retrato de lia

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RETRATO DE LIA

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Page 1: Retrato de Lia

RetRato de Lia

Page 2: Retrato de Lia

16 de setembro de 2014 \ Rio de janeiro

RetRato Patricia Saboia e Silvio Ferraz

Page 3: Retrato de Lia

de Lia

Page 4: Retrato de Lia

Copyright © 2014

c o n c e p ç ã o e d i r e ç ã o e d i t o r i a l

Mariana Carvalho

d e s i g n g r á f i c o

Victor Burton

a s s i s t e n t e d e d e s i g n

Luisa Primo

t r ata m e n t o d e i m ag e n s

Cláudia Mendes

i m p r e s s ã o e ac a b a m e n t o

Gráfica Santa Marta

Page 5: Retrato de Lia

“O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”.

J o ã o U b a l d o r i b e i r o , in Viva o Povo Brasileiro

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Page 7: Retrato de Lia

Um tipo inesqUecível13

o Despertar21

laços De Família35

o chamaDo De FreUD59

no reino Das ÁgUas claras67

netos, Filhos com açúcar87

lia.entertainment.com97

o Dilúvio107

reganDo sementes115

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Como uma leitora apaixonada e incondicional, encontramos na ideia de fazer este livro uma forma de te

homenagear pelos teus 70.A simples intenção foi mostrar o carinho

de tantas pessoas que a cercaram e cercam ao longo de sua vida, e como você deixou e deixa marcas importantes por onde passa. Como fez a diferença na vida de tantas pessoas e como, com sua personalidade forte, vem fazendo a diferença no mundo.

Foram muitas histórias construídas ao longo de sua vida e infinitas ainda a construir.

Como o que vale é a visão de cada um, certamente existem muitas coisas que se perderam na memória e podem estar um pouco distorcidas, talvez mais de acordo com o desejo dos amigos que as relembram, mas o que vale é a essência da homenageada.

Receba com todo nosso amor, que é imenso, o livro “Retrato de Lia”, na certeza de que é um orgulho e uma felicidade enorme ter você participando de nossas vidas.

m a r i a n a , m a r c e l o , m a r c o s e s e r g i o

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AgradecimentosNossos agradecimentos à Mariana, curadora

do projeto, e a todos aqueles que nos ajudaram a costurar esta colorida colcha de retalhos das memórias do passado, para que pudéssemos perpetuar as histórias da nossa querida Lia.

Patricia Saboia e Silvio Ferraz

À família de Lia – Sergio, Marcos e Renata, Marcelo e Gabriela, Mariana e Rodrigo. Aos netos Renan, Felipe, João, Maria, Daniel, Francisco, Sofia, Bernardo, Maitê e Luca. Às suas irmãs Regina e Mônica. Aos sobrinhos Cristiana e Gustavo. Às cunhadas Ana Maria e Maria Constança.

Aos colaboradores e parceiros do Family Office, representados por Geraldo Nascimento Mainart e Cristina Maria Mainart.

Da Fazenda Águas Claras, André da Silva Gonçalves, Daniela dos Santos Oliveira, Dimas Zanatta, Iracy Pereira Quintas, Karina Gonçalves Dias Mello, Loide Quintas, Maria Rosângela da Silva, Marília Soares Prata, Vicente Araújo Chaves.

A alguns grandes amigos de Lia, porta-vozes de tantos que ela reuniu pela vida, como Baby

Palhares, Beatriz Rego de Andrade Maciel, Bettina Kligerman, Cookie Richers, Ema Genijovitch, Guilherme Libanio Carvalho, Hilda Kopff, José Antonio Fichtner, Laura Pederneiras, Maria Cristina de Lamare Rego Barros, Maria Cristina Ferraz Barcellos, Maria Elisa Padilha, Maria Stella Proença Barata, Maria Tereza Maldonaldo, Marilu Schneider, Paulo João Raad.

Ao time do Rio, Adenir Soares Gomes, Albertina dos Santos, Arthur Oscar Reis, Eliene Moreira de Souza, José Alves Machado, Regina Celia de Oliveira.

À Cruzada do Menor, Ana Paula de Carvalho, conselheiro Belmiro Carlos Nunes, Cátia Regina Pinto Neto, Núbia Freitas de Carvalho, Tânia Cristina Isidoro, Vanilda Oliveira da Silva Melo. Ademilde Cabral (colaboradora) e Ana Lucia Gioseffi, (do Sebrae).

À Renasce São José, Antonio Carlos Vilhena de Carvalho e Larri José Souza de Araújo.

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1Um tipo inesqUecívelDuas ou três coisas que sabemos dela

B atalhadora, forte, decidida, cora-josa, exigente. Equilibrada e ante-nada, já revelou insuspeitado tino para bons negócios. Franca, objeti-va, organizadíssima. Multifacetada em seus interesses. Bonita em seus

olhos esverdeados, o sorriso que se espraia largo ao ver um neto, ao conversar com amigos, na cumpli-cidade da família, cercada por Kika e Digby, seus dois shih tzu.

Ela faz 70 anos neste 16 de setembro de 2014 com a fórmula daqueles fadados a ser sempre jovens: uma cabeça cheia de sonhos, projetos e disposição suficiente para colocá-los em prática.

Ela agrega, motiva, estimula, indica a direção dos ventos. Seu marido, Sergio de Andrade Carvalho, o Serjão, como filhos e amigos o chamam, gaba-se, com justa razão, das virtudes da companheira. Em terra, mar e ar.

“Ah, ela sonha, e sonha grande”, revela. “Volta e meia a Lia surge com uma ideia nova, e não tem

quem segure. A Lia dei-xa sua marca em tudo o que faz”.

Esta marca indelé-vel vem do fato de que seu foco, na verdade, é gente. Isto mesmo, gente. Generosa, ela dá a mão a todos que precisam de aju-da e, usando uma imagem apropriada, ensina-os a pes-car. Propicia a quem não as tem, as ferramentas necessá-rias para que engrenem numa profissão. Dá-lhes a chance de uma nova vida.

Aliás, a frase pintada na parede de um escritório da empresa da família, a Ancar, é reveladora: mos-tra aos visitantes que ali trabalha Gente que Gosta de Gente.

O clã Carvalho é assim. Lia é assim. A frase bro-tou do fundo do coração de cada um deles, trans-

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mitida direto da escala de valores familiares para o decálogo de valores da companhia.

Com três filhos e 10 netos, Lia e Serjão estão ca-sados há quase 50 anos – exatamente há 48. Dádiva rara. Como mãe, também é dádiva rara que tenha acertado com todos e seja unanimidade entre eles.

Para Marcos, o mais velho, ela é “a mãe que deu segurança e soube dar independência”. Marcelo, um ano mais moço, viu sempre em Lia a figura “pro-tetora mas tranquila, carinhosa embora firme, que educava e dava limites”.

Para Mariana, a caçula, sua marca é a da “mãe companheira e cúmplice, transgressora e não liga-da em rótulos, alegre e bem humorada”, a quem ad-mira desde muito pequenininha, desde que calçava seus saltos altos, vendo-a maquiar-se e desfilando seus vestidos…

Todos estão sempre se surpreendendo com ela. Mais raro ainda é que isto aconteça até hoje com Sergio, décadas depois de casados. A cada nova ini-ciativa bem sucedida, diz ele que redescobre, bo-quiaberto, mais uma faceta da combativa Dona Lia.

Ela pensa grande, e é obstinada o bastante para ter seus planos concretizados. Não que seja de mui-to planejar – é mais imediatista. O importante é que ela é do time que faz, e sem medir esforços.

Querem um bom exemplo da decantada tena-cidade dela? O apartamento em que o casal vive hoje era, definitivamente, seu irresistível objeto do desejo.

Como não tem medo de encarar o futuro, de olhar para frente, Lia já percebera que não deviam mais ficar sozinhos, sem os filhos, isolados no du-plex grande demais da Urca.

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E certa noite, deliciando-se com o mar à sua frente, dispara: “Nossos filhos saíram de casa, dei-xaram a Urca, isso aqui é um no man’s land. Vamos para perto deles, vamos para um lugar mais anima-do, onde as coisas acontecem”. Serjão fica atônito. Deixar a Urca? Definitivamente, uma mudança não consta de seus planos.

Só que não havia nenhum apartamento disponí-vel no edifício que ela desejava em Ipanema. “Ora, desde quando isso é obstáculo para Lia?”, ironiza Sergio. “Ela foi ao edifício escolhido nada menos de cem vezes se informar com os porteiros, e aca-bou vencendo. Cem vezes mesmo. Um dia o chefe da portaria, que já ficara conhecendo Lia, telefonou avisando que alguém iria vender, e ela soube antes de todo mundo”.

Dona Lia não é fácil. Enquadra até os santos. Não é mística nem supersticiosa, mas que tem um incontestável canal de comunicação aberto lá em cima, e uma ascendência danada, ah, isso tem.

Fácil comprovar. Festejava-se na fazenda o casa-mento da afilhada de Lia e filha de sua irmã Regina, a Tiana (Cristiana), com o Paulo Calarge. Cedo o tem-po começara a mudar. Um céu carregado ameaça a cerimônia religiosa. Os convidados ao ar livre, em frente à capelinha, já sentem as primeiras gotas…

Eis que, milagre dos milagres, as nuvens se dis-persam, o azul volta a reinar e o aguaceiro só decide despencar lá para depois da meia-noite.

O vídeo que registrou a cerimônia revelaria, mais tarde, o modus operandi da tia da noiva para resolver a parada: olhando feio lá para cima, cenho franzido, ela balança a cabeça enquanto deixa esca-par um tsk,tsk,tsk e, obviamente, dá um ultimato a São Pedro: “Meu amigo, chuva hoje, definitivamen-te, nem-pen-sar”.

Aliás, ela não só adora festejar casamentos como promovê-los. Traveste-se de Cupido e atira flechas

certeiras – e um dos casais alvejados foi o irmão de Serjão, Raul Luiz, e a contemporânea dos tempos do Colégio Sion, a Constança Burity, Tança como é carinhosamente chamada por todos.

Ambos tinham saído há pouco de seus primeiros casamentos, quando Lia os convida para subir. Não se conhecem. Além dos de casa, só Sergio Mendes e Gracinha Leporace.

Não se sabe ao certo se foram a magia do piano varando as noites, os feitiços da dona da casa, ou amor à primeira vista mesmo. A verdade é que dias depois Raul Luiz telefona convidando Tança para sair – e daí em diante não mais se separam. Até à perda de seu marido, quase 18 anos depois.

A delicadeza de sentimentos e a solidariedade da cunhada Lia tocam fundo o coração de Tança na-

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queles dias terríveis. Raul Luiz morrera em casa, e ao voltar do enterro encontra tudo arrumado, sem os traços que a teriam deixado devastada – não há qualquer aparato que lembre a doença, não há vi-dros de remédios, sequer uma roupa dele fora do lu-gar ou objetos de toilette espalhados pelo banheiro.

Isto é pura sensibilidade, define a cunhada.Sensibilidade que vai além das relações pes-

soais – faz Lia amar a música, da bossa nova ao jazz, a leitura, o cinema, museus, teatro.

Usualmente é vista com um livro debaixo do braço. Eclética, pode ser História, biografia, algo sobre management, de Peter Drucker, um romance de um prêmio Nobel como Doris Lessing ou o turco Orhan Pamuk. Estão lá, nas estantes dela.

Adora jogar em seu iPad – pois também é fera em tecnologia. Pra lá de hightech. Toma conheci-mento dos lançamentos da Apple e, nas estradas com Serjão, é ela quem pilota o g p s .

“Ela tem que estar sempre conectada com o mun-do”, diz o filho Marcelo. Mariana, a caçula, a chama de Hub – aquela pecinha, também chamada de concen-trador, que interliga os computadores de uma rede, captando os dados de uma máquina e os transmitin-do aos demais. “Isso define a Dona Lia”, diz Mariana.

É Lia a cinéfila que escolhe filmes e séries de vá-rios gêneros para a turma, tudo armazenado em seu h d externo, para diversão na fazenda ou no barco. Pessoalmente, é adepta de filmes cabeça – apelida-dos pelo marido de filmes psi. Ah, mas nada impede que ela curta um bom jogo de futebol na t v , princi-palmente se o Flamengo estiver chutando em gol.

Volta e meia, convida uma amiga para assistir algo especial na casa dela. Foi assim que chamou Maria Elisa Pinheiro Guimarães Padilha (“amizade de 30 anos”), há pouco, para ver “The men who built America”, um documentário sobre as trajetórias de Rockefeller, Ford e Rothschild.

“Sensacional”, recomenda ela. “No fundo, mes-mo, um agrado da Lia, para fazermos um programi-nha, para eu não ficar sozinha”. Lia se cerca também nessa hora dos dois shih tzu. Se tiver ao lado uma lata de biscoitinhos Meia-Lua da Marília, que pilota a cozinha da fazenda há séculos, ou umas empadi-nhas, melhor ainda.

Adora bichos, e três cães já foram homenagea-dos com os nomes de alguns de seus ídolos: já hou-ve um Sig (Sigmund Freud), outro Pablo (Neruda), uma Melanie (Klein).

Houve até, acreditem se quiser, dois macacos grandes em sua casa em Botafogo. Ficavam com uma corrente longa em volta da cintura e com li-berdade para circular pela rua acompanhados. Mais tarde, foram levados dois casais para a fazenda.

Ela é uma espécie de Lia.Turismo.com, que or-ganiza em detalhes as muitas viagens da família, as saídas de barco e as idas à Fazenda Águas Claras, paixão de pequenos e grandes.

Por tudo isso é que Dona Lia é considerada onipre-sente. E low profile, prática, solidária, exigente. Amiga.

Como confessa uma delas, a Marilu, Maria Luz Schneider, “eu sou totalmente uma Maria vai com a Lia. E é sensacional a ideia desse livro, porque nos permite fazer nossas declarações de amor a ela”.

Às vezes, uma Lia menos gregária precisa se recolher e passar uns dias sozinha na fazenda. Mas, não para. Vê os jardins e cultiva a horta com sementes trazidas da Provence. Ela costuma dizer que a fazenda é administrada por duas mulheres, pois sua irmã Regina é quem administra animais e pastos, como andam as vacas Girolanda, cruza de Gir e gado Holandês, o touro Crazy, um Bhrama de 900 quilos, os cavalos e o rebanho de carneiros Dorper e Santa Inês.

Quando deixa a horta e os jardins, Lia sai rumo à Daschú profissionalizante. Quer saber como andam

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os cursos. Parte em seguida para a creche. Ouve as coordenadoras, passa o olhar atento nas salas de aula e nas crianças. Verifica na cozinha o que foi ser-vido no almoço e como será o jantar.

“Ela é admirável, saiu de uma redoma e foi enca-rar a vida. Batalhar por aquilo que queria”, diz Laura Pederneiras. “É a irmã que eu escolhi”.

Lia está em todas as frentes. “Ela é plural”, decre-ta Baby Palhares, amigas há quase 40 anos.

“Ela é ligada na tomada de 480 Volts”, define o gen-ro Rodrigo, com a expertise de engenheiro químico.

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Mas, após dezenas de entrevistas com seus ami-gos, família e funcionários, uma dúvida nos assalta: será que Dona Lia só esbanja qualidades, como de-põem todos? Solidária, corajosa e forte, equilibrada, superstar e supermulher?

Como este livro é um presente-surpresa para Lia, não podemos perguntar diretamente a ela quais suas pequenas fraquezas, que defeitos prefere manter sob o travesseiro, se sai do sério e tem seus pitis de vez em quando …

O melhor partido, convenhamos, é começar pe-los filhos.

A Lia elétrica, permanentemente ligada à toma-da, tem dois lados. Se isto faz dela uma pessoa extre-mamente ativa, com uma curiosidade infindável, de outro lado “às vezes ela exagera na dose”.

Como qualquer ser humano, ela se cansa e fica meio impaciente. É a hora em que os filhos ouvem uma frase taxativa: “Não quero nem mais saber dis-so. Resolvam vocês sozinhos”.

Para surpresa deles, no entanto, mal passados dez minutos, lá está ela de volta ao centro dos deba-tes dando seus palpites. “Mas, mãe, você não disse que não queria se envolver?”, perguntam. E con-cluem, rindo, que “isto seria mais forte do que ela”.

Outras vezes, animada com as teses que defende, monopoliza a palavra durante o jantar e é preciso um “ei, Lia!” da família para detê-la. Não é raro co-meçar uma frase e interrompê-la, concluindo com outro pensamento. Muitas vezes, na ânsia de ajudar, passa da conta e, vá lá, é “meio entrona”, dizem eles, tipo invasiva.

Mas a verdade é que acabam se acomodando a isso e tirando proveito, admitem.

Em contrapartida, todos são unânimes em afir-mar sua grande capacidade de receber críticas e aprender com elas.

E, mais uma curiosidade nossa: será que ela é sempre a Lia efusiva, aberta, risonha e franca? De bem com a vida?

Quem bem define esse estado de espírito com sutileza e poesia é seu grande amigo e ex-analisan-do, José Antonio Fichtner:

– Existem quatro estações no ano. E é impossível vivermos apenas primavera e verão.

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Nestas páginas, vamos começar do começo, que ainda é o melhor modo de se contar uma história.

Vamos mergulhar num flash back rumo aos tem-pos em que Lia ainda não era a Dona Lia.

Como o escritor Mario Vargas Lhosa já mos-trou, em História de Mayta, uma pessoa é na ver-dade várias pessoas, quando avaliada pelos olhos do mundo.

É esta Lia de mil faces, generosa, mas pra lá de exigente, decidida, hiperativa e teimosa, que tenta-remos vislumbrar devagarinho nos próximos capí-tulos – sem a pretensão de esgotar suas nuances.

Uma definição que talvez englobe tudo isso é a da amiga e prima Tiza, a Beatriz Rego de Andrade Maciel:

– A Lia é meu tipo inesquecível.

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2S apeca, estabanada, farrista, rebelde.

Lia nasce em 16 de setembro de 1944. Sua geração terá sofrido a influência de um mundo mergulhado no olho do furacão – afinal, a Segunda Guerra Mundial terminara, oficialmente, ape-

nas em 1945 e o Brasil encontra-se em plena ditadu-ra Getúlio Vargas.

A favor de sua rebeldia surge um fenômeno curioso. O fim da guerra espalhara uma nova reli-gião: o Consumo. E o Ocidente começa a americanizar-se.

Numa revolução de costumes que terá profundos reflexos nos anos se-guintes, a garotada no Brasil colará seus olhos na primeira tela de televi-são, a t v Tupi. Passará a mascar chicle-tes, para desgosto dos pais. Enquanto devora um hot-dog e uma Coca-Cola na garrafa, como o ídolo James Dean, que arranca suspiros.

Todos colecionarão gibis de super-heróis e ál-buns de artistas de cinema, escandalizando meio mundo ao dançar o rock de Elvis Presley – e, para felicidade geral da nação, a moçada reivindicará a troca do organdi pelas calças de brim americanas. Que ainda ninguém chama de jeans por aqui.

Para sua geração e as que virão, uma nova era.É cedo para a pequena Lia saber, mas

a virada para a década de 1950 abrirá mais portas para a liberdade.

Mas ela ainda vive a fase das inocentes estripulias. Uma de suas

brincadeiras prediletas é montar cabanas dentro de casa abrindo a rouparia, retirando os engoma-

díssimos lençóis de linho e os es-palhando como tetos de cabanas

presos a poltronas e sofás.Quem conta é a Albê,

apelido carinhoso que Lia e suas irmãs Regina e

o DespertarInfância e Adolescência

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Mônica colocaram em Albertina dos Santos. Ela co-meçou como babá na casa de Dona Stella Joppert e Francisco Baptista, quando Mônica tinha apenas dois anos, e lá passou 15 acumulando os cargos de costureira e passadeira nas horas vagas.

Albê confessa que não tinha a menor moral com as meninas e jamais brigava com elas – recolhia os lençóis espalhados, passava-os novamente e os re-punha no lugar. Funcionava, entre a babá e Lia, um pacto de silêncio mafioso, verdadeira omertá, que deixava Dona Stella sem de nada saber.

Não era atoa que, frequentemente, Doutor Francisco reclamava com a mulher sobre a atitude complacente da babá, temeroso de que Albê ter-minasse por “estragar as crianças, fazendo todas as vontades delas”.

Mas Albertina vai ficando na casa. É a costurei-ra caprichosa, perita em acabamentos, bordados e babados, tudo aquilo que as meninas dos anos 40 e 50 são obrigadas a usar – e detestam. Saias rodadas, anáguas, mangas bufantes, sapatinhos de verniz e laçarotes nos cabelos, modelito que evidentemente não faz a cabeça de Lia, a moleca.

Muito em breve as coisas irão melhorar para ela.

Com a entrada das meninas no colégio, Albê deixa de trabalhar fixo para Dona Stella. Mas, como é moda veranear na cidade de Petrópolis, os pais de Lia com-

pram, para alegria da família, uma casa em frente ao Palácio de Cristal – exatamente à rua 7 de abril número 88, hoje Alfredo Pachá.

Albê sobe sempre com a família nas férias gran-des do início do ano e nas férias de julho.

Acompanha Lia e Mônica nos passeios de char-rete todas as tardes. No domingo, o programa é ir ao Hotel Quitandinha. “Quem não me dava trabalho nenhum era Regina, organizada e calma. Lia, a mais

bagunceira, juntava esforços com Mônica, ca-peta, e aí era uma farra só, até caírem exaustas

para dormir”, recorda Albertina.Realmente, Lia e Mônica pintam e bordam,

deixam a babá de cabelos brancos. “Ainda por cima Lia era super estabanada”, recorda

Mônica, “estava sempre aprontando e se machucando… Caiu duas vezes no

mesmo lago em Bariloche, caiu dos patins, conseguiu despencar da ar-quibancada de um circo, um verda-deiro horror…”.

Conta a irmã mais velha, a Regina (hoje Baptista Tavares),

a c i m a :Casa dos Baptista em Petrópolis

a o l a d o :Lia com aprox.2 anos toda engomada, como a Dona

Stella gostava

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que ela e Lia tinham personalidades opostas. “Eu, tímida, comportada, Lia realmente uma espoleta. Absolutamente inconveniente. Um dia fazíamos compras com mamãe na Casa Alberto quando Lia apontou um senhor sem dentes e anunciou, aos berros: ‘Mamãe, ele tá trocando os dentes, igual a mim!”. Regina queria morrer.

Dona Stella decide, então, “dar um jeito em Lia”. E a ideia brilhante é contratar aulas de etiqueta. A pobre mestra sofre e Lia, que odeia as aulas, acaba vencedora. Fim da professora.

“Mas, sabe de uma coisa?”, confessa Regina, “a Lia me incomodava muito, mas no fundo o que eu

tinha era inveja, mesmo quando ela aprontava as maiores gafes. Invejava a atividade dela, a atitude espontânea, o desembaraço, a liberdade de fazer o que dava na telha, o que tivesse vontade de fazer”.

Com sua meiguice, a babá Albê era, muitas ve-zes, cúmplice e confidente de Lia. Até hoje orgulho-sa dessa confiança recíproca, Albê lembra do dia em que Lia ficou mocinha. Tinha 13 anos, chegou em casa chorando e foi direto procurá-la. Implorou à babá que não contasse à ninguém, nem à mãe, e que aquilo se tornasse um segredo selado entre as duas.

“Tempos depois’, quando a grande novidade aca-bou chegando ao conhecimento de Dona Stella, fui chamada às falas. Desculpe, mas isso era para ficar só entre mim e a Lia, respondi”. E o assunto morreu ali mesmo.

a c i m a : As sisters

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Anos Dourados

Com as meninas mais crescidas, as férias na serra vão-se tornando um turbilhão só. organizam almoços com a turma carioca,

banhos de piscina, passeios a cavalo e de bicicletas. Lancham na Leiteria Brasil, na Confeitaria d’ Ângelo, coração palpitante da cidade, frequentam os primei-ros arrasta-pés nas casas dos amigos. o Rio inteiro sobe a serra, no verão, fugindo ao calor infernal.

Nas férias de julho, repeteco das fuzarcas do verão. Aos poucos os pais vão permitindo que as meninas saiam sem acompanhantes em Petrópolis. As famílias vizinhas são muito amigas, vários pa-rentes também têm suas casas por perto, há dezenas de olhos para fiscalizar os brotos, como se diz então.

Mesmo assim, é na cidade imperial de Petrópolis, o recanto preferido do Imperador Pedro i i e do pre-sidente Getúlio Vargas, mesmo com mil olhos em volta, que Lia fuma seu primeiro cigarro. O primei-ro de muitos.

Regina conta que um dos maiores vexames aconteceu na casa de um namorado seu, durante uma festa formal e memorável, primeira vez que conhecia os pais do rapaz. Como era obriga-

da pelo pai a levar sempre a irmã de pau-de-cabelei-ra, Lia também fora à festa.

De repente ela está no jardim e começa a ouvir uma voz conhecida cantando ao microfone, vai-se aproximando devagarinho, já temendo pior, o co-ração batendo… e descobre Lia no palco, estrela do show, cantando bossa nova acompanhada pela famosa orquestra de Bené Nunes. Um Bené deci-didamente deliciado. A Lia boêmia adora cantar e tocar violão.

E a vida é sempre uma festa. O pai, Francisco Baptista, é banqueiro e empreiteiro de prédios de luxo no Rio – saíram das pranchetas de seus arquite-tos os belos edifícios do Parque Guinle, por ele cons-truídos. Como sempre foi um homem esportista, faz questão de despertar nas filhas o mesmo gosto.

Torna-se sócio de vários clubes para proporcio-nar o lazer da família.

No Iate Clube ancora a lancha c.i.v.i.a – o mes-mo nome de sua empresa –, de onde saem para passeios e praticam esqui. No Country, jogam tênis. Na Hípica, monta com as filhas. Mônica lembra bem do tordilho lindíssimo de um amigo do pai que ela e Lia montavam, “embora Lia nunca tenha sido mui-to chegada a cavalos”.

Regina, ao contrário, desde sempre uma amazo-na apaixonada, jamais esquecerá os dois magníficos espécimes importados pelo pai da Argentina para as meninas: Nebuloso e Comodoro. Mimos de um pai amoroso.

a o l a d o :Lancha c.i.v.i.a.

n a p á g i n a a o l a d o :Familia repinica em Eduardo Guinle.

Regina, o casal, Mônica e Lia

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Amoroso e queridíssimo pelas filhas – mas pas-sou a vida terminando todos os telefonemas de pa-rabéns pelos aniversários de Mônica com a seguin-te declaração: “Minha filha, quando você nasceu foi o pior dia da minha vida”. E os risos cruzavam-se na linha.

Por quê?! “Porque mamãe foi para a maternida-de correndo, já que eu já dava sinais iminentes de que queria nascer”, diz Mônica. Mas de repente, em casa, Lia aparece com uma apendicite supurada e é levada também às pressas para o mesmo hospital.

“Morávamos na Pompeu Loureiro, em Copacabana, o hospital mais próximo era o Arnaldo de Morais, atual São Lucas. Mamãe no andar de cima, sem nada saber, Lia no andar de baixo. Papai subindo e descendo o dia inteiro, esbaforido, exausto, coitado, sem nada contar para não preocu-par mamãe”.

E quando Dona Stella, depois do parto, não en-tende a falta de comentários do marido e pergunta se viu a filha no berçário, ouve uma resposta estra-nhíssima: “Não, Stella, não vi não. Estou com muito

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sono. Vamos dormir. Vamos dormir”, repetia boce-jando, relata Mônica às risadas.

Aliás, com toda a confusão gerada pela apendici-te de Lia, só uma semana depois de nascida Mônica Joppert Baptista nasceria legalmente nos livros dos tabeliões. Até lá, nem nome tinha.

Se o apêndice de Lia causara tanta confusão na família, o mesmo não se pode dizer da hepatite que ela contrai anos mais tarde e a obriga a ficar três me-ses em casa. “O bom foi que ela quis aproveitar e ter aulas de piano. E sabem quem era o professor? Nada menos que o Luiz Carlos Vinhas”, conta Mônica.

Enquanto as meninas crescem, dão trabalho, fa-zem mil programas e desfrutam da vida glamorosa

que os pais lhes proporcionam, é Dona Stella, nos bastidores, quem providencia os lanches para os pas-seios de barco, escolhe culotes e botas, encomenda os vestidos para bailes e festas, organiza a vida da família.

Suas meninas desabrocham.Num Rio de Janeiro que vive seus anos doura-

dos, e num mundo que vem trocando as filigranas francesas por um way of life mais americano, menos formal, o Colégio Sion insiste em ser anacrônico. As rígidas freiras francesas do Cosme Velho se es-forçam para manter o rebanho de alunas dentro dos limites estreitos traçados pelas madres superioras.

O tratamento no colégio é o mais solene possí-vel – mère ou soeur é como as alunas devem cha-

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má-las. Andam-se em filas para qualquer lugar, com as mãos às costas. À exceção do recreio, o silêncio imposto é total. Ouve-se o voo de uma mosca nas sa-las de aula ou nas longas galerias de mármore.

Tanta cerimônia é incompatível com o mundo moderno e com o Rio de ares mais cosmopolitas.

Já surge um tal de Cinema Novo, com os inte-lectuais discutindo o filme Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos; o mundo está de olho no satélite Sputnik lançado pelos russos no espaço; um barbu-do e jovem Fidel Castro desce de Sierra Maestra e derruba em Cuba o ditador Fulgêncio Batista; e, pe-las mãos do presidente Juscelino Kubitschek, nasce Brasília e a indústria automobilística.

a c i m a :Melhores tempos no Colégio Santa

Ursula. Lia é a primeira da esquerda para a direita, sentada

n a p á g i n a a o l a d o :Stella e suas três filhas, já mocinhas

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Uma turma do Colégio Sion, revoltada com as normas imutáveis das freiras, convence os pais a matriculá-las no Santa Úrsula, das modernas e liberais freiras ursulinas, que as acolhem de bra-ços abertos.

Maria Cristina Ferraz, a Crica (hoje Barcellos), e Maria Cristina de Lamare, a Tite (hoje Rego Barros), logo mudam também para cursar o gi-násio. Já entrara antes, no Admissão, a Maria Stella Proença (Barata, de casada) – que o grupi-nho fechado de amigas chamava carinhosamente de Stelleta…

Regina e Lia chegam mais tarde. Regina leva bomba no Sion, onde é terminantemente proibido repetir o ano. As freiras chamam Dona Stella para avisar da imediata expulsão da aluna repetente.

E Dona Stella não tem conversa. Empina o nariz e avisa à madre de olhos arregalados: “A Regina, vo-cês expulsam. A Lia, tiro eu”. E assim faz.

Feliz com a inesperada liberdade, Lia entra dire-to no Curso de Humanidades do Santa Úrsula – que equivalia ao curso clássico.

Logo as quatro armariam um time inesquecí-vel – comadres e amigas até os dias de hoje, 50 anos depois de formadas.

“Lia era da turminha da bagunça, que se sentava lá no fundo da sala. Engraçadíssima, brincalhona, alegre, esportista e, acreditem, com um dom inu-sitado: grande imitadora do comediante Golias, um sucesso da época, o que levava toda a turma a gargalhadas incontroláveis”, conta Crica, rindo da lembrança até hoje.

Maria Stella corrige Crica: “Ah, ela não imitava apenas o Golias, não. Imitava tudo e qualquer coi-sa que alguém inventasse. A turma morria de rir”. Stelleta também recorda nitidamente a Lia fera no vôlei, a Lia sempre galhofeira, fácil de fazer amiza-des e de engatar em novos romances.

Mas o outro lado da estudante bagunceira é a Lia organizada, agregadora, amiga de todas as horas, ex-tremamente generosa, sentencia Crica. “Sempre hou-ve muita troca, muita ajuda, muita ligação entre nós”.

Colégios e aulas à parte, a vida continua a trans-correr leve, livre e solta.

Nasce o besouro Fusca, a mais recente novidade da Volkswagen.

Sucesso dos sucessos, Lia chega um dia ao Santa Úrsula pilotando um tremendo Fusquinha. Ela é a primeira a ganhar carro, e a primeira a dar carona para as amigas. É a glória.

As festas são um prato cheio. “Nossa casa em Petrópolis, nessa época, era um clube”, diz Regina. “Vivia lotada de amigos. Reuníamos todo mundo no sótão, onde papai instalara um cinema, alugávamos filmes no Rio, de repente tinha 30 pessoas fumando lá em cima e fazendo bagunça. A Lia era uma chami-né. Quando um adulto ameaçava subir era um deus nos acuda, todo mundo abrindo as janelas, abanan-do a fumaça, uma loucura!”

As irmãs tanto esquiam com talento na lan-cha do pai, quanto nas neves de Bariloche, nas férias anuais. As viagens, um capítulo à parte. Peripécias inesquecíveis.

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a o l a d o :Era craque no volêi

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Descobrindo o mundo

em dada ocasião, dona Stella convence o ma-rido a voltar de Buenos aires no navio francês Provence. doutor Francisco, habitué da linha

Moore-McCormack e seus transatlânticos Brazil e Argentina, contesta. Já tem as passagens de volta e prefere os navios americanos. Mas sua mulher en-cerra a discussão com um argumento imbatível: “ora, Francisco, vamos todos voltar comendo queijos e patês, tomando champanhe francesa… Um banquete gastronômico!” e o marido troca as passagens.

No dia D, ao cair da tarde, a família embarca no Provence, encantada, já prelibando as delícias do jantar gourmet.

O navio apita, desatraca do porto de Buenos Aires, placidamente toma o rumo norte, navega por uma hora e… bum, encalha num banco de areia. Não é o Titanic, nem batem num iceberg – mas o navio começa a adernar e o susto é grande.

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Para culminar, um Doutor Francisco irritadís-simo vê deslizar ao lado deles o navio da Moore-McCormack, bem próximo, com toda a família Graça Couto acenando, dando adeusinhos do tombadilho.

“Aí papai explodiu de raiva, foi demais pra ele”, relata Mônica. “Ficou tão furioso que o comandan-te, para acalmá-lo, cedeu a própria cabine para ele e mamãe. Para nós, uma diversão encalhar no Prata, e desencalhar só no dia seguinte…”

Outra viagem memorável foi a primeira ida à Europa, com Regina matriculada numa escola ca-

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tólica de Londres, a Rosselyn House, maior sucesso entre a juventude carioca da época.

No fundo, o intuito era jogar água na fervura da paixonite de Regina por um candidato que os pais desaprovavam. Consta, aliás, que Doutor Francisco daria o contra nem que fosse a uma cabeça coroada, ao próprio Príncipe Charles. Qualquer pretenden-te, para ele, era mero playboy.

Para deslumbramento das meninas, começam por Paris. A mãe providencia um banho cultural – museus, balé, teatros. Compras e pontos turísticos.

Mas, como o candidato de Regina também chega a Paris, a estreia parisiense das irmãs se dá au grand complet. Além das tardes culturais, danças, shows, Paris by night.

Os tempos passam, e Regina acaba se casan-do com uma nova paixão, Carlos Eduardo Saboia Gomes. No dia em que nasce sua primeira filha, Cecília, prematura, quem salva a festa de 15 anos de Mônica é Lia. Toma conta de tudo, tudo vê e orga-niza, recebe os convidados, cumpre as funções que Dona Stella, naquele dia, não poderá cumprir – e já dá sinais da Lia dona de casa que será um dia.

Anos antes, quando a família mudara-se para a Rua Eduardo Guinle, em Botafogo, começaria, sem que ainda ninguém pudesse saber, um novo capítu-lo na vida de Lia. Um romance inesperado, mas um romance de longe, de janela para janela.

É que, do outro lado da rua, na casa fronteira, mora alguém que ela entrevê um dia por trás de sua cortina. Alguém por quem fica absolutamente fascinada. Alguém que ela definirá, por muito tem-po, como “um ser inatingível”. The boy next door. Um galã que entrava na rua quase em duas rodas, cantando os pneus.

O rapaz, mais tarde virá a saber, chama-se Sergio de Andrade Carvalho.

Mas aí já começa uma nova história.

a c i m a : Vestido de baile

n a p á g i n a a o l a d o , e m s e n t i d o h o r á r i o :Lia cheia de charme em Veneza, quando

foi levar Regina a Londres para sua temporada de estudos.

Casamento Regina. Lia e Mônica eram as damas.

Dr Francisco babando a filha do meio

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3a loura de olhos esverdeados e pele

dourada arrasa nas pistas da boate Black Horse, ali pelas redondezas do Copa, onde imperam o twist, o chachacha e o hully gully – os ritmos quentes desses anos 60.

Eis que uma decidida e grande mão se abate sobre o braço dela: “Ei, vai pra casa. Senão vou dizer ao teu pai que você está aqui”.

“Ué, você não tem nada a ver com a minha vida”, retruca Lia. E desse momento em diante ela sente, ela sabe, que Serjão terá tudo a ver com vida dela.

Ela cai de amores por ele, ele se derrete por ela. Saem juntos, um mês depois ele pergunta: “Você casa comigo?” E ela fazendo charme, fingindo des-dém: “Eu mal te conheço…”

Três meses depois ficam noivos, e em mais cin-co se casam, solenes, na Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso.

Corre o ano de 65, a noiva tem apenas 21 anos. Conhecem-se desde que ela tinha 10, vizinhos frente

a frente. Vão morar no Parque Guinle, e o primeiro a nascer, um ano depois, é Marcos, hoje com 48 anos.

Aliás, quando Lia vai para a maternidade, repe-te-se uma cena tão hilária quanto à do nascimento de Mônica, com seu pai Francisco como o mesmo protagonista. Não se sabe bem porque, ele é de-signado para pernoitar com Lia no hospital – e lá aparece munido apenas de um pijama, um cabide e um Dormonid.

Ué, Lia pergunta, pra quê esse cabide? E ele, na maior inocência: “É para você me cutucar, caso pre-cise de alguma coisa e eu não acorde logo por causa do Dormonid…” Pano rápido.

Mas Lia não precisou usar o cabide. Logo volta para casa e cedo vai percebendo os muitos papéis que terá de cumprir.

Entre fraldas e mamadeiras, o da hostess com suficiente savoir faire para receber os clientes do banqueiro que abre com frequência os salões do ca-sal. Que avisava no meio da tarde: Vou chegar com 15 pessoas para o jantar.

laços De Família…E Lia se torna Dona Lia

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a o l a d o :Entrando com o pai querido, que

disse na porta da igreja: “ Se quiser, ainda dá para desistir”.

a c i m a :Mãe e filha do Dia D

n a p á g i n a a o l a d o :Lua-de-mel

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Lia entende que tem de aprimorar o inglês do colégio para receber os clientes do marido, contra-tar um staff de empregados que dê conta do recado e administrar o esquemão montado.

Ah, um pequeno detalhe: isto tudo sem muita ajuda externa. Esta não era bem a praia do Serjão.

Mariana, a caçula, hoje com 43 anos, conta uma história emblemática, verdadeiro insight de Lia no momento em que constata que terá de se virar por conta própria. Que terá de crescer e acontecer.

– Ela estava grávida do Marcos, o pneu furou em pleno tráfego, não existia celular, ela correu para arranjar um telefone e pedir socorro ao marido. O Serjão lamentou muito, mas estava no meio de uma reunião e não podia fazer nada.

Lia decodifica a mensagem: Sorry. Vire-se.É aí que ela decide, de uma vez por todas, cres-

cer sozinha. Assim começa sua caminhada. Ela dirá mais tarde que deve ao próprio Sergio a virada que foi obrigada a realizar.

É aí que nasce a Dona Lia.Marcos é um bebê que preocupa e dá trabalho

com suas ainda desconhecidas crises de refluxo, quando Marcelo nasce. É pressionada a tomar deci-sões sozinha, a tudo prover e tudo organizar.

Tite, a amiga dos tempos do Colégio Santa Úrsula, vê Lia como produto de uma Dona Stella que costumava fazer tudo dar certo, ter tudo sem-pre correto, arrumado – a mesma disposição da mãe para os detalhes, a precisão.

Como representante autêntica da alta burgue-sia carioca, Dona Stella teria passado para Lia um determinado legado, considera Tite. E a Lia super dona de casa é uma mulher ordeira, exigente, que sabe mandar e treinar seus empregados. Seu olhar atento dá conta de todos à sua volta – dos que estão em dificuldades, das crianças, dos amigos.

Com o casamento das amigas do colégio, os la-ços de amizade entre elas apertam-se ainda mais. Lia e Crica, por exemplo, casam-se no mesmo ano. Quando chegam os filhos, Lia torna-se madrinha de Ana Luiza, a mais velha de Crica. E Fernanda, a ca-çula, torna-se afilhada de Maria Stella.

“Só isso já conta bem a nossa história”, diz hoje uma Crica emocionada.

Os filhos de ambas estudam no mesmo colégio, o Padre Antonio Vieira. Gustavo, de Crica, e Marcos e Marcelo, de Lia, serão sempre amigos – e, no fu-turo, compadres. Ana Luisa e Fernanda, amigas de Mariana. As famílias se frequentam, viajam juntas.

Mas é uma época difícil, o início do casamen-to de Lia. Só que os tempos não andam fáceis para ninguém.

Curiosa e sempre antenada, ela acompanha as notícias do Brasil e do mundo – e sabe que ambos estão em ebulição, ao longo da década de 60.

No Brasil, surge um garoto chamado Pelé que um dia será chamado Rei. Surge a Bossa Nova. Nos

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Estados Unidos, os hippies clamam por Paz e Amor enquanto todos exigem o fim da guerra do Vietnã. Na frenética Londres a ousada estilista Mary Quant corta dois palmos de saia e deixa as mulheres de pernas de fora.

Nasce a pílula anticoncepcional. Os Beatles e o Festival de Woodstock causam espanto – mas jamais serão esquecidos. Como também não o serão duas tragédias do início daquela década: o Presidente John Kennedy é assassinado e, em Berlim, um sinis-tro muro começa a ser levantado.

Quando os anos 70 chegam, novas mudanças para Lia. Sergio tem 26 anos, já comprou três ban-cos que incorporou ao Andrade Arnaud e agora, em 72, a conjuntura econômica mostra que é hora de vender o banco. É então convidado para a diretoria do Banco do Brasil, sediado em Brasília. Só vem ao Rio nos fins de semana. Lia se sente sozinha com a ausência do marido.

Marcos e Marcelo observam que, com a par-tida do pai, Lia passa a ocupar o espaço deixado por Sergio.

O casal decide comprar a Fazenda Águas Claras em 73, em São José do Vale do Rio Preto, e é ela quem irá receber as chaves e assumir a direção da propriedade.

Como conta Sergio hoje, ela subiu a serra com a babá e Mariana, então com dois anos, e foi recebida pelo administrador e um cavalo. Assim nasceu uma fazendeira. Assim ela realizou um sonho antigo.

Mas o afastamento de Sergio já não pode se alongar tanto. Ressente-se da falta de Lia, das crianças, da vida em família. Lia ressente-se da ausência do marido, detesta política e detes-ta Brasília. Sergio toma uma decisão drástica: demite-se do Banco do Brasil, matricula-se na Universidade de Harvard, em Cambridge, e voa para Boston com todos eles. A meta é um Curso

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bairro afastado, pois são difíceis aluguéis de curto prazo na cidade.

Marcos lembra como se fosse hoje que ele e Marcelo resolvem juntar uns grave-tos, certa tarde, e fazer uma fogueirinha no jardim… Sem levar em conta que a vizi-nhança, fóbica quanto a incêndios, aciona os bombeiros, que chegam com aqueles chapéus enormes, estardalhaço e dispo-sição. Levaram uma bronca danada.

Lia sempre conta que foi nessa tem-porada que percebeu que podia se virar muito melhor do que imaginava. Foi quando aprendeu a abrir uma conta

em banco, a mexer numa máquina de lavar, num inglês que naquela época ainda arranhava. Marcos não a deixava sair sozinha – dizia que depois dela, ele era o que mais fala-va inglês na casa.

Entre os meninos, qual o mais travesso? Marcos, o mais endiabra-do dos três, relembra Adenir riso-nha. Inventa que está doente, com febre, para sair da escola, tranca Marcelo dentro de um baú e diz, bem sonso, que não sabe onde está a chave. O maior susto.

Como ambos odeiam o colégio americano, tanto batem o pé que Lia resolve deixá-los em casa, para que retomem os estudos no Rio.

Um completo desastre, conclui Adenir: “E um es-tresse para Dona Lia, uma patroa maravilhosa”.

E Mariana, muito trabalhosa? “Não, muito tran-quila, muito boazinha”.

Após a crítica temporada em Boston, a volta ao Brasil é uma bênção dos céus.

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de Gestão de quatro meses nos Estados Unidos.

Quem lembra bem da caótica temporada é a babá misto de en-fermeira Adenir (Soares Gomes), a Dení, como era chamada, hoje aposentada, que acompanhou a família a Boston e esteve anos e anos com eles. Conhecera Lia ain-da solteira, ao cuidar dos filhos de Regina.

Relembra agora num almoço promovido por Mariana com todos os antigos funcionários da casa, a célebre viagem – “deu uma traba-lheira medonha, os meninos eram bagunceiros, o Marcos, com oito anos, era terrível, a Dona Lia passou maus bocados, coitada!”

Para encurtar a novela: a família hospeda-se num hotel, e tantas são as reclamações dos hós-pedes sobre a baderna dos meninos que logo são convidados a retirar-se; Lia só consegue casa num

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A reviravolta

Mas o esquema carioca é bem diferente do de Boston. envolve a administração de uma equipe grande de empregados, horários e

compromissos sem fim.Vida social, idas à fazenda e saídas de barco,

sempre cercados de muitos amigos. Vida noturna.Cookie Richers, que conheceu Lia há uns

50 anos por intermédio do primeiro marido, amigo de Sergio, lembra de uma fase divertida em que, se-manalmente, promoviam noites de pôquer em me-sas separadas, para os maridos e as mulheres.

Nessa época, recorda a irmã Regina, elas não perdiam bailes de Carnaval nem desfiles de esco-las de samba. Regina saía na Portella, depois virou casaca – Salgueiro. Mônica continuou fiel à Portela. E Lia, ora, mangueirense doente.

Inconfidência de Regina: nos bailes do Muni- cipal, que elas jamais perdiam, aproveitavam as fantasias extremamente elaboradas para esconder debaixo das saias, a pedido dos maridos, garrafinhas de uísque…

Baby Palhares herda a amizade com Lia ao casar em 76 com Nenén, amigo de Sergio desde a adoles-cência. Acha inesquecíveis as festas, os jantares, os réveillons, as idas às boates num Rio ainda chic.

De cara, diz ela, ficou impressionadíssima com o fato de Lia mal ter entrado nos 30 anos e já adminis-trar uma infraestrutura monumental.

“Tudo que a Lia tinha era enorme. Sergio era enorme, a fazenda era enorme, o barco era enorme, o carro era enorme. E, o mais surpreendente: ela ti-rava aquilo de letra, na maior tranquilidade”.

O talento de Lia para decidir, para administrar, para comandar um batalhão, para distribuir fun-ções deixa as amigas pasmas até hoje.

A arquiteta canadense Hilda Kopff exemplifica com o dito inglês some people talk the talk and some people walk the walk. Em miúdos: tem gente que fala e tem gente que age. “E Lia, definitivamente, é de agir”, testemunha Hilda.

“Quando ela decide fazer algo, tem a inteligên-cia, a habilidade e o drive, a energia, para fazer acontecer. Lia é o tipo de mulher que eu admiro. Nos tornamos amigas instantaneamente”.

O encontro se deu há mais de 20 anos. Nesse meio tempo, Hilda, c e o da Designcorp, e seu só-cio Jeremy Mcmullin, especializados em shopping centers, já desenharam sete deles no Brasil para a Ancar, a empresa dos Andrade Carvalho. Dois em Recife, o shopping Conjunto Nacional em Brasília, o Pantanal, o Porto Velho, o Centervale e o Nova América, no Rio.

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Hilda diz que Lia é a grande responsável por sua sobrevivência no Brasil, na medida em que “apelamos para seus conselhos, confiamos em seu gosto, estilo e inteligência. Ajuda-nos constantemente”, frisa.

Prova dessa amizade tão estreita é que Hilda mora em Toronto, no Canadá, e há oito anos tem casa em Búzios. Lá em cima da Ferradura. Encontram-se com frequência na praia, na fazenda ou no Rio.

Solidariedade, determinação e simplicidade são traços que várias amigas apreciam e destacam em Lia.

Exemplo de solidariedade. Lia e Baby estão numa estradinha enlameada, embrenhadas perto da fazenda, encontram um homem caído sem sentidos, todo machucado. Não sabem quem é: “Lia improvisa umas talas, botamos o sujeito na caminhonete e le-vamos para o hospital. Eu, meio receosa. Já a Lia não tem medo de nada. Nem a menor frescura”.

Maria Elisa Padilha, como Baby, é uma das mui-tas que detectam em Lia a generosidade que a faz sempre ter o olhar atento, voltado para o próximo, permanentemente disposta a ajudar.

Uma Lia onipresente e múltipla, que pula da fa-zenda para o cuidado com a família, dos netos para o trabalho social, da casa para o cuidado com os ami-gos. “Incrível”, ressalta Maria Elisa, “como ela olha no olho e pergunta ‘você está bem? Tá tudo bem mesmo?’ Incrível como se dá, como faz questão de estar sempre com os netos, com os filhos. Somos amigas desde 80, mais ou menos, e sempre me sur-preendo com ela”.

“A Lia é uma força da Natureza”, sentencia Maria Elisa.

Para Cookie Richers, Lia “sempre administra tudo, e sem perder a esportiva. Ela é, sem dúvida, A Matriarca por excelência”. Cookie também foi alvo de sua solidariedade: “Quando passei por uma má hora, os dois estavam lá, presentes, ao meu lado”.

O mesmo se deu com a terapeuta argentina Ema Genijovich, amigas desde que Lia assistiu a uma aula sua sobre Terapia Familiar, em Nova York, já lá se vão três décadas. Além de a amiga tê-la apoiado em momentos difíceis de sua vida, Ema aponta “a grande capacidade de adaptação e flexibilidade de Lia frente a tudo aquilo que a vida traz”.

O mais incrível é que ela parece desincumbir-se de tudo sem esforço, como se tudo fosse ‘normal’. Quem chama atenção para esse ângulo é a irmã de Sergio, Ana Maria Carvalho Ewald Rasmussen. Para ela, “o casal se completa, ajuda-se mutuamente e faz um trabalho social formidável”.

Após a tragédia da enchente de 2011 na Serra, ao visitar os projetos de Lia já em funcionamento, ela disse à cunhada que estava “absolutamente impres-sionada, estarrecida” com o que vira.

E ouviu de Lia: “Por que? Não fiz nada de mais, era o que tinha de ser feito”.

a c i m a :O galã Sergio

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Arthur, chamado Corisco pela marujada do Iate Clube, conta como recebeu a ordem do Doutor Sergio: “Arthur, não hesite. Se começarem com bri-ga no banco de trás, mantenha os olhos no volante e mande logo uns tapas”. Arthur jamais deu. Mas gri-tava suas ordens.

“Quando a temperatura estava alta demais entre os dois, eu simplesmente parava o carro, mandava que saíssem e se esbofeteassem lá fora. Quando terminassem, podiam voltar. Das poucas vezes em que isso ocorreu, eles pararam pra pen-sar se valia a pena o quebra pau. Diziam que estava tudo bem e paravam. Mas, nunca contei para dona Lia ou para o Doutor Sergio o que acontecia”, re-lembra Arthur.

Domando as feras

Na casa da Urca, adenir continua a cuidar das crianças. Leva Marcos e Marcelo à Hípica, pois adoram montar. acompanha-os ao cine-

ma e a jogos no Maracanã. ah, e costumam subir para a fazenda, aquele paraíso.

O responsável pelo leva-e-traz da turma é Arthur Oscar Reis, motorista e posteriormente mestre do barco Mare Crisium, capaz de enfrentar engarrafa-mentos e ondas sem jamais assustar os passageiros. Arthur sempre foi pau pra toda obra, garante a fa-mília e, o melhor de tudo, impunha a maior moral aos meninos. Domava as feras, com carta branca do Doutor Sergio.

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Certo dia, Dona Lia encontrou os meninos chi-coteando-se em frente de casa. Desceu do carro, pegou o cinto de cada um e não teve conversa – bai-xou o sarrafo nos dois. Encabulados, eles pediram desculpas e subiram.

O cotidiano com Dona Lia nada tinha a ver com o filme Driving Miss Daisy, e Arthur só parecia com Morgan Freeman na figura esguia e no bom humor. Entendiam-se sem nem precisar trocar muitas pala-vras. Se Lia lhe dizia que iria ao cabelereiro, Arthur sabia: era o Maritê, às 14 horas em ponto.

Frequentemente, ele ouvia de Marcos, ao bus-cá-los no colégio: “Arthur, vamos direto para a fa-zenda”. Artur, que já havia trabalhado o dia inteiro, telefonava de um posto para Dona Lia, confirmava o destino e pegava a estrada.

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conversar, não se exaltava, mas acabava nos dando um castigo. Era ela quem queria saber de tudo, se já estávamos transando, e se intrometia mesmo, falava de camisinha ou doenças venéreas com a maior tranquilidade”.

– Ela orientava, ensinava, e sempre nos mostra-va sua ótica muito particular. Mas no final, quem ia lá quebrar os galhos era o Arthur, mandado pelo Serjão…

O que a mãe não suportava, mesmo, era ficar por fora, não saber o que andava acontecendo, ficar à margem dos segredos e da vida dos filhos.

O caso da tatuagem é lapidar.Marcelo anda por volta dos 16 anos e inventa de

tatuar dois coqueirinhos na virilha –“coisa de ado-lescente idiota”, pondera hoje. Por que na virilha? “Olha”, conta rindo, “porque eu jurava que, naquele local, eles jamais perceberiam…”.

“Uma vez, chegamos às oito da noite, jantei e já me preparava para voltar para o Rio quando o Doutor Sergio me pergunta:

–Onde é que você vai, Arthur?– Vou pegar o ônibus das dez para descer”.Aí o patrão faz uma coisa que Artur lembrará

para sempre. Entrega-lhe as chaves do seu Porsche 911, joia rara e intocável, e dá a ordem: “Vá com ele, é mais rápido e confortável”.

“Jamais me esquecerei daquela noite”, conta Arthur. “Eles são generosos em tudo”.

Mas a turma entra na adolescência tão endiabra-da quanto antes. “E desde cedo a Lia teve que incor-porar, frequentemente, um papel que poderia ser do Serjão”, avalia o filho Marcelo.

Como aquela noite em que os filhos prometem estar em casa a uma hora – e chegam às quatro. Atitude de Lia, segundo Marcelo: “Ela sempre ia

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Ledo engano. Os astros conspiraram contra a re-beldia de Marcelo.

Uns seis meses depois, ele sofre um acidente de moto, vai ao hospital submeter-se a um procedi-mento no joelho, põe aquela camisola curtinha e é devidamente anestesiado. Como Dona Lia é médica frustrada e não perde uma sala de cirurgia, surpresa das surpresas. Fica indignada.

Como?! Meu filho tem uma tatuagem?! E con-tam depois a Marcelo que “fizeram a maior goza-ção com ela durante a cirurgia inteira e eu, graças a Deus, lá apagadão, sem saber de nada, dormindo como um neném…”.

Mas Dona Lia sempre soube o momento de tirar os filhos de sob as asas e fazê-los voar. A Lia super-mãe soube abrir os olhos dos filhos para o mundo. Torná-los independentes na hora certa.

E a independência de Mariana se dá através de viagens, cursos e da descoberta do Marketing.

Em janeiro de 92, arrumas as malas e parte para Paris. Sua escolha é o curso de Civilization Française, na Sorbonne. Convive intensamente com o savoir faire parisiense e, depois, reduz as ma-las a uma mochila, coloca-a nas costas e parte para fazer o resto da Europa.

Ao se despedir de Lia, em Paris, ouve mil reco-mendações, dá um beijo apertado e um tchau, e vira as costas. A mãe diria mais tarde a ela: “Vi você batendo as asas com uma naturalidade que me dei-xou impressionada”.

Mariana viaja por muitos países, vai com Marcelo a Portugal, Espanha e depois Moscou, onde a amiga Tite era embaixatriz e ficam na maior e mordomia na Embaixada. Sobe para a Escandinávia com a pri-ma Claudia e dormem nas estações de trem. Por fim, vai para a Suíça e estagia em uma empresa es-pecializada em assessoria a shopping centers – a rds, do empresário Charles Joye. E volta ao Brasil.

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muito simpáticos, entusiasmaram-se com meus cursos e também pelo fato de que eu poderia tratar com habilidade os latinos”.

Serjão e Lia jamais fecharam uma questão com os filhos – ponderam com Mariana e deixam que ela tome sua decisão. Ela agradece a proposta recebida e volta ao Rio.

Ela conta que os pais sempre tiveram a preocu-pação de não passar as mãos nas cabeças dos filhos. De outro lado, jamais deixaram de apoiá-los com suas opiniões, baseadas em suas experiências pes-soais e profissionais. E ensinar a conseguir seus ob-jetivos pelos próprios esforços.

No Brasil novamente, para terminar a Faculdade de Comunicação Social, Mariana volta a fazer ou-

a c i m a : Lia com Marcelo

Dura pouco a estada carioca. Parte para Newport Beach, na Califórnia, para a empresa de consulto-ria de shopping de Tracey Hall, que lhe ensinaria os segredos do planejamento de marketing e os mean-dros de sua execução.

Ao concluir o estágio com Tracey, é aconselhada a fazer outro com Susan Valentine, na Pensilvânia.

Concluída a experiência, surpreende-se com o convite para ser manager de um discreto shopping em Roboken, New Jersey. “Telefonei para meus pais e disse que, se eu aceitasse, poderia estar colocan-do o carro à frente dos bois. Os donos do shopping,

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tros cursos de marketing, faz estágio na Veja Rio e quando a Coca Cola abre uma seleção para está-gio na assessoria de imprensa, ela candidata-se e é aprovada.

– Posso afirmar, sem dúvida, que foi na atmos-fera empresarial da Coca Cola que tomei a deci-são de me embrenhar definitivamente no mundo do marketing.

Ela fica na Coca por um ano e meio e, ao sair, é convidada por Sergio para ingressar na Ancar e en-frentar o desafio do marketing do Shopping Nova América, que está nascendo. “Lia e Serjão acompa-nhavam os lances da arquibancada, torcendo, mas nunca se intrometiam em minhas ações”.

Discreta no trabalho, evitando sempre aparecer como filha dos donos, um dia ela vê seus esforços caírem por terra. “Serjão chega lá na sala onde eu trabalhava, abre aqueles braços enormes e diz bem alto: ‘Ô Maricota, que saudades!’. Encabulada, co-chichei enquanto ele me abraçava, ‘ô pai, fica cala-do, aqui sou uma profissional”, recorda aos risos.

Hoje, Mariana é Diretora de Produto da Ancar Ivanhoe Shopping Centers.

Marcos e Marcelo dividem a presidência.Marcos dá o primeiro grito de independên-

cia ao fazer intercâmbio em Marblehead, Boston, na casa de um companheiro de quarto de seu pai, em Harvard.

Formado no Colégio Padre Antonio Vieira, se-gue o caminho da Administração de Empresas e, aos 19 anos, começa a trabalhar no Banco de Investimentos Garantia por cinco anos. Faz vários cursos – como o p d g (Programa de Desenvolvimento Gerencial) e o Owners and Directors Program, do Insead, programa avançado de management para gestores de 25 países.

Além de diversos outros cursos no International Council of Shopping Centers, ele estagia duran-

te oito meses em empresas de shopping cen-ters, na Califórnia, especialmente na General Growth Companies.

Em sua volta, funda no Brasil uma franquia de uma empresa de Treinamento de Varejistas, que existe até hoje – o Grupo Friedman.

Depois de tanto tempo fora de casa, ao retornar ao Rio, Marcos aceita emprestado o apartamento de um amigo e passa, oficialmente, a morar sozinho em São Conrado.

Marcelo, formado em Administração de Empresas, estagiou por oito anos ao todo, antes de entrar na Ancar – quatro aqui, nas Lojas Americanas; um ano nos Estados Unidos, na General Growth Co., e dois no Norte Shopping, no Rio. Além desses está-gios, recentemente fez um curso de opm (Owners President Managers) durante três anos na Harvard Business School.

Apesar da experiência de morar só, sem a fa-mília, ele garante que saiu de casa não por decisão própria, “mas por iniciativa da minha mãe, coisa que jamais me tinha passado pela cabeça”, recorda Marcelo, rindo.

Ele fala de sua enorme surpresa, à época: “Engraçado é que ela praticamente me pôs pra fora de casa, numa boa, mesmo arranjando um jeitinho de controlar alguma coisa, manter-se presente, fa-zer do jeito dela…”

É entre o estágio nos Estados Unidos, aos 19 anos, e a ida à Europa, aos 24, que Lia começa a dar a maior força para ele sair em busca de um apartamento. Marcelo está com 20 anos e vai à luta. Encontra “um na Urca mesmo, mínimo, antigo, uma graça. Mas não tinha telefone, objeto escasso naquela época”.

Solução da Dona Lia: mandar atravessar pe-los ares um fio através da rua, saindo do consul-tório dela, em frente, até o apartamento do filho. E Marcelo passa a usar uma extensão.

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Sempre com o beneplácito de Dona Lia. Uma Dona Lia alegre, com aguçado senso de humor.

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Embora tenha sido dura, para ela, a sobrevi-vência em Boston, conta a amiga canadense Hilda Kopff que Lia transformou aqueles dissabores em histórias tão engraçadas que, ao relembrá-las uma noite na fazenda, todos riram às lágrimas.

Outro caso típico de senso de humor. Mariana lembra da festa organizada por Lia para ela, com ajuda de Marcos. Mariana quase morre de vergonha.

Uma copeira desconhecida, contratada para a festa, surge de repente com uns argolões amarelos que nada têm a ver com o uniforme, olhos pinta-dos e batom. Ela acha pra lá de esquisito, mas fica quieta. Lá pras tantas é evidente que a copeira anda bebendo horrores. E logo depois, para pasmo ge-ral, a figura sussurra no ouvido de uma convidada uma tremenda fofoca, insinuando que viu seu ma-rido paquerando outras mulheres. Não ficou ape-nas em uma inconfidência. Vai espalhando intriga pelo salão.

Aí, a coisa pega fogo. Indignada, Mariana vai fa-lar com Lia. No final, surpresa das surpresas, toma conhecimento de que a copeira é um presente de Marcos. Uma atriz que representa às mil maravilhas seu papel de periguete à solta, travestida de copeira.

Tudo acontecera com o aval da animada dupla Lia e Marcos. Depois dos sussurros de alívio, garga-lhadas gerais e aplausos.

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Mas copeiro dos bons, de verdade, era o José Alves Machado, que mostra eterna gratidão a Lia e Sergio. O Zé continua com um humor incrí-vel e uma memória inabalável em seus 88 anos. Trabalhou 15 anos com a Dona Lourdes, mãe de

Sergio, outros tantos com a Dona Lia, e já estava na casa quando Mariana nasceu.

Considera que teve muita sorte na vida, e vai des-fiando suas histórias. Só trabalhou em casas muito fi-nas, e orgulha-se de ter servido um jantar sentado para 280 pessoas em homenagem a Rockefeller, na casa do presidente da Sul América, onde trabalhava à época.

Mas acha que “família igual a esta aqui, dos Carvalho, não existe”.

E derrete-se ao falar da Dona Lia, que certamente vai morrer de inveja quando souber que perdeu a re-união convocada em segredo por Mariana com toda a turma que trabalhava na casa dela, desde as crianças pequenas: “Aquela mulher é um doce de criatura”.

Sério e emocionado, ele acrescenta: “Pode es-crever aí. Só estou vivo aqui hoje por causa da dona Lia e do Doutor Sergio”.

Aos 59 anos o Zé teve que colocar três pontes-sa-fena, e além de ter tido toda a cirurgia custeada pelo casal ainda tem seu plano de saúde integralmente pago por eles até os dias de hoje.

São memoráveis suas broncas nos meninos quando eles passavam dos limites. Mônica, irmã de Lia, lembra que virou bordão na família a frase que o Zé disparava para os adultos, bravo, quando todos demoravam-se conversando à mesa depois do jan-tar e ele queria ver sua novela: “Andem, levantem, tá na hora de vocês verem Saramandaia!”

Hoje, basta alguém pronunciar a palavra Saramandaia, que já se sabe – é a dica pra sair, diz Mônica.

A entourage da Dona Lia era assim. Eficiente e amiga. Todos se sentem bem recompensados.

“As crianças ainda são como meus filhos”, diz Artur emocionado ao reencontrar Mariana. Seu filho Jorge, Bombeiro de Resgate Aéreo, é ami-go de Marcos e Marcelo até hoje. Formava com os Carvalho times de futebol, completava equipes para

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torneios de tênis e participava de todas as aventuras na fazenda ou no mar.

A turma da velha guarda, Adenir, Arthur e José são unânimes ao depor sobre as muitas be-nesses espalhadas pelas mãos abertas de Dona Lia e Doutor Sergio. E o pessoal atual concorda – como a Regina Célia de Oliveira, 17 anos de casa, “fazendo de tudo um pouco” no apartamento de Ipanema, e a Lili, Eliene Moreira de Souza na car-teira de identidade.

Apesar do pouco tempo de casa, Lili garante que vai se aposentar lá. Ela mal tinha entrado na famí-lia quando a mãe perdeu absolutamente tudo que tinha em uma enxurrada que só deixou de pé a casa, em Teófilo Otoni, Minas Gerais.

“A Dona Lia me chamou, me mandou comprar tudo que eu precisasse, fogão, geladeira, tudo, e des-se todos os carnês para ela ir pagando. O bacana é que nunca quis que eu reembolsasse nada. ‘ Isso é doação, Lili, não é empréstimo’. Nunca vi tanto cui-dado e respeito com os empregados”.

No caso da Deni, sua crise de apendicite, por exemplo, foi rapidamente solucionada: “O médi-co particular da Dona Lia me operou e fiquei in-ternada lá na São José. Com todos os empregados era assim”.

E assim continua. É Dona Lia na terra e Deus no céu.

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4Corre o ano de 73. Vamos retroceder

aos 30 anos de Lia. A Lia que volta de Boston exausta, quase no fundo do poço. Pronta para enfrentar uma reen-genharia em sua vida. Primeiro passo: ajustar os ponteiros na psicanálise.

Ela começa as sessões e confirma suas suspeitas e anseios – jamais ficará restrita a gravitar apenas em torno do marido. Jamais se manterá focada, uni-camente, em seus afazeres com crianças e casa, fes-tas e jantares.

E descobre na psicanálise a profissão que lhe cai como uma luva – a que ela vivencia no divã, que lhe permite manter-se em contato com a alma humana. Com a dela própria e com a do outro.

É o chamado de Freud.O passo seguinte é preparar-se para o vestibular.

Entra na Faculdade de Psicologia Santa Úrsula.Daí em diante, à medida em que você virar estas

páginas, descobrirá que este seria apenas o primei-ro dos muitos desafios de Lia nos 40 anos seguintes.

o chamaDo De FreUDNasce uma terapeuta

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A babá Adenir é testemunha ocular daque-les tempos de faculdade. “Com estudo o dia in-teiro, ela ainda conseguia se virar em cinco pra atender marido, vida social, casa, empregados, as crianças”.

Mariana diz que “Lia um dia teve uma sacada: de que, se não fizesse nada, não saísse de casa para estudar, iria infernizar minha vida, pois eu era me-nina e caçula…”

Baby Palhares conta que todos ficavam impres-sionados com a força de vontade dela, na fazenda. Enquanto um grupo enorme divertia-se montando ou na piscina, assistindo filmes ou ouvindo música, Lia recolhia-se – dedicava-se a um trabalho da fa-

a c i m a :Formatura de Lia, a nova psi da família

a o l a d o :Lia discursando no Congresso

n a p á g i n a a o l a d o :Equipe Mosaico, com Paulo

Raad, em 1999

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culdade ou ia simplesmente estudar. Estudar muito. Ler, ler muito.

Revela-se uma estudante aplicada, procura o es-tágio no Pinel, mergulha em sua formação analítica. É a Lia cabeça na linha de frente de sua batalha.

Até hoje Mariana e Marcos recordam o episódio angustiante vivido naqueles dias do estágio. O tele-fone toca vezes e vezes seguidas, a mãe não chega, uma voz desesperada grita, insiste em falar com a Doutora Lia – caso contrário, ameaça, vai-se matar.

“Foi um horror, fiquei em pânico, ansiosíssima, nem existia celular, como é que eu podia entrar em contato com a minha mãe? Mas fiquei mais surpresa ainda quando ela chegou em casa e, com

serenidade e sensibilidade, dominou a situação”, recorda Mariana. Eram os ossos do ofício daqueles tempos distantes.

Formada, Lia abre seu primeiro consultório em Botafogo. E é então que conhece o psiquiatra Paulo João Raad por intermédio do colega Werner Zimmerman – e ela e Paulo trabalharão juntos por 10 anos seguidos.

Paulo nos conta em seu consultório acima da saudosa Confeitaria Colombo, em Copacabana, que vivera 22 anos na Suíça, onde se formara em Medicina e Psiquiatria, especializando-se em Terapia de Família em Lausanne. O encontro com Lia é o encontro de duas cabeças voltadas para a

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bastante, trocam ideias e ele aceita seu convite para organizar o Mosaico – o Instituto Mosaico de Pesquisa Humana, que teria foco em Terapia de Família.

Lia compra uma casa simpática na Urca, põe num caminhão seu sofá freudiano e seus livros, equipa o Mosaico, muda-se e reúne quatro profis-sionais competentes.

“Cada um pagando luvas e rateando o aluguel, ela inclusive”, explica Paulo. “A Lia é extremamen-te generosa, fazia tudo que estava ao alcance dela, e o Mosaico jamais teria sido o que foi, sem ela”, afir-ma categórico.

a c i m a :Ema, a amiga psi

mesma direção. Com a mesma sintonia. Na mesma faixa de onda.

A meta de ambos é formar pessoal e tratar famí-lias – Lia buscava isto há tempos. “Tivemos sempre uma afinidade intelectual muito grande”, diz ele.

A ela credita o fato de sua volta ao Brasil ter sido bastante facilitada: “Eu já estava com 50 anos, ainda revalidando meus diplomas no Brasil, o recomeço não seria nada fácil”. Mas conhece Lia, conversam

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Instalado o instituto, a doutora Lia parte para especializar-se mais. E vai logo à fonte, revela o amigo. Voa para Nova York para conhecer a Terapia Estrutural fundada pelo médico psiquiatra argen-tino Salvador Minuchin – que lá criou o seu polo irradiador de pesquisas e teorias que correm mun-do afora.

Hoje Minuchin, aos 93 anos, mora em Boca Ratón, na Flórida, e ainda dá conferências.

A visita em Nova York à Clínica Roberto Clemente para latinos propicia o segundo gran-de encontro de sua carreira – desta vez com a ar-gentina Ema Genijovich, Terapeuta Sistêmica de Famílias, Casais e Organizações. Lia assiste a uma aula de Ema sobre Terapia Familiar, sente fluir a afi-nidade de ideias, conceitos e metas entre ambas e confirma que este é o tipo de terapia que quer ado-tar no Mosaico.

Paulo Raad conta que Lia convidou Ema ime-diatamente para participar de um congresso sobre o tema no Brasil e, mais que isso, para atualizar o pessoal do instituto – o que aconteceria por três anos seguidos:

– A longo prazo, o resultado das vindas de Ema é que por mais de 20 anos o Mosaico formou centenas de psicólogos, psicopedagogos, assistentes sociais e médicos na arte da abordagem familiar.

“Uma coisa espetacular em Lia”, acentua Paulo, “é que ela sempre quis aprender, mais e mais, e en-sinava tudo que sabia. Jamais fez o tipo de guardar um coelho na manga”.

Ema e Lia trabalhariam juntas em várias oca-siões e se tornariam amigas pessoais pelos trinta anos seguintes, até hoje. Mantêm a amizade ven-do-se no Rio, em Buenos Aires e em Nova York.

De Buenos Aires, onde vive, Ema relata o início desse convívio: “Compartilhamos sempre nosso trabalho com famílias e casais, comentando nossas

experiências e as novidades mais recentes em nosso campo. Colaborei com Lia no seu maravilhoso pro-jeto da Cruzada do Menor. E estive com ela quando apresentou nos Estados Unidos seu trabalho sobre a Cruzada, na American Family Therapy Association”.

Ema impressiona-se com a grande humanida-de de Lia, com seu compromisso social, com sua solidariedade – o que a levou a compartilhar com a amiga momentos realmente difíceis em sua vida.

Mas Lia não fica restrita à Terapia de Família. “Ela deu cursos, conferências, organizou congres-sos, aperfeiçoou-se lá fora, foi até à o n U apresentar seus projetos sociais. Isto, além de tratar de pessoas. É muita coisa. Convenhamos que não é para qual-quer um”, arremata o amigo Paulo Raad.

Tratar de pessoas. Foi com esta finalidade que a Dra. Lia agendou uma hora para o advogado José Antonio Fichtner, lá no início dos anos 2.000. Ele queria fazer análise, uma irmã dele indicou-a, e por cerca de dois anos mantiveram sessões individuais no consultório da Urca.

Como profissional e como pessoa, é imensa sua admiração por Lia. Considera-a alguém “relevan-te, com a característica de estar sempre à frente de seu tempo”. E ela soube avançar nas décadas, diz ele, “mantendo sempre uma curiosidade mui-to especial”.

Hoje, a amizade que os une vai muito além da delicada relação entre analista e analisando. Hoje, José Antonio tem na família Carvalho a extensão de sua própria família.

Estes laços privilegiados começariam, como dita a cartilha freudiana, após o final do tratamento psicana-lítico. Tempos depois Lia o indica para integrar a y p o--Young President’s Organization – que reúne mais de 20 mil executivos de empresas líderes em 125 países.

Como este é o ramo do escritório de advocacia Andrade Fichtner, José Antonio passa a fazer parte

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da organização – e aí tem início a amizade com os Carvalho, através de Marcos e Marcelo, já membros da y p o .

Ele percebe que o olhar atento dela para com as pessoas levou-a a dedicar-se à Cruzada do Menor e, consoante com o que se fazia nos Estados Unidos, a formar pessoas para trabalharem na área.

José Antonio engrossa a ala dos que comentam a incrível capacidade de Lia em detectar problemas e solucioná-los. E continua, enquanto sorve rápidos goles de seu expresso:

– É a própria formação psicanalítica de Lia, sua experiência em ajudar pessoas, que fez com que ela adquirisse uma dinâmica, um modo bastante pragmático de entrar em qualquer problema para resolvê-lo.

As duas famílias encontram-se hoje em Angra ou na fazenda, nas viagens pela ypo – e, mais im-portante ainda, “nos bons e nos maus momentos”, ressalta.

Com esse pragmatismo de Lia em resolver pro-blemas, apontado por José Antonio Fichtner, con-corda a amiga e psicóloga Maria Tereza Maldonaldo.

“Lia é uma fábrica de ideias”, define. “E, o mais importante: ideias sempre passíveis de se-rem aplicadas”.

Ao encontrar Maria Tereza num dos muitos eventos promovidos no Mosaico, já lá se vão três décadas, Lia detecta em si mesma aquele senti-mento surgido ao conhecer Paulo João Raad e Ema Genijovich – a descoberta, a alegria de sentir suas mentes na mesma faixa de onda.

Maria Tereza aborda sua experiência na ong Associação Brasileira Terra dos Homens, Lia fala da Cruzada do Menor – da qual pouco depois Tereza participará como uma das vice-presidentes.

No Shopping Nova América começam a dar formação aos profissionais que atendem famílias.

a c i m a :Maria Tereza Maldonado

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O contato entre ambas torna-se regular – além do trabalho, longas conversas sobre leituras, sobre a vida, sobre projetos. Trocam muita informação.

E começam a fazer como que uma supervisão mútua, conta a psicóloga.

Ela percebe na amiga “um pensamento sistêmi-co muito elaborado, sempre observando a rede de relações em volta. E tem aquela capacidade que aca-bamos de abordar: o fazer acontecer. Comunica-se com clareza com vários tipos de pessoas, levando-as a se transformar”.

E conclui, enquanto observa lá de cima a praia de Copacabana inteira aos nossos pés: “Podemos então falar numa Dra. Lia extremamente perspicaz, que com sua tarimba de terapeuta faz a leitura de uma pessoa sob vários ângulos – observando o corpo que fala, os olhos que falam, sabendo chegar-se ao outro, fazendo com que fortaleça seus recursos e possa se desenvolver, abrir seus próprios caminhos”.

“Ela sabe gerenciar pessoas”, arremata Maria Tereza.

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O amálgama dessas várias mães numa só faz Mariana achar que daí nasceram os frutos que ela, como filha, continua a colher hoje – a excelente relação que a faz parar para “ouvir a Lia”, como ela a chama, “a aceitar quando ela volta e meia me dá uma boa sacudida, me faz parar para pensar, para conversar muito…”

E, ao final da conversa, revela Mariana, “en-quanto desço no elevador, faço o check list desses papos e sinto que resolvemos muitos itens, mas acrescentamos novos. Coisas que Lia vai introdu-zindo nas conversas como se fosse a programação da próxima”.

De outro lado, Mariana crê que a profissão de Lia lhe deixou o cacoete de manter um olhar psi sobre

toda e qualquer questão, o tempo todo. Parece ser muito desafiador, ou quase impossível para ela, se-parar os fatos do cotidiano de seus conhecimentos e personalidade analítica.

Assim, frisa Mariana, ela está sempre analisando alguma coisa.

– Como pessoas que convivem com ela, nos be-neficiamos muito da visão sistêmica de Lia, com seus toques, suas chamadas, mas seria bom ela às vezes desligar a cabeça…

Marcelo atribui exatamente à especialidade da mãe como terapeuta de família “a cabeça extrema-mente organizada da Lia. Foi a formação dela, sem dúvida alguma, que sempre a levou a abordar todo e qualquer assunto conosco sem problemas, sem tabu, sem meias palavras”.

E enfatiza: “Ela sempre se propôs a olhar de fren-te e a resolver os conflitos, as separações, problemas de filhos, de sexo, tudo. E sempre numa ótica muito particular dela, uma ótica muito Dona Lia”.

A Lia menina, que acalentava o sonho de ser médica – sonho contrariado pelo pai –, através da Terapia de Família torna-se um nome respeitado, reconhecido em sua área, com agenda lotada, fre-quentemente sem tempo para atender todos aque-les a quem gostaria de ajudar. E torna-se também um enorme orgulho para toda a família.

Lia tem amigas psi que se tornaram amigas de infância. E uma amiga de infância que se tornou, como ela, psi.

É o caso de Maria Stella Proença Barata, que res-salta a coragem de Lia, o fato de ela ter batalhado na busca por uma personalidade própria. “Prática e ousada, Lia sempre estudou muito, organizava seminários, grupos de estudos. E venceu”, constata Maria Stella.

Lia venceu. Transformou-se. Fez o que propicia aos outros: tornou seus sonhos em realidade.

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5N a infância e adolescência, Lia

frequentara a Fazenda Três Saltos, em Piraí, no Estado do Rio – um reino encantado com cachoeiras e bambuzais, onde ela corria a cavalo e brincava no

porão da imensa casa de dois andares, pontilhada de portas e janelas, de propriedade de seus tios Lulu e Ilka Nolasco.

Muitos anos depois, é uma fazenda impressa nos desvãos de sua memória, tão mágica quanto a de sua infância, que Lia convencerá Sergio a comprar.

Ele, que se auto define como um homem do mar, desde sempre ligado a barcos e tendo nos esquis aquáticos uma extensão dos próprios pés, lembra que ficou atônito, morrendo de medo com a pers-pectiva de “meter-se no mato”.

Afinal, é sobre as águas, ao leme de seu barco, que Serjão faz uma espécie de catarse para livrar-se do estresse – “poxa, mas uma fazenda?” Que raios ele iria fazer, já que não tinha a menor vocação nem

vontade de se transformar num ser rural, cercado de galinhas, cavalos, ovelhas, vacas e pastos?

Mas tanto Dona Lia argumenta e canta loas sobre seu novo projeto, que acaba por provar ao renitente Sergio, por A+B, os ganhos que a família obterá ao se reunir au grand complet num paraíso como aquele de sua infância.

E o marido dá o braço a torcer.“Ah, o Serjão sempre vai na onda dela”, constata

Mariana. “Primeiro, ela é uma mulher de ação, do tipo que bola e executa mesmo. Segundo, no fundo ele sabe que ela tem razão”.

A compra da Fazenda Águas Claras é mais um case no extenso anedotário familiar sobre a tenaci-dade de Lia.

O casal vasculha o Estado do Rio em buscas in-frutíferas durante cinco anos. Vinte fazendas visita-das, e nenhuma chega aos pés do reino imaginado. Até que um dia, no glorioso ano de 1973, o casal de-para com uma propriedade centenária no Vale de São José do Rio Preto – e, apesar de Sergio não ter

no reino Das ÁgUas claras

A magia da fazenda

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sido um entusiasta do negócio, ambos ficam absolu-tamente apaixonados.

–Tinha um senhor com um caminhão de gado que, para nossa surpresa, apresentou-se como dono da fazenda. Eu disse que gostaríamos de comprá-la, ele disse que não tinha interesse nenhum em ven-dê-la. Deixei meu cartão com ele e pedi que, caso mudasse de ideia, entrasse em contato. Mas saímos de lá arrasados – recorda Sergio.

Três meses depois, eles compram a Fazenda Águas Claras.

Para a geração de Lia, que devorava na infância a coleção de livros de Monteiro Lobato, o nome da propriedade certamente evoca um lugar onde as coisas mais fantásticas acontecem – o Reino das Águas Claras no Sítio do Pica-pau Amarelo. Por lá circulam Narizinho e até Peter Pan, Pedrinho

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a o l a d o :As irmãs na Fazenda Três Saltos. Lia foi

pegando gosto por fazenda.Fazenda Tres Saltos – curtindo os cavalos

entre dragões e cavalos alados, Emília, iaras, sa-cis – e um Príncipe Peixinho que quase casa com Narizinho.

Toda a magia das férias na fazenda acabou im-pregnando as melhores lembranças de infância e adolescência dos filhos, sobrinhos e amigos dos filhos de Lia e Serjão. Passadas décadas, estas me-mórias entrelaçam-se com os dias lá vividos. Tudo

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começou quando Marcos estava com sete anos, Marcelo com seis e, Mariana, apenas dois.

“Imagina que até hoje meus amigos se lembram da gincana que a Lia organizou para festejar os meus 15 anos”, corrobora Mariana. “Uma farra ines-quecível. Foram nada menos de 200 adolescentes, vários ônibus fretados, lotados, subindo a serra”.

Todos os anos Lia e sua mãe, a vó Stella, provi-denciavam altas comemorações na Páscoa e nas festividades de São João. Milhares de ovinhos es-palhados pelo terreno e pela casa para a criança-da procurar, inclusive a garotada das vizinhanças. Fogueira, casamento caipira, pratos típicos nas fes-tas juninas – pamonha, canjica, milho verde, quen-tão, o vinho quente temperado pela vó Stella…

Aliás, até a missa dominical acabava se tornando um grande evento, com as crianças disputando ex-citadas o lugar de sacristão – a maior farra para elas, afinal, era ajudar o padre.

A fazenda foi palco de grandes agitos ainda na fase de Lia e Sergio mais jovens, e “era incrível como ela sempre se virava: naquela época nem te-lefone tinha, e só na véspera ela sabia quantas pes-

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a o l a d o :A fazenda Águas Claras

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soas iriam subir, quinze? vinte? E sempre deu tudo certo, o que ela sempre quis foram os amigos por perto”, diz Mariana.

E lá já chegaram a dormir 50 pessoas de uma só vez.

Como amigos, aliás, são itens de primeira ne-cessidade na família, estão sempre onde quer que os Carvalho estejam. Há até quem diga até que Lia deve ser parceira espiritual de Milton Nascimento e Fernando Brant, na belíssima Canção da América, e que seria dela o verso que melhor traduz o senti-mento da amizade:

– Amigo é coisa pra se guardar, no lado esquerdo do peito…

Ninguém pode provar, mas há um feeling de que é a pura verdade…

Para esses amigos, hóspedes em tantas tempora-das, são memoráveis o cheiro da cozinha da fazen-da, o queijo de Minas com o leite das vacas do curral, os doces de frutas do pomar… O requinte das malas dos hóspedes desfeitas pelas mãos das atiladas ar-rumadeiras, o vai-e-vem quase invisível da equipe de funcionários… As noites no acolhedor porão, em torno da lareira, pizzas e ping-pong, sinuca, bar, pia-no, música e conversas sem fim. E a casa estupenda.

Tudo isso faz com que os amigos se sintam em Downton Abbey, aquele castelo da série inglesa da b b c . É só fingir que você está em Hampshire, no sul da Inglaterra – aí, tudo se encaixa direitinho.

Para os que chegam, Lia avisa logo: “Olhem, a re-gra aqui é não ter regra. Cada um que descubra sua própria forma de prazer”. E assim é.

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Uma que atrela suas melhores lembranças ado-lescentes às Águas Claras é a afilhada e sobrinha de Lia, a Tiana (Cristiana Calarge), filha de Regina. “O mais incrível na personalidade da Tia Lia é que ela não apenas recebia em casa, mas proporciona-va mil e uma diversões e fazia questão de ter a casa sempre cheia, os filhos e amigos dos filhos”.

Lá Tiana aprende a montar e lá ganha seu pri-meiro cavalo. Os primos e amigos divertem-se com os porcos, galos e carneiros, com o touro Motivo desfilando, tomam leite no curral, curtem a foguei-ra que a Tia Lia manda acender e a casa de bonecas pedida por Mariana.

Travam-se guerras de travesseiros e os meninos, mais ousados, guerras de barro. Armam tendas,

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acampam pelo gostinho de dormir fora de casa, sen-tindo o friozinho da noite e olhando o céu estrelado.

Como a televisão ainda não chegou, as noites costumam contar com uma atração especial – o vovô Chico, pai de Lia, one man show que con-ta histórias, inventa personagens e abusa da criatividade para manter sua jovem plateia de olhos arregalados.

Um dos personagens prediletos de seu reper-tório, segundo Marcos: um índio, que o avô jurava existir e de quem as crianças um dia começam a duvidar. Vô Chico não tem dúvidas: contrata um na-tivo dos arredores e o veste a caráter, com tudo que um índio tem direito. Emocionada, a turma passará anos acreditando piamente que tudo era verdade.

Os garotos deviam achar que ele era o próprio companheiro do Zorro disfarçado, o Tonto, e que a qualquer momento saltaria entre eles com seu ca-valo branco…

O vô Chico tinha umas manias engraçadíssimas, continua Marcos. Rotina para ele era coisa sagrada. O calendário da reza, por exemplo – três vezes por semana ele rezava para sua mulher, Stella, e para Lia. Nos outros três dias, para Regina e Mônica. Aos domingos, todas elas recebiam orações especiais.

E tinha um cardápio que devia ser religiosamen-te seguido pela vó Stella: a cada dia da semana, to-das as semanas do ano, ele exigia os mesmíssimos pratos. E as manias, é claro, não param por aí. Como a dos pregadores de roupa: cada terno que usava

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recebia na manga um pregador como se fosse uma condecoração, evitando que voltasse a usá-lo na-quela mesma semana.

Os aniversários do avô eram o maior evento – só para os netos poderem cantar em coro, bem alto, no final do Parabéns a Você: “Vô Chicô, xixi-cocô!”. E o avô se divertia.

Com tantas diversões e emoções, quem ousa dizer que a fazenda não era, de fato, o Reino das Águas Claras?

A bagunça era sensacional, recorda Tiana. Dormiam seis meninos num quarto, seis meninas em outro, quartos que a gente chamava de mijol, pois ainda tinha criança que fazia pipi na cama… Eles vinham espiar a gente pelas frestas das portas de cocheira, Tia Lia dava as maiores broncas! ”

O amigo de infância dos meninos, Guilherme Libanio Carvalho, participante dessas zoeiras na fa-zenda desde sempre, tem uma visão bem masculina do caso e adora contar esta história em detalhes:

“O quarto das meninas ficava ao lado do quarto dos meninos, na fazenda – três beliches em cada quarto, mais três colchões no chão. Nós tínhamos 12 ou 13 anos, mais ou menos. Um compensado de madeira separava os closets. Carlos Werneck fez um buraquinho pequenininho na madeira, que rendeu um verão de visuais sensacionais das meninas de ca-misola, trocando de roupa, enroladas na toalha. Até que o guloso do Marcos Carvalho achou o buraco pe-queno e resolveu aumentar. E fez outros dois ou três para todos podermos assistir ao espetáculo juntos”.

Para tanta gula, o castigo veio a cavalo. Quando as meninas apagaram a luz, vários fachos de luz ilu-minaram o quarto, filtrados pelos buracos: “Quando elas descobriram, tomamos mais uma das broncas da Tia Lia. Mas, uma bronca a mais ou uma a me-nos, nem fazia diferença. Só que ela mandou vedar as frestas e foi triste perder o cineminha de todas as noites”, lamenta.

Guilherme entusiasma-se ao lembrar esse pas-sado dourado. “Devo à Tia Lia e ao Serjão, à fazenda, ao barco, ao apartamento da Urca, passagens me-moráveis – algumas publicáveis, outras não… – da adolescência, do princípio da idade adulta até aqui”.

– A Tia Lia fingia não ver a namoração que rola-va. Ela decretava: ‘Meus bodes estão soltos, cada um que cuide das suas cabras!’ Sempre tive na Tia Lia grande conselheira.

Mas os papos mais cool, admite, eram antes de ela resolver ser psicóloga: “Daí em diante a Tia Lia virou meio que bedel da rapaziada, uma espécie de ombudsman, acho que para aplicar o que aprendeu na faculdade…”

Mas há quem discorde e adore o lado psi da Tia Lia.O sobrinho Gustavo Baptista, filho da Mônica,

hoje tem 30 anos e aos 17 comprovou como os laços se estreitam de forma definitiva quando apertados em momentos adversos.

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Aliás, a primeira moto dos meninos, uma Honda 50, a popular cinquentinha, foi comprada do amigo Pedro Dorey, literalmente com o suor dos rostos de Marcos e Marcelo. Explica-se. Ambos resolvem fa-turar por conta própria uma graninha, já que “Lia e Serjão não davam mole, não passavam a mão na cabeça, sempre foram do tipo que a gente tinha que ralar para conseguir as coisas”.

Passam então a alugar som para festas – e, com Marcos como d J , e Marcelo fera na iluminação, a dupla se dá muito bem. Devem ter descoberto, aí, a herança do bom empreendedor.

Dona Lia deixava a criançada pintar e bordar, é verdade, mas é bom que fique claro – sempre impu-nha limites. Educava. E ficava muito brava quando a coisa extrapolava.

Algumas dessas broncas implacáveis: quando os meninos e seus amigos, já adolescentes, resolvem soltar morteiros na Hípica, assustando os cavalos.

Ou quando uma tremenda guerra de ovos espalha um cheiro insuportável pela casa da fazenda. Dona Lia vai esperá-los no quarto, bota as mãos na cintura e dispara para os amigos dos meninos, os mentores da ideia: “Carlos Werneck e Marcelo Bailey descem de ônibus pro Rio. Agora”. E não tem nem conversa. Os hóspedes botam a viola no saco e fim de papo.

Há 41 anos funcionário da fazenda, o Vicente Araújo Chaves foi testemunha e cúmplice das tra-vessuras dos meninos. “O Marcelo tinha uns seis anos quando resolveu entrar no curral, sozinho. Mas a vaca estava com bezerro novinho e não que-ria ninguém por perto. Resultado: espremeu tanto o Marcelo contra a cerca, coitado, que ele saiu de lá todo machucado, direto para o hospital”.

Diz ele que, tantas vezes foram parar no hospital, que Doutor Sergio passou a administrá-lo…

Marcos montando o Black, e Marcelo no Para-Raio, não tinha quem segurasse, garante Vicente.

Isto ocorreu quando ele teve um surto. Lembrou-se imediatamente da tia Lia, já psicóloga, e com quem mantinha um vínculo muito estreito.

“Liguei para ela e fui contando: olha, tia, eu não estou bem, estou muito confuso, preciso sair dessa situação. E dei todos os detalhes. Tia Lia foi escu-tando e colocando suas perguntas. Passado um bom tempo de conversa, ela me disse para ficar em casa e aguardar seu telefonema”.

E assim ocorreu, recorda Gustavo: “Quando o te-lefone tocou, Tia Lia foi logo avisando: ‘Sua hora com o psiquiatra já está marcada para amanhã de manhã’. Até lá, me telefonou umas duas vezes para saber como eu estava passando. Só a dedicação da tia foi-me dei-xando mais tranquilo”, confessa hoje Gustavo.

Ele faz questão de falar no assunto para desmis-tificar o preconceito da sociedade diante de um problema enfrentado por ele: “Temos que adotar uma atitude política de revelar o que sofremos, pois é a única forma de nos livrarmos dos estigmas que recaem sobre quem está, eventualmente, enfermo”.

Daí em diante, Gustavo transformou a sólida amizade com Tia Lia em um canal sempre aberto de comunicação.

– Você sabe aquelas coisas que a gente não con-ta nem para a mãe? Pois bem. Essas, eu conto para Tia Lia.

Dos tempos memoráveis nas Águas Claras, Gustavo recorda-se que lá ele aprendeu a andar de moto e deu seu primeiro passeio numa das grandes. “Marcelo ia sair com a sua poderosa e, já com o motor roncando, me convidou para ir junto. Peguei a única moto micha, com receio… Ele me disse para montar em outra potente e foi ensinando: ‘Você liga, acelera, ouvido o ronco passa a primeira, acelera mais, passa a segunda, a terceira e vai me acompanhando”.

Vivi um dos melhores dias da minha vida, re-lembra Gustavo.

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“Dona Lia costumava trazer uns 12 meninos e eles aprontavam pra valer. Numa dessas vezes, enterra-ram todas as calças no lago e só no dia seguinte o meu pai – o então administrador Pernambuco – foi descobrir as roupas, cobertas de lama”.

Castigo exemplar da Dona Lia: “Leve todos ao hospital, que eles estão precisando tomar uma in-jeçãozinha de Benzetacil ou coisa parecida. Vai fazer bem”. Os meninos ainda lembram: doía pra caramba.

No começo da década de 80, Marcos e o amigo Guilherme inventam de amarrar um carneiro na caminhonete e transportá-lo direto da fazenda para a casa dos pais de Guilherme, no Rio – onde Angela (madrinha de crisma do Marcelo) e Ney Carvalho

dão força aos concorridos churrascos dos meninos na esticada da praia do Pepê.

Descem a Serra debaixo da maior chuva e, quan-do já estão no castelinho do Humaitá combinando os temperos e o dia do sacrifício, surge a irmã de Guilherme, a Bel – que cai de amores pelo fofo.

Moral: o carneiro é imediatamente batizado de Clodoaldo, salvo dos espetos e passa a regalar-se com a grama do castelinho. Só será abatido três anos mais tarde – para choros e lamentos da Bel, já que ele era um verdadeiro pet na família.

Mas nem só de diabruras infantis vivia a fazen-da. Vários amigos lá passaram fins de semana ines-quecíveis. Baby Palhares lembra que todos se di-vertiam saindo a cavalo, tomando muita caipirinha

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à beira da piscina, e dançavam à beça – “grandes tempos!”, recorda.

Serjão reconhece, com seu eterno bom humor, enquanto degusta um linguini com frutos do mar, que a compra da fazenda “acabou-se revelando uma tre-menda ideia. Como temos hoje 16 quartos podemos receber os filhos, os netos, os amigos, e até os parceiros de negócios incorporados à grande lista de amigos”.

Vários eventos já aconteceram por lá – de fil-magens de novelas a casamentos de verdade. No de Mariana, uma produção impecável, centenas de convidados, imenso toldo com mesinhas, eis que a amiga Laura Pederneiras – responsável pelo bufê – é abordada discretamente por Lia enquanto a festa já rola a mil: “Será que você pode me ajudar? ”

Dirigem-se a uma sala e Laura mostra abandona-das e espalhadas por todos os cantos, caixas e caixas com cinco mil docinhos, sem que ninguém tivesse se dado ao trabalho de arrumá-los. Um caos. “Se eu fosse a dona da festa teria perdido a compostura, ido atrás dos irresponsáveis, feito o maior escar-céu. Mas aí você vê a tranquilidade e a educação da Lia. Arrumamos tudo aquilo nas bandejas e saímos quietinhas, ninguém soube de nada”.

Uma grande amizade nascida da proximidade de suas fazendas é a que une Lia e Marilu –, a Maria Luz Schneider, mulher de Marco Polo Moreira Leite, amigos há alguns anos –, cuja propriedade fica ape-nas a três quilômetros.

Aos poucos a amizade delas foi-se estreitando, embalada pelas primeiras coincidências: as filhas de ambas, Mariana e Karin, casam-se na mesma época e têm meninas praticamente ao mesmo tem-po – Maitê e Maria Eduarda.

O que mais chama a atenção de Marilu é o vigor mental de Lia, o “que a torna muito mais jovem que eu”, diz ela. Daí os 15 anos que as separam desapare-cerem totalmente, avalia.

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Tiete absoluta da amiga, ela impressiona-se com sua atitude low profile, com a generosidade que a leva a cuidar de todo mundo, indistintamente, com a praticidade que torna a vida dela – e dos outros – mais fácil.

“A Lia me ensina a viver. Me dá dicas incríveis de como abastecer a fazenda, do melhor tintureiro perto do meu escritório. Já fiz uma apostila com as mil dicas dela. É tão prática que, quando operou os dois pés, aproveitou para fazer cirurgia de catarata e aproveitou para reformar seu quarto – ufa, tudo ao mesmo tempow . Ela tem a capacidade de matar cinco coelhos com uma só cajadada”.

Foi a Marilu designer quem desenhou a caixa e o rótulo da Cachaça Dona Lia, a marca e faixas da Daschú – a obra social do casal, em São José –, como uma forma de poder compartilhar do sonho da amiga.

A nora Renata, mulher de Marcos, também con-corda com a opinião de Marilu sobre Lia. Renata tem uma ligação muito afetuosa com a sogra, pois “ao chegar ao Rio vinda de Recife, onde nasci, ela me deu o maior apoio”.

Renata observa o cotidiano de Lia e fica impres-sionada. “Ela simplesmente não para. Seja nas obras sociais, seja no cotidiano da família. É uma pessoa sempre presente quando percebe que pode ser eventualmente necessária. Devido a esta postura desprendida e solidária, sua vida é um verdadeiro furacão”, diz ela.

– Resumindo, a Lia toma conta de tudo e de todos. Ela hoje é a matriarca dos Carvalho. Não há dúvida.

No momento Renata se encontra totalmente vol-tada para a educação de seus quatro filhos e para o apoio social que dá a Marcos: “Estou herdando mui-to a maneira de ser de Lia, aprendendo muito com ela”. E garante: “Um dia desses vou me apresentar à ela como ajudante em sua grande obra social”.

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6S e neto é filho com açúcar, vamos com-

binar que avó também pode ser mãe com açúcar.

O caso da vó Lia é típico. Você já viu alguma avó comprar para ela própria álbum de figurinhas da Copa, para co-

lecionar e poder trocar com os netos?Sair com vários dos 10 netos para comprar ca-

misas e álbuns, chuteiras ou bandeiras, vá lá. Mas, cá pra nós, também não é toda avó que se anima a carregar por aí um time de futebol quase completo.

A explicação de Regina, sua irmã, talvez clareie tudo: “A Lia tem um coração enoooorme”. Todos os filhos, parentes e amigos ressaltam logo esta sua magnífica faceta – a doação de si própria aos netos, o tempo que ela dedica, entre tantos compromissos, a estar só com eles, levando-os para a fazenda, agen-dando programas.

E eles, não é preciso dizer, se amarram na vó Lia.Marcos endossa os testemunhos dos filhos Felipe,

treze anos, João, dez, e de Maria, sete. Já completa-

ram os álbuns da Copa e, cultivando o espírito dos Carvalho, doaram figurinhas, álbuns, chuteiras e ca-misetas às crianças carentes.

O enteado de Marcos, Renan, filho de Renata, já tem 24 anos, cursa Administração na Cândido Mendes e, convenhamos, não mais faz parte da pro-gramação dessa patota.

Mas o engraçado é que a namorada comprou também o álbum de figurinhas da Copa, e acabaram todos eles fazendo uma verdadeira mesa de troca em casa, conta Renan.

Ele gosta de namorar na fazenda, às vezes o casal sobe com mais alguns amigos, mas o negócio para ele é descansar – piscina, um filminho, fazer uma massa à noite na cozinha com um vinhozinho ao lado.

“Entrei na família com uns nove, dez anos, fui super bem acolhido, o entrosamento foi muito fácil, me trataram sempre como um neto”, ele enfatiza.

Segundo Renan, “a relação com a Lia é ótima, mas também ela é uma pessoa bem easy going, uma pessoa muito fácil de conviver”.

netos, Filhos com açúcarUm time de futebol quase completo

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Felipe e João sobem com a vó, mas João chega a ficar por lá com ela até 10 dias. E você arranja o que fazer, João, ou fica mesmo no videogame? Ele nega. Responde, animado, que prefere montar o Campeão, brincar com os porquinhos da Índia, com os coelhos, com os cachorros Panda, Pipoca e Pizza – dois deles a tia Regina achou numa lixeira, adotou e levou para a fazenda.

Herdaram da avó o gosto pelos filmes legais do h d externo que ela carrega para onde quer que vá. Os ir-mãos, quando menores, não perdiam o filme do cava-lo Spirit. Hoje preferem algo repleto de lances emo-cionantes, ao estilo de Capitão Philips, visto há pouco.

Estudam na Escola Britânica, mas será que ainda estão na fase do the book is on the table? Eles riem, garantem que não, e acabam confessando que não gostam de ler – nisso, decididamente, o sangue da vó Lia passou de longe.

Maria é fã dos teatrinhos, cinema, compras no shopping, bem mocinha e charmosa em seus sete anos. Mas o melhor de tudo, coisa pra ficar na lem-brança, foi uma célebre volta de pedalinho no lago da fazenda.

Não se sabe bem o que aconteceu. Mas que o pe-dalinho virou, ah, isso virou. As más línguas contam que todos estavam em casa quando viram avó e neta entrarem de relance, correndo, ensopadas e enla-meadas. O resto é segredo.

Renata, mãe de Maria, conta que a filha é tão che-gada à vó Lia que outro dia perguntou, com a maior sem-cerimônia: “Estou louca pra ir para a fazenda com a vovó. Quando é que você vai viajar de novo?”

Na verdade, diz ela, os filhos são tão fissurados na avó, que sempre que Lia vai para a fazenda procu-ram ajeitar-se na caravana dela. E para alegria deles e da avó, sempre conseguem.

Mariana e Rodrigo, pais de Maitê, com cinco anos, e de Luca, com quase dois, compartilham

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o mesmo sentimento a respeito da Lia avó. Para Rodrigo, ela é “dedicada, uma avó excepcional. Do tipo que tem intimidade de verdade com os netos, interessa-se pelos assuntos deles, descobre tempo para dedicar a cada um deles, é incrível”.

Maitê está naquela fase em que se identifica com seus ídolos, as princesas. Como o phyisique du rôle ela já tem, enfia-se numa fantasia e assiste com a avó mil vezes Frozen, uma aventura congelante, por exemplo. E prova que tem propensões à cinéfila: a animação da Disney é umas das maiores bilheterias do mundo e a décima maior arrecadação da história do cinema.

O filme é precedido não pela usual pipoca – mas de uma corrida ao freezer, onde a avó mantém espe-cificamente para os netos um sortimento de picolé Itália em volumes tipo atacado. Aí, não precisa mais nada – o dia está ganho. O avô Serjão de quando em vez faz suas travessuras e assalta o freezer em busca dos picolés.

Mariana vê em Maitê um espelho dela própria, sob vários aspectos. Quando calça os saltos altos de Mariana, como ela fazia com os de Lia, ou usa sua maquiagem – sombra e blush, e sai toda feliz. “Ela também tem uns traços meus, é quieta, mas decidi-da, ah, e dificilmente muda de ideia”, revela, rindo.

Dia desses, diz Mariana, a Maitê se saiu com um comentário divertidíssimo: “Ô mamãe, a vó Lia é meio maluquinha. Ela me empresta o iPad dela e depois fica zonza, procurando pela casa, ‘cadê meu iPad, cadê meu iPad?’ Parece maluquinha, mesmo”.

Maluquinha ou não, “ela é espetacular, absoluta-mente fora do comum”, acrescenta Marcelo.

Ele e Maria Gabriela são pais de Bernardo, e ela trouxe do primeiro casamento a Sofia, hoje com 11 anos.

Gabriela conta que a família é extremamente afetiva, e Sofia, ao chegar, foi recebida de braços

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abertos, imediatamente incorporada como neta. Chama Lia e Sergio de avós, e Lia “é super carinhosa com meus filhos, muito atenciosa, não faz distinção ente eles. Adoram a fazenda e nos reunimos muito lá”, diz Gabriela.

Marcelo, por sua vez, tem gêmeos de seu primei-ro casamento com Bettina Kligerman, os louríssi-mos Daniel e Francisco, já com 12 anos – com uma tremenda boa relação com a avó.

Ambos têm na memória uma viagem muito espe-cial que fizeram a um resort nas Bahamas, o Atlantis, a convite da vó Lia, grande companheira de viagem. Todos ficaram eufóricos quando, no final das férias, estacionada na porta do hotel, uma tremenda limu-sine alugada pela avó aguardava toda a galera para voltar para o aeroporto. Foi uma tremenda surpresa.

Francisco, perspicaz, capta bem o amor da vó Lia. Apesar de ela ter quase uma dúzia de netos, ele nota que ela tem a capacidade de respeitar a indivi-dualidade de cada um deles, como se cada um deles fosse único.

Daniel põe a mão na consciência e faz ao pai uma autocrítica sem meias palavras, realmente sincera: “A vovó só fica brava quando a gente faz realmente muita merda…”

Marcelo acha que essa forma de ver as coisas é a pura realidade. Diz que Lia dá à turminha “liber-dade para que todos se divirtam na fazenda, e só interfere quando há real necessidade – ou seja, ela transforma a fazenda num lugar mais especial ain-da, como se não houvesse limites dentro de uma ra-zoabilidade bastante flexível”.

– Mas eles sabem que quando a vovó pede para parar, é para parar mesmo. Isso ela não negocia. Ela é muito especial para os netos.

Com esse amor todo pela avó, não tem quem não goste dos dias com ela na fazenda – dias de muita alegria e curtição.

Mas, com a chegada dessa terceira geração e a incorporação de noras e genros – e fiel à filosofia de que sempre deve caber mais um –, a casa origi-nal, que já era grande, torna-se pequena. Por várias ocasiões Lia providencia restauros e ampliações, sempre preservando o estilo do solar construído no início dos anos 1800, em pleno ciclo do café, pelo Barão de Águas Claras.

Embora os filhos comentem que Lia adora uma obra ou simplesmente trocar todos os móveis de lu-gar, morrem de rir contando que frequentemente ela muda de ideia no meio do projeto, deixa os fun-cionários doidinhos e é bem capaz de deixar a obra rolando, a cargo de outra pessoa, e viajar.

Apesar disso, a verdade é que ela já construiu uma nova ala, com uma bela suíte para cada filho, quartos para os netos, sala de brinquedos, confortá-vel casa de hóspedes, casa de piscina e uma área de lazer no porão de fazer inveja ao melhor dos hotéis de charme.

O bom nisso tudo é que não apenas a fazenda, mas o barco também, acentua Sergio, são altamen-te agregadores.

Comprovando seu espírito de clã, Lia tem uma frase definitiva: “Da minha família ninguém sai. Só entra”. E assim é com os ex dos primeiros casa-mentos dos filhos.

Que o diga a Bettina Kligerman, ex-mulher de Marcelo, para quem “Lia é quase mãe. Muitas ve-zes havia coisas que eu não conversava com minha mãe, conversava com ela”. A empatia entre as duas foi imediata, desde que conheceu Marcelo, diz ela.

“Para você imaginar a nossa afinidade, nascemos no mesmo mês, ela dia 16 e eu dia 18. Somos fisica-mente muito parecidas, muitas vezes confundidas com mãe e filha. Temos ambas paixão por cachor-ros, temos a mesma profissão e, por influência dela, acabei me empolgando e me especializando em

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a o l a d o :Com Felipe e Melanie Klein nas Águas Claras

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Terapia de Família, como ela, o que foi uma desco-berta para mim”.

Bettina realça o fato de nem mesmo a separação ter abalado a relação entre ambas, sempre houve um espaço na relação que foi preservado. E imple-menta, com os filhos, a mesma educação que viu Lia transmitir aos filhos dela.

Ela sublinha o traço solidário da personalidade de Lia, sempre presente em momentos difíceis, como à época da gravidez dos gêmeos ou quando ela esteve doente. E Bettina é enfática: “Ela é amiga, dá suporte, faz uma parceria”.

Com esta imagem da Lia amiga concorda o gen-ro Rodrigo Jorge de Oliveira, casado com Mariana, que também considera Lia uma mãe, mais que so-gra: “Eles fazem questão de reunir todos ao redor deles, de atrair para casa, mesmo, e isso foi pas-

sando em cadeia para os filhos deles, e nós para os nossos filhos. A gente aprendeu a chamar os ami-gos dos filhos para casa. Já fizemos até um quarto de brinquedos no nosso apartamento também para acolhê-los”.

Rodrigo observa Lia na fazenda centralizando tudo, dando ordens, envolvendo-se nos mínimos detalhes, inventando brincadeiras para os netos, estabanada como sempre, bem humorada e diverti-díssima, lidando com flores e plantas, cercada de bi-chos e bebericando sua caipiroska – prefere a vodka à Cachaça Dona Lia, cuja destilaria Rodrigo ajudou a estruturar lá mesmo na fazenda.

O rótulo da cachaça é autoexplicativo:Fazer e conservar amigos tem um jeito todo espe-

cial que só o tempo destila até a perfeição. Quando a gente aprende o segredo, isso vira uma cachaça.

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Uma infra nota 10

Com tanta gente em casa, tudo tem que correr nos trilhos, como no melhor dos hotéis. Se a infra não funcionar, céus, é o caos. Mas tudo

por lá se torna viável com o corpo de funcionários im-pecáveis da dona Lia, escolhidos e treinados por ela.

Uma dúzia deles transmite a mesmíssima ima-gem dos patrões – exigentes, mas educadíssimos, os empregados tratados com muito respeito, plano de saúde, filhos com estudos custeados e todo o mate-rial pago. Vários chegam à faculdade.

E a primeira frase que todos ouvem do Doutor Sergio os deixa muito seguros: “Você me traz o problema que eu te dou a solução”. E assim acon-tece sempre.

Aliás, além da generosidade, uma das coisas que mais toca o pessoal é a atenção dispensada a eles pe-los patrões: “Quando chegam, sempre querem sa-ber como vamos, como estão nossas famílias, nunca deixam de dar um bom dia, um boa noite”.

E o mais importante é que exigem essa boa edu-cação dos netos. Desde pequenininhos, já são habi-tuados a cumprimentar e agradecer aos emprega-dos, garantem todos.

A chefe de cozinha Marília Soares Prata, que lá chegou aos 15 e hoje tem 52 anos, entende que Dona Lia exige o que tem direito de exigir, e quando dá bronca é que a coisa é muito séria, mesmo. Elogia o modo de a patroa ensinar: “Você está vendo aquela teia de aranha, lá em cima? Você tem que aprender a olhar com os meus olhos, para ver”, diz ela.

Dona Lia pagou a faculdade de Educação Física do filho dela, e quando duas sobrinhas foram mo-rar com Marília porque o pai era alcoólatra, ime-diatamente mandou fazer mais um quarto para as crianças.

E ela é uma pessoa “sem nenhuma frescura: quando vem sozinha para a fazenda vem na cozinha e se serve da comida que eu fiz pra gente”, conta Marília, orgulhosa.

A copeira e arrumadeira Rosângela da Silva, 24 anos na fazenda, diz que Lia é mãe e amiga, con-sidera o casal “de uma generosidade sem tamanho” e prova porquê: quando vários parentes perderam tudo na enchente de 2011, “eles primeiro mandaram instalar um postinho de saúde com todos os remé-dios para as primeiras necessidades e Doutor Sergio me disse: ‘O que precisar comprar, você tem liberda-de para ir lá e comprar, que eu pago’. E assim ele fez”.

O filho de Rosângela, André da Silva Gonçalves, está na fazenda desde os quatro anos e hoje, aos 28, cursa a Faculdade de Engenharia Civil em Petrópolis. “Dona Lia é quem paga tudo”, diz Rosângela, gratíssima por isso.

Mas esta é uma história exemplar, e precisamos esmiuçá-la – chamamos o André, um dos quatro jardineiros, para saber como ele “chegou lá” e vai

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ser engenheiro. Expressando-se muito bem, ótimo vocabulário, ele vai narrando sua história.

Dona Lia sempre aparecia para orientar o pes-soal do jardim, dizendo como queria distribuir as plantas, quais as de sua preferência, “cobrando sem-pre com muito jeito, muita educação”, frisa André. (Lia havia feito em 2008 o curso de Paisagismo do i b r a p -Instituto Brasileiro de Paisagismo, coorde-nado por Emi Ueno, aliando com isso a técnica ao bom gosto).

André terminava o ensino médio quando, certo dia, Dona Lia o chama para conversar. “Foi aí que ela me deu uma chacoalhada daquelas, uma sa-cudida que me deixou sem sono por vários dias”. Espantado, ouve Dona Lia perguntar:

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– Você vai fazer o quê da vida?– Como?!, gaguejou.– Você nunca sonhou em fazer outra coisa?

Nunca pensou em mais nada? Vai ficar satisfeito em fazer jardim a vida toda?!

André sai da conversa completamente tonto. Dias depois procura Dona Lia: “Eu sempre tive um sonho, sim. Mas é um sonho inatingível. Não posso chegar lá. Sempre quis ser engenheiro civil”.

Resumo da história: Dona Lia orientou-o a se matricular num curso de inglês, que ele está ter-minando. Ao mesmo tempo fez vestibular, entrou para a Faculdade de Engenharia de Petrópolis, onde cursa o quarto período. Daqui a um ano e meio pre-tende estagiar em Petrópolis, onde há mercado de trabalho para engenheiros.

– Consegui tudo isso com a força da Dona Lia. Ela que me fez correr atrás, ela paga meus estudos. Tenho 28 anos mas posso dizer que só acordei para a vida há dois, por causa da generosidade dela.

Uma história emocionante.Além de estudos pagos, a generosidade de Lia

leva todos a contarem histórias sobre doenças e a ajuda que ela presta. “Lembram do Mário, da Hípica? Vomitou sangue, tava com câncer, Dona Lia pediu ao próprio médico deles para operar, o Doutor Kligermann, e ele ficou curado”. Doutor Jacob Kligerman, pai de Bettina, médico renomado e especializado em câncer, realmente coordenou a operação e o tratamento do Mário.

O mesmo aconteceu com o irmão adolescente da Karina Gonçalves Dias Mello, que chegou há qua-se oito anos para ajudar as babás dos netos e hoje é copeira e arrumadeira. Um caminhão o acertou em cheio, quebrando bacia, perna e clavícula. Lia na mesma hora encaminhou-o para o Hospital de Petrópolis, responsabilizou-se pela cirurgia de ba-cia e todas as despesas do hospital.

“Quando eu fiquei grávida”, lembra Karina, “ela percebeu que alguma coisa me preocupava, veio me sondar para ver como eu estava, acabou me apoiando em tudo. Jamais vou esquecer”.

Quem faz questão de dar pessoalmente um de-poimento para o Livro da Dona Lia é a dona Iracy Pereira Quintas, hoje com 85 anos, que por 16 foi cozinheira da fazenda – à época das crianças ain-da pequenas. “Muito boa, solidária e amiga a Dona Lia”, diz ela com seu fiapo de voz, ajudada pela filha Lóide na hora de lembrar das datas.

– Em 2009 quebrei o fêmur, não tinha vaga no Hospital de São José, Dona Lia ligou e conseguiu a internação na hora. E ainda pagou tudo que tinha lá pra pagar.

A filha Lóide Quintas considera-se outra gran-de devedora. Lá trabalhou por 14 anos, fazia com-pras, copeirava e arrumava. Parou na quarta série, até que a patroa começou a incentivá-la a voltar aos estudos.

Fez o Normal, hoje é Auxiliar de Organização Escolar e dá aulas para a quinta e sexta séries no Colégio Cenecista – que integra uma rede brasilei-ra de educação chamada Cnec (Campanha Nacional das Escolas da Comunidade).

O mais importante de tudo, recorda, foi quan-do engravidou. “Tive todo o suporte de Dona Lia, conversando comigo como mãe e me dando aju-da financeira”.

A bela surpresa é que Dona Lia vai receber uma linda homenagem agora, através deste seu livro:

Vai saber que será a madrinha do casamento da filha da Loide, Ana Lia Quintas Araujo – que tem este nome por razões óbvias – com o Guilherme Machado Pulcherio.

Se Deus quiser, diz a Lóide.Tudo por obras e graças da fada-madrinha Dona

Lia.

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7V iagens são um quesito da maior

importância na vida da família e dos amigos de Lia e Serjão. Ela dá de 10 em muita agência de turismo quando se trata de bolar, organizar e oferecer pa-

cotes completos, com uma vantagem extra que o mercado não costuma honrar – se algo dá errado, em poucas horas dá a volta por cima e substitui imediatamente a programação por alternativa me-lhor ainda.

Como é que ela consegue? Mistérios da Dona Lia.Conta o Rodrigo que, tem-

pos após o casamento com Mariana, os sogros os procu-ram e fazem aquele convite irresistível – uma viagem ao Egito. Mas não uma ida qualquer ao Egito.

Uma viagem com pirâ-mides, tesouros e o deserto,

como se voltassem aos tempos dos faraós – mas com um diferencial de peso.

O ponto culminante dessa odisseia ao passa-do seria a descida do Nilo num barco especial, de propriedade de Madame Kamir, na casa de quem Mariana morou em Paris. A gente imagina logo a rainha Cleópatra em seu luxuoso barco Isis, como vimos no filme da Metro Goldwyn Mayer. Elizabeth Taylor recostada entre coxins de seda e uns 10 escra-vos abanando-a com penas de avestruz – enquanto ela mordisca figos e tâmaras.

Longe disso, a chegada ao Cairo já foi meio de-prê. Rodrigo conta que o trânsito

caótico, as buzinas ensurde-cedoras e sem fim já os dei-xavam num humor terrível. Museus, sarcófagos, pirâ-

mides são visitados, quan-do chega o momento tão ansiosamente esperado – o Nilo.

lia.entertainment.comTurismo em terra, mar e ar

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E a expectativa transforma-se num anticlímax.O calor é abrasador, e para ser fiel aos tempos

dos faraós, o barco não tem o mínimo conforto, muito menos ar condicionado. A comida, pavo-rosa. Enxames de moscas. Farta distribuição de mata-moscas tipo espanador – penas de avestruz, nem pensar.

Deserto a perder de vista. Um programado voo de balão nada mais faz do que ficar horas parado, su-bindo e descendo, já que vento, que é bom, necas. E nem sequer miragens interessantes, para distrair.

Rodrigo conta que alguém surge com uma ideia brilhante: queixas e lamentações, só das duas às três horas. Depois da hora marcada ninguém reclama, senão a coisa desandaria de vez.

Para culminar, desastre total. As velas conti-nuam encolhidas, sem função dada a calmaria e o motor entra em pane. Morre. Caput. Passam a ser rebocados por uma canoa com motor de popa, do tipo puf-puf…

Enquanto todos se sentem furiosos, mas comple-tamente impotentes, percebem Dona Lia com seu celular colado ao ouvido, falando, falando, falando.

Milagre jamais explicado: ela aborta o percurso em dois dias, um carro surge para apanhá-los, o voo para Berlim já os espera e lá descem – com um frio de sete graus abaixo de zero e felicíssimos. Berlim, show. Uma fuga perfeita.

Mas há as viagens realmente de cinema, como a sobrinha Tiana refere-se à primeira que fez na vida, aos 14 anos, a convite da tia-madrinha.

Lia, Sergio, Marcos, Marcelo e Mariana, com uns oito anos, e Tiana vão à África do Sul e ao Quênia. Voam de balão, decidem esquiar na Itália e termi-nam au grand complet em Nova York, a paixão da tia Lia, que lá manteve um apartamento por vários anos. Outro passeio com Tiana: Paris, com tudo que elas tinham direito, conta ela.

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Mas, o que Tiana preferiu esquecer, Marcos entregou: “Olha, o final da viagem de balão foi um horror. Quando estava pousando ele virou, imagina só o papai daquele tamanho embolando por cima da gente!”

E, no Quênia, as coisas começam a sair do con-trole quando Marcos decide ignorar o aviso de “não alimente os animais”.

Começa a jogar pedaços de pão para os maca-cos – “que adoraram, mas parece que não entende-ram nada quando avisei que o pão tinha acabado”… Resultado: Marcos joga a cesta de vime para um lado buscando atrair a gula do bando e tem que sair correndo antes que a macacada consiga alcançá-lo.

Como comenta Baby Palhares, o bacana é que Lia topa qualquer programa. Toscana, Ilha dos Açores, Jericoacoara… Viagem inesquecível, para ela, o revéillon em Salvador que durou nada menos de dois dias. Os casais saíram do hotel na manhã do dia 31 e só chegaram de volta às oito da noite do dia seguinte.

– Passamos dois dias na rua, mesmo. Saímos de pareô e havaiana, tomamos muita caipirinha com lambreta (um molusco dos mangues baianos), pe-gamos um barco chamado Fé em Deus e visitamos uns amigos, seguimos uma procissão e dançamos e cantamos muito. Uma loucura.

As amigas de Lia derramam-se em elogios tam-bém à Lia companheira de viagem – e olhem que nem sempre é fácil compartilhar dias e dias com alguém sem qualquer desentendimento.

Laura Pederneiras considera que esta convivên-cia é muito fácil e agradável pela “transparência de Lia, pelo fato de ser sempre direta, agrade ou não”.

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Ah, e sua simplicidade e praticidade são de invejar, frisa Laura.

Ela relata um episódio divertido – que poderia ter sido desastroso, caso a amiga não tivesse as ca-racterísticas citadas acima.

Após uma viagem à Suíça para a festa de ani-versário de Jorge Paulo Lemann, os dois casais descem de carro até Paris. Hospedam-se em Relais & Chatêaux charmosíssimos, comem muito bem, sempre com Serjão ao volante e Lia de copiloto, exímia no g p s .

Curtem Paris e, como sempre, o grande proble-ma final é o peso de cada mala – todas as vezes elas ultrapassam os quilos permitidos. Já no aeroporto, Laura afasta-se para trocar dinheiro e, ao voltar, de-para com uma cena inusitada. Surreal.

Ao lado da fila imensa de passaportes, as baga-gens das amigas estão escancaradas no chão do sa-guão. Duas novas malas, chiquérrimas, estão aber-tas também.

De joelhos no chão, Lia divide calmamente as roupas nas malas, sem dar a mínima para a fila que passa lentamente e tudo observa. Os maridos lá, nervosos. Resume Laura: “Ela foi generosíssi-ma, me dando de presente uma mala maravilhosa. Tomou a decisão certa e agiu rápido, coisa que eu não faria. E tudo com uma simplicidade inesperada, para alguém criada numa redoma dourada”.

A cunhada Constança destaca sua sensibilidade. Tança tinha enviuvado e Lia e Sergio a convidam para ir ao Canadá, com o evidente intuito de dis-traí-la: “E foi uma delícia, do Canadá fomos só Lia e eu a Miami. Uma extrema delicadeza deles”.

Muito próximas há 30 anos, Maria Elisa Padilha costuma integrar vários “pacotes” da Lia Tours – Paris, Nova York, parte da Itália. Ela aponta o fato de, apesar de Lia ser a grande promoter, ter sempre a delicadeza, o tato e a preocupação de submeter

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previamente às companheiras a programação: “Ela não impõe nada, sugere e faz acontecer”.

Garante Mariana que ela desistiu de visitar paí-ses onde a miséria é grande – certamente porque se sente impotente para ajudar os necessitados, ao con-trário do que faz com bastante eficiência por aqui.

Quando se trata de juntar o clã inteiro, 10 netos, filhos e noras, ela vem optando pelo ecoturismo no Brasil, pela oferta de programas que agradam a todas as idades. Forte concorrente da TripAdvisor, programou no aniversário de 75 anos de Serjão uma ida ao Pantanal.

Foram a Bonito, visitaram o Buraco das Araras, penhasco com milhares e milhares dessas aves; uma gruta onde repousa, lá no fundo, uma piscina de águas profundamente azuis; e desceram boiando, todos de colete, por uma hora inteira, um rio cris-talino cuja nascente brota ali pertinho, na floresta.

Este ano, a escolha dela para comemorar seus se-tentinha completados em setembro é um passeio de barco na costa italiana com o marido e amigos, e na volta, com toda a família, à Amazônia. Hotel Tropical

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só uma noite, em Manaus, depois o botel flutuante descerá o Rio Negro com a tribo Carvalho inteira.

Programação para ninguém botar defeito – tri-lhas, mergulhos no rio para observar os botos cor de rosa , jogo de futebol com os índios e até uma alter-nativa bem radical para a turma mais afoita: um dia inteiro dedicado à pescaria de piranha.

Bem menos exóticas foram as idas para es-quiar em Courchevel, na França, ou em Aspen, nos Estados Unidos – como Lia programou com Crica Barcellos, na companhia dos respectivos maridos e filhos. “Foi uma alegria. Em Nova York, ninguém se preocupava com a peça que iria assistir, onde iria jantar, quem nos levaria. Lia já tinha tudo perfei-tamente planejado”, diz Crica. Ao grupo só restava aproveitar as ótimas escolhas e aguardar.

Sim, porque o Lia.Entertainment.com funciona em todos os departamentos. Providencia com ante-cedência entradas para teatros, óperas e concertos, reserva as melhores mesas nos restaurantes e sua lí-der topa programas incríveis, em qualquer latitude.

Como naquele famoso janeiro de 1980, quando, de perna quebrada, leva a turma toda para assistir, da fila do gargarejo, ao que até então seria o show do século: Frank Sinatra no Maracanã, em sua primeira vinda ao Brasil.

O show atrai 140 mil pessoas ao estádio, o maior público jamais visto por Sinatra. Ao entrar em cena, e passar os famosos alhos azuis pela multidão frené-tica, ele murmura baixinho, estupefato, o que seria percebido nas t v s de todo o mundo: “My God!”.

Dona Lia deve ter ouvido. E ali, praticamente aos pés do cantor, deve ter-se lembrado do que sentiu ao conhecer Sergio: “Ele é tão inatingível para mim quanto o Frank Sinatra”… Não foi.

Na fazenda e no barco que muito apropriada-mente tem seu nome, toda a organização, passeios e festas carregam a marca registrada dela.

Antes do barco atual, a família navegava no Mare Crisium (um mar da lua), com 62 pés e três cabines. Tempos depois, veio o Tahiti Nui ( ‘Longa vida ao Tahiti’), pouco menor porém mais veloz.

Foi naquela época que o Artur motorista passou a assumir as funções de marinheiro, respeitado mestre no Iate Clube, onde o barco ancorava.

Ele lembra bem das grandes festas que rola-vam sempre no revéillon, quando se juntavam uns 20 barcos de amigos, com o Mare Crisium no cen-tro, lá nas águas de Angra.

Conta Mônica, a irmã caçula de Lia: “Às vezes promovíamos umas festas incríveis a bordo, que iam até o sol nascer. E o Arthur jamais deu uma de chefe de disciplina. Só ficava atento à nossa segu-rança e, volta e meia, gritava: ‘Vai todo mundo para bombordo, senão o barco vai virar’. A música era in-terrompida e todos obedeciam”.

De três anos para cá, a nau capitânia é o Dona Lia, com seus 72 pés e quatro cabines, que voa do Rio a Angra o ano inteiro com galhardia – impulsionado pela maestria do skiper Sergio com seus dois poten-tes motores m t U , da Mercedes, de 1.500 cavalos cada.

Há poucos meses vieram descendo as praias ao sul de Salvador, a chamada Costa do Descobrimento – pelo deleite de ver tudo aquilo que embasbacou Pedro Álvares Cabral. Vieram cos-teando Morro de São Paulo, Boipeba, Itacaré, Santa Cruz Cabrália, Trancoso, Porto Seguro.

Aliás, uma das histórias mais reveladoras da personalidade de nossa biografada refere-se à com-pra do atual barco. Há muito Lia fazia a cabeça de Sergio para comprar um maior que o Tahiti Nui. Com um argumento infalível: maior conforto, pois os anos estão passando.

“Acabamos tendo que ir a Buenos Aires quatro vezes para resolver o assunto”, conta seu marido entre risadas. “Visitamos o estaleiro mais afamado,

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discutimos com o engenheiro naval, vimos as plan-tas, encomendamos as quatro cabines. De repente a Lia diz ao engenheiro, uma pessoa muito fina, que quer um banheiro ao nível do convés. Ah, isso é im-possível, teria que mudar toda a estrutura de enca-namento, ele responde”.

Lia explica com a maior paciência que os dois es-tão mais velhos, que não iria dar certo essa história de descer e subir escadas várias vezes para procurar os banheiros de baixo, e que portanto ela fazia questão absoluta de um deles no convés. Mais uma vez, o ar-quiteto mostra-se irredutível: “No, así no és posible”.

É aí que ela assume seu coté Dona Lia, pega a bolsa, levanta-se e dispara: “Quando puder o senhor nos avisa”. E vai saindo porta afora.

Lívido, vendo que vai perder o negócio e o tra-balho empenhado, o engenheiro apressa-se a pon-derar: “Bom, vamos ver o que podemos fazer. Vão comer uma parrillada ali na esquina e daqui a duas horas passem novamente”.

Ao voltar, tudo resolvido. O barco será customi-zado, com a grife Dona Lia.

“O barco ficou tão espetacular depois da interfe-rência dela”, conta Marcos, “tão melhor que a versão original, que participou dois anos seguidos do Boat Show e foi a grande sensação, todo mundo sonhan-do com um igual”.

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8a cena rodou as t v s do mundo in-

teiro. A moradora de São José do Vale do Rio Preto, Ilair de Souza, desperta com o estrepitoso furor das águas do rio Preto, que banha a cidade. Abre a janela. Um verda-

deiro tsunami fluvial tudo arrasta em seu caminho. A casa de Ilair será a próxima. As paredes já come-çam a ruir. Ela sobe para a laje com seus três cachor-ros. Dois são arrastados. Ilair, 55 anos, seu último cão sob o braço direito, sabe que seus momentos estão contados.

A esperança surge nos braços de dois corajosos vizinhos do edifício ao lado. Atiram uma longa cor-da para Ilair, que grita desesperadamente por socor-ro. Obedece as instruções dos rapazes, amarra-se toda, passa a corda em cada perna, na cintura e no braço esquerdo. Insiste em manter o cachorrinho sob sua guarda. Não cumpre as ordens de soltá-lo.

Salta para seu destino.O resgate tem sucesso. É janeiro de 2011.

A enxurrada que fez o outrora pacato Rio Preto subir dezoito metros e ter suas águas correndo com uma velocidade de mais de 100 km por hora leva Marcelo a subir imediatamente com seu pai.

Equipados com cordas, mantimentos, água, cobertores, remédios de primeira necessidade, os dois atiram-se à faina de fazer chegar suprimentos às vítimas da enchente. Lia, no exterior, providen-cia com urgência sua volta.

Sergio e Marcelo reúnem os funcionários da fazenda Águas Claras: “Vocês estão garantidos, eu tomo conta de vocês. Precisamos saber como va-mos ajudar as vítimas, nossos vizinhos, enfim, a ci-dade”, diz Sergio.

Cria-se uma corrente de solidariedade.De regresso, Lia informa-se da extensão da tra-

gédia, a cabeça a mil: é imperativo ressuscitar o moral da cidade e preparar as vítimas para o futuro negro que se desenha em meio aos escombros.

Nasce a Daschú – das chuvas –, neologismo apro-priado ao momento e inspirado na loja paulista Daslu.

o DilúvioJogando salva-vidas

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Detalhe da maior importância lembrado por Marcelo – Lia tinha decidido tirar um ano sabático. E estas férias durariam apenas 10 dias…

É que ela passara 2010 planejando sua aposenta-doria e já tomara todas as providências neste sen-tido: encerrara a atividade profissional e fechara as portas de seu consultório, comunicando à família que sua vida profissional passaria a ser dedicada aos necessitados.

Com a enxurrada e a criação da Daschú, “ela mergulhou de cabeça, de uma vez, em São José”, conta Marcelo.

Lia herda da mãe esse anseio da ajuda ao próxi-mo e ainda o aperfeiçoa ao encontrar Sergio, que já se dedicava à filantropia. “Hoje ela coloca a mão na massa para criar um tipo de apoio social moder-no, que tem como alvo a formação de profissionais, desenhando para eles um futuro promissor”, ava-lia Tite.

Ela não é de arquitetar planos de longo prazo, garantem todos. Mobilização, motivação e rapidez na execução são suas marcas. Com ela fazem coro Sergio e seus três filhos.

Lia promove sucessivas reuniões para verifi-car as nefastas consequências da tragédia. Onde dormiriam os refugiados? Onde funcionaria a co-zinha? A assistência médica é suficiente? Sergio encontra um marceneiro que perdera toda sua oficina sob as chuvas, as ferramentas levadas pelo então furioso rio Preto, e autoriza-o a comprar o que for preciso.

Tem sorte. Sergio compra tudo que está disponí-vel na cidade vizinha e encomenda tantos estrados quantos forem necessários. O povo precisa dormir. Marcelo trata de encomendar colchões.

Lia visita o campo de futebol transformado em abrigo de refugiados pela prefeitura, que monta barracas doadas do tipo iglu e horroriza-se com

o que vê. Como as chuvas não cessam, o campo é um permanente lodaçal. Refugiados andam na lama sem ter o que fazer, “abrigados” em condi-ções inumanas.

Ana Paula de Carvalho, filha de Manoel Carvalho, antigo funcionário da família, acompanha Lia. E conta que ela “decidiu fazer logo uma creche no campo dos refugiados. Construiu tendas grandes com lavanderia e máquinas de secar, montou uma cozinha, conseguiu uma psicóloga para dar primei-ros atendimentos aos que perderam tudo e estavam extremamente abalados”.

E Ana Paula realiza aí parte de seu sonho – mer-gulha no trabalho da creche. “Me senti vivendo o sonho da Dona Lia. Ela é uma mulher guerreira”, acentua Ana Paula. Que conheceu Lia aos oito anos e hoje está com 39.

À medida que organizam o socorro mais amplo para abrigar os sem-teto, Lia torna os primeiros esboços da Daschú mais nítidos. É urgente formar mão-de-obra para reconstruir e capacitar o maior número de pessoas a exercer uma atividade rentá-vel. É urgente elevar o ânimo da comunidade.

“Lia cria, mas cobra a contrapartida de todos. Ela não é de dar por dar. Bolsa família, isso não é com ela”, enfatiza a fisioterapeuta Ademilde Cabral.

A sede começa a borbulhar de atividades. Iniciam cursos profissionalizantes, em parceria com o Sesi, Senai, Sebrae, Senac, instituições cujos diplomas são reconhecidos e valorizados no merca-do de trabalho.

Em apenas um ano após o dilúvio, a Daschú já funcionava a todo vapor e havia capacitado 1.155 pes-soas. Casos impactantes não faltam.

Silvana Duarte, diplomada no curso de ope-radora de máquina de costura industrial, conta que, após a catástrofe, só chorava e bebia, em rota certeira para a depressão profunda. Resgatada da

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crise pela Daschú, hoje é uma microempreen-dedora. Treinada pelo Senai, monitora cursos na Daschú.

O instrutor de pedreiro Elias Asthine recorda que a Vanilda Oliveira da Silva Mello, coordenado-ra do Centro Daschú de Ensino Profissionalizante, foi quem o convidou para dar umas aulas. Imaginou que seriam conversas para passar aos alunos sua experiência – “uma coisa do tipo que os voluntá-rios fazem”.

Hábil, é enviado ao Senai e treinado para mo-nitor. Já comandou três turmas: “Sinto-me melhor ajudando os outros e hoje sou muito mais reconhe-cido na cidade”.

A Daschú impressiona não apenas pelo espírito generoso e dedicado das pessoas que movem suas engrenagens, mas também pela arquitetura funcio-nal e versátil. O projeto e a obra são doação de uma empresa de engenharia.

Em um dos principais espaços, 24 máquinas de costura industriais funcionam freneticamen-te, como a linha de produção de uma malharia: aulas de costura, overlock, interlock, costura reta e arremate.

Tem duração de quatro meses, aulas diárias das sete às nove da noite, e desde sua inauguração, em 2012, já formou dez turmas totalizando 240 profis-sionais – que trabalham nas malharias de Petrópolis e outras cidades vizinhas.

Habilitam-se pedreiros, eletricistas, técnicos em informática e eletromecânicos de motos.

Dimas Zanatta, administrador da Fazenda Águas Claras e a quem cabe zelar pelas finanças da creche e da Cruzada, lembra bem de um caso em que a atuação do Centro de Capacitação foi vital: São José do Vale do Rio Preto ainda vivia dias ater-radores, a parte baixa da cidade destruída, lama por toda parte – e duas retroescavadeiras da Prefeitura

encostadas, sem uso, por absoluta falta de mão de obra capacitada a manobrá-las.

“Oferecemos o curso, os interessados já saíram com o certificado da Sebrae em mãos e, o que foi o melhor, já empregados pilotando as máquinas”.

Em outro salão, alunos de construção civil aprendem construindo uma pequena casa com tudo necessário ao seu funcionamento.

As aulas de formação de eletricistas contam com cabines nos moldes das cabines de telefones anti-gas. Nelas, instalam tomadas, luzes, quadros de luz e tubos elétricos.

Em outra sala refrigerada, expande-se o labora-tório de informática, com vinte computadores Dell, de última geração, novos em folha. Ali são dadas au-las de administração com o uso da informática.

Quem disse que o braço vigoroso do Sebrae não mexe com colher de pau grandes panelas com re-ceitas inusitadas? Só diz isso quem não conhece Ana Lucia Gioseffi, do Sebrae. Ela conhece o cami-nho das pedras, sabe de antemão o que vai funcio-nar ou não, de artesanato a mecânica.

Quem esteve lá a convite de Lia ministrando um curso de Colagem (Découpage) para alunas da Daschú foi a cunhada Tança. A arte do recorte/cole/envernize transforma bandejas e caixinhas, moldu-ras ou móveis em peças lindíssimas.

Tança tornou-se expert na técnica há qua-se 20 anos atrás, num vilarejo perto de Bath, na Inglaterra, e agora, as moças de São José, animadas, já aprenderam seus segredos.

Dois cursos voltados para as necessidades dos próprios trabalhadores rurais estão para começar: o de aquecimento solar de baixo custo, e o de constru-ção das placas para captação de energia solar.

Quando as primeiras turmas de pedreiros, eletri-cistas e bombeiros hidráulicos, agora profissionais, se formaram, Lia as levou ao Rio para conhecerem

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algumas obras grandes. O ponto final foi o Shopping Nova América, então em expansão. Espanto geral.

Os novos profissionais jamais tinham visto um projeto daquele porte. Muitos, ali mesmo, recebe-ram convites de empreiteiros para se juntarem à mão de obra.

A coordenadora Vanilda veio do trabalho duro – no cabo da enxada oito horas ou mais a cada dia, arran-cando ervas daninhas e abrindo valas para a plantação.

Hoje, com a moda e os modos das moças da ci-dade, conta seu passado muito próximo. Começou a ajudar Dona Lia no campo dos refugiados e, pas-sados poucos meses, Lia incentivou-a a estudar: “Matricule-se para o exame do Enem. Vá estudar, em seguida faça o curso de Assistência Social”.

Dona Lia “abre um mundo para nós”, depõe, en-cantada com o que faz hoje e com o que está por vir.

Vanilda caminhava 40 minutos a pé para pegar o ônibus e ir estudar. Hoje, com o plano realizado, ela é o braço direito de Tânia Isidoro, a presidente dos dois estabelecimentos da Daschú – o profissionali-zante e a creche.

O grupo dirigente tem metas ambiciosas e, na realidade, nunca deixa de cumpri-las. O momento agora é das artes. Biblioteca para estímulo à leitu-ra, oficinas de poesia e fotografia. Tocar um curso de empreendedorismo, modelo desenhado pelas Nações Unidas, é outro desafio próximo.

E não pensem que a agenda do ano acaba por aqui. Lia acaba de ganhar uma doação de tirar o fôlego: um belo caminhão da Abolição Veículos. Será adaptado com sistema de som e luz para servir de palco para teatro, danças e apresenta-ções musicais.

E todas, junto com Lia, têm motivo de se sentir felizes. Afinal, a Daschú nasceu do turbilhão das águas e sobrevive, luminosa, ao brilho do inver-no serrano.

Renasce São José

Como podemos ver, Lia e Sergio são como jar-dineiros capazes de fazer crescer sementes com vocações variadas. além disso, sempre

acharam fundamental ter os eleitores de São José conscientizados na hora de crucial de votar.

Por ocasião da enxurrada, o casal teve ideia de convidar representantes do comércio e avicultores para uma reunião, cujo objetivo era fiscalizar o uso dos recursos doados aos fustigados pelas águas do Rio Preto.

Da reunião surge a Renasce São José, movimen-to essencialmente apolítico, mas destinado a uma campanha de conscientização da população sobre o bom voto. Condição pétrea à participação: entrou na política, sai do movimento.

Larri José Souza de Araújo, rio-pretano de nasci-mento e coração, tabelião aposentado, atualmente de regresso à sua banca de advocacia, não hesita em afirmar que, no dia em que Lia e Sergio assinaram a escritura da Fazenda Águas Claras, já lá se vão qua-tro décadas, caiu do céu um presente para a cidade.

Nascido em Almeida, Portugal, Antônio Carlos Vilhena de Carvalho é diretor da Renasce São José. Ele recorda que, em 1975, os novos vizinhos Lia e Sergio foram à sede da fazenda Jaguará visitá-los, para dar boas vindas e oferecer apoio em qual-quer eventualidade.

– Isso não se vê a qualquer hora, em qualquer lu-gar, comenta Antônio. Ambos são de uma solidarie-dade, de uma gentileza sem par.

Com a chegada do casal, Antônio testemunha o primeiro presente para a cidade: “Não fossem eles não teríamos conseguido firmar o primeiro convênio com o Funrural para modernizar o hoje Hospital Municipal”.

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Os vizinhos passam a se frequentar, com a com-panhia de Larri. E as conversas sobre a participação dos eleitores da cidade no voto consciente come-çam a ganhar corpo.

Com o empenho de Larri, Antônio, Lia e Sergio o movimento é criado em São José do Vale do Rio Preto. Hoje tem uma diretoria com onze membros, um conselho e já conta com 120 mem-bros associados.

– Lia tem ideias claras, objetivas e realizadoras – afirma Larri. Além disso, ela é extremamente obser-vadora e excelente gestora.

–E tudo o que faz, visa a excelência – comple-menta Antônio.

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r e t r a t o d e l i a9S ete horas de uma manhã fria no vila-

rejo Águas Claras, nas vizinhanças de São José do Vale do Rio Preto. O moto-rista Nescau estaciona o robusto ôni-bus escolar amarelo e começa a en-tregar as 74 crianças aos cuidados das

responsáveis pela Creche Daschú, depois de uma viagem iniciada às cinco e meia da manhã.

Risonho, vai-se despedindo de cada uma delas, en-tre dois e cinco anos de idade, enquanto promete que às cinco da tarde estará de volta para levá-las para casa.

Assim começa o dia da acolhedora creche, lim-píssima, corredores e salas reluzentes, pintadas e extremamente bem equipadas.

Uma creche padrão Lia, com a expertise da Cruzada do Menor. Tudo superlativo.

Cada monitora resgata sua turma e a conduz ao café da manhã, preparado por um grupo de oito co-zinheiras e copeiras. Pão fresco, rosquinhas, man-teiga, queijo de Minas e um bolo delicioso acompa-nhados pelo leite vindo da Fazenda Aguas Claras.

Nas salas, mesinhas com cadernos e lápis de cor as esperam. Paredes repletas de desenhos feitos por elas e de ilustrações para as aulas. Pode-se ler em cartazes o novo projeto a ser desenvolvido: Uma viagem pelos cinco sentidos do corpo humano.

Núbia Freitas de Carvalho, pedagoga e coorde-nadora, participa intensamente do cotidiano da creche desde a inauguração. Ela avalia, em reuniões mensais, o desempenho das crianças e a rota que está sendo seguida por todos para aperfeiçoar o de-senvolvimento físico, mental e cultural desse grupo.

A creche Daschú é a primeira a surgir nes-te município com 22 mil habitantes. Para todos, hoje, a Daschú nascida das chuvas é um selo de garantia, fruto do trabalho de Lia Carvalho e suas colaboradoras.

“Lia é uma visionária, é uma parceira”, defi-ne Núbia.

“A creche era seu sonho e hoje é a menina dos olhos dela e de todas nós. Ela se envolve mesmo, quer saber de tudo, vê os problemas e trata de sa-

reganDo sementesUma creche padrão Lia

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ná-los com a maior competência”. Para ela, aliás, o casal Lia e Doutor Sergio vai mais longe ainda – preocupa-se em suprir as carências de São José.

Elas todas recordam a desconfiança dos pais no início das atividades da creche. Apenas 40 matricu-lam seus filhos. À medida que as semanas passam, no entanto, o boca a boca da clientela composta de agricultores, abatedores e pequenos comerciantes propaga o entusiasmo com a excelência do trabalho realizado. A cada dia, mais e mais pais passam a le-var seus filhos. Dos 47 iniciais, há hoje 74.

Surpreendem-se com o tratamento dado pelas “tias”, com os uniformes gratuitos e limpinhos, com as refeições saborosas. Tomam conhecimento do teatrinho com as crianças, das leituras em voz alta,

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da hora do soninho. Constatam que elas só chegam em casa de banho tomado e depois de jantar.

E o que falar do clima de muito carinho que há por lá?

Finalmente, os pais chegam a um veredito – não há nada parecido com a Daschú por aquelas bandas.

Constatam que a Cruzada do Menor supre aqui-lo que o governo não oferece – creche e berçário. Sabem, também, que a iniciativa não partiu do le-que de promessas das autoridades após a catástrofe da tromba d’água de janeiro de 2011.

E as matrículas foram crescendo, explica Núbia, porque “não conseguíamos recusar uma criança depois de avaliar seu quadro familiar. Tínhamos de aceitá-la. Algumas ficavam em casa sob a guarda de irmãos com oito anos de idade, enquanto os pais passavam o dia na roça. Outras, deixadas aos cuida-dos de idosos ou de alguma vizinha”. Situações crí-ticas. Alcoolismo. Drogas.

Conta Tânia Cristina Isidoro, coordenadora de projetos, que, ao comprar o sítio os Carvalho logo percebem que as instalações são insuficientes para atender à criançada.

Providenciam então ampliações e modificações. Mais banheiros, mais chuveiros, louças sanitárias adaptadas ao tamanho das crianças. Cozinha e copa maiores, mais equipamentos e mobiliário. Tudo é multiplicado.

Histórias sobre o total envolvimento da Dona Lia se repetem.

Prova desses laços, certa festa de Natal. A crian-çada, excitada, aguarda a chegada de Papai Noel para a distribuição de presentes. Uns já suspiram ansiosos, impacientes. Coordenadoras e monitoras acionam seus celulares, se comunicam, nada. Nada do Papai Noel.

Eis que, de repente, abre-se a porta e entra uma animadíssima Mamãe Noel, fantasiada da cabeça

aos pés. Começa a distribuir os presentes e salva o dia das crianças – até que o “verdadeiro” Papai Noel chegue.

Quem ilustra com esta história o envolvimento da Dona Lia é a Daniela dos Santos Oliveira, advoga-da, que ajuda Dimas Zanatta na administração ge-ral da fazenda. Ela tem outro encargo que adora: é a curadora das cinco salinhas que compõem o museu da família, repleto de lembranças e fotos das últi-mas quatro gerações.

“Dona Lia é uma mãezona”, diz Daniela, “leva a gente a acreditar que é capaz de fazer o que nem a gente mesmo imagina”.

Mas tem uma coisa, adverte: “Que ninguém ten-te enrolá-la. Na hora de cobrar, ela cobra mesmo. Quer ver as coisas prontas e funcionando. E não gosta de ouvir um ‘acho’ ou um ‘não sei’. Ela quer soluções, e o bom é que proporciona os meios para a pessoa executar”.

A frase é compartilhada pelos irmãos Geraldo e Cristina Mainart, do family office no Rio, verda-deiros googles para qualquer informação desejada. “Dona Lia não quer ouvir ‘não tem’. Quer pelo me-nos duas alternativas para escolher’”.

A coordenadora Tânia revela que, na visão de Lia, a Daschú é um piloto, espécie de protótipo a ser aplicado a todas as creches da Cruzada.

Núbia faz um aparte: “Dona Lia tem uma visão de águia. Ela enxerga do alto o problema, molda a solução e parte para a execução”. E instiga suas co-laboradoras. Elas são unânimes em reconhecer a influência de Lia no desenvolvimento de cada uma. Ela põe fogo, espeta, acentuam – leva todas a uma introspecção, uma auto avaliação para que descu-bram por si mesmas como crescer.

O objetivo da Daschú é deixar gravado nas lem-branças das crianças que algo existe de bom na vida, é o lema de Lia.

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Pesadelos e Sonhos

o sonho da creche de São José do Vale do Rio Preto nasceu de pesadelos. ao instalar para os desabrigados da tragédia um campo de

iglus doados – onde pouco era oferecido e quase nada funcionava –, a tragédia desperta na personalidade criativa de dona Lia um novo sonho. É o embrião da creche de hoje.

Quem se intitula “formada na escola da Dona Lia” é a atual Secretária de Educação do Município, Cátia Regina Pinto Neto, irmã da coordenadora ge-ral de projetos, a Tânia. Pedagoga, especializada em leitura e escrita, Cátia foi a primeira coordenadora da creche.

Tudo começou à época em que ela levava alunos de outras escolas para visitar a fazenda. As conver-sas sobre a situação educacional no município fo-ram consolidando a admiração recíproca.

Em janeiro de 2011, com a tromba d’ água, ao nascer a Daschú, Cátia toma conhecimento do pro-jeto de construção da creche e pensa: “Esse também é o meu sonho”.

Em outubro que Lia telefona para Cátia e a convida para visitá-la – uma entrevista, na reali-dade. Cátia é contratada e a aproximação entre ambas torna-se maior por compartilharem o mes-mo projeto.

“Lia abre o horizonte para quem está per-to dela”, acentua Cátia. “Isso me deu uma ale-gria sem par. Afinal, era também o meu desejo em construção”.

Hoje, Cátia é Secretária de Educação do Município, para alegria dela e do casal Lia e Sergio.

O Embrião da Cruzada

Conhecida por seu excelente clima, Nogueira, município de Petrópolis, é a localidade esco-lhida pelo governo para instalar, nos idos de

1920, no âmbito da sua Cruzada Nacional contra a tuberculose, um sanatório pioneiro.

O desafio era imenso. Afinal, nem sequer anti-bióticos havia para combater a bactéria.

Décadas se passam, a enfermidade negra é relati-vamente controlada e, em 1983, a Legião Brasileira de Assistência, então gestora do hospital, procu-ra Sergio Carvalho e oferece a instituição e seus 140 mil metros quadrados de terra – aos seus cuida-dos com o pedido de que se ocupe da obra e acolha também idosos.

Sergio, já administrador da Casa São Luiz para a Velhice, dirigida anteriormente por seu pai, Raul de Carvalho, fica com a proposta dando voltas em sua cabeça. Um amigo o convida para uma visita. Quando lá chega, Sergio constata que o hospital se encontra vazio.

As freiras que dele cuidavam tiveram seus re-cursos exauridos. Distribuíram as crianças enfer-mas para outras instituições e passaram a chave na porta. Sergio, conta a cunhada Regina, ficou muito emocionado ao ver a fila de sapatinhos arrumados sob as camas vazias.

Vê que o terreno é enorme e passível de um pro-jeto imobiliário que poderia gerar recursos para manter a instituição durante anos.

Passam-se alguns dias e Sergio telefona para Regina, igualmente insone pensando no destino dado as crianças. E vai direto ao ponto: “Regina, va-mos assumir a instituição. Já decidi. Amanhã con-versaremos mais”.

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Nasce a Cruzada do Menor

o carioca Belmiro Carlos Nunes, ex-funcioná-rio do Banco andrade arnaud, é convidado por Sergio para tocar com ele o novo em-

preendimento social.Belmiro aceita e mergulha na nova obra. Seu

primeiro passo foi elaborar um projeto para apre-sentar ao b n d e s . Êxito. O projeto é aprovado.

Sergio parte com Belmiro em busca de um par-ceiro para realizar o imaginado projeto imobiliário. Conseguem. As negociações para o negócio tam-bém dão certo. O terreno da Cruzada passa às mãos do construtor em troca de nada menos que 49 am-plos apartamentos.

“Com esse novo patrimônio, a Cruzada terá re-cursos para mais dez anos de manutenção”, estima Belmiro, até hoje consultor da Cruzada.

E a creche?Regina vai ao Padre Luís, vigário em Corrêas,

oferece uma nova creche à paróquia em troca da ad-ministração do padre. No morro em frente a Igreja, descortina-se uma imensa favela. Todos os clientes potenciais para a futura creche estão à frente dos dois. Ela conta que “Padre Luiz, ao ouvir a proposta, dava pulos de alegria, esfregava as mãos e repetia: É claro que aceito. Eu quero. Eu quero”.

Hoje a creche de Corrêas está em pleno funcio-namento para 145 crianças entre 2 e 5 anos.

A presidente Lia já decidiu ampliar a obra. Começa a construir creche similar na Mosela, onde também uma extensa favela necessita desse tipo de atendimento.

“Essa é a Lia que há tanto tempo conhecemos e admiramos pelo seu empenho em fazer com que as coisas sejam melhores para os menos favorecidos”, diz Belmiro.

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Lia se envolve de corpo e alma no projeto da Cruzada, desde a orientação pedagógica à concep-ção de novos projetos.

À frente da Cruzada do Menor, ela tem como desafio ampliar sua rede de atuação e incorporar idosos ao esquema de atendimento. Consegue mais colaboradores e voluntários. A meta traçada é cla-ra: Não basta cuidar, há que ensinar os pais a que se preparem para um futuro melhor.

E o estímulo vem das ideias incessantes de Lia. Excelência é a sua palavra chave.

Vislumbrando a necessidade de fazer proje-tos mais atrativos para as crianças, Lia avalia junto

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com a equipe inserir esporte e arte como chamariz. Vôlei, judô e ballet são os escolhidos. Convida nin-guém menos que Bernardinho, técnico da seleção brasileira, várias vezes campeã mundial e olímpica. Ele aceita prontamente o desafio.

Lia convida também a judoca Suzana Nagai, que lhe foi apresentada pelo judoca José Alberto. Seguindo este modelo, o Centro Comunitário de Nogueira promoveu, em 11 anos, cursos de alfabe-tização além do segundo e terceiro ciclos do ensino fundamental. Paralelamente, oficinas de capacita-ção. Nada menos que 1.835 menores já foram aten-didos até hoje.

Estas obras só são possíveis graças também à participação de parceiros entusiasmados. O fran-cês Emilien Lacay foi um deles. Legou em seu tes-tamento uma ampla casa com um grande terreno em Jacarepaguá para a realização de uma obra so-cial que envolvesse não apenas crianças, mas ido-sos também.

Batizada com o nome de Emilien Lacay , a casa foi inaugurada em 1990 com 333 crianças matri-culadas na creche e na pré-escola, além de 49 ido-sos. A convivência de grupos com tão distinta fai-xa etária é um êxito, compartilhando atividades ocupacionais e trabalho pedagógico através de empreendimentos socioculturais e recreativos. Crianças e idosos permanecem cotidianamente na casa das 7 às 17 horas, e contam para apoio com um grupo multidisciplinar e dedicados voluntários.

Em 2012, foram encaminhadas 250 crianças à escola formal, com 850 atendidas. Já em maio de 2014, o Plantando o Amanhã, ousado programa da Cruzada, mantinha 922 crianças em seis creches. Além das crianças, 98 jovens e 70 idosos. Isto é pro-teger sem paternalismo.

E aqui interrompemos nosso Retrato de Lia, em-bora muitos capítulos ainda estejam por acontecer.

Da Lia que, dizem amigos e colaboradores, costuma levar as próprias pessoas a realizar o que nem pare-cia ser possível.

Sua visão sobre tudo aquilo que promove atra-vés das obras sociais da família é muito particular: diz que faz porque gosta de fazer, e considera um desafio melhorar a qualidade de vida das pessoas.

“Mas não tenho o sentimento de estar fazendo o bem para os outros. É como um ato de criação. Estou fazendo um bem a mim mesma”, enfatiza no depoimento dado para o filme dos 75 anos de Sergio, por ela definido como um marido “bem humorado a maior parte do tempo, companheiro com quem é sempre muito prazeroso estar junto”.

Ela sorri enquanto deixa escapar algumas lições de vida: “Envelhecer juntos, só com muito humor mesmo, para rir das próprias limitações e das pró-prias confusões. E a gente é espelho. Enxerga no outro sua própria deficiência”.

Olhando para a câmera, adverte para o fato de que “a vida é feita de escolhas, e às vezes há momen-tos determinantes que não têm volta”. Mas as esco-lhas de Lia parecem ter sido acertadas.

Sua família, filhos e netos, são suas paixões.Paixão que inclui, decididamente, a Fazenda

Águas Claras – que Lia considera “o presente” dado por Sergio a ela, que se vê como parte daquela terra, a sua terra, “como se tivesse suas raízes lá fincadas” para todo o sempre.

É esta Lia que vem imediatamente à cabeça de todos nós, quando nos lembramos dos versos do imortal Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, quan-do a alma não é pequena”.

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Este livro foi editado na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no Inverno de 2014.

Foram usados tipos Didot, criados por Firmin Didot em 1783.

A presente tiragem foi limitada a 100 exemplares numerados.

Exemplar Nº_____

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