revista agronegocio

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AgronegciosEdio 8INSTITUTO INTERAMERICANO DE COOPERAO PARA A AGRICULTURA PROMOO DO COMRCIO E DA COMPETITIVIDADE DO AGRONEGCIO

COMERCIALIZAO e AGRONEGCIOS

ApresentaoO INFORME Agronegcio uma revista semestral do Escritrio do IICA no Brasil, dirigida aos acadmicos, pesquisadores, tcnicos, empresrios pblicos e privados; todos aqueles que acompanham e buscam informaes e conhecimentos mais atualizados e relevantes do agronegcio no Brasil e regies do continente americano. O IICA, nesta publicao, abre um espao interativo destinado a todos aqueles que tem interesse em compartilhar conosco seus comentrios, crticas e conhecimentos; ou solicitar a publicao de artigos, resenhas e fichas tcnicas relacionados com o estado da arte do Agronegcio, do comrcio e das negociaes agrcolas regionais. Somos uma tribuna aberta para a recepo, sistematizao, organizao, discusso, produo e publicao de artigos especializados; comentrios e opinies tcnicas, que, para esse fim, devero ser encaminhados para os endereos da nossa Equipe [email protected] [email protected] [email protected]

Os artigos devem ser digitados em Word, espao duplo, fonte calibri, corpo12, folha formato A4, com pginas numeradas (de acordo com as normas da ABNT). Os interessados em publicar artigos devero colocar as referncias utilizadas na elaborao do artigo e apresent-las em ordem alfabtica. Esta uma publicao sem fins lucrativos, do IICA Brasil. Os artigos e textos foram recopilados de fontes diversas na tentativa de divulgar os trabalhos que consideramos relevantes e necessrios para apoiar um processo contnuo de reflexo e aprendizagem sobre as iniciativas, experincias e eventos locais, regionais e globais relacionados com o Agronegcio. As fontes citadas aparecem no final de cada artigo para resguardar os direitos autorais.

Carta ao LeitorPREMISSASAs mudanas, aspectos mais permanentes em todos os processos, e, neste caso especfico, na economia nacional e global, exigem toda uma criatividade e um melhor aproveitamento dos conhecimentos que se encontram disseminados por toda parte, apenas espera que a nossa gesto os identifique, incorpore e dissemine, eficientemente nas aes que protagonizamos. Repetir erros por desconhecimento j no est mais isento de responsabilidade em um mundo conectado tambm de forma virtual. Deixar de aprender dos melhores por arrogncia envolve custos presentes e futuros, com os quais muitas organizaes no esto mais dispostas a arcar. Temos o dever de aproveitar o j descoberto, testado e provado em outras partes do mundo, sob pena de incrementar os custos, recorrentes e inteis, e deixar de melhorar as condies de vida das comunidades que dependem e reclamam a qualidade dos resultados e impacto do nosso trabalho. O novo cenrio global e suas consequncias, nas distintas regies e pases constituem um desafio importante. Crescer e desenvolver-se de maneira sustentvel, sem piorar o entorno natural e as condies de vida e de trabalho das comunidades, o que demanda importantes investimentos. Tambm se requerem polticas pblicas inteligentes e precisas, de decises difceis, as quais na maioria das vezes exigem a mobilizao de grandes recursos. A agricultura, na atualidade, mais dinmica devido incorporao de diversos segmentos de uma cadeia de valor, desde os localizados dentro da porteira at aqueles que se aproximam da mesa do consumidor final. A agricultura, agora sistmica, tem um papel preponderante na manuteno da paz social. A segurana alimentar uma bandeira que hoje est sendo levantada, cada vez mais, pela maioria dos pases, em todos os continentes, devido vergonha e ao desastre que significa a fome e a falta de esperana em um mundo to evoludo tecnologicamente como o atual. As empresas do sistema: produtor, agrcola, agroindustrial e de servios, precisam contar com profissionais qualificados e familiarizados com o enfoque e a problemtica que envolvem os processos do sistema agroindustrial. um consenso entre os estudiosos do agronegcio, que a qualidade dos recursos humanos est entre os fatores mais crticos de sucesso no sistema. A Revista de Agronegcio N 8 releva neste nmero, importantes artigos que em enfoques multissetoriais e multidisciplinares tratam de aspectos como a Democracia na raiz das dinmicas rurais brasileiras, o desafio da disseminao da Gesto de Risco e o Seguro Rural nas regies produtoras, sustentabilidade, cambio climtico e os biocombustveis, os mitos da agricultura familiar como sinnimo de pobreza e pequena produo, a evoluo nos ltimos 30 anos do agronegcio brasileiro, entre outros interessantes assuntos, em fim, coerentes com o escopo do enfoque do agronegcio do IICA, que comporta a nova agricultura e suas diferentes conexes. Coincidimos com os cientistas que confiaram seus trabalhos ao IICA para a divulgao porque acreditam na necessidade de uma formao sustentvel e cada vez mais urgente, dos profissionais qualificados que acompanham e contribuem com seus insumos e valor agregado, nas grandes questes que envolvem a nova agricultura. Todos e todas contribuem com uma melhor e mais limpa explorao dos recursos do planeta. Devemos dar uma maior ateno segurana e soberania alimentar; biotecnologia, agroenergia, formao de redes e sistemas de cadeias produtivas; e a emergncia do desenvolvimento sob bases territoriais, sustentado no direito humano a um mundo saudvel e a prtica concreta da cidadania.

COMERCIALIZAO e AGRONEGCIOS

NOSSA INTENOO Escritrio do IICA no Brasil est ofertando aos seus assduos leitores uma srie semestral de artigos e extratos de documentos cientficos, resultado de pesquisas e projetos de cooperao tcnica. Nossos produtos do conhecimento devero servir como elementos para a reflexo e como insumos para melhorar a tomada de decises e/ou para a elaborao de estudos especficos que procurem avaliar, facilitar e garantir a competitividade do agronegcio e o bem-estar das comunidades rurais. A misso institucional obriga-nos a fazer uma atualizao peridica e uma reviso, bem como acompanhar e documentar, sistemtica e periodicamente, as inovaes, os avanos, as novas estratgias e polticas dos setores: pblico, privado e social. Nosso objetivo aproveitar e estimular um processo bem-sucedido de reposicionamento dos segmentos das cadeias agroindustriais brasileiras e regionais, com a inteno de que estes aproveitem as vantagens que proporcionam ambientes em constante mudana. O Brasil um pas com enorme extenso territorial, ampla gama de produtos agroalimentares e grande diversidade na organizao de estruturas da produo rural. Um contexto com grandes desafios e oportunidades. Para estar inserido e atuante, em um cenrio como este, o Instituto estabeleceu novas estratgias, iniciadas com um trabalho interno rduo de reposicionamento, que implica a redefinio, redesenho e ampliao de nossas linhas de ao e reas temticas. As reas temticas devem ser inseridas, estrategicamente, nas mais relevantes discusses e questes de interesse global, pelo que reforamos o alcance da rea de Inovao Tecnolgica, Sanidade Agropecuria e Inocuidade dos Alimentos, Tecnologia da Informao e Gesto do Conhecimento; criamos veculos informativos mais robustos para garantirmos um intercmbio de ideias e de conhecimentos, por meio de mecanismos interativos, que se sustentam em tecnologias de ponta. Tudo isto nos possibilita, de maneira sustentvel, a difuso e o estmulo oportuno s pesquisas sobre temas inovadores no mbito rural.

OBJETIVOS DA REVISTA INFORME DE AGRONEGCIO DO IICA BRASIL

Divulgar conhecimentos sistematizados, experincias, e os resultados dos debates e discusses sobre o estado da arte das medidas e polticas que emergem do desenvolvimento do agronegcio e das intervenes que protagonizam os seus atores e equilibristas, pblicos e privados. Criar um veculo atualizado e sustentvel; um instrumento de intercmbio de informaes, conhecimentos e experincias que possam ser utilizados pelos tomadores de deciso e executores das polticas pblicas como insumos importantes para ampliar e alimentar a discusso, a proposio e a formulao de novos programas e projetos para o desenvolvimento rural e o agronegcio. Apresentar e comparar diferentes conjunturas econmicas nos mbitos nacional (regies do Brasil), regional (MERCOSUL) e global, num carter informativo que possa apoiar e favorecer a tomada de decises e a anlise crtica de tais conjunturas.

Neste Informe Agronegcio N 8, nono na srie iniciada em 2005, os leitores encontraro interessantes artigos de opinio sobre o Acesso a Mercados da Agricultura Familiar e a experincia do Grupo Po de Acar, Desenvolvimento do Capital Social em Territrios de Risco, Desenvolvimento Rural e Diversificao no Brasil, Novidades do Setor Agrcola da China, Cmbio Climtico, Sustentabilidade e Biocombustveis, Gesto Integrada e Solidria de Resduos Slidos, A Exploso da Soja e o Futuro do Meio Ambiente no Brasil. Nossos artigos so o resultado da pesquisa, consulta e seleo de documentos produzidos por cientistas e instituies de indubitvel reconhecimento no tema, so artigos que publicamos com a autorizao dos seus autores. Outros so textos de produo interna do Instituto, fruto do trabalho dos nossos especialistas e consultores de Agronegcio, Desenvolvimento Rural, Gesto Ambiental, Tecnologia e Biotecnologia.

Esperamos que os artigos, resenhas, informaes e dados apresentados neste Informe sejam de grande utilidade no estmulo aos debates, programas, projetos e demais aes estruturantes. Interessa-nos estimular discusses pertinentes para a consolidao de um processo crescente de Cooperao Horizontal sustentado na nova agricultura. Todos os assuntos esto sistemicamente associados ao desenvolvimento dos territrios cujo motor principal o dinamismo e a competitividade de um agronegcio familiar e empresarial sadio e respeitoso da importncia da sustentabilidade do meio ambiente.

Nosso objetivo fundamental que nossos leitores e amigos utilizem este veculo como uma tribuna pblica que lhes permita a divulgao de importantes assuntos e incentive outras pessoas a participarem com sua criao cientfica, seus artigos, opinies e comentrios.Dessa maneira, poderemos construir juntos, um foro permanente de esclarecimento, produo e compartilhamento de experincias bem sucedidas, e daquelas com perspectivas de sucesso no agronegcio e em outras prticas agrcolas menos vinculadas ao mercado e ao comrcio formal. Carlos Amrico Basco Representante do IICA no Brasil

SumrioCARtA AO LEItOR6 PANORAMA MuNdIAL 11POR tRS dA FALSA HOMOGENEIdAdE dO tERMO AGROINdStRIA FAMILIAR RuRAL: INdEFINIO CONCEItuAL E INCOERNCIAS dAS POLtICAS PBLICAS 13 NEOLIBERALISMO, uSO dE AGROtxICOS E A CRISE dA SOBERANIA ALIMENtAR NO BRASIL* 27 COMPEtItIVIdAdE NA PROduO dA SOJA EM GRO ENtRE BRASIL E EuA: uMA ANLISE utILIZANdO A MAtRIZ dE ANLISE dE POLtICA (MAP) 35 EFEItOS dA ABERtuRA ECONMICA NA FORMAO dE PREOS NO MERCAdO INtERNACIONAL dE SOJA EM GROS 49 MENSuRAO dO POdER dE MERCAdO NO COMRCIO INtERNACIONAL dE SOJA EM GROS 69 MOSCAMEd AMPLIA ACESSO dO BRASIL AO MERCAdO INtERNACIONAL dE FRutAS 81 tENdNCIAS dA AGRICuLtuRA EM AMRICA LAtINA-1990-2008 82 JOBS ANd ECONOMIC dIVERSIFICAtION: RuRAL dEVELOPMENt tHROuGH RuRAL LIVELIHOOd dIVERSIFICAtION AN OVERVIEW OF BRAZILIAN ExPERIENCE 95 APuNtES dOBRE EL CONGRESO PANAMERICAdO dE LA LECHE EN BELO HORIZONtE BRASIL 2010 115

PANORAMA BRASILEIRO137A dEMOCRACIA NA RAIZ dAS NOVAS dINMICAS RuRAIS BRASILEIRAS 139 INStItutIONAL FRAMEWORK ANd PuBLIC POLICIES FOR FOOd SECuRItY ANd SOVEREIGNtY IN BRAZIL 159 CRESCIMENtO AGRCOLA NO PEROdO 1999-2004 ExPLOSO dA REA PLANtAdA 173 AGRICuLtuRA FAMILIAR NO SINNIMO dE PEQuENA PROduO dE SuBSIStNCIA181 EVOLuCIN dEL AGRONEGCIO EM BRASIL 183

tRIBuNA ABERtA 189GEStIN dE RIESGOS Y SEGuROS AGROPECuARIOS: Su IMPACtO EN EL dESARROLLO SECtORIAL 191 NOtAS SOBRE A SEMANA dO AGRONEGCIO NO SEBRAE 201 ANLISE E MOdIFICAES dAS EStRutuRAS dE GOVERNANA NA CAdEIA PROdutIVA dA SOJA 211 O AGRIBuSINESS dA SOJA tRANSGNICA NO COMRCIO INtERNACIONAL 225

EVENtOS dO AGRONEGCIO 2010/2011 243PuBLICAESDO AGRONEGCIO .............................................................................................................................................247

Panorama Mundial

PANORAMA MuNdIAL

POR tRS dA FALSA HOMOGENEIdAdE dO tERMO AGROINdStRIA FAMILIAR RuRAL: INdEFINIO CONCEItuAL E INCOERNCIAS dAS POLtICAS PBLICASGisele Martins Guimares*, Paulo Roberto C. da Silveira**

Resumo:Neste artigo, buscamos demonstrar que a heterogeneidade de situaes relativas organizao da produo e s diferentes formas de insero no mercado ocultas sobre o termo Agroindstria Familiar Rural AFR tem provocado falta de clareza sobre qual pblico atingir nos programas de estmulo a agregao de valor aos produtos da agricultura familiar. Abordamos a literatura acadmica e sua dificuldade em conceitualizar as AFRs, demonstrando que no h uma correta leitura dos fatores que so fundamentais em sua compreenso, propomos alguns elementos capazes de diferenciar as AFRs segundo as capacidades envolvidas em sua dinmica e estratgias de consolidao: capacidades instaladas, mobilizveis, adquiridas, aprimoradas e adicionadas. Enfatizamos uma tipologia em que se acentua a importncia da caracterstica artesanal como fator de diferenciao do produto das AFRs em relao aos produtos da grande indstria de alimentos. A partir desta tipologia de AFRs, analisamos como na implantao do Programa Sabor Gacho pelo governo do Rio Grande do Sul, 1999-2002, a indiferenciao das AFRs implicou na concepo e implementao da poltica pblica, interferindo nos mecanismos de ao e no agir dos agentes de desenvolvimento envolvidos. Palavras-Chave: Agroindstria Familiar Rural Desenvolvimento Rural Agregao de Valor na Agricultura Familiar

I. IntroduoNeste artigo buscaremos demonstrar que a falta de distino entre as diferentes situaes tcnico-econmicas e scio-culturais envolvendo o processamento de alimentos de origem vegetal ou animal; inadvertidamente agrupadas sobre a terminologia agroindstria familiar rural, tem influenciado negativamente as polticas pblicas de estmulo agregao de valor aos produtos da agricultura familiar em sua concepo e implantao. Tais polticas, influenciadas pela falta de clareza conceitual de qual pblico pretendem atingir, resultam em aes do poder pblico e comportamento dos servios de apoio tcnico ou gerencial que tratam como homogneo um universo heterogneo com efeitos sociais e econmicos diferentes dos pretendidos. Tal indistino sobre diferentes pblicos implica no fracasso ou, pelo menos, em resultados aqum dos esperados nos programas de estmulo a implantao de agroindstrias familiares e tem origem na produo acadmica, onde h uma proliferao de denominaes incapazes de captar as diferenas essenciais que caracterizam os diferentes tipos de situaes envolvendo o processamento de alimentos no espao rural. Inicialmente, procuramos elementos que demonstrem tal insuficincia conceitual na produo acadmica e nos documentos referenciais que apresentam os programas de estmulo a agroindstrias familiares. Em*

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Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS - Unidade Cachoeira do Sul, Zootecnista, Msc. Extenso Rural e doutoranda do Programa de Ps-Graduo em desenvolvimento Rural (PGDR) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Santa Maria/RS [email protected]; Professor do Departamento de Educao Agrcola e Extenso Rural da Universidade Federal de Santa Maria/RS, Zootecnista, Msc. Extenso Rural e doutorando do Programa Interdisciplinar em Cincias Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, rea de Sociedade e Meio-ambiente, [email protected].

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8um segundo momento, apresentamos uma definio de categorias que possibilitem distinguir o processamento de alimentos na agricultura familiar em relao a diversos fatores capazes de orientar a reflexo sobre a adequao das polticas pblicas que almejam o desenvolvimento rural. Para oferecer uma dinmica terica a esta diferenciao apresentamos um modelo baseado nas diferentes capacidades envolvidas na viabilizao das agroindstrias familiares rurais, analisando como cada grupo de capacidades est relacionado com cada categoria aqui proposta. Finalmente, apresentamos um conjunto de hipteses sobre o desenvolvimento dos programas de estmulo a agroindstria familiar; as razes dos problemas enfrentados em sua implantao e sua relao com o efetivo desenvolvimento rural, com a gerao de renda nos empreendimentos fomentados e na segurana dos alimentos consumidos. A anlise busca demonstrar que nem sempre as aes implantadas alcanam o declarado objetivo de fortalecer a agricultura familiar.

II. Muitas Terminologias e Pouca Clareza ConceitualFazem parte de a atividade cientfica classificar, distinguir dimenses de um mesmo fenmeno, estratificar o todo, permitindo compreender nas diferenas presentes entre as mltiplas faces de um objeto em estudo, os aspectos condicionantes de sua diferenciao, orientando o corte analtico a ser adotado. Deste modo, em estudos exploratrios, muitas vezes, abre-se caminhos para investigaes mais acuradas sobre os diferentes extratos que o real nos apresenta, mas o primeiro passo a percepo de que no estamos diante de um bloco homogneo. Nos estudos de desenvolvimento rural comum nos referirmos a categorias pretensamente homogneas quando na verdade estamos diante de uma grande heterogeneidade (Mazoyer & Roundart,...), situao amplamente reconhecida tratando-se da agricultura familiar (Guanziroli et all, 2002). Este tambm o caso da agroindstria familiar rural (AFR). instigante que desde a ltima dcada do sculo XX tenham proliferado programas de estmulo s agroindstrias familiares, aliados a uma construo terica sobre a agregao de valor aos produtos da agricultura familiar como estratgia de desenvolvimento rural sem uma anlise mais acurada da diferenciao do pblico-alvo. Mostramos a seguir que as conceituaes no captam as diferenas essenciais existentes na diversidade de tipos de agricultores familiares envolvidos no processamento de alimentos e divergem em quais aspectos so fundamentais para definir a agroindstria familiar rural. Mior (2005, 190), em nota de rodap, adverte: os termos agroindstria familiar e/ou rural, agroindstria ou indstria artesanal e/ou colonial, agroindstria ou indstria rural de pequeno porte, embora possam ser alvo de diferentes interpretaes, so utilizados como sinnimo neste trabalho. O autor percebe que as diversas terminologias acentuam diferentes aspectos que buscam caracterizar o fenmeno de agregao de valor aos produtos da agricultura familiar. Mas no os diferencia, j que este no objetivo de seu trabalho. Misturam-se nestas diversas terminologias diferentes dimenses: referentes localizao do empreendimento (rural), ao processo de produo (artesanal), ao tipo de produto (colonial) e escala de produo (pequeno porte). Ocorre at a utilizao do termo indstria, indicando a incompreenso da especificidade de uma atividade que beneficia matrias-primas oriundas da produo agrcola (agroindstria) e, indo alm, no diferenciando a transformao de alimentos (objeto deste artigo) de outras atividades de processamento de matrias-primas agrcolas. Cada termo traz em si uma concepo sobre qual elemento assume posio central para caracterizar uma atividade de processamento de alimentos, a qual, historicamente, est associada agricultura familiar como forma de conservao e armazenagem, prticas alimentares tradicionais em zonas de imigrao europeia e agregao de valor aos produtos in natura, mas que tambm so recriadas1 em um1

O processo de re-criao de AFRs ocorre na dcada de 1990-2000, por meio do estmulo das polticas pblicas incentivadoras do processamento de alimentos de origem animal e vegetal, como estratgia de agregao de valor aos produtos da agricultura familiar aplicadas a famlias que no passado haviam se dedi-

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PANORAMA MuNdIALprocesso de revalorizao do rural, associado ao natural e artesanal (Silveira et all, 2006). No entanto, no trabalho de Mior (2005), ao caracterizar o objeto de sua anlise, o autor prope uma diferenciao que j se constitui em um primeiro passo para uma distino conceitual que supere esta diversidade de termos. Destaca o autor, de um lado, a atividade de processamento de alimentos e matrias-primas que visa prioritariamente produo de valor de uso que se realiza no autoconsumo (MIOR, 2005,191); enquanto que, de outro lado, a agroindstria familiar rural (AFR) que teria uma orientao para o mercado, produziria valor de troca e constituir-se-ia em um espao especfico destinado ao processamento de alimentos, seguindo determinao das normas sanitrias, alm de buscar a superao da informalidade pela internalizao de aspectos fiscais e ambientais. A AFR seria um empreendimento social e econmico, independente de que haja ou tenha havido no passado um envolvimento com a atividade de processamento de alimentos. Tal delimitao j um avano, pois diferencia uma situao que prioritariamente visa o consumo, comercializando excedentes gerados de outra atividade em relao a uma outra situao em que h opo por um negcio (atividade como fonte de renda) que ir alterar a dinmica da organizao da produo e a relao do agricultor com o comrcio. Mior (2005) tambm caracteriza a AFR por apresentar uma instalao e equipamentos apropriados para produzir alimentos, diferenciando-a da produo na cozinha do Agricultor. Estamos diante de duas situaes: uma agroindstria caseira e um empreendimento voltado ao mercado como prope Zago (2002). Em excelente trabalho, Vieira (1998) alerta para a heterogeneidade do setor das micro e pequenas agroindstrias, distingue as urbanas das rurais e chega a apontar duas motivaes para formao das agroindstrias familiares rurais: a existncia de excedentes que o produtor no consegue colocar no mercado, seja por no atender aos padres de comercializao ou por problemas de qualidade mais srios, que o produtor imagina poder dar destino econmico (p. 13); e aquela que surge quando das conjunturas desfavorveis de preo para sua produo agrcola e o produtor v na agroindustrializao a maneira bvia de lhe adicionar valor (p.13). Ou seja, como ressalta Mior (2005), uma estratgia aproveitar as oportunidades de comrcio daquilo que produz para consumo e a outra a reconfigurao de sua relao com o mercado, passando a produzir alimentos com maior valor agregado. No entanto, Vieira (1998) no percebe as diferenas que existem entre as duas situaes no que tange as exigncias a serem supridas pelas polticas pblicas e no d relevncia ao fato de que no primeiro caso no h uma instalao prpria para processamento, a agroindstria como espao adequado e especfico, at, por que se concebe, normalmente, que a comercializao s ser efetivada se houver cumprimento das normas sanitrias. No entanto, salienta a informalidade como uma barreira a transpor, o que justamente o desafio dos programas de estmulo s agroindstrias familiares: viabilizar a adequao das condies de processamento de alimentos hoje existentes nas unidades de produo agrcola familiares s normas sanitrias, fiscais e ambientais. Tratando-se de poltica pblica, deve-se partir do existente e traar estratgias de transformao que almejem a legalizao, entre outros objetivos, e no pressupor a legalizao como ponto de partida (SILVEIRA & ZIMERMANN, 2004). Vieira (1998) afirma que se pode caracterizar a AFR por apresentar certo grau de informalidade, pouco aporte tecnolgico e gerencial e um enfoque voltado produo. Estas so caractersticas facilmente observveis nas diversas situaes encontradas, mas o que faltou ressaltar que o peso de cada aspecto varia nas duas situaes que o autor identifica. O autor acentua o aspecto da escala, ressaltando que a AFR se diferencia da grande indstria e assume uma insero no mercado diferenciada pelo volume de produo.cado a esta atividade, mas a abandonaram pressionados pela legislao sanitria e servios de fiscalizao, que a partir da dcada de 1950 passam a apoiar o desenvolvimento de grandes plantas industriais. A re-criao caracteriza-se pela retomada de uma tradio, agora, como um negcio que visa lucro e que implica em investimentos para buscar a legalizao do empreendimento. Ver Silveira et all, 2006; Diesel et all, 2006 e Neumann &Souza, 2006.

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8O fator escala tambm ressaltado em Prezzotto (1999) e Olveira et all (1999) que utilizam a terminologia Agroindstria Rural de Pequeno Porte (ARPP), de uso frequente em Santa Catarina.2 O problema no est naquilo que enfatiza tal conceituao, a escala de produo, mas no que oculta. Pois se a diferena fundamental a escala, ento pode-se concluir que a ARPP uma agroindstria convencional somente pequena, ou seja, seu produto no diferenciado. Mesmo que os autores tenham claro que o produto destas ARPP em maior ou menor grau produzido de forma artesanal e que apresenta caractersticas tradicionais da colnia, abre-se a possibilidade de termos sobre a mesma denominao realidades completamente diferentes. Isto precisa ser detalhado, por que essencial em nossa perspectiva. Primeiro, deve-se observar que artesanal no pode ser confundido com baixa tecnologia, pois o termo tem haver com o conhecimento que orienta a elaborao do produto, o toque especial de cada produtor e que lhe ope ao industrial, como esclarecem Silveira & Heinz (2005, 02):Enquanto no processo industrial, o fundamento a padronizao do produto, a garantia de que determinada marca no apresenta variao nem em qualidade, nem nas caractersticas do produto, devido a procedimentos tcnicos e operaes maqunicas sob rgido controle, o artesanal o imprio do como fazer, da varivel humana, da diferenciao. A criatividade e a inovao permanecem como possibilidade.

O diferencial a arte que permeia a produo artesanal, onde o saber utilizado de carter intergeracional, herdado de uma cultura familiar ou do universo cultural de toda uma regio, o que implica um produto com caractersticas prprias. Este produto que o consumidor identifica como semelhante ao colonial, atribuindo-lhe um Embededness cultural, tem implicao na relao com o mercado e na forma de dirigir o empreendimento. Mas no caso de uma Agroindstria Familiar Rural que se dedique a uma produo que represente algo novo para a famlia ou famlias envolvidas, surgida como um negcio com potencial de gerao de renda e desvinculada dos conhecimentos empricos do passado, o produto no se diferencia em nada do industrial (Silveira et all, 2006; Diesel et all, 2006). De outra parte, pode-se ter um processo de produo onde haja incremento tecnolgico e mantenha-se a condio artesanal do produto, porque este continua a apresentar aparncia, aspecto, cheiro e sabor especficos caractersticos, derivados de um saber fazer prprio a cada produtor e, portanto, diferenciado dos produtos da grande indstria. Isto ocorre porque as receitas caseiras no so substitudas por formas de produo trazidas de fora por agentes do conhecimento tcnico-cientfico, passam a interagir com prticas de fabricao que visem melhoria de higiene, equipamentos que viabilizam maior produtividade do trabalho e instalaes mais adequadas (Neumann & Souza, 2006). Utilizemos um exemplo para nos fazer compreender. Em estudo realizado em Chapada-RS3, observam-se duas situaes envolvendo o mesmo local, uma de processamento de mandioca e outra de processamento de melado. A agroindstria de mandioca constituda a partir de uma associao de 11 famlias e com seu funcionamento institudo por meio dos conhecimentos tcnicos do agente de extenso rural e dos cursos realizados pelos agricultores e agricultoras. No havia experincia pregressa em pr-cozimento de mandioca e em sua embalagem a vcuo, assim gera-se uma alternativa de renda, mas no h diferena da mandioca a produzida de outra produzida em indstrias maiores. J no caso da produo do melado,

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Reviso destas conceituaes encontra-se em Pereira, Neves e Casarotto Filho (2004) em estudo realizado para o BRDE sobre as AFRs em Santa Catarina, sendo que os autores optam pelo conceito de Agroindstria rural de pequeno porte.

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Estudo relatado em trabalho de concluso do curso de geografia-licenciatura da Universidade Federal de Santa Maria, apresentado em maro de 2007, intitulado: Agroindstria Rural enquanto Alternativa para a Agricultura Familiar: estudo de caso no municpio de Chapada/RS, autoria de Aline Weber Sulsbacher.

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PANORAMA MuNdIALtrata-se de antiga prtica na famlia envolvida e tradio na regio (devido a Imigrao Alem) sendo que h um incremento tecnolgico com a adoo de um batedor, o que significa aumento na capacidade de produo em relao forma manual, mas a caracterstica do melado continua diferenciada dos outros produtores da regio e de qualquer indstria que o produza em maior escala. Deve-se salientar que este incremento tecnolgico permitiu um aumento de escala, sendo est hoje limitada pela disponibilidade de matria-prima, o que significa que o pequeno porte deixa de ser insupervel. O limite neste caso a mode-obra familiar, pois a contratao implicaria em pessoas que no possuiriam o saber fazer responsvel pela qualidade deste produto e representaria uma ameaa a padronizao do produto, afetando a expectativa do consumidor fiel e podendo levar a perda do carter artesanal (Silveira & Heinz, 2005). Um contra-argumento pode ser levantado no que tange ao fato de que a mandioca como um produto minimamente processado apresentaria menos espao de diferenciao em relao ao melado, onde mais condicionantes interferem no produto final (vrias fases do processamento), relacionados s habilidades especficas de quem produz. No entanto, o que se quis demonstrar que a adoo de tecnologia no descaracteriza, obrigatoriamente, o produto artesanal, caso se mantenha uma dimenso de arte no processamento. E se os agricultores passassem a produzir bolinhos de mandioca segundo receitas caseiras, poderase re-incluir a diferenciao no processo de produo, mostrando seu carter dinmico. E se tivssemos a produo de mandioca frita tipo snacks seria a partir de um conhecimento adquirido, pois tratara-se de tcnicas desenvolvidas fora do universo cultural dos agricultores. Deste modo, percebe-se a complexidade do objeto em questo, pois pode haver, convivendo em uma mesma estrutura, produtos artesanais e outros que se assemelhem aos produtos industriais (bolinhos de mandioca convivendo com mandioca tipo snacks, no caso utilizado como exemplo)4. Assim, qualquer tipologia no poder dar conta da diversidade de casos possveis, apenas pode orientar a compreenso das diferentes situaes encontradas sem a pretenso de esgotar as possibilidades de espaos de interpolao e/ou transio entre extratos. claro que um aumento de escala pode significar uma descaracterizao do produto e isto implica em romper com um mercado local/regional j conquistado, mas o carter artesanal que est em jogo, por que no caso do melado o fator fundamental para o sucesso do empreendimento. Obviamente que no caso da mandioca podem-se agregar fatores de diferenciao, mas no h nenhuma arte envolvida, mas uma tcnica de produo a ser aprimorada e complexificada. Deve-se aqui lembrar que arte atributo individual derivado de uma experincia pregressa de natureza cultural e tcnica, algo apreendido, independente de vivncias anteriores em relao ao assunto (Silveira & Heinz, 2005). J Lourenzani & Silva (2002), tambm, acentuam o porte da agroindstria como seu diferencial, tomando como base seu faturamento anual como critrio para caracterizar as agroindstrias familiares rurais assumindo como referncia a metodologia utilizada pelo SEBRAE e a legislao dirigida s pequenas e microempresas. Neste enfoque, o produto e o processo de produo no so colocados como fundamentais, o que provoca uma generalizao obstaculizadora das diferenas e no contribui para explicar as potencialidades e limites destes empreendimentos. tambm significativo o fato dos autores no diferenciarem as agroindstrias rurais das urbanas, denotando que o importante a viabilidade econmico-financeira (renda para os empreendedores), no considerando a relao com a agricultura familiar e o desenvolvimento rural. Com base nesta reflexo, propomos a diferenciao entre trs tipos de situaes referentes ao processamento de alimentos no meio rural: a agroindstria caseira (definida com base na inexistncia de espao especfico para processamento e sua relao com o consumo familiar), a agroindstria familiar artesanal (j com espao especfico de processamento, caracterizado pelo processo artesanal de produo) e a agroin4

O mesmo caso pode-se observar em uma AFR dedicada a processamento de uva, onde o vinho pode seguir padres industriais de produo com incremento tecnolgico adotado e os doces produzidos podem seguir receitas artesanais. Ou a produo de cachaa seguindo procedimentos industriais e o acar mascavo e o melado adotando processos artesanais.

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8dstria familiar de pequeno porte (espao prprio de processamento e procedimentos industriais de produzir, diferenciando-se da grande unidade agroindustrial somente pela escala de produo). Devido ao objetivo deste trabalho de relacionar a AFR, em suas mltiplas formas, com o desenvolvimento rural e o fortalecimento da agricultura familiar, apresentamos um marco referencial que indicar um caminho para a caracterizao mais aprofundada dos trs tipos aqui propostos. Tal marco parte justamente dos elementos fundamentais na implantao de AFRs, traduzidas em diferentes capacidades alocadas pela rede de agentes envolvidos.

III. O Enraizamento Social e Cultural das AFRs e as Diferentes Capacidades Alocadas em sua Implantao.Como lembra Mior (2005, 198), as AFRs podem ser analisadas como parte de um processo de criao, evoluo e estabilizao de redes sociais, ligando os espaos de produo ao de consumo alimentar. Deste modo, a AFR no se caracterizaria como uma forma de produo somente, mas como produto de determinadas relaes entre produtor-consumidor, onde o alimento tem dimenso simblica e um sentido histrico-cultural (Guimares, 2001). Para Mior (2005), o processo de constituio de AFRs est relacionado aos recursos humanos envolvidos (capacidade de trabalho, saber fazer herdado, conhecimentos em comercializao), recursos produtivos (matrias-primas, instalaes e equipamentos) e financeiros (poupana interna da famlia). Mas, certamente, conclui: as relaes que mantm com os consumidores e com os demais atores da rede social da qual as AFRs fazem parte so decisivos, pois a ao econmica enraizada socialmente. O clculo econmico agrega-se s prticas tradicionais de comercializao e gesto, havendo uma mudana de racionalidade em um processo complexo de aprendizado, mas no h a subordinao de uma lgica a outra e sim o desenvolvimento de uma lgica nova, superadora das anteriores, nos processos de deciso e ao (Silveira, 2004). Assumimos, tambm, que a consolidao de uma AFR depende da alocao de um conjunto de capacidades de natureza diversa e associada s responsabilidades de atores diferentes no interior da rede. Assim, consideramos que as capacidades instaladas e mobilizveis disponveis em cada famlia ou grupo de agricultores podem significar fator decisivo no sucesso de um projeto de AFR. Conceituamos capacidades instaladas como as instalaes, equipamentos, mo de obra e conhecimento intergeracional disponvel em cada famlia envolvida. Como capacidades mobilizveis, entendemos desde a experincia na atividade de comerciar (habilidade para o brique (Mior, 2005), os chamados recursos ou capital social, incluindo o crculo de confiana diante de consumidores (credibilidade), laos comunitrios, habilidade de gesto e as experincias associativas, que podem representar potencial de ao coletiva (compartilhar servios, transporte e trabalho). No entanto, as AFRs em seu processo de qualificao dos procedimentos de produo, necessitam um conjunto de capacidades adquiridas, ou seja, advindas de experincias novas de aprendizagem e trocas de experincia, alm das capacidades aprimoradas, caso tpico das receitas caseiras re-elaboradas em cursos de processamento de alimentos. Aqui j aparece o papel fundamental dos agentes de extenso rural, sejam governamentais ou no governamentais. Tais capacidades adquiridas ou aprimoradas aparecem concretamente nos programas de formao em gesto, marketing, controle de qualidade, comercializao e outros. A outra fonte de conhecimento e apoio estrutural advm dos servios de apoio tcnico, externos aos empreendimentos e envolvendo crdito, acompanhamento tcnico, aquisio de insumos, apoio logstico para distribuio e redes5 de apoio vinculadas a organizaes tipo associaes de agricultores, coopera5

O objetivo de constituio de redes de AFRs seria juntar esforos em funes em que se necessita uma escala maior e maior capacidade inovativa para sua viabilidade competitiva (Pereira, Neves e Casarotto Filho, 2004, 22). Como exemplo destas redes se pode citar a UCAF Unidade Central das Agroindstrias Familiares do Oeste catar-

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PANORAMA MuNdIALtivas de produo ou crdito, ONGs e movimentos sindicais e sociais. Estas capacidades chamamos de adicionadas, pela sua caracterstica de vir de fora e somar-se ao esforo dos empreendedores. Deste modo, podemos considerar que uma AFR em sua viabilizao agrega, em diferentes nveis, as capacidades instaladas, mobilizveis, adquiridas, aprimoradas e adicionadas. Cabe aos programas de estmulo s AFRs, articular tais capacidades, considerando cada situao representada por nossos trs tipos propostos. Agora, exposto este marco referencial, podemos diferenciar cada tipo proposto tendo como critrio as capacidades presentes em maior ou menor grau em cada tipo, a fim de indicar as aes decisivas a serem efetivadas pelas polticas pblicas.

IV. Caracterizao dos Diferentes Tipos de AFRsA tipologia aqui proposta no tem a pretenso de ser exaustiva, apenas busca contribuir na distino entre diferentes situaes vivenciadas no espao rural, envolvendo a atividade de processamento de alimentos de origem animal ou vegetal. Tal tipologia assume como critrios fundamentais a relao do processamento de alimentos com a dinmica da agricultura familiar, relao com o mercado, validao social ou legal da qualidade e sua vinculao com o saber intergeracional. Nesta tipologia no utilizamos como critrio a matria-prima, porque estamos analisando as AFRs como estratgia de agregao de valor aos produtos oriundos do trabalho familiar, sendo a aquisio de matriaprima uma descaracterizao desta estratgia e resultado de dinmicas especficas a cada empreendimento. Compreendemos que a aquisio de matria-prima advm do supre-dimensionamento de instalaes e equipamentos em relao capacidade de produo da famlia ou grupo, normalmente fruto da inteno de cumprimento de exigncias legais e da incompreenso dos tcnicos envolvidos das possibilidades reais dos agricultores e, at, dos seus objetivos (Sperry, 2002). IV.1. Agroindstria Caseira Este tipo caracteriza-se pela inexistncia de instalaes e equipamentos especficos para processamento de alimentos e pela relao entre consumo familiar e comercializao de excedentes. Como demonstra Zago6 (2002), trata-se de uma atividade habitual na vida dos agricultores familiares, orientada para o consumo e que chega a comercializao pela ampliao do volume produzido e pela aceitao do produto no mercado local, marcada pela total informalidade e nenhum controle sanitrio. Tal realidade, comum nas regies coloniais7, pode trazer problemas sade do consumidor pela omisso do poder pblico que no atua junto a este segmento, por alegar que se trata de atividade ilegal, no se percebendo que algum controle (acompanhamento e qualificao) melhor que nenhum. Tal segmento, normalmente, no possui interesse em adequar-se a legislao, pois isto significaria investimentos alm de sua capacidade de pagamento e assumir despesas com impostos e taxas, ambas as questes implicando na necessidade de aumento de escala. Este aumento de escala significaria re-orientar a organizao da unidade de produo familiar, priorizando o processamento de alimentos. Tal re-orientaoinense, criada em novembro de 1999, tendo como finalidade apoiar, por meio da prestao de servios, os agricultores familiares organizados em grupos e proprietrios de pequenas agroindstrias. Por meio de sua equipe tcnica, presta assessoria nas reas de produo, gesto, controle de qualidade, converso, Marketing, responsabilidade tcnica e comercializao, buscando propiciar produtos com qualidade, procedncia e legalizao (folder de divulgao da APACO Associao dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense, verso impressa e disponvel na pgina www.apaco.org.br).6

Em estudo realizado, no municpio de Arroio do Tigre/RS, 2001 e 2002, a veterinria Heloisa Kohler Zago, servidora da Inspetoria Veterinria do Estado, em sua dissertao de Mestrado em Extenso Rural, demonstra como o volume comercializado de produtos lcteos e de embutidos extremamente significativo para a renda familiar e que com a aceitao do produto, os agricultores tendem a aumentar sua escala, mas no apresentam interesse em sair da informalidade. Argumentam que se tiver que pagar impostos, o produto deixa de ser competitivo e que no teriam condio de assumir o investimento necessrio para legalizao da produo, ajudando a compreender por que o poder pblico no realiza fiscalizao rigorosa sob tal comercializao informal, mesmo que seja reconhecido o problema de sade pblica que pode acarretar.

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O termo colonial refere-se s zonas de Imigrao Europeia, principalmente, italiana e alem, bastante presente no desenvolvimento da agricultura familiar no sul do pas.

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8gera consequncias variadas, como a necessidade de carrear mo de obra para o processamento, retirando de outras atividades, inclusive da produo de matria-prima, instaurando a competitividade interna entre os fatores de produo (Silveira & Heinz, 2005). Tal situao leva a necessidade de uma maior especializao da unidade de produo, abandonando a competitividade sistmica da agricultura familiar, dada pela sua diversificao de fontes de renda (Wilkinson, 1997), o que propicia maior flexibilidade do agricultor diante das flutuaes de mercado (Garcia jr, 1989; Silveira, 1994). Tal aumento de escala, portanto, pode levar a contratao de mo de obra, o que significa incluir trabalhadores que podem no ter o saber fazer que diferencie o produto, mudando suas caractersticas e a necessidade de adquirir matria-prima, o que descaracterizaria a agregao de valor aos produtos da agricultura familiar. Observa-se ainda, outra consequncia a partir da necessidade de buscar ampliar o mercado, extrapola-se o mercado local e sua dinmica de Validao Social da Qualidade (Silveira & Zimermann, 2004) e a caracterstica dos consumidores de preferncia por produtos coloniais (Neumann & Souza, 2006). Deste modo, a agroindstria caseira no tem como objetivo a sua transformao em uma Unidade Agroindustrial (o espao especfico para processamento baseado em normas legais), sendo este um desejo dos agentes estatais, concretizados nos programas de estmulo agroindstria familiar. Como demonstra Zago (2002), se houver possibilidade vai se aumentando o volume de acordo com a demanda e a capacidade da famlia em produzir, sendo a renda obtida, s vezes, de alta significncia para a reproduo da unidade de produo familiar. Neste tipo de processamento, realizado na cozinha do Agricultor (Mior, 2005), as receitas so caseiras e herdadas da tradio familiar e o apoio externo praticamente inexistente. Deste modo, as capacidades instaladas e mobilizveis so responsveis pela sobrevivncia da atividade, sendo que as capacidades adquiridas e aprimoradas, bem como, as adicionadas so poucos presentes. A questo que se impe qual ao do poder pblico seria adequada neste caso, j que as molduras dos programas de estmulo a agroindustrializao dos produtos da agricultura familiar no contemplam a agroindstria caseira. IV.2. Agroindstria Familiar Artesanal Este tipo caracteriza-se pelo carter artesanal do produto final ligado a um saber intergeracional como base dos procedimentos adotados, mesmo que aprimorados por cursos e trocas de experincias para incorporar as Boas Prticas de Fabricao (BPF), visando avanar na qualidade sanitria. As receitas so oriundas da tradio familiar ou das prticas alimentares regionais, mesmo passando por aprimoramento, responsveis por um produto com Identidade Territorial, o que se pode chamar de qualidade superior: atributos sociais (advindos da agricultura familiar), mais limpos (com menos aditivos e conservantes), saudveis (associados a natureza)8 e culturais (aparncia, sabor, cheiro de produto colonial)9 (WILKINSON, 2006). Este tipo de produto inicialmente direcionado ao mercado local/regional, mas segundo sua capacidade de atender as exigncias legais e de logstica, pode-se favorecer de uma tendncia de transformao nos hbitos alimentares, em um movimento em prol do retorno da Qualidade (GOODMAN, 2003). Tal movimento faz crescer um nicho de mercado dedicado a produtos diferenciados da produo industrial em massa, onde os consumidores buscam sade, produtos socialmente e ambientalmente corretos e produtos tpicos da culinria caracterstica de determinada regio (Winter, 2003). Na Europa tal movimento8

Em vrios trabalhos com consumidores percebe-se a identificao dos alimentos adquiridos de agricultores familiares como mais puros e com menos contaminao por pesticidas e conservantes tpicos da produo industrial (Oliveira et all, 1999; Neumann e Souza, 2006). Sabe-se que esta associao no procedente em muitos casos, mas parte de um imaginrio construdo pelos consumidores que aliam o rural ao natural (Froelich, 2004; Guimares e Silveira, 2006). Produto colonial um produto com algum grau de processamento, realizado no interior das propriedades rurais geralmente pelo produtor e/ou sua famlia, por meio de um processo artesanal de produo (Neumann & Souza, 2006). A origem deste termo no Sul do Brasil est vinculada ao processo de colonizao por imigrantes europeus, que chegando ao Brasil recebiam uma frao de terra denominada colnia e desenvolveram uma tradio de processamento de produtos de origem animal e vegetal como forma de conservao dos alimentos em poca que no havia sistemas de refrigerao no meio rural.

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PANORAMA MuNdIALassocia-se a certificao de denominao de origem, vinculando o produto com atributos naturais e culturais da regio onde produzido (PEREIRA, NEVES e CASAROTTO FILHO, 2004; MIOR, 2005). A preocupao com a sade leva os consumidores a buscarem a garantia de que o alimento a ser consumido no prejudicial, e neste tipo de agroindstria h uma composio entre a validao social e a validao legal. s relaes de confiana estabelecidas com os consumidores em canais de comercializao direta, somam-se mecanismos de validao legal quando a agroindstria familiar artesanal vai alcanando os patamares exigidos em lei e ganha o direito de contar com os servios de inspeo sanitria. A Validao Social que funcionava na informalidade pode instituir-se em selo de qualidade10, coletivo ou individual, identificando o produto junto ao consumidor. Como j abordamos no incio deste artigo, o incremento tecnolgico aqui presente no descaracteriza o processo artesanal de produo, caso contrrio eliminaria o diferencial do produto e constituiria um outro tipo de AFR (o qual ser abordado no item 4.3). Aqui, as capacidades instaladas e mobilizveis so fundamentais para consolidao destes empreendimentos, mas percebe-se uma participao decisiva das capacidades aprimoradas e adquiridas nos processos de formao, assim como das capacidades adicionadas pelos agentes externos, pois h todo um conjunto de conhecimentos em gesto, marketing, controle de qualidade e comercializao que so incorporados pelas famlias envolvidas. Cumpre tambm destacar o processo de legalizao, no qual a ao do Estado em crdito e aporte tcnico fundamental. Neste caso, os programas de estmulo agroindstria familiar rural podem confundir a importncia das capacidades adquiridas e adicionadas com a sua predominncia e at a desvalorizao das capacidades instaladas e mobilizveis pelos prprios agricultores. No af de viabilizar as agroindstrias familiares artesanais, os tcnicos-militantes11 no percebem que o ponto de partida e o essencial resgatar e valorizar o saber intergeracional, pois este o elemento diferencial. Deste modo, pode-se cometer uma sequncia de equvocos como se observa na experincia de Silvnia-Go (Sperry, 2002), em que a autoridade do conhecimento tcnico-cientfico utilizada como fora de argumentao em favor de pr-concepes de cunho poltico-ideolgicos que criam assimetrias entre os objetivos dos agricultores e mediadores sociais (Gerhard e Almeida, 2004). Voltaremos a este aspecto na parte final deste artigo. IV.3. Agroindstria Familiar de Pequeno Porte Este tipo caracteriza-se como uma agroindstria convencional de pequena escala, ou seja, uma unidade de processamento semelhante a da grande indstria, apenas de pequeno porte. Normalmente, estes empreendimentos surgem como oportunidade de renda para uma famlia ou grupo de famlias, mas no tendo relao com uma atividade tradicionalmente realizada. Deste modo, no h nenhum saber fazer especfico a ser valorizado (a arte de produzir), mas um saber fazer apreendido com os detentores dos conhecimentos na rea de tecnologia de alimentos. Neste caso, o produto no tem carter artesanal e no se diferencia dos produtos da grande indstria, a no ser pelo fato de serem elaborados no meio rural e em pequenas unidades de produo, o que pode render um atributo social, mas sem apelo a uma identidade territorial e cultural. A consequncia imediata que os parmetros de disputa de mercado passam a ser os mesmos das grandes indstrias, preo, logstica de distribuio e capacidade de promoo da marca. Obviamente, que estes fatores favorecem a grande10

Como exemplo podemos citar o selo Sabor Gacho, institudo por decreto do governo do Rio grande do Sul em 1999 para identificar os produtos que se enquadram nos cnones do Programa de Estmulo Agroindstria Familiar desenvolvido de 1999-2002; ou o Sabor Colonial selo que identifica os produtos advindos de agroindstrias familiares apoiadas pela UCAF Unidade Central das Agroindstrias Familiares do Oeste Catarinense. Denominamos tcnico-militante aquele agente de desenvolvimento que imbudo do desejo de transformar a realidade dos agricultores familiares age a partir de referncias pr-concebidas e acaba por impor ou induzir a adoo de propostas inadequadas situao local e aos objetivos dos agricultores como pod-se observar no trabalho de Sperry (2002). Assim, a imposio de formas coletivas de produo, o superdimensionamento das Instalaes e mtodos de produo que descaracterizam a forma artesanal de produzir e desvalorizam os saberes intergeracionais, podem ser citados como alguns exemplos.

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8indstria, restando um mercado local e regional, onde a vantagem de custos de transao pode favorecer a unidade de pequeno porte. Como frisa Mior (2005), trata-se neste caso de um empreendimento scio-econmico que busca retorno do investimento como qualquer atividade econmica. No so as capacidades instaladas e mobilizveis que orientam o processo e definem o sucesso deste empreendimento, mas as capacidades adquiridas e adicionadas que precisam suprir as necessidades de conhecimento e estrutura. J as capacidades aprimoradas neste caso, normalmente, referem-se s habilidades de gerir e comerciar, bem como, caractersticas mais cosmopolitas que favorecem a disputa pelo mercado e o acesso s polticas pblicas (participao em associaes, cooperativas e movimentos sociais e sindicais).

V. Os Efeitos Perversos e no-pretendidos dos Programas de Estmulo s AFRs O Caso do Sabor GachoNo Estado do Rio Grande do Sul, as preocupaes governamentais com o fortalecimento da agricultura familiar, desenharam em 1999 o Programa de Agroindstria Familiar PAF visando incentivar iniciativas de processamentos da produo de agricultores familiares, assentados da reforma agrria e pescadores artesanais do Estado. Tal programa concebeu uma srie de fatores facilitadores atividade, como a venda dos produtos com nota de produtor, financiamentos em condies especiais, adequao em legislao sanitria, licenciamento ambiental, criao de selo Sabor Gacho para identificao dos produtos e ainda investimentos na capacitao de agricultores e tcnicos envolvidos. Relatrios tcnicos emitidos pela Emater Rs indicam que entre 01/01/2000 e 11/12/2002, o Programa investiu R$ 6.444.387,71 beneficiando 2.719 famlias. Vale lembrar que o Programa esteve oficialmente vigente at o ano de 2002 e que em funo de seu selo identificador, ficou conhecido nacionalmente como Programa de Agroindustrializao Familiar Sabor Gacho. Analisando os documentos oficiais do Programa, evidencia-se a preocupao governamental com os grupos tradicionalmente excludos das polticas pblicas, sem, no entanto, caracteriz-los, como podemos perceber neste trecho referente ao pblico beneficirio: De forma geral, pode-se dizer que todos os agricultores familiares so potencialmente prioritrios deste programa de apoio agroindstria familiar de pequeno porte.... Para os pressupostos deste trabalho, esta generalizao pode acarretar em distores funcionais, dificultando delimitaes necessrias para a articulao e atuao eficaz dos segmentos envolvidos no Programa (Emater, Ceasa, Fepagro, Fepam, CISPOA, etc.)12 e real alcance dos objetivos idealizados. A no observao da heterogeneidade da agricultura familiar e suas especificidades podem colocar, em um mesmo grupo, iniciativas fundamentadas em logstica e interesses distintos. O caso do processamento de alimentos voltados ou no ao mercado, a caracterizao deste, as reais motivaes e elementos presentes no processamento (fatores culturais, legais, sanitrios, adicionados ao produto) e, principalmente, as ambies desenhadas pelos diferentes grupos, inevitavelmente exige reflexes e aes diferenciadas por parte das polticas pblicas. Neste sentido, surge-nos a pergunta: para quem foi pensada esta Poltica? Os documentos respondem: Como prioritrios, entendemos aqueles agricultores que j possuem algum tipo de organizao social (formal ou informal), as pequenas e mdias agroindstrias espalhadas pelo RS e os estabelecimentos Clan-

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rgos pblicos ligados ao Governo do Estado com funes de Extenso rural (Emater), Pesquisa (Fepagro), Fiscalizao e proteo ambiental (CISPOA e Fepam, respectivamente) e ainda de compra e abastecimento de alimentos (Ceasa). Todos includos no PAF como suporte de seu funcionamento.

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PANORAMA MuNdIALdestinos, todos enquadrados em critrios de dimensionamento de propriedade, forma de explorao desta e rendimentos obtidos. Certamente, as iniciativas mediadas pelo Programa, deveriam apresentar diferenciaes entre os diferentes estgios produtivos do pblico dito prioritrio, no entanto, o que se propunha era uma poltica nica de insero de empreendimentos legalizados no mercado de alimentos. Para tanto, estudos de viabilidade econmica guiaram elaborao dos projetos de financiamento, projetando estabelecimentos idealizados por mediadores tcnicos na necessidade de enquadramento destes as normas previamente estabelecidas, sem levar em considerao as diferentes situaes tcnico-organizacionais destes estabelecimentos e sua tipologia. Sob este olhar quem foram os reais beneficirios? A realidade permite argumentar: Com a exigncia presente nos critrios de funcionamento do Programa, de enquadramento dos estabelecimentos em alguma instncia regulamentar legal (Servios de Inspeo Sanitria, municipal, estadual ou federal), automaticamente foram excludas as iniciativas de agroindustrializao caseira (muitas vezes realizadas na cozinha, ou sem local especfico), j que seria uma contradio apoiar tais estabelecimentos ( margem da legalizao). Deste modo, devido ao desinteresse destes empreendimentos em enfrentar o traumtico processo de adequao s exigncias legais, tais estabelecimentos ficaram a margem das aes dos programas, o que ocasionou sua permanncia na informalidade e a ausncia de apoio na melhoria da qualidade de seus produtos e investir na re-estruturao de seu processo produtivo. Tambm foram silenciosamente excludos, os estabelecimentos sem garantias patrimoniais para aquisio de financiamento, valores esses em mdia 1,5 vezes maiores que o investimento necessrio para funcionamento legal dos empreendimentos (valores apontados pelos projetos de viabilidade econmica). Agrava-se ainda mais este quadro, quando usamos como referncia os agricultores assentados da Reforma Agrria, que em muitas vezes no possuam sequer a escritura de posse das terras que trabalham (RAUPP, 2005). Conclui-se que as aes desenvolvimentistas do PAF Sabor Gacho beneficiaram de forma geral dois pblicos, representando tipos distintos, o que gerou resultados consequentemente diferenciados: Pblico 1: Estabelecimentos com alguma trajetria de agroindustrializao, ou seja, agroindstrias familiares artesanais j constitudas, beneficiadas por vrios itens oferecidos pelo programa (formao, cursos de capacitao etc.), principalmente, linhas de financiamento para aquisio de equipamentos, reestruturao de espao fsico para processamento, embalagens (todos no intuito de legalizao do empreendimento). Ressalta-se aqui um tipo de empreendimento processador de alimentos caracterizado pela identidade com o produto. O Know-how ainda est intimamente ligado com as questes geracionais oferecendo um produto de identidade territorial, onde a cultura o elemento que sustenta a iniciativa empresarial. A forma artesanal de elaborao dos produtos e a organizao da produo so colocadas em cheque, desafiando as famlias envolvidas a um sistema de gesto que exige maior escala de produo para maximizao de sua capacidade de pagamento e a padronizao dos produtos segundo referncias legais. Como resultado se observa que muitas dessas agroindstrias desapareceram, mesmo tendo poucos dados estatsticos oficiais, e outras (em menor nmero) consolidaram-se, por meio de uma lgica que levou a perda da tipicidade cultural, gerando produtos indiferenciados da indstria convencional. Deste modo, transformaram-se em Agroindstrias Familiares de Pequeno Porte, voltadas para um mercado maior, mais exigente em escala, que alcanaram padronizao (como atributo de qualidade) e consequente perda de identidade territorial.

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8A Valorizao do produto artesanal como fator diferenciador de mercado, nem sempre foi compreendido e, assim, descartado como critrio orientador do processo de produo a ser adotado. Pblico 2: Estabelecimentos j legalizados, com certo grau de caminhada que ancorados na possibilidade de crescimento, aumentaram seus empreendimentos financeiros, adaptando seus produtos a escalas maiores de produo e comercializao, inserindo-se em mercados maiores, mais competitivos e exigentes em logstica e qualidade (nos sentido amplo e restrito13). Estes, caracterizados inicialmente como Agroindstrias Familiares de Pequeno Porte, passaram a atuar em uma outra dimenso produtiva. A logstica da necessidade de maiores escalas, diluiu ou adaptou o Know-how anteriormente presente na elaborao dos produtos, em sistemas mais padronizados de produo (processos industriais), fundamentais para o alcance de maiores escalas (exigidas pelo grande mercado) que passa a ser o universo desses empreendimentos. O que se observa neste universo a transformao da base produtiva, onde empreendimentos estimulados pelo PAF, ampliam suas iniciativas e modificam suas relaes com o produto e seus consumidores, perdendo ou diminuindo sua identidade territorial e no mais atuando em uma dimenso artesanal e sim industrial. De uma forma mais geral, quando confrontamos os resultados gerados pelo Programa (mesmo que no existam muitos trabalhos que precisem esta estatstica) com os objetivos pensados por este, percebemos um desencontro entre a moldura proposta e a prtica adotada. Entendemos que este desalinho em muito se explica pela utilizao de uma nica estratgia para diferentes situaes. O caminho da legalizao para os estabelecimentos processadores de alimentos se d com impactos diferenciados segundo o tipo em questo, questionando esta poltica como instrumento de fortalecimento e desenvolvimento da agricultura familiar. Tal contexto enseja vrios questionamentos: de quem a ambio de sair da informalidade? O que esta significa, para as diferentes tipologias levantadas por este trabalho? E ainda: Como pensar uma poltica de incentivo a estabelecimentos processadores de alimentos sem gerar desencontro entre caractersticas desejadas e atributos adquiridos?

VI. Consideraes finaisA partir do analisado anteriormente, nos parece claro a existncia de um desajuste entre os objetivos traados pelos produtores e os caminhos formatados pelas polticas pblicas por meio de seus mediadores sociais (agentes extensionistas aos quais cabem articular as dimenses tcnicas e polticas). Ao se pensar a legalizao de pequenos empreendimentos como estratgia para o desenvolvimento e fortalecimento da agricultura familiar, uma srie de aparatos tcnico-burocrticos so montados no intuito de oferecer amparo a tais iniciativas. O Caso dos estudos de viabilidade econmica dos projetos encaminhados ao PAF um exemplo disso, pois estes eram pensados na lgica da legalizao como nica possibilidade de entrada desses produtos no mercado, amparados por uma legislao excludente e positivista, normatizando regras, hbitos e KnowHow. Salientemos, ainda, que, em muitos casos, esta no era a estratgia mais cabvel, seja em funo da falta de preparo das famlias envolvidas ou o desconhecimento da lgica empresarial (estratgias, competitividade, gerenciamento da produo, entre outros) para enfrentamento da realidade no mdio prazo, no sentido da iniciativa ser capaz de gerar rendimentos suficientes para cumprimento das obrigaes bancrias e satisfao dos prprios agricultores. Respondendo a quem interessa a legalizao destes empreendimentos, podemos afirmar como Sperry (2002), que interessa aos promotores de polticas pblicas e aos agentes tcnicos envolvidos, mas para os agricultores um elemento estranho de difcil absoro em sua lgica de organizao da produo13

Para Prezzotto (1999) existem duas formas de atribuir qualidade aos alimentos: Qualidade Restrita, que se refere aos atributos de legalizao sanitria, enquadramento fiscal e valores nutricionais presentes nos produto e Qualidade Ampla, associando alimento sade, onde alm dos mencionados pela qualidade restrita, adicionam-se elementos como questes ecolgicas, culturais, facilidade de uso e aspectos sociais organizativos, presentes na elaborao do produto.

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PANORAMA MuNdIAL(Gerhard e Almeida, 2004). Como salienta a autora, a formao profissional torna-se fundamental e quando ausente ou precria ameaa o sucesso da estratgia. Verificou-se, no programa aqui analisado, a deficincia na estrutura de apoio para oferecer as capacidades adicionadas fundamentais as AFRs. Ousaramos levantar a hiptese de que enquanto no entendermos a heterogeneidade da agricultura familiar como elemento determinante para a aplicabilidade de iniciativas de enquadramento de agricultores s polticas pblicas, estaremos ainda operando no sentido de transferncia de tecnologias e modelos de produo e gesto, to prejudicial diversidade e riqueza dos sistemas de produo, sua territorialidade e reproduo. E mesmo gerando aumento de trabalho e renda para as famlias envolvidas, pode-se reproduzir uma incapacidade de gerar desenvolvimento rural, se este for concebido como uma dinmica sinrgica entre os diferentes setores econmicos, capazes de criar um crculo virtuoso de investimentos, ocupao no espao rural e melhoria da qualidade de vida das famlias de agricultores. Saber reconhecer as diferenas nas capacidades instaladas e mobilizveis, parece-nos o ponto de partida para a construo de estratgias de implantao de polticas de agregao de valor aos produtos da agricultura familiar. a partir deste patamar diferenciador que os agentes pblicos podem definir quais capacidades devem ser aprimoradas e adquiridas pelos agricultores e quais aes so necessrias adicionar ao processo de instituio de AFRs, visando sua consolidao. Tal processo de construo coletiva deve ser radical no aspecto de respeitar os objetivos dos agricultores e sua anlise da situao que vivenciam. Terminamos indicando que as tipologias aqui apresentadas podem ser aprimoradas neste processo de leitura coletiva da realidade de cada famlia envolvida em processamento de alimentos, tendo as diferentes capacidades como critrio de anlise.

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PANORAMA MuNdIAL

Neoliberalismo, uso de Agrotxicos e a Crise da Soberania alimentar no Brasil*ttulo Original: Neoliberalism, pesticide consumption and food sovereignty crisis in BrazilAry Carvalho de Miranda; Josino Costa Moreira; Ren de Carvalho; Frederico Peres. Vice-presidncia de Servios de Referncia e Ambiente, Fundao Oswaldo Cruz. Avenida Brasil 4.365/Pavilho Mourisco, Sala 18, Manguinhos. 21040-900 Rio de Janeiro RJ. [email protected]; Faculdade de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Escola Nacional de Sade Pblica, Fundao Oswaldo Cruz.

ResumoA adoo do modelo poltico neoliberal pelos pases da Amrica Latina, entre o final da dcada de 1980 e o incio da dcada de 1990, configurou, entre tantos outros impactos, uma mudana significativa no processo de produo agrcola, com claro incentivo agroindstria de exportao, sobretudo aquela baseada em monoculturas latifundirias (soja, milho, algodo etc.). Tal mudana, cujo mote principal era o aumento da produtividade agrcola, foi suportada, em grande parte, pelo implemento de novas tecnologias de produo, em especial uma srie de agentes qumicos utilizados tanto para o controle e o combate a pragas quanto para o estmulo do crescimento de plantas e frutos. O impacto do uso extensivo e indiscriminado destes agentes para as atuais e futuras geraes de trabalhadores incalculvel, assim como difcil dimensionar os danos ambientais e sociais associados. No presente artigo, discutido o papel do uso de agrotxicos na produo agrcola, contextualizando o panorama da produo agrcola nacional e regional e as decorrncias econmicas, sociais, ambientais e sanitrias das polticas neoliberais voltadas para o campo. Referncia: Cinc. sade coletiva vol.12 No 1 Rio de Janeiro/ 2007 Doi: 10.1590/S1413-81232007000100002

AbstractThe adoption of neo-liberal economic models in Latin American countries between the late 1980s and early 1990s has led to, among other impacts, a significant change in the rural production model, with a clear incentive to exportation-oriented agribusiness, especially that based on extensive monoculture (soybean, corn, cotton etc.). This change, primarily focused on rural production increment, was supported by the implementation of new production technologies, especially the use of chemical agents for crop protection and pest control. The impacts of the indiscriminate and extensive use of these chemical agents for actual and future generations of rural workers are indeterminate. Furthermore, it is hard to estimate the dimension of correlated environmental damages. In the present article, the role of pesticides use in rural production is discussed, contextualizing the local and regional rural production panorama and the impacts economic, social, environmental and sanitary of neo-liberal rural production policies.

I. IntroduoA poltica econmica brasileira se encaminhou gradualmente para o neoliberalismo a partir da dcada de 90. Como bem conhecido, o neoliberalismo assume que a regulao pelo mercado o modo mais*

Artigo originalmente publicado em espanhol, traduzido para o portugus pelos autores e reproduzido, aqui, com autorizao do organizador da obra original. Referncia completa do artigo original: Miranda AC, Moreira JC, Carvalho R e Peres F. Neoliberalismo, el Uso de Pesticidas y la Crisis de Soberana Alimentaria en el Brasil. In: Breilh J, organizador. Informe Alternativo Sobre La Salud en America Latina. Quito: CEAS; 2005.

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8eficiente de controlar as atividades econmicas; logo, vrias atividades como, por exemplo, o controle de preos, foram transferidas para o mercado durante este perodo1. Este processo, por sua vez, acabou levando o pas privatizao de seus ativos, a uma desregulao econmica extensiva e liberalizao do cmbio, do comrcio exterior e da conta da balana comercial1. A liberalizao comercial traz consigo a ameaa da competncia das importaes, que restringe os preos fixados pelas empresas nacionais (assim como os salrios de seus trabalhadores). Ademais, a liberalizao da balana comercial limita a capacidade do Estado de monetarizar seu dficit. A combinao destas polticas pode, de fato, eliminar eficientemente a alta inflao, mas a um custo elevado. O consenso neoliberal esperava que estas medidas criassem ambiente propcio entrada de capital e aumento do investimento. De fato, no Brasil a situao oposta tem sido observada, a taxa de investimentos tem declinado de uma mdia de 22,2% do PIB na dcada de 80 para 19,5 % em 90 e 18,8% entre 2000 e 2003. Sob a poltica neoliberal, o PIB brasileiro tem crescido a taxas abaixo daquelas observadas em outros pases. Entre 1994 e 2003, esta taxa foi de apenas 2,4 %, contrastando com aquela observada entre 193380, que cresceu a uma mdia de 6,3 % por ano1. As baixas taxas de crescimento econmico observadas no pas durante um longo perodo, necessariamente, afetam o nvel de emprego. A taxa de desemprego aumentou notadamente, em especial nas seis maiores reas metropolitanas do pas. Em So Paulo, o desemprego aberto aumentou de 6%, ao final dos anos 80, para 13% ao final dos 90. Tomando-se em conta a precarizao do emprego, o desemprego escondido e os trabalhadores desassistidos as taxas de desemprego, neste estado, chegam a 20% da fora de trabalho. A desestabilizao do mercado de trabalho brasileiro pode ser evidenciada, tambm, pelo rpido crescimento do mercado informal de trabalho a partir do final da dcada de 90. O nvel de renda e sua distribuio desigual nos grupos populacionais brasileiros so outros fatores que contribuem para o crescimento da pobreza e a marginalizao social. A renda mdia da populao brasileira tem decrescido constantemente nos ltimos anos, fundamentalmente devido ao atraso econmico. A renda per capita brasileira caiu de 21,6% da mdia da renda dos pases desenvolvidos para 16,5% em 1995 e 15,5 em 2001. Adicionalmente, o Brasil ainda se configura como um dos pases com maior desigualdade social no mundo, e sabe-se que o modelo neoliberal adotado por aqui no levou a uma mudana significativa desse quadro1. As mudanas econmicas que marcaram os anos 90 continuam afetando o pas. O Brasil herdou, ento, das transformaes econmicas que marcaram a dcada de 90, importantes fragilidades estruturais que ainda hoje condicionam seu desenvolvimento econmico e diminuem sua capacidade de desenvolver polticas dotadas de um maior grau de autonomia: uma elevada fragilidade externa e o crescimento acelerado de sua dvida interna. O servio da dvida externa e os crescentes dficits nas contas de capital e de servios acentuam a dependncia brasileira da atrao de capitais externos. Os elevados supervits primrios necessrios ao pagamento da dvida interna diminuem sobremaneira a capacidade de ao financeira do estado. Assim, a to necessria retomada sustentada do desenvolvimento econmico nacional tem, como pr-condies, a gerao de elevados supervits externos e a mudana do perfil da dvida interna.

II. Polticas de produo agrcolaA conjuntura externa relativamente favorvel (crescimento do comrcio internacional e relativa melhoria dos termos de troca) facilitou a obteno de resultados econmicos externos positivos, em particular em 2004. As exportaes agrcolas foram o principal determinante dessa evoluo. As vendas ao exterior realizadas pelo setor de agronegcio totalizaram, em 2004, 39 bilhes de dlares, valor 27% superior ao obtido no ano anterior. Essas exportaes representaram 40% do volume total exportado pelo pas, contribuindo de maneira determinante para o supervit da balana comercial do pas.

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PANORAMA MuNdIALNo contexto da economia globalizada, o Brasil vem se afirmando, assim, como um grande exportador de commodities agrcolas. A recente evoluo favorvel de preos e quantidades exportadas no deve fazer esquecer, entretanto, as importantes fragilidades estruturais da agricultura brasileira, ainda mais por tratar-se de uma evoluo conjuntural que pode a qualquer momento ser revertida. Alguns aspectos, em particular, chamam a ateno. As exportaes brasileiras de base agropecuria permanecem concentradas em um nmero restrito de produtos bsicos, cujo ciclo de vida se encontra em fase de crescimento lento (soja em gro, caf, acar, carne bovina, frango e pasta de papel). Seu crescimento no setor de produtos agroindustriais, produtos de qualidade e de maior valor agregado tem sido lento. A possibilidade de contribuir ao rpido aumento das exportaes permanece tributria da evoluo favorvel dos preos no mercado internacional. Ao mesmo tempo, nossa insero no comrcio internacional do agronegcio vem sofrendo uma especializao regressiva. O Brasil passou, nos anos 70, de exportador de produtos agrcolas in natura, para exportador de produtos agroindustrializados. Com a globalizao, entretanto, a composio das exportaes brasileiras em particular do complexo soja vem se alterando em detrimento dos produtos mais industrializados. A internalizao da produo de mquinas, equipamentos e insumos constituram-se numa pr-condio da modernizao da agricultura brasileira. Da dcada de 90 para c, entretanto, o Brasil vem se tornando mais dependente das importaes de insumos e a balana comercial relativa a insumos e equipamentos agrcolas tornou-se deficitria. O principal fator de competitividade da agricultura brasileira permanece sendo a ampla disponibilidade de terras, que permite expandir a produo rapidamente e a baixos custos. Essa vantagem competitiva carece, entretanto, de sustentabilidade, pois exerce forte presso sobre o meio ambiente. A crescente incorporao de novas terras ao cultivo, sobretudo de soja (a rea plantada com soja cresceu 39% nas regies Sul e Sudeste e 66% na regio Centro-Oeste, nos ltimos trs anos), embora ocupe principalmente terras dedicadas pecuria, contribui para o desmatamento (estima-se que cerca de 1,8 milhes de ha foram desmatados em 2002/3) ao expulsar a pecuria para as reas de vegetao nativa (mata ou cerrado). Os impactos que a expanso da monocultura da soja tem trazido para o Brasil vem sendo objeto de vrios estudos (como os Indicadores de Desenvolvimento Sustentvel, do IBGE2 e Agricultura e Meio Ambiente, do WWF3). De acordo com o Programa de Pesquisa Agricultura e Meio Ambiente patrocinado pela WWF3, a cadeia da soja no Brasil movimenta aproximadamente US$ 32 bilhes anualmente e emprega cerca de 5,4 milhes de pessoas, constituindo-se num importante gerador de divisas. No entanto, esse sucesso comercial trouxe consigo desequilbrios econmicos, sociais e, de forma particular, ambientais. O aumento da rea plantada com soja no Brasil resultou na incorporao de terras virgens produo, bem como na substituio de outros cultivos por soja. Alm disso, prticas inadequadas de cultivo intensivo provocaram sria degradao ambiental, como a eroso e a perda de solos frteis, o assoreamento e a poluio de importantes cursos dgua, o desaparecimento de nascentes e a perda de biodiversidade. A elevao do preo da soja no mercado internacional e a promessa de maior produtividade e mais baixo custo de produo, oferecidos pela soja transgnica, foram os fatores responsveis pelo aumento observado nesta monocultura. A opo do governo brasileiro pelo incentivo produo de soja como uma commodity fez do Brasil um dos maiores produtores mundiais deste cereal, com sua produo basicamente destinada exportao, visto que este produto no faz parte da cultura alimentar do brasileiro. O plantio da soja transgnica no Brasil comeou ilegalmente em 1997, mas sua legalizao foi feita em 2003, por meio da Medida Provisria 223/04. Em 2004, de acordo com dados do International Service for Aquisition of Aplication in Agrobiology (ISAAA apud Folha de So Paulo4), a rea plantada de soja transgnica no Brasil teve um aumento de 66%, chegando a 5 milhes de hectares, com o consequente aumento da quantidade de herbicida utilizada. Isto corresponde cerca de 22% da rea total utilizada para a plantao de soja no pas. Entre 2003 e 2004, o crescimento do cultivo de soja transgnica foi maior entre os pases em desenvolvimento (35%) que entre os pases desenvolvidos (13%). O ISAAA estima ainda que 90% dos

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8agricultores que plantaram soja transgnica em 2004 so de pases em desenvolvimento e em sua maioria produtores familiares. Tal fato particularmente preocupante (e, aqui, sem levar em considerao todos os potenciais riscos que a disseminao, na natureza, de plantas geneticamente modificadas traz consigo), visto que a principal semente de soja geneticamente modificada que se tem disponvel no mercado a Soja RR, resistente ao herbicida glifosato, ambos produzidos e comercializados pela Monsanto Co. Alm dos aspectos ticos envolvidos no cultivo/comercializao de plantas transgnicas, os possveis riscos que estas podem apresentar para a sade humana e para o meio ambiente tem sido tambm negligenciados. Desconsidera-se a ameaa biodiversidade; diminuio da riqueza e variedade de alimentos e ao fato de poderem tornar os agricultores dependentes das companhias produtoras de qumicos e de biotecnologia por meio do comrcio de sementes estreis e/ou de produtos qumicos que tenham que ser adquiridos anualmente. Igualmente desprezam-se as dvidas sobre o impacto sade humana que incluem: alergenicidade, transferncia de genes, especialmente de genes de resistncia a antibiticos dos produtos geneticamente modificados para bactrias e clulas no trato intestinal, ou troca de genes entre as plantas geneticamente modificadas e plantas no modificadas trazendo ameaas indiretas segurana alimentar5. Ou seja, ignora-se o Princpio da Precauo adotando-se como justificativa aspectos econmicos e de comrcio internacional. Prevalecem, ento, os interesses do capital em detrimento da sade das populaes e da preservao do meio ambiente. Em um pas como o Brasil, o crescimento das exportaes agrcolas no incompatvel com a expanso da quantidade de alimentos colocados disposio da demanda interna. Na maioria das situaes, o aumento das exportaes devido a preos internacionais favorveis eleva os preos internos, mas permite tambm melhorar a eficcia do sistema produtivo. A restrio da demanda interna no uma condio necessria do aumento das exportaes. Ao contrrio: o baixo crescimento da demanda interna, como ocorre hoje, aumenta as diferenas entre capacidade potencial de produo e produo efetiva, e resulta numa dependncia crescente da evoluo da agricultura demanda externa. Todavia, apesar da atual capacidade produtiva do setor agrcola brasileiro, importantes segmentos da populao apresentam dificuldades de acesso seguro e regular aos alimentos de que necessitam. Essa contradio mostra que, no caso brasileiro, a questo do acesso aos alimentos no mais uma questo de oferta e sim essencialmente de demanda, ou seja, de distribuio de renda, de forma a permitir o acesso de todos ao consumo dos alimentos essenciais. Um outro aspecto da situao agrria brasileira a ser considerado a formao de um excedente de mo-de-obra sem destinao conhecida, pois a desestruturao da policultura tradicional, que propiciava uma ocupao estvel da terra, foi feita sem alterao da estrutura de propriedade. Em seu lugar, no surgiu uma moderna agricultura baseada na pequena produo, que tambm seria capaz de assegurar a ocupao estvel da terra. Como consequncia, reduziram-se as oportunidades de emprego, por causa da crescente mecanizao, e aumentou a urbanizao da prpria populao empregada na agropecuria, com a expulso dos trabalhadores residentes no campo6. Com este contexto, temos configurado o campo de batalha onde esta realidade se choca com outra, construda nos ltimos vinte e um anos, a partir da organizao dos trabalhadores expulsos da terra pelo capital. Organizados por meio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST, milhares de trabalhadores se mobilizam, com forte grau de organizao e ao poltica, em torno de um programa que assume os seguintes objetivos gerais: 1. 2. 3. 4. Construir uma sociedade sem exploradores e onde o trabalho tem supremacia sobre o capital. A terra um bem de todos. E deve estar a servio de toda a sociedade. Garantir trabalho a todos, com justa distribuio da terra, da renda e das riquezas. Buscar permanentemente a justia social e igualdade de direitos econmicos, polticos, sociais e culturais.

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PANORAMA MuNdIAL5. Difundir os valores humanistas e socialistas nas relaes sociais. 6. Combater todas as formas de discriminao social e buscar a participao igualitria da mulher. Como uma das alternativas polticas de enfrentamento desta realidade, o governo brasileiro instituiu, em 1995, a linha de Ao PRONAF Crdito Rural como parte do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, com o objetivo de promover um maior apoio financeiro s atividades agropecurias desenvolvidas com o emprego direto da fora de trabalho do agricultor e de sua famlia. A agricultura familiar no Brasil gera 74% dos empregos no campo; responde por 31% da produo de arroz; 67% da produo de feijo; 52% da pecuria de leite e foi responsvel por 1/3 das 50 milhes de toneladas de soja, na ltima safra. At o ano 2000, este programa envolveu cerca de 4 milhes de contratos a um custo de cerca de R$ 10 bilhes de reais. Mais recentemente, o governo anunciou gastos de cerca de R$ 7 bilhes de reais em apoio agricultura familiar no binio 2004/2005.

III. O uso de agrotxicos no pasUma avaliao dos impactos deste projeto (PRONAF Crdito Rural) realizada por meio de dados coletados com a aplicao de questionrios a famlias de pequenos produtores rurais com renda familiar de at US$ 220.00, que receberam e no receberam financiamento para a safra de 2000/2001, envolvendo 2.299 estabelecimentos agropecurios em 21 municpios de oito estados brasileiros (Alagoas, Bahia, Cear, Maranho, Esprito Santo, Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul) relata a constatao de associao positiva entre o PRONAF e o aumento da eroso e da frequncia do uso de pesticidas, no sendo observada associao positiva entre o PRONAF e aes de recuperao de reas degradadas. Uma das recomendaes deste estudo foi de que o PRONAF deveria dar maior ateno aos possveis danos ambientais e humanos associados aos pacotes tecnolgicos produtivistas utilizados e resultantes do uso intensivo de agrotxicos. Assim, recomendava-se que o PRONAF fosse alm do simples financiamento de prticas produtivas, induzindo mudanas nos sistemas produtivos e diminuindo a dependncia de insumos externos. Quanto ao efeito deste programa sobre a pobreza dos domiclios, nenhuma associao significativa foi observada7. A constatao de associao positiva entre o PRONAF e o aumento da eroso e do consumo de agrotxicos mostra, uma vez mais, a ausncia de orientao tcnica especializada e adequada a estes agricultores. De fato, esta carncia de orientao tcnica tem sido observada em inmeros trabalhos realizados8 e se constitui em um elevado fator de risco sade humana e ambiental. Mais adiante, veremos que tal fato acontece, muito em parte, porque se transfere para o agricultor a responsabilidade sobre a utilizao correta destes insumos. Esta utilizao normalmente requer cuidados especiais que no so adotados e que tem contribudo para nveis de exposio humana, mais elevados que os aceitveis. O modelo qumico-dependente adotado nas polticas agrcolas brasileiras foi introduzido na dcada de 60 e intensificado na dcada de 70 por meio do Plano Nacional de Defensivos Agrcolas (PNDA), sustentado pelo discurso modernizador da economia rural9. Considerando os gastos mundiais com agrotxicos, entre 1983 e 1997, eles aumentaram de 20 para 34 bilhes de dlares/ano10 e produzem, a cada ano, segundo a OMS, entre trs a cinco milhes de pessoas contaminadas. Este quadro ainda mais preocupante em pases em desenvolvimento, como o Brasil, em que a incorporao de tecnologias baseadas no uso intensivo de produtos qumicos feita sem a implementao de polticas claramente definidas relacionadas comercializao, transporte, armazenagem, utilizao, normas de segurana e conhecimentos dos riscos associados. Assim, nestes pases, que so responsveis por 20% do consumo mundial de agrotxicos, esto 70% dos casos de intoxicao por estes produtos. A Amrica Latina foi a regio onde se observou um maior aumento no uso de agrotxicos (aproximadamente 120%), muito em parte pela influncia do Brasil, que consome cerca da metade do montante de toda a regio. Entre 1964 e 1991, o consumo de agrotxicos no pas aumentou 276,2 %, frente a um

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INFORME AGRONEGCIOS Edio 8aumento de 76% na rea plantada11. J no perodo entre 1991 e 2000, observou-se um aumento de quase 400% no consumo destes agentes qumicos, frente a um aumento de 7,5% na rea plantada.5 Somente em 1989 o pas gastou US$ 28,4 milhes na importao de agrotxicos, aproximadamente cinco vezes mais do que em 1964 (US$ 5,12 milhes), poca em que estes produtos comearam a surgir no mercado nacional. No perodo de 1990 a 2000, os gastos com a importao de agrotxicos aumentaram em 638%, de US$ 41,6 milhes para US$ 265,8 milhes, equivalente metade do gasto de toda a Amrica Latina.5

IV. O uso de agrotxicos e a sade humanaA ampla utilizao destes produtos, o desconhecimento dos riscos associados a sua utilizao, o consequente desrespeito s normas bsicas de segurana, a livre comercializao, a grande presso comercial por parte das empresas distribuidoras e produtoras e os