revista enredo

47
JÓIAS DE PAPEL Um passeio pelo setor de obras raras da Biblioteca Menezes Pimentel JARBAS OLIVEIRA Ensaio Fotográfico Um foco sobre a cultura popular BIENAL DO LIVRO A aventura da mestiçagem no Ceará MÚSICA Gilmar de Carvalho reescreve a biografia de Alberto Nepomuceno outubro 2008 N° 0 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Upload: zecazines

Post on 21-Jun-2015

761 views

Category:

Entertainment & Humor


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Revista Enredo

JÓIASDE PAPEL

Um passeio pelo setor de obras raras da

Biblioteca Menezes Pimentel

JARBAS OLIVEIRAEnsaio Fotográfico

Um foco sobre a cultura popular

BIENAL DO LIVROA aventura da mestiçagem no Ceará

MÚSICAGilmar de Carvalhoreescreve a biografia de Alberto Nepomuceno

outubro 2008N° 0

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Page 2: Revista Enredo

A Cultura deve ser tratada como política pública de Estado. Este enten-dimento permite o acesso universal ao que é criado pelos agentes cul-turais e também a democratização na aplicação dos recursos públicos

voltados para a área.

O Ceará foi o primeiro Estado brasileiro a criar uma secretaria de Estado e um Conselho especificamente para a Cultura. Isso aconteceu em 1966, durante o governo Virgílio Távora, o que já demonstrava o interesse do poder público em estimular e valorizar a produção cultural cearense. Hoje, mais de 40 anos depois, o Ceará é pólo de uma das mais ricas e admiradas culturas populares do Brasil.

Com o objetivo de resgatar o interesse de desenvolver a cultura, o Governo do Estado tem se empenhado em promover todas as formas de expressões artísticas de seu povo. Uma das iniciativas inovadoras do Estado no setor é o projeto Constituinte Cultural. Por meio dele, realizamos discussões públicas e democráticas com a finalidade de elaborar o Plano Plurianual da Política Cultural do Ceará.

A revista Enredo, lançada agora pela Secretaria da Cultura (Secult), foi criada justamente com o objetivo de consolidar um espaço democrático para o de-bate de conceitos e reflexões sobre a nossa Cultura. Para que ela atinja a meta, é necessário que todas as pessoas dispostas a pensar a Cultura no Estado participem de suas discussões, contribuindo, assim, não só para o fortaleci-mento da publicação, mas principalmente para o desenvolvimento cultural de nossa terra.

Governo do Estado do Ceará

Page 3: Revista Enredo

UM ENCONTRO POSSÍVEL

Entre as inúmeras vertentes do jornalismo moderno, o chamado jornalismo cultural está entre aquelas de mais complexa execução. A começar pela contradição interna que amarra os dois pólos do termo. Enquanto “jornalismo” aponta para uma atividade

que se realimenta diariamente, que tem no imediatismo do dia-a-dia o motor de sua dinâ-mica; “cultural” reflete os sentidos da “cultura”, aquilo que se acumula a longo prazo e que se cultiva a seu tempo próprio. Portanto, sob esse aspecto, a expressão “jornalismo cultural” aparece como uma impossibilidade semântica. Some-se a isso, então, o sentido um tanto fluido que os conceitos de “cultura” e de “jornalismo” assumem em cada redação - e na cabe-ça de cada editor - e chegaremos à enorme babel que cerca o tema.

Para os termos do mercado jornalístico, no entanto, “jornalismo cultural” passou a significar o selo genérico sob o qual se abriga a cobertura mais específica da indústria cultural - e, mais recentemente, da indústria das celebridades – com raros (e cada vez mais raros) espasmos de uma cobertura humanizada, que trate a cultura para além do imediatismo da agenda da indústria e das leituras superficiais e recorrentes sobre a vida cultural de uma comunidade.

A revista Enredo, que a Secult oferece agora ao público cearense, se estriba num conceito que, em vez de separar ou contradizer, tenta, para além das limitações dos veículos conven-cionais de mercado, fazer as aproximações possíveis entre as noções de “jornalismo” e “cul-tura”. Em primeiro lugar, tenta propor e fazer circular discussões e informações sobre aquilo que Edgar Morin, em correspondência com o sociólogo Danilo Miranda, aponta como “com-petência geral do espírito”, aquele nível de conhecimento que, não se estabelecendo única e exclusivamente no âmbito da razão técnico-pragmática, ilumina outras faculdades e ajuda na formação de uma consciência cidadã.

Para além dos desafios do “saber” ou do “saber-fazer”, propomos uma revista em que pulse, entre riscos e experimentações, um “saber-ser”. Um “saber-ser” cearense e, ao mesmo tempo - sem temer nem se furtar das devidas conexões e articulações -, um “saber-ser” brasileiro e universal. Queremos trilhar um caminho que não se constrói apenas do mundo para o pa-pel, mas também do papel para o mundo. “Não se trata de dispensar o rigor ou renunciar aos métodos, mas simplesmente de aprender a escutar. Escutar mais generosamente a realida-de, as pessoas, as complexas relações humanas. Saber escutar é saber sentir, estas são duas palavras que se confundem em muitas línguas”, define Danilo Miranda na mesma discussão sobre cultura com o pensador francês.

Já houve quem definisse o jornalismo como a arte de escutar, de dar voz a quem não tem. Em resumo, nos propomos a isso: a escutar da maneira mais generosa possível os inúmeros matizes da nossa realidade. Da nossa cultura, enfim. Eis um encontro possível entre “jorna-lismo” e “cultura”.

Edito

rial

Felipe Araújo editor

Expe

dien

te GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁGovernador Cid Ferreira GomesVice-GovernadorFrancisco José PinheiroSecretário da CulturaFrancisco Auto FilhoSecretária Adjunta da CulturaDelânia Azevedo CavalcanteCoordenação de ComunicaçãoBianca Felippsen INSTITUTO DE ARTE E CULTURA DO CEARÁPresidenteManinha MoraisDiretor de Ação CulturalRoberto GalvãoDiretora Administrativo - FinanceiraValéria SalesDiretora de MuseusValéria LaenaCoordenação de ComunicaçãoAlyne Cardoso ENREDOEsta é uma publicação da Assessoria de Comunicação da Secretaria da Cultura do Governo do Estado do Ceará CoordenaçãoBianca Felippsen EditorFelipe Araújo Editor de Arte e DiagramaçãoSérgio Helle IlustraçãoOficina de Quadrinhos da UFC Fotografias e Edição de ImagensFábio Lima JornalistasFábio MarquesKiko Bloc-borisLina Cavalcante Revisão Diana Melo

Colaboradores desta ediçãoFelipe Gurgel / Gilmar de CarvalhoRicardo Jorge / Jarbas OliveiraElizeu de Sousa / Ana Mary C. Cavalcante Equipe de ProduçãoNivea Jorge / Rodolfo Moriconi / Roberto Martins

Capa: foto Jarbas Oliveira Jornalista responsável: Bianca Felippsen (CE 0569 JP)Tiragem: 5.000 exemplaresDistribuição gratuita contato: [email protected] / (85) 3101-6761

Page 4: Revista Enredo

08 Ensaio Jornalismo CulturalRuy Vasconcelos passeia pela história do jornalismo cultural no Estado e propõe uma reflexão sobre a atividade em nossos dias.

22 Música Alberto NepomucenoGilmar de Carvalho resgata concerto esquecido do maestro cearense e reescreve sua trajetória.

30 Artes Plásticas

Cultura PopularO fotógrafo Jarbas Oliveira capta imagens de manifestações populares na região do Cariri.

34

47 Novas Tecnologias InternetRicardo Jorge mostra como, em tempos de internet, os jornais precisam superar o “analfabetismo visual” de seus leitores.

50 Acervos Livros rarosNo setor de livros raros da Biblioteca Pública Menezes Pimentel, tesouros publicados há cinco séculos.

56 Cachaça de ViçosaEntre as veredas da Serra da Ibiapaba, os caminhos de uma das bebidas mais tradicionais do Estado.

Patrimônio

76 Cidade PeriferiaElizeu de Sousa escreve sobre novos e velhos hábitos nas casas da periferia de Fortaleza.

80Quadrinhos José Alcides PintoOficina da UFC faz tabelinha entre jornalismo e quadrinhos.

84

Sum

ário

Música IndependenteAs estratégias dos músicos da cena independente diante dos desafios da nova indústria musical.

26

Antônio BandeiraLivro discute as fronteiras entre pintura e poesia na obra do artista cearense.

Fotografia

68 Literatura Bienal do LivroCuradores da Feira do Livro do Ceará defendem a mestiçagem e a diversidade cultural como estratégias para a Bienal.

Teatro OficinaRegistros da passagem de Valentin Teplyakov e Maurice Durozier pelo Ceará

Page 5: Revista Enredo

Jornalismo à sombra das mangueiras

Falar de jornalismo cultural em Fortaleza é ter muito pano para as mangas. Afinal, as mangueiras estão entre as árvores

mais cultivadas na cidade. E a sombra delas é convidativa, numa terra em que o sol ameaça devassar cada mínimo recanto. Um pequeno bosque de mangueiras arma uma sorte de alpendre natural, ao ar livre, onde é possível ensaiar alguma forma de lazer. Um circo doméstico.

Pense no modo como até bem pouco tem-po atrás, famílias inteiras, com seus amigos e agregados, se reuniam na chácara de fim de semana, sob essas mangueiras, para a cele-bração de um ócio que as compensava das árduas rotinas semanais. E esses momentos eram caros ao pensamento que, livre de cál-culos mais imediatos – livre do pragmatismo

dos livros-caixa, dos turnos e expedientes – distendia-se em especulações, anedotas, pe-quenas arengas e disputas.

Tudo que era conversado, ao seu turno, fin-da a jornada de lazer, esticava-se como um vetor-chave para a semana, recobrindo-a de algum nexo, de alguma explicação – por mais débil que fosse – propondo-lhe um sentido. Cumprindo função análoga a de um editorial ou à do jornalismo de opinião.

Ninguém vive direito sem acreditar que, ao menos em potência, possui a chave da decifra-ção de certos fenômenos: a inflação, o trânsito na Avenida Washington Soares, a epidemia de dengue, os alimentos transgênicos, a zaga do Ceará Sporting, a existência do Além, o empre-go dos advérbios na linguagem forense...

O professor Ruy Vasconcelos escreve sobre a trajetória do jornalismo cultural em Fortaleza, cidade em que qualquer bosque de mangueira é um potencial Círculo de Viena

Ruy Vasconcelos

Ensa

io

Coleção da revista Clã na Biblioteca Pública : contribuição para a reflexão sobre a cultura no Ceará

Page 6: Revista Enredo

Dificilmente se vai en-contrar, nos outros es-tados, um elenco tão fino de jovens intelec-tuais que naturalmen-te lançaram mão do jornalismo como canal prioritário de expres-são e teste de idéias.

10 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 11

Então, de início, é preciso ter em conta que a ci-dade em que medrou a geração de Rocha Lima, Araripe Júnior, Capistrano de Abreu, Tomaz Pom-peu, Xilderico de Faria e João Lopes, por volta de 1870, meio-século depois de Sampaio, era um nada geográfico de cerca de 19.000 habitantes. E ainda era também uma cidade bastante portu-guesa em espírito. E como tudo que era ibérico àquela época, também muito católica. E, porque católica, entendia-se dividida entre os freqüen-tadores de suas duas principais igrejas: a de São José (no local da atual Sé), a leste; e a do Patrocí-nio, a oeste – que lá está até hoje, na Praça José de Alencar.

Em seu espaço físico, de resto, a cidade não avança-va muito além dessas duas freguesias. Ao fim do séc. XIX, para se ter uma idéia, a região em torno da atual Igreja do Coração de Jesus, era quase um subúrbio distante. Demarcava os li-mites a sul da cidade. Uma cidade branca, portugue-sa, católica, de edificações relativamente modestas em escala, de costas para o mar e contando com vá-rios problemas estruturais, como a falta d’água. Daí que até meados do século passado pode-se perce-ber, em fotos panorâmicas, a grande quantidade de cataventos disseminados pelos quintais de Fortaleza.

Essa pequena cidade aportuguesada e gentil se-guiu até a década de 30, quando seus limites coin-cidiram com os do plano urbanístico traçado, com certo empenho, por Adolfo Herbster em 1875. Os anos 30 representam o momento em que Fortale-za também atingiu certo equilíbrio orgânico e ar-quitetônico que foi impiedosamente desmontado nas décadas subseqüentes. Os limites traçados por

Herbster rapidamente ficariam para trás da déca-da de 40 em diante. Mas também, nesse ponto, a câmara foi incapaz de elaborar um novo planeja-mento, justamente quando a cidade engrenou um surto de crescimento vertiginoso e, mais do que nunca, precisava ser minimamente prevista.

Quanto ao espírito português da Fortaleza de então: poderia ser diferente? A chamada Ge-ração de 1870 surgiu apenas algumas décadas após a independência. As residências eram ainda a imagem e a semelhança das do Porto e de Lisboa. Não poucas, inclusive guarnecidas

de porões, mesmo que não houvesse vinho para estocar lá por baixo. As pessoas se vestiam à por-tuguesa, ainda que essa indumentária se apre-sentasse completamen-te inadequada ao verão permanente do clima equatorial. Livros e jornais portugueses eram muito disseminados entre uma população em que havia um número considerável de lusitanos e de seus descendentes recentes.

Destaca-se entre estes, um avultado contingen-te de mestres de ofício: pedreiros, carpinteiros,

alfaiates, ferreiros, sapateiros, padeiros, calafates, mecânicos, tipógrafos. Esses artesãos eram desig-nados pelo nome de “operários”. Entre outros, es-ses operários legaram à Cidade o Teatro São José – obra do Círculo Operário Cristão de Fortaleza e que ainda reflete a antiga rivalidade entre as fre-guesias de São José e do Patrocínio. Rivalidade, aliás, que está à base de uma divisão da cidade, entre leste e oeste, que perdura até os dias de hoje, sob outras formas simbólicas. Infelizmente, ainda não se produziu um trabalho que dimen-sione a importância deste grupamento social, de

Quer dizer, assim como o corpo habituou-se a conviver com esse senso exuberante de vida ao ar livre – a ele entregue de mão beijada pelo permanente veraneio do clima –, em Fortaleza, a mente entende que também pode se arriscar no campo das idéias, munida desse mesmo espon-taneísmo. E, no mínimo, ser eclética. Ou seja, lan-çar mão dessa robusta capacidade de improviso e fabulação que acaba transformando um bos-que de mangueiras, durante um fim de semana, na extensão do caramanchão, do alpendre, da casa. Mas também da assembléia, do teatro, da igreja, do estádio...

Entre meados do séc. XIX e a década de 30 do século seguinte, Fortaleza, então uma cidade acanhada, produziu verdadeiros fenômenos no jornalismo. Hoje, a cidade é uma metrópole. É, pelo menos, cento e cinqüenta vezes maior do que quando viu surgir a Geração de 1870 -- qui-çá seu primeiro grande espasmo de inteligência coletiva. Mas o panorama atual empolga menos. Podemos partir desse paradoxo na busca de co-mentar alguns aspectos do jornalismo cultural na cidade. E a própria cidade.

À primeira vista, o fenômeno parece inexplicável. Mas seria simplista pensar que se trata tão-só de um “em terra de cego quem tem olho é rei”. Até porque dificilmente se vai encontrar, nos outros estados, um elenco tão fino de jovens intelectu-ais que naturalmente lançaram mão do jornalis-mo como canal prioritário de expressão e teste de idéias. Rocha Lima, garoto prodígio entre garotos prodígios, passou parte de sua vida nas estreitas saletas que faziam as vezes de redação.

Em benefício de quem edita os segundos cader-nos de hoje, se pode alegar que isso nem de lon-ge é um paradoxo restrito só ao jornalismo. Nessa fase de acanhamento e expansão inicial, Fortaleza produziu mais figuras de impacto na cultura bra-sileira como um todo do que em toda a segunda metade do séc. XX e inícios do XXI. Isso, apesar de no período posterior contar com instituições superiores de ensino, em que o curso de jorna-

lismo é ofertado há pelo menos quatro décadas. Seria extemporâneo dimensionar mais a fundo as razões disso. Mas, ao menos é oportuno dispor al-guns elementos. E, de início, insistir em uma longa contextualização histórica.

Como ressalva, também é necessário, antes, impli-car com a tautologia existente na expressão “jor-nalismo cultural” – como se fosse possível existir um jornalismo “não-cultural”. Quer dizer, nos ocu-pamos daquele tipo de jornalismo que investiga, dimensiona, critica e avaliza o que é produzido numa esfera em que a criatividade, a mestria de expressão, a dimensão estética ou um esforço de esquadrinhamento sócio-histórico e seus deriva-dos falam acima das demais. Um jornalismo, hoje, praticado sobretudo nos segundos-cadernos e nos suplementos de cultura. Mas não só, uma vez que alguns jornalistas de áreas mais ao largo, como eco-nomia, tecnologia, política ou polícia, muitas vezes burilam tanto sua expressão que acabam repondo diante do leitor um texto que, em alguns casos, ri-valiza com os mais ortodoxamente “culturais”.

Muito antes da Geração de 1870, no entanto, há va-gas notícias da circulação de uma folha, ainda ma-nuscrita, à época em que o Governador Sampaio e Silva Paulet, portugueses a serviço de D. João VI, passaram por Fortaleza.

Não é improvável. Ambos tinham vínculos com a nobreza, e há relatos sobre os famosos “outeiros”, saraus lítero-musicais, promovidos por Sampaio. É provável que, de algum modo, quisessem es-tender o conteúdo dessas reuniões galantes pelo menos aos que se viam, por uma ou outra razão, impossibilitados de comparecer a elas. Essas fo-lhas manuscritas, atas de tertúlias, talvez hajam constituído o primeiro esboço não só do jornalis-mo cultural, mas do próprio jornalismo no Ceará. Mas, se assim foi, tratava-se ainda apenas de uma insinuação, de uma espécie de proto-jornalismo. Até porque a Fortaleza da época de Sampaio e Paulet, de que nos conta Henry Koster, que nela passou uma estadia, em 1810, não abrigava mais de 1.200 habitantes.

Page 7: Revista Enredo

Membros da “Padaria Espiritual” em foto de 1982 : pensamento europeu e vicissitudes cearenses

A vida intelectual de então praticamente se resumia ao Rio de Janeiro. Todos os es-critores, jornalistas, músicos e artistas mais promissores ou ambiciosos, para lá migravam.

12 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 13

artesãos portugueses e seus descendentes, para a consolidação urbana e cultural de Fortaleza.

À altura em que os componentes da Academia Francesa do Ceará eram crianças, o êxodo ru-ral ainda não tinha expulsado para Fortaleza o enorme contingente de pecuaristas e agricul-tores de extração mais mestiça, empobrecidos ou desde sempre pobres que, esquecidos pelo litoral, vararam séculos no isolamento, explo-rando a mão-de-obra dos indígenas, fazendo-lhes guerra, assimilando um tanto de sua cultu-ra, mesclando-se a eles.

Inicialmente, esses pioneiros instalaram-se ao longo dos rios: do Camocim, do Acaraú, do Jaguaribe, do Poti, do Salgado, do Curu. Rios temporários que, em parte, se tornaram ainda menos caudalosos pelo sistema predatório de exploração dessa pecuária e dessa agricultura extensivas, calcadas no ataque frontal a tudo que pudesse ser resgatado de imediato da terra colonizada em um meio áspero. E assim viveram, nesse interior remoto, por séculos, cultivando a subsistência, tocando fazendas de

gado que já haviam conhecido melhores dias, ao mesmo tempo em que o ciclo do açúcar em Pernambuco passava por seu esplendor e o Ceará não era mais que um apêndice, inclusive político, dessa circunstância.

E se ainda não havia um êxodo para Fortaleza, de resto, isto se dava pela simples razão de existir no interior núcleos urbanos que, mesmo modestís-simos para os censos atuais, chegavam à época a rivalizar com Fortaleza em escala e importân-cia (Sobral, Icó, Crato, Granja, Aracati). Esses tipos interioranos, ao contrário dos da Marinha, provi-nham do Sertão para o Litoral – “do Sertão para o Ceará”, como se dizia então – despossuídos de qualquer noção mais estável das regras do jogo capitalista. Eram os do Brasil profundo, que es-tavam no país há mais tempo, pelas brenhas, sofrendo as metamorfoses culturais que iriam ser decisivas para a construção de uma cultura distinta da européia. À semelhança dos habi-tantes de terras agrestes – como os hurdanos espanhóis – haviam deixado a contragosto seus modos de vida rudes, do sertão, apenas para sal-varem a própria pele. Do contrário, teriam ficado

por lá, adeptos de uma cultura de tantos traços medievais, baseada em noções de honra, heredi-tariedade e normas estritas.

Uma vez em Fortaleza, os menos afluentes se estabeleciam em bairros como o Arraial Moura Brasil ou os arrabaldes mais a oeste. Isso quan-do não era possível seguir mais adiante. Ou seja, predominantemente para a Amazônia. Um dia, ainda se estudará com mais sistema essa di-áspora cearense – e não apenas em sua dimensão externa, mas também em suas injunções internas, que nem sempre foram forçadas pelas secas e fla-gelos. E, mais importante, se dimensionará, a partir desses estudos, os modos culturais implicados nes-ses deslocamentos.

Além disso, a vida inte-lectual brasileira de então praticamente se resumia ao Rio de Janeiro. Todos os escritores, jornalistas, músicos e artistas mais promissores ou ambicio-sos, para lá migravam em busca de completar sua formação ou de encontrar condições materiais menos desfavoráveis. As exceções eram os que morriam muito jovens – caso de Rocha Lima. Ou, quando muito, a de algum político que al-ternava funções no Rio com outras na provín-cia. E havia ainda o caso de funcionários comis-sionados, vindos de outros estados, a serviço do império ou da incipiente república. Esses administradores graduados eram designados para períodos curtos, bianuais, quando muito. Num ou noutro caso, no entanto, acabavam se

afeiçoando à província na qual iam trabalhar, em geral ainda jovens. E acabavam se fixando.As enormes distâncias, transpostas predomi-nantemente por mar, eram um sério empecilho também à circulação das idéias. Elas criavam, de outro modo, a necessidade de uma intuição muito aguda, no sentido de filtrar dentre o es-toque de teorias disponíveis, aquelas que mais asseguravam um acerto mínimo de leitura dian-te da circunstância local. Este último fator de-

mandava uma prodigiosa capacidade de optar por uma determinada linha de pensamento, ainda que dela não se tivesse, muitas vezes, todas as co-ordenadas. Isso constituía um problema, por um lado. Por outro, no entan-to, propiciava uma maior autonomia no manejo dessas teorias. Uma maior valorização da intuição e da criatividade. Uma ope-ração de preenchimento de lacunas, assim como um cerrado empenho em adaptar essas categorias de pensamento europeu à circunstância local.

Foi, de resto, esse esforço em aclimatizar o pen-samento europeu às vicissitudes locais, um dos talentos cultivados pela primeira floração da in-telligentsia de Fortaleza – caso dos desabusados rapazes da geração de 1870. Eles são os mesmos a porem as primeiras pedras sobre o calçamento da estrada. Pedras que, posteriormente, se reco-nhecem, mesmo sob o asfalto gasto, em tantos outros desdobramentos. Como na Padaria Espiri-tual, na geração em torno do Barão de Studart e da criação do Instituto do Ceará, até se chegar, poste-

Page 8: Revista Enredo

Ser jornalista não era tanto uma profissão quanto uma espécie de hobby. Os filhos de abastados comer-ciantes ou fazendei-ros montavam peque-nos jornais, em parte para se divertirem, fazer circular o talk of the town.

outubro 2008 enredo 15

riormente, a nomes como Gustavo Barroso, Herman Lima, Leonardo Mota, Abelardo F. Montenegro, Ra-chel de Queiroz, Moreira Campos, o Grupo Clã.

Tudo isso não quer dizer que não houvesse aqueles que conseguissem tocar suas carreiras em Fortaleza – ou mesmo no interior – com ra-zoável êxito. Mas estes não só eram a exceção, como também não tiveram maior ressonância nacional. Pode-se pensar, aqui, no caso de Pe-dro Théberge, no Icó. Ou no polemista João Brí-gido – que é talvez o nome mais emblemático do jornalismo em Fortaleza. Ele viveu ao final do séc. XIX e primeiras décadas do séc. XX. Um tipo sangüíneo, temido pela mordacidade. Nas mãos de Brígido – que possuía um interesse tão vivo quanto assistemático pela História do Cea-rá -- o jornal virava uma arma branca, capaz de perfurar a carne de quem quer que se indispu-sesse com ele. E, de outra forma, o espaço era tão acanhado, que propiciou a Brígido ser com-panheiro, na juventude, durante os anos que morou em Quixeramobim, de Antônio Mendes Maciel. De onde surgiu o célebre episódio, nar-rado por Brígido, em que salva a vida do futuro Conselheiro quando este se afogava em uma gamboa do Rio Sitiá.

O primeiro jornal impresso no Ceará chamava-se Diário do Governo. Tudo indica que come-çou a circular em 1824. Seu redator era um padre, Inácio de Loiola de Albu-querque e Melo. Até pelo menos o sur-gimento do Correio do Ceará, em 1915, os jornais eram estri-tamente vinculados a partidos e grupa-mentos políticos. No Segundo Império, o

Pedro II era o órgão ligado ao Partido conserva-dor. A ele se contrapunha o jornal dos liberais, O Cearense, que contava com uma equipe de peso, em que se destacavam Tomás Pompeu e o então jovem João Brígido.

Ambas as folhas não sobreviveram à queda da monarquia e foram extintas logo a seguir. À épo-ca em que isso se deu, já se encontravam entre os mais antigos veículos de imprensa brasileiros em circulação. Também por essa quadra, nomes como Juvenal Galeno, Rocha Lima, Oliveira Pai-va e Farias Brito, circulavam entre os tipos e as prensas, pelas redações compactas. Elas não eram um privilégio de Fortaleza: Sobral, Baturi-té, Camocim e Maranguape estiveram entre as cidades onde a prática do jornalismo foi mais disseminada.

De resto, havia uma grande quantidade de jor-nais em todo o estado. A maioria feita em ve-lhas prensas manuais, de forma precária, com severas limitações gráficas, circulação bastante limitada, distribuição apreogada pelas ruas e pe-riodicidade irregular. E, assim mesmo, revelando um grau de cultura formal insuspeitada para os tempos de hoje, em que possuímos um número considerável de instituições de ensino médio e

superior. Quando surgiu a geração em torno de Ro-cha Lima, para se ter uma idéia, For-taleza não possuía sequer uma facul-dade.

É importante apontar para esse descompasso en-tre o grande nú-mero de jornais e a pouca escolari-

Gustavo Barroso: atmosfera das pequenas gráficas de Fortaleza

dade formal de seus redatores também como forma de mirar outro ponto. Qual seja, o de questionar a excelência de nosso atual modelo de universidade, em que a maioria dos gradu-andos teria sérias dificuldades de entabular uma conversação com um desses espíritos do passa-do: independentes, autodidatas, profundamente conscientes de seus esforços para se auto-edu-car - e eram também, em muitos casos, menos assombrados pelas limitações da vida prática, por pertencerem à minúscula elite letrada de então, que mais administrava e vivia de rendas do que propriamente pe-gava no pesado. Tudo isso aponta para o fato de ha-vermos crescido bastante em extensão, quantidade, porém muito pouco qua-litativamente.

Assim também, essa pul-verização geográfica dos jornais pelo estado pode ser contrastada ao modo como os veículos de co-municação modernos (es-pecialmente o rádio e a TV) vieram sendo controlados por meia-dúzia de em-presários, que trataram de solidificar esses quase mo-nopólios, ao longo da se-gunda metade do séc. XX – para entrevê-los ameaça-dos apenas com a difusão da internet. Além disso, essa profusão de jornais, em um estado com elevadas taxas de analfabe-tismo, remete a duas coisas: 1. o baixo custo dos equipamentos e 2. o fato de os jornalistas ainda estarem, de algum modo, vinculados a um esque-ma mental próximo da Europa Ibérica.

Foi somente no início do séc. XX, no entanto, que a profissão de jornalista ganhou alguma dignidade. No Ceará, isso se reflete na monta-gem de redações mais amplas, bem equipadas e

tocadas por profissionais. O Correio do Ceará, de Álvaro da Cunha Mendes; e O Unitário, de João Brígido, estão entre os pioneiros dessa nova eta-pa. O Correio, de resto, órgão ligado à diocese, atesta ainda uma vez, a marcante influência do catolicismo institucional no cenário das idéias de então. Sucederam a esses pioneiros de um jor-nalismo mais dinâmico e noticioso, aprofundan-do suas novidades técnicas e um maior profis-sionalismo, o Jornal do Ceará, a Gazeta de Notícias (1927) e O Povo (1928).

A derrocada de parte das oligarquias ao fim da I Guerra Mundial também contribuiu para um maior arejamento e pluralidade de idéias. A censura impos-ta pelos truculentos coro-néis abrandou. E, aqui, é preciso lembrar que só uns poucos anos antes, a prá-tica do “empastelamento” era ainda bastante difundi-da. E que também não era infreqüente que jornalistas fossem presos e espanca-dos. A oligarquia acciolyna não foi um período par-ticularmente confortável para a turma da imprensa. E pode-se listar o assassi-nato de pelo menos dois jornalistas: João Demétrio e Antônio Drummond.

Ser jornalista, até as primeiras décadas do séc. XX não era tanto uma profissão quanto uma espécie de hobby. Os filhos de abastados comerciantes ou fazendeiros afluentes montavam pequenos jornais, em parte para se divertirem, fazer circular o talk of the town. Ou simplesmente se envolver em torneios e disputas literárias, além, claro, de atacar os adversários políticos – às vezes, de for-ma velada, de onde surgiu a grande quantidade de jornais com teor satírico.

Page 9: Revista Enredo

Detalhes da Revista O Saco , acima e na página ao lado: relevância editorial

16 enredo outubro 2008

Os responsáveis pelos jornais também eram funcionários graduados, comerciantes, peque-nos artesãos endinheirados, autoridades civis e da Igreja, profissionais liberais, para os quais os jornais cumpriam também a função terapêu-tica de um divertimento que contrabalançava a aridez ou a circunspeção da profissão de ori-gem. A cada ano, na Revista do Instituto His-tórico, o Barão de Studart divulgava uma lista, não exaustiva, de jornais publicados no Ceará. E, a cada ano, os jornais humorísticos sempre

respondiam por uma percentagem considerá-vel nas listagens do Barão. De resto, para muitos à época, O Pão, publicado pelos escritores em torno da Padaria Espiritual, era apenas mais um desses jornais galhofeiros.

Como não podia deixar de ser, o epicentro da atividade jornalística do Brasil no começo do séc. XX era o Rio de Janeiro, simultaneamente capital cultural, política e econômica. Uma cidade que sugava para si a nata da inteligência dos esta-dos – o que implicava também em fortes trocas culturais. Além disso, o momento era de grande dinamismo econômico, potencializado pela I Guerra Mundial e pela chegada de levas de imi-grantes europeus que, apesar de empobrecidos, eram, em sua maioria, alfabetizados, versados na economia de mercado, com forte mentalidade empreendedora e cônscios da importância da imprensa como instituição de barganha ou es-pelhamento coletivo. Toda uma conjuntura que, de resto, revelar-se-á bastante propícia a um jo-vem jornalista recém-chegado da província mu-nido de alguma disposição e talento, como no caso de Gustavo Barroso.

Barroso já publicava textos e caricaturas em jor-nais cariocas antes mesmo de chegar ao Rio, em 1912. Seu mestre havia sido João Brígido, para quem trabalhou na redação d’O Unitário. Os dois posteriormente romperiam, mas Barroso jamais sonegou que a colaboração com o velho deca-no do jornalismo cearense foi decisiva para seu aprendizado do ofício: Comecei minha carreira jornalística em 1906 com um artigo na República de Fortaleza. Em 1907, pas-sei a fazer reportagens para o Unitário, jornal com-bativo de João Brígido dos Santos, famoso no jor-nalismo, na advocacia e na política do Estado. Foi o meu primeiro mestre na imprensa e meu amigo até 1914, quando se tornou meu inimigo, atribuindo-me cousas feitas por outros. A política nos ajuntou e nos separou. Recebi admiráveis lições sobre as re-alidades do mundo na sua convivência. [BARROSO, Gustavo, in O Consulado da China, p.167]

É, aliás, de Gustavo Barroso, em seu romance Mississipi, uma das raras descrições vívidas, a par-tir da qual se pode dimensionar a atmosfera de uma dessas pequenas gráficas de Fortaleza. Ou a precária estrutura em torno de um pequeno

jornal satírico da província. A certa altura, Cabe-ça d’Água, o protagonista do romance, adentra uma dessas gráficas às pressas, por mão de um amigo, fugindo de uma chuva: O Cabeça d’Água viu, então, na semi-obscuridade da meia-água um prelo de mão, tomando-a quase toda, meia-dúzia de caixas de tipos ao longo das paredes, uma mesa cheia de coisas ao fundo. [BAR-ROSO, Gustavo, in Mississipi, p.48]

A gráfica prestava serviços, mas também impri-mia um pasquim:Na tipografia do Estevão, especializada em anún-cios, boletins, convites, cartões de visitas e pequenos trabalhos, se imprimia O Figurinha, que a molecada se encarregava de vir buscar, apregoar e vender pelas ruas, nos dias de saída. Muito procurado, a edição es-gotava-se. Enquanto o dinheiro ganho não se aca-bava, o Lammenais não fazia outra e sempre ficava a dever a última ao impressor. [IDEM, 50]

Esse Lammenais, jornalista mulato, alcoólatra e pequeno patife, que fazia uso da tipografia do Es-

tevão para imprimir o seu Figurinha é, aliás, com seu senso de humor áspero e certo azedume, uma das personagens mais singulares do romance de Barroso. Seu jornaleco saía quinzenalmente:O Figurinha de Lammenais fazia medo, porque mexia com toda a gente da cidade. Não respei-tava ninguém. Por isso seu dono subsistia à custa de uma modalidade menos grave de chantagem. Dava facadas pessoalmente ou por meio de cartas nas pessoas de recursos, que, a fim de evitar qual-quer versalhada ou anedota, lhe enviavam pelo menos a metade do que pedia. [IDEM, 50]

Até mesmo na descrição do Lammenais, pode-se pescar, ainda uma vez, da prosa de Barroso, a precariedade e mesquinhez de condições em que esses pequenos periódicos eram editados e compostos:O mulato tresandava a cachaça. Seu estado nor-mal. Um talento conservado no álcool. Talento es-pontâneo, natural e por isso mesmo sem nenhuma lapidação, rústico. Seu jornaleco saía quinzenal-mente com irregularidades e falhas. Com os pou-

Page 10: Revista Enredo

Há modos de ser inte-ligente sem soar pre-tensioso. Quase sem-pre a simplicidade é o pré-requisito de um bom texto. Mesmo quando se trata de assuntos abstratos, ultra-especializados, complexos.

18 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 19

surgir a figura de um jornalista mais composto e envernizado. É provável que a personagem, José Pereira, tenha sido inspirada em João Brí-gido. José Pereira não é mais aquele editor de pasquins, porém alguém de maior prestígio na escala social. Era amigo do Zuza, mas também do presidente do estado. Ele aparece em várias cenas. Inclusive como galanteador, caminhando ao lado das normalistas no Passeio Público ou tomando uma cerveja num café. A redação de seu jornal assoma numa cena fugidia :O escritório de A Província estava quase deserto. Apenas o José Pereira e o estudante conversavam amigavelmente, sentados defronte um do outro à mesa dos redatores, fuman-do, enquanto lá dentro, nos fundos onde ficavam as ofi-cinas, os tipógrafos compu-nham atarefados a matéria do dia.Seriam duas horas da tarde.Um rapazinho raquítico, em mangas de camisa, com manchas de tinta no rosto e um ar amolentado, veio tra-zer as provas do expediente do governo:-Falta matéria? - perguntou o José Pereira, encarando-o. “Não sabia, não senhor, ia ver”. E saiu voltando imedia-tamente: que o jornal estava completo. [IDEM, p.95]

Aqui, vamos interpor um fade. E nossa história será retomada tão-só muitos anos depois, já ren-te ao presente. Todo esse passado de jornalismo um tanto amador, feito em precárias oficinas aos fundos da casa, ficará para trás. E haverá um parêntese longo. De muita coisa não se fala-rá por razões de espaço e escopo. Da situação dos jornais cearenses durante o Estado Novo. Do advento dos Diários Associados. Da contri-buição do Grupo Clã. Do panorama dos jornais

nos anos de chumbo. Da interação entre rádio e jornal. Da criação da UFC e do curso de jorna-lismo. Do advento da imprensa oficial. Da che-gada da primeira off-set para O Povo, em 1971. Da edição de suplementos culturais de grande requinte gráfico. Da relevância da revista O Saco. Do gradual arejamento das idéias à década de 80. Da concorrência dos jornais e suplementos de alcance nacional nos anos 90. Do suplemento Sábado. De certo apuro dos segundos cadernos, em especial do Vida & Arte, de meados para fins da década de 90. E é claro que tudo isso mere-

ce ser visto com melhor lupa.

Mas, agora, a tarefa será a de apontar algumas ca-racterísticas dos segun-dos cadernos nos dias que correm. Eles, assim como o jornal inteiro, estão muito marcados pela perspectiva do jor-nalismo de serviços, bem como também, em seu texto, pelos ditames do manual de redação. Além disso, ainda seguem se ajustando à recém-chegada rede mundial de computadores. E, no plano específico de sua orientação editorial, sur-gem um tanto afetados pela indiscriminada pro-

liferação dos cursos de pós-graduação. Quer dizer, há uma espécie de deslumbre diante de alguns conceitos trabalhados nesses cursos, mas que soam bastante deslocados – ou no mínimo pouco consistentes – quando propostos como filtros de análise cultural nos jornais.

Além disso, as imensas facilidades tecnológicas de hoje parecem também domar certo ímpeto investigativo, acomodando o jornalista em sua ca-deira. A prática do release também amortiza um

cos anúncios obtidos, pagava a impressão e o pa-pel de pequeno formato. Os clichês das caricaturas e desenhos ele mesmo os abria a canivete em casca de cajazeira. O texto, em prosa e verso, ele mesmo redigia, compondo diretamente na caixa, pois co-meçara a vida como tipógrafo do antigo órgão po-lítico O Cearense. Estampava em números seguidos as paródias que rimava sobre poesias célebres. Sua especialidade. [IDEM, 49]

Só uns poucos anos antes, temos por mão de Adolfo Caminha, notícia de algo similar em relação a esses pasquins precários, irregula-res, mas muito apreciados. Trata-se do trecho em que correm rumores de que o filho de um afluente coronel, o Zuza, estaria de namoro com uma certa normalista da Rua do Trilho. Os rumores são reforçados por um pasquim chamado A Matraca:O dia seguinte era domingo. Todos na casa do amanuense acordaram muito bem dispostos. Havia missa cantada na Sé. Espoucavam fo-

guetes e repicavam sinos. Meninos apregoavam numa voz cantada A Matraca a 40 réis! -- um jornaleco imundo que falava da vida alheia e que por duas vezes trouxera sujidades contra João da Mata. Maria do Carmo quis ver o que dizia A Matraca, apesar do padrinho ter proibi-do expressamente a entrada do pasquim em sua casa. Ali só entrava A Província, disse ele; isso mesmo porque o José Pereira não exigia paga-mento de assinatura. O mais era uma súcia de papéis nojentos que só serviam para...-- Maria deu um pulo até a casa da Viúva Campelo e aí pôde comprar A Matraca. O Padrinho estava no banho. --O Namoro do Trilho de Ferro! -- grita-vam os vendedores. Maria teve um palpite. Cer-to aquilo era com ela. Que felicidade o Padrinho estar no Banho! Pagou o menino, pedindo-lhe pelo amor de Deus que não gritasse mais “O Na-moro do Trilho de Ferro”. Abriu o jornal ansiosa. Que horror! Havia, com efeito, uma piada sobre ela e o Zuza. [CAMINHA, Adolfo, A Normalista, p.41]Mas é também em A Normalista, que vemos

Vida & Arte nos anos 90: momento de apuro no trato com a cultura

Page 11: Revista Enredo

PARA LER

Mississipi, de Gustavo Barroso. Edições UFC, Co-leção Alagadiço Novo, Fortaleza, 1996

A Normalista, de Adolfo Caminha. Brasil Editora, São Paulo, 1961

Viagens ao Nordeste do Brasil, de Henry Koster, tradução e notas de Luís da Câmara Cascudo, Sec. do Departamento de Cultura, Recife, 1978

Introdução à História do Jornalismo no Ceará, de Geraldo Nobre, Gráfica Editorial Cearense, For-taleza, 1975

Caderno 3, do Diário do Nordeste: jornalismo cultural precisa conciliar interesse estético e curiosidade histórica

outubro 2008 enredo 21

tanto essa pulsão de investigar. Eis porque, talvez, haja sido tão fácil para Yuri Firmeza, por exemplo, preparar o logro que pôs à prova não só o preparo cultural de nossos jornalistas de variedades, mas também a própria capacidade investigativa deles. E eles não se saíram nada bem nas duas provas. De outro modo, pode-se questionar a validade do procedimento de Firmeza. Mas não se pode per-doar que um jornalista não cheque a veracidade do que está tratando. Especialmente numa época em que uma ferramenta de busca como o Goo-gle está ao alcance de um clique de mouse. E com esse mesmo clique se pode, por igual, lançar mão de uma enciclopédia gigantesca – e com versões em vários idiomas – sem precisar abandonar o te-clado do computador.

É óbvio que não se deve personalizar o episódio. E isso seria mesmo um desserviço. Mas também não se pode esquecê-lo. Ele existiu. E ilustra bem a medida da superficialidade de que se reveste não só o jornalismo que trata da cultura, mas a própria cultura que é tratada pelo jornalismo. De

fato, é impossível falar com mais consistência do que não tem consistência.

Por outro lado, há a tendência, hoje, de retornar um tanto – mas de forma menos auspiciosa – àquela disponibilidade para falar de tudo, característica dos conversadores à sombra de mangueiras, de que tra-tamos no início deste artigo. É mais ou menos óbvio que um jornalista da área de cultura não possa ao mesmo tempo ser crítico de cinema, de literatura, de artes plásticas, de música, de dança, de teatro, de manifestações populares, de moda, de fotografia, de arquitetura. E, além disso, ser memorialista, repórter, cronista, poeta, arquivista, colecionador, historiador, artesão, museólogo, teórico da comunicação, tradu-tor, documentarista, gestor cultural. Ele deve buscar as áreas que melhor confinam com suas inclinações e talentos. Do contrário, há a perspectiva de que ele apenas seja tão-só mais um circuito integrando-se à unidade central de processamento de informações que tem sido capaz de desumanizar até mesmo algumas das manifestações mais humanas, que res-pondem pelo nome de arte, cultura.

É claro que ele não necessita – e mesmo não deve – clamar pelo especialista para explicar todos os fenômenos de que trata. Sobretudo se esse es-pecialista está, de algum modo, afetado pelos aspectos menos auspiciosos da universidade brasileira, e de seu sistema de pós-gradução que, com ilustres exceções, tem mordido um boca-do o próprio rabo ao invés de buscar, com certa aplicação e empenho verdadeiramente genero-sos e criativos, a chave da decifração, da fruição e da análise de determinados fenômenos.

Aliás, um bom caminho, como está insinuado ao longo deste artigo, pode ser o de conveniar suas esferas de interesse como jornalista e cidadão, a uma forte dose de curiosidade histórica. E casar esses dois fatores, interesses pessoais e consci-ência histórica, à sua própria experiência de vida e intuição. Isso certamente o vacinará contra os males de certa passividade.

Essa modalidade de espectadorismo é a mesma que freqüentemente se encontra também nos segundos cadernos: jornalistas que se escondem atrás de citações e clichês teóricos tão aborreci-dos quanto lugares-comuns. E é claro, um jorna-lista cultural até pode ser um doutor em jornalis-mo. Mas quase sempre prega no vazio, quando tenta fazer de seu leitor um interlocutor não de um jornalista, mas de um doutorando em jorna-lismo. Não um leitor de reportagem, artigo, nota, editorial, entrevista, mas de tese de doutorado em jornalismo.

Há modos de ser inteligente sem soar pretensio-so. Quase sempre a simplicidade é o pré-requisito de um bom texto. Mesmo quando se trata de as-suntos abstratos, ultra-especializados, complexos. Naturalmente, há os que sabem disso e tiram de letra. Sem dúvida, tentar “trabalhar a relação” com o leitor nos moldes psicanalíticos ou entrevê-lo como “leitor-ativo” nos moldes de Barthes, têm sido a cova de muito jornalista por aí. Um jor-nalista, em certo sentido, é um improvisador. Se começa a ficar muito refém de um sistema de pensamento pré-concebido, seu texto, ao invés

de encantar pela idiossincrasia, começa a cansar pela pretensão, a mesmice, o vazio.

Mas retomemos o argumento do início. Esse senso de ar livre, de desabusado improviso faz o fortalezense crer que, assim como para o corpo, a cidade em si é também um local arejado para a mente. Que qualquer mínimo quebra-luz com alguma sombra serve de estúdio para o ofício de pensar. Que qualquer bosque de mangueira, sob o qual se arma um círculo de cadeiras e redes, é o próprio Círculo de Viena. Capacidade prodigio-sa de converter em várias circunstâncias, uma circunstância. Quer dizer, poucas populações do Brasil terão tanto futuro com o advento do virtual, porque a vida do fortalezense, antes mesmo da chegada do virtual, já se pautava por esse prin-cípio. Foram séculos de convívio com a escassez. Uma escassez renovada pela sucessiva chegada de retirantes. E então, é preciso estar atento para saber retirar desse senso de improviso seus divi-dendos, como fizeram os jovens da Geração de Capistrano e Rocha Lima. E refugar os excessos.

Ruy Vasconcelos é professor de Literatura e tradutor

Page 12: Revista Enredo

Os historiadores da música brasileira re-montam a 1887 a estréia do compositor Alberto Nepomuceno, e datam de 1892 o

primeiro concerto regido por ele, à frente da Or-questra Tonhalle, em Zurich (Suíça). A leitura da edição de 20 de março de 1884 do jornal cearen-se “Libertador” desmente esses fatos e antecipa a estréia de Nepomuceno como compositor e dá pistas para sua atuação futura como maestro.

Na véspera do grande dia de festa no Ceará pro-vincial, a Abolição da Escravatura, a 25 de março daquele ano, um concerto musical teve a dire-ção do jovem Alberto, que tocou piano e teve duas de suas primeiras composições apresenta-das. Este texto pretende discutir as modificações que o fato introduz na biografia e na cronologia do compositor que incluiu o Português no canto erudito e se inscreveu como referência na músi-ca brasileira de todos os tempos.

Em 1884, o Ceará regurgitava com a festa da Abolição da Escravatura. Não se poderia, a ri-gor, cobrar que as pessoas assumissem um dis-tanciamento. A falta de entusiasmo poderia ser confundida com adesão aos “negreiros”, aos “co-merciantes de carne” ou aos antropófagos, como dizia o jornal “Libertador”, desde 1881, vibrante porta-voz dessa luta humanitária.

Ainda hoje, alguns, talvez movidos pelo exagero das comemorações e pelo tom ufanista que ga-nhou a festa, que nos valeu o epíteto de “Terra da Luz”, tentam minimizar o feito, falando do con-tingente pouco expressivo de escravos, de como constituíam um fardo para os fazendeiros “que-brados”, da valorização da mão-de-obra escrava no mercado nacional (por conta da interdição da entrada de novas levas da África) e pelo esva-ziamento político e econômico do Norte (ainda não se falava em Nordeste).

A constituição de sociedades secretas e a circu-lação do “Libertador” dizem da seriedade com que as elites se envolveram no episódio. Curiosa a troca de insultos pelos jornais. Prevaleceu o hu-manismo iluminista, ainda que pouco se tenha feito pelos libertos, depois da “ressaca” da festa.Sob esse clima, chegou a Fortaleza, Alberto Ne-pomuceno, no início de 1884, com dezenove anos de idade, vindo do Recife, acompanhando

a mãe Maria Virgínia e a irmã Emília, que deve-riam ser acolhidas pela família Paiva, da qual fa-ziam parte. Depois da morte do pai Victor, em 1880, em Pernambuco, para onde se transferira com a família, em 1872, em busca de melhores condições de vida, a situação se agravou e o jo-vem Alberto não pôde ser o arrimo da família, apesar de ter sido professor de piano, trabalhado em tipografia e dirigido o Club Carlos Gomes do Recife.

A saída foi trazer a mãe e a irmã para a casa dos tios José e Manoel de Oliveira Paiva (este o autor de “Dona Guidinha do Poço”). Aqui, passaram a morar nos fundos do Palácio Presidencial da Pro-víncia, esquina da atual Rua Sena Madureira com o Beco dos Pocinhos, correndo o Riacho Pajeú no quintal da chácara, de acordo com o profes-sor Liberal de Castro.

Nepomuceno não poderia ficar indiferente ao clamor cívico. Daí a colocá-lo como colaborador de jornais abolicionistas, parece um visível exa-gero. Em primeiro lugar, pelo tempo. Como ele chegou aqui em 1884, a Abolição já estava deci-dida, inclusive com data para ser assinada. Nem os historiadores da imprensa cearense (Perdigão de Oliveira, Barão de Studart, Geraldo Nobre), nem os estudiosos da Abolição (Raimundo Gi-rão, Yaco Fernandes) fazem menção a essa prá-tica jornalística.

Abolicionista, ligado à elite intelectual reunida em torno da Faculdade de Direito do Recife, não poderia fazer de conta que não estava aconte-cendo algo muito importante, que mudaria os rumos do País. Abolição e República eram, na verdade, a mesma bandeira de luta contra os pri-vilégios das elites e as campanhas se posiciona-vam como um jogo de dominó: ao cair a primei-ra peça, a outra seria uma questão de (pouco) tempo. E assim se deu.

Curioso como as elites intelectuais (e também econômicas e políticas) do Ceará de então eram esclarecidas. Boa parte das famílias tradicionais apoiava a extinção da escravatura e dava os quadros para a Literatura, a Medicina, o Direito e o Jornalismo, além da atuação nos negócios intensificados pela valorização do algodão no mercado internacional.

O Concerto daAbolição

Novas referências biográficas de Alberto

Nepomuceno encontradas por Gilmar de Carvalho

reescrevem a cronologia “oficial” do maestro e

compositor cearense e lançam um novo olhar

sobre sua trajetória

Mús

ica

Gilmar de Carvalho

Estátua do compositor em Fortaleza: maestro tornou-se referência na vida musical da cidade

Page 13: Revista Enredo

Havia uma relação curiosa entre o dinheiro e o sa-ber, como se as fortunas amealhadas fossem pre-texto ou álibi para viagens à Europa, acesso aos pianos, aos livros e embrião dos grêmios literários que proliferariam a partir da Academia Francesa (1873/1875).

Vale ressaltar que Fortaleza se inseria, timi-damente, no cir-cuito musical de então, sendo pa-rada, apesar das complicações do porto, das com-panhias e artistas líricos que transi-tavam entre Recife e Manaus. Os Theatros Thaliense e São Luiz eram palco de apresentações de intérpretes do canto, de instrumentistas e de grupos de câmera que faziam apresentações pelo norte do País. O jovem Nepomuceno se envolveu com a vida cultural da província, ele que chegara a Fortale-za num instante de recesso das tertúlias literárias, coincidindo com o intervalo entre as atividades da Academia Francesa e a implantação do Clube Lite-rário, em 1886.

Esse hiato pode ser explicado pela luta abolicionis-ta e rendeu uma poesia voltada para o tema, que teve como seus representantes Antonio Bezerra,

Justiniano de Serpa e Antonio Martins, autores das “Três Liras”, livro publicado em 1883, reunindo composições, talvez mais militantes do que con-sistentes, do ponto de vista da função poética da linguagem.

O jornal “Libertador” fazia a contagem regressiva para o grande instante. A luta era dada por vi-toriosa e os nomes dos que contribuíram para isso estavam estampados nas páginas do jornal. A relação dos libertos se avolumava. As senhoras organizavam o “jantar dos mendigos e infelizes”, colaborando para a extin-ção da fome aos necessi-tados de sempre. Poemas de Rodolpho Teophilo e Francisca Clotilde, dentre muitos outros, conclama-vam para o grande mo-mento.

Assim, a edição do “Li-bertador” de 20 de mar-ço de 1884, constante do acervo de periódicos microfilmados da Biblio-teca Pública Governador Menezes Pimentel, trazia

o programa do “Concerto 24 de março”, citado como “Introdução e Auxílio à Patriótica Festa de 25 de Março sob a direção de Alberto Nepomuceno”.

Ele ainda não se arriscara a mostrar-se por intei-ro. O entusiasmo o levou a ter coragem de reger um concerto e incluir suas peças de juventude no contexto de uma festa apoteótica, como dizem os anúncios da venda de bandeirolas de todos os países, das lanternas, da iluminação a “giorno” e da “champagne” francesa, para ricos e pobres.

O jornal transcreveu o programa que se iniciava com o “Hymno da Sociedade Libertadora Cearen-se”, com letra de Frederico Severo e música do ma-

estro João Moreira da Costa, executado pela banda de música do Corpo de Polícia.

A peça seguinte, intitulada “25 de Março”, era apresentada como “marcha triumphal para dois pianos a oito mãos”, o que não deixa de ser curioso pela possibilidade de reunir dois pianos, quando, hoje, muitas salas de espetáculo, como o Teatro do Centro Dragão do Mar de Arte e Cul-tura, por exemplo, não dispõem de um sequer. A referência a Nepomuceno vinha entre parênte-sis, depois dos nomes das intérpretes. A se julgar pela leitura integral da programação, deduz-se que a autoria da marcha seja do jovem Alberto, pois os autores das demais peças têm seus no-mes sempre grafados entre parêntesis.

Chama a atenção a simetria do Concerto e a sin-tonia de Nepomuceno com o espírito do tempo. As duas partes da apresentação musical tinham peças dele, com um tom de civismo, tudo inter-calado por árias de óperas, bailados para cantos, fantasias para flauta e piano, tudo interpretado por senhoras das elites, músicos importantes de então, como Simplício Montezuna ou por um “esperançoso menino”.

O intervalo de quinze minutos daria tempo para o farfalhar das sedas, a dança dos leques e para as olhadelas de soslaio. Importante ser vis-to naquele espaço público onde se reuniam os representantes do povo de então, a Assembléia Provincial, atual Museu do Ceará, em cujo Paço teve lugar, a 24 de maio de 1883, a libertação dos escravos de Fortaleza, ponto de partida para a tela “Fortaleza Liberta”, de J. Irineu de Sousa, re-gistro iconográfico de um episódio significativo de nossa história.

A segunda parte do Concerto se iniciava com um “Galope Marcha” para dois pianos a oito mãos, executado por Emília Cunha, Maria Esther da Silva, Maria Pia Salgado e Ernestina de Paula Vidal, outra provável composição de Alberto Ne-pomuceno, levando-se em conta seu nome no final da frase do texto jornalístico.

O nacionalismo de Carlos Gomes se fez presen-te, bem como a “Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Brasileiro”, de Gottschalk, no encerramento da sessão musical.

A Comissão encarregada agradecia, “penhora-damente, a todos as excelentíssimas senhoras e ilustres cavalheiros que, voluntariamente e de boa vontade, se prestarão a tomar parte neste concer-to”. O texto concluía com a informação de que o evento estaria previsto para as 18 horas.

Além de mostrar um Nepomuceno incansável e plenamente entrosado com a vida musical de Fortaleza, o Concerto joga novo foco de luz sobre a biografia e a produção artística dele. O “Catálogo Geral” organizado por seu neto Sérgio Alvim Cor-rêa (publicado pela Funarte), põe o ano de 1887 como o de suas primeiras composições e vai além ao dizer que a primeira de todas foi “Prece”.

A leitura da programação do Concerto revela pos-síveis pistas de composições da juventude, ante-riores ao que estabelece o Catálogo Geral. Mesmo sua condição de regente deve ser revista porque o levantamento oficial coloca o ano de 1892, quan-do, na verdade, oito anos antes, ele teria dirigido um Concerto (não de uma orquestra, mas de um grupo de músicos) com todas as implicações de fazê-lo na província, sem maiores recursos e sem o aparato de um grande centro, como Zurich.

Um Nepomuceno “zero” estaria aqui e a recupera-ção dessa parte seminal de sua vida e obra parece fundamental como contraponto ao desrespeito à memória, à falta de documentos e à importância de homenageá-lo.

Em 1885, ele viaja para o Rio de Janeiro e volta ao Ceará, em 1888, onde se apresentou em três con-certos, em abril e maio, não coincidentemente às vésperas da Abolição da Escravatura no Brasil. Foi quando tocou, pela primeira vez, acompanhado pelo violoncelista Frederico Nascimento, a “Dança de Negros”, que mais tarde se tornaria o “Batuque”, da Série Brasileira, reforçando as bases de uma música brasileira de expressão internacional.

Aí já era o artista com experiência nos salões da capital do Império e pronto para a viagem de for-mação que marcaria para sempre sua trajetória.

Gilmar de Carvalho é jornalista e professor do Departamen-to de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará.

Mús

ica

Fac símile do jornal: em destaque, a notícia sobre o concerto

24 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 25

Page 14: Revista Enredo

Mús

ica Mutantis mutandis

As novas tecnologias redesenharam a indústria musical, mudaram a relação entre o artista e seu público e abriram um novo horizonte

para a produção e a divulgação da música em nossos diasFelipe Gurgel

Montage: dupla não lançou disco em suporte físico

Ao longo da última década, mú-sicos e outros agentes da cadeia produtiva da música tiveram de

aprender a lidar com a nova realidade do mercado para a linguagem. Sem

encontrar um modelo de trabalho que se possa proclamar como

“definitivo” ou que vá perdurar durante anos, hoje a cena mu-sical parece cercar uma única certeza: para o bem e para o mal, a indústria fonográfica como conhecemos nas dé-cadas de 80 e 90 – quando a maioria dos artistas sonha-va com a execução de suas

músicas em rádios de grande audiência, com a assinatura de

contrato com uma grande gravadora (de preferência uma multinacional) e com um alto patamar de venda de discos – já era.

As vendas de CDs estão em que-da livre, as grandes gravadoras se

agarram cada vez mais às fórmu-las comezinhas e redundantes de sucesso e o rádio deixou de ser o principal território para a divulgação de um novo trabalho. A nova realida-

de para o mercado da música, no entanto, tem oferecido novos espaços, ferramentas e estratégias de produção e de divulgação. No Ceará, esse reflexo é bem evidente. Seja para quem já tem uma carreira consolidada, como o cantor Ednardo, seja para quem já nasceu com a carreira marcada pelas inova-ções tecnológicas, como a dupla Montage. A reportagem de Enredo conversou com ar-tistas cearenses e analistas de mercado para discutir algumas maneiras de encarar e de se posicionar dentro desse quadro mutante.

Blogs e sites especializados em música, fotologs, redes sociais como o My Space (www.myspace.com) e o Tramavirtu-al (www.tramavirtual.com.br), entre outras plataformas virtuais, formam um emara-nhado de novas alternativas de exposição do artista. No entanto, não constituem um fim em si mesmas. A Internet tem facili-tado a comunicação do artista com o pú-blico, mas é insuficiente, segundo alguns músicos, como forma de produção.

“ Temos um modelo que está falindo de modo irreversível e que tem dado lugar a uma espécie de anarquia, que não penso que possa ser razoavelmente considerada como um modo de produção. Não posso fazer futurologia, mas tenho uma esperan-ça de músico: que o fazer musical retorne definitivamente ao palco, seu lugar de ori-gem. Não vejo com simpatia essa atitude de definir um modo de fazer a partir de uma solução tecnológica”, observa Pádua Pires, guitarrista e ex-coordenador de mú-sica da Fundação de Cultura, Esporte e Tu-rismo da Prefeitura de Fortaleza (Funcet).

O cantor Ednardo reconhece a força do ambiente virtual para a música hoje, mas como algo complementar. Ele explica: “A Internet é ferramenta poderosa no con-junto de novas possibilidades, mas opor-tunidades reais não chegam apenas com

a exposição, é necessário que haja conte-údo e identificação com o público, e isto independe do tempo de estrada de cada um. É como se estivéssemos em um ban-quete com milhões de pratos e iguarias servidos de graça à disposição de todos, mas existe limite do ‘apetite’ público. No entanto, o fascínio de ver o artista em per-formance ao vivo permanece, tanto que as gravadoras tradicionais estão se especiali-zando em agenciar artistas de seus casts (catálogos)”.

Além da constatação, Ednardo enumera uma série de novas alternativas (ou ten-tativas) da indústria para viabilizar comer-cialmente a música. Lembra, por exemplo, do download pago – ato de “baixar ” can-ções na Internet em troca de determinado valor financeiro. E, de fato, os números do mercado digital estão crescendo. Segundo o balanço de 2007, baseado em relatório divulgado pela Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD) no início deste ano, a receita com as vendas de fonogra-mas virtuais (via computador ou telefonia celular) aumentou 185% no Brasil e 40% no resto do mundo. Foi a primeira vez que a ABPD divulgou estatísticas oficiais sobre esta fatia mercadológica. Desde que haja o domínio básico de como manter uma página em redes sociais e si-tes de música na Internet, o músico conse-gue ser escutado hoje no mundo todo. No entanto, analistas de mercado crêem que ainda falta muito para o aperfeiçoamento desse novo ciclo produtivo. Certas postu-ras do público e dos próprios artistas não mudaram. O pesquisador Wander Nunes Frota, professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), destaca a expectativa de grande parcela do público em continuar consumindo produtos que já estão con-solidados no mercado musical. “Avanços houve, mas ‘somente’ do ponto de vista da

Page 15: Revista Enredo

visão mais romântica de que a música vai salvar a vida de alguém. Não digo que não vá, mas não é esse o motivo para se prensar 30 mil cópias de um disco. Existe uma visão de que vender sua música é algo ruim. Quando não deveria ser assim. Esse é o choque maior”, observa. Caso recente de quem adquiriu fama fora da ló-gica comercial das gra-vadoras, o Montage, duo

de eletrorock (combinação entre o rock e a música eletrônica) formado por Daniel Peixoto (voz) e Leco Jucá (programações), nunca lançou um disco em suporte físico. A dupla tem apenas três anos de banda e um passo dado de cada vez: se planejou, começou a compor, fez pequenos shows, atraiu público, gerou demandas comerciais pelo trabalho além do nicho local e agora conduz a carreira de São Paulo para todo o Brasil. Hoje, Daniel desconstrói qualquer suspeita de que o sucesso é fácil. “Nada

veio de graça e por isso não me vejo arrogante falando de nossos méri-tos, trabalhamos muito e tudo o que tem aconte-cido nesses anos foi por-que nós demos a cara a bater. Corremos muito. As pessoas acreditam que tudo é muito fácil, ninguém imagina o tan-to que a gente trabalha”, explica o vocalista.

tecnologia em torno da produção, reprodução, difusão e consumo de música popular; isso porque, obviamente, o espírito do apelo ao consumo continua in-tacto, sob outras for-mas, ditas mais ‘mo-dernas’”, avalia. Para Bruno Nogueira, jornalista e mestre em Comunicação Social pela Universidade Fe-deral de Pernambuco (UFPE), com a disser-tação Ok Computer: Novas práticas sociais na indústria fonográfica geradas pela In-ternet , “não tem muito avanço. Claro, hoje muito mais bandas conseguem ser ouvi-das com mais facilidades. Mas até aí, isso só expõe mais bandas ruins do que boas”. Bruno, que também lecionou no curso de Produção Fonográfica das Faculdades In-tegradas Barros Melo (PE), observa que a visão romântica do mercado, herança de um tempo recente em que os artistas ´es-touravam´ desde que fossem descobertos pelas grandes grava-doras, atrapalha uma compreensão mais condizente com a re-alidade da atual cena musical.

“A dificuldade maior é fazer com que os músicos percebam que fazem parte de um processo amplo, que já é industrializado há mais de 60 anos e que, portanto, tem um fim lucrativo. A grande maioria tem uma

Mús

ica

Final do século XIX (1870 – 1900) – Tempo da aparição dos primeiros “fonógrafos”. O nome foi dado pelo norte-americano Thomas Alva Edi-son, em 1877. A invenção era um cilindro gira-tório que reproduzia sons de curta duração.

Início do século XX (1901 – 1930) – Em 1907, a Columbia Gramophone apresenta ao público um disco de dupla face e com espessura de um centímetro. Com avanços técnicos, os discos vão aumentando de tamanho. Os gramofones permanecem na moda até o final dos anos 20.

Discos de 78 RPM e aparição do vinil – A Ele-tric & Music Industries, empresa que mais tarde deu origem à gravadora multinacional EMI, in-ventou, em 1933, as gravações estereofônicas, gravando alguns discos de 78 rotações por mi-nuto (RPM). Somente após a II Guerra Mundial foi que o vinil se sobrepôs à goma-laca, ma-terial que compunha os discos até então. É o Long Playing, ou simplesmente “LP”.

Hegemonia do vinil, a fita cassete e aparição do CD – O vinil dominou o mercado de forma absoluta até a década de 80. A mídia propor-cionava uma qualidade de som lapidada, que não se manteve com o CD. Este novo supor-te de áudio, pensado no fim da década de 70, limitou o potencial sonoro, mas atravessou os

anos 80 se impon-do pelas facilidades de fabricação em relação ao LP. A fita cassete, criada em 1963, acompanhou esse tempo e se tornou, sobretudo, o me-lhor suporte de cópia para áudio naquele período.

Os Anos 90: a era do CD – O CD apresentou problemas de fragilida-de do suporte, como a facilidade de ser arranhado, e por isso teve dificuldades de se firmar na década de 80. No entanto, na década de 90 teve seu boom , período em que os vinis gradativamente deixaram de ser fabricados em larga escala para adiante se tornar fetiches de colecionador.

Dos anos 2000 até hoje – Dos CDs, a música foi para os arquivos de áudio nos computadores, geralmente com a extensão “MP3”. Perdeu mais uma vez em qualidade de som, mas ganhou em possibilidades de difusão e cópia. Com a po-pularidade do MP3, vieram os programas de compartilhamento de arquivos, além de tecno-logias avançadas como o iPod e a veiculação via telefonia celular.

“Acho que cada banda tem que ter seu objetivo de sucesso. Não dá para dizer que ter sucesso é vender tantos mil discos ou tocar em todos os fes-tivais. O MQN (GO) é uma banda de sucesso, nem por isso os integrantes estão nadando na grana e sequer aparecem na MTV. Pitty é uma cantora de sucesso, mas nem por isso conquistou o que o MQN conseguiu” (Bruno Nogueira, jornalista e mes-tre em Comunicação Social)

“Alguns querem as formas medidas por números do mercado tradicional cada vez mais abalado por conta dos downloads gratuitos, piratarias, cópias integrais de toda a discografia, distribuídas entre milhões de amigos e desconhecidos na Web. Ou-

tros entendem como sucesso a preservação da qualidade e manutenção de propósitos artísticos nos conteúdos de seus trabalhos, zelando pelo conjunto da obra, pela perenidade de sua signifi-cância ao longo dos tempos e gerações” (Ednardo, cantor e compositor)

“Para o músico, é preciso estar super antenado a tudo que se refira ao seu metier; para os eternos aproveitadores/atravessadores de sempre, é pre-ciso, aí sim, se deixar levar pelos ‘progressos’ da tecnologia e pelas oportunidades. Para o públi-co ouvinte, bom, o mais de sempre ainda: seguir consumindo música seja como for” (Wander Nunes Frota, professor universitário e pesquisador da MPB)

DEPOIMENTOS

CRONOLOGIA

Pádua Pires: o fazer musical retornando ao seu local de origem, o palco

Ednardo: “oportunidades reais não che-gam apenas com exposição”

outubro 2008 enredo 29

Page 16: Revista Enredo

O poeta e o pintorA

rtes

Plá

stic

as

Livro organizado por Angela Gutiérrez e Estrigas

traz poemas e desenhos inéditos de Antônio Bandeira e revela como pintor e poeta

nunca se distanciaram na trajetória do artista cearense

Ana Mary C. Cavalcante

É como se houvessem misturado as cores de uma mesma paleta. E, dessa mescla, vai-se pincelando o artista Antônio Bandeira (1922-

1967) – ele próprio, ao longo da vida. Veja-se o artista no espelho, no “Poema da explicação”, que assinou: “Meu pai, homem que é artista / precisa entender a vida./ É por isso que ando por aí afora/ procurando os sentimentos./ É preciso que desbulhe o mundo.../ É preciso que ame, que ria, que chore,/ senão eu nada sinto.// Se durmo na alcova duma prostituta/ é porque quero conhecer a carne/ e sentir a brisa da manhã/ depois duma noite de amor.// Se entro num cemitério é porque procuro a cruz de um ami-go/ e quero chorar mais os que choram./ Se penetro numa taverna/ é porque quero sentir o cheiro do ambiente/ e escutar as histórias tristes das garçone-tes.// Busco as emoções – filhas da Vida,/ em nada me excedo”.

O crítico Frederico Morais, citado em biografias de Bandeira, traça: “Acho definitiva, para a compreensão de sua obra, esta afirmação: ‘Nunca pinto quadros. Tento fazer pintura’. Quer dizer, o quadro não pa-rece significar para ele uma realidade autônoma, uma estrutura que possui suas próprias leis, algo que se constrói com elementos específicos. A pin-tura é um estado de alma que ele extroverte aqui e ali, sem outro objetivo que o de comunicar um sentimento, uma emoção, uma lembrança. Enfim, é uma transposição de seres, coisas, momentos, gos-tos, olfatos que vou vivendo no presente, passado, no futuro’”.

De modo que falar de Antônio Bandeira como um dos mais significativos pintores nacionais (sim, porque ele criou asas) é dizer somente uma parte – a que todos vêem. O livro Bandei-ra: Verso e Traço (Edições UFC, 2008), organiza-do pelos mestres Angela Gutiérrez e Estrigas para celebrar os 40 anos de morte de Antônio Bandeira e do qual salta o “Poema da Explicação”, amplia o pintor em artista. Pois artista é um des-tino de muitas possibilidades. E Antônio Bandeira veio de dois nascimentos.

Observadores como Mário Baratta e Sérgio Millet, trazidos à tona por Gutiérrez, na apresentação do referido livro, viam lirismo, condição poética, na pin-

tura de Bandeira. Talvez esse tenha sido o primeiro parto, o do “poeta que não precisa de palavras para fazer poesia”. Mas houve um segundo nascimento, o do escritor. “Primeiro, me deram de presente as nuvens, depois uma sunga de veludo vermelho, e aí começou a nascer uma liberdade imensa”, revelou o próprio, no emblemático auto-retrato oral de 1960. “O pincel e a pluma são instrumentos que servem a seu sentido do poético, confirmando o que disse Baratta: ‘Bandeira poetiza tudo que trata’”, resume Angela Gutiérrez.

Na realidade, é difícil determinar qual deles viu o mundo à frente, se o poeta, ou o pintor. O fato é que os dois sempre dialogaram. Leia-se, por exemplo, “Criar seres que não existem”, outro recém-descober-to: “Criar seres que não existem/ Misturar o céu com a terra/ Falar ao homem numa nova linguagem/ Ou não falar língua nenhuma/ Enviar uma mensagem aos contemplativos”.

Desenhos de Bandeira reunidos no livro (ao lado e na página seguinte): cearense

não pintava quadro, fazia pinturas

Page 17: Revista Enredo

Poeta e pintor se encontram também no livro Bandeira: Verso e Traço. A coletânea dá a luz a 51 poemas (no original, 61 páginas datilografadas em cópia xerográfica) e 74 desenhos que chegaram à Universidade Federal do Ceará (UFC), em 61 pági-nas datilografadas (cópia xerográfica), pelas mãos da sobrinha do artista, Cleide da Silva dos Santos. Um estrangeiro na França (vida de artista ressaltada em poemas escritos em francês) e reflexões sobre a poética são temas-esboços recorrentes. Já os casos (ou causos) amorosos e os monólogos intimistas têm maior fôlego. As mulheres, além do imaginário, ocupam páginas e páginas de versos e desenhos.

Igualmente marcante é a comunhão com os desvalidos. Como neste trecho de “Eu vi a mulher do Nordeste namorando o mar” (trecho): “Eu olhava a mulher do Nordeste/ tez bronzeada e grandes olhos/ De ela se abaixou para apanhar búzios/ então vi os seios dela/ (não maldeis ó cínicos homens da cidade!)/ vi os seios mas não vi carne nem gozo/ só vi sofrimento e consolo duma prole inteira.// Deu depois os búzios às crianças/ e banhou a cabeça com água salgada/ tão diferente (ela sentiu) da água doce da lagoa!/ Para dar mais beleza ao namoro da mulher e o mar// imaginei ali brancas gaivotas/ porque ela só conhecia os passarinhos do sertão”. Bandeira vai-se pincelando. Os poemas vão se transmutando, aqui e ali, em retratos da infância – talhados também pela condição de nordestino. Para alcançar o menino, siga as saudades de “Indagação à meninice”: “Quede meus companheiros de infância/ os que comigo brincavam nas noites de lua?// E as meninas poéticas (naquele tempo eu não as sabia)/ aonde foram se esconder que não vêm a mim?// Será que ainda brincam de esconde-esconde/ no meio das notes espalhada/ as noites que me levam ao mundo/ e me fazem pensas nas vigílias infinitas?/ Ó meninice, por que fugiste levando meus companheiros líricos?/ me deixando vagar numa noite infinita e escura?”.

Ao lado do apuro, uma espécie de rascunho. Se o pintor surpreende com declarações como as do “Poema artístico”, o poeta erra a mão em “Uma coi-sa”. Na ordem: “Pintando espalharei pelo mundo/ Toda minh´alma observadora,/ mostrarei aos povos as minhas lágrimas/ e também as dos que sofrem./ Buscarei nas vielas as prostitutas/ para mostrar o mundo a grande dor./ Subirei aos morros longín-quos/ e trarei de lá o mormaço e a miséria./ Busca-rei o soldado semi-morto/ e ensinarei ao mundo a dor do ódio/ e da compaixão pela humanidade./ Por cima dos cadáveres derramarei flores/ e per-

fumes e náuseas farei que os povos sintam./ Cinti-larei os olhos tristes do inocente/ fazendo que ele começa o bom caminho/ e me remirei dos meus pecados/ encontrando na Arte a morada de deus”. “Uma coisa/ um ovo/ um sol/ um nascimento”.

Falta o acabamento, em alguns versos. Ainda assim, Bandeira: verso e traço nos dá impressões do artista quando jovem. Ou melhor, revela-nos sua identida-de. “Parecem estudos ou fragmentos de obra maior que, na realidade, constitui-se no grande tecido do conjunto da obra de Bandeira”, avalia Angela Gu-tiérrez. “Da vida à França à vida no Nordeste, dos sentimentos de criança às dores do amor-paixão, da reflexão universalista sobre a arte à compaixão pelos que sofrem, os temas poéticos de Antônio Bandeira retratam um ´poeta puro, claro e bom’”, completa.

Na outra face, mostra Estrigas, os 74 desenhos iné-ditos “revelam os caminhos do autor entre a forma, a expressão e a criatividade, no relacionamento com a técnica e o processo, caracterizando e iden-tificando o momento e desenvolvendo no tempo... A figura humana marca presença no todo ou em parte. No limite do traço e da expressão da man-cha, na forma mais livre e na execução mais bem elaborada, às vezes, fugindo de uma forma para outra mais subjetiva. E ele andou também pelas paisagens rurais e marinhas, nos trechos de rua, natureza morta e objetos”. Pintor e poeta nunca se distanciaram. “Nos seus trabalhos, a expressão do sentimento humano se mostra no olhar, na postura do corpo, no gestão das mãos e o claro-escuro no seu monólogo e diálogo diz coisas que as coisas não dizem”. É como se houvessem misturado as cores de uma mesma paleta.

Ana Mary C. Cavalcante é jornalista.

Com um acervo formado por obras e curiosida-des do ateliê de Antonio Bandeira - estudos, quadros inacabados e outras peças -, a expo-

sição Desconfigurações, que em novembro entra em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da Uni-versidade de São Paulo (MAC/USP), fará um passeio pelas diversas veredas do processo criativo do artista plástico cearense, com destaque para as experimen-tações que lhe permitiram passar da arte figurativa ao abstracionismo. Na curadoria da exposição, estão José Guedes, diretor do Museu de Arte Moderna do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC); e Roberto Galvão, dire-tor de Ação Cultural do CDMAC. Eles lembram que a mostra a ser aberta em São Paulo nasce de duas outras exposições realizadas sobre a obra de Antônio Bandeira no Museu de Arte Contemporânea do Dra-gão do Mar. A primeira, chamada Invasão de Privaci-dade, tinha como foco o desenho erótico do artista; e a segunda, que levava o mesmo nome da exposição da USP, discutia a passagem de Bandeira da figuração para a abstração.

Com o convite feito pela diretora do MAC/USP, Lisbeth Rebollo Gonçalves, para que os organizadores dessas exposições montassem uma mostra semelhante em São Paulo, Guedes e Galvão vislumbraram a oportuni-dade de montar uma grande exposição que lançasse pistas de todas as fases criativas de Bandeira ao longo dos trinta anos de sua produção, de suas primeiras pinturas às obras inacabadas. “Há coisas dos anos 40, anos 50 e anos 60, porque ele trabalhou durante três décadas e morreu prematuramente em 67”, ilustra Roberto.

O acervo que serviu de base para a exposição per-tence ao Governo do Estado do Ceará e é formado por obras adquiridas ao longo dos últimos anos. “É um acervo intimo do artista, aquilo que ele guarda. Porque à medida que o artista produz, algumas coisas vão para o mercado e outras coisas são guardadas”, reforça Roberto, que ainda está definindo, junto com a direção do museu paulista, a data de abertura da ex-posição. Ao todo, cerca de 180 obras ficarão expostas no MAC/USP entre novembro deste ano e fevereiro de 2009.

A exposição é dividida entre as três fases marcantes da pintura de Antônio Bandeira. A primeira traz suas criações figurativas, datadas da década de quarenta. A segunda, que se inicia no fim dos anos 40 e se estende pela década de 50, se detém em sua fase transitória,

quando o artista realiza suas primeiras experiências abstracionistas. Já a terceira evidencia o engajamento definitivo do artista no campo do abstracionismo.

Segundo os organizadores, a força do acervo consis-te em mostrar detalhes e curiosidades de cada uma dessas fases do artista. Serão expostos, por exemplo, quadros figurativos pintados na França, quando o ar-tista já havia ingressado em sua fase abstrata; e obras classificadas como abstracionismo informal e que se antecipam ao que a história da arte considera como marco inicial dessa corrente artística. “Nós temos qua-tro ou cinco obras de 48 que são uma raridade, em que você já vê indício de abstrações. São obras im-portantes historicamente porque é o comecinho do abstracionismo informal”, reitera Guedes. “A pessoa ia dizer, ‘vixe, um abstrato informal em 48? Mas o Pollock só começou a fazer isso em 49’. Isso pode botar mi-nhoca na cabeça das pessoas”, antecipa Roberto.

Apesar de ter participado de movimentos importantes para as artes plásticas e de ter antecipado propostas de artistas amplamente valorizados em nossos dias, Bandeira, na opinião de Galvão, não tem um grande reconhecimento fora do País. “O Bandeira é um artis-ta, na minha visão, um pouco injustiçado em termos internacionais, por dois motivos: primeiro porque ele sempre estava no lugar errado na hora certa (risos)”, define. “Ele não participou da primeira exposição do abstracionismo informal que aconteceu na Europa. Ele estava no Brasil nessa época. Ele tinha começado (a pintar obras de abstracionismo informal) com o Bryen (Camille Bryen) e com o Wols (Wolfgang Wols), tanto que temos obras de 48 e a primeira exposição foi em 49”.

Galvão também aponta que o fato de Bandeira ter sido ofuscado em relação a seus companheiros de corrente artística é resultado de uma postura histórica do governo brasileiro, que pouco investe em políticas públicas de cultura para valorização e promoção dos artistas nacionais. “Há uma ausência de tradição dos governos brasileiros de promoverem seus artistas. Os Estados Unidos (EUA) fazem isso assustadoramente. Uma vez, eu cheguei na Europa e me surpreendi por-que havia oito exposições do Frank Stella. Que diabo é isso? É o governo americano jogando as fichas po-liticamente pra mostrar que ocupa oito museus com obras do Frank Stella”, comenta Roberto, complemen-tando que a arte brasileira começou a ter destaque internacional a partir de ações privadas, de galerias que foram se fortalecendo no mercado internacional. (da redação de Enredo)

A intimidade de Bandeira

Art

es P

lást

icas

outubro 2008 enredo 33

Page 18: Revista Enredo

Jarbas OliveiraFo

togr

afia

A espontaneidade e a exuberância da cultura popular do Cariri captadas pela lente do fotógrafo Jarbas Oliveira.

Page 19: Revista Enredo

Foto

graf

ia

outubro 2008 enredo 37

Page 20: Revista Enredo

Foto

graf

ia

outubro 2008 enredo 39

Page 21: Revista Enredo

Foto

graf

ia

outubro 2008 enredo 41

Page 22: Revista Enredo

Foto

graf

ia

outubro 2008 enredo 43

Page 23: Revista Enredo

Foto

graf

ia

outubro 2008 enredo 45

Page 24: Revista Enredo

O jornalismo contemporâneo (assim como muitas outras coisas hoje em dia: para-digmas científicos, valores sociais, cren-

ças políticas, as coisas que a gente compra para a nossa casa...) tem passado por uma série de questionamentos. Um dos motivos disso seria a Internet e suas noções de tempo real, de ins-tantaneidade, de rapidez, que fazem com que o jornal se torne, muitas vezes, obsoleto antes mesmo de ser rodado.

Isso gera um efeito estranho. Basta entrarmos umas três vezes, no mesmo dia, num mesmo portal de notícias, para bater aquela sensação esquisita: “ih, não está acontecendo nada ago-ra!” ou “já li essas manchetes agora há pouco”. O excesso de velocidade nos leva ao excesso de

impaciência. Não à toa (mas doendo no ouvido e no cérebro), há quem proponha trocar a ex-pressão “jornalista” (“jornal” diz respeito à jornada do dia, “journée” em francês) pelo termo “instan-taneísta” (aquele que relata os fatos instantâneos, do momento). Duvido que pegue: é muito feio e comprido.

Mas uma das discussões recorrentes (em espa-ços acadêmicos ou mesas de bar, depende da ocasião e do momento) é sobre como o jornal em papel deve se comportar, na medida em que as pessoas estão se acostumando a ler como na Internet (de modo rápido, clicando sem pa-rar, fragmentadamente). Isso não é novidade no mundo da mídia: os jornais ficaram em polvo-rosa quando a TV surgiu. Tanto que, quando o

Internet de papel?Atônito com a Internet, que conectou diferentes tipos de

textos e linguagens, o jornalismo tenta rever uma secular tradição de “analfabetismo visual” entre leitores que

não sabem usar imagens a seu favorRicardo Jorge

Nov

as T

ecno

logi

as

Foto

graf

ia

46 enredo outubro 2008

Page 25: Revista Enredo

USA Today, no começo dos anos 80, disse que ia diminuir o tamanho das notícias, investir em mais gráficos e imagens para rivalizar com a TV, passaram a chamá-lo de “TV de papel”. Ao que parece, parte dos jornais quer se tornar “internet de papel”...

Em parte, isso é culpa da própria cultura escrita. Ao se definir que o padrão culto era, por assim dizer, o “textual”, o que se fez foi reforçar a idéia de que a imagem era algo atrasado, voltada ape-

nas para analfabetos e malletrados (em parte por conta da Igreja, que dizia que as imagens não deviam ser cultuadas, mas apenas auxiliares dos textos; basta lembrarmos do que defendia o papa Gregório I: a imagem era “a escrita dos ile-trados”). O resultado disso é que temos milhares de páginas apenas escritas e um monte de “anal-fabetos visuais” que só sabem escrever, porque não sabem como usar as imagens a seu favor, em prol de uma compreensão do que está sen-do exposto textualmente. Tanto que o advento

da imagem na imprensa (primeiro os desenhos, depois as fotografias) foi recebido numa espécie de misto de espanto e indignação, como se pala-vras e imagens não pudessem estar juntas.

Esse preconceito às avessas em relação ao tex-to custa caro ao leitor: acredita-se que palavras são suficientes, quando bem usadas, com esti-lo. Mas como se descreve um som de eco, por exemplo, sabendo-se que há diferentes tipos de eco? Como se referir, textualmente, a um traba-lho de Jackson Pollock, sem cair numa descrição imbecilizante? Certo, podemos usar metáforas, metonímias e quantas outras figuras de retórica quisermos, mas as melhores palavras não subs-tituem, muitas vezes, os melhores sons e as me-lhores imagens.

Por outro lado, o que estou a dizer não significa a anti-apologia das palavras, prontas para serem descartadas no lixo da história. Li recentemen-te em alguns blogs uma série de diferentes re-senhas sobre “Wall-E”, a mais recente animação Disney/Pixar. A maioria delas (e acho que seus autores leram uns aos outros antes de escrever...) tecia loas ao fato de que quase não havia diálo-gos no filme, de que ele remetia aos trabalhos (mudos) de Charles Chaplin e Buster Keaton ou ao 2001 de Stanley Kubrick, de que não era preciso palavras para o filme etc. Mas a ausên-cia (ou o uso comedido) de palavras por si só não empresta qualidade a um filme, mas sim a qualidade do roteiro (quando o cineasta faz uso dele, o que não acontecia com Jacques Tati, por exemplo). Se assim fosse, não precisaríamos de filmes de Billy Wilder, Woody Allen e cineastas similares, cuja força está (também) na qualidade dos diálogos, nem precisaríamos de adaptações cinematográficas da obra de Shakespeare, o que faria a infelicidade de Orson Welles, Laurence Oli-vier e Kenneth Branagh...

Um dos melhores livros que tenho sobre semi-ótica (se o amigo leitor não souber o que é isso, não tem problema; aqui, isso é irrelevante) é uma obra que traz ilustrações em todas as suas

páginas. Assim, através de desenhos e esquemas visuais, compreende-se melhor, por exemplo, aquilo que Charles S. Peirce tão mal redigia (con-venhamos, inteligibilidade não era o forte dele...). Mas o mais importante desse livrinho fartamen-te ilustrado é o fato de que ele articula, de modo inteligente, textos e imagens, facilitando a vida do seu leitor.

Por que o jornalismo impresso está, até certo ponto, atônito com a Internet? Porque, por um bom tempo, o “Jornalista” (com “j” maiúsculo) era apenas (ênfase a esse “apenas”) aquele que sabia escrever (herança da presença dos escritores nas redações). Qualquer outro cidadão, a princípio, que não soubesse escrever, não era jornalista de fato. Ora, a Internet não é apenas o terreno da palavra escrita (em abundância, nos sites, e-mails, fóruns, chats...), mas também das outras linguagens (sons, imagens) e da conexão digital (vínculo ou link) entre diferentes tipos de textos (textos, músicas, fotos, vídeos, animações).

Sendo assim, o que deveria fazer o jornalismo impresso? Como afirmamos acima, não dá para concorrer na mesma velocidade da Internet (o que já ocorria com o rádio e a TV, vale lembrar), a defasagem será sempre uma constante. A meu ver, as empresas jornalísticas que querem ainda manter produtos impressos deveriam se preocu-par com dois aspectos:

1) se preocupar menos com o “o quê” dos fatos e mais com o “como e porquê” dos fatos. Ou seja: em vez de meramente descrever, deveria tentar explicar o que aconteceu e por que aconteceu; e

2) se preocupar com a qualidade visual do que vai informar ao leitor. Infografias, gráficos, tabelas e esquemas visuais do tipo passo-a-passo não são meras ilustrações para preencher espaço nas páginas dos jornais.

Um bom esquema explicativo, que mostra como está a composição de uma câmara municipal após uma eleição, o padrão de

jogo de um time de futebol ou o processo de mapeamento do DNA, vale mais do que um mero relato de palavras. Mas esquemas visuais em nada ajudam se não estiverem devidamente contextualizados, atrelados a opiniões de fontes, especialistas e afins, e para isso um texto escrito é fundamental.

Em suma: o equilíbrio (sei que parece um cli-chê vagabundo...) é a melhor saída. Junto com um pouco de humildade para saber que nem o

texto, nem a imagem, podem tudo sozinhos. E isso me lembra uma famosa frase de Jean-Luc Godard: “mot et image, c’est comme chaise et ta-ble: si vous voulez vous mettre à table, vous avez besoin des deux” (“palavra e imagem, é como ca-deira e mesa: se você quiser se sentar à mesa, vai precisar de ambas”).

Ricardo Jorge é jornalista e professor do

Departamento de Comunicação Social da

Universidade Federal do Ceará (UFC)

Nov

as T

ecno

logi

as

Wall-E, animação da Disney/Pixar: qualidade do filme definida pela qualidade do roteiro

Quadro de Pollock: como fugir às descrições “imbecilizantes”?

48 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 49

Page 26: Revista Enredo

Apesar do desgaste comum à idade, vê-se que é resistente. Talvez pelas páginas em papel de trapo, fabricado a partir de rou-

pas velhas, cascas de árvores e fios de cânhamo. Tem 510 anos e, em breve, receberá uma repa-ginada no visual: uma hidratação no couro de sua capa. Trata-se de Bvcolicorvm, Georgicorvm, Aeneidos, volume com as obras completas do poeta romano Virgílio, livro mais antigo do acer-vo da Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel. Impresso na Alemanha e inteiramente escrito em latim clássico, o incunábulo perten-ceu ao professor Amorim Sobreira, intelectual cearense do século passado e um dos maiores

colaboradores da biblioteca. O livro antigo e pe-sado, guardado delicadamente numa caixa en-volta por um laço, é a grande vedete do setor de Obras Raras da Biblioteca.

A seção existe desde maio de 1975, quando, du-rante o governo de César Cals, a Biblioteca Pú-blica mudou-se para sua sede atual, na avenida Presidente Castelo Branco, por trás do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Uma espécie de manual de instruções, à disposição do visi-tante logo na entrada do setor, informa o que é permitido e o que não se pode fazer durante o passeio entre as obras raras. Tudo para ajudar

Jóias de PapelUm passeio pelo setor de obras raras da Biblioteca Menezes

Pimentel, um reduto de estudo e pesquisa onde repousam tesouros publicados há mais de cinco séculos

Lina Cavalcante

Ace

rvos

Bvcolicorvm, Georgicorvm, Aeneidos: livro mais antigo da biblioteca

Page 27: Revista Enredo

na conservação dos cerca de 15 mil livros do departamento.

Não é permitido, por exemplo, o uso de cane-tas nem a retirada ou fotocópia de qualquer obra. O uso de notebooks e câmeras fotográ-ficas precisam de autorização prévia. Luvas e máscaras são obrigatórias ao se folhear as pá-ginas - as primeiras para proteger os livros da gordura contida nas mãos de seus leitores; as segundas para proteger os leitores dos fungos eventualmente incrustados nos volumes. Ape-nas os funcionários podem retirar os livros das prateleiras. Para um contato mais próximo com as raridades, um acervo repleto de fac-símiles rodeia as mesas disponíveis para estudos e sa-cia algumas sedes. “Tem criança que vem aqui e quer ver um livro raro de qualquer jeito. Para ela não sair desapontada, mostramos essas edições, algumas bem ilustrativas e elas saem daqui satisfeitas”, conta Madalena Figueiredo, bibliotecária do setor. Entre os livros acessíveis, o sucesso é garantido numa edição que conta a história das capitais brasileiras por meio de car-tões postais antigos.

Outro caminho para uma relação mais íntima com as raridades são as exposições organiza-das pelos funcionários. Livros do acervo são

selecionados em torno de uma temática e exibidos em vitrines no próprio setor, acompa-nhados de ilustrações e textos explicativos. Já ocorreram mostras sobre a Padaria Espiritual, o Dia Internacional do Livro e também sobre a história da própria biblioteca. Atualmente, uma exposição alusiva à obra de Machado de Assis está sendo organizada, aproveitando a efeméri-de do centenário de morte do escritor. Entre as raridades pesquisadas pela equipe responsável pela mostra, já foi encontrada uma edição da Revista Brasileira do fim do século XIX, da qual o romancista era um dos colaboradores.

O número exato de obras raras do setor ainda não foi levantado. O processo de catalogação está em andamento e muitos livros — a maioria do antigo setor de preservação —, estão misturados entre os considerados raros. Duas equipes de bibliote-cários, formadas através de projetos financiados pela Petrobras e pelo BNDES, ajudam no registro dessas obras. O departamento conta também com mais três funcionários fixos para auxiliar no trabalho de organização e conservação dos livros. Cinco mil obras já estão no banco de dados do setor. Outras 4 mil estão sendo catalogadas pelos projetos da Petrobras e do BNDES e a estimativa da direção da biblioteca é que cerca de 8 mil títu-los ainda serão selecionados para o setor.

Ace

rvos

Detalhe de A oratória de Marco Túlio Cícero: processo de catalogação das obras raras está em andamento

52 enredo outubro 2008

Page 28: Revista Enredo

Os critérios utilizados na hora de definir uma obra como sendo rara ou não são vários. A data de publicação, o valor agregado - como ilustração assinada por um artista renoma-do -, a tiragem, o nú-mero de exemplares existentes e a procura pela obra são alguns deles. Entre as rarida-des já chanceladas pela Biblioteca estão A Oratória de Marco Túlio Cícero (de 1520); os 31 volumes do Código de Napoleão (de 1865), com detalhes em ouro; uma outra edição de Bucólicas, de Virgílio (1559); e História do Cerco do Porto, de Simão José da Luz Soriano (datada de 1846).

A sobrevivência de todas as obras da biblioteca e principalmente das consideradas raras depende diretamente do Laboratório de Restauro. Por lá, cinco funcionárias cuidam da conservação dos livros. Atualmente, 2 mil títulos do setor de obras raras estão sendo higienizados. Além deles, ou-tros 80 serão restaurados. Em linhas gerais, o tra-balho de conservação consiste na retirada do pó

e dos pontos de fungo, e é realizado página por página. A química Juliana Parrião, munida de

trincha e bisturi, trata os “ferimentos” das obras e explica que o mais importante é o cuidado, a higienização e a continuidade

do trabalho. “A restauração é indicada para os casos mais graves, pois requer

mais tempo e material — mas não fere a originalidade da obra”, diz. Há ainda os livros que, em função de

seu estado de degradação não podem mais ser higienizados nem restaurados.

Esses vão para o setor de acondicionamento.

Mensalmente, o setor de obras raras recebe cer-ca de 40 visitantes, entre estudantes, jornalistas, pequisadores e historiadores. Gilmar de Carva-lho, pesquisador e professor doutor do Departa-mento de Comunicação da UFC, é freqüentador assíduo do local. Ele esteve entre as raridades da biblioteca pela primeira vez em 1984 e criou com o lugar uma relação intelectual que já se estende por mais de duas décadas. “Para o livro sobre (o escultor) José Rangel, o último que lan-cei, pesquisei livros que falavam do município de Jardim. Li também Gardner, um viajante que esteve no Cariri no século XIX”, conta.

ServiçoO Setor de Obras Raras abre de segunda a sexta das 8 às 21hBiblioteca Pública Governador Menezes PimentelAv. Presidente Castelo Branco, 255 - CentroCEP: 60010-000 - Fortaleza - CEFone: (0xx85) 3101.2546

Fax: (0xx85) 3101.2544 - [email protected]

Ace

rvos

Detalhes dos volumes de Bucólicas, de Virgílio; e de História do cerco do Porto, de Simão José da Luz: setor de obras raras recebe cerca de 40 visitantes por mês

outubro 2008 enredo 55

Page 29: Revista Enredo

Patr

imôn

io

Fábio Marques

Da cana-de-açúcar, extraiu-se a garapa que, sobre o fogo, virou mel. Daí, vieram o açú-car, a rapadura, o alfenim (puxa-puxa) e,

destilada nos alambiques, a cachaça. Com ela, o Brasil se declarou nação e construiu uma história que, em muitos momentos, se confunde com a da própria bebida. Reconhecida hoje como pro-duto genuinamente nacional, a cachaça era filha bastarda da valorosa cana-de-açúcar no período colonial. Suas participações na história são diver-sas: foi utilizada como principal moeda de troca nos portos com navios vindos da África durante o tráfico de escravos; era dieta obrigatória dos negros que cruzavam o atlântico, servida como alento às dificuldades e ao sofrimento da via-gem; foi símbolo de movimentos nacionalistas e de independência, quando era levantada em lugar da bebida estrangeira. Por fim, entranhou-se no folclore, na religião, nas práticas sociais, nos rituais de passagem, na música, na rua, na casa e, claro, nos botequins.

A cachaça ganhou o mundo com uma velocida-de e uma profundidade que impressionam. Câ-mara Cascudo chama atenção para o fato de a

Cachaça nas alturas

Entre as veredas da Serra de Ibiapaba, centenas de produtores artesanais cultuam a secular tradição da cachaça de Viçosa, uma das mais famosas bebidas do Estado.

Suco de cana-caianaPassado nos alambique,Pode sê qui prejudiqueMas bebo toda sumana.*

Bebe o chefe de políciaparticular ou escondido,o padre por mais sabidotoma seu trago na missaEu também tive notiçaou por outra ouvi dizer,e tanto que posso crer no dizer de certa genteque bebendo o presidentenão é defeito beber**

(*verbete popular retirado do Prelúdio da Cachaça e

** do Dicionário do Folclore Brasileiro, ambos de Luis

da Câmara Cascudo.)

Alfredo Miranda: pife embala as visitações da Casa dos Licores

56 enredo outubro 2008

Page 30: Revista Enredo

cachaça ser o único caso na história em que um produto estrangeiro é rápida e fortemente assi-milado em rituais religiosos e sociais em vários locais, como é o caso de países da África, Ásia e Oceania. Está na boca do presidente (como sa-tiriza o verbete acima) e está na boca do povo: é a cana, a pinga, a caninha, aquela-que-matou-o-guarda, o tira-teima, o cobertor-de-pobre, o forra-peito, o suor-de-alambique, a água-que-passarinho-não-bebe, a ‘marvada’... é a bendita! Presente em todo o território nacional, a cachaça tem como principais produtores estados como São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Ceará. Anualmente, o mercado brasileiro conso-me quase um bilhão de litros da bebida, dividi-dos entre cerca de 5 mil marcas que atendem um consumo per capta de 5,6 litros por ano. No Ceará, além do alto consumo e da forte produ-ção industrial, com grandes marcas de alcance nacional e internacional, há um incontável nú-mero de pequenos engenhos que produzem cachaça de forma artesanal espalhados por todo seu território. Em busca desse artesanato, do contato com o mundo de quem extrai da terra a água que pas-sarinho não bebe, subimos a serra da Ibiapaba, uma das principais regiões produtoras do Estado e berço de uma das melhores cachaças do País. Envelhecida em aroeira ou pau d´arco, a cachaça serrana de Viçosa do Ceará (cidade localizada a 334 km de Fortaleza e a 740 metros de altitude) é dona de uma vermelhidão marcante e de uma fama que traz gente de vários locais à procura de uma boa garrafa. Entre as veredas da serra, é pos-sível encontrá-la em vários formatos: em garrafas sem rótulo, sob marcas como Viçosense ou Dom Chiquinho I, ou mesmo diretamente nos tonéis da região.

Na trilha dos mistérios da cachaça de Viçosa, descobrimos o quanto a cachaça está enraizada na vida dos moradores. Mesmo quem não bebe produz ou vende. Ou simplesmente entende do assunto, resultado de uma tradição que se esten-de há várias gerações. A gênese artesanal come-ça com o plantio movido à mão, enxada e jegue, passa pela destilação - com qualidade verificada na boca e no nariz -, pelo engarrafamento e pelo armazenamento em tonéis, antes de chegar aos estoques de vendedores apaixonados, que ali-mentam a magia e o folclore em torno do pro-duto que vendem.

Na trilha da cachaça - Ciceroneados por Dom Chiquinho I, engarrafador e vendedor de cacha-ça (que leva seu apelido no rótulo), chegamos a Ibiapaba e nos embrenhamos em busca dos produtores artesanais da região. Sem uma conta exata, Dom Chiquinho estima em mais de cem os pequenos engenhos espalhados entre aque-las plantações de cana-de-açúcar.

Conhecido na região por seu apelido (que ga-nhou quando desfilou de rei momo no carna-val), Dom Chiquinho nos leva, segundo ele, ao engenho do maior produtor artesanal da região e também seu maior fornecedor: Raimundo Ro-cha, proprietário dos 25 hectares que compõem o sítio Tranqueira. Depois de muita piçarra, buraco, atoleiro e um leve ar de desnorteio, chegamos ao sítio, onde o som da moenda e as intermináveis pilhas de cana seca nos garantem o destino correto. En-quanto esperamos por Raimundo (que, pego de surpresa por nossa visita, pede licença para colocar uma camisa e pentear os cabelos), pilhas de cana recém-cortada vêm chegando no lom-bo de jumentos, pelo menos seis deles, enfilei-

Tomaz Aquino de Souza

Patr

imôn

io

Tomaz Aquino de Souza: tonéis, portas, cadeiras e cruz de cemitério58 enredo outubro 2008

Page 31: Revista Enredo

rados, vindos da estradinha de terra e entrando porteira adentro sem guia, como quem já sabe o que tem de ser feito. Dom Chiquinho antecipa: assim que eles param, se ninguém tirar logo a cana, eles se deitam. E assim fizeram, exaustos de dar dó. Pai de quatro filhos que vivem da produção do engenho, Raimundo é descendente e herdeiro de produtores de cachaça e rapadura, em um ciclo produtivo que vem de longe. Ele lembra que o atual engenho começou a produzir em 1952, com seu pai, inicialmente se restringindo à fabricação de rapadura. Em 1980, no entanto, começou a produção de cachaça – o que fez o engenho abandonar paulatinamente a produ-ção da rapadura. “De primeiro, era rapadura. Pra tomar um cafezinho era com a rapadura, toda coisa era rapadura. Aí teve uma queda nas ven-das”, relembra Raimundo, justificando a mudan-ça de produção.

O claro gosto pela rapadura e o fato de nunca ter gostado de beber cachaça não inibem, entre-tanto, o carinho que ele tem pela fabricação da aguardente. Com uma ‘ciência’ apurada na arte da destilação, ele explica que chegou a ir para Minas Gerais durante um curso de formação ofe-recido aos produtores locais para adquirir novas técnicas e maneiras mais higiênicas de produção e armazenamento.

Dando seqüência à visita, ele nos leva para co-nhecer cada etapa da fabricação, começando pela moenda, fase mais barulhenta, onde a cana passa do lombo dos jumentos para as mãos dos moedores que empurram as toras pelos motores dos engenhos. O sumo desce através de canos, por onde seguem pela ação da gravidade até a sala de fermentação, enquanto o bagaço se acumula no envolto da maquinaria. A garapa é

decantada em uma espécie de banheira, para a retirada das impurezas, e é fermentada em se-guida, transformando-se na chamada “garapa doida”, um líquido meio azedo e com leve teor alcoólico. Durante a fermentação, que dura 24 horas, o barulho das moendas é substituído pelo forte chiado das bolhas, que mais lembram um sonrisal posto n’água. Por fim, a quentura das fornalhas que fervem a garapa doida dentro dos alambiques. Em se-guida, o vapor da cachaça que cai já pronta na outra ponta do alambique dá uma certa tontura de embriaguez e um ardor nos olhos, como se o álcool penetrasse através dos poros.

Dali, a cana recém-fabricada é filtrada e armaze-nada em tambores de plástico para ser vendida. Perguntado sobre a quantidade da produção, Raimundo tenta desconversar. “Eu ainda não somei mais ou menos não, mas dá muita coisa. Num sei quantos mil litros por dia”, responde. É o maior da região?, pergunto. “Rapaz, a ‘negada’ sempre fala”, conclui. Sítio Delgado - Rodando mais um bocado entre as estradas desgrenhadas que circundam a cida-de de Viçosa, batendo sem sucesso à porta de produtores ausentes, chegamos no dia seguinte ao sítio Delgado. Dessa vez, sob os cuidados de Cristiano Cavalcante, guia turístico da região - dando folga a Dom Chiquinho, que tem muita cachaça para vender. Piauiense de nascença e também vindo de famí-lia de produtores, seu Chico Gabriel era o dono do “engenhinho” (como ele mesmo se refere) que funciona no sítio. Trabalha com cana-de-açúcar desde 1952, produzindo rapadura, e a partir de 1980, com cachaça. Também movido pela valo-rização dessa em detrimento daquela. “Eu fazia

rapadura cinco dias na semana. Começava se-gunda-feira até sexta-feira. Sexta-feira eu vendia para um fabricante desmanchar a rapadura e fa-zer cachaça. Aí, eu fazia a despesa todinha e ele distribuía ela lá e fazia cachaça”, lembra. Dom Chiquinho já se referira à década de 80 como “uma grande desgraça” para os produto-res da Região. Foi nesse período que o Governo Federal intensificou a fiscalização dos engenhos artesanais e passou a cobrar dos produtores me-lhorias de higiene, controle de qualidade e pa-gamento de taxas para a obtenção do alvará de funcionamento. “Meu sogro tinha uma fábrica amarrada pela Receita Federal. Que foi quando eles começaram. Eles amarraram. Ali só funcio-nava se ele registrasse. E ele disse que não ia re-

gistrar fabrica de cachaça não. Aí ele ficou traba-lhando na rapadura”, conta o velho produtor. Descontente com a produção de rapadura, que acontecia em terras arrendadas, Chico arren-dou o engenho do sogro, registrou, e dali está até hoje na produção da cachaça. Ao longo dos anos, adquiriu sete hectares de terra para plan-tio, três pequenos engenhos, vendendo sem-pre um para comprar outro melhor, e já vende suas cachaças para vários estados do norte-nordeste, entre eles, Pará, Maranhão, Piauí e o próprio Ceará. Ainda descontente com o preço da cachaça que vende, ele procura se organizar junto a outros produtores artesanais da região, apostando na qualidade como argumento para a alta dos preços.

Patr

imôn

io

Chico Gabriel: cachaça de Viçosa segue para vários estados do Nordeste

60 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 61

Page 32: Revista Enredo

“O lugar que dá cachaça melhor que tem é aqui, na Serra, porque a cana é doce. É cana-de-açúcar mesmo”, explica, mostrando um pouco de rapa-dura produzida na região. “O sistema é o doce que tem a rapadura. Você vai pro sertão e lá é salga-da, a garapa é salobra. E o doce daqui é doce, é doce mesmo, doce açúcar. Eu quero dizer que é por isso”, arrisca. E para não se comprometer arris-cando também que a sua cachaça é a melhor do local, despista: “cachaça é cachaça. Aquilo o bebe-dor é quem pode dizer se é melhor. Eu não posso não. Agora, aqui o bebedor fala: é cachaça boa”.

O segredo da cana velha – Apesar de tantos alambiques, Viçosa é carente no processo de en-velhecimento da cachaça produzida. A grande demanda, em relação à capacidade dos enge-

nhos e os baixos preços oferecidos, são aponta-dos pelos produtores como principal motivo. O próprio Raimundo Rocha, do sítio Tranqueira, re-vela que possui apenas alguns litros de cachaça envelhecendo em tonel de madeira a pedido de Dom Chiquinho I, que já lhe comprou a bebida previamente. Com isso, encontrar a boa cana de Viçosa com o devido envelhecimento que lhe dá fama, é tarefa complicada. Aos que não sabem onde estão os envelhecedo-res, resta a aventura de procurá-los pela Região, pois quem sabe não diz. É o que revela o comer-ciante Antônio Prudêncio. Simpático, apesar de tímido diante do gravador, não inibe a franque-za: “conheço várias pessoas que envelhecem ca-chaça aqui, mas não conto a ninguém”. E desse

conhecimento ele faz sua renda. A mercearia de seu Antônio exibe em letras garrafais pintadas na lateral: “temos cana velha”. E ele garante que é quem tem as melhores aguardentes das re-dondezas. A venda fica pertinho do “Céu”- ponto mais alto de Viçosa, onde se chega após subir uma escadaria de 334 degraus - e tem o luxo de funcionar apenas à tarde. Com 52 anos de idade, Antônio Prudêncio ven-de cachaça há quase dez anos e não bebe mais. Sua história com a bebida, como a de outros tan-tos, vem de longe. “Com cinco anos, a gente ia pros engenhos, ia tanger boi, ficava por ali. Com certo tempo eu comecei a estudar e começou a complicar. Mas minha vida até os 17 anos foi no engenho”, lembra.

A partir dessa vivência no engenho, ele de-monstra ter aprendido as intimidades da bebi-da. Antônio explica que o envelhecimento da aguardente é primordial na sua qualidade. Tanto para quem bebe, como para quem vende. “Aqui, a maior parte não envelhece. Vende cachaça na hora que faz. Vende logo. Bota no deposito e aí, se passar 100 anos, não fica velha. Fica com a mesma catinga, o mesmo cheiro de bagaço. Só envelhece no tonel”.

Para Prudêncio, vender cachaça velha foi a me-lhor forma de investimento. Além do carinho que demonstra pelo que vende, ele explica de forma matemática as vantagens da cana velha: “Tu pega mil reais. Tu botando cinco anos na poupança, dá quanto? No máximo 300 reais. En-

Patr

imôn

io

Detalhe da Casa dos Licores: arte de envelhecer a cachaça por até 50 anos

62 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 63

Page 33: Revista Enredo

tão o que é que faz? Tu emprega 1000 reais em cachaça, em cinco anos, tu tem dois mil. Eu faço assim, eu emprego sabendo que tem retorno. Se você botar ela no tonel ela vai render.” E a metodologia de sempre manter o estoque é fácil. Com três anos de envelhecimento, ele garante que a cana já tem boa qualidade para consumo. Então, sempre que fica sabendo de um tonel com cana acima desta idade, compra e estoca. E estocada, ela fica ali até que as cacha-ças mais velhas do estoque sejam todas vendi-das. Quando chega a hora de vender, a que tinha três anos na compra já está bem mais velha e tem outras mais novas no estoque, já compradas depois dela.

Com esse sistema de rodízio no estoque, Antônio Prudêncio garante seu negócio e seu orgulho de garantir a boa cachaça que vende. “Porque nessa cachaça nossa, você tá tomando 100% natural. Não tem um pingo de água dentro. Quanto mais outros produtos que botam, que ninguém sabe. Produto químico de todo jeito”, conta aos clien-tes. A iniciativa, pelo visto, funciona. Enquanto uma cachaça comum é vendida nas mercearias da Região a uma média de R$5 o litro, ele vende a sua por R$15. E não adianta chorar que o preço não muda.

Cruz, cadeira e tonel - Carpinteiro de gerações, Thomaz de Aquino de Souza, 51 anos, é tido como um dos mais competentes fabricantes de

tonéis da Ibiapaba. Além do vasilhame, faz tam-bém o que preciso for em madeira. De porta, cadeira e bengala a cruz de cemitério. A madei-ra de aroeira e pau d´arco é comum na Região. Thomaz explica que geralmente consegue as to-ras ainda em estado bruto com agricultores que limpam terreno para o plantio. Da tora, ele faz as ripas e dali o tonel.

“Comecei a fazer tonel depois de 25 anos. Você pegar uma madeira dessa aqui que é pra colocar coisa líquida dentro e não vazar nada né? (entoa a voz ressaltando a dificuldade do ofício). Tipo es-ses carpinteiro que tem por aí. Fazer eles fazem, mas não segura nada”, explica, revelando tam-bém algumas técnicas para não deixar a cachaça

vazar, como fazer ranhuras nas laterais da ripa que compõem o tonel, a precisão do encaixe e a técnica para apertar as braçadeiras de ferro.

“Quando a gente bota isso aqui (apontando a braçadeira do tonel) você mete a marreta, bate até... Tem que arrochar ate dizer chega”. Thomaz aprendeu a ciência de fazer tonéis com o pai, Manoel Evaristo de Souza, que também apren-dera com o pai e assim por diante. Gerações e gerações além, Ibiapaba adentro.

O mito das cachaças de Alfredo Miranda - Per-sonagem bastante conhecido no Município, a história de Alfredo Miranda está enraizada em Viçosa do Ceará, assim como a da Cidade nele.

Patr

imôn

io

Raimundo Rocha: um dos maiores fornecedores da região Engenho na Serra: “vermelhidão” marca a cachaça da região

64 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 65

Page 34: Revista Enredo

Aos 92 anos, ele vem de famílias tradicionais (Mi-randa e Mapurunga), participou da construção da Igreja do Céu, na década de 30, e tornou-se símbolo de identidade cultural do lugar. Em sua residência, funciona a Casa dos Licores, um dos principais pontos de visitação do local. Lá, embalado pelo pife que ele mesmo fabrica e toca, ele produz e vende petas (biscoitos de sequilho), geléias e licores de mais de cinqüenta sabores, além dos pifes e a tão procurada cacha-ça velha. Cada garrafa de cachaça na Casa dos Licores exibe no rótulo sua idade. A mais “nova” é de 1980. O restante data de anos anteriores, como 1975 e 1970. E há até mesmo a “incrível” cachaça de 1955. Por conta dessa tradição no envelhecimento de suas cachaças, a figura de Alfredo Miranda está na boca de produtores, envelhecedores e consu-midores do suor-de-alambique. Nascido no sítio Buíra, onde conviveu desde pequeno com o plan-tio da cana e a fabricação da cachaça nos alam-biques de seu pai, Alfredo Miranda guarda toda uma tradição na maneira de fazer a bebida. Devi-do à idade avançada e à saúde já não tão boa de seu Alfredo, quem nos repassa esse conhecimen-to é sua filha, Tereza Cristina, enquanto ele entoa as melodias de seu pife deitado na rede. Entre as histórias da época em que o pai destilava cachaça e as lembranças de sua infância, Tereza conta que naquele tempo a destilação era feita à noite. Durante o dia, moía-se a cana para retirar a garapa, que era fermentada e seguia para os alambiques depois do pôr-do-sol. Do engenho que moía a cana, a garapa seguia em um “siste-ma de bica”, através de canos feitos com material retirado do mato, até as cubas de madeira onde era feita a fermentação.

“Ela passa um determinado tempo e fermenta. Eles colocam dentro da garapa um material, tam-bém do mato, que chamam vinagreiro. Aí ela fer-menta. As cubas chega ficam fervendo. Se você colocar qualquer material enferrujado ali den-tro, ela limpa todinha. Ela desfaz a desoxidação. O alambique é feito de cobre e a cabeça dele é totalmente vedada com uma serpentina. Eu me lembro lá na Buíra saindo na torneirinha (a cacha-ça recém-destilada), eu gostava de botar o dedo e provar. A cachaça mesmo que fogo...”, lembra. Desse processo artesanal, saíram as cachaças que hoje Alfredo Miranda vende na Casa dos Licores. Tereza explica que seu pai só produziu efetiva-mente cachaça até 1955. E é deste mesmo ano, sua maior preciosidade. “Ela (a 1955) tem poucos litros. Uns mineiros ligaram pra cá pedindo pra comprar o lote todinho, por 10 reais. Eu digo pra vender por 300. Tá aqui pra vocês! (risos) Então, as de 70, 75 já não foi mais ele quem fez. Mas foi ele quem guardou”, explica, ressaltando a paixão do pai que, diante da impossibilidade de conti-nuar produzindo, transformou-se em um grande envelhecedor da bebida. Tereza nos leva para um breve passeio por um dos armazéns em que a cachaça é estocada. São, pelo menos, cinco quartos repletos de grandes tonéis de aroeira e pau d´arco e um outro precioso e empoeirado, repleto de garrafas em prateleiras improvisadas com a tarja 1955. Tereza conta que o tonel já se esgotou, restando apenas o que está nas garrafas. Após a caminhada entre os misteriosos tonéis, que somam ao todo 32, alguns deles já quarentões, ela responde se as cachaças têm realmente a idade que dizem ter. “Meu filho, desse pecado eu não vou para o inferno!”, responde com um riso largo de tranqüilidade.

Cachaça na história

Os primeiros engenhos para rapadura e cachaça eram movidos por bois e cavalos.

Registros de 1711 contam que na Bahia era comum se beber a garapa doida (garapa de cana fermentada).

A cachaça era forçosamente dada aos escravos que vinham trafi-cados da África para esquecer do sofrimento e resistir à viagem.

Cachaça e farinha de mandioca no século XVIII eram os principais artigos de comércio com a África.

Em 1649, foi proibida a fabricação de cachaça no Brasil porque a bebida estava prejudicando a venda de vinho português. A ca-chaça deveria passar a ser fabricada em Portugal. A lei, entretanto, nunca foi cumprida, sendo revogada em 1661 por Dom João IV.

No período da independência, era sinal de patriotismo beber ca-chaça em detrimento das vinhas portuguesas. Na revolução per-nambucana de 1917, o padre João Ribeiro, mentor do movimen-to, recusou o cálice de vinho francês que lhe oferecia Tollenare e pediu, para o brinde, aguardente.

Soldados misturavam cachaça com pólvora para dar coragem nas batalhas. Há relatos que a mistura foi utilizada na guerra de Canu-dos e também na do Paraguai.

Na África, o tabaco, mesmo sendo bastante popular, não é ofereci-do às divindades. “Los dioses negros de África no fuman”, registrou o pesquisador Fernando Ortiz. Mas bebem a cachaça brasileira, que é comum em suas oferendas.

Patr

imôn

io

66 enredo outubro 2008

Page 35: Revista Enredo

A aventura da mestiçagem

Lite

ratu

ra BIENAL DO LIVRO

Felipe Araújo e Fábio Marques

Uma entrevista com os curadores da próxima Bienal Internacional do Livro do Ceará, que aposta no

tema da mestiçagem e das relações culturais entre o Brasil e seus vizinhos latino-americanos como forma

de fugir das “vedetes de discurso vazio” que têm desgastado a fórmula das bienais

O público brasileiro não aceita mais apoiar uma bienal formatada a partir da presença de “vedetes de discurso

vazio”. A avaliação é do poeta e pesquisador Floriano Martins, um dos curadores da 8a. Bienal Internacional do Livro do Ceará.

Para fugir dessa fórmula que considera “vicia-da”, Floriano anuncia a injeção de uma “carga explosiva” em termos de diversidade cultural na curadoria da próxima bienal cearense. A começar pelo tema, “A aventura cultural da mestiçagem”, a partir do qual a organização do evento pretende reunir expressões cultu-rais de 30 países de quatro continentes.

“A opção por ofertar ao público uma larga variedade de fontes culturais em um curto espaço de 10 dias é de alto risco, e pode ser não-compreendida. Consideramos funda-mental que o Brasil identifique suas relações culturais com duas famílias lingüísticas: o es-panhol e o português. Isto nos fortalece, sob qualquer ângulo de discussão”, explica.

Na curadoria da Bienal, Floriano tem a com-panhia dos coordenadores das políticas do

Livro e do Acervo da Secretaria da Cultura do Ceará, Jorge Pieiro e Karine David. Em entre-vista concedida por e-mail a Enredo, os três falam sobre a organização da bienal, literatu-ra latino-americana, vanguardas artísticas, e, claro, “miscigenação”, sempre com o cuidado de separar o joio do trigo quando o assunto é diversidade cultural.

“Transformamos diversidade cultural em oferta de mercado, em vitrines de shop-ping. A literatura no Brasil está quase que totalmente destruída por este artifício, algo bastante complicado porque revela o caráter conciliador, para dizer o mínimo, de nossos intelectuais e criadores. Não há reação e sim declarada ansiedade por fa-zer parte do jogo, como claro sinal de fra-gilidade ética e estética”, provoca Floriano. “Os debates contemplarão assuntos como produção e circulação de revistas e suple-mentos literários, casas de cultura, política cultural dos centros de estudos brasileiros na América Hispânica, movimentos con-tra-culturais, circuito editorial universitá-rio, encontros internacionais de escritores, dentre outros”, reforça Pieiro.

Page 36: Revista Enredo

leira. Observar até que ponto elas sobrevivem ainda no imaginário de intelectuais argentinos e brasileiros, as matrizes indígenas. Este é o ca-minho.

Enredo - Entre as preocupações levantadas pela organização da Bienal, está a de realizar atividades baseadas na promoção e geração de conhecimentos, sem fronteiras culturais e sociais, reunindo um público diversificado. Que ações estão sendo tomadas com esse in-tuito? Jorge Pieiro - As sessões literárias, que já se configuram como promotoras e geradoras de conhecimento, incluem palestras, debates, lei-turas de poemas, encontros especiais, lança-mentos de livros. Esta agenda foi configurada, por sua vez, a partir do tema central, “A aventura cultural da mestiçagem”. Os debates contem-plarão assuntos como produção e circulação de revistas e suplementos literários, casas de cultura, política cultural dos centros de estudos brasileiros na América Hispânica, movimentos contra-culturais, circuito editorial universitário, encontros internacionais de escritores, dentre outros. Já as palestras tratarão de aspectos li-gados aos fundamentos da mestiçagem, jorna-lismo cultural e obras literárias, considerando particularidades regionais e continentais dos países envolvidos. É importante destacar, além disso, a instituição de uma série de Salas Permanentes: de Vídeo, de Arte Postal & Poesia Visual, de Cordel, de Gra-vuras, de Música, de Revistas e da Juventude. Estas salas, além de apresentarem encontros específicos relacionados com a temática ge-ral, serão também espaços de convívio, onde o público terá a oportunidade de vislumbrar aspectos da criação artística que se encontram vinculados à produção literária, em seu sentido mais amplo. Exemplificando: a Sala de Revistas recolherá publicações periódicas de cultura da maior parte dos 30 países envolvidos na Bienal, proporcionando um ambiente de leitura, uma vez que será permitido folhear essas revistas; a Sala de Vídeos permitirá acesso a vídeos de arte e documentários de todos os países envolvidos, reunindo raro acervo; e a Sala de Música apre-sentará uma instalação sugestiva sobre a condi-ção mestiça da música latino-americana.

Enredo - O tema deste ano da bienal é “A aven-tura cultural da mestiçagem”. O que motivou essa idéia? De que maneira essa discussão vai estar colocada na Bienal?Floriano Martins - Antes de tudo, o pensamento principal era de se revitalizar a própria estrutura deste tipo de evento. Há um claro desgaste de fórmula. Apostas repetidas ao largo de anos nos mesmos ornamentos. Desconhecimento dos efeitos colaterais daí decorrentes. Viaja-se o país de uma ponta a outra e sempre a mesma meia dúzia de vedetes com seus discursos vazios em todos os eventos. Houvesse uma pesquisa acer-ca do tema, em âmbito nacional, e fatalmente se descobriria que o público não suporta mais ser traído em sua disposição para apoiar eventos dessa natureza. E note que temos uma circuns-tância complexa, considerando os gravíssimos problemas que o País enfrenta (e seguimos em alarmante crescimento) no tocante à educação. Bom, mudamos a estrutura da Bienal do Ceará. Optamos por uma verdadeira carga explosiva em relação à oferta de diversidade cultural sem eufemismos ou qualquer conotação de simu-lacro. A opção por ofertar ao público uma lar-ga variedade de fontes culturais em um curto espaço de 10 dias é de alto risco, e pode ser não-compreendida. Consideramos fundamental que o Brasil iden-tifique suas relações culturais com duas famí-lias lingüísticas: o espanhol e o português. Isto nos fortalece, sob qualquer ângulo de discus-são. Ao todo, temos no mundo hoje 30 países que falam estes dois idiomas, incluindo-nos. Há particularidades na Ásia e também na América. Porto Rico, por exemplo, é estado acoplado aos Estados Unidos, porém jamais abriu mão de sua identidade cultural, o que inclui a língua. Este aspecto da defesa da língua é fundamental, e traremos para a Bienal diversos ensinamentos a respeito do tema em relação a países como México e Paraguai, por exemplo, seja pela mul-tiplicidade de línguas indígenas em um caso ou pela consubstanciação da língua guarani em outro. Há aspectos curiosos em relação à leitura que no Brasil fazemos da cultura negra que po-derão ser cotejados com equivalências no Peru. A presença de esclarecimentos sobre o Caribe espanhol. Sem falar no próprio entendimento de nossas vertentes mestiças, da cultura brasi-

Lite

ratu

ra

Enredo - Como você situaria a Bienal cea-rense dentro do contexto das bienais reali-zadas no Brasil?Jorge - As comparações em tal área podem assumir uma conotação de concorrência que não interessa à cultura como um todo. Isto não deve ser uma preocupação. Temos um desafio pela frente que envolve tanto a es-trutura viciada deste tipo de evento como o agregado de provincianismo inerente à nos-sa cultura, com seus particularismos em cada Estado.

Enredo - No campo da literatura, que mesti-çagem é possível num tempo em que questões como o multiculturalismo e a intolerância estão na ordem do dia da crítica cultural?Floriano - A ordem do dia sempre re-quereu uma contra-ordem, em qualquer tempo, ainda mais neste nosso tempo, tão afeito à manipu-lação de sensibilida-des. Nossa época já não se satisfaz em deslocar os parâme-tros concretos do real ou da verdade, e aprimora-se em ilu-dir, em falsear as abs-trações, deixar-nos tontos em relação ao próprio sentimento diante de cada situ-ação. Isto não é multiculturalismo, e sim bar-bárie. Transformamos diversidade cultural em oferta de mercado, em vitrines de shopping. A literatura no Brasil está quase que totalmente destruída por este artifício, algo bastante com-plicado porque revela o caráter conciliador, para dizer o mínimo, de nossos intelectuais e criadores. Não há reação e sim declarada ansie-dade por fazer parte do jogo, como claro sinal de fragilidade ética e estética.

Enredo - Uma questão um tanto repisada trata da distância ou mesmo do desconhecimento entre os leitores brasileiros e a produção lite-rária latino-americana. Como você definiria o atual quadro dessas relações entre o Brasil e a América latina do ponto de vista da produção literária?Floriano - Não há o Brasil e a América latina, ou seja, o Brasil é parte da América Latina. De algu-ma forma esta minha frase já responde à questão. A América Latina como um todo engloba ainda metade do Canadá e o caribe francês. Mesmo que a cultura brasileira esteja muito pajeada por matrizes culturais francesas, desconhecemos

imensamente a atua-ção da coroa francesa em nosso continente e os desdobramentos das culturas daí de-correntes. É curioso observar que não há lógica no alheamen-to cultural brasileiro. Somos como um pro-duto de distintos mo-dismos culturais.

Enredo - Como discu-tir mestiçagem dian-te desse quadro de distanciamento en-tre o Brasil e a Améri-ca Latina?Floriano – Buscando as fontes históricas de conexões, as matrizes de nossa cultura, tor-nando visíveis nossos vasos comunican-tes. Sob este aspec-

to, consideramos fundamental que o Brasil se abra, sem sua habitual presunção, a este mundo desconhecido que vem, sobretudo, dos países hispano-americanos. A América como um todo é um riquíssimo entrelaçado de culturas que se irmanam em muitos matizes. Embora não seja o caso do tema da presente Bienal, cabe também observar nossos vínculos tão próximos com o Caribe francês, por exemplo. Outro exemplo é o das sintonias musicais entre Brasil e África por-

Optamos por uma verdadeira carga explosi-va em relação à oferta de diversidade cultural sem eufemismos ou qualquer conotação de simulacro. A opção por ofertar ao públi-co uma larga variedade de fontes culturais em um cur-to espaço de 10 dias é de alto risco, e pode ser não-compreendida.

70 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 71

Page 37: Revista Enredo

tuguesa. Há uma falsa idéia de diversidade na produção artística que o grande merca-do torna pública. Tra-ta-se de um padrão cuja variante única é a origem geográfica. Esta perversão anula qualquer parâmetro cultural. Cria um plas-ticismo, a falsa idéia de bens culturais como artefatos decorativos, nada mais. Cabe a todos nós alertar con-tra este simulacro de cultura. É oportuno que o Ceará, sendo o estado brasileiro mais distante de todo e qualquer país hispano-ameri-cano, proponha esta aproximação.

Enredo - Outro “distanciamento” desse tipo se dá numa perspectiva muito mais próxima. Em geral, o leitor cearense, por exemplo, tem pou-co acesso à produção realizada nos estados vizinhos. E vice-versa. Como você analisa essa dinâmica interna entre leitores e escritores no Brasil?Floriano - Há um comportamento cultural distin-to entre Bahia, Pernambuco e Ceará. Já não me refiro à falta ou ao excesso de autocrítica que se possa observar em um caso ou outro, mas sim à estratégia de reconhecimento e exportação de seus valores. No Ceará, nunca soubemos lidar com isto. E muitos de nossos nomes mais expres-sivos foram primeiramente reconhecidos bem longe daqui. Alguns dos quais ainda hoje não os aceitamos como tais. Não sentimos orgulho de nossa expressão cultural, simplificando o tema. Na relação com o Nordeste, passamos ausentes, porque historicamente quase não produzimos diálogo com a região. Há momentos específicos na história de nossa literatura em que os nomes mais renovadores e consistentes são oriundos do Nordeste e, no entanto, não temos um diá-logo inter-regional. Uma grande contribuição que poderia ser dada diz respeito à criação de um projeto editorial comum a partir das editoras

universitárias. Neste sentido, a Bienal pro-cura contribuir, esta-belecendo palco para tal discussão.

Enredo - Uma Bienal, além de espaço de enriquecimento cul-tural e troca de sa-beres, é um espaço para se fazer negó-cios. Que perspecti-vas de mercado se abrem a partir desse encontro? Jorge Pieiro - No âm-bito dos negócios do mercado livreiro, des-taquem-se, de ante-

mão, as regras estabelecidas para a contratação de estandes. Em tal área, foi definido um conjun-to de normas que dão uma nova leitura, inclusi-ve no que diz respeito à circulação do público pelos espaços físicos. De outra forma, a parceria da Secretaria da Cultura com o Sindicato do Co-mércio Varejista do Livro (Sindilivros) opta pela concretização da cadeia produtiva do livro, que culmina com a aquisição de títulos. Para tanto, citem-se o fornecimento da Notinha Legal para os estudantes das escolas agendadas na Visi-tação Escolar, a aquisição de livros pelo Estado para a modernização de acervos do Sistema de Bibliotecas Municipais e a repercussão propor-cionada pelas ações da Secretaria relacionadas com o Programa Por um Pacto Social pelo Livro, que, certamente, levará os visitantes a, individu-almente, também realizarem suas aquisições. Outro ponto de inovação a destacar é a criação da Ilha dos Continentes, área de cessão de es-paço para difusão de livros dos países convida-dos, em grande parte ocupada por acervos de embaixadas e entidades de classe, tais como câ-maras setoriais de livros em cada país. É preciso ressaltar que é a primeira vez que uma Feira de Livros no Brasil cede espaço na área comercial, embora aqui o que importa destacar é que os convites foram feitos especificamente para edi-toras estrangeiras que não teriam outra maneira de participar de um evento internacional. Por

A produção literá-ria cearense eu a entendo como produção literária feita por cearenses, sem o ranço localista ou qualquer outra forma de reducionis-mo. É preciso entender a qualidade de nossos corde-listas, por exemplo, como algo acima de qualquer re-gionalismo turístico.

conta disso, é grande oportunidade de relacio-namento entre os países envolvidos e a geração de novos negócios.

Enredo - Na parte cultural, o que essa articula-ção entre expositores, livreiros, editores e escri-tores de diferentes países deixa para o Ceará? Jorge - Além da possibilidade de novas relações mercadológicas, no aspecto cultural é possível vislumbrar que, com esta Bienal, este grande en-contro, é mais um passo para ações de fomento entre todos os envolvidos, incluindo-se nisto a idéia desta Secretaria em concretizar, por exem-plo, a exportação da cultura cearense.

Enredo - Como se chegou ao nome de Chico Anysio para homenageado?Jorge - A homenagem ao escritor e humorista brasileiro Chico Anysio, nascido em Marangua-pe, é resultado de vários olhares: pelo talento, pelo reconhecimento, pela relação com a temá-tica da Bienal. Trata-se, pois, de uma justa home-nagem a este cearense que tem celebrado, ao longo deste último meio século, a rica diversida-de da cultura nacional, quer seja como humoris-

ta, compositor, dramaturgo, artista plástico, ator, radialista, dentre outras atividades artísticas que sempre desempenhou com inconfundível talen-to, quer seja como um notável escritor que, por conta disso, terá na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará o lançamento de um novo título seu: Três casos de polícia.

Enredo - Como você situa a produção cearense dentro do contexto das demais bienais? O que efetivamente se sabe sobre a produção de nos-sos escritores?Floriano - A produção literária cearense eu a entendo como produção literária feita por cea-renses, sem o ranço localista ou qualquer outra forma de reducionismo. É preciso entender a qualidade de nossos cordelistas, por exemplo, como algo acima de qualquer regionalismo tu-rístico. Pela própria exigência de mercado nacio-nal, há cearenses residentes em todas as partes do País, produzindo uma literatura que nos or-gulha sob muitos aspectos. Não há legitimidade em uma Bienal do caipirismo, seja baiano, pau-lista ou cearense. O Ceará necessita livrar-se de seu corporativismo domingueiro. A tua pergun-

Lite

ratu

ra

Jorge Pieiro e Karine David: convite para editoras estrangeiras que não teriam outra maneira de participar de um evento internacional

72 enredo outubro 2008

Page 38: Revista Enredo

ta quer saber de nomes, porém é um detalhe de menor importância para mim. A programação da Bienal revelará um número expressivo de partici-pantes cearenses, o que é natural, considerando a consistência de suas obras. Mas não estarão ali presentes exatamente por serem cearenses.

Enredo - Zygmunt Bauman, ao discutir o que ele considera como a impossibilidade da van-guarda artística em nosso tempo, aponta para

movimentos no campo da arte que “parecem aleatórios, dispersos e destituídos de direção bem delineada”, ou mesmo destituídos de uma direção “cumulativa”. Do ponto de vista da li-teratura, como você observa essa discussão sobre a vanguarda hoje?Floriano - Há um volume mais intenso de dispa-ros em nosso tempo, o que desperta a sensação de que são muitos os caminhos. Não são. Não sei se a dispersão – que é real – é fruto dessa ampliação de meios ou se de um esvaziamento de discurso. A verdade é que entendo fundo e forma na mesma relação de eqüidistâncias com os anseios humanos. No caso específico das vanguardas, passado aquele período dos anos 1920/1930, que em muitos casos se reproduzem hoje até a exaustão, não percebemos a existên-cia de certos focos deslocados do ambiente eu-

ropeu, ambiente este decretado por muitos teó-ricos como uma grande e insubstituível matriz. É fato que podemos localizar nos anos 1950/1960 o que para muitos viciados em um plano euro-cêntrico soa como inaceitável. Refiro-me ao que chamo de segunda vanguarda e que reflete uma relação bastante peculiar entre o desentranhar-se de uma nova cultura, na América latina, e sua relação com os acontecimentos mundiais que caracterizaram aquele período. Esta é uma

época ainda carente de sua devida situação, explanação, documentação, reflexão. De lá para cá, somos de um talento irrepreensível para a diluição. E como desconhecemos em grande parte este segundo período a diluição toma por base a primeira vanguarda.

Enredo - A ONG norte-ameri-cana Internet World Status mostra que o Brasil é um dos países com um dos mais fortes ritmos de crescimento de acesso à rede mundial de computadores. Em menos de dez anos, entre 2000 e 2008, o número de novos conecta-dos cresceu 900%. A revista Carta Capital trouxe, em edi-

ção recente, matéria sobre o assunto. A estimativa, segundo a revista, é que metade dos brasileiros tenha acesso à inter-net no ano que vem. Qual a repercussão desse crescimento para a literatura brasileira?Floriano - Se pensarmos em qual a fatia esta-tística de brasileiros que têm acesso à educa-ção e qual o aproveitamento real deste tópi-co, então podemos rapidamente deduzir que quantidade de acesso (a qualquer coisa) não implica necessariamente em qualidade de acesso. O grande dilema gerado pela veloci-dade tecnológica em nosso tempo é o do en-cantamento acrítico. No caso específico da In-ternet, conta, sobretudo, que a oferta tem sido determinada por um assombroso fenômeno de autopromoção. Tem-se com isto uma ava-lanche de subproduto tornado disponível de forma natural, sim, porém inconseqüente.

Lite

ratu

ra

Enredo - Aproximar a criança e mesmo o jovem do universo da leitura é um desa-fio permanente de quem lida com cultura. Como a participação desse público está sendo pensada para a Bienal?Karine David – Crianças e jovens nunca foram tratados com o cuidado que receberão na bienal deste ano. Haverá um estacionamen-to exclusivo para os ônibus que os trarão das escolas. Nesse estacionamento, haverá segurança, recepcionistas, serviço médico, lanchonete, banheiros e um boxe de atendi-mento, tudo isso para assegurar organização, conforto e agilidade na visitação. Quanto às atividades propriamente culturais, pela pri-meira vez, haverá dois espaços próprios, um para as crianças (a “Cidade do Livro”) e outro para os jovens (“Arena Jovem”). Para cada um desses espaços, está prevista uma ampla pro-gramação durante os 10 dias da bienal, a ser previamente encaminhada às escolas. Tere-mos ainda espaços para oficinas e cursos ofe-recidos pelo SESC, além de apresentações da banda “Os Bufões” cantando Flávio Paiva, des-tacado autor cearense de histórias infantis.

Enredo - Este ano, a visitação dos estudan-tes à bienal acontece mediante inscrição. Por que a mudança e como você avalia o agendamento?

Karine – O projeto Visitação Escolar nasceu do diagnóstico da Bienal local e das demais bienais nacionais. Um dos problemas crôni-cos dizia respeito à participação dos alunos. Havia desorganização e desconforto para os expositores e para os próprios visitantes por ocasião da chegada dos alunos ao local do evento, bem como desvio de uso da “Noti-nha Legal” (cujo valor foi acrescido de três para cinco reais) que era destinada exclusi-vamente à compra de livros pelos alunos da rede pública, mas estava sendo utilizada por

professores. Nos termos do projeto, a visitação foi conce-bida para 40 mil estudantes do ensino funda-mental e médio das redes pública e privada, previamente selecionados pelas escolas que cadastrassem seus coordenadores para rece-ber treinamento sobre a visitação. Um total de 102 escolas estaduais, 62 municipais e 52 particulares enviaram um total de 800 coor-denadores para treinamento pela Secretaria da Cultura. Durante o treinamento, cada par-ticipante recebeu uma cartilha com todas as informações sobre a bienal deste ano e sobre a metodologia do agendamento e da visita-ção. O agendamento, previsto para 45 dias, foi concluído em 20 dias, graças à maciça adesão das escolas.

Enredo – Existe algum tipo de ação junto às escolas ou em outros espaços de educação preparando esse público para a Bienal? Muitos deles devem participar pela primei-ra vez de um evento dessa natureza?

Karine – Existe, sim. A Secretaria da Cultura lançou um concurso de redação com o tema central da bienal, como forma de envolver intelectualmente os alunos com o evento. O sítio do projeto Visitação pôs a disposição de todos um rico material sobre mestiçagem cultural nos 30 países que participarão da Bienal este ano.Parte relevante desse concurso é a premia-ção. Serão agraciados dois alunos do ensino fundamental das redes pública e particular e dois do ensino médio de ambas. Para cada aluno premiado, serão doados uma minibi-blioteca e um computador; para cada escola premiada, uma biblioteca com 300 títulos. A Secretaria da Cultura ainda publicará uma antologia com as 10 melhores redações, cuja distribuição será feita durante a bienal.

De olho em novos leitores

Floriano em sua biblioteca: contra o caráter conciliador de intelectuais e criadores

74 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 75

Page 39: Revista Enredo

“A vida é uma ciranda de recomeços”. A frase de Rubem Alves talvez possa traduzir a intenção deste texto, que lança seu olhar sobre um re-

corte do cotidiano. Mais especificamente, adentra a sala de visitas de uma das milhares de casas simples da perife-ria de Fortaleza. Dessas que, antes de permitir o acesso à sala, obrigam o visitante a passar de banda por entre um surrado carro e a parede. Carro esse que, outrora novo, teria ostentado ao volante a pose de seu primeiro dono lá pelos bairros “nobres”. Agora, o veículo, com os faróis quebrados, dificulta o acesso à porta da sala, onde uma mulher de 63 anos, gentilmente, recebe um amigo para dar uma entrevista sobre o seu dia-a-dia.

O entrevistador se esforça para ver, primeiro através do olhar que varre a sala, depois pelos sentidos atentos à descrição dessa parte da casa por sua dona, um pouco dos costumes da família. Aos poucos, a gentil senhora vai atendendo à intenção do visitante e se entregando à conversa. Inicialmente, mostra e descreve a sala e os demais cômodos da casa. Na descrição, revela as reminiscências de sua geração e as particularidades da interação entre ela, seus filhos e netos. Mais adiante, ela “traduz”, a seu modo, os hábitos ali praticados por cada um dentro do espaço que ocupam. Assim, a percepção da entrevistada, Biba Pimentel, mulher simples, negra, animadora comunitária, vai descortinando as maneiras de fazer o dia-a-dia na periferia da grande cidade, lançando também o olhar sobre seus vizinhos e as “coisas” do cotidiano.

Dialogando com Michel de Certeau e José Machado Pais, o jornalista Antonio Elizeu de Sousa percebe delicadezas e novos matizes no cotidiano da periferia de Fortaleza

Periferia: um olhar “buliçoso”

Antonio Elizeu de Sousa

Cida

de

A casa é na periferia, numa região pobre: bair-ro Granja Portugal. Mas, antes de seguirmos com este texto, é preciso situar a periferia. É imprescindível dizer que esse território não é exatamente um lugar geográfico, com locali-zação precisa. O olhar aqui “traduzido” revela um espaço construído. Nele, a localização ge-ográfica é um ponto de partida, mas não o res-tringe. A periferia aqui é um “mundo” com ele-mentos de composição tecidos nos afazeres e na lida cotidiana. Onde pairam alegrias, an-

gústias, conquistas e medos. Nessa “tradução” expõem-se elementos de composição de um contexto em que estão reunidas “as idealiza-ções normativas cotidianamente compartilha-das pelos indivíduos”, como no dizer do pes-quisador José Machado Pais, da Universidade de Lisboa, na obra Vida Cotidiana – Enigmas e revelações (2001).

Voltemos à casa, pois é lá onde catamos os de-talhes relevantes para as pessoas daquele lugar.

Detalhe da sala de uma casa na periferia: decoração com motivos católicos cada vez mais

raros na construção do mundo cotidiano 76 enredo outubro 2008

Page 40: Revista Enredo

78 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 79

A disposição estética e funcional da sala prin-cipia as informações. A partir daí, as questões são lançadas, expondo um recorte do cotidia-no vivido. À medida que a conversa extrapola o espaço familiar, maneiras e hábitos comuns ao viver da periferia vão se desnudando. Ali, a noção de tempo não se restringe à marcação de intervalo físico e biológico. A cadência tem-poral não inclui somente a rigidez e o ritmo do relógio. Um outro tempo se apresenta. É “o tem-po buliçoso da vida cotidiana – aquele tempo em que o presente parece prevalecer sobre o passado e o futuro” (Pais, 2001).

Então, avança o entrevistador em sua prospec-ção casa adentro. Nas paredes singelas da sala: um quadro e uma mensagem bíblica. Ainda na entrada, percebera um crucifixo sobre a porta. Mas, onde estão os quadros do Sagrado Cora-ção de Maria ou do Sagrado Coração de Jesus que, há poucas décadas, freqüentavam essas paredes? Ícones que resistiram à sucessão de várias gerações. Atenta, a dona da casa, junta-mente com seu filho de vinte e oito anos (que participa da conversa de forma indireta) res-pondem à questão: a investida evangélica pen-tecostal na periferia contribui para essa mudan-ça de hábito.

As famílias que adotam as novas denomina-ções religiosas decoram suas salas com mensa-gens cristãs ou outros motivos que não sejam reproduções de santos católicos. E os católicos, segmentados em diversas práticas religiosas específicas também se deixam influenciar por

novos hábitos que já não enfatizam tanto al-guns costumes tradicionais. Além disso, há um constante movimento migratório entre as op-ções religiosas, indo do catolicismo ao pente-costalismo, passando por outras práticas como o espiritismo kardecista ou os cultos espiritu-alistas de constituições híbridas originados na tradição africana.

O olhar sobre a sala prossegue, gerando outra questão: cadê a TV, se todas as casas da rua, sem exceção, dispõem desse tipo de aparelho? A resposta vai revelar as “operações objetivas” das pessoas na elaboração do viver cotidiano. São táticas que atendem à estratégia da so-brevivência, procurando preservar as conquis-tas materiais e se adequar a uma nova rotina. É preciso afrouxar o medo e elaborar soluções que dêem mais tranqüilidade às pessoas, con-servando o bem-estar. Portanto, nessa e em al-gumas outras casas, o aparelho de TV já não se encontra na sala. A incidência de roubos levou as pessoas a acomodar a TV e aparelhos de áu-dio mais para o interior da casa. Agora, o seu lu-gar é na copa ou na cozinha, junto ao rádio ou a um outro equipamento de som. Só permanece na sala quando “se trata de casa de muro alto”, adverte a interlocutora.

O entrevistador prossegue em sua busca, ve-rificando nessas informações um princípio de “paradigma das atividades táticas” dos morado-res. Percebe ainda outra tática, extensiva a toda a periferia da cidade: entre o meio-dia e duas horas da tarde, os pontos de comércio fecham

suas portas. “É o toque de recolher” da periferia. Nesse horário, as ruas ficam quase vazias. O te-mor aos assaltos fez emergir essa nova conduta que, tacitamente, vai se espraiando no dia-a-dia por todos os territórios que guardam caracte-rísticas semelhantes de fragilidade e impotên-cia diante da violência urbana.

São operações práticas como essas que (re)significam o espaço da periferia de forma bem concreta. E a sensação de desconfiança tam-bém invadiu a casa, reduzindo a presença ou a permanência de visitas na sala de estar. As-sim, as pessoas estranhas ao convívio familiar são despachadas ainda na calçada da rua. Já quando merecem alguma confiança, ganham acesso à sala, onde, com brevidade, se resolve o motivo da visita. A exceção se dá quando se tra-ta de pessoa íntima. Nesse caso, o caminho da cozinha é facilitado e a permanência pode ser demorada. E aí aparece um novo hábito: man-ter a televisão ligada durante a conversa. Dessa forma, ocorre uma triangulação de atenção en-tre os interlocutores e as cenas que se sucedem na TV. O drama cotidiano, redimensionado nas novelas ou nos noticiários, invade o espaço do-méstico promovendo a consonância de hábi-tos e alguma superficial inovação.

Ainda em relação à conversa com dona Biba Pimentel, é possível destacar a emaranhada convivência entre as gerações de avós, filhos e netos numa mesma casa. Aí, são negociadas ta-citamente ou, às vezes, mediante relações confli-tuosas, regras de convivência das quais prospera

uma ordem transitória. Em que, quase sempre, se dá a preponderância de quem detém o poder econômico ou, mais raramente, afetivo dessa comunidade familiar. Assim, a casa se converte numa permanente arena de disputa de prefe-rências das gerações que ali coabitam.

As maneiras de fazer o cotidiano na periferia dão conta de uma teia de relações entre redes de matizes culturais, econômicos e políticos que a visita aqui descrita não consegue abarcar em sua totalidade. Mas este recorte retrata um ponto de acesso ao que Michel de Certeau, em A Inven-ção do Cotidiano (1994), evoca como uma teoria dessas práticas. Trata-se do “misto de ritos e bri-colagens, manipulações de espaços, operadores de redes”. São as atuações “silenciosas” e con-tinuadas dessas redes que estabelecem novas fronteiras para a cultura cotidiana, apontando tendências e novos hábitos na periferia.

Antônio Elizeu de Sousa é jornalista com especialização

em Teorias da Comunicação e da Imagem.

PARA LER

A invenção do Cotidiano, de Michel de Certeau. Editora Vozes.

Vida Cotidiana: enigmas e revelações, de José Machado Pais. Cortez Editora.

Vista aérea de um bairro em Fortaleza: localização geográfica, por si só, não define a periferia

Page 41: Revista Enredo

Humano demasiado humano

A atriz Ecila Meneses escreve sobre

a oficina ministrada pelo ator e diretor russo Valentin Teplyakov em

Fortaleza e reafirma a arte como uma possibilidade de transcendência ao

imediato e ao banal

Teat

ro

Ecila Meneses

Oficina no TJA: Valentin “quebra a espinha dorsal”e convida para dançar

Page 42: Revista Enredo

Na noite de segunda-feira, dia 11 de agosto, no Teatro Antonieta Noronha, fomos ao encontro daquela que seria a experiência mais profunda

e transformadora de teatro de nossas vidas: “O teatro de Constantin Stanislavski”, curso ministrado pelo professor Valentin Teplyakov, decano da Academia Russa de Arte Teatral, de Moscou. Falo não só por mim, mas também por alguns colegas que tiveram a coragem de se entre-gar a uma proposta radical e verdadeira de pesquisa do humano e da arte. Na primeira noite, tivemos a abertura do primeiro curso: “O Tempo de Stanislavski”. Nas pri-meiras palavras, nos deparamos com um senhor alto, de voz forte, concentrado e sereno em sua sabedoria. A fala mansa e pausada, dos primeiros dez minutos, foi aos poucos cedendo espaço para um outro personagem: o do homem apaixonado por sua cultura e pelo teatro.

Ao fim daquela noite, senti como se tivesse iniciado uma longa e rica viagem. Mas para onde? Para a Rússia de Sta-nislavski ou para a antiga União Soviética, tão cuidadosa-mente retratada pelo mestre Valentin? Não, viajara para encontrar-me comigo mesma, num mergulho profundo na condição humana. No decorrer do curso, Teplyakov nos mostrou quão verdadeiros fomos em nossa infância e quão bloqueados, falsos e convencionais somos na condição de adultos, cheios de inseguranças e de ima-gens a preservar. Teatro é a arte da vida plena e profunda, revelada em cenas aparentemente casuais ou comezi-nhas, ou em grandiosos momentos épicos.

Logo na primeira noite, foi-nos lançado um desafio por parte de Valentim: “Amanhã quero ver as cenas de vocês!” No dia seguinte, nas salas de ensaio do Cena-TJA, insta-lou-se um constrangido silêncio. Ensaiei na madrugada e lancei-me ao cadafalso, pois o dramaturgo escolhido, Tchekov, é um autor tão difícil quanto genial. Não me atreveria a perder esta oportunidade, pois sempre defen-di que são grandes autores e grandes personagens que formam um ator. Com muita expectativa, entrei em cena. Como fui desajeitada e tímida. Mas apesar dos entraves iniciais, algo brotou em minha alma, instigando-me a me projetar na personagem vivida. Eu queria fazer tudo de novo, e mais uma vez e mais... Queria viver a verdade e aceitaria qualquer crítica de Teplyakov, por mais dura e constrangedora que fosse, para poder viver verdadeira-mente a personagem.

No dia seguinte repeti a cena, mais à vontade e mais ín-tima da personagem. Mesmo assim, tudo era ainda um tanto nebuloso e confuso, como se somente a sorte e

a fortuna me guiassem. No terceiro dia, começamos a montar um elenco para uma cena. A cena foi começan-do e nós fomos nos envolvendo mais e mais no universo de Stanislavski e de Tchekov. A essa altura, a oficina pas-sou a ocupar outros momentos de nossas vidas e passa-mos a entrar num estado de concentração permanente. Isto acontecia devido às indagações que Teplyakov nos lançava a cada vez que entrávamos em cena. Com sua franqueza sempre contundente e objetiva, ele nos pas-sava uma segurança de alguém que é fiel à verdade artís-tica e tem respeito ao aluno e ao ator. Por mais dolorosa e até desconcertante que fosse sua crítica, eu sempre me sentia feliz por ter tido a oportunidade de estar vivendo aquele momento.

O estado de inquietação foi constante, parecia que Va-lentin tinha quebrado a minha espinha dorsal e agora me convidava para dançar. Atônita, mas muito instiga-da por sua revolução, fechei meus olhos para os espe-lhos e fui me permitindo, mesmo que cuidadosamente, viver cada mergulho na profunda alma da personagem Olga, da obra Três Irmãs. Essa experiência muito me revelou, de forma encantadora e apaixonante, sobre o humano, sobre mim mesma e sobre o teatro. Daí pude concluir: como a arte é necessária ao homem. A vida na arte transcende ao imediato, ao falível, ao banal, ao vulgar, ou seja, a tudo que nos deixa pregados ao chão e nos faz pequenos.

A aula final, no Teatro Morro do Ouro do Cena-TJA, foi uma apresentação sincera e concentrada de nosso trabalho de três semanas. Ao fim, estávamos felizes, de uma feli-cidade diferente, como se sentíssemos o dedo de Deus a nos tocar o coração. Realizamos uma comunhão com o olho atento, sensível e perspicaz do nosso mestre, com o público e com nossas almas. Nesse momento sagrado, senti que o trem já havia partido e a revolução, para qual nos recrutou Valentin, havia por fim se iniciado.

Por essa vivência - e por outras experiências -, é que de-fendo que o melhor que pode ser feito a um povo e seus artistas é dar-lhes condições para que possam realizar uma sólida e contínua formação. Caso contrário, vivere-mos no campo da boa vontade de quem nos assiste e da insatisfação de não ter dado tudo de si em cena.

Ecila Meneses é atriz

AS OFICINAS

No último mês de agosto, o Theatro José de Alencar foi palco de uma série de cursos e oficinas com os direto-res Valentin Teplyakov e Maurice Durozier. Teplyakov é professor da Academia Central do Drama de Pequim, na China; e decano da Academia Russa de Arte Teatral, localizada em Moscou e considerada a mais importan-te escola de artes da Rússia. Formado em dramaturgia pelo Instituto Superior Teatral Shchépkin, de Moscou, ele vem desenvolvendo atividades no Brasil já há 10 anos e trouxe ao TJA o curso “O teatro de Constantin Stanislavski”. O curso foi uma promoção da Prefeitura de Fortaleza, através da Funcet e Secretaria de Cultura de Fortaleza – Secultfor.

Já o ator e diretor francês Maurice Durozier, do Théâtre du Soleil, realizou a oficina “O teatro é o outro”, a con-vite da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará com o apoio da Cultures France. Na pauta, temas como a relação do ator e da cena com o público, noções de

improvisação, experimentações de estados emocio-nais, vínculos do imaginário com a imaginação.

Essa foi a segunda passagem de Durozier pelo Ceará. Em 1988, ele promoveu oficinas em Fortaleza e no Ca-riri, a convite da então Secretária da Cultura do Estado, Violeta Arraes. “De volta a Fortaleza, vinte anos depois, tudo ressurge e a memória desenrola seu tapete de cores. Assim que pus o pé no Theatro José de Alencar, senti a presença (de Violeta), evidente, benevolente, contemplei sua obra e percebi seu amor por sua terra e seu povo”, declarou o diretor francês. “O TJA é um lu-gar de vida, uma ilha de paz e de poesia, um jardim de arte no coração do Centro tocado pela miséria e pelo crack. Eu tinha conhecido o TJA empoeirado e à beira da ruína. Hoje, impecavelmente restaurado e mantido, ele se ergue, orgulhoso e fascinante”.

Em 2009 e 2010, Durozier vai voltar ao Ceará, forta-lecendo o intercâmbio entre a produção local e o Théâtre du Soleil.

Atrizes durante oficina de Teplyakov:estado de inquietação constante

Durozier durante aula em Fortaleza: “o TJA é uma ilha de paz e de poesia.”

82 enredo outubro 2008

Page 43: Revista Enredo

É lugar comum entre os leitores de histórias em quadrinhos que nem como meio, nem como linguagem, elas são “coisa de criança”.

Não que os criadores da área rejeitem os jovens leitores – ao contrário, desde o aparecimento das HQs no final do século XX, sempre foram eles que olharam sem preconceito para aquela fusão entre imagens e texto. Derrubar esta frágil e in-coerente interpretação reducionista pode ser a porta de entrada para ver que as possibilidades de expressão desta linguagem são muitas – e, aparentemente, vêm se multiplicando.

É este pensamento de compreensão das HQs como uma linguagem expansionista, que se en-contra na base dos projetos de produção da Ofi-cina de Quadrinhos da UFC, projeto de extensão do curso de Comunicação Social da mesma insti-tuição. Nas páginas seguintes, o leitor terá diante de si a concretização desta afirmação. “A morte e o poeta” é a primeira história produzida pela Ofici-na para a série “Requadros”, cuja proposta é trazer produções jornalísticas em formato de HQ. Trata-se de uma experiência e a palavra é seguida à ris-ca. Está sujeita ao erro, à falha, mesmo contando com o total empenho dos envolvidos.

Em “Requadros”, o esforço é para desenvolver alguns pontos do jornalismo em quadrinhos.

Pela natureza das próprias HQs, trata-se de um jornalismo narrativo. Não à toa, o formato já foi chamado de New New Journalism (algo como “novo novo jornalismo”), em analogia ao tipo de reportagem com tempero literário praticado por gente como Truman Capote, Tom Wolfe e Hun-ter S. Thompson. O desafio se encontra na limi-tação espacial, já que se trabalhou num espaço bem mais enxuto que aquele em que o gênero normalmente se expressa; e na própria tradição do jornalismo brasileiro, hoje menos dado à nar-ração que aquele praticado nos EUA. Pela na-tureza do projeto, “Requadros” traz um trabalho de reportagem (realizado ou acompanhado por um jornalista) e trabalhado por quadrinhistas, responsáveis pela construção do roteiro e pelos desenhos.

O jornalismo em quadrinhos visto em “Requa-dros” é uma das manifestações da HQ como algo que passa ao largo do universo infantil (mais uma vez: sem rejeitá-lo). Outros já foram vistos: a graphic novel, que recriou o gênero literário do romance, cujo melhor exemplo ainda é o norte-americano Will Eisner (1917 - 2005); o erotismo, quase monopolizado pelos italianos; o memo-rialismo, plenamente realizado em “Maus”, de Art Spiegelman; e a experiência de Scott McCloud, autor de alguns dos mais importantes estudos

sobre as HQs “escritos” nesta mesma linguagem.

Apesar do flerte do jornalismo com os qua-drinhos ser bem mais antigo (a charge se encontra no ponto de intercessão entre as duas formas de expressão), foi com a obra do maltês Joe Sacco que se passou a falar nisso. A série Palestina abriu ca-minho para Gorazde: área de segurança e Uma história de Sarajevo. Nestes tra-balhos, todos eles disponíveis no Brasil, Sacco apresenta um ofício de fôlego de reportagem em zonas de guerra. Em vez de tratar as áreas de conflito no Oriente Médio e na Europa no consagrado for-

mato do livro-reportagem, o jornalis-ta preferiu se valer de outra linguagem que conhecia bem.

Ao leitor de Sacco, não restam muitas dúvidas de que se trata de produções jornalísticas. Estão ali as informações colhidas in loco, os depoimentos das fontes, o trabalho de pesquisa prévio, além, claro, de um texto orientado para a informação do leitor, crítico sob uma conduta ética, respei-tando os limites da interpretação e da enuncia-ção. Além de Sacco, o público brasileiro de HQ conheceu a experiência de Didier Lefèvre (argu-mento e fotografias), Emmanuel Guibert (rotei-ro e desenhos), que mostraram o trabalho do repórter-fotográfico no Afeganistão.

Sacco e Lefèvre/Guibert tiveram uma série de incontáveis precursores, tanto entre aqueles que produziram HQ a partir da dramatização de eventos históricos, como entre chargistas - ou quase-chargistas. Entre esses híbridos, vale citar Angelo Agostini (1833 - 1910), italia-no radicado no Brasil, e um dos pioneiros dos quadrinhos no mundo. Em jornais como “O Malho” e “Gazeta de Notícias”, publicou char-ges seqüenciadas, envolvendo comentários de crítica política e social.

Qua

drin

hos

Linguagem em expansãoProjeto da Oficina da UFC aproxima o jornalismo dos quadrinhos e propõe uma abordagem mais ampla para a linguagem das HQs

A OFICINA

A história da Oficina de Quadrinhos da UFC começou em 1985, com o professor Geral-do Jesuino, ilustrador e designer gráfico. Até 2000, enquanto durou a primeira fase do projeto, Jesuíno ajudou a formar deze-nas de quadrinistas cearenses. Em 2004, o projeto foi retomado, tendo à frente o pro-fessor Ricardo Jorge e um grupo de novos alunos, a maioria saída do próprio curso de comunicação. Atualmente, quem está à frente do projeto é o professor Wellington Junior, ele mesmo um ex-aluno da Oficina. Nesta segunda etapa, a Oficina já desen-volveu projetos como a “Pium”, publicação histórica do projeto que reapareceu em um especial de histórias de terror; “Contando a cidade”, série de histórias curtas publicadas no jornal O POVO; e “Eureka”, na revista Uni-versidade Pública (UFC), em que faz uma leitura cômica do universo acadêmico.

84 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 85

Page 44: Revista Enredo

Qua

drin

hos

outubro 2008 enredo 8786 enredo outubro 2008

Page 45: Revista Enredo

Entr

elin

has

PRAÇA BRASIL: PILOTO DO PROGRAMA DE EXPORTAÇÃO

Manifestação cultural. Uma caravana de 124 artistas cearenses de-sembarcou em Brasília e ocupou a Praça dos Três Poderes. Porém, este não é noticiário de política. O Ceará era o convidado para abrir as atividades do projeto “Praça Brasil”, da Presidência da Repú-blica, fazendo as honras para a tradicional Parada Militar, no feriado da In-dependência do Brasil. Ali, entre o Superior Tri-bunal Federal, o Palácio do Planalto e o Con-gresso Nacional, os artis-tas brilharam com sua dança, música, artesanato - e a comunidade cearense radicada na Capital Federal pôde matar um pouco da saudade de casa. Um res-taurante com comidas típicas do Ceará a preços populares foi comandado pela chef Juju Castelo Branco, que ensinou cozinheiras de uma cooperativa a elabo-rar os pratos típicos. O resultado? Mais de duas mil tapiocas e R$ 15 mil em pe-ças de artesanato comercializadas, além de público estimado em 20 mil pessoas. Os visitantes conferiram atrações como Maracatu Az de Ouro, Skolástica, Arraiá Zé Testinha, cantadores Beija Flor e Vem Vem, Reisado do Mestre Zé Pio, Dona Ze-finha e Zabumbeiros Cariris. Para muitos destes grupos, foi a primeira vez que se apresentaram fora do Ceará. Para outros, uma oportunidade ímpar de iniciar tur-nês pelo País. A iniciativa é um projeto-piloto da Secult para o programa de exportação da cultura, que pretende lançar, em 2009, uma vitrine das mani-festações culturais cearenses por outros estados do Brasil e exterior.

PATRIMÔNIO EM REFORMA

Portas, janelas, tomadas, pintura e o piso de todos os cô-modos da Casa Juvenal Galeno estão em reparos. Cons-truída em 1888 como morada do poeta Juvenal Galeno, a casa hoje funciona como ponto de encontro de várias associações culturais e abriga uma biblioteca de seis mil volumes. Além da recuperação de estruturas danificadas, está prevista a ampliação do auditório, a construção de novos banheiros e implantação do sistema contra incên-dio. A proposta para a Casa é que ela se torne ponto de encontro da literatura popular cearense com vasta pro-gramação a partir de 2009.

Outro equipamento que saiu de um make-up foi o Museu Sacro São José de Ribamar, em Aquiraz, que recebeu pin-turas internas e externas, sinalização, reparos na calçada, a primeira reserva técnica e um prédio anexo para o setor administrativo. O Museu está aberto ao público com um dos mais importantes acervos sacros do Ceará.

Por fim, a Secult também anunciou sua transferência para o Centro com a abertura da licitação para a refor-ma do prédio São Luiz (onde fica, no andar térreo o fa-moso cinema cearense). Com isso, inicia seu programa de requalificação do Centro, formando um corredor de equipamentos culturais em Fortaleza.

Foto

: Gus

tavo

Pel

lizzo

n

80 ANOS DE ARTE Vale conferir a mostra que rememora um dos expoentes da arte cearense. Sérvulo Esmeraldo é apresentado em individual, com curadoria de Dodora Guimarães, reunindo mais de cem obras entre esculturas, relevos e gravuras em diferentes técnicas e materiais. A exposição é alusiva aos 80 anos do artista nascido no Crato. Destaque para os fa-mosos “Excitables”, quadros movidos a eletricidade estáti-ca, jamais apresentados no Ceará. No Memorial da Cultura Cearense, do Centro Dragão do Mar. Informações: 3488.8621. De terça a quinta, das 9h às 19h e de sexta a domingo, das 14h às 21h. Ingressos: R$ 2,00 e 1,00 (ter. a sáb.). Acesso livre aos domingos.

EM CARTAZ

AMERICANIDADE O Museu de Arte Contemporânea, no Centro Dragão do Mar, apresenta duas novas exposições, dentro do projeto Americanidade. O artista belga, radicado no Chile, Patrick Hamilton faz combinações incomuns de imagens e suportes. Já a argentina Florência Ro-drigues Giles expõe “Adaptación orilla”. O projeto exibe as obras de artistas contemporâneos no intui-to de divulgar e aproximar a produção artística dos países latino-americanos. O projeto pretende ainda mostrar a semelhança das questões abordadas nas obras destes artistas, como consumo, cultura de massa e a relação com a cidade. A visitação é gratuita e aberta de terça a quinta, das 9h às 19h e de sexta a domingo, das 14h às 21h. Mais informações: (85) 3488.8624 / 8622

SP-CEARÁ O paulista Nuno Ramos apresenta “Só La-mina”, ao lado do cearense Luiz Hermano, que inaugura a retrospectiva “30 anos e um dia”. As exposições destes artistas da Geração 80, estão em cartaz no Sobrado Dr. José Lourenço (Rua Major Facundo, 154, Centro de Fortaleza). Mais informações pelo telefone (85) 3101-8827. A visitação é gratuita. De terça a sexta, das 9h às 19h, sábado de 10h às 19h e domingo de 14h às 18h. Mais informações: (85) 3101-8827.

Trabalho de Luiz Hermano

Trabalho de Florência Rodrigues Giles

Trabalho de Sérvulo Esmeraldo

88 enredo outubro 2008 outubro 2008 enredo 89

Page 46: Revista Enredo

MAIS CULTURA PARA O CEARÁ O Ministério da Cultura anunciou investimentos de R$ 11 milhões no Ceará até o final do ano de 2008. A reunião de planejamento entre Secretaria da Cultura do Estado e o MinC contou com a presença da coordenadora do Mais Cultura, Silvana Meireles. Entre as ações previstas está o lançamento do edital para cem novos Pontos de Cultura, o reforço do programa Agente da Leitura (projeto referên-cia importado do Ceará para os outros estados da federa-ção), além da instalação de novas bibliotecas municipais. Fabio Lima

INSCRIÇÕES

REVELA CEARÁ JOVEM Em recente pesquisa do IBGE (Instituto Brasilei-ro de Geografia e Estatística), a Região Nordeste apresentou maior participação de jovens entre os ocupados no setor cultural (31,9%). Para fo-mentar esta produção e revelar os novos talen-tos cearenses, a Secretaria da Cultura do Estado do Ceará abriu o I Edital Revela Ceará Jovem, com recursos de R$ 500.00,00 (quinhentos mil reais) do Tesouro Estadual. Serão contempladas 50 iniciativas de jovens entre 16 e 30 anos nas áreas de audiovisual (curta-metragem), literatu-ra (história em quadrinhos) e novas mídias (con-teúdos gerados por mídias móveis). As inscrições seguem até 31 de outubro. O edital está disponível no site: www.secult.ce.gov.br.

NA INTERNET Da música religiosa às marchinhas carnavalescas, hinos mi-litares, música popular brasileira, composições de ilustres cearenses e gêneros estrangeiros como o fox-trot e o jazz. O acervo diverso do banco de partituras da Secretaria da Cultura está disponível online para atender as bandas de música de todo o Estado. Acesse: www.secult.ce.gov.br e veja as peças musicais com padrão de editoração gráfica e orquestrações. Mais informações: 3101.6742.

Entr

elin

has

MESTRES DO MUNDO De 2 a 6 de dezembro, o Cariri cearense recebe mais de 300 mestres de todo o Brasil para o IV Encontro Mestres do Mundo e II Seminário de Políticas Públicas para Cul-turas Populares, parceria do Ministério da Cultura e da Secretaria da Cultura do Estado, com patrocínio da Caixa Econômica. A festa da cultura popular será preenchida por rodas de mestres, apresentações culturais e relatos de experiências.

ESCOLA LIVRE DE ARTES CÊNICAS Fique ligado mensalmente nas proposições da Escola Livre de Artes Cênicas, que está funcionando dentro do Theatro José de Alencar (TJA), em Fortaleza. Ali, cursos, troca de saberes, residência artística, encontros, seminários e con-versas abertas têm tomado conta dos turnos da casa, de-dicando-se não somente a artistas cênicos, mas ao público em geral. Informe-se pelo site da Secult ou pelo e-mail: [email protected]

TIRE SUA CARTEIRA A Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel (BPGMP), em Fortaleza, existe há 141 anos, mas o que muita gente ainda não sabe é que pode alugar até quatro livros por mês. Para fazer empréstimos, basta tirar a cartei-rinha na secretaria da Biblioteca. O cadastro é simples: o pagamento de uma taxa única de R$ 4,00 (quatro reais), duas fotos 3x4 e a cópia do RG, CPF, carteira de estudan-te (se existir) e comprovante de residência. Com isso, é possível alugar dois livros por 15 dias e é permitida a re-novação deste prazo. A cada dia de atraso a multa é de R$ 0,50 por livro. O funcionamento da BPGMP é de segunda a sexta-feira, das 8h às 21 h; sábado e domingo, das 14h às 18h. Informações: (85) 3101 2541 e e-mail: [email protected]

90 enredo outubro 2008

Page 47: Revista Enredo