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Quando finalmente encontramos aquilo de que estávamos à procura nas trevas,

quase sempre descobrimos que era exatamente isso.Trevas.

C.G. Reinhart, polícia

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I

Sábado, 5 de outubro–

Sexta-feira, 22 de novembro

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A cordou e não conseguiu lembrar-se do seu próprio nome.Tinha dores em todo o corpo. Flechas de fogo rodopiavam--lhe na cabeça, na garganta, no estômago e no peito. Tentou

engolir, mas não passou da tentativa. Tinha a língua colada ao palato macio. Ardia-lhe, como se fosse feita de cinzas ainda quentes.

Os olhos latejavam. Ameaçavam sair-lhe das órbitas.É como quando nascemos, pensou. Não sou uma pessoa. Sou só uma

massa de sofrimento.

O quarto era feito de escuridão. Estendeu a mão livre, a que não estava dor- mente e na qual sentia agora um formigueiro, e começou às apalpadelas.

Sim, havia uma mesa de cabeceira. Um telefone e um copo. Um jornal. E um despertador.

Pegou nele, mas, a meio caminho, o despertador escorregou-lhe por entre os dedos e caiu no chão. Procurou-o com a mesma mão, agarrou-o e levantou-o, até à altura do rosto.

Os ponteiros eram vagamente luminosos. Reconheceu-os.Oito e vinte. Da manhã, presumivelmente.E ele não fazia a menor ideia de onde se encontrava.

***

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håkan nesser

Não lhe parecia que isto já tivesse acontecido antes. Decerto que já se havia levantado da cama sem saber onde se encontrava. Ou que dia era. Mas o nome... Alguma vez o esquecera?

John? Janos?Não, mas era qualquer coisa assim.O nome estava algures num recanto, e não apenas o nome, mas

tudo o resto... A vida e o estilo de vida e circunstâncias tão extenuan-tes. Escondidas, à espera dele. Atrás de uma fina membrana que teria de ser perfurada, algo que ainda não despertara. Mas ele não se sentia muito preocupado. Em breve o saberia.

Talvez fosse algo que não desejasse.

A dor de cabeça piorou de repente. Talvez fosse do esforço de pensar. De qualquer modo, estava bem presente, fosse por que mo-tivo fosse. Era como um ferro em brasa, terrivelmente doloroso. Era como se a própria carne lhe berrasse. E nada mais lhe importava.

A cozinha ficava à esquerda e parecia-lhe familiar. Encontrou facilmente os comprimidos. Começava a ter cada vez mais a cer-teza de que esta era a sua própria casa. Tudo se esclareceria a qualquer momento, sem dúvida alguma.

Retrocedeu até ao corredor. Deu um pontapé numa garrafa que ficara na sombra de uma estante. A garrafa rolou pelo chão de parquet e foi parar debaixo do aquecedor. Arrastou-se até à casa de banho. Rodou a maçaneta.

A porta estava trancada.Inclinou-se para a frente, cambaleante. Pôs as mãos nos joelhos,

para se apoiar melhor, e olhou para o indicador do fecho.No vermelho. Ocupada, como pensara.Sentiu a bílis a subir-lhe para a garganta.— Abre... — Tentou gritar mas não conseguiu mais do que emitir

um grasnido. Encostou a testa à madeira fria da porta. Tentou outra vez. — Abre! — Desta vez quase conseguiu produzir os sons certos. Para sublinhar a gravidade da sua situação, bateu várias vezes na porta com o punho fechado.

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o olhar da mente

Não teve resposta. Nem um som. Quem quer que ali estivesse não dava mostras de tencionar deixá-lo entrar.

Sentiu um novo movimento brusco no estômago. Ou talvez mais abaixo... Já era, obviamente, uma questão de segundos. Arrastou-se pelo corredor, de regresso à cozinha.

Desta vez pareceu-lhe tudo muito mais familiar.É mesmo a minha casa, pensou, enquanto vomitava no lava-louça.

Com a ajuda de uma chave de parafusos, conseguiu destrancar a porta da casa de banho. E sentiu, distintamente, que não era a pri-meira vez que o fazia.

— Desculpa, mas tinha mesmo de fazer isto... Entrou e, ao acender a luz, teve a certeza de quem era.E também pôde identificar a mulher deitada na banheira.Chamava-se Eva Ringmar e era, desde há três meses, sua mulher.O corpo mostrava-se estranhamente retorcido. O braço direito

dela pendia da borda num ângulo que não era natural. As unhas, revelando um bom trabalho de manicura, tocavam no chão. O cabelo preto flutuava na água. Tinha o rosto voltado para baixo e, estando a banheira cheia até à borda, não podia haver qualquer dúvida de que ela morrera.

E ele chamava-se Mitter. Janek Mattias Mitter. Era professor de História e Filosofia na Escola Secundária de Bunge, em Maardam.

Era informalmente conhecido por JM.Depois destas revelações voltou a vomitar no lavatório. A seguir

tirou mais dois comprimidos e telefonou para a Polícia.

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A cela, em forma de L, era verde. A mesma tonalidade em todo o lado: paredes, chão e teto. Uma mera sugestão de luz do dia penetrava através de uma pequena janela junto ao

teto, numa das paredes. À noite podia ver uma estrela.Havia um canto para a higiene, com um lavatório e uma retrete.

Uma cama presa à parede. Uma mesa bamba, com duas cadeiras. Um candeeiro no teto. Outro na mesa de cabeceira.

O resto eram ruídos e silêncio. E o cheiro do seu próprio corpo.

O advogado chamava-se Rüger. Era alto, assimétrico e coxeava da perna esquerda. Tanto quanto Mitter conseguia perceber, estaria na casa dos 50 anos, sendo pouco mais velho do que ele. Podia ter conhecido o filho dele na escola. Até o podia ter tido como aluno. Um jovem pálido, com um rosto cheio de borbulhas e longe de ser o mais inteligente dos alunos, academicamente, se bem se lembrava. Oito ou dez anos antes.

Rüger estendeu-lhe a mão. Apertou a que Mitter também lhe ofe-receu, com força e demoradamente, fitando-o com uma expressão séria e, ao mesmo tempo, benevolente. Para Mitter era evidente que ele frequentara um tipo de curso qualquer sobre o relacionamento advogado–cliente.

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o olhar da mente

— Janek Mitter?Mitter acenou afirmativamente com a cabeça.— Uma coisa horrível. — Rüger desembaraçou-se do sobre-

tudo. Sacudiu-o da água e pendurou-o no gancho junto à porta. O guarda deu duas voltas à chave antes de se afastar pelo corredor fora.

— Lá fora está a chover. Está-se melhor aqui dentro, para dizer a verdade. — Rüger tirou um maço de cigarros do bolso do casaco. — Tire os que quiser. Não compreendo porque é que nem sequer o deixam fumar.

Rüger sentou-se à mesa e depôs nela a sua pasta de cabedal fina. Mitter acendeu um cigarro, porém, manteve-se de pé.

— Não se senta?— Não, obrigado.— É consigo.Rüger abriu um dossiê castanho. Tirou algumas páginas impres-

sas e um bloco de notas. Pôs e tirou, por várias vezes, a tampa de uma esferográfica, com os cotovelos apoiados na mesa.

— Isto é horrível, como lhe disse. Quero que fique completa-mente ciente de como estão as coisas, desde o primeiro momento.

Mitter ficou à espera.— Tem uma série de coisas contra si. É por isso que é importante

que seja sincero comigo. Se não tivermos plena confiança um no outro, não serei capaz de o defender tão bem como... Bem, está a ouvir o que eu estou a dizer?

— Sim.— Parto do princípio de que não deixará de dar a conhecer o seu

ponto de vista...— Ponto de vista?— Sobre como deveremos proceder. Eu delinearei as estratégias,

naturalmente, mas é você que está na ponta da navalha. Tanto quanto percebo, você é um homem inteligente.

— Estou a compreender.— Ótimo. Quer contar-me o que aconteceu, ou prefere que eu

faça perguntas?

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Mitter esmagou o cigarro no lavatório e sentou-se à mesa. A nico-tina pusera-o um pouco tonto e, de repente, sentiu-se assoberbado por uma sensação de exaustão.

Sentia-se cansado. Da vida. Do advogado corcunda que tinha à sua frente, da cela, incrivelmente feia, do sabor desagradável na boca e de todas as inevitáveis perguntas e respostas que o aguardavam.

Extremamente exausto. — Já falei com a Polícia. Não tenho feito outra coisa nos dois dias

que aqui passei.— Eu sei, mas tenho de lhe pedir para fazermos isto mais uma

vez. É uma parte essencial do jogo, como decerto compreende.Mitter encolheu os ombros. Tirou outro cigarro do maço, antes

de responder:— Penso que seria melhor se fizesse perguntas.O advogado recostou-se na cadeira e inclinou-a para trás, ajus-

tando o bloco de notas no joelho.— A maior parte dos advogados usa gravador, mas eu prefiro

tomar notas — explicou. — Penso que cria menos tensão no cliente...

Mitter acenou afirmativamente com a cabeça.— Além disso, eu tenho acesso às gravações da Polícia, se precisar

delas. De qualquer modo, antes de começarmos com os porme nores, tenho de lhe fazer a pergunta obrigatória. Vai ser, provavelmente, acusado do homicídio, pelo menos involuntário, da sua mulher, Eva Maria Ringmar. Perante isso, como é que tenciona declarar-se? Culpado ou inocente?

— Inocente.— Ótimo. Não deve haver dúvidas relativamente a esse ponto.

Nem da sua parte nem da minha. — Rüger fez uma pausa e fez a esferográfica rolar por entre os dedos. — Há alguma dúvida?

Mitter suspirou.— Tenho de lhe pedir que responda à minha pergunta. Tem a

certeza absoluta de que não matou a sua mulher?Mitter ficou em silêncio por alguns segundos, antes de res-

ponder. Tentou perscrutar o olhar do advogado numa tentativa de

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o olhar da mente

deduzir o que ele realmente pensava, mas em vão. O rosto de Rüger era tão inescrutável como uma pedra.

— Não, é claro que não tenho a certeza. Sabe-o bem.O advogado tirou notas.— Dr. Mitter, tenho de pedir-lhe que não considere o facto de eu

ter lido a transcrição do seu interrogatório. Tem de fazer de conta que está agora a contar-me a sua história pela primeira vez. Tente colocar-se nessa situação.

— É que não me lembro.— Sim, eu percebi que não se lembra do que aconteceu. É por

isso que devemos ser meticulosos sobre a necessidade de começar-mos pelo princípio. A sua memória não despertará se não tentar vol-tar a essa noite. E sem qualquer tipo de preconceito. Está de acordo?

— E o que é que acha que eu passei o tempo aqui a fazer? O que é que imagina que eu tenho estado a pensar dentro desta cela?

Começava a ficar zangado. O advogado evitou olhá-lo nos olhos e tomou mais uma nota.

— O que é que está a escrever? — Desculpe. — Rüger abanou a cabeça para indicar que era

qualquer coisa que não se sentia preparado para revelar. Tirou um lenço do bolso e assoou-se ruidosamente. — Está um tempo horrível — explicou.

Mitter acenou afirmativamente com a cabeça.— Só quero que compreenda — tornou Rüger — que se encon-

tra numa posição muito delicada. Mantém que não é culpado, mas não se recorda. É uma base muito pouco sólida para se montar um argumento para a sua defesa, como decerto compreende.

— Cabe à acusação provar que sou culpado. Não me compete a mim provar o contrário, não é verdade?

— Claro. É essa a lei, mas...— Mas?— Se não se lembra, não se lembra. Mas poderá ser bastante

difícil convencer um júri. Compromete-se a informar-me no momento em que se lembrar de alguma coisa?

— Claro.

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— Seja o que for?— Naturalmente.— Vamos continuar. Há quanto tempo é que conhecia Eva Ringmar?— Há dois anos. Há quase dois anos. Desde que começou a tra-

balhar na nossa escola.— Onde o senhor ensina o quê?— História e Filosofia. Mas sobretudo História. A maioria dos

alunos não opta por estudar Filosofia.— Há quanto tempo é que está a dar aulas lá?— Há cerca de vinte anos. Dezanove, talvez.— E a sua mulher?— Línguas Modernas. Há dois anos, como lhe disse.— Quando é que a vossa relação começou?— Há seis meses. Casámo-nos no verão, no início de julho.— Ela estava grávida?— Não. Porque é que...— Tem filhos, Dr. Mitter?— Sim, um rapaz e uma rapariga.— Que idade têm?— Vinte e dezasseis anos. Vivem com a mãe em Chadow.— Quando é que se divorciou da sua ex-mulher?— Em 1980. Jürg viveu comigo até ir para a universidade.

Não vejo o que isto tenha a ver com...— Antecedentes. Preciso de qualquer tipo de antecedentes.

Os advogados também têm de resolver enigmas, como decerto con-cordará. Que tipo de relação é que tem com a sua ex-mulher?

— Nenhuma.Fizeram uma pausa. Rüger assoou-se. Sentia-se visivelmente

insatisfeito com qualquer coisa, contudo, Mitter não queria satisfazer--lhe a curiosidade e contar pormenores. Irene nada tinha a ver com o assunto. Nem Jürg nem Inga. Mitter sentia-se grato por os três terem tido o bom senso de não se meterem. Haviam falado, claro, mas só no primeiro dia. Desde então tinham-se mantido em silên-cio. Nessa manhã recebera uma carta de Inga, que não passava de uma meia dúzia de linhas. A expressar-lhe o seu apoio.

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o olhar da mente

Estamos contigo. Inga e Jürg.Mitter perguntou a si próprio se isso também se aplicaria a Irene.

Estaria com ele? Mas talvez isso não importasse.

— Que tipo de relacionamento era o vosso?— Como diz?— O seu casamento com a Eva Ringmar. Como era?— Como são os casamentos.— Que significa isso?Mitter não respondeu.— Era um casamento feliz ou discutiam?Mitter não respondeu.— Era um casamento só com três meses — tornou o advogado.— Sim, é verdade.— E depois descobriu a sua mulher morta, na banheira. Com

certeza que compreende que temos de encontrar uma explicação?— Sim, claro.— E também compreende que não é bom nada dizer sobre este

tema? O seu silêncio pode ser lido como indicando que está a escon-der qualquer coisa. Vai ser usado contra si.

— É o que penso.— Amava a sua mulher?— Sim.— Discutiam?— Às vezes.Rüger tomou uma nota.— O procurador vai afirmar que ela foi morta. Vai ter a apoiá-lo

testemunhos de médicos e técnicos especialistas. Não seremos ca-pazes de provar que ela morreu de forma natural. A questão é se ela terá posto fim à vida.

— Sim, penso que sim.— Pensa que sim o quê? — Que depende disso. De ela poder ter posto fim à vida.— Talvez. De qualquer modo, nessa noite... Que quantidade

é que beberam?

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— Muito.— E isso significa o quê?— Não sei dizer...— Quanto é que precisa de beber antes de perder a memória,

Dr. Mitter?Mitter já se sentia obviamente irritado. Empurrou a cadeira para

trás, levantou-se e foi até à porta. Enfiou as mãos nos bolsos e olhou para as costas curvadas do advogado. Esperou. Mas Rüger manteve--se em silêncio.

— Não sei — acabou por dizer Mitter. — Tentei fazer essa conta. Com as garrafas vazias e tudo isso, sabe como é. Presumivelmente seis ou sete garrafas.

— De vinho tinto?— Sim, vinho tinto. Mais nada.— Seis ou sete garrafas para duas pessoas? Estiveram sozinhos

nessa noite?— Sim, tanto quanto me lembro.— Tem algum problema de alcoolismo, Sr. Mitter?— Não.— Ficaria surpreendido se outras pessoas tivessem outra opinião?— Sim.— E quanto à sua mulher?— Que quer dizer com isso?— Não é verdade que ela deu entrada... — Rüger examinou os

papéis diante de dele e folheou-os — ... numa instituição para aquilo que se costuma designar por «secar»? Em Rejmershus. Tenho aqui os pormenores.

— Então porque é que pergunta? Foi há seis anos. Ela perdeu um filho e o casamento desfez-se.

— Eu sei, eu sei. Perdoar-me-á, Dr. Mitter, mas tenho de lhe fazer estas perguntas, embora possam parecer desagradáveis. Será muito pior no julgamento. E já se pode ir habituando a isso.

— Obrigado, já me habituei.— Podemos continuar?— Claro.

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o olhar da mente

— Qual é a sua última recordação clara daquela noite? De que possa estar absolutamente seguro?

— Do estufado... Jantámos um estufado à mexicana. Já disse isso à Polícia.

— Diga-me outra vez!— Comemos um estufado à mexicana. Na cozinha.— Sim?...— Começámos a fazer amor.— Disse isso à Polícia?— Sim.— Continue.— O que é que quer saber? Os pormenores?— Tudo aquilo de que se lembrar.Mitter regressou para junto da mesa. Acendeu um cigarro e

inclinou-se para o advogado. Já agora, podia dar-lhe todos os por-menores, a este burocrata corcunda.

— A Eva tinha um quimono. E nada por baixo. Quando come-çámos a comer, eu comecei a acariciá-la. Também bebemos, claro, e ela despiu-me. Em parte, pelo menos. Acabei por pô-la em cima da mesa.

Mitter fez uma pausa. O advogado deixara de tomar notas.— Levantei-a para cima da mesa, tirando-lhe o quimono e comendo-

-a. Acho que ela gritou... não de dor, mas pelo prazer sensual que sen-tia: era uma coisa que ela costumava fazer quando fazíamos amor. Acho que estivemos assim durante muito tempo. Continuámos a comer e a beber, também. Sei que despejei vinho por cima do sexo dela e que depois o lambi.

— Vinho no sexo dela? — Rüger falou de repente, quase em surdina.

— Sim. Há mais alguma coisa que gostasse de saber?— É a última coisa de que se lembra?— Penso que sim.Rüger pigarreou. Tirou o lenço do bolso e assoou-se outra vez.— A que horas é que acha que teria sido isso?— Não faço a menor ideia.

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— Nem aproximadamente?— Não. Pode ter sido a qualquer hora entre as nove e as duas.

Não olhei para o relógio.— Estou a compreender. Porque é que havia de olhar para o reló-

gio? — Rüger começou a juntar os papéis. — Posso sugerir-lhe que se contenha quanto a dar muitos pormenores do, enfim, do sexo, se a questão for suscitada no julgamento? Penso que poderia ser mal interpretada.

— Não duvido.— A propósito, não havia vestígios de esperma... Espero, enfim,

que esteja ciente de que são feitos exames pormenorizados...— Sim, o inspetor-chefe explicou-me isso. E não, não me vim.

Suponho que esse é um dos efeitos do vinho. Ou uma das vantagens, dependendo do ponto de vista. Não é, Dr. Rüger?

— Hum. Calculo que saiba que o momento já foi estabelecido?— Que momento?— O momento da morte. Não com rigor, claro, que na prática

quase nunca é possível. Mas a certa altura entre as 4h00 e as 5h30.— Eu acordei às 8h20.— Já sabemos. — Rüger pôs-se em pé. Ajustou a gravata e abo-

toou o casaco. — Acho que já será suficiente por hoje. Muito obri-gado. Voltarei amanhã com mais algumas perguntas. Espero que coopere?

— E não cooperei hoje?— Sim, bastante.— Posso ficar com os cigarros?— Faça favor. Posso fazer-lhe uma pergunta, que pode ser um

pouco... bem, desconfortável?— Claro.— Penso que é importante. E não quero que responda ao acaso.— Claro.— Se não quiser dizer nada, eu compreenderei perfeitamente,

mas penso que é importante que seja sincero consigo próprio. De qualquer modo, tem a certeza de que quer lembrar-se do que aconteceu, ou prefere não saber?

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o olhar da mente

Mitter não respondeu. Rüger evitou-lhe o olhar, acrescentando:— Os meus objetivos são também os seus. Espero que o perceba.Mitter acenou afirmativamente com a cabeça. Rüger tocou

a campainha e, poucos segundos mais tarde, o guarda regressou e deixou-o sair. Rüger hesitou, ainda na porta. Parecia inseguro, mas acabou por dizer:

— O meu filho manda-lhe cumprimentos e pediu-me que os transmitisse. Chama-se Edwin, Edwin Rüger. O senhor foi o pro-fessor de História dele há dez anos. Não sei se se lembra dele. De qualquer modo, ele gostou de si. Foi um professor interessante.

— Interessante?!— Sim, foi essa a palavra que ele usou.Mitter voltou a acenar com a cabeça.— Lembro-me dele. Por favor, dê-lhe também cumprimentos

meus e agradeça-lhe por mim.Apertaram as mãos e depois Mitter ficou só.

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Um inseto rastejou pela pele do seu braço direito. Um peque-no inseto persistente, com alguns milímetros de compri-mento. Observou-o, a pensar para onde se dirigia.

A caminho da luz, talvez. Tinha deixado acesa a luz da mesa de cabeceira, apesar de já ser de madrugada. Era-lhe difícil, por qual-quer motivo, lidar com a escuridão. Não era próprio dele. Nunca tinha visto a escuridão como uma ameaça, tanto quanto se lembrava, nem mesmo em criança. Recordava-se de várias ocasiões em que atraíra maior admiração pela ousadia e pela coragem do que merecia, apenas por não ter medo do escuro. Mankel e Li tinham ficado espe-cialmente impressionados.

Mas Mankel morrera. E não fazia a menor ideia do que aconte-cera a Li. Era estranho estar a pensar neles agora porque havia anos e anos que não se lembrava deles. Havia tantas coisas nas quais ele devia estar a pensar, em vez deles. Mas quem é que consegue contro-lar os mecanismos caprichosos da memória?

Olhou para o relógio: 3h30. Estivera a sonhar?Fosse como fosse, o sono fora agitado. Talvez alguma coisa tivesse

vindo ter com ele, enquanto dormia. Nos últimos dias convencera-se cada vez mais de que tudo viria de novo ao seu encontro. Nunca nada acontecia quando estava acordado. E mais de uma semana depois,

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o olhar da mente

a recordação dessa noite era tão vaga como fora na manhã anterior. O líquido revelador empregue na câmara escura era defeituoso e nada se materializara no papel, nem uma imagem, nem uma suges-tão de contornos. Era como se ele não tivesse estado lá, como se nada tivesse acontecido depois do tão ardente ato sexual a que se haviam entregado. A última imagem era suficientemente clara: as coxas de Eva a abrirem-se e a fecharem-se à volta do seu pénis, as costas extravagantemente arqueadas no momento do êxtase, os seios a oscilarem e as unhas a enterrarem-se-lhe na pele... Aconteceu mais do que contara a Rüger, mas nada de significativo. Depois de se terem fundido na cozinha, não havia mais nada. Era como um espe-lho liso e vazio.

Como gelo recém-formado por cima de água escura.Adormecera, apenas? Desmaiara? Na manhã seguinte acordara

nu na cama, maldição!Que raio teria acontecido?!Eva? Escutara a sua voz várias vezes pelo meio dos seus sonhos,

disso tinha a certeza, mas nunca com palavras. Nunca uma mensa-gem, só a voz. Profunda, maliciosa, por vezes sedutora. A voz dela sempre o tinha fascinado.

O apartamento parecia relativamente limpo e arrumado. Além dos restos na cozinha e das roupas no chão, não havia sinais de que tivesse acontecido algo de estranho. Cinzeiros cheios, alguns copos semivazios, a garrafa no corredor. Arrumou as poucas coisas antes da chegada da Polícia.

As mesmas perguntas. Repetidamente refletindo-se no espelho. A serem devolvidas como mancheias de cascalho para cima do gelo. Mas nada lhe ocorria. Mesmo nada.

E mesmo que alguma coisa lhe tivesse ocorrido enquanto dor-mia, como diabo é que se poderia esperar que ele a fixasse? Sem lhe perder o rasto como ele sempre fazia?

O seu sono tornara-se o mais irregular de sempre. Nunca durava mais do que uma hora, muitas vezes só 15 ou 20 minutos. Fuma-ra o último dos cigarros de Rüger por volta das 2h00. E agora até pagaria por uma passa. Sentia um formigueiro no corpo de que não

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conseguia libertar-se, uma espécie de comichão bem debaixo da pele e a que não chegava.

E sentia-se exausto.Era um cansaço que ia e vinha e que bem poderia ser uma bênção

oculta por afastar outras coisas que poderiam ter sido muito piores.E o que é que Rüger tinha querido saber?Quereria mesmo saber? Se ele...?Sentiu uma ligeira picada no ombro. O inseto picara-o. Ainda

hesitou um instante antes de o segurar entre o polegar e o indicador e o esmagar.

E quando o engoliu sentiu apenas que era como se engolisse uma migalha de pão que não mastigara.

Voltou-se para a parede. Assim permaneceu, com o rosto empur-rado contra o cimento, à escuta de sons. A única coisa que conseguia ouvir era a monótona respiração do sistema de ar condicionado.

O mundo inteiro vai desabar ainda mais catastroficamente, pensou. É só uma questão de tempo.

Quando chegou o carrinho do pequeno-almoço, pouco depois das 7h00, ainda se encontrava na mesma posição. Mas sem ter dor-mido um segundo que fosse.

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R üger não estava melhor da gripe.— Devia beber um conhaque e meter-me na cama mas preciso de falar consigo primeiro. Dormiu bem?

Mitter abanou a cabeça.— Dormiu alguma coisa?— Não muito.— Não, pela sua cara, não deve ter dormido nada. Tomou alguma

coisa? Algum tipo de tranquilizante?— Não.— Vou tratar-lhe disso. Não podemos deixar que o verguem.

Suponho que não acredita que esta longa espera antes do julga-mento seja uma coincidência? — Rüger fez uma pausa e assoou-se. — Ah, os cigarros.

O advogado atirou um maço por abrir para cima da mesa. Mitter rasgou o celofane e reparou que não conseguia controlar por com-pleto as mãos. As primeiras fumaças fizeram-no ver tudo negro.

— O Van Veeteren vem interrogá-lo outra vez esta tarde. Eu gostaria de estar presente mas receio que não consiga. Mas o meu conselho é que fale o menos que puder. Calculo que saiba que tem o direito de se manter em silêncio do princípio ao fim...

— Pensei que me tinha aconselhado a não o fazer.

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— No tribunal, sim. Mas não quando a Polícia o interroga. Mantenha- -se apenas em silêncio, deixe-os fazerem as perguntas que quise-rem. Ou, pelo menos, diga-lhes apenas que não se lembra. Está bem?

Mitter acenou afirmativamente com a cabeça. Começava a sentir- -se capaz de confiar em Rüger, gostasse ou não dele. Perguntou a si próprio se isso se devia ao seu défice de sono ou à gripe, que clara-mente piorara, do advogado.

— A coisa mais estúpida que se pode fazer é tirar conclusões apressadas, pôr-se a adivinhar coisas, especular e depois ser obriga-do a retratar-se. Cada palavra que pronunciar durante os interroga- tórios será usada contra si no julgamento. Se, por exemplo, sugerir ao inspetor-chefe que vá dar uma curva, pode acreditar que ele irá dizer ao júri, dando-o como exemplo do tipo de pessoa que o senhor é. Quer um café?

Mitter abanou a cabeça.— Muito bem. Gostava de falar consigo sobre a manhã.— A manhã?— Sim, a manhã, quando a encontrou. Há vários pontos que

devem ser clarificados.— Como?— O seu comportamento... depois de ter telefonado à Polícia.— Ah.— Limpou o apartamento enquanto a sua mulher jazia morta

na banheira, certo?— Só limpei e arrumei algumas coisas. Foi só isso.— Não acha que isso é bastante estranho?— Não.— O que é que fez, ao certo?— Arrumei alguns copos, esvaziei um cinzeiro, apanhei algu-

mas roupas...— Porquê?— Eu... Realmente não sei. Suponho que devo ter ficado um

pouco em choque. E não queria de certeza voltar à casa de banho.— Quanto tempo demorou a Polícia a chegar?

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o olhar da mente

— Um quarto de hora. Talvez 20 minutos.— Sim, foi mais ou menos isso. A sua chamada telefónica foi

registada às 8h27 e, segundo o relatório, eles chegaram às 8h46. Dezanove minutos. O que fez às roupas?

— Meti-as na máquina de lavar.— Todas?— Sim. Nem eram muitas.— Onde é que está a máquina de lavar?— Na cozinha.— E meteu lá tudo?— Sim.— E também a ligou?— Sim.— É o senhor que trata pessoalmente da lavagem da roupa?— Vivi sozinho durante dez anos.— Muito bem, mas quando há peças diferentes de roupa?

O mesmo programa é realmente apropriado para todas? Decerto que deviam ser de diferentes cores e materiais, e por aí adiante.

— Não, eram todas de cores escuras.— Usou o programa das cores, portanto?— Sim.— E a que temperatura?— Quarenta graus. Haverá quem as lave a 60 ºC, mas o resultado

não é muito diferente.Ficaram em silêncio. Rüger assoou-se. Mitter acendeu mais um

cigarro. O terceiro, até esse momento. Rüger recostou-se na cadeira e olhou para o teto.

— Não percebe que isto é tudo desgraçadamente estranho?— Tudo o quê?— O senhor a lavar a roupa logo depois de ter encontrado a sua

mulher morta na casa de banho.— Não sei. Talvez...— Ou ligou a máquina antes de chamar a Polícia?— Não, telefonei logo.— Imediatamente?

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— Sim... Bem, tomei alguns comprimidos antes. Tinha uma dor de cabeça monumental.

— E que mais fez enquanto esperava pela Polícia? Além de des-pejar o cinzeiro, lavar alguns copos, lavar a roupa...

— Pus os restos de comida no caixote do lixo. Limpei um pouco a cozinha...

— Não regou as plantas?— Não.— Não lavou as janelas?Mitter fechou os olhos. A confiança que depositara em Rüger

estava suspensa e ele podia senti-lo com toda a clareza. Talvez só tivesse sido por causa dos cigarros. E o que ele agora tinha na boca já não lhe dava um sabor agradável. Esmagou-o, aborrecido.

— Alguma vez encontrou a sua mulher morta na banheira, Dr. Rüger? Mesmo que isso não tenha acontecido, talvez me possa elucidar sobre a forma como uma pessoa se deve comportar enquan-to espera pela Polícia. Seria interessante saber...

Rüger pegara outra vez no lenço, mas depois ficou imóvel.— Não consegue perceber, por amor de Deus?!— Perceber o quê?— Que o seu comportamento foi altamente suspeito, que raio!

Com certeza que pode perceber como é que vai ser interpretado. Por amor de Deus! Lavar copos, lavar a roupa!... Veja o exemplo que é, quanto a fazer desaparecer provas...

— Está a partir do princípio de que eu a matei, presumo.Rüger assoou-se.— Não — respondeu —, não estou a partir de princípio nenhum.

E, se Deus quiser, o seu comportamento há de ser considerado tão idiota que até lhe trará mais vantagens do que desvantagens.

— Que quer dizer com isso?— Afoga a sua mulher na banheira. Consegue trancar a porta

pelo lado de fora. Despe-se e vai para a cama e esquece-se do que fez. Na manhã seguinte acorda, força a entrada na casa de banho e descobre-a... Engole alguns comprimidos para lhe aliviarem a dor de cabeça, telefona à Polícia e começa a lavar a roupa...

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o olhar da mente

Mitter levantou-se e foi até à cama. O cansaço apoderou-se dele, de repente. Já só queria que Rüger se fosse embora e o deixasse em paz.

— Não a matei — declarou, estendendo-se na cama.— Não, ou pelo menos não pensa que o tenha feito. Sabe uma

coisa? Não é impossível que as autoridades queiram que seja exami-nado para poderem avaliar o seu estado mental. O que é que diria a uma hipótese dessas?

— Está a dizer que eles não me podem obrigar a fazê-lo?— Não, a não ser que haja motivo suficiente.— E não há?Rüger já se levantara. Começou a vestir o sobretudo.— É difícil responder... É difícil responder. O que pensa?— Não faço a menor ideia.Mitter fechou os olhos e puxou os joelhos para o peito, voltado

para a parede. Ouviu Rüger a dizer qualquer coisa, à distância, mas o cansaço já era um abismo profundo, rodopiante, onde ele se deixou afundar, sem oferecer resistência.

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O inspetor-chefe Van Veeteren não tinha gripe. Mas, por outro lado, tinha tendência para se sentir depri-mido quando havia mau tempo e, com a chuva a cair quase

sem parar desde há dez dias, a melancolia aproveitara a oportuni-dade para ganhar raízes bem fundas na sua mente.

Fechou a porta do carro e ligou o motor. E depois o leitor de cassetes.O concerto para bandolim de Vivaldi. Como de costume havia

qualquer coisa estranha num dos altifalantes. O som ia e vinha.Não era só a chuva. Também havia outras coisas. A sua própria mulher, por exemplo. Pela quarta ou quinta vez

— já lhes perdera a conta —, ela parecia estar a preparar-se para se reconciliarem. Há oito meses que se haviam separado de uma vez por todas, mas agora ela começara a telefonar-lhe outra vez.

Ainda não haviam chegado ao ponto de regresso mas já começa-va a ser claro qual a direção para onde soprava o vento. E ele já se sen-tia suficientemente seguro para calcular que pouco antes do Natal, ou por volta dessa época, eles estariam a partilhar a casa e a cama.

Mais uma vez.E a única coisa que o podia evitar era ele dizer que não, mas,

e nem valia a pena pensá-lo, nada sugeria que isso pudesse vir a acontecer.

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o olhar da mente

***

Virou para a Kloisterlaan e tirou um palito do bolso do casaco. A chuva caía com toda a sua força e o para-brisas começava a ficar outra vez embaciado. Como era habitual. Limpou-o com a manga do casaco mas, por instantes, não conseguiu ver nada.

Morte, aí vou eu, pensou. Mas nada aconteceu. Premiu várias vezes os botões do ar condicionado e ajustou os controlos. A cor-rente de ar quente que sentia nos pés tornou-se mais intensa.

Tenho de arranjar um carro melhor, pensou.E não pela primeira vez.

A Bismarck também estava doente.Desde que a filha, Jess, fizera 12 anos que ele fora obrigado a

tomar conta da cadela Terra-Nova de raciocínio lento, mas agora a úni-ca coisa que ela fazia era ficar deitada junto ao frigorífico a vomi-tar bocados malcheirosos amarelo-esverdeados e durante o dia Van Veeteren era obrigado a ir várias vezes a casa para fazer a limpeza.

Do cão. Não da filha.Esperava que Jess estivesse em muito melhor forma. Já ia nos

24 anos, ou talvez nos 23. Vivia muito longe, em Borges, com cães novos, um marido que reparava dentes e dois gémeos que andavam entretidos a aprender a andar e a praguejar numa língua estrangeira. Vira-os pela última vez no começo das férias de verão e não se sentia obrigado a ir impor-se-lhes outra vez antes do Ano Novo.

Também havia um filho: Erich.Erich vivia muito mais perto. Na penitenciária de Linden, mais

exatamente, onde cumpria uma pena de dois anos de prisão por tráfico de drogas. Estava, por outras palavras, a ser bem cuidado. Se Van Veeteren o desejasse, podia ir visitá-lo todos os dias. Era só uma questão de se meter no carro, de percorrer os cerca de 24 quiló-metros ao longo dos canais e mostrar ao guarda a sua identificação para entrar. Era aí que Erich se encontrava, sem qualquer possibi-lidade de evitar o pai e, quando Van Veeteren lhe levava cigarros e jornais, não se sentia, em geral, indesejado.

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Mas por vezes perguntava a si próprio de que serviria ficar senta-do a olhar para o meliante de cabelos compridos que era o seu filho.

Baixou o vidro para deixar entrar um pouco de ar fresco. Uma rajada de chuva caiu-lhe na coxa.

E que mais?O pé direito, claro.Torcera-o na véspera, no jogo de badminton com Münster. 6 - 15,

3 - 15, com o jogo abandonado devido à lesão com o resultado de 0 - 6 no terceiro set... Os números contavam a história, claro. De manhã tivera dificuldade em enfiar o pé no sapato e cada passo que dava era uma agonia. Oh, que alegria era estar vivo!

Mexeu os dedos do pé, para tentar perceber o que sentia, e ficou a pensar se devia ter ido tirar uma radiografia. Mas o pensamento era falso, como bem sabia. Bastava-lhe recordar-se do pai, desse estoico que se recusara a ir para o hospital com uma pneumonia dupla por considerar o gesto pouco masculino.

Dois dias depois, o pai morrera, orgulhoso por não ter custado ao serviço de saúde um único cêntimo nem ter deixado que lhe passasse pelos lábios uma gota de medicamento.

Aos 52 anos.Nem sequer assistira ao 18.º aniversário do filho.

E agora havia este professor do ensino secundário.Van Veeteren obrigou-se, com relutância, a pensar no seu traba-

lho. Para ser sincero, não era só mais um caso banal. Pelo contrário. Se não fosse tudo o resto, além da malvada chuva que não parava, até poderia obrigar-se a reconhecer que luzia dentro dele uma centelha de excitação.

O problema, no entanto, é que não tinha a certeza de que fosse esse o caso.

Nove em cada dez vezes ele tinha a certeza. Bem, para ser franco, a percentagem ainda era mais elevada. Normalmente conseguia dizer se estava a olhar para o culpado 19 em cada 20 vezes, se não mesmo mais.

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Não valia a pena tapar o sol com a peneira. Havia sempre um conjunto de pequenos sinais que apontavam para uma direção ou para outra e, com os anos, aprendera a identificar e a interpretar esses sinais. Não que fosse capaz de os detetar a todos, mas isso não importava. O importante era que ele conseguia ver o quadro geral. O padrão.

Fazia-o com facilidade e sem precisar de se esforçar muito.Encontrar as provas e construir uma acusação que se pudesse

aguentar no julgamento... bem, isso já era outra questão. Mas a per-ceção, a certeza, apossava-se sempre dele.

Quer gostasse, quer não. Interpretava os sinais emitidos pelo sus-peito e, por vezes, via-o como um processo fácil, como ler um livro, como um músico consegue identificar uma melodia num conjunto de notas musicais de uma partitura ou um professor de Matemática pode detetar um cálculo errado. Não era nada de especial, mas era uma arte, claro. Não era algo que se pudesse aprender da maneira normal, nem algo que se pudesse ensinar. Era só uma capacidade que ele adquirira depois de tantos anos na Polícia.

Por amor de Deus, era um dom, e não uma coisa que pudesse ser encarada como apenas um mérito do trabalho que fazia.

E nem sequer possuía o bom senso de se sentir adequadamente grato.

É claro que ele sabia que era o melhor interrogador de todo o dis-trito e talvez mesmo no país. Mas com prazer trocaria essa pretensão por uma oportunidade para dar a Münster uma porrada a sério no badminton.

Uma vez só; já seria suficiente.Escusado será dizer, a sua capacidade resultara na sua promoção

a inspetor-chefe, apesar de ter havido outros muito mais interes-sados no posto do que ele, quando o velho Mort se reformara.

E escusado será dizer que era por isso que o chefe da Polícia con-tinuava a rasgar as suas cartas de demissão e a atirá-las para o lixo.

Van Veeteren precisava de estar no seu posto.Acabara por se reconciliar com o seu destino. Talvez fosse me-

lhor assim: à medida que os anos passavam, achava cada vez mais

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difícil imaginar-se a fazer qualquer outro tipo de trabalho em que não se tornasse rapidamente alguém com quem fosse impossível trabalhar.

Para quê ser um mestre-jardineiro ou um motorista de autocarro deprimido quando se pode ser um inspetor-chefe deprimido, como Reinhart dissera num dos seus momentos mais esclarecidos?

Portanto, como é que estavam agora as coisas?Em 19 de 20 casos ele tinha a certeza.Era no 20.º que as dúvidas vinham à superfície.E o 21.º?Lembrou-se de um verso antigo.Dezanove doce donzelas...Tamborilou com os dedos no volante, a tentar arrancar a conti-

nuação aos abismos mais profundos da sua memória.... aspiravam a ser sua mulher?Parecia um pouco estranho, mas qual era o problema? E o que é

que se seguia?Dezanove doce donzelas aspiravam a ser sua mulher,A número 20 desprezou-o...«Desprezado», pensou Van Veeteren. Porque não?A número 20 desprezou-o,A seguinte matou-o!Tanto disparate. Cuspiu o palito e parou à porta da esquadra.

Como habitualmente, sentiu-se obrigado a acalmar-se antes de sair do carro — não havia a menor dúvida de que o edifício era um dos três mais feios da cidade.

Os outros dois eram a Escola Secundária de Bunge, estabeleci-mento de ensino onde terminara o secundário e onde Mitter dava aulas. E Klagenburg 4, o prédio de habitação onde morava há seis anos.

Abriu a porta e estendeu a mão para o banco de trás, à procura do chapéu de chuva, e então lembrou-se de que o deixara a secar no patamar, em casa.

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B oa tarde.A porta fechou-se por trás do inspetor-chefe. Mitter olhou para o lado. Além do seu antigo sogro e do seu colega que

ensinava Química e Física, Jean-Christophe Colmar, Van Veeteren devia ser a pessoa mais antipática com quem ele já se cruzara.

Quando o homem se sentou à mesa e começou a mastigar o seu perpétuo palito, Mitter pensou, de repente, que poderia ser uma ideia confessar tudo. Só para se ver livre dele.Só para o deixarem em paz.

Mas seria de supor que não fosse tão simples como isso. Van Veeteren não se deixaria enganar. Deixou-se ficar sentado com o seu corpo maciço inclinado sobre o gravador de cassetes, com a aparên-cia de um ciclone de baixa pressão, ameaçador e malévolo. O rosto era atravessado por pequenas veias azuis, muitas delas rebentadas, e a sua expressão fazia lembrar um cão de Santo Humberto petrifi-cado. A única coisa que se movia era o palito, que vagueava lenta-mente de um lado para o outro da boca. Van Veeteren conseguia falar sem mover os lábios nem os olhos e bocejar sem sequer abrir a boca. Era muito mais uma múmia do que uma pessoa feita de carne e osso.

Mas não havia a menor dúvida de que era um polícia muito eficaz.

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Não parecia de todo improvável que o inspetor-chefe soubesse a extensão da culpa de Mitter muito antes de ele próprio saber. A voz de Van Veeteren oscilava entre dois quartos de tom na escala abaixo de Dó. O mais elevado denotava uma pergunta, uma dúvida ou uma expressão de troça. O mais baixo era o da expressão de factos.

— Portanto, não conseguiu lembrar-se de mais nada? — come-çou o inspetor-chefe. — E importa-se de extinguir esse cigarro? Não vim aqui para ser envenenado.

Van Veeteren ligou o gravador e Mitter apagou o cigarro no lava-tório. Regressou à sua cama e, deitando-se, ficou de frente para ele.

— O meu advogado aconselhou-me a não responder a nenhuma das suas perguntas.

— A sério? Faça como quiser. Eu vou desmascará-lo, de qualquer das maneiras. Seis horas ou 20 minutos, é-me indiferente. Tenho imenso tempo.

O inspetor-chefe remeteu-se ao silêncio. Mitter ficou a ouvir o ar con-dicionado, enquanto esperava. Van Veeteren não mexeu um músculo.

— Sente a falta da sua mulher? — perguntou, após alguns minutos.— Claro.— Não acredito em si.— Pouco me importa o que você pensa.— Está a mentir, outra vez. Se não se preocupa com o que eu

penso, porque é que está a dizer-me mentiras tão idiotas? Use o seu cérebro, por amor de Deus!

Mitter não reagiu. Van Veeteren voltou ao seu quarto de tom mais baixo:

— Sabe que eu tenho razão. Você quer convencer-me de que sente saudades da sua mulher. Mas não sente e sabe que eu sei. Se disser a verdade, pelo menos já não sentirá vergonha de si próprio.

Não era uma crítica. Só uma afirmação factual. Mitter ficou em silêncio. Olhou para o teto. Talvez devesse levar à letra o conselho do seu advogado. Se ele não dissesse uma palavra e evitasse o contacto visual, sem dúvida que...

***

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Mas, por trás das pálpebras cerradas, houve qualquer coisa de dife-rente que se tornou clara.

Uma coisa diferente que o prendeu à parede. Havia sempre qual-quer coisa.

Não estaria Van Veeteren certo, afinal?A questão incomodou-o.«Quer convencer-me de que sente saudades da sua mulher. Mas

não sente.»O grande problema é que ele não sabia. Ela entrara na sua vida.

Forçara uma porta aberta, carregara sobre ele como se fosse uma princesa saída das sombras e apoderara-se dele. Completamente. Totalmente.

Apoderara-se dele e ficara com ele. E depois desaparecera.Foi assim mesmo?Não havia que duvidar que se podia descrever tudo assim e,

quando começou a pôr as coisas em palavras, já não podia voltar atrás. Eva Ringmar apareceu-lhe no capítulo 14 da sua vida. Entre as páginas 275 e 300, mais ou menos, desempenhara o papel que fizera sombra a todos os outros: a presença do amor, a deusa da paixão... E depois desaparecera, continuando provavelmente a viver, durante algum tempo, o tipo de vida que existia entre as várias linhas, mas em breve ele ficaria esquecido. Foi tudo tão intenso que o fim estava predestinado. Um episódio para acrescentar à história? Um soneto? Um fogo-fátuo?

Terminada. Morta, mas não chorada.O discurso de despedida chegara ao fim. A contradição também. A cadeira do inspetor-chefe arranhou o chão. Mitter sobressaltou-

-se. Era, sem dúvida... Não havia dúvida de que era o estado de choque, a paralisia, o estado de choque que estava a guiar os seus pensa-mentos por estes canais. Que esmagara e demolira tudo, tornando--lhe impossível compreender o que acontecera. E compreender tam-bém o que estava a acontecer-lhe?

— Estou certo, não estou? — Van Veeteren cuspiu um palito e tirou outro do bolso do casaco.

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— Sim, é claro. Fartei-me dela e afoguei-a na banheira. Porque é que havia de sentir-lhe a falta?

— Muito bem. Foi exatamente o que pensei. Vamos agora passar a outra coisa. O corpo dela era muito bonito. Não era?

— Porque é que pergunta?— Perguntarei o que quiser. Ela era forte?— Forte?— Se ela era forte! Será mais simples para si se eu fizer cada

pergunta várias vezes?— Porque é que quer saber se ela era forte?— Para poder excluir a hipótese de ela ter sido afogada por uma

criança ou por um inválido.— Ela não era especialmente forte.— Como é que sabe? Lutavam?— Só quando não tínhamos mais nada para fazer.— Tem tendência a ser violento, Sr. Mitter?— Não, não precisa de ficar com medo.— Pode dar-me seis candidatos?— O quê?!— Seis candidatos a possíveis assassinos da sua mulher, se é que

não foi você.— Já formulei várias possibilidades.— Quero saber se se lembra das pessoas que mencionou.— Não percebo porquê.— Isso é irrelevante. Não alimento ideias exageradas sobre a sua

inteligência.— Obrigado.— De nada. Agora vou explicar-lhe. Diga-me se estou a ir depres-

sa demais para si. Em sete de cada dez casos, é o marido que mata a mulher. Em dois em cada dez é alguém que faz parte do círculo das pessoas conhecidas.

— E no décimo caso?— É alguém de fora. Um louco ou algum tipo de assassino sexual.— Portanto, não considera os homicidas sexuais como loucos.— Não necessariamente. Portanto...

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— Os nossos inimigos mútuos, é isso?— Ou os dela.— Não tínhamos muita vida social. Já falei disso.— Eu sei. Deixou de se encontrar com a maioria das pessoas que

considerava suas amigas quando se juntaram. Portanto? Se me der seis nomes, pode fumar um cigarro! Não é como fazem as coisas na escola?

— Marcus Greijer.— O seu cunhado do primeiro casamento?— Sim.— Que você odeia. Continue.— Joanna Kemp e Gert Weiss.— Colegas. Línguas e... Estudos Sociais?— Klaus Bendiksen.— Quem é?— Amigo muito próximo. Andreas Berger.— Quem é ele?— O anterior marido dela. Mais um?Van Veeteren acenou afirmativamente com a cabeça.— Uwe Borgmann.— A sua vizinha?— Sim.— Greijer, Kemp, Weiss... Bendiksen, Berger e Borgmann. Cinco

homens e uma mulher. Porquê estes?— Não sei.— Ontem deu-me uma lista de... — Van Veeteren pegou numa

folha de papel e fez a conta rapidamente —... 28 nomes. Andreas Berger não estava nesta lista, mas todos os outros estão. Porque é que escolheu estes seis, em particular?

— Porque me pediu.Mitter acendeu um cigarro. A vantagem do inspetor-chefe dimi-

nuíra e isso notava-se claramente. Embora ele também pudesse ter suavizado a sua intervenção na esperança de que Mitter revelasse alguma coisa.

Mas o quê?

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Van Veeteren olhou com ar soturno para o cigarro e desligou o gravador.

— Vou dizer-lhe qual é a situação neste momento — começou. — Recebi o relatório médico final e está completamente fora de ques-tão que ela se pudesse ter suicidado. E isso deixa três possibilidades. A primeira é que você a matou. A segunda é que uma das pessoas da sua lista o fez, desta lista que acabou de me dar ou de uma das outras. A terceira é que ela foi vítima de um assassino desconhecido.

O inspetor-chefe fez uma pequena pausa, tirou o palito da boca e observou-o. Era evidente que ainda não estava completamente masti-gado e por isso voltou a metê-lo entre os dentes da frente.

— Pessoalmente, penso que foi você que o fez, mas reconheço que não estou muito certo disso.

— Muito obrigado.— Por outro lado, tenho quase a certeza de que o julgamento

concluirá pela sua culpa. Quero que esteja ciente disso e de que quando se trata de veredictos de tribunais, quase nunca me engano.

Van Veeteren levantou-se, enfiou o gravador na pasta e tocou, para chamar o guarda. Depois voltou-se para Mitter:

— Se este seu advogado tentar iludi-lo, fazendo-o pensar em qualquer coisa de diferente, é só por estar a tentar fazer o seu traba-lho. Você não deve ter ilusões nenhumas. Não tenciono incomodá- -lo mais. Vemo-nos no julgamento.

Por instantes, Mitter ainda pensou que Van Veeteren lhe fosse estender a mão, mas era claro que isso não teria sido possível. Em vez disso, o inspetor-chefe voltou-lhe as costas e, apesar de ter de esperar quase dois minutos até o guarda aparecer, ficou imóvel, a olhar para a porta.

Como se estivesse num elevador. Ou como se Mitter tivesse dei-xado de existir assim que a conversa terminara.

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