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ISSN-2317 - 1391 Secção Baiana da Fundação Mauricio Grabois Volume 8 - Ano 7 - Março de 2017 Revista Dialética vol 8

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ISSN-2317 - 1391

Secção Baiana da Fundação Mauricio GraboisVolume 8 - Ano 7 - Março de 2017

Revista

Dialética

vol 8

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Volume 8

CONSELHO EDITORIAL

Ricardo Moreno (editor) Milton Barbosa Ilka Bichara Muniz Ferreira Milton Pinheiro João Augusto Jéferson Braga Olival Freire Renildo Souza Elias Ramos Elias Dourado Flávio Gonçalves Jorge Wilton Audrin Castellucci Gisélia Souza Augusto Vasconcelos Nilton Vasconcelos Ângela Guimarães Caio Botelho Urano Andrade Ana Guedes Mary Castro

Secção Baiana da Fundação Mauricio Grabois www.revistadialetica.com.br

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Volume 8

Sumário - Dialética

2 | CONSELHO EDITORIAL

4 | EDITORIAL

6 | ESTADO DE EXCEÇÃO DE NOVO TIPO EXIGE RE-

SISTÊNCIA DE NOVO TIPO

José Ricardo Moreno Pinho

15 | A DIPLOMACIA DO GOLPE

Muniz Ferreira

30 | A MÍDIA, A CRISE E O GOLPE

Flávia Biroli

35 | ENTREVISTA COM O PROF. RENILDO SOUZA:

POR QUE FORA TEMER JÁ?

POR QUE ELEIÇÃO DIRETA JÁ?

41 | O ATAQUE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – PEÇA

FUNDAMENTAL NA DESTRUIÇÃO DO ESTADO SO-

CIAL DE DIREITO E NA IMPOSIÇÃO DO PENSAMEN-

TO ÚNICO NEOLIBERAL

Helena Rato

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EDITORIAL

O ano de 2016 certamente entrou para a his-tória como um dos mais difíceis vividos pe-los brasileiros. Interrompeu-se um ciclo de 13 anos de avanços populares, pautado na inclusão dos mais pobres, com geração de emprego e valorização de salário e renda. Multiplicaram-se novas universidades, am-pliaram-se o numero de Doutores e Mestres, investiu-se no maior programa habitacional da América Latina, em um sistema de pro-gramas sociais que fez com que o país saísse do famoso mapa da fome, o que mereceu o reconhecimento internacional do Presidente Lula e da Presidenta Dilma. Mas como tudo o que é sólido se desmancha no ar, bastou que as elites construíssem um pacto de retoma-da do controle do estado, para que a boa e velha democracia fosse mais uma vez posta de lado, e num sorrateiro golpe o mandato popular foi tomado de assalto, e uma nova ordem se estabeleceu, a do Estado de exce-ção de novo tipo.

A edição de numero oito na Revista Dialética se dedica ao debate, e tentativa de entendi-mento deste novo tipo de estado de exceção. É o que escreve o Historiador e Professor Ri-cardo Moreno, no artigo intitulado “Estado de exceção de novo tipo exige resistência de novo tipo”. Para este autor, o poder judi-ciário tornou-se o braço executivo do golpe, extrapolando o papel legitimador que lhe foi

conferido em outros momentos históricos. O empoderamento do governo ilegítimo visa a implantação da segunda onda neoliberal no Brasil, e a operação lava jato se constitui em um tribunal de exceção.

A Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, Flávia Biroli, nos mostra o papel da mídia na arquitetura gol-pista por meio do artigo “A mídia, a crise e o golpe”, onde discute o papel das grandes empresas de comunicação na construção do ambiente político em que foi gestada a crise que culminou na deposição da presidenta Dilma. Biroli elenca problemas que precisam ser levados em conta nas análises da relação entre a mídia e a crise política, como os pro-cessos eleitorais recentes, as conexões entre mídia, política e os interesses do capital e os padrões correntes dos antagonismos.

Muniz Ferreira, Professor de História Con-temporânea e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janei-ro, debate “A diplomacia do golpe”, onde o rebaixamento do perfil de nossa atuação di-plomática se constitui em um grave prejuízo para a afirmação das potencialidades do es-tado brasileiro nas relações internacionais. O desmantelamento de uma estratégia de pro-jeção internacional do Brasil como potência emergente, elaborada ao longo dos últimos cem anos, constitui um passo atrás, na traje-tória da política exterior do país.

“O ataque à Administração Pública – peça fun-damental na destruição do Estado social de direito e na imposição do pensamento único

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neoliberal”, é o título do artigo da economista e militante do Partido Comunista Portugues Helena Rato, que nos traz esta contribuição internacional. Para Helena, O ataque à Ad-ministração Pública é um instrumento da política neoliberal de privatização dos servi-ços públicos e de destruição do Estado Pro-vidência (welfare state). Os ideólogos do neo-liberalismo elaboraram um quadro teórico, consagrado pelas diretivas do Consenso de Washington, com que colonizaram o ensino universitário a uma escala global. Foram, as-sim, criadas as condições subjetivas que le-varam à submissão da social democracia ao processo de captura do Estado por interesses privados, ao progressivo domínio do capital financeiro sobre a economia mundial, crian-do condições para a perversão da democra-cia representativa.

Por fim trazemos a entrevista de Renildo Sou-sa, Professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia, que responde acerca da necessidade da construção de uma ampla campanha nacional pela convocação de eleições diretas, e da saída imediata do Presidente golpista Michel Temer.

A todos e todas, uma boa leitura, e, FORA TE-MER!

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Ao analisar o regime bonapartista, em “De-zoito de Brumário de Luís Bonaparte” 2, Marx formulou a ideia de que o Estado é um ins-trumento cuja dinâmica lhe é externa, no en-tanto, a França após o golpe de Napoleão Bo-naparte, em 1852, é dada como submetida ao despotismo de um individuo sem autoridade, onde as classes caíram mudas e impotentes ante as coronhadas dos fuzis. Em “Guerra Ci-vil na França” 3, Esta discussão é retomada, e afirma-se que esta seria a única forma de governo possível para a burguesia naquele momento, pois a mesma houvera perdido a condição de governança, no entanto, os ope-rários, por sua vez, não havia adquirido a fa-culdade de governar a nação.

Engels, em “A origem da família, da proprie-dade privada e do Estado” 4, apontou que em determinados períodos as classes em luta se equilibram tão bem que o poder mediador do estado adquire certa independência em rela-ção a ambas, podendo lançar as classes em conflito, umas contra as outras, nestes casos, enganadas em benefício de um determinado grupo.

O que entra em jogo com esta relativa auto-nomia alcançada pela direção do governo é a associação entre os controladores do Estado e os do poder econômico. O Estado cumpre o papel de mantenedor de uma ordem social, donde a classe economicamente dominante

2 MARX, Karl. Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Martin Claret, 2008.

3 MARX, Karl. A guerra civil na França. São Paulo: Boi tempo, 2011.

4 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Global, 1986.

ESTADO DE EXCEÇÃO DE NOVO TIPO EXIGE RESISTÊNCIA DE NOVO TIPO

José Ricardo Moreno Pinho1

RESUMO

Analisa a composição do pacto das elites bra-sileiras para retomada do controle do Estado, tendo o poder judiciário como braço executor do golpe que tirou do governo a presidenta eleita Dilma Rousseff. Denomina de estado de exceção de novo tipo este momento polí-tico brasileiro, e conclama a uma resistência de novo tipo, pautada em um mergulho nos movimentos sociais, visando uma resistência dura e de longo tempo.

PALAVRAS CHAVE

Brasil – Golpe –Resistencia

1 Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Presidente da Secção baiana da Fundação Mauricio Grabois; Editor da Revista Dialética.

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é a principal beneficiária. O domínio desta classe, sancionado pelo Estado, pode adqui-rir diferentes formas políticas, que vai desde a República democrática, até a ditadura, se necessário for.

Podemos compreender, desta forma, que golpe é uma atitude conservadora onde os segmentos dominantes constroem certo con-senso e transferem a um individuo, ou grupo, o poder do Estado, a fim de garantir a ma-nutenção do status cor. Há de se pensar que esta atitude se dará quando os interesses diretos desta classe dominante se mostram ameaçados de alguma maneira.

O Brasil se mostra um excelente laboratório para este estudo, pois em sua História repu-blicana o ciclo da construção do Estado mo-derno vem sendo insistentemente marcado por interrupções da ordem democrática sem-pre que se avançam as possibilidades de al-teração de correlação de forças a favor dos trabalhadores.

A própria proclamação da República, em 1889, foi conquistada por meio de um golpe dado pelas elites descontentes e que se viam insatisfeitas desde a abolição formal do re-gime escravista. No dizer de Aristides Lobo, “o povo assistiu bestializado a República se im-plantar” 5.

E assim se fez a trajetória Brasileira. O perío-do da Republica velha foi marcada por forte

5 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: CIA das Letras, 1987.

instabilidade política, e constantes ameaças. O jovem Estado Republicano foi incapaz de se impor aos mandonismos locais, mas a bur-guesia recém-nascida logo se constituiu em classe para si, e teve nas primeiras organiza-ções de classe dos industriais de São Paulo a elaboração de um projeto em que o Estado jogaria papel fundamental no fomento para o desenvolvimento capitalista. Esta foi, por sinal, a receita adotada após a revolução bur-guesa incompleta de 1930, cujo mecanismo para alcance do controle da maquina esta-tal foi, mais uma vez, o golpe. Talvez possa-mos afirmar de que naquele momento este instrumento ocupou um papel progressista, pois trouxe como resultado a modernização do país, com um projeto autônomo de desen-volvimento econômico, com uma inclusão, ainda que subordinada, dos trabalhadores, e de rápida urbanização. Mas isto não impediu de que a politica tenha assumido a sua forma mais dura, na perseguição aos comunistas, e adoção da ditadura em 1937 6.

Assim seguiu a sina da história do Brasil Re-publicano: O golpe como instrumento de inte-resse do poder econômico em determinados momentos transferiu o controle do Estado para determinados grupos, ou indivíduos. O próprio Getúlio foi deposto em 1945 por meio de um golpe, retornando a Presidência anos depois por meio do voto, sendo levado a cometer suicídio de 1954, quando enfren-

6 Sobre a trajetória do golpismo no Brasil Republicano ver: TIBLE, Jean. ; VALENTE, Mônica. ; PINHO, J. R. M. DEBATE: Golpismo no Brasil e na américa Latina, ontem e hoje. In: Fundação Perseu Abramo. (Org.). Encontros de memoria e História. 1ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2016, v. 1, p. 63-81.

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tava forte pressão golpista. JK cumpriu o seu mandato, sendo também muito pressionado. Jânio logo renunciou, Jango precisou negociar a perda dos poderes presidenciais em nome de um parlamentarismo, para poder assumir, e tendo seus poderes restituídos por meio de plebiscito, logo veio o golpe fascista militar de 1964, quando se tentava a implantação das reformas de base.

Após longa luta do povo, se retomou a cami-nhada pela construção da democracia. Uma democracia atrofiada, incompleta, marcada por profundas desigualdades, sociais, econô-micas, culturais, políticas. Mas os setores po-pulares foram amadurecendo, se constituin-do em alternativa possível aos olhos do povo, aprendendo a jogar o jogo e passando a fazer a leitura complexa das correlações de forças, superando certa inocência das simplificações esquemáticas da sociedade. E, desta forma, em 2003 a posse de um governo popular foi o coroamento deste duro processo, entrando para a História como sendo a primeira vez em que se deu a substituição dos agentes sociais no controle do Estado brasileiro.

Esta conquista seguiu a mesma lógica que se apresentou em outros países latino-america-nos, como a Venezuela, Chile, Bolívia, Equa-dor, Argentina, Uruguai, Paraguai. Estes tam-bém não chegaram a ser governos de caráter revolucionários, mas construíram gestões po-pulares, conquistadas pelo amadurecimento democrático, e se deram como respostas ao avanço do neoliberalismo, e a incompetência do modelo neoliberal em responder aos ci-clos crescentes das crises financeiras. Ainda

que alguns destes Estados chegassem a afir-mar que estariam adotando uma receita de transição a um modelo original de implanta-ção de socialismo.

No Brasil, de forma clara, o governo popular esteve longe de ousar enfrentar o desafio de uma transformação profunda nas estruturas do modo de produção. Ainda que assim se propusesse, logo esbarraria na diferença en-tre o exercício do governo, ao exercício do po-der. Este muito mais distribuído, e seguidor da lógica imposta pela composição de forças existente na sociedade e a consequência de seus embates diretos.

A gestão do Estado é, pois, uma fração do exercício do poder, que é muito maior do que o próprio Estado. Certamente o Lula, maior liderança desta experiência de um governo popular no Brasil, compreendeu melhor de que as coisas não se resolvem em canetadas, como costumava afirmar.

Mas independente dos seus limites objetivos e subjetivos, este governo popular legou im-portantes conquistas aos trabalhadores. As-sumiu-se uma estratégia de fortalecimento do mercado interno por meio da ampliação da massa de consumo, e o fez pela inclusão de setores até então excluídos desta possi-bilidade. Isto investindo no tripé: geração de emprego, valorização de salário e renda, am-pliação de programas sociais. Os resultados chamam atenção pela consequência social dos treze anos que sucederam. Lula tornou--se uma referencia mundial por representar uma acertada politica de combate à fome. E,

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cumprindo sua promessa de fazer um gover-no de coalizão, ele e Dilma Rousseff, a sua sucessora, apresentaram desempenhos na economia que deixaram satisfeitos também os empresários e os agentes do capital finan-ceiro.

Acontece que a roda não para de girar, e em uma dinâmica cada vez mais acelerada o ca-pital vem sofrendo grandes transformações. O momento agudo da crise financeira inter-nacional deixou órfãos de paradigmas os se-guidores da Escola Austríaca. Até mesmo Alan Greespan, o antes todo poderoso homem da economia norte americana, afirmou que vive-mos em um período irracional marcado por catástrofes e bolhas de preços de ativos7. O efeito dominó da crise financeira global de 2008, a maior desde a Grande Depressão dos anos 1930, fez os governos adotarem mega-pacotes de socorro aos bancos. O temor de uma quebradeira das instituições financeiras que arrastasse todas as economias do mun-do desenvolvido e dos países emergentes, entre eles o Brasil, levou a anúncios de gastos públicos de bilhões e até trilhões de dólares.

Em meio à crise do crédito imobiliário, das hi-potecas de alto risco (subprime), que minou o sistema financeiro mundial, dezenas de ban-cos dos Estados Unidos e da Europa foram socorridos pelos governos. Eram os mesmos governos e bancos centrais de países que ha-viam chancelado uma política de crescimento econômico com juros baixos, crédito farto e riscos elevados (dos clientes de financiamen-

7 http://www.infomoney.com.br/mercados/noticia/3020575/sistema-esta-quebrado-diz-alan-greenspan-presidente-fed

tos da casa própria). Tudo isso sem uma re-gulação mais coordenada dos mercados fi-nanceiros.

A Europa, assolada ainda por um endivida-mento elevado, também foi castigada. A in-tervenção do governo português no Banco Espírito Santo (BES) foi acompanhada de in-jeção de capital de quase cinco bilhões de eu-ros. Em 2012 quatro instituições financeiras gregas receberam mais de US$ 22 bilhões. Na Espanha, outros quatro bancos foram so-corridos com uma injeção de capital de US$ 48 bilhões. A Europa experimentava taxas re-cordes de desemprego e recessão em alguns países8.

Diante da incerteza, outro caminho apontado para reorganização do capital financeiro pas-sou a precisar da retomada do controle dos Estados nacionais para implantação de uma segunda onda neoliberal, repetindo o que se deu na década de 1990. Estava decretado o fim das experiências de governos populares, adoção de um receituário que deveria incluir redução dos direitos dos trabalhadores, fim de investimentos sociais, e redução do Esta-do na economia.

Mas como fazê-lo? - A experiência histórica, e a multipolaridade de forças no cenário mun-dial tronou mais difícil o exercício de controle direto, tal qual acorreu nas décadas de ses-senta e setenta do ultimo século em pratica-mente toda a América do sul. Era necessário algum tipo de respaldo legal, que pudesse

8 http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/apos-cr ise-g lobal -estourar-em-2008-bancos-receberam-socorros-bilionarios-13495994

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construir o tal consenso e conferir a um de-terminado grupo poderes de direção do Esta-do, sem necessariamente que o povo partici-passe desta escolha.

Em Honduras, a derrubada do então presi-dente Manuel Zelaya abriu a série de golpes contra governos liderados por partidos de es-querda na América Latina. Zelaya foi deposto em junho de 2009, quando foi obrigado a dei-xar o país por um grupo de militares. Ele foi retirado de casa, colocado em um avião e de-portado para Costa Rica. A ação contava com apoio de parte do Congresso e da Suprema Corte do país. Além de governos latino ameri-canos, representantes da União Europeia e o presidente dos Estados Unidos, Barack Oba-ma, reagiram a ação militar. A ONU também condenou o que ela definiu como “golpe de Estado” 9.

O Presidente Lugo, do Paraguai, conhecido como “bispo dos pobres”, foi eleito em 2008 e buscou exercer um mandato voltado para o povo. Durante sua gestão perdeu o apoio da maioria dos partidos no parlamento para-guaio. O motivo para seu afastamento surgiu de um confronto durante uma reintegração de posse de uma propriedade agrária que causou a morte de 17 pessoas. Sem apoio parlamentar e do seu vice, Frederico Franco, Lugo foi a julgamento, em um processo que durou 24 horas. O presidente paraguaio teve duas horas para apresentar sua defesa. Ele perdeu o mandato por 39 votos a quatro. Na ocasião, o governo brasileiro, o MERCOSUL e

9 http://www.cartacapital.com.br/revista/895/honduras-e-paraguai-motivos-de-inspiracao

a UNAUL criticaram o desfecho da crise polí-tica do país. O Paraguai acabou suspenso do MERCOSUL por um ano.

Fora do continente, na Turquia, o Presiden-te Erdogan afirmou que seu governo sofreu uma tentativa de golpe de Estado após mili-tares ocuparem postos-chave do país, como o aeroporto de Istambul. Em resposta, cerca de 7.500 pessoas suspeitas de envolvimento foram detidas, entre elas 6.000 militares. Os confrontos causaram 290 mortes. Há um his-tórico de golpes e tentativas de golpe naquele país. No caso mais recente, um grupo autoin-titulado Conselho de Paz afirmou ter agido em razão do “crescimento do terrorismo e do regime autocrático”, Após os confrontos e as prisões, o presidente disse que a situação es-tava sob controle.

Na Argentina, a campanha midiática de des-construção da liderança de Cristina Kirchner logrou êxito na eleição presidencial, e mes-mo com uma pequena margem de votos a oposição conservadora conseguiu derrotar o candidato do governo. Mas, a exemplo do que acontece no Brasil, é preciso eliminar a possibilidade do retorno do projeto popular, e neste sentido, a ex-Presidenta sofre um cerco midiático, e uma serie de processos jurídicos, que visam destruir a sua imagem publica e inviabiliza-la eleitoralmente. Igual pressão ocorre com o Presidente Maduro na Venezuela, país em que as tentativas quase permanentes de golpe existem desde o seu antecessor Hugo Chaves.

Segundo Cristina Kirchner:

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“Se vê claramente o surgimento de um ‘partido midiático’ que julga publicamen-te, um partido judicial’ que é como o es-pelho desse partido midiático e um setor que intervém com esses dois braços fun-damentais na região”. 10

Este consenso construído entre o poder judi-ciário e uma maioria parlamentar conserva-dora, tendo os grupos monopolistas de co-municação como instrumento para propagar certa unidade nas ações de assalto ao Estado, tem sido a fórmula adotada em todos estes casos, e também no Brasil.

No Brasil, a fórmula do golpe foi semelhante ao do Paraguai. A coalizão de centro esquerda co-mandada pelo PT já vinha mostrando crescentes fragilidades. O governo tinha muita dificuldade em aprovar seus projetos no Congresso Nacional, pois um claro movimento demostrava o desloca-mento do centro para a direita, dando margem a oposição de construir uma maioria parlamentar e inviabilizar a governabilidade de Dilma Rousseff. Esta foi a ultima peça do tripé que faltava para a arquitetura golpista.

A Mídia monopolizada por apenas sete famílias já vinha cumprindo o seu papel de propagan-da constante, visando criminalizar, aos olhos do povo, o projeto popular e seus representantes. Já o judiciário se mostrou o braço forte desta trama.

Em 2012 durante a votação do processo que fi-cou conhecido como o mensalão, a Ministra Rosa Weber, do STF, declarou: “Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a

10 http://veja.abril.com.br/mundo/cristina-kirchner-se-compara-a-dilma-e-ate-repete-discurso/

literatura jurídica me permite” 11. - Apesar de ações antecedentes, esta declaração rompia com qualquer desfaçatez e inaugurava a nova forma de agir do poder judiciário brasileiro, ou seja, o de rasgar de vez com a correta pratica jurídica, des-considerar princípios fundamentais como o de presunção de inocência, atenção aos autos dos processos, direito de defesa, e pseudo imparciali-dade. Ao invés disso, a alta corte do país assumiu o papel de ator político, destinado a inviabilizar a continuidade do governo popular, e ainda, após o impeachment da Presidenta Dilma, passa agora a dedicar-se a impossibilitar o seu retorno.

Esta ação do judiciário tem seu ponto mais destacado na condução da chamada opera-ção lava-jato. O método adotado pelo juiz Ser-gio Moro, e a permissividade do STF para com este, caracteriza o estabelecimento de um Tribunal de Exceção. Chamamos de Tribunal de exceção aquele instituído em caráter tem-porário e/ou excepcional. Tal corte não con-diz com o Estado Democrático de Direito. É constituído ao oposto dos princípios básicos de direito constitucional-processual, e todos os demais princípios relacionados ao devido processo legal. Uma forma de farsa judicial12.

O tribunal de exceção não se caracteriza so-mente pelo órgão que julga, mas, fundamen-talmente, por não ser legitimado pela própria Constituição para o regular exercício da juris-dição. No caso brasileiro, a Constituição traz em seu art. 5º inciso XXXVII de que não haverá

11 http://cartamaior.com.br/?/Coluna/O-ultimo-julgamento-de-excecao-e-o-fim-de-uma-farsa/29577

12 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2007.

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juízo ou tribunal de exceção 13.

Em setembro de 2016 O Tribunal Regional Federal da 4ª Região formalizou a condição de exceção da chamada operação Lava Jato, quando atestou que a mesma “não precisa seguir as regras dos processos comuns”. Advo-gados apontam que as investigações ignoram os limites da lei. Para a Corte Especial do TRF-4, os processos “trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas” 14.

Em dezembro o Juiz Sergio Moro foi ao Se-nado pedir que adiasse a aprovação de um Projeto de Lei que prevê dentre outras coisas o abuso de autoridade, estabelecendo pena de um a quatro anos de prisão, além do pagamen-to de multa, para delegados estaduais e fede-rais, promotores, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores que ordena-rem ou executarem “captura, detenção ou prisão fora das hipóteses legais” 15. A alegação do juiz foi de que “este não é o melhor momento para a de-liberação” do projeto, pois a aprovação em defi-nitivo, argumenta, pode ser interpretada como uma medida “a fim de impedir a continuidade e o avanço de investigações criminais importan-tes, incluindo a Operação Lava Jato” 16. Ou seja, o Sr. Sergio Moro pede um salvo conduto para

13 https://jus.com.br/duvidas/210631/nao-havera-juizo-ou-tribunal-de-excecao

14 http://www.conjur.com.br/2016-set-23/lava-jato-nao-seguir-regras-casos-comuns-trf

15 ht tp : / /www.d iar iodoscampos .com.br/politica/2016/11/acipg-e-magistrados-discutem-projeto-de-lei-de-abuso-de-autoridade/2289935/

16 http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/moro-envia-ao-senado-sugestao-projeto-sobre-abuso-de-autoridade.html

continuar a atuar a margem da lei, e cumprir o seu papel de construir um processo fraudulen-to que tem como único objetivo criminalizar o projeto popular.

Dentre os abusos cometidos pelo juiz Sergio Moro, e os agentes policiais envolvidos na ope-ração lava jato, está escuta ilegal de advoga-dos, escuta ilegal da Presidenta da República, condução coercitiva do ex-presidente Lula para depoimento em um aeroporto, sem que o mes-mo tenha se negado a prestar quaisquer infor-mações quando convocado, vazamento seleti-vo de informações para a imprensa com claros fins de transformar ações da Lava Jato em es-petáculo midiático visando à desconstrução de lideranças petistas. Além disso, há diversos questionamentos feitos por advogados quanto à condução do processo, que compromete a possibilidade de defesa, e rompe com o princí-pio de presunção de inocência. É, portanto, um processo viciado destinado a cumprir um papel político, e conduzido por um Magistrado que mal consegue esconder em suas aparições pú-blicas as suas relações com o principal partido que fez oposição aos governos de Lula e Dilma.

O mais curioso é que os nomes mais citados nas denuncias da própria operação lava Jato como beneficiários de esquemas de corrupção da PETROBRAS, são justamente de pessoas pu-blicas ligadas ao PMDB, do agora Presidente Temer, e do PSDB.

A atuação do Sr. Sergio Moro tem sido chama-da na literatura jurídica como “Lawfare”, que seria a estratégia de abusar do direito como substituto dos métodos militares para obten-

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ção de sucesso em um dado conflito. Ou seja, a manipulação das leis para atingir alguém que foi definido como inimigo. Por conta dos abusos cometidos neste processo, o Brasil já se encontra banco de réus do Conselho de Di-reitos Humanos da ONU, que acatou recurso movido pelo Ex-Presidente Lula17.

Outra farsa foi a que ocorreu na Câmara dos Deputados e depois no Senado Federal, por conta da aprovação do impeachment da Pre-sidenta Dilma. Apesar da aparente condução legal o processo de afastamento da Presiden-ta pelo parlamento se deu sem que houvesse qualquer crime de responsabilidade. Na verda-de a alegação para condenação de Dilma foram algumas manobras contábeis, manobras estas que são comuns, e foram fartamente utilizadas pelos seus antecedentes, e até mesmo pelo Vice Presidente, hoje Presidente ilegítimo, Mi-chel Temer.

Chamamos de estado de exceção àquela situação da ordem política que afronta di-retamente à supremacia dos diretos fun-damentais, prevista na própria constituição mediante alegação de restabelecimento da ordem interna, quando necessite tempora-riamente suspender determinados direitos políticos, civis e sociais. O perigo existe quan-do o seu caráter antidemocrático faça com que sua natureza temporária venha a se tor-nar permanente, abrindo margem para que uma ditadura constitucional seja implantada. Estamos assistindo no Brasil, neste momen-to, uma injustificada supressão de direitos e

17 https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/10/26/onu-aceita-denuncia-de-lula-contra-moro-dizem-advogados.htm.

garantias constitucionais.

Este não é um estado de exceção que se as-sume como tal. Figura uma aparência de cer-ta normalidade democrática, que não se sus-tenta dado o pacto que atribui ao judiciário uma condição de intervenção direta no jogo político, visando à inviabilidade de um de-terminado projeto. Além disso, temos uma escalada de ataques diretos aos direitos dos trabalhadores, e da cidadania plena, e ainda a tomada de assalto ao poder por um segmen-to golpista. Trata-se, portanto de um estado de exceção de novo tipo.

O elo mais vulnerável da realização deste pro-jeto está no próprio protagonismo do grupo que assumiu o comando do Estado. O pac-to do PMDB, partido de Michel Temer, com o grande capital, para que este partido as-sumisse de assalto o comando do Estado se deu com a divulgação, em outubro de 2015, do documento denominado “Ponte para o fu-turo” 18.

Nas palavras de Michel Temer,

“E há muitíssimos meses atrás, eu ainda vice-presidente, lançamos um documento chamado ‘Uma Ponte Para o Futuro’, por-que nós verificávamos que seria impossível o governo continuar naquele rumo. E até su-gerimos ao governo que adotasse as teses que nós apontávamos naquele documento chamado ‘Ponte para o futuro’. E, como isso não deu certo, não houve adoção, instau-

18 http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf.

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rou-se um processo que culminou agora com a minha efetivação como presidência da república” 19.

Este documento traz em seu teor um projeto oposto ao que foi eleito pelo voto popular em 2014, e sugere a desvinculação dos recursos da saúde e da educação, desindexação dos benefícios e do salário mínimo, mudança de idade para a aposentadoria, parcerias com o setor privado e abertura comercial. A negati-va de Dilma a esta agenda teria então decre-tado a decisão de retirá-la da Presidência, sendo a alegação de manobras fiscais ape-nas uma justificativa falsamente construída.

No entanto, o combate à corrupção, que foi o carro chefe da propaganda de ataque aos go-vernos populares de Lula e Dilma, vai revelando o verdadeiro caráter do governo golpista. Longe de conseguir expressar a moralidade pública, o governo Temer vai rapidamente se expondo a um vendaval de denuncias, muitas delas advin-das do andamento da própria operação Lava Jato. Assim, em sete meses, sete ministros já fo-ram exonerados, muitos respondem a proces-sos de diversas ordens, e as delações atingem principalmente o próprio Presidente Temer, que já vê a sua situação tornar-se insustentável.

Claro que o tratamento dado pelo poder judi-ciário ao grupo que se apoderou do Governo, tem sido bem mais parcimonioso do que ao que é dado a aqueles que são vinculados ao go-verno legitimamente eleito nos últimos quatro

19 h t t p : / / w w w . j b . c o m . b r / p a i s /noticias/2016/09/23/the-intercept-temer-diz-que-impeachment-aconteceu-porque-dilma-rejeitou-ponte-para-o-futuro/

pleitos federais. Cabe então às forças popula-res preparar-se para uma resistência de longo tempo frente à ordem golpista estabelecida.

A possibilidade de mudança deste cenário não se dará pelo isolamento das batalhas dentro do parlamento brasileiro, viciado e controlado pe-las forças conservadoras; não se pode esperar muito do judiciário golpista que assumiu o pa-pel de braço forte da tarefa de mutilar as forças populares e inviabilizarem a possibilidade de um retorno; não se dará também por uma mu-dança de rumos do poder executivo que segue acelerando a implementação de medidas anti-povo para fazer jus ao que foi pactuado com o grande empresariado, e com os agentes do capital financeiro, expresso em “ponte para o futuro”. É preciso então voltar-se para as bases sociais, reorganizar o povo, cuidar da educação politica, formar fileiras na luta frente aos ata-ques aos trabalhadores, compor ampla frente de defesa da democracia e pela restituição dos direitos legais.

O mergulho nas organizações sociais passou a ser uma necessidade vital para a sobrevivência das forças que clamam pelo restabelecimento de um projeto de desenvolvimento nacional, com foco no social. Superar os vícios trazidos pelo período de controle institucional, e voltar a olhar nos olhos do povo. Mas é necessário que não caia no primarismo do isolamento. É preciso retomar uma antiga máxima de lutas pretéritas: “Ampliar para radicalizar, e radicalizar ampliando!”.

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A DIPLOMACIA DO GOLPE

Muniz Ferreira1

RESUMO

Identifica o rebaixamento do perfil da atua-ção diplomática brasileira como constitutivo de grave prejuízo para a afirmação das po-tencialidades do estado brasileiro nas rela-ções internacionais. O desmantelamento de uma estratégia de projeção internacional do Brasil como potência emergente, elaborada e executada em condições problemáticas e em diferentes momentos ao longo dos úl-timos cem anos, constitui um passo atrás, na trajetória da política exterior do país. O governo ilegítimode Michel Temer traz uma política externa não mais de estado, mas de governo. Rigorosamente alinhada com os ob-jetivos imediatistas do gabinete golpista, ou seja, com as reformas e ajustes neoliberais na economia e na sociedade, em que manifes-ta abertamente seu descompromisso com a construção dos espaços multilaterais de de-cisão internacional, em prol dos arranjos bi-laterais.

PALAVRAS – CHAVE

BRASIL – DIPLOMACIA - GOLPE

1 Professor de História Contemporânea e Relações Internacionais da UFRRJ

Oito meses passados da posse do governo golpista e de seu ministro das Relações Exte-riores e a política externa brasileira continua sendo um grande ponto de interrogação. Di-ferentemente dos anos e meses anteriores, quando a política exterior foi cotidianamente monitorada, avaliada e, principalmente, criti-cada pelos grandes meios de comunicação, as ações diplomáticas do gabinete Temer não aparecem na pauta da mídia corporati-va. Admitindo-se como improvável um atual desinteresse dos grandes veículos noticiosos pelas atividades da diplomacia brasileira, é possível deduzir que marasmo, o isolamento e a ausência de iniciativa têm atravancado o desempenho internacional do governo gol-pista ou, tenha ele operado na calada da noi-te, revisando realizações e procedimentos em perceptível desencontro com aquilo que até recentemente foi considerado, no âmbito do próprio ministério, como a expressão dos interesses nacionais; ou, estarem ambas al-ternativas ocorrendo simultaneamente.

Considerando a velocidade com que se de-senvolve a vida internacional em nossos dias, a envergadura de nossa expressão no mundo e a amplitude de nossas possibilidades e de-mandas, o “simples” rebaixamento do perfil de nossa atuação diplomática já se constitui um grave prejuízo para a afirmação das po-tencialidades do estado brasileiro nas rela-ções internacionais. O desmantelamento de uma estratégia de projeção internacional do Brasil como potência emergente, elaborada e executada em condições problemáticas e em diferentes momentos ao longo dos últimos cem anos, constitui um passo atrás, na traje-

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tória da política exterior do país.

Conquanto tenhamos um repertório extenso de ações para avaliar, temos também a enun-ciação de um conjunto de “diretrizes” apre-sentadas pelo novo chanceler em sua cerimô-nia de posse, que merecem nossa atenção. Não obstante tratar-se de um gabinete que se equilibra, a duras penas, sobre o fio afiado da ilegitimidade do golpismo, seu potencial desconstrutor, tanto no que se refere a ques-tões de política interna, quanto de política ex-terior, não deve ser menosprezado. Este é o ponto de partida para um breve exame das sinalizações contidas no discurso de posse do Sr. José Serra, à frente do Ministério das Relações Exteriores, tendo como contrapon-to momentos mais assertivos e engajados no projeto de afirmação e ascensão internacio-nal do Estado Nacional Brasileiro no sistema de poder mundial, através de sua política ex-terior.

O DISCURSO DE POSSE DE SERRA – ALGU-MAS CONSIDERAÇÃO

Discursando perante uma selecionada au-diência composta por membros do governo em exercício, apoiadores, aliados e funcioná-rios de carreira do Ministério das Relações Exteriores (MRE), o novo ministro assim se expressou: “O presidente leu ao meu lado, li-nha por linha, fazendo seus comentários, que naturalmente levei em conta” (pag.1).

Uma política externa não mais de estado, mas de governo. Rigorosamente alinhada com os objetivos imediatistas do gabinete golpista,

ou seja, com as reformas e ajustes neolibe-rais na economia e na sociedade.

(...) eu os saúdo em nome do ministro Ro-mero Jucá, que, quis o destino, vai ter um papel junto comigo fundamental para a recuperação das finanças do Itamaraty. (idem)

Uma predição completamente desmoraliza-da pela vida. Jucá caiu, semanas depois, por envolvimento em um escândalo de corrup-ção: “Tenho e terei, como sempre em minha vida pública, os olhos voltados para o futuro e não para os desacertos do passado.” (idem)

Cabem as indagações: Qual passado? Desa-certos de quem?

Primeira diretriz:

A diplomacia voltará a refletir de modo transparente e intransigente os legítimos valores da sociedade brasileira e os in-teresses de sua economia, a serviço do Brasil como um todo e não mais das con-veniências e preferências ideológicas de um partido político e de seus aliados no exterior. A nossa política externa será re-gida pelos valores do Estado e da nação, não do governo e jamais de um partido. (pag.2)

a) Quais seriam os “legítimos valo-res da sociedade brasileira”?

b) Pode a gestão neoliberal da eco-nomia se colocar a serviço do Brasil como um todo?

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c) Todo partido político no exer-cício do governo imprime sua marca à política externa, ainda que somente na forma, no ritmo e na intensidade de implantação. Mesmo quando existe uma tradição plenamente consolidada em matéria de política externa e diplo-macia, como nos Estados Unidos;

d) Nada pode ser mais enganoso do que esta declaração. Os governos pe-tistas conferiram ampla independência ao Itamaraty no processo de execução da política externa. Exemplo disto foi a escolha de diplomatas de carreira para ocupar o posto de ministro em todas as gestões petistas e a colocação, no posto de comando das embaixadas, também de profissionais de carreira do Ministério das Relações Exteriores. O governo golpista, inversamente, en-tregou o ministério a um quadro políti-co partidário, sem qualquer vinculação com a carreira diplomática. Este, por sua vez, passou a indicar correligioná-rios e afilhados políticos para ocupar cargos nas embaixadas brasileiras no exterior, em uma atitude de indisfar-çável partidarização e ideologização (?) do serviço diplomático.

e) Quanto às “medidas que, em ou-tros momentos, possam ter servido ao interesse nacional” e que “podem não ser mais compatíveis com as novas realidades do país”, caberia perguntar, quem define isto. Que outros momen-tos foram estes? Os anos FHC, o ciclo petista, os governos militares? Sem

uma definição precisa de quais medi-das e quais momentos foram estes, a observação não passa de uma obscura mistificação.

Segunda diretriz:

Estaremos atentos à defesa da demo-cracia, das liberdades e dos direitos hu-manos em qualquer país, em qualquer regime político, em consonância com as obrigações assumidas em tratados inter-nacionais e também em respeito ao prin-cípio de não-ingerência. (pag.2)

Poucas afirmações poderiam ser mais gené-ricas e superficiais do que esta. A primeira pergunta a ser feita é: o governo golpista, ao qual o Senhor Ministro serve, pode ser consi-derado um exemplo de democracia? As esta-tísticas referentes à violência, arbitrariedades policiais, baixo coeficiente na decifração de crimes, flagrantes desigualdades na adminis-tração da justiça combinadas com a realidade de crescente criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, acirramento da repres-são contra trabalhadores em luta, violência machista, sexista e homofóbica e extermínio da juventude negra não fazem do Brasil um exemplo de respeito aos direitos humanos.

Quanto ao princípio da não ingerência, já foi desrespeitado com a interferência brasileira nos assuntos internos da Venezuela, propon-do sua suspensão do MERCOSUL e impedin-do aquele país de ocupar a presidência rota-tiva (como seria de direito) daquela área de livre comércio.

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Terceira diretriz:

O Brasil assumirá a especial responsabi-lidade que lhe cabe em matéria ambien-tal, como detentor na Amazônia da maior floresta tropical do mundo, de uma das principais reservas de água doce e de bio-diversidade do planeta, assim como de matriz energética limpa e renovável, a fim de desempenhar papel proativo e pionei-ro nas negociações sobre mudança do cli-ma e desenvolvimento sustentável. Lem-bro que, se fizermos bem a lição de casa, poderemos receber recursos caudalosos de entidades internacionais interessadas em nos ajudar a preservar as florestas e as reservas de água e biodiversidade do planeta, uma vez que o Brasil faz a dife-rença nessa matéria. (pag.2)

Mais uma declaração saturada de generalida-des e superficialidades. Caso queira honrar seu compromisso vai ter de mudar o Código Florestal, elogiado pelos pecuaristas e pelo agronegócio e criticado por agências inter-nacionais e movimentos ambientalistas no Brasil e no exterior. Vai ter também de ajus-tar contas com a política ambiental da última administração tucana, omissa na proteção dos biomas brasileiros, submissa no en-frentamento das ameaças à biodiversidade brasileira na OMC e outros fóruns internacio-nais.

Quarta diretriz:

Na ONU e em todos os foros globais e regionais a que pertence, o governo bra-sileiro desenvolverá ação construtiva em favor de soluções pacíficas e negociadas

para os conflitos internacionais e de uma adequação de suas estruturas às novas realidades e desafios internacionais; ao mesmo tempo em que se empenhará para a superação dos fatores desenca-deadores das frequentes crises financei-ras e da recente tendência à desacele-ração do comércio mundial. O comércio mundial está se contraindo a galope, eu diria. (pag. 2)

Se quiser cumprir com a palavra, o chanceler em exercício necessitará rever a política de ali-nhamento automático com as posições esta-dunidenses adotada pela administração Fer-nando Henrique. Precisará dar continuidade às iniciativas em prol da democratização das Nações Unidas, do fortalecimento das instân-cias e processos multilaterais, da construção do consenso sul-sul, da consolidação dos BRI-CS, do G20 e do IBAS, temas ausentes nesse discurso, assim como não há qualquer alusão ao esforço brasileiro no sentido de reformar o Conselho de Segurança da ONU, com a pró-pria elevação do país a condição de membro permanente do organismo.

Quinta diretriz:

(...) O multilateralismo que não aconteceu prejudicou o bilateralismo que aconteceu em todo o mundo. Quase todo mundo investiu nessa multiplicação, menos nós. Precisamos e vamos vencer esse atra-so e recuperar oportunidades perdidas. (pag.3)

Aqui, é forçoso reconhecer, o novo ministro se expressou com admirável sinceridade. Ma-

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nifestou abertamente seu descompromisso com a construção dos espaços multilaterais de decisão internacional, em prol dos arran-jos bilaterais. É exatamente esta a posição ofi-cial estadunidense em relação aos acordos e negociações no plano internacional. Acordos bilaterais entre a superpotência econômica e militar estadunidense e países dependentes e em desenvolvimento mundo afora. Arran-jos que restringem o poder de negociação dos estados dependentes e perpetuam as as-simetrias de poder no sistema internacional.

Sexta diretriz:

Por isso mesmo, daremos início, junto com o Ministério da Indústria, Comércio e Serviços, com a cobertura da CAMEX e em intensa consulta com  diferentes setores produtivos, a um acelerado processo de negociações comerciais, para abrir mer-cados para as nossas exportações e criar empregos para os nossos trabalhadores, utilizando pragmaticamente a vantagem do acesso ao nosso grande mercado in-terno como instrumento de obtenção de concessões negociadas na base da reci-procidade equilibrada. (pag.3)

De novo aqui a ênfase nos acordos comer-ciais bilaterais, em lugar do engajamento nos processos de integração econômica. É a aber-tura da porta de saída do MERCOSUL rumo a processos como Aliança do Pacífico, Nafta e ALCA. Ressoa ao longe uma política dos ni-chos de oportunidades no comércio interna-cional através da obtenção de acordos com as economias centrais para a exportação de nossos produtos primários em troca da aber-

tura de nosso mercado interno para a impor-tação de manufaturados e artigos de alta tec-nologia.

Sétima diretriz: (pag.3)

Um dos principais focos de nossa ação di-plomática em curto prazo será a parceria com a Argentina, com a qual passamos a compartilhar referências semelhantes. (...) renovar o Mercosul, para corrigir o que precisa ser corrigido, com o objeti-vo de fortalecê-lo, antes de mais nada quanto ao próprio livre-comércio entre seus países membros, que ainda deixa a desejar, de promover uma prosperida-de compartilhada e continuar a construir pontes, em vez de aprofundar diferenças, em relação à Aliança para o Pacifico, que envolve três países sul-americanos, Chile, Peru e Colômbia, mais o México.

Se compartilharmos com Argentina referên-cias semelhantes após as mudanças de go-vernos, lá e aqui, nos últimos dois anos, então é por que: a) a política externa não é de esta-do e sim de governo; b) é ideológica e não de interesse nacional.

Lembramos que a Aliança para o Pacífico foi a alternativa estadunidense ao fracasso do projeto ALCA. É uma espécie de NAFTA do sul, inclusive com a participação do próprio Mé-xico. Não é um projeto de integração, como a União Europeia e a proposta original do próprio MERCOSUL, trata-se apenas de uma simples área de livre comércio. Considerando as disparidades de desenvolvimento econô-mico e tecnológico entre as economias dos

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EUA e de seus eventuais sócios latino-ameri-canos, o resultado econômico mais provável seria a conversão destes últimos em reservas de mercado para os produtos de alta tecno-logia produzidos pelas empresas norte-ame-ricanas e a transferência de empresas pro-dutoras de artigos de baixo valor agregado, para aproveitar as vantagens do baixo custo da força de trabalho e ausência de restrições ambientais e/ou trabalhistas existentes nes-tes países.

Podemos aponta, como exemplo, os resul-tados da transferência das “maquiladoras” (montadoras) estadunidenses de produtos manufaturados para o México durante a vi-gência da NAFTA, que nem de longe se apro-ximam das promessas de “prosperidade com-partilhada” mencionada no discurso de Serra. O resultado deste processo foi a precarização crescente da força de trabalho, a degrada-ção ambiental, o aumento das desigualdades econômicas e sociais e a falência do estado em uma das sociedades mais violentas e con-flitivas do planeta.

Oitava diretriz:

(...) Com os Estados Unidos, nós confia-mos em soluções práticas de curto prazo para a remoção de barreiras não-tarifá-rias, que são, no mundo de hoje, as essen-ciais. No mundo de hoje não se protege, do ponto de vista comercial, com tarifas. Se protege com barreiras não-tarifárias. Quero dizer que o Brasil nesse sentido é o mais aberto do mundo. (pag.4)

Quais são as barreiras não tarifárias? São as

barreiras ambientais, ecológicas e sociais, as práticas de dumping e subsídios agrícolas. A ideia é eliminar as existentes no Brasil, na ex-pectativa que os EUA façam o mesmo com as suas? Será que isto vai acontecer? Principal-mente com a ascensão de um governo assu-midamente protecionista como o de Donald Trump??? Parece uma aposta antecipada-mente condenada ao fracasso.

Nona diretriz:

(...) Ao contrário do que se procurou di-fundir entre nós, a África moderna não pede compaixão, mas espera um efetivo intercâmbio econômico, tecnológico e de investimentos. Nesse sentido, a solidarie-dade estreita e pragmática para com os países do Sul do planeta terra continuará a ser uma diretriz essencial da diploma-cia brasileira. Essa é a estratégia Sul-Sul correta, não a que chegou a ser pratica-da com finalidades publicitárias, escassos benefícios econômicos e grandes investi-mentos diplomáticos. (Idem)

Quem procurou difundir este entendimento, a administração anterior? Mas, sendo assim, não faria sentido dizer que “a solidariedade estreita (sic!) e pragmática (...) continuará a ser uma diretriz essencial da diplomacia brasileira.” O investimento na criação e con-solidação de espaços alternativos de delibe-ração internacional, na perspectiva da gera-ção de um mundo multipolar, a conquista de oportunidades para a operação de grandes empresas brasileiras na África e na América Latina, a criação do banco do sul, o BRICS, o IBAS e o G-20 foram reduzidos, aqui, a meras

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operações publicitárias. Uma ofensa, antes de tudo, ao próprio Itamaraty. Um exemplo impressionante de partidarização da política externa brasileira.

Décima diretriz:

Nas políticas de comércio exterior, o go-verno terá sempre presente a advertên-cia que vem da boa análise econômica, apoiada em ampla e sólida consulta com os setores produtivos. (Idem)

Já sabemos o que o ministro considera como ”boa análise econômica”, assim como quais serão os setores produtivos que serão con-sultados (o setor agroexportador).

É preciso investir no aumento constante da competitividade e da produtividade. Daí a ênfase que será dada à redução do custo Brasil, mediante a eliminação das distorções tributárias que encarecem as vendas ao exterior e a ampliação e mo-dernização da infraestrutura por meio de parcerias com o setor privado, nacional e internacional. (Idem)

Vem aí mais renúncia fiscal, ataque às leis tra-balhistas, subsídios ao agronegócio e abertu-ra da economia ao capital internacional.

E apenas assumi o ministério, eu me dei conta, conversando com nosso embai-xador na China, o Roberto Jaguaribe, do esforço de nossas embaixadas para atrair investimentos nestes setores básicos da economia. O Roberto estava trabalhando inclusive para seduzir os capitais chine-ses a virem ao Brasil, investir em parce-

ria com o Estado brasileiro nas obras de infraestrutura. Esse esforço será multipli-cado, tenho certeza, com sucesso. (Idem)

Isto aí significa a desnacionalização radical dos setores básicos da economia! Abertura irrestrita aos investimentos estrangeiros! A China, além de principal parceiro comercial, deverá se converter também em um dos maiores investidores estrangeiros no Brasil. A China e suas empresas.

“Nós vamos recuperar a capacidade de ação do Itamaraty, acreditem.” (pag.5) Quer dizer que o Itamaraty estava paralisado? “(...) a nossa diplomacia, não tenho dúvida, terá de, gradualmente, atualizar-se e inovar (...)” Quer dizer que ela está estagnada/defasada?

A diplomacia do século XXI não pode re-pousar apenas na exuberância da retórica e no tom auto-laudatório dos comunica-dos conjuntos. Precisa ter objetivos claros e ser a um só tempo discurso político e resultado concreto. (pag.5)

Que forma pouco diplomática de se referir aos responsáveis pela diplomacia.

Quero progressivamente retirar o Itama-raty da penúria de recursos em que foi deixado pela irresponsabilidade fiscal que dominou a economia brasileira nesta década. (Idem)

Será que uma análise do orçamento do Ita-maraty confirma isto?

Vamos restaurar o orgulho das novas ge-

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rações em servir ao Itamaraty e, sobretu-do, ao Brasil. A Casa será reforçada, e não enfraquecida. E no governo do presidente Temer, o Itamaraty volta ao núcleo cen-tral do governo (Idem).

Ele não estava servindo o Brasil? Estava en-fraquecido e marginalizado?

Estes são compromissos que apresento hoje. Este é o convite que faço a todos os servidores desta Casa, a fim de que faça-mos um esforço comum para valorizar o Itamaraty e pelo êxito de um governo que enfrentará, como todos sabemos, de-safios imensos, mas que criará, se Deus quiser, as condições para a reconstrução do sistema político, o fortalecimento da representatividade da nossa democracia e a volta do crescimento da produção e do emprego.(Idem)

Como disse François de La Rochefoucauld, a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude.

A “CASA DE RIO BRANCO” E SUA CULTURA DIPLOMÁTICA

Ao longo de sua história mais do que cente-nária, a diplomacia brasileira construiu uma tradição, uma cultura institucional e um es-tilo de atuação que tem perdurado ao longo do tempo, perpassando diferentes governos e regimes políticos. São elementos desta tra-dição,

a) O coletivismo, manifesto na ten-dência da diplomacia brasileira a parti-

cipar, defender e apoiar as instâncias, processos e espaços de deliberação coletivos no sistema internacional, evi-tando o isolamento, o predomínio de processos unilaterais e as situações unipolares.

b) O pacifismo, manifesto no apoio do Itamaraty às iniciativas voltadas para a resolução pacífica dos conten-ciosos e atritos internacionais e no desestímulo ao uso da força e às in-tervenções militares, sobretudo as de carácter unilateral.

c) O legalismo, patente no apego da instituição às normas, procedimen-tos, resoluções e convenções que con-figuram o escopo do Direito Interna-cional. Bem como na condenação, em grau maior ou menor, à inobservância e/ou violação daqueles mecanismos e instrumentos.

O envolvimento da diplomacia brasileira em inciativas divergentes ou antagônicas a estes balizamentos, via de regra, se deu em mo-mentos de inflexão excecional e autoritária na política e no estado brasileiro, durante as quais o Itamaraty se viu limitado, ou mesmo privado, de suas atribuições “autônomas” (a autonomia é entendida sempre de forma relativa) no processo de execução da políti-ca externa brasileira. Inversamente, mesmo em períodos nos quais vigoraram, no Brasil, regimes autoritários e situações de exceção, o Itamaraty manteve uma política externa de estado, SEMPRE QUE NÃO ESTEVE DIRE-

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enviados pelo Komintern ao Brasil.

A influência da Ação Integralista Brasileira, importante movimento político inspirado no fascismo europeu, ainda se fazia sentir no interior da sociedade, não obstante a interdi-ção e repressão ao movimento depois da ten-tativa frustrada de assalto ao poder no putsch do Palácio do Catete em maio de 1938.

Possuidor do maior contingente de popu-lação germânica fora da Alemanha, o Brasil acolhia a maior seção do NSDAP (partido na-zista) no estrangeiro. Além disto, os agentes do serviço de inteligência do Estado alemão (Abwehr) circulavam sem inibições pelas prin-cipais cidades brasileiras, municiando as au-toridades germânicas com um fluxo intenso e valioso de informações sobre a economia e a sociedade daqueles anos.

É no plano das relações interestatais, porém, que a convergência entre o Estado Novo varguista (1937-1945) e a Alemanha hitleriana (1933-1945) apresentam suas manifestações mais importantes. Através da fórmula do cha-mado comércio de compensação (intercâm-bio de mercadorias por mercadorias, sem a mediação de moedas-fortes), os dois países estabeleceram uma ampla e intensa parceria comercial baseada na importação de máqui-nas, produtos químicos e equipamentos in-dustriais pelo Brasil, que por sua vez expor-tava café, cacau, algodão e minério de ferro para a Alemanha.

TAMENTE SOB INTERVENÇÃO do gabinete presidencial. Exemplo disto foi a atuação do Ministério das |Relações Exteriores em dois momentos cruciais: no Estado Novo e no últi-mo regime militar.

A “AUTONOMIA NA DEPENDÊNCIA” NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NAS DÉCA-DAS DE 1930 E 1940.

Tratava-se de um governo centrado na figura do líder Getúlio Vargas e sensivelmente in-fluenciado por aspectos da estrutura fascista do Estado chefiado por Benito Mussolini. Um governo apoiado e influenciado por uma cor-rente de intelectuais autoritários, radicalmen-te antiliberais e anticomunistas, interessados no organicismo social e nas soluções corpora-tivas para a organização do Estado, de modo a evitar as lutas de classes e a desagregação do corpo social. Nomes como Alberto Torres, Oli-veira Viana, Francisco Campos, Azevedo Lima e Cassiano Ricardo, que não ocultavam o seu desprezo pelas “democracias parlamentares” e suas simpatias pelos “Estados fortes” como Itália, Alemanha, Portugal, Espanha e Japão.

Integravam os altos escalões da administra-ção pública brasileira germanófilos como Fi-linto Müller, Góes Monteiro e Eurico Dutra. Alguns entre eles integraram-se a programas de intercâmbio junto ao exército alemão e, como participantes ativos na repressão ao Levante Aliancista de 1935, recorreram, sem quaisquer considerações éticas, à coopera-ção da polícia política do 3º Reich para arran-car, sob tortura, confissões dos assistentes políticos e assessores militares estrangeiros

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Movimento pendular

Entretanto, o governo brasileiro não limitou seu relacionamento internacional ao comér-cio bilateral com a Alemanha.

Desde meados da década de 1930, governo, setores empresariais e a diplomacia brasilei-ra elaboravam e implementavam uma agen-da internacional pautada por um projeto de afirmação da soberania nacional e elevação do país à condição de potência emergente. Faziam parte deste projeto:

a) rearmamento e modernização das Forças Armadas brasileiras;

b) ampliação e diversificação das parcerias econômicas, de modo a mi-nimizar o ônus de uma dependência unilateral a este ou aquele parceiro;

c) direcionamento das parcerias econômicas ao atendimento do de-siderato de contribuir para o esforço “proto-desenvolvimentista” de ace-leração da industrialização brasileira através da implantação, no país, de uma indústria pesada (siderurgia). Este projeto, por suas especificidades, foi posteriormente caracterizado pela his-toriografia brasileira como um projeto de busca da “Autonomia na Dependên-cia”.

Não obstante as afinidades existentes nos terrenos político e ideológico entre os esta-

dos do Eixo Roma-Berlim-Tóquio e integran-tes e colaboradores do governo brasileiro, a diretriz emanada daquele projeto sugeria uma abordagem pragmática no processo de tomada de decisões no campo da política externa brasileira, conduzindo o país a uma movimentação pendular entre os dois gran-des blocos de poder existentes no mundo de então.

Com a deflagração das hostilidades na Euro-pa, em 1939, o governo dos Estados Unidos desencadeou uma ampla ofensiva político-di-plomática e econômica no sentido de unifi-car os Estados americanos sob sua liderança e combater a influência dos Estados do eixo na região. O governo brasileiro, que até en-tão negociava o apoio econômico e tecnoló-gico para o estabelecimento da siderurgia no Brasil simultaneamente com os governos ale-mão e estadunidense, teve suas solicitações acolhidas tempestivamente por Washington após anos de protelação e evasivas. Mais que isto, o governo Roosevelt se dispôs a atender, também, às reivindicações brasileiras de ree-quipar e modernizar as Forças Armadas em troca da denúncia dos acordos comerciais com a Alemanha, do fornecimento de maté-rias primas estratégicas para os Estados Uni-dos (que incluía a borracha e as areias mona-zíticas, utilizadas em seu programa nuclear) e da cessão de portos brasileiros às forças militares dos EUA.

Esta guinada no relacionamento internacio-nal do Brasil determinou o rumo seguido pelo país na Segunda Guerra Mundial. Com a entrada dos Estados Unidos no conflito ‒ de-

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pois do ataque japonês a Pearl Harbour, em dezembro de 1941 ‒, o Brasil, como aliado dos Estados Unidos, já participava dele indi-retamente. O torpedeamento das embarca-ções comerciais brasileiras pela marinha de guerra alemã nos meses seguintes desenca-deou o clamor popular, o qual, combinado aos compromissos assumidos com o vizinho do norte, determinou o envio das tropas bra-sileiras para os campos de batalha europeus, inserindo, concretamente, o país no campo da aliança vencedora.

O aspecto interessante a ser destacado acer-ca da condução da política externa brasileira neste período é o seguinte: a partir de uma análise perspicaz das contradições e das cor-relações de forças entre os dois blocos de poder que disputavam a hegemonia sobre o mundo ocidental (os EUA e seus aliados e o eixo Roma-Berlim-Tóquio), o núcleo ges-tor da política externa brasileira, formado por diplomatas de carreira e quadros políti-cos do círculo do poder getulista, foi capaz de formular e executar uma política exterior de qualidade desproporcional à condição su-balterna e dependente ocupada pelo Brasil na geografia do poder internacional. Apro-veitando habilmente os antagonismos entre as grandes potências, negociando a partir de posições soberanas, foi possível contrabalan-çar as disparidades do poder na relação com os gigantes do sistema mundial de então (Es-tados Unidos e Alemanha), acumulando um patrimônio político e diplomático que serviria aos esforços para a prática de uma política externa independente uma década e meia depois. Experiência brutalmente interrompi-

da pelo golpe civil militar de abril de 1964.

AS “POLÍTICAS EXTERNAS” DOS GOVERNOS MILITARES

A política externa praticada pelos militares ao longo dos 21 anos de vigência do seu regime conheceu pelo menos cinco fases sucessi-vas. Uma primeira fase, imediatamente após o golpe de 1964, de “fronteiras ideológicas”, que preconizava o alinhamento praticamente incondicional com os Estados Unidos, combi-nado a uma tentativa, por parte do Brasil, de exercer uma posição de liderança e de certo subimperialismo em relação a seus vizinhos sul-americanos. Conquanto a primeira carac-terística tenha declinado sistematicamente com o passar do tempo, elementos da segun-da têm perdurado, ainda que de forma subja-cente, até os nossos dias.

Durante a segunda fase, chamada política externa da prosperidade (ainda na época do presidente Costa e Silva), o governo brasileiro começou a vislumbrar outras possibilidades de ganho econômico para o país, afastan-do-se um pouco da rigidez preconizada pela perspectiva anterior (“fronteiras ideológicas”), que implicava a subordinação da política ex-terna brasileira à supremacia estratégica dos interesses da potência hegemônica em nosso hemisfério e o respectivo enquadramento no marco das demandas da guerra fria.

O momento seguinte, conhecido como o pe-ríodo da “política externa de interesse nacio-nal”, este durante o governo Médici. Carac-terizou-se pelo aprofundamento da noção

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ticas, para uma perspectiva diplomática mais pragmática e realista, que apostava mais na diversificação das parcerias econômicas e na prática da cooperação com os países do hemisfério, para a realização do chamado in-teresse nacional, em lugar da mera subordi-nação aos desígnios da potência hegemôni-ca no mundo ocidental. Cabe enfatizar que este avanço na condução da política exterior só foi alcançado com o restabelecimento do comando da diplomacia brasileira pelos fun-cionários de carreira do Itamaraty, conferin-do-lhe uma autonomia relativa, que permitiu imprimir um caráter pragmático e realista à política exterior do país em contraposição à orientação reacionária e pró-imperialista do regime ditatorial militar.

A política exterior do Lulismo

A política exterior do lulismo emergiu após um período de rebaixamento do perfil da po-lítica externa brasileira.

O período do governo transicional da cha-mada “Nova República” se caracterizou por uma combinação pouco feliz de pretensões universalistas, herdadas do último governo militar, com o engessamento e desestímulo à imaginação na condução da diplomacia bra-sileira, que voltou a ser dirigida por pessoas estranhas ao meio, como o Banqueiro Olavo Setúbal. Já no atabalhoado governo de Collor (1990-1992) manifestaram-se as tendências ao realinhamento e retomada da submissão aos EUA, que se concretizaram plenamente durante os governos tucanos (1995-2002). Entre estes dois momentos, tivemos o efême-

de que, ao formular sua política externa, o Brasil deve priorizar o interesse nacional, ou seja, sua projeção como potência emergente e o desenvolvimento econômico-industrial do país (através da associação “interdependen-te” com os EUA e as economias capitalistas do mundo ocidental), ao invés de sua contribui-ção para o esforço de defesa do ocidente nos marcos da guerra fria.

Na ditadura Geisel houve a política externa do pragmatismo responsável e ecumênico, na qual o governo brasileiro se dispôs a am-pliar sua interação internacional, incluindo no leque de suas parcerias econômicas e diplo-máticas até mesmo países que possuíam go-vernos anti-imperialistas e de esquerda, des-de que trouxessem dividendos econômicos.

Por fim, no período Figueiredo, procurou-se colocar em prática a chamada política externa do universalismo, a qual abandonou, definiti-vamente, considerações de ordem ideológica que criassem dificuldades ao estabelecimen-to de relações vantajosas para o Brasil com quaisquer estados do mundo, desde que isto não confrontasse tão abertamente os desíg-nios estadunidenses, como no caso de Cuba. O que retardou o restabelecimento formal de relações diplomáticas com este país até o go-verno Sarney.

Desta forma, mesmo no período mais dita-torial e repressivo da história política repu-blicana, os militares praticaram uma política externa que evoluiu de uma perspectiva de alinhamento automático com os EUA, decor-rente de considerações ideológicas e geopolí-

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do Brasil com as “grandes nações em de-senvolvimento”, nomeadamente China, Índia, Rússia e África do Sul;

Além disso, as iniciativas governamentais em prol do multilateralismo e da elevação do Brasil à condição do Global Trader no cená-rio mundial caracterizaram-se por: a) defesa da necessidade de reforma do sistema das nações Unidas através da “democratização” de seu Conselho de Segurança; b) empreen-dimento de programas de cooperação téc-nica com as nações em desenvolvimento da África, América Latina e Ásia; c) maior aproxi-mação político-diplomática, econômica e cul-tural com os países do sul.

Um bom exemplo dos efeitos práticos daque-la diplomacia pode ser apresentado no de-senvolvimento das interações entre o Brasil e as nações do continente africano, que re-sultou no crescimento substancial em seu re-lacionamento comercial. Significativamente diferente das administrações anteriores,

O estado brasileiro estabeleceu ou ampliou relações com países cujos governos desenvol-viam experiências sócio-políticas de caráter progressista. Relações estas frequentemen-te denunciadas pelos círculos conservado-res como sendo orientadas por perspectivas ideológicas e intenções propagandísticas, mas que, na prática, foram presididas por ob-jetivos econômicas e o reconhecimento das oportunidades de realização de bons negó-cios. Tais foram os casos das interações com a Bolívia, Venezuela e Cuba, que propiciaram as empresas públicas e privadas brasileiras,

ro e controverso governo de Itamar Franco, com sua diplomacia oscilando entre as pro-posições de Celso Amorim, futuro chanceler de Lula, e Fernando Henrique Cardoso.

O primeiro aspecto importante a ser desta-cado no encaminhamento da política externa dos governos de Lula foi a devolução da ges-tão do Itamaraty aos seus quadros de carrei-ra. Não apenas os ministros Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães passaram a ter um papel central na formulação e implemen-tação da política exterior, como também to-dos os cargos, no serviço diplomático, foram devolvidos aos profissionais do Ministério, eliminando-se a indicação de quadros políti-cos estranhos à carreira. Desta forma, sem prescindir do estabelecimento de objetivos políticos estratégicos para a atuação da di-plomacia brasileira, os governos Lula da Silva estabeleceram uma gestão compartilhada e tendencialmente consensual com os setores do alto escalão da diplomacia, com os quais possuíam afinidades e convergências.

Em seus aspectos gerais, a política externa do lulismo pode ser definida recuperando-se, pontualmente, os seguintes aspectos:

Defesa do princípio do multilateralismo nas relações internacionais, expresso nos seguintes objetivos: a) reafirmação dos la-ços de proximidade cultural e solidarie-dade política com os estados do continente africano, em particular com a África do Sul, citada nominalmente nos discursos do Presi-dente e de Celso Amorim; b) manifestação de interesse no estreitamento dos laços

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mia e a sociedade brasileiras, nem às esco-lhas realizadas pela presidente Dilma Rous-seff para equacioná-lo. Em uma conturbada atmosfera interna, marcada pela instabilida-de política e econômica, a diplomacia “dilmis-ta” oscilou fortemente, distanciando-se dos delineamentos estratégicos da era Lula-Celso Amorim-Samuel Pinheiro Guimarães. Apesar de procurar preservar um núcleo programáti-co assentado na defesa da soberania do esta-do, do multilateralismo e do cosmopolitismo comercial, verificou-se uma nítida perda em termos de coerência prática, resolução políti-ca e capacidade de intervenção.

Para a reconstrução da política exterior brasileira

Em algum momento, no curso de seus in-termináveis anos de governo, o então presi-dente Fernando Henrique Cardoso troçava do desconhecimento geral da maior parte da população brasileira sobre as questões da vida internacional2. Do alto de sua pre-tensa universalidade pessoal e intelectual, o primeiro mandatário tucano se referia aos seus governados como integrantes de um país “caipira”. Pouco importava para ele se as grandes massas do povo brasileiro, além de historicamente vilipendiadas em seus direi-tos fundamentais de aceso à instrução, à in-formação e à cultura geral, foram coercitiva-mente impedidas de participar das decisões políticas tanto em relação aos assuntos in-ternos quanto aos externos, pelo aparato re-pressivo mobilizado pelas classes dirigentes.

2 Brasileiros são caipiras, disse FHC em 1996 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0711200004.htm

importantes contratos, com a Venezuela no setor do petróleo, com a Bolívia em relação ao gás, com o governo cubano, na construção e ampliação de portos.

Além da importância concedida ao Mercosul, à Unasul e à proposta do banco do sul no âm-bito sul americano, entidades africanas como a União Africana (UA), Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), Comunidade Econômica dos Estados da Áfri-ca Ocidental (ECOWAS) e Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD) passa-ram a ser vistas como interlocutoras e parcei-ras do governo brasileiro.

Do declínio ao abandono das opções Lulis-tas

O traço fundamental da orientação seguida pelos dois governos de Lula em matéria de política internacional foi, portanto, a busca de oportunidades de negócios para as empresas brasileiras no exterior, pari passu com o apoio às iniciativas que apontavam para a edifica-ção de um mundo crescentemente globaliza-do e multipolar. Uma ênfase especial, neste terreno, foi concedida à intensificação das interações com os países do sul e a criação de um consenso internacional de potências emergentes. Tais iniciativas, por sua vez, re-presentaram o desdobramento internacional de um projeto neodesenvolvimentista de per-fil intermediário.

No entanto, a maior parte desta orientação não resistiu ao impacto do último ciclo da crise econômica internacional sobre a econo-

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Hoje, mais uma vez, após o abandono das iniciativas dos governos de Lula e dos seto-res avançados da diplomacia brasileira, uma constatação se impõe: assim como no plano doméstico, no qual a democracia jamais esta-rá garantida sem uma intervenção protagôni-ca dos setores mais conscientes, organizados e mobilizados da população e do mundo do trabalho, nenhuma política externa poderá servir efetivamente aos interesses essenciais do povo brasileiro se não contar com o apoio ativo dos representantes mais avançados da sociedade civil brasileira em seus processos de concepção e efetivação.

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A MÍDIA, A CRISE E O GOLPE

Flávia Biroli1

Resumo:

O texto discute o papel das grandes empresas de comunicação na construção do ambiente político em que foi gestada a crise que culmi-nou na deposição da presidenta eleita Dilma Rousseff. Apresenta informações e hipóteses, nelas baseadas, sobre a atuação recente das grandes empresas de mídia.  Elenca proble-mas que entendo que precisam ser levados em conta nas análises da relação entre a mí-dia e a crise política, como os processos elei-torais recentes, as conexões entre mídia, po-lítica e os interesses do capital e os padrões correntes dos antagonismos.  

PALAVRAS - CHAVE:

mídia; crise política; golpe.

1 Universidade de Brasília, Instituto de Ciência Política

Há sempre alguma aleatoriedade na defini-ção de quando começa uma crise. Podemos ver o início da crise política brasileira atual em 2013, com as manifestações de junho, se op-tarmos por compreender quando os conflitos políticos se tornam mais agudos a partir de sua expressão nas ruas2. Também podemos recuar ao menos até 2008, situando a crise política brasileira em sua relação com a crise financeira mundial que eclodiu naquele ano e jogando luz sobre interesses que não se redu-zem à política nacional. Olhando para a crise a partir das reações aos direitos das mulhe-res, uma vez que ela combina a deposição da primeira mulher a chegar à Presidência com misoginia (reação aberta aos direitos das mu-lheres e a sua presença na esfera pública), pode-se indicar o ano de 2009. Foi quando as reações à publicação do Plano Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3, permitiram um estreitamento das alianças entre setores da igreja católica e das igrejas neopentecostais na política, sobretudo na agenda dos direitos sexuais e reprodutivos. Se tomarmos 2008 e 2009 conjuntamente, temos também indícios de como foram sendo construídas as alianças entre o reacionarismo moral e os agentes que advogam pela redução dos direitos sociais e das responsabilidades do Estado, fundamen-tais para a realização do golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff.

Meu ponto é que a crise, como o golpe, tem várias camadas e se organiza em diferentes eixos. As motivações dos atores não são idên-

2 Uma versão anterior desse artigo foi publicada na coluna da autora no Blog da Boitempo, em 7/10/2016.

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ticas, seus objetivos nem sempre são coinci-dentes. Mas convergem na conformação de um ambiente político menos democrático e na investida contra referências – dos direitos sociais aos direitos humanos – que foram ba-lizas para as disputas políticas ao menos des-de a Constituinte de 1987-88.

Nas páginas e transmissões do jornalismo das grandes empresas, no entanto, a narra-tiva sobre a crise é bastante homogênea. Os temas predominantes são a corrupção e a cri-se econômica. A falta de sustentação e a in-capacidade política de Rousseff para manter o apoio no Congresso foram apresentadas como um subtexto do segundo tema; tería-mos um governo fraco para superar a crise (econômica) na direção presumida largamen-te, nos mesmos veículos, como a correta.

Esses temas serviram para afirmar o que es-taria em jogo e para desviar os olhares de outras disputas. As implicações sociais das di-ferentes posições na crise não fizeram parte do roteiro, embora agora emerjam na agen-da do governo Temer-PSDB que é largamente apoiada pelos mesmos veículos: redução dos percentuais de investimento do Estado em direitos fundamentais via Proposta de Emen-da à Constituição (PEC 241 na Câmara e 55 no Senado), Reforma da Previdência, privati-zações, “revisão” do SUS, Medida Provisória do Ensino Médio, mudanças nas concessões ambientais para fazer do território brasileiro algo mais palatável aos grupos estrangeiros que poderão ser titulares de terra caso a le-gislação seja modificada, e assim por diante.

Nos noticiários, “o mercado” aparece como sujeito e como dispositivo regulador, sem que seja relacionado a interesses determi-nados, dentro e fora do jogo político narra-do. Em um exemplo explícito e que não foge à regra de como isso se dá, a coluna Painel da Folha de S. Paulo registrava, em 28 de se-tembro de 2016, sob o título “Engajamento”, que “integrantes do mercado financeiro têm auxiliado o deputado [o relator da PEC 241] na interlocução com a Câmara”. Na mesma coluna, no dia seguinte e agora sob o título “Em conjunto”, é dada a informação de que “começa no governo um movimento para priorizar a aprovação da nova Lei de Licen-ciamento Ambiental”, uma vez que “sem ela, investidores podem ficar reticentes em parti-cipar dos leilões das concessões”. Na coluna e nos noticiários, esse enquadramento aparece como se fosse natural porque outras lógicas e interesses são suspensos. Quem, além dos “investidores”, poderia ser considerado para se discutir lei ambiental? Quais argumentos e motivações, além dos deles, poderiam es-tar sobre a mesa? No caso anterior, nenhum estranhamento no fato de que “integrantes do mercado financeiro” trabalhem na costura de uma PEC que modificará a Constituição de 1988, reduzindo por 20 anos os investimen-tos em saúde, educação e assistência social e tornando ainda mais precários os direitos sociais no Brasil?

Juntamente com a normalização da ação dire-ta dos agentes de mercado, a corrupção per-manece no centro do noticiário.

Em crises políticas anteriores, como aquela

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que precedeu o golpe de 1964, a centralidade da corrupção também permitiu jogar luz so-bre a política de modo que desviava o olhar dos interesses em jogo. A corrupção foi, en-tão, definida como coisa da política e colada nas costas de alguns atores. Na crise de 1954, que culminou no suicídio de Vargas, mas te-ria, como desfecho, de fato, o golpe de 1964, o bordão da maior parte dos jornais era o “mar de lama que corria sob o Catete”. Con-tra a corrupção, seriam mobilizados valores que estariam acima e à parte do jogo político: lisura, transparência, honestidade.

Na crise de 2016, o fluxo de informações e justificações entre o noticiário e a Operação Lava-Jato tem sido um fator central na cons-trução do ambiente desde 2014. Do mesmo modo que “o mercado” é chamado como agente que estaria fora da política – com a ação efetiva em nome de interesses do capi-tal normalizada, como mostrei nos exemplos retirados da coluna Painel –, desde 2014 os agentes da Lava-Jato puderam ser chamados ao noticiário como quem, de fora da política, apontaria para ela expondo sua verdadeira face. Além da seletividade que cola o fenôme-no da corrupção a políticos petistas, há uma leitura seletiva dos conflitos políticos, na qual alguns atores e posições são apresentados como desinteressados.

Nas conexões entre Lava-Jato e o jornalismo feito pelas grandes empresas coloca-se tam-bém um desafio: não se trata, parece-me, de algo que possa ser compreendido lançando mão de um modelo em que um dos atores (a mídia, os juízes/promotores/agentes, deter-

minados partidos políticos) instrumentaliza os demais. Parece ser necessário entender o conjunto de motivações e interesses em jogo e compreender sua convergência, sem pres-supor que é necessário que coincidam intei-ramente para que exista atuação em concer-to.

O ponto mais agudo da crise, a deposição da presidenta eleita Dilma Rousseff, ganha sen-tido nessas camadas de discurso colocados em circulação pela mídia empresarial, tanto quando na representação mais direta do pro-cesso de impeachment, com seus ritos e seus protagonistas.

E como explicar a atuação política da mídia das grandes empresas nessa crise? Muito brevemente, elenco alguns problemas que acredito que seja importante levar em consi-deração:

1. Sua atuação em favor de determina-dos candidatos e grupos foi frustrada pelas urnas, ao menos no que se re-fere às eleições presidenciais recentes – 2006, 2010, 2014.

Ao menos desde a chamada “crise do men-salão”, em 2005, o jornalismo das grandes empresas aposta em discursos organizados em torno de denúncias de corrupção, com foco no Partido dos Trabalhadores. Após a frustração com o resultado das eleições pre-sidenciais de 2014, acentua-se o roteiro que identifica no governo Dilma uma incapacida-

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de para superar a crise econômica. Pouco a pouco, os discursos passam a ser de norma-lização da exceção, isto é, de justificação para a interrupção do governo eleito e/ou para a deposição de Dilma Rousseff, com pequenas diferenças entre as empresas jornalísticas nesse percurso.

Trata-se aqui da construção das fronteiras da controvérsia, da conformação do debate a partir da hegemonia ainda ativa do jornalis-mo empresarial.

2. Falar da mídia é falar na trinca mídia-política-capital.

Falei há pouco da frustração dos grupos em-presariais de mídia com os resultados eleito-rais. Se houve frustração, o que se frustrou vai além do poder de fazer valer um determina-do viés na competição entre candidatos, tem a ver com o poder de fazer valer determinados interesses – políticos e econômicos, não ape-nas das próprias empresas de comunicação, mas de grupos empresariais que não identifi-caram no governo de Rousseff a capacidade (ou a vontade) de fazer valer seus interesses na forma ou no grau desejado.

Nesse quadro, tem especial importância o contexto internacional e o modo como ele toma forma nos discursos midiáticos – a cri-se econômica e o lugar da América Latina da perspectiva das grandes corporações; a rela-ção entre a crise, o contexto latino-americano e as tensões entre direitos sociais e níveis de exploração do trabalho.

Trata-se aqui da incidência mais direta de grupos de interesse na esfera governamen-tal, em busca de transformar seus interesses em decisões ou de evitar decisões que lhes seriam desfavoráveis.

3. A hegemonia do jornalismo das gran-des empresas permanece, mas não sem contestação. Os padrões do an-tagonismo precisam ser explicados, assim como o modo como diferentes tipos de contestação incidem sobre o próprio discurso midiático.

O sistema de concessões não sofreu mu-danças durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) e a concentração da pro-priedade de mídia permanece como um pon-to central. O investimento em publicidade também permaneceu concentrado, mas com maior diversificação. Houve investimento es-tatal por meio de anúncios em jornais e rá-dios de menor porte Brasil afora, em blogs e outros espaços de construção de discursos alternativos aos da mídia das grandes em-presas. Quando houve cortes, em 2015, eles atingiram mais as grandes empresas e a cha-mada blogosfera foi preservada3. O sistema de mídia se tornara, assim, um pouco mais fragmentado e menos homogêneo. Uma das medidas do governo Temer após a deposição

3 http://fernandorodrigues.blogosfera.uol.com.br/2016/07/06/governo-cortou-r-206-mi lhoes-em-publicidade-da-tv-globo-em-2015/apresentaza Federal, a Secom)pela Secretariai preservada. s aas mulheres1940.to das instituique sarial (o artigo apresenta dados divulgados pela Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, a Secom)

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de Rousseff foi a reorientação do investimen-to desses recursos: blogs e agências identi-ficados como de esquerda ou alinhados ao PT perderam todo o recurso de publicidade estatal, reinvestido na imprensa das grandes empresas – de maio a agosto de 2016, a Folha de S. Paulo recebeu do Governo Federal 78% a mais de recursos do que no mesmo perío-do em 20164. Além disso, a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC, que é pública, voltou a comprar conteúdos da Rede Globo em no-vembro de 2016, prática que havia sido aban-donada durante os governos do PT.

No mesmo período em que o escopo da con-testação se ampliou, pela presença de espaços de construção alternativa de discursos e pela afirmação das redes sociais como ambiente de articulação e expressão política, também cresceu a presença político-midiática das igrejas, sobretudo das neopentecostais, que passariam a ter maior peso nas disputas e barganhas políticas por terem potencial para mobilizar votos entre os fiéis e contarem hoje com maior presença direta de suas lideran-ças no legislativo. Vale lembrar também que a internet – e, nela, as redes sociais – tem servi-do como base não apenas para a organização de grupos progressistas. Além da tradicional presença na mídia empresarial, os novos gru-pos de direita também têm se mobilizado nas redes sociais.

Nesse quadro, a hegemonia da mídia

4 http://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/governo-temer-aumenta-em-78-publicidade-na-folhauol/ (o artigo sistematiza dados divulgados pela Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal, a Secom)

empresarial permanece. Ela foi, sem dúvida, fundamental na conformação do ambiente político da crise e do golpe. O ambiente das redes é relevante para se compreender os novos padrões dos conflitos e controvérsias. Permite articulações e recursos expressivos que incidem sobre o ambiente político, ao menos potencialmente, mas não é um universo paralelo no qual a trinca (mídia-política-capital) não incidiria. Longe disso. É esse o quadro complexo que nos desafia. Sobretudo porque o golpe continua em curso por meio de PECs, PLs, MPs, de uma proposta de Reforma da Previdência que compromete a velhice de trabalhadores rurais e urbanos, da proposta de Reforma Trabalhista que vem sendo anunciada, que pretende desregula-mentar o trabalho em benefício dos empre-gadores, da repressão policial, do funciona-mento seletivo da Justiça, das tentativas de censurar professores, do controle sobre a cir-culação de informações.

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ENTREVISTA COM O PROF. RENILDO SOUZA: POR QUE FORA TEMER JÁ? POR QUE ELEIÇÃO DIRETA JÁ?

P: HOUVE O IMPEACHMENT, E AGORA?

Agora, o problema do golpe parlamentar, ju-dicial e midiático contra o mandato da presi-dente Dilma começou, infelizmente, a perder a centralidade na luta política imediata neste momento de fim de ano em termos de eficá-cia no combate contra o governo Temer.

P: MAS E A DENÚNCIA DA ILEGITIMIDADE DO GOVERNO TEMER?

Já é sabido, não há novidade: a exigência de fim imediato do governo Temer decorre da sua evidente ilegitimidade, pois usurpou o mandato legítimo da presidente Dilma Rous-sef. Mesmo os golpistas têm consciência dis-so. Houve, assim, um desrespeito absoluto à soberania do voto popular, fundamentando o caráter de ilegitimidade do governo Temer.

Entretanto, há outros aspectos ainda sobre a deposição da presidente. Além de ilegítima, foi ilegal, por falta de crime de responsabili-dade como manda a Constituição.

Mas a ilegitimidade e ilegalidade, combina-dos, tiveram ainda um terceiro componente essencial: o caráter destrutivo especial, exa-cerbado, sistemático da ordem institucional. Com Temer, desmonta-se o Estado da Consti-tuição de 1988.

P: POR QUÊ?

Porque inaugurou-se um Estado de exceção em todas as suas dimensões, como se o país estivesse em um estado de guerra. Lembra

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as arbitrariedade e perseguições dos tem-pos da ditadura militar de 1964 a 1985. São as diatribes da Polícia Federal hoje. Lembra o ame-o ou deixe-o. É o grito de hoje: “Vá para Cuba”.

Dessa forma, o país está diante de ilegitimi-dade, ilegalidade e ainda da destruição da ordem política democrática até então vigente desde a Constituição de 1988.

P: COMO SE CARACTERIZA ESSE ESTADO DE EXCEÇÃO?

No atual Estado de Exceção, há instauração de um novo sistema dominante, aberta e frontal-mente direitista. Já não escondem seus pedi-dos de intervenção militar. Já não se importam sobre as condições de vida da maioria da população. Já não se preocupam em reprimir com selvageria inaudita as manifestações estudantis. Inventam inquéritos, invadem casas, prendem inocentes. É uma caçada de criminalização da esquerda e dos movimentos sociais. A mídia, tendo à frente a Rede Globo, manipula as informações, distorce tudo, justi-fica os absurdos do Governo Temer e da Lava Jato.

P: QUAL É O EIXO DESTE ESTADO DE EXCE-ÇÃO:

A marca principal deste Estado de Exceção é a vendeta, em toda a linha, contra os pobres e a volta do cosmopolitismo dos bem-nascidos em que o estrangeiro, inclusive suas empre-sas, é sempre superior ao nativo, ao Brasil. O objetivo é restaurar a plenitude e exclusivi-

dade dos privilégios de burgueses, supostos aristocratas e camadas superiores da classe média tradicional, em meio à semi-escravi-dão objetiva da maioria da população.

P: COMO SE EXPLICA ESTE ESTADO DE EX-CEÇÃO DO PONTO DE VISTA DAS CLASSES SOCIAIS?

É a volta da velha República, adaptada ao século XXI. Lembram do presidente Washin-gton Luís que dizia que o problema social era caso de polícia. Agora, é o presidente Te-mer e seu ministro da Justiça que justificam e comemoram a truculência da polícia con-tra manifestantes. Mas é exceção, não só do ponto de vista jurídico e político. É exceção porque, do ponto de vista da estrutura das classes sociais, representa os valores e inte-resses excepcionais, no sentido de exceção, de uma minúscula minoria da sociedade bra-sileira. É um projeto de dominação social que ainda consegue, com a ajuda da Lava Jato e da Globo, ludibriar grande número de tolos como massa de manobra, bucha de canhão, uma parcela despolitizada, ignorante, exas-perada da classe média tradicional, em busca de culpados. Mas, preste atenção, buscam-se culpados sempre entre os de baixo da socie-dade. Além disso, retorna a ideia malthusiana de que a pobreza é da responsabilidade indi-vidual do pobre. Destila-se ódio contra, por exemplo, a bolsa-família.

P: EM TERMOS CONCRETOS, COMO ESSA DIMENSÃO SOCIAL DO ESTADO DE EXCE-ÇÃO ESTÁ SE EXPRESSANDO?

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R: Governo, parlamento e STF estão juntos em uma cruzada acelerada para ainda em 2016 e 2017 satisfazer o aumento da exploração dos trabalhadores e a redução de custo das em-presas, conforme as pressões da FIESP e CNI, a saber: o projeto de terceirização das ativi-dades fins; a punição de grevistas no setor público, como início da negação da autono-mia universitária; a decretação do STF de que acordos coletivos passados já perdem sua validade revogando assim a jurisprudência do TST, deixando os trabalhado totalmente desamparados; a reforma da previdência ani-quilando o direito de aposentadoria e criando imenso mercado de previdência privada para enriquecer ainda mais os bancos; o desmonte da CLT com o falsamente negociado, melhor seria dizer a imposição patronal, passando a valer mais do que o legislado etc. Além dis-so, cabe lembrar o congelamento dos gastos com educação e saúde por 20 anos através da PEC 55.

P: QUEM COMPÕE ESSE ESTADO DE EXCE-ÇÃO?

Há gradações sociais, econômicas e políticas diversas. Há os dirigentes, os beneficiários, os sócios menores, os iludidos alegres, os militantes fascistas, os conservadores tra-dicionais. É um regime de exceção, porque é antidemocrático. Ele é constituído por um consórcio do (i) grande capital, (ii) da even-tual e momentânea maioria conservadora do parlamento e do (iv) elitismo, oportunismo, privilégios e demagogia do poder judiciário e Ministério Público. A força central e progra-mática deste consórcio é constituída pelos

bancos e mercado financeiro, com repercus-são direta e imediata de seus interesses e es-colhas políticas no aparato da mídia, sobretu-do na Rede Globo.

P: E A LAVA-JATO?

A assim chamada Operação Lava Jato é um caso à parte. Seu objetivo precípuo era ser-vir à queda do governo Dilma, à desmorali-zação do presidente Lula e sua prisão, à cri-minalização do PT e dos movimentos sociais, abrindo caminho para uma espécie de fascis-tização da sociedade brasileira. A missão era destruir a esquerda acenando com a questão da corrupção. Os idiotas da Lava Jato não sa-bem que o capitalismo é a própria corrupção. O lucro da empresa capitalista e alicerce do sistema é o roubo do trabalho não pago aos trabalhadores. Esta é a corrupção fundamen-tal e indispensável da sociedade capitalista. Só para efeito de imaginação, pergunto: o ca-pitalismo americano aceitaria uma operação Lava Jato na sua sociedade, destruindo em-presas e empregos, desnacionalizando a eco-nomia e ajudando a derrubar o presidente da República?

P: QUAL É A INSPIRAÇÃO DA LAVA-JATO?

Não é a operação mãos limpas da Itália, por-que lá os objetos de investigação eram to-talmente distintos e havia uma separação evidente de papéis entre investigação, pro-cesso e julgamento, totalmente diferente das inúmeras arbitrariedades do Juiz Moro e dos fanáticos do MP aqui. A inspiração principal dos homens da Lava Jato é o conservadoris-

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mo mais rasteiro dos Estados Unidos. Os EUA são seu modelo perfeito de país e sociedade. Eles sentem-se incumbidos da missão divina de purificar os pecados da nação brasileira originalmente deformada e corrupta. Eles têm caráter de fanáticos religiosos, inspiram--se no mito dos peregrinos colonizadores dos Estados Unidos. Atropelam o direito e as li-berdades em conluio com a truculência e a estupidez granítica da Política Federal. Fazem inveja a Torquemada. Manipulam as informa-ções em parceria com a grande mídia. O Bra-sil está na beira do precipício: muitos destes setores do MP, da PF e do Judiciário profes-sam uma tendência protofascista.

P: QUAIS OS SEUS QUESTIONAMENTOS CONCRETOS SOBRE A LAVA-JATO?

A meu ver, especificamente sobre a Lava Jato, dez perguntas são cruciais:

1. Da recessão econômica e dos de-sempregos resultantes, qual é a parcela de responsabilidade especí-fica, direta e intransferível da Ope-ração Lava Jato? Quantos brasilei-ros foram demitidos pela Lava-Jato?

2. Quantas empresas brasileiras, quanto desenvolvimento tecnoló-gico nacional e quantos postos de trabalho de engenharia avançada foram destruídos pela Lava Jato? Quanto tempo o Brasil precisará para reconstruir todo esse aparato empresarial e de ciência e tecnolo-gia?

3. O que os membros da Lava Jato já repassaram em segredo para os acionistas e membros da Justiça norte-americanos para subsidiar processos contra a Petrobrás? Al-gum dia isso vai ser revelado? Por que entre os americanos e a Petro-brás, os representantes da Justiça brasileira preferiram ficar do lado dos estrangeiros, contra o interesse nacional?

4. Qual foi a contribuição específica da Lava Jato para a derrubada de Dil-ma Roussef e a ascensão de Michel Temer?

5. Por que as investigações da Lava Jato fogem das corrupções na Pe-trobrás e adjacências durante os oito anos do governo FHC?

6. Por que os tucanos, principalmente Aécio, Serra e Alckmin são blindados pelo Juiz Moro e pelo MP, poupados dos vazamentos das delações na imprensa e não são incomodados com depoimentos, condução coer-citiva, acusações etc.?

7. Por que não há a mínima condi-ção de tratamento igualitário entre tudo que se refere a Lula e tudo que se refere a Temer, que, ora na presidência, deveria ser arrolado e encaminhado para o STF? Por que a Lava Jato insiste em um monte de mentiras ridículas, repercutidas diuturnamente na imprensa, contra o presidente de Lula?

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8. Por que Moro e o MP colocam-se acima da lei, rejeitando qualquer possibilidade de lei, a ser aprovada pelo Congresso, para tipificar e coi-bir evidentes abusos e arbitrarieda-des de juízes, procuradores e pro-motores? O que vale para todos os brasileiros não vale para eles?

9. Por que eles, o MP, querem uma lei (i) para inviabilizar o habeas-corpus, (ii) para a aceitação de prova ilícita, (ii) para incentivar, inclusive com re-muneração, qualquer pessoa, até mesmo infiltrada, para denunciar supostos casos de corrupção, (iii) para fechamento de partidos políti-cos, por suposta propina em cam-panha eleitoral.

10. Quais são os impactos da Lava Jato para destruição do lugar do Brasil nas relações internacionais? Como a Lava Jato apequena o Brasil e sub-mete-o a mero serviçal dos EUA nas relações internacionais, desmon-tando toda a credibilidade e auto-nomia da política externa de Lula e Celso Amorim?

P: Por que Fora Temer e Eleição Direta Já?

A derrubada do Governo Temer é a tarefa prioritária, urgente. Moro e o MP na Lava Jato têm evitado, a todo custo, expor o PSDB e ten-tam proteger o presidente Temer. Mas quan-do atiram no PMDB, como na delação da Ode-brecht, terminam atingindo Temer, sem falar

no PSDB. A Globo não vai conseguir esconder tudo isso. O juiz Moro tem muita força políti-ca no momento, mas não controla a instabili-dade e imprevisibilidade da situação política. Temer é o elo fraco da conjuntura política. Já que não tem nenhum prestígio popular, sem-pre vaiado, Temer tenta sustentar-se através dos pacotes de maldades contra os trabalha-dores para agradar o mercado, a exemplo da PEC 55 e da reforma da previdência. Portan-to, é preciso derrubar Temer logo, porque sua continuidade significará mais golpes contra a democracia, os interesses nacionais e os di-reitos sociais e trabalhistas. O povo tem que ser chamado para, em respeito à soberania popular, eleger um novo presidente da Repú-blica, com base em debate público e campa-nha eleitoral.

P: POR QUE ELEIÇÃO DIRETA JÁ?

A queda do presidente Temer tem grande probabilidade de ocorrer no início de 2017, quem sabe. Pela Constituição, haveria eleição indireta para presidente, neste caso. Mas a crise política do país inviabiliza um mandato indireto. Não tem jeito, o povo é quem deve dizer quem será o presidente. É preciso res-gatar a soberania do voto direto e universal do regime presidencialista. A queda do go-verno Temer funcionará de certa forma como uma absolvição, em parte, do governo Dilma e do PT. Mudará o cenário político. Surgirão novas possiblidades de ação política para as esquerdas. Será criada uma situação difícil para as forças conservadoras que promete-rem o céu, depois do impeachment.

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P: POR QUE O GOVERNO TEMER É O ELO FRACO DA CONJUNTURA POLÍTICA?

É o elo fraco pelo que se vê: desmoralização do governo e impasse nacional. Impopulari-dade absoluta do presidente, vive às escon-didas, nas catacumbas. Lembra daquele sam-ba-canção: “Ninguém me ama, ninguém me quer”. Nas atuais circunstâncias, é impossível Temer sustentar-se em meio ao aprofunda-mento da recessão e do desemprego. A eco-nomia está de mal a pior. O mercado, que foi o principal fiador da ascensão de Temer, já começa a perder a paciência com a ladainha de ajuste, ajuste, ajuste. Do ponto de vista das grandes e silenciosas massas trabalhadoras, a situação vai mudar por causa da reforma da previdência. Acabou a aposentadoria. O povo não aceitará isso. Os sindicatos e as centrais sindicais já deviam estar em estado de emer-gência, pressão total na porta das empresas, junto aos trabalhadores. É incompreensível essa moderação sindical neste momento.

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O ATAQUE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – PEÇA FUNDAMENTAL NA DESTRUIÇÃO DO ESTADO SOCIAL DE DIREITO E NA IMPOSIÇÃO DO PENSAMENTO

ÚNICO NEOLIBERAL

Helena Rato1

Resumo

O ataque à Administração Pública é um ins-trumento da política neoliberal de privatiza-ção dos serviços públicos e de destruição do Estado Providência (welfare state). Esta ver-tente da política neoliberal tem a sua génese na crise do modelo da social-democracia que sustentava o welfare state. Aproveitando essa crise, os ideólogos do neoliberalismo elabo-raram um quadro teórico, consagrado pelas diretivas do Consenso de Washington, com que colonizaram o ensino universitário a uma escala global. Foram, assim, criadas as condi-ções subjetivas que levaram à submissão da social-democracia ao processo de captura do Estado por interesses privados, ao progressi-vo domínio do capital financeiro sobre a eco-nomia mundial, à aceitação do predomínio da política do FMI sobre os interesses nacionais e à subsequente perversão da democracia re-presentativa.

1 Economista e militante do Partido Comunista Portugues.

Palavras chave

Welfare State, neoliberalismo, administração pública, social-democracia, luta de classes

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Introdução

O ataque à administração pública, que tem subjacente o desmembramento do Estado social (welfare state) e a privatização dos servi-ços públicos, surgiu na sequência da falência do Estado do welfare state e da crítica à buro-cracia que o geria.

Para se compreender esta inter-relação há que analisar a origem ideológica do Estado do welfare state, seus objectivos, as contra-dições sistémicas do modelo económico que lhe deu suporte e o subsequente aproveita-mento pelas elites capitalistas em prol da res-tauração do domínio não só sobre a econo-mia mas, também, sobre todas as actividades humanas.

Este aproveitamento foi sustentado por teo-rias, elaboradas por académicos e políticos fi-nanciados pelo grande capital, que contribuí-ram decisivamente para a instauração de um pensamento dogmático de cariz neoliberal e que foi consagrado pela sigla TINA (There Is No Alternative).

A teoria geral de Keynes e o modelo eco-nómico da social-democracia

O Estado do welfare state é uma criação da social--democracia cuja ideologia se reclama do socialismo reformista que, em oposição ao socialismo revolu-cionário2, rejeita a luta de classes, enquanto motor

2 Esta divergência manifestou-se desde cedo no seio do movimento socialista, mas a ruptura entre as duas tendências só se efectivou em 1914 na sequência da tendência reformista ter decidido apoiar os respectivos governos nacionais na entrada

da história, e defende a transição pacífica para o so-cialismo através de reformas legislativas graduais do sistema capitalista.

A defesa da transição pacífica para o socia-lismo confrontou os reformistas com a ne-cessidade de acederem ao poder pela con-quista de maiorias parlamentares, obrigando à apresentação de programas eleitorais de compromisso com grupos e sectores popula-cionais que não pertenciam à classe operária.

Simultaneamente, a perspectiva ideológica de se conseguir alcançar o socialismo através de reformas legislativas graduais do sistema capitalista levou à elaboração de estratégias de compromisso também com o grande ca-pital, com base nos seguintes pressupostos:

● A promoção do welfare state exige que o sistema económico seja capaz de aumentar a produtividade, de forma a criarem-se excedentes a ser utilizados em prol de uma sociedade mais igualitária; ● Só o grande capital possui a capacidade de investimento e a eficiência de gestão3 indispensáveis à promoção do aumento da produtividade;● No sector privado, o aumento da produtividade entra em conflito com a promoção dos direitos laborais dos trabalhadores.

na 1.ª Guerra Mundial, decisão que foi considerada uma traição ao movimento operário pelo socialismo revolucionário.

3 Isto é, o sector privado consegue produzir mais e melhor com menos custos do que o sector público

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Foi na sequência destes pressupostos que a social-democracia definiu as grandes linhas de actuação política do Estado no âmbito da política económica e social, a saber, a inter-venção do sector público na economia devia ser reduzida ao mínimo, limitando-se à to-mada de medidas de regulação da actividade económica destinadas a reduzir e reparar os efeitos nefastos da actividade privada sobre a justiça social. Competia, também, ao Estado investir em actividades sectoriais necessárias ao desenvolvimento económico e social, em que o sector privado não investia por não se-rem directamente lucrativas.

O compromisso com o grande capital levou à rejeição programática da apropriação pelo Estado dos meios de produção e, portanto, ao abandono da política de socialização da produção. Este abandono colocou a social--democracia perante o desafio de encontrar uma via política para administrar a economia capitalista, em alternativa às grandes linhas de actuação dos partidos assumidamente re-presentantes dos interesses da grande bur-guesia. Foi neste contexto que a social-demo-cracia encontrou na Teoria Geral de Keynes o enquadramento sistémico para a elaboração da sua estratégia programática.

Em termos sucintos, a ideologia macro eco-nómica de Keynes caracteriza-se pela crítica à auto-regulação do mercado, postulado es-sencial da ideologia liberal, e pela defesa da necessidade de intervenção do Estado de forma a garantir o pleno emprego. A ideia subjacente a essa necessidade é que o cresci-mento económico é alavancado pela procura,

sendo esta determinada pelos rendimentos das famílias que fomentam o consumo e es-timulam o investimento produtivo ao mesmo tempo que alimentam a poupança indispen-sável a esse investimento. Em suma, para Keynes, o pleno emprego é uma condição ne-cessária para se conseguir criar um ciclo vir-tuoso de crescimento e de desenvolvimento económico.

No âmbito da política económica, Keynes defendeu a importância do investimento público como instru-mento de criação de emprego mas, também, como forma de se contrapor aos riscos decorrentes dos jo-gos especulativos do capital financeiro que, pela sua natureza, prejudicam a capacidade de investimento produtivo com a subsequente destruição de emprego. Keynes defendeu ainda que, no curto prazo, as des-pesas públicas em capital deviam ser capazes de neu-tralizar os efeitos cíclicos de queda do investimento privado. No longo prazo as despesas públicas em ca-pital deviam manter-se em níveis elevados até que a escassez de capital produtivo deixasse de constituir um constrangimento ao desenvolvimento económi-co4.

Em suma, Keynes privilegiou o investimento público sobre as despesas públicas de con-sumo e, embora admitisse o aumento anticí-clico destas, mesmo recorrendo ao endivida-mento, advertiu que a qualidade da despesa (ou seja, o objecto da despesa) não é neutra.

No entanto, Keynes não admitiu que o inves-timento público substituisse o privado. Com efeito, a total rejeição do modelo soviético le-vou Keynes a pugnar por uma intervenção do

4 Keynes, Collected Writings, Vol. VII, p. 276

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Estado subsidiária do sector privado. Nesse sentido, defendeu que o investimento públi-co devia centrar-se em sectores pouco ape-tecíveis ao sector privado, embora essenciais ao estímulo da produção e da produtividade, de que são exemplo os investimentos no do-mínio social e nas infra-estruturas. Simulta-neamente, o Estado devia tomar medidas de política económica que funcionassem como condicionantes das actividades e investimen-tos do sector privado, redireccionando-os de acordo com a estratégia governamental de desenvolvimento económico.

Posteriormente, a teoria dos bens públicos5

5 Bens públicos são bens indivisíveis, não são comercializáveis e cujos benefícios são usufruídos pela população em geral, independentemente de um ou mais indivíduos quererem ou não usufruir deles. O exemplo clássico é o da defesa nacional. Outros, como é o caso da iluminação pública ou o SNS, são também bens públicos, embora o capitalismo os tente transformar em bens comercializáveis. Contudo, a privatização desses serviços torna-os inefi cazes. Por exemplo, no caso da saúde, as patologias dos pobres

(Samuelson 1966; Musgrave 1971) corrobo-rou na perspectiva keynesiana da separação entre o âmbito de actividade dos sectores pú-blico e privado, justifi cando a racionalidade da intervenção do Estado em actividades que, não sendo lucrativas, são necessárias para o bom funcionamento da economia, tais como a construção de infra-estruturas, o ensino, a formação profi ssional e a saúde pública.

O problema desta divisão de actividades sectoriais é que o sector privado, além de benefi ciar das mais-valias produzidas pelos investimentos do Estado nos bens públicos, fi ca com as actividades que dão lucros enquanto o sector público arca com os custos daqueles investimentos e com os custos inerentes às políticas anti-cíclicas destinadas

que não têm dinheiro para pagar os cuidados de saúde acabam prejudicando os ricos. Foi o que aconteceu com a tuberculose, obrigando os poderes públicos a procurar tratar e prevenir a doença para toda a população.

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a superar as ineficiências6 do capitalismo.

O reconhecimento das ineficiências do capi-talismo entra em contradição com os pressu-postos ideológicos que levaram ao compro-misso da social-democracia com o grande capital, com destaque para a convicção de que só o grande capital possui a capacidade de investimento e a eficiência de gestão indis-pensáveis à promoção do aumento de produ-tividade.

Keynes apercebeu-se desta contradição, que explicitou na crítica à actuação do capitalismo financeiro, ao afirmar que as actividades es-peculativas em busca de elevados e rápidos lucros constituíam um entrave ao desenvol-vimento do capital produtivo7. Subsequen-temente, Keynes defendeu a necessidade da socialização do investimento, através da criação de uma instituição pública de inves-timento8 (tipo banco nacional de fomento). Para Keynes o conceito de socialização do investimento está relacionado com a solida-riedade inter-geracional, na medida em que aquela instituição pública devia efectuar in-

6 Eficiência é um conceito que traduz o facto de uma organização (ou um sistema) conseguir atingir os seus objectivos com o menor custo possível. Na perspectiva keynesiana, as ineficiências do capitalismo traduzem-se no facto dos investimentos e custos de produção do sector privado não contribuírem para o desenvolvimento económico e social.

7 Mário Seccareccia, Keynesianism and Public Investment: A Left-Keynesian perspective on the role of government expenditures and debt, Studies on Political Economy 46, Spring 1995

8 NIB (National Investment Board). Esta instituição deveria concentrar e gerir os fundos espalhados pelas diversas instituições públicas.

vestimentos projectados a longo prazo e as-sim garantir a transferência do capital social produtivo para as sucessivas gerações. Para financiar esses investimentos a instituição pública deveria ter uma política de taxas de juro suficientemente atractivas para captar as poupanças da classe média e, assim, sub-traí-las às aplicações especulativas do capita-lismo financeiro.

Embora alguns governos social-democra-tas tenham aqui e ali procedido a nacionali-zações de sectores estratégicos nacionais9 abandonados ou ineficientemente geridos pelo grande capital, a perspectiva de Keynes sobre as nacionalizações deu suporte às po-sições ideológicas de rejeição da socialização da produção e, em contrapartida, ao desen-volvimento de um modelo económico de so-cialização do consumo10.

A socialização do consumo teve por base a tese de Keynes de que a principal alavanca do crescimento económico reside no aumen-to da procura. Esta tese traduz o diagnóstico de Keynes sobre as causas da grave crise eco-

9 Foi o caso da nacionalização das minas de carvão, dos transportes internos e do Banco de Inglaterra, em 1947, no Reino Unido. Estas nacionalizações implicaram o pagamento de elevadas compensações aos proprietários e a direcção de gestão dos sectores nacionalizados foi entregue a agentes do grande capital (L. Dubinsky, Manifestações de Crise Geral do Capitalismo na Economia Inglesa, Problemas – Revista Mensal de Cultura Política n.º 16, Janeiro de 1949, Partido Comunista do Brasil, www.marxists.org/portugues/tematicas/rev_prob/16/index.htm )

10 Socialização do consumo é um conceito que traduz o acesso dos cidadãos de todas as classes sociais a bens e serviços, designadamente através do recurso ao crédito. A aplicação deste conceito deu origem à sociedade de consumo.

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nómica que se abateu sobre o mundo capi-talista, no início da década de 30 do séc. XX. O problema desse diagnóstico consistiu no facto de Keynes ter desvalorizado uma das causas originais da crise de trinta, a saber, a situação de sobreacumulação de capital que levou à necessidade de destruição de parte da capacidade produtiva instalada.

Crise do Estado do welfare state

O modelo económico de Keynes assenta na perspectiva de um ciclo virtuoso de fluxos macro-económicos em que o aumento da procura, sustentada pelo pleno emprego, es-timula os investimentos produtivos que, por sua vez, asseguram a continuidade do pleno emprego. Neste modelo, o Estado deve cor-rigir as ineficiências do sistema capitalista desenvolvendo políticas anti-cíclicas em caso de arrefecimento da economia, recorrendo a medidas de incentivo ao aumento da procu-ra. No mais longo prazo, o Estado deve desen-volver uma política de investimentos públicos capazes de produzir externalidades positivas que promovam a formação de capital huma-no e social e o aumento da produtividade. Este ciclo virtuoso permitiria assegurar um desenvolvimento económico harmonioso e, assim, garantir as necessárias receitas públi-cas através dos impostos. No caso da econo-mia atravessar uma fase cíclica depressiva o Estado podia recorrer ao endividamento pú-blico, sustentado por políticas monetárias do Banco Central, na certeza de que o relança-mento da economia iria gerar um acréscimo de receitas públicas suficientes para o Estado

pode reduzir o endividamento11.

Este modelo funcionou bem entre o fim da 2.ª Guerra Mundial e o final da década de sessen-ta, período de intensa acumulação de capital comandada pela dinâmica de crescimento do sector industrial. Esta mesma dinâmica aca-bou conduzindo a uma capacidade produti-va excessiva face à capacidade de absorção da produção pelo mercado, dando origem a uma crise de sobreacumulação de capital que se caracterizou pela queda de rentabilidade do capital produtivo.

Contudo, a partir de meados da década de setenta, a economia capitalista retomou uma dinâmica de crescimento induzida pelo início da revolução tecnológica na área da informa-ção e da comunicação e assente no sector dos serviços privados e públicos. Concomi-tantemente, iniciou-se a desindustrialização dos países com economias capitalistas de-senvolvidas que arrastou consigo o declínio da classe operária e o subsequente enfraque-cimento das bases históricas do movimento sindical12.

A desindustrialização, acompanhada pela terciarização da economia, foi inicialmente saudada pela social-democracia como um progresso civilizacional na medida em que as condições de trabalho nos sectores de servi-

11 Keynes considerava que défices públicos crónicos indiciavam uma falta de empenho dos governante em manter uma política de investimento público orientada para o pleno emprego (Kregel, J.A., Budget deficits, Stabilisation Policy and Liquidity Preference: Keynes’s post-war policy proposals, Keynes’s Relevance Today, pp.28-50 (1985), Macmillan

12 O Reino Unido, liderado pelo governo da Sra. Thatcher, constitui o paradigma desse processo.

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ços eram muito melhores do que nos secto-res industriais. Esta transição reflectiu-se no aumento da importância social, económica e política da classe média associada ao acesso a estilos e padrões de vida que consubstan-ciaram a concretização do objectivo “sociali-zação pelo consumo”. No entanto, o acesso da classe média à sociedade do consumo fez--se pelo recurso ao crédito bancário, ou seja, o endividamento, devido ao facto do enfra-quecimento da capacidade reivindicativa do movimento sindical ter permitido a instaura-ção de políticas de contenção salarial.

Foi neste contexto societal que a estratégia de compromisso da social-democracia aca-bou favorecendo a ascensão hegemónica do capitalismo financeiro. O paradigma desse compromisso foi a aceitação da liberalização dos fluxos internacionais de capital.

Com efeito, o processo de liberalização dos fluxos internacionais de capital começou pela introdução de práticas de contabilidade e de compensações financeiras entre grupos de empresas multinacionais. Tais práticas, moti-vadas pela procura de ocultação de lucros e de fuga ao fisco, foram propulsionadas pelo recurso às tecnologias de informação e de comunicação (TIC), ao possibilitarem transfe-rências de activos financeiros entre empresas do mesmo grupo à velocidade da luz assim como à criação de sociedades virtuais, de que são exemplo as off-shore. Estes procedimen-tos, desenvolvidos à escala global, puseram em cheque as políticas de controlo do fluxo internacional de capitais, tornando os países reféns de movimentos especulativos contra

as paridades cambiais das moedas nacionais, lançados a partir de finais da década de se-tenta. Face às dificuldades os Governos capi-tularam e avançaram para a desregulamenta-ção dos sistemas financeiro e monetário. Tal desregulamentação, apresentada aos cida-dãos como sendo uma medida vocacionada para atrair o capital estrangeiro indispensá-vel ao desenvolvimento económico, retirou aos Estados o poder soberano de produzir e controlar a criação de liquidez monetária e propulsionou a capacidade dos grupos finan-ceiros corromperem o poder político.

A destruição do welfare state e o ataque à Administração Pública

A destruição do welfare state deriva da pro-gressiva asfixia financeira dos Estados so-beranos. As causas dessa asfixia, embora diversas, têm como denominador comum a progressiva sujeição das políticas públicas aos grandes grupos capitalistas, com desta-que para o capitalismo financeiro.

Os Estados são financiados quer através dos impostos, das contribuições sociais e dos lu-cros das empresas públicas quer através do endividamento. No caso dos impostos, a pri-meira grande machadada veio da fuga aos impostos das empresas multinacionais pri-meiro através do recurso a práticas de mani-pulação contabilística de receitas e despesas, depois pela deslocalização e transferência de capital para sociedades fantasmas localiza-das nos off-shore. Estas práticas conheceram uma explosão com a utilização das novas tec-nologias de comunicação, acompanhada e

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facilitada pela desregulamentação financeira e monetária. Foi-se, assim, reduzindo a base de colecta de impostos, limitando-se cada vez mais às remunerações do trabalho por conta de outrem e ao consumo, enquanto as isen-ções de taxação dos lucros das multinacionais passaram a ser uma prática comum sempre justificadas pelo argumento atracção do ca-pital estrangeiro. Foi-se, assim, instituindo a concorrência entre os Estados soberanos na submissão aos interesses do grande capital.

A redução da base do imposto acarretou o de-créscimo das receitas fiscais, mesmo quando os Governos procuraram remediar-lhe com o aumento da carga fiscal sobre os rendimen-tos dos trabalhadores por conta de outrem13 e sobre o consumo. Esta é a principal causa estrutural do aparecimento dos défices pú-blicos, embora não se possa descurar alguns factores do lado da despesa, em que se des-tacam as despesas militares14.

Neste contexto, os Governos viram-se na contingência de recorrer ao endividamento, o que necessariamente levou a um aumento da massa monetária, com o subsequentemente aumento de pressões inflacionistas. Iniciou-

13 Eugénio Rosa, Agravamento brutal da injustiça social em 2012 atinge fundamentalmente trabalhadores e pensionistas…, www.eugeniorosa.com/sites/eugeniorosa.com/Documentos/2011/44-OE-2012-Agravamento-injustiça-fiscal.pdf, acedido em 20-4-2015

14 “Em 2004, as despesas militares mundiais atingiram 1 trilião de dólares. Os EUA contribuem com 47% das despesas mundiais. Houve uma redução das despesas militares no fim da Guerra Fria, que culminou em 1998. Desde então as despesas voltaram a crescer. De 2002 a 2004, o aumento médio anual foi cerca de 6%, em termos reais”, in World Military expenditures, a compilation of data and facts related to military spending, education and health, World Council of Churches, Geneva, 2005.

-se, então, a cruzada a favor de cortes na des-pesa pública e contra os aumentos salariais, numa tentativa de conter a pressão inflacio-nista pelo lado da procura quando esta era provocada pelo lado da oferta.

Na década de setenta, a aplicação de políticas de contenção salarial e de cortes na despe-sa pública, entenda-se nos serviços públicos já que as críticas às despesas militares eram desconsideradas, encontraram grandes difi-culdades de implementação devidas à contes-tação sindical e popular15 e porque a ideologia social-democrata de manutenção do welfare state ainda era dominante. Por isso, o grande capital sob a capa de mecenas e promotor do conhecimento e do debate de ideias passou a financiar universidades e investigadores nas áreas de ciências da administração e econo-mia, cujas teses vão constituir a base ideoló-gica do retorno ao liberalismo puro e duro do séc. XIX, mascarado de neoliberalismo.

O estabelecimento desta cooperação entre o grande capital, os políticos que o representa-vam e os académicos neoliberais conseguiu desenvolver uma estratégia global de demoli-ção dos princípios que guiaram a construção dos Estados democráticos do welfare sta-te, com a colaboração activa e militante dos meios de comunicação social, controlados e domesticados pelo financiamento do grande capital. William Niskanen (1933-2011) perso-nifica esse tipo de alianças e a responsabili-dade dos académicos na mudança política do paradigma do welfare state para o domínio o

15 Nesta década ficou célebre a luta dos mineiros britânicos e a frase de Margareth Tachter de que iria quebrar a espinha dorsal do movimento sindical.

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Estado neoliberal, totalmente submetido ao grande capital.

A estratégia de ataque ao welfare state de-sencadeada pelos ideólogos neoliberais uti-lizou três eixos principais de argumentação: a tendência inata do Estado a um despesis-mo excessivo, apontado como sendo a única causa dos défi ces públicos; a superioridade do sector privado sobre o sector público no que concerne a efi cácia, em atingir objectivos, e a efi ciência, em fazer melhor com menos custos; a defesa da liberdade individual, as-sociada ao direito de livre escolha, como di-reito supremo face às restrições inerentes à organização colectiva da sociedade e impos-tas pelo Estado.

A aplicação inter-relacional destes princípios conduziu ao progressivo desmantelamen-to da capacidade de intervenção do Estado, através de políticas sistemáticas de cortes na

despesa pública (à excepção das despesas de armamento, como já foi referido), à privatiza-ção de serviços públicos e à desregulamenta-ção. É neste contexto que se desencadeou o ataque à Administração Pública.

No plano global, as teses neoliberais foram consagradas pelo Consenso de Washington16.

O Consenso de Washington consiste numa lista de 10 directivas que resultaram de uma reunião, promovida em 1989 pelo Institu-te for International Economics17. A reunião

16 Kanbur, Ravi (2008), The co-evolution of the Wahington Consensus and the Economic Development Discourse”, paper prepared for the 2008 Macalester International Round Table,Macalester College, St. Paul, Minnesota, oct. 2-4, 2008; acedido em www.arts.cornell.edu/ em 2/2/2015;

17 Este instituto, sediado em Washington, tornou-se célebre por promover think tanks sobre relações internacionais

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destinou-se a avaliar a eficácia dos progra-mas de ajustamento aplicados a países da América Latina e nela participaram o FMI, o Banco Mundial, o Banco Internacional para o Desenvolvimento (BID) e o Departamento do Tesouro dos EUA. A importância do Consenso de Washington deve-se ao facto das dez di-rectivas terem sido adoptadas pelo FMI como guião para a orientação das políticas públicas impostas aos países em situação de endivida-mento excessivo. Os programas de reajuste estrutural aplicados aos países da União Eu-ropeia com dificuldades de financiamento ex-terno, como é o caso de Portugal, reprodu-zem as directivas do guião do Consenso de Washington, designadamente no que concer-ne a disciplina fiscal, a redução das despesas do Estado com a administração pública e com os subsídios sociais, a reforma fiscal, a priva-tização das empresas estatais, a desregula-mentação do controlo sobre os agentes eco-nómicos e a desregulamentação das relações laborais18.

A justificação do ataque à administração pú-blica teve como suporte ideológico constru-ções teóricas elaboradas, no decurso do séc. XX, designadamente, a Public Choice (1948- 1989), a New Public Management (década de 90) e a New Public Governance, esta já no séc. XXI. A construção destas teorias foi liderada por eminentes académicos de universidades privadas dos EUA, por vezes em colaboração directa com as administrações presidenciais.

18 As outras diretivas, que se referiam à liberalização do comércio externo e dos fluxos financeiros, taxas de câmbio e propriedade intelectual foram introduzidas em todos os países europeus antes da crise financeira de 2008.

A Public Choice, peça essencial no desenvolvi-mento das teses neoliberais, tem como pilar a ideia de que a acção governativa limita a li-berdade individual, incluindo a livre iniciativa económica, porque quem paga impostos vê coarctada a capacidade de dispor totalmen-te dos respectivos rendimentos19. Foi a partir desta perspectiva que a Public Choice proce-deu à crítica da burocracia e à discussão so-bre a legitimidade do papel do Estado.

Niskanen, que foi um dos principais funda-dores da crítica à burocracia, construiu essa crítica com base nas teses de Olson sobre a liberdade individual e a actuação dos grupos de interesse20, a qual se pode resumir nos seguintes termos: as sociedades são domina-das por grupos que defendem os interesses dos seus membros sem tomarem em consi-deração o interesse colectivo. Considerando que os profissionais da administração públi-ca constituem um grupo de interesse, Niska-nen desenvolveu a teoria de maximização dos orçamentos segundo a qual “cada orga-nização pública procura aumentar a dotação orçamental a fim de satisfazer o interesse individual dos burocratas em usufruírem de salários elevados. Em suma, a administração pública passou a ser definida como uma or-ganização dominada por interesses egoístas, divorciada da prossecução da defesa do inte-resse colectivo dos cidadãos e que utiliza os recursos financeiros, provenientes dos im-

19 Olson, Mancur Jr. (1965, 2.ª ed.1971), The Logic of Collective Action: Public Goods and the Theory of Groups, Harvard, University Press

20 Olson, idem

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postos, em benefício próprio”21.

Partindo desta construção teórica, os neoli-berais passaram a contestar a legitimidade do Estado e da administração pública com a seguinte argumentação:

Se os impostos prejudicam a livre iniciativa, por impedirem os cidadãos de utilizarem os seus rendimentos do modo que acharem mais conveniente, e se os impostos servem essencialmente para alimentar uma admi-nistração pública cujo interesse consiste em maximizar os salários dos burocratas, então, há que reduzir a dimensão da administração pública (menos despesa) e limitar a interven-ção do Estado na economia (mais liberdade de iniciativa) para promover o crescimento económico22.

Nos EUA, as eleições de 1992 deram o poder aos democratas que lançaram o programa de reformas Clinton-Gore, designado Natio-nal Partnership for Reinventing Government Initiative (NPR). Este programa (1992-200) manteve as orientações ideológicas do Pu-blic Choice, embora tenha introduzido alguns ajustamentos. Dessa síntese resultou a teoria do New Public Management, cujo lema é “ fa-zer melhor e gastar menos”.

Na linha ideológica do Public Choice, um dos

21 Helena,Rato (2015), A Administração Pública e a Política de Austeridade em Portugal, RAEP –Revista de administração e emprego público, pp. 115-141, DGAEP – Direcção Geral da Administração e Emprego Público

22 “Só reduzindo o tamanho do Governo se pode aumentar o crescimento económico” foi o lema do Programa de Governo de Ronald Reagan (1981).

objectivos estipulados pelo programa Clin-ton-Gore foi a diminuição da despesa com a administração pública, tendo para isso es-tabelecido uma ambiciosa meta de redução do número de funcionários públicos federais. Simultaneamente, no que concerne o funcio-namento dos serviços públicos, a administra-ção Clinton-Gore procurou implementar uma gestão de tipo empresarial, substituindo o conceito de utentes dos serviços públicos pelo de clientes, recorrendo à descentralização dos serviços públicos no sentido da gestão de cada serviço passar a ser da responsabilidade das respectivas direcções e introduzindo me-canismos para promover a competitividade entre serviços, como por exemplo, fazendo depender as dotações orçamentais dos resul-tados obtidos23.

Quanto à perspectiva de fazer melhor foi vei-culada pela valorização do capital humano no desempenho organizacional e na utilização do princípio Value for Money24 como instru-mento de promoção da gestão de tipo em-presarial, nos serviços públicos.

Embora, em teoria, o princípio do Value for Money se apresente como positivo na medi-da em que pressupõe que os serviços pres-tados aos cidadãos devem compensá-los da perda de liberdade pelo pagamento de im-

23 Neste âmbito, Clinton-Gore recuperavam a perspetiva das reformas introduzidas pelo Presidente Carter (Civil Service Reform Act 1978). Estas reformas promoviam a meritocracia, subordinando as promoções e a atribuição de prémios em função da avaliação do desempenho, quer de dirigentes quer de funcionários.

24 Em síntese este princípio significa que a qualidade dos serviços públicos deve ressarcir os cidadãos do dinheiro que pagam pelos impostos.

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postos, na prática a sua aplicação resultou sobretudo em maiores cortes orçamentais aos serviços públicos. Com efeito, como na realidade a prestação de serviços públicos segue uma lógica que não é nem pode ser a de mercado, no Value for Money procurou-se substituir essa lógica pela avaliação de custos benefícios dos serviços prestados. O proble-ma é que, se é relativamente fácil estimar os custos, é muito difícil senão impossível esti-mar os benefícios dos serviços prestados, quer porque esses benefícios só se manifes-tam no longo prazo (caso educação) ou não são quantificáveis (monetariamente) devido a serem imateriais (caso cultura e até saúde). Consequentemente, os gestores públicos su-jeitos a termos de mandato de curto prazo, acabaram centrando-se nos custos, reduzin-do o número de trabalhadores e respectivas remunerações25.

A política de Clinton-Gore de redução do nú-mero de funcionários públicos federais, no quadro do Value for Money, foi também sus-tentada por fortes investimentos em tecno-logias da informação e da comunicação (TIC), dando origem à Governance digital26, ou seja, basicamente a substituição dos circuitos bu-rocráticos de procedimentos, de informação e de atendimento, veiculados em suporte de papel, por redes em suporte digital (ne-tworks), acessíveis através da WEB.

Os potenciais de desenvolvimento abertos

25 Helena, Rato (2015), RAEP, idem

26 Milakovich, Michael E. (2011), Digital Governance: New technologies for improving Public Services and Participation, Routledge

por essa revolução tecnológica fomentaram o debate político e académico entre os que criticavam as teses programáticas do New Public Management, devido aos notórios in-sucessos da gestão empresarial nos serviços públicos, e os que continuavam a defender a superior eficácia da gestão privada sobre a gestão pública.

Para os críticos do New Public Management as redes digitais deviam funcionar como ins-trumentos facilitadores da participação dos cidadãos nas decisões políticas e na gestão pública, visando o alargamento da capaci-dade de poder económico e a construção de uma democracia inclusiva27. Para os parti-dários do New Public Management a gover-nance digital iria permitir melhorar o desem-penho da aplicação dos métodos da gestão privada aos serviços públicos e desenvolver a cooperação (partnership) entre os sectores público e privado, de que são paradigma as parcerias público-privadas.

Foi, esta última, a corrente dominante no de-senvolvimento da New Public Governance que tem como objectivo aumentar a inter-venção dos grandes grupos económicos na gestão pública, levando à diminuição da ca-pacidade de controlo e direcção por parte do Estado. No entanto, mesmo entre os defenso-res da New Public Governance vão surgindo algumas críticas28 sobre as consequências da

27 Fotopoulos, Takis (2005), The multinational crisis and Inclusive Democracy, The International Journal of Inclusive Democracy, a quarterly journal published by the International Network for Inclusive Democracy

28 Koppenjan, Joop (2013), Towards the New

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transferência do poder do Estado para o sec-tor privado, designadamente, a falta de trans-parência na gestão das parcerias público-pri-vadas, o aumento dos custos de produção e de transacção dos bens e serviços públicos, sem que haja uma contrapartida na melho-ria da qualidade dos serviços prestados. Mais recentemente, alguns académicos têm apre-sentado estudos que apontam os métodos de gestão da New Public Management e da New Public Governance como facilitadores do aumento da corrupção.

Epílogo – o ataque à democracia

A democracia representativa assenta num contrato social entre eleitores e eleitos, em que estes se comprometem a cumprir as po-líticas que levaram os cidadãos a elegê-los. Se esta condição não for respeitada, o contrato social que dá corpo à democracia fica com-prometido.

Claro está que as promessas eleitorais po-dem não ser cumpridas devido a ocorrências não previsíveis ou a factores de ordem ex-terna não controláveis. Neste caso, embora a base inicial do contrato social fique preju-dicada, o contrato social pode manter-se se persistir a confiança dos eleitores nos eleitos, sendo para isso necessário que uma governa-ção transparente em que os eleitos prestem contas das decisões tomadas aos eleitores.

Public Government? How can we govern the public sector in the post NPM era?, Erasmus University Rotterdam, www.igps.victoria.ac.nz/events/koppenjan/New_Public_Governance_2013.pdf; Osborne, Stephen (2011), From the New Public Management to Public Governance, Edward Elgar

Por definição, democracia significa o governo do povo ou, no caso da democracia represen-tativa, o governo exercido em nome do povo para o povo. Consequentemente, o contrato social acima definido implica, também, que os decisores políticos governem de forma a garantir a satisfação dos interesses e necessi-dades dos cidadãos, em geral, e dos respecti-vos eleitores, em particular.

Depois da segunda Guerra Mundial, as ne-cessidades básicas dos seres humanos foram consignadas como direitos fundamentais na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948-2000), a saber, liberdades e direitos po-líticos, direitos sociais, económicos e culturais (saúde, educação, trabalho, habitação, lazer, previdência social), direitos colectivos29 (direi-to à paz, ao desenvolvimento, à autodetermi-nação dos povos, à protecção de grupos vul-neráveis e à preservação do meio ambiente).

Estes direitos nunca foram denunciados pelos teóricos do New Public Management. Antes pelo contrário, as reformas implementadas à luz dessa teoria sempre foram justificadas em nome da libertação dos cidadãos da dita-dura do Estado do welfare state e da burocra-cia da Administração Pública, para poderem desenvolver a capacidade criativa da livre ini-ciativa, considerada como indispensável a um desenvolvimento sustentável.

Na realidade, as reformas foram concebidas para dar o poder político às elites económi-

29 Estes últimos direitos, designados de terceira geração foram consignados através de diversas Convenções e Resoluções das Nações Unidas.

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cas30. Daí resultou uma subordinação das instituições democráticas, governos, parla-mentos e justiça, às elites económicas e, sub-sequentemente, uma concentração do poder decisório em grupos sem legitimidade demo-crática.

Esta realidade tem-se traduzido no desinte-resse dos cidadãos pela política, demonstra-do através do aumento da abstenção eleitoral, num aumento dramático da concentração da riqueza nas elites económicas e, como coro-lário no aumento da pobreza e dos excluídos.

Para o aumento da concentração da riqueza dois factores têm desempenhado um papel crucial: a transferência de bens e fundos pú-blicos para os grupos económicos, través de privatizações e diversas formas de quasi-pri-vatizações31, em que os lucros ficam para os privados e os custos para o Estado, mas, tam-bém, pelo aumento da corrupção.

Só muito recentemente começaram a surgir estudos de avaliação do impacto das refor-mas neoliberais sobre a corrupção. Contudo, as conclusões a que se tem chegado são bas-tante semelhantes, a saber: a alienação do poder de controlo público favorece o uso dis-cricionário do dinheiro público por um grande

30 Fotopoulos, Takis, The multidimensional crisis and Inclusive Democracy, The International Journal of Inclusive Democracy, 2009

31 “Introdução mascarada de formas de gestão privada, tais como, autonomia de gestão dos serviços públicos, financiamento público em função dos resultados, recurso a finaciamentos privados, parcerias público-privadas”, Rato, Helena, Contra-reforma da Administração Pública portuguesa pela mão da troika, Seara Nova N.º 1725, Outono/2013

e diversificado número de actores que ope-ram através de redes opacas, cujo objectivo consiste na maximização de lucros privados; o desenvolvimento do procurement32 é uma das actividades mais sujeitas à corrupção, devido aos vultuosos montantes envolvidos, e os principais sectores vítimas deste tipo de actuação são a saúde, o ambiente e a energia; o desenvolvimento das parcerias público-pri-vadas tem aumentado a promiscuidade entre políticos e empresários, favorecendo o desen-volvimento de uma cultura de conivência e de compromisso, propiciadora da corrupção.

Segundo Dieter Grunow33, na Alemanha os casos conhecidos de corrupção registaram uma taxa de crescimento de 700%, desde o início das reformas assentes nas teses do New Public Management, isto é, desde 1996. Também a OCDE, organização que contri-buiu para a promoção de reformas no âmbi-to daquelas teses, lançou recentemente um estudo34 alertando para o facto da corrup-ção no sector público prejudicar a eficiência dos serviços públicos, minar a confiança nas instituições públicas e aumentar o custo das transacções públicas. Nesse estudo, a OCDE afirma que a falta de transparência do lob-bing praticado nos sectores financeiro, de

32 Isto é, a aquisição de bens e serviços pelo sector público, junto do sector privado, quer através de concursos quer por ajuste directo

33 Grunow, Dieter, New Public Management Reform and Corruption in Germany , comunicação apresentada no painel Funções e Disfunções da Corrupção, na conferência da ECPR (European Consortium for Political Research), realizada em Postdam, em 2009.

34 Fighting Corruption in the public sector, OCDE, 2015

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seguros e imobiliário foi uma das principais causas da crise financeira desencadeada nos EUA, em 2008.

Em suma, a contradição sistémica do modelo social-democrata que induziu a uma política de compromisso com o grande capital e está na origem da crise de financiamento do wel-fare state, resultou na captura do Estado por interesses privados, tornando obsoleta a ma-nutenção de uma administração pública com capacidade de intervenção.

Este processo de perversão da democracia representativa, que inclui o desmantelamen-to da administração pública, foi sendo apre-sentado aos cidadãos como promotor do desenvolvimento sustentado, como defensor quer das liberdades individuais e favorável a uma justiça equitativa, por premiar os melho-res. Uma tão grande e duradoura mistificação foi possível porque apoiada por teses preten-samente científicas, veiculadas à saciedade e sem contraditório pelos mass media, começa a perder credibilidade.

Mas, à medida que os cidadãos se vão aper-cebendo da realidade, os usurpadores do poder põem em marcha políticas de contro-lo e de opressão para impedir que os povos reconquistem a liberdade perdida. O caso da Grécia é disso um óbvio testemunho.

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