem curaSecura se sana com águaMágoa, o remédio é ternuraTemperos e mais temperosSalsa, cebola e coentroÉ festa no Engenho de DentroViva Nise da Silveira, entre nessa brincadeira (bis)

Vitor Pordeus é médico-pesquisador-ator, participa do Hotel e Spa da Loucura, Universidade Popular de Arte e Ciência – Instituto Municipal de Atenção à Saúde Nise da Silveira, Rio de Janeiro. E coordena o Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (2009-2017)

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AgradecimentosCompanhia de Gás de São Paulo - Comgás, Secretaria Municipal de Cultura, Juca Ferreira, Rodrigo Savazonni,Gil Marçal, Marisabel Lessi de Melo (Secretaria Municipal de Cultura) Gabriel Medina e Lúcia Miranda (Coordenadoria da Juventude), Rede Latino-americana de Teatro em Comunidade, Rede Circo no Mundo, Rede Brasileira de Teatro de Rua,Movimento de Teatro de Rua-SP, Rede de Pontos de Cultura, Cohab-SP, Andreia de Souza Luz, José Abílio (Subprefeitura de Cidade Tiradentes), Guilherme César (CFCCT - Centro de Formação Cultural da Cidade Tiradentes) Fani Honório e Elizeu Santos (Estação da Juventude), Maria Elisa Frizzarini (CEU Água Azul), Sonia Sobral, Eduardo Saron e Edson Natale (Itaú Cultural), Leci Brandão e aos arquitetos Wagner Isaguirre do Amaral, Chico Barros e Manoel Alcântara, pela dedicação na reforma do Centro Cultural Arte em Construção.

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“A arte como necessidade orgânica e como complemento do crescimento” Todos os seres humanos, sem distinção de classe e de raça, crescem criando suas características individuais de expressar-se, de comunicar-se. Portanto, todos podem ser atores e fazer arte, independente de suas individualidades. Lino Rojas (1942 - 2005)