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BONDIOLI, Anna. A dimensão lúdica na criança de 0 a 3 anos na creche. IN: BONDIOLI, Anna e MANTOVANI, Susanna. Manual de educação infantil: de 0 a 3 anos. Porto Alegre: Artes Médicas, 9ª edição, 1998. p.212-227. Página 212 A Dimensão Lúdica na Criança de 0 a 3 Anos e na Creche Anna Bondioli Após a reavaliação do jogo como modalidade fundamental de aquisição e organização da experiência das crianças pequenas, encontrável em cada contexto cultural e até no mundo animal, derivou-se a idéia de que haja uma relação entre jogo e possibilidades evolutivas. A partir daí foi delineando-se uma pedagogia do jogo que se casava bem com uma concepção de maturação do crescimento, do tipo: "deixem as crianças brincarem e certamente seu desenvolvimento motor, lingüístico, intelectual e social melhorarão", Em recente entrevista, Garvey desmente essa convicção radicalizada, sustentando que se é verdade que as pesquisas confirmam o binômio jogo/saúde psicofísica da criança, elas ainda não conseguiram estabelecer a função e o papel do jogo no desenvolvimento infantil (Mayer, 1985). Tal constatação parece-nos salientar que o jogo pode ser considerado, com razão, um aspecto normal do desenvolvimento optimal, mas que ainda há muito o que se estudar, aprofundar e experimentar acerca das condições que fazem do jogo um instrumento evolutivo e, com maior razão, um espaço privilegiado da educação pré escolar. Existe pois o risco de querer considerar jogo cada manifestação infantil ou, ao contrário, de pensar que se pode transformar em jogo cada situação de experiência das crianças pequenas. Uma segunda idéia atravessou o debate relativo à formulação de uma "pedagogia do jogo" nas instituições para a primeira infância, a que considera os objetos, os materiais, os brinquedos em primeiro plano, na organização das atividades lúdicas, visto que a curiosidade infantil, em relação ao mundo externo, parece um fenômeno tão geral e precoce que faz pensar ser ela inata e que não necessita de condições particulares para que se manifeste. Algumas pesquisas contribuíram bastante para desmentir essas concepções de caráter tanto psicanalítico quanto interativo-cognitivista que, mesmo partindo de premissas diferentes, evidenciaram como a relação com os objetos, e o desejo de exploração que constitui a sua motivação, não seja um impulso primário, mas que se constitua a partir de situações sociais compartilhadas com o adulto que funciona como medium (meio) em relação às coisas e aos eventos do mundo físico. Tais pesquisas mostram que existe uma outra criança, antecedente à piagetiana, Página 213

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BONDIOLI, Anna. A dimensão lúdica na criança de 0 a 3 anos na creche. IN: BONDIOLI,

Anna e MANTOVANI, Susanna. Manual de educação infantil: de 0 a 3 anos. Porto Alegre:

Artes Médicas, 9ª edição, 1998. p.212-227.

Página 212

A Dimensão Lúdica na Criança de 0 a 3 Anos e na Creche

Anna Bondioli

Após a reavaliação do jogo como modalidade fundamental de aquisição e

organização da experiência das crianças pequenas, encontrável em cada contexto cultural e até no mundo animal, derivou-se a idéia de que haja

uma relação entre jogo e possibilidades evolutivas. A partir daí foi delineando-se uma pedagogia do jogo que se casava bem com uma

concepção de maturação do crescimento, do tipo: "deixem as crianças brincarem e certamente seu desenvolvimento motor, lingüístico, intelectual

e social melhorarão", Em recente entrevista, Garvey desmente essa convicção radicalizada, sustentando que se é verdade que as pesquisas

confirmam o binômio jogo/saúde psicofísica da criança, elas ainda não conseguiram estabelecer a função e o papel do jogo no desenvolvimento

infantil (Mayer, 1985). Tal constatação parece-nos salientar que o jogo pode ser considerado, com razão, um aspecto normal do desenvolvimento

optimal, mas que ainda há muito o que se estudar, aprofundar e experimentar acerca das condições que fazem do jogo um instrumento

evolutivo e, com maior razão, um espaço privilegiado da educação pré

escolar. Existe pois o risco de querer considerar jogo cada manifestação infantil ou, ao contrário, de pensar que se pode transformar em jogo cada

situação de experiência das crianças pequenas. Uma segunda idéia atravessou o debate relativo à formulação de uma

"pedagogia do jogo" nas instituições para a primeira infância, a que considera os objetos, os materiais, os brinquedos em primeiro plano, na

organização das atividades lúdicas, visto que a curiosidade infantil, em relação ao mundo externo, parece um fenômeno tão geral e precoce que faz

pensar ser ela inata e que não necessita de condições particulares para que se manifeste. Algumas pesquisas contribuíram bastante para desmentir

essas concepções de caráter tanto psicanalítico quanto interativo-cognitivista que, mesmo partindo de premissas diferentes, evidenciaram como a relação

com os objetos, e o desejo de exploração que constitui a sua motivação, não seja um impulso primário, mas que se constitua a partir de situações sociais

compartilhadas com o adulto que funciona como medium (meio) em relação

às coisas e aos eventos do mundo físico. Tais pesquisas mostram que existe uma outra criança, antecedente à piagetiana,

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descobridora e construtora da realidade, e que o jogo apresenta, desde o

início, uma forte qualidade social. Isso também fez repensar ou, pelo menos, conter dentro de limites mais

restritos a idéia piagetiana do egocentrismo infantil que vê a criança em idade pré-escolar interagir com os coetâneos por períodos de tempo

prolongados de maneira completamente solipsística e não social. Uma

linha de pesquisa, que está amplamente apresentada em um outro ensaio desta parte da antologia (cf. Musatti, neste volume), corrige essa

hipótese, evidenciando as conotações peculiares das trocas entre crianças em situações de jogo.

Dessas breves considerações surge a necessidade de delinear uma seqüência evolutiva do jogo de zero a três anos que esclareça, para cada

etapa considerada, o entrelaçamento entre criança, objetos, pessoas no jogo, e evidencie a inter-relação entre aspectos cognitivos, afetivos e

sociais. A partir dessa progressão, apresentada na primeira parte deste trabalho, serão discutidos alguns traços de uma "pedagogia do jogo" na

creche, setting (ambiente) educacional absolutamente particular que se caracteriza pela presença de várias crianças aproximadamente da mesma

idade e de figuras de referência diversas das parentais, com uma preparação pedagógica que deveria permitir a organização e

administração de maneira consciente das situações de jogo oferecidas às

crianças. Mas, para que essa possibilidade se traduza em realidade, é necessário iniciar a discussão - pelo menos no que diz respeito às

atividades lúdicas, que é o tema que aqui nos compete - sobre as modalidades com as quais objetos e pessoas do setting creche são

colocados para fazê-los interagir no jogo. Portanto, analisaremos algumas pesquisas no campo da avaliação de experiências de jogo na creche e,

sem nos determos nas também importantes questões relativas à escolha dos materiais, aos tipos de atividades e à organização temporal da vida

cotidiana na creche, identificaremos como problema principal o comportamento e o papel do adulto nas situações lúdicas. Já na família,

primeira agência de socialização infantil, o espaço de jogo deveria ser estudado e potencializado. Ainda com maior razão, na creche, que se

caracterizou, durante todos estes anos, pela busca de estratégias e modelos pedagógicos na medida da criança. Em particular, a interação

adulto/criança e adulto/grupo de crianças constitui um elemento

fundamental para caracterizar qualitativamente a creche como espaço educacional sobretudo em relação ao jogo, que é um dos mais difundidos

e espontâneos comportamentos infantis. A espontaneidade de tal comportamento não deve, porém, fazer com que se esqueça que o espaço

do jogo é, desde o início, um espaço que se constrói, uma experiência que se adquire enquanto compartilhada, que se enriquece através da

incorporação de modelos "culturais" participados.

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1. A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO DE JOGO ENTRE ADULTO E CRIANÇA:

O OBJETO DE TRANSIÇÃO

Enquanto Piaget está atento em estudar o modo com o qual a criança chega, de um estado de indiferenciação inicial, a distinguir a si mesma do

mundo externo, compreendido sobretudo no seu aspecto físico, a discriminar

entre meios (as próprias ações) e fins (efeitos produzidos pelas ações sobre os objetos), a especificar-se como objeto entre objetos no espaço, o

interesse dos psicanalistas infantis está voltando, em primeiro lugar, à questão de como um recém-nascido, partindo de uma total indiferenciação,

constrói progressivamente, através das trocas que realiza

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com o ambiente - compreendido não somente em sentido físico, mas também e sobretudo social - o sentido da sua própria identidade pessoal.

Este percurso é descrito por Winicott (1971) como a passagem de um estado de fusão total com o ambiente (a mãe) àquele onde a criança

começa a ter consciência da própria individualidade (uma pessoa entre tantas pessoas, uma pessoa diferente de todas as outras); de um estado de

não-integração primária, na qual aquele que posteriormente se tornará um

Eu é um conjunto de sensações fragmentárias e desconexas, a um estado de integração caracterizado pela percepção de possuir um "dentro" e um

"fora"; de um estado de não-personalização a um estado de personalização, caracterizado pela conquista da unidade psicossomática de um estado de

dependência absoluta a uma situação de independência. Esse percurso, se bem realizado, leva à construção do Eu que confere ao indivíduo o sentido

de ser real. É no jogo recíproco entre mãe e criança que, de forma totalmente paradoxal, a criança encontra o Eu através da descoberta do

outro (a mãe), experimentando a frustração conseqüente à perda da sensação inicial de fusão.

Tal frustração é compensada por um sentimento de onipotência que dá à criança a impressão de ter ela mesma criado o objeto de que tinha

necessidade. Quando o recém-nascido sente fome, pode vencer essa sensação desagradável imaginando de maneira mágica e onipotente o

objeto que saciará a sua fome: o seio materno.

Se a mãe, em tempo razoável, satisfizer o impulso da criança, ela contribuirá para que se crie na criança a ilusão de ter ela mesma criado o

objeto. "Quando a adaptação da mãe às necessidades da criança é suficientemente boa, ela fornece à criança a ilusão de que exista uma

realidade externa que corresponde à capacidade da criança de criar (ibidem, p.39). Este espaço da ilusão - e o sentimento de onipotência que

provoca na criança - constitui a base da experiência lúdica.

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Paradoxalmente, é justamente essa ilusão inicial que, fornecendo um grande reforço do Eu embrionário infantil, permite suportar mais tarde a

desilusão, isto é, a descoberta da mãe como um ser fora da criança, como não-Eu, como objeto separado. O objeto de transição (um pedaço de lençol,

a franja de um cobertor e, mais adiante, um bichinho de pelúcia, um brinquedo) - e o seu uso por parte da criança - assinala, justamente para a

criança, a passagem de um estado de fusão com a mãe a um estado no

qual, vendo-a como algo separado, pode entrar em relação com ela. O brinquedo de transição é de fato, para a criança, ao mesmo tempo, eu e

não eu; é um objeto possuído, mas que parece gozar de vida própria. O seu valor lúdico é simbólico: substitui algo (a ausência da mãe), está no lugar

da mãe, mas ao mesmo tempo não é a mãe, é um objeto independente dela. Se os cuidados maternos são suficientemente bons e dão segurança à

criança, o objeto de transição pode tornar-se mais importante do que a própria mãe (a criança leva-o sempre consigo, o quer na cama, o procura

ativamente se lhe for subtraído) e contribui, assim, para o nascimento de uma independência afetiva e para o interesse em relação ao mundo

externo. O instaurar-se da relação com o objeto, realizada através da área de jogo

que une a mãe à criança, permite ao pequeno brincar sozinho, seguro de que a pessoa que ama "esteja disponível e continue a sê-lo mesmo quando

é lembrada depois de ter sido esquecida" (Ibidem, p.93).

Outros estudos também de caráter psicanalítico, em particular os de Spitz e de Klein, tiveram o mérito de evidenciar que o impulso epistemofílico

deriva de uma relação mãe/criança exitosa salientando a importância dos cuidados maternos

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e a qualidade da interação adulto/criança nos primeiros meses de vida

[Nota: 1]. O fato de que tais cuidados não fossem somente físicos mas que tivessem qualidades afetivo-emocionais era fortemente evidenciado nos

autores mencionados; muito menos a descrição detalhada dessas habilidades complexas que as mães parecem possuir de maneira

completamente natural. As pesquisas relativas aos "cuidados maternos" são, por outro lado, extremamente interessantes para quem, não como

mãe, mas como educadora, tem relação com crianças pequenas, pois,

demonstrando a possibilidade de estudo e de análise, mostram que são competências sob certos aspectos reproduzíveis, adquiríveis, melhoráveis

também por quem interage com as crianças pequenas em contexto extra familiar.

2. O ADULTO COMO BRINQUEDO

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A criança de poucos meses permanece a maior parte do tempo no berço, quase sempre deitada, o que não lhe permite uma ampla visão do mundo

circunstante. Nessas condições, o que mais desperta interesse na criança, quando se encontra acordada, parece ser o rosto humano pelas suas

características de mobilidade e expressividade que o diversificam e o destacam em relação aos outros objetos do ambiente (cf. Fantz, 1958, 1961,

1966). Assim como a mímica facial, os gestos e os movimentos do adulto

que também atraem a atenção do bebê, em virtude da intencionalidade comunicativa que apresentam. Isso depende do fato de que, quando os

adultos interagem com as crianças, o seu comportamento é fortemente influenciado por aquilo que a criança fez, faz ou irá fazer.

Do ponto de vista da criança, o adulto é um objeto interessante enquanto é capaz de responder de maneira ativa, adaptável e contingente em relação às

ações e às expectativas infantis. Ainda do ponto de vista da criança, incapaz de governar e controlar os eventos do mundo externo, pela sua limitada

possibilidade de movimento e de preensão, o adulto assume o papel de primeiro brinquedo, de primeiro "objeto" que ela pode tentar dominar e

colocar sob seu próprio controle. Do ponto de vista do adulto, a eficácia do seu comportamento em relação à criança está estritamente ligada àqueles

dotes e competências que Schaffer chama de "sensibilidade" e "prontidão" e àquela responsividade, que consiste na capacidade de adaptar de maneira

flexível e sincronizada os próprios gestos e o próprio comportamento ao

comportamento da criança. Se o adulto é o primeiro brinquedo, o único objeto com o qual a criança pode experimentar o seu próprio poder, então as

primeiras brincadeiras são constituídas por situações felizes compartilhadas por adulto e criança.

Em situações favoráveis, ou seja, quando as crianças estão acordadas e mantidas comodamente em posição ereta, estas participam, já desde as

primeiras semanas depois do nascimento, de trocas diádicas caracterizadas pela alternância dos turnos. Quando a mãe fala "frente a frente", nos jogos

com a criança, ela demonstra uma

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notável capacidade de entrar de maneira apropriada na conversação, usando uma linguagem gestual e expressiva, constituída por sorrisos, pelo franzir

das sobrancelhas, vocalizações, borbulhas. Parece que o comportamento

espontâneo das crianças seja temporariamente organizado por mecanismos endógenos caracterizados por uma seqüência on – off (por exemplo: sorriso-

pausa; vocalização-pausa) e que a mãe se adapte a este ritmo natural intervindo na interação durante as pausas. Constituem-se o que Schaffer

chama pseudodiálogos que, mesmo não sendo verdadeiras conversações - devido à falta de uniformidade na capacidade dos dois parceiros-,

caracterizam-se pelo perfeito sincronismo dos dois participantes (Schaffer,

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1971, 1977 a). Dois parecem ser os aspectos peculiares destas trocas entre mãe e criança:

- aquilo que inicialmente para a criança possui somente significado expressivo (sorriso, mímica facial, vocalização) pelo fato de ser interpretado

pela mãe como sendo carregado de valores comunicativos, torna-se precocemente meio efetivo de comunicação (Spitz, 1958);

- a partir do momento em que a criança é envolvida cotidianamente em

seqüências rituais análogas, ela se torna sempre mais capaz de assumir um papel ativo na troca e de produzir ações apropriadas, para manter a

seqüência de atividade recíproca. O valor lúdico desses rituais (conversações frente a frente, gestos e

palavras trocados nos momentos da higiene, da refeição, do banho, antes de dormir) consiste no alto grau de previsibilidade para a criança, que os torna

tranqüilizadores, juntamente com a sensação de poder assumir neles um papel ativo, de guia e controle do comportamento materno. Segundo Newson

(1974), através desses jogos de reciprocidade constrói-se, entre adulto e criança, um sistema de expectativas recíprocas e um patrimônio de

significados compartilhados. Salientam, sobretudo, a qualidade e a coerência dos cuidados prestados à criança e a importância dos hábitos, ao comunicar-

se com uma determinada criança, o que torna única e irrepetível a história social.

Como observamos anteriormente, o aspecto mais relevante da capacidade

interativa materna parece depender da sua tendência em atribuir significado e intencionalidade à expressão infantil. Esse precoce "efeito pigmalião", que

de fato desenvolve a capacidade comunicativa da criança, a torna também capaz de previsão, lhe induz expectativas, a torna capaz de reconhecer uma

cadeia de ações como evento, caracterizado por um início, um meio e um fim. O jogo, nesse período, configura-se como organização ritual de troca

que se desenvolve em uma situação previsível com um final "dramático". Jogos típicos entre adulto e criança são os que terminam com um tombo

fingido, com as cócegas, com um súbito aumento do tom de voz. São happening, como os chamam os Newson (1979), isto é, breves seqüências

de ações, detectadas pela criança como unidade coerente que possui um êxito satisfatório. O êxito "dramático", a "cuminância" do happening, se

torna excitante e chama a atenção da criança; a sua previsibilidade (o fato de que a seqüência de ações é compartilhada e conhecida) torna o êxito final

tranqüilizador.

A produção de esquemas de referência, de expectativas e regras compartilhadas que caracterizam esses primeiros jogos evidenciam

sobretudo a sua qualidade social. Estes assumem particular relevância em relação à origem do interesse da criança para o mundo dos objetos. Algumas

pesquisas (Collis & Schaffer, 1975) mostram que durante o primeiro ano de vida as mães tendem a controlar e a acompanhar o interesse da criança para

com o mundo circunstante, sincronizando os próprios olhares com os

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da criança e estruturando sua experiência através da seleção, assinalada

pela ênfase gestual e vocal daqueles aspectos do ambiente ou daquelas ações infantis que o adulto considera relevantes. Esse papel de mediação do

adulto em relação ao mundo circunstante é assinalado pelos Newson

naqueles jogos interativos que tomam a forma de triálogos. A mãe amplia o próprio diálogo com a criança até incluir o brinquedinho, alternando de

maneira rítmica a voz, o gesto (por exemplo, balançar um chocalho) e a intervenção da criança (por exemplo, vocalização, olhar) de maneira a

deslocar a atenção da criança do próprio rosto ou das próprias mãos ao objeto. Através dessa função mediadora do adulto, o diálogo mãe-criança

transforma-se em conversação a três, na qual o brinquedo é dotado daquele mesmo caráter de "prontidão de resposta" que caracteriza o parceiro

humano. A partir desses jogos "a três", a mãe tende a sair progressivamente, logo que a criança demonstra ser capaz de apreciar e

utilizar o brinquedinho sem a sua ajuda (J. e E. Newson, 1979).

3. O CORPO COMO BRINQUEDO: DA BOCA PARA A MÃO

“Em princípio o jogo é para a criança uma atividade que produz prazer

erótico e envolve a boca, os dedos, a visão e toda a superfície do corpo. Esse jogo desenvolve-se sobre o próprio corpo da criança (jogo auto-erótico) ou

sobre o da mãe (normalmente em relação à alimentação) sem uma clara distinção entre os dois corpos e sem nenhuma ordem ou preferência, sob

este aspecto” (A. Freud, 1965). O brincar com o próprio corpo, de acordo com a interpretação analítica, constitui a fase inicial da atividade lúdica, em

particular a sucção a vácuo, e é reforçada por todas aquelas situações prazerosas dos rituais cotidianos (a troca de fraldas, a nutrição, o banho) nas

quais a criança é acariciada, tocada, manipulada. Até mesmo as observações de Piaget (1936, 1937) convergem ao considerar esses tipos de atividades

lúdicas como primárias. A reação circular primária (repetição de uma nova adaptação casual), durante o segundo estágio da inteligência sensório-

motora, prolonga-se em jogos que envolvem a língua (brincar com a língua e sugá-la) e a coordenação da mão e da sucção (sugar a mão e os dedos,

sucção antecipatória). O exercício do reflexo da sucção generaliza-se através

da repetição funcional lúdica, nas situações mais variadas e novas: o mundo é algo a ser sugado. Novas combinações corporais, junto ao esquema da

sucção, são experimentadas pela criança e inseridas em esquemas lúdicos. Ao juntar as mãos, a criança sente uma nova sensação tátil somada a uma

inédita visão das duas mãos no interior do campo visivo. O exercício funcional dos movimentos das mãos e dos dedos produz novas e

significativas coordenações, entre as quais a da visão e da preensão que

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consente à criança segurar um objeto e explorá-lo através da visão (primeiramente, só se a mão e o objeto estão contemporaneamente

presentes no campo visivo, depois somente na presença do objeto). Logo que a criança for capaz de sentar de maneira apropriada (isto envolve

uma considerável ampliação do raio da visão), embora o prazer da sucção permaneça por muito tempo preponderante, e cada objeto, logo que

segurado, é levado para a boca, ela é induzida progressivamente a prestar

atenção às suas próprias mãos e a observar as diferentes perspectivas que os objetos assumem quando segurados e vistos por ângulos diferentes. A

mudança de interesse da boca para a mão, que permite um melhor domínio da realidade exterior, marca a passagem da fase na qual o interesse da

criança refere-se prevalentemente às pessoas e aos objetos, somente enquanto utilizados no diálogo entre mãe e filho, à fase na qual a criança

começa a prestar

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atenção a tudo aquilo que está ao alcance de suas mãos, a tudo aquilo que é possível fazer com as mãos.

4. A DESCOBERTA DO OBJETO

É a partir do terceiro estágio (4-8 meses) que a criança começa a demonstrar atenção em relação aos objetos e ao que se pode fazer com eles.

O jogo, como a reação circular secundária, estende-se do próprio corpo aos objetos alcançáveis (a criança procura repetir uma ação realizada

casualmente como: bater, golpear, balançar). É uma experiência habitual, para crianças um pouco maiores, ver a transformação da situação da

refeição em uma ocasião de experimentação desenfreada e incontrolável, do ponto de vista do adulto. A criança, se lhe for permitido, esmiuça o alimento

em pedacinhos, mistura os vários ingredientes, esmaga e faz papa com a palma das mãos e com os dedos, derrama a água contida no copo e observa

com atenção as misturas realizadas. Contemporaneamente, os talheres são apanhados, lançados, e batidos repetidamente. Se o adulto permitir,

instauram-se aqueles típicos jogos sociais do "dar e pegar", "lançar e fazer com que juntem", que a criança seria capaz de repetir infinitamente. O jogo

da curiosidade torna-se prevalente: há uma incessante experimentação das

propriedades dos materiais, dos objetos e das ações apropriadas [Nota: 2]. Por esse motivo, a criança parece estar, para um observador menos atento,

em uma fase mais destrutiva que construtiva: esforçando-se para penetrar nos mistérios das coisas, os objetos são sacudidos, dobrados, furados,

rasgados. Até os 8-12 meses os objetos ainda não são percebidos como permanentemente estáveis, mas em estreita relação com o exercício dos

esquemas de ação.[Nota: 3] A descoberta da permanência do objeto e a do

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uso do objeto como instrumento são aquisições que caminham no mesmo ritmo, juntamente com uma outra série de jogos que são centrais para a

criança aproximadamente no final do primeiro ano de idade: os jogos do tipo "esconder e achar", que consistem em fazer desaparecer e aparecer objetos.

Fazem também parte dessa categoria as atividades do "colocar dentro" e do "tirar para fora" e os jogos sociais como o do esconde-esconde, que Bruner

descreve como um dos mais difundidos entre adulto e criança (Bruner &

Sherwood, 1976). As observações de cunho psicanalítico também concordam com as que se referem ao desenvolvimento cognitivo, ao confirmar o

centralismo dessas situações lúdicas, colocando em evidência o significado emocional-afetivo. Conhece-se muito bem a descrição realizada por Freud

(1920) da brincadeira de uma criança de 18 meses que ele observou pessoalmente. O jogo do pequeno Ernst, que os adultos da família

consideravam uma criança remissa e

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obediente até mesmo nos momentos em que a mãe não estava presente, consistia em jogar longe todos os objetos que encontrava pela frente,

divertindo-se em pedir aos familiares que os pegassem. Uma variante mais complexa do jogo era a de utilizar um carretel preso a um barbante e lançá-

lo alternadamente para fora do alcance da sua visão pronunciando a palavra

"fort" (longe, embora), para depois trazê-lo novamente para perto de si, exclamando: "da" (êi-lo!). Uma terceira variação do jogo consistia em fazer

aparecer e desaparecer a sua própria imagem diante do espelho. Freud interpreta o jogo como uma dramática representação simbólica da perda da

mãe e do seu reaparecimento, o que permite transformar de uma situação desagradável enfrentada em outra que a própria criança domina e controla.

Erikson (1950), retomando a interpretação de Freud, coloca em evidência o dispositivo através do qual a criança, no jogo, exercita tal controle. Quando

lança os objetos para longe de si, o pequeno Ernst identifica-se com a mãe frustrante (identificação com o agressor) e, contemporaneamente, dá a ela

um significado para a sua agressividade ("jogo-te fora, porque tu me abandonas"). Esta introjeção do objeto conduz ao controle da imagem

materna ("se tu fores embora, voltarás, como volta o carretel quando o faço desaparecer, ou como volta a minha imagem no espelho, depois que me

diverti fazendo-a desaparecer").

A brincadeira do "esconder e achar", nos seus aspectos cognitivos e afetivos, mostra a evolução do relacionamento com o objeto, o realizado

reconhecimento do não-eu, que é ao mesmo tempo realidade física, objetivamente percebida, e realidade emocional; evidencia, além disso, como

a descoberta do mundo dos objetos e qualquer forma de conhecimento aconteça em função da qualidade do relacionamento que a criança

estabelece com as figuras adultas das quais depende, e salienta a estreita

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ligação entre a inteligência e a afetividade. Mostra enfim que atividades infantis aparentemente situáveis em uma relação solitária entre criança e

objetos são dotadas de qualidades sociais e de valores comunicativos.

5. DA APROPRIADA À IMPRÓPRIA UTILIZAÇÃO DOS OBJETOS: O FAZ-DE-CONTA

Garvey (1977, p. 56) diz: "as crianças pequenas estão sempre procurando descobrir o que as coisas são, como funcionam e o que se pode fazer com

elas... A criança, diante de um objeto não familiar, tende a estabelecer uma cadeia que, passando da exploração à familiarização, chega à compreensão;

uma seqüência muitas vezes repetida que leva a uma visão mais madura das características (forma, estrutura, dimensão) do mundo físico". Existe,

portanto, uma evolução progressiva que pode ser esquematicamente resumida da seguinte maneira:

- aproximadamente aos 9 meses, a criança segura o objeto mais próximo, o leva para a boca, o inspeciona e o movimenta utilizando somente poucos

modelos de ação; - em torno dos 12 meses a exploração precede qualquer outro tipo de ação;

o objeto não possui ainda uma permanência própria, mas existe em função das ações que a criança realiza sobre ele;

- em torno dos 15 meses aparecem classificações significativas dos objetos:

a criança junta objetos que correspondem a atividades similares da vida cotidiana. Os objetos começam a ser usados de acordo com os seus

significados afetivos ou convencionais (o uso da escova para pentear-se, o uso da colher para comer, etc.);

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- entre os 15 e os 21 meses, há uma transformação: a criança realiza ações

sobre objetos imaginários ou então dá um significado incomum a um objeto conhecido. São as primeiras formas do jogo simbólico, a ação do "fazer – de

- conta", o uso não-literal dos objetos.

A passagem do uso convencional para o não-convencional situa-se no final do período sensório-motor, durante o qual a criança pode adquirir um

conhecimento suficiente dos objetos usuais, para integrá-los às atividades

quotidianas. É a partir desse conhecimento que os esquemas de ação são transformados em atos significativos. Alguns dos pesquisadores do Cresas

(Lézine et al., 1982) observam que as primeiras formas do jogo simbólico são caracterizadas por ações realizadas sobre os brinquedos (bonecas,

ursinhos), que assumem o papel de co – atores (ou atores coadjuvantes) nas brincadeiras (por exemplo, a criança dá de comer para a boneca ou a

penteia). Seguem-se imitações de situações mais complexas que envolvem

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ou mais ações em seqüência (por exemplo, amamentar a boneca, limpar a sua boca, levá-la para dormir) ou mais brinquedos (por exemplo, a criança

dá comida para o urso, depois para a boneca e, enfim para um bichinho de pelúcia). Uma etapa posterior é constituída pela atribuição de

comportamentos ativos aos brinquedos, aos quais são entregues pratos e colheres para que comam ou são colocados em frente ao espelho, ao

penteá-los. Mais tarde observa-se a representação por meio de substitutos

simbólicos ou de objetos imaginários (por exemplo, pedacinhos de papel no prato da boneca representam a comida, ou a criança imita a ação de

recolher alguma coisa do chão para oferecer ao seu urso). Somente pelos dois anos e meio de idade é que o jogo simbólico torna-se mais elaborado e

a criança é capaz de construir cenários imaginários no qual dramatiza seqüências de ação sempre mais longas.

Na perspectiva piagetina (Piaget, 1945), o jogo simbólico mostra o início da função representativa que permite evocar e antecipar a realidade. Ela

torna possível imaginar seqüências de ações e avaliar sua concatenação e seus efeitos, antes de executa-las de fato. A criança pode então pensar no

objeto mesmo quando este não está presente fisicamente e pode evocá-lo através de um símbolo, que por analogia remete objeto representado. A

interiorização de esquemas de ação adquiridos e sua representação mental revelam-se também na "imitação diferenciada", ou seja, na capacidade de

reproduzir um modelo não imediatamente presente. Nas formas simbólicas

da atividade lúdica, resulta portanto difícil isolar os componentes imitativos do jogo dos componentes propriamente lúdicos, caracterizados, segundo

Piaget, pela assimilação dos objetos às exigências do Eu infantil. Não só isso, no jogo simbólico, coisas e significados aparecem, paradoxalmente,

distintos e indistintos. Por isso Vygotsky (1966) observa a natureza transicional do jogo, imediatamente entre as constrições puramente

situacionais da primeira infância e o pensamento, completamente desvinculado das situações reais. No jogo, as coisas, de uma posição de

predomínio, assumem uma posição subordinada. Na estrutura significado/ objeto criada no jogo é o significado, ou seja, é a idéia que domina e

determina o comportamento da criança. O jogo do faz – de – conta, até mesmo nas suas formas embrionárias,

possui idades emocionais e afetivas que foram salientadas principalmente pela literatura psicanalítica. Observa-se que a criança não reproduz

somente variações deformando a experiência real em função dos seus

próprios desejos ou para

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acalmar suas próprias angústias. Os dois mecanismos da projeção e da identificação [Nota: 4], mediante os quais se estabelecem relações dinâmicas

entre o Eu da criança e a realidade, produzem justamente aquelas variações

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e aquelas mesmas que levam a definir o pensamento infantil como mágico e animista. As interpretações simbólicas, no sentido forte do jogo infantil,

mostram como a criança, em torno dos dois anos de idade, não esteja somente empenhada no conhecimento e na descoberta do mundo dos

objetos, mas procure controlar e elaborar, através dos meios de que dispõe, o seu mundo interior, constituído de sentimentos, afetos e medos que ainda

não é capaz de reconhecer e identificar. Desse ponto de vista, o jogo do faz-

de-conta é uma maneira de exercitar e testar o próprio Eu, seja atribuindo algumas de suas partes a outros (brinquedos, colegas), seja imaginando ser

um outro, experimentando, assim, diversas possibilidades de ser.

6. A QUALIDADE DO JOGO

Nas páginas anteriores, traçamos uma progressão evolutiva na qual a partir de situações de jogo entre adulto e criança, passando através da

exploração e da descoberta do objeto, alcança-se o início do jogo do "faz-de-conta" e a conquista de um comportamento "não literal" em relação à

realidade exterior. Dessa progressão, na qual somente alguns aspectos do comportamento lúdico foram examinados – os jogos com a linguagem e as

relações entre coetâneos no jogo são amplamente tratados em outros ensaios desta parte da antologia (cf. Albanese & Antoniotti; Musatti, neste

volume) -, é de qualquer forma possível evidenciar algumas características

do jogo infantil, para tornar mais claro o seu aproveitamento no sentido educacional:

- o jogo é uma atividade automotivada (que pode ser compartilhada, mas

não imposta) na qual as ações são tão mais produtivas quanto mais desvinculadas de tarefas específicas (prevalece o interesse pelo "processo"

sobre o interesse pelo "produto"), que acontece em um tempo definido pela liberdade das pressões funcionais (depois que as necessidades primárias

foram satisfeitas). É então essa possibilidade de livre experimentação em situação protegida que distingue o jogo do não-jogo;

- desde o início, o jogo possui uma qualidade social de alegre troca entre adulto e criança na qual, através de adaptações recíprocas, descobrem-se

significados compartilhados. Essa qualidade social se mantém também mais adiante, seja quando a criança amplia a sua atenção ao mundo dos objetos

(exploração do ambiente, a partir daquela "base segura" constituída pela

figura adulta interiorizada), seja quando começa a compartilhar a sua própria brincadeira com outras crianças;

- aspectos cognitivos e afetivos estão estritamente entrelaçados no jogo, apesar de as pesquisas a esse propósito terem privilegiado ora um aspecto,

ora o outro. Isso significa que o exercício da inteligência, a descoberta das propriedades dos objetos, a aquisição das primeiras e embrionárias formas

lógicas são favorecidos se o jogo acontece em um clima de tranqüilidade,

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que permite à criança tentar, e experimentar,

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proceder através de tentativas e de erros, sem medo de "errar" ou de ser punida em conseqüência de suas ações. Significa que, também no jogo, não

é somente a criança que tenta acomodar-se à realidade, colhendo as

propriedades e as características, mas que, ao fazer isso, reveste o mundo externo com algo de si, a fim de torná-lo mais familiar e compreensível: a

conquista da realidade e a descoberta de si são processos que se entrelaçam;

- o jogo é um fenômeno que, mesmo manifestando-se precocemente e naturalmente, sofre notáveis variações (de duração, intensidade, articulação)

não somente em função da idade, mas também do contexto no qual se realiza. A presença ou não do adulto, a presença ou não de outras crianças,

a idade do grupo de jogo, o grau de familiaridade com os colegas, a presença ou não de materiais e de suas características são todos aspectos

que influenciam e orientam a qualidade do jogo.

Falar em qualidade do jogo não significa exclusivamente enunciar as características peculiares que o diferenciam de outros "espaços" da

experiência infantil, mas significa descrever potencialidades educacionais que

ele pode oferecer nos diferentes contextos onde se realiza (a casa, a rua, o quintal, as instituições para a infância, a escola). Em cada um desses

territórios, o terreno de jogo não só se especifica em função dos espaços limítrofes que o delimitam (os lugares dos adultos, do trabalho, do ritual, da

instituição, só para citar alguns exemplos) e o conotam diversamente como transgressão, recreação, passatempo, mas se qualifica também, em relação

à intencionalidade educacional a ele atribuída: inferior, tratando-se de pedagogia espontânea; mais pronunciada quando as finalidades são

declaradas e sistematicamente perseguidas.

7. O JOGO NA CRECHE

Muito se falou e foi feito em relação à estruturação física da creche como ambiente de jogo. A preparação de ângulos dotados de material adaptado

(brinquedos e material não-estruturado) para o jogo da família, do mercado,

da manipulação, dos disfarces, o equipamento dos espaços mais amplos, com estruturas para o jogo motor, a decoração dos locais com materiais e

brinquedos típicos, tais como os tapetes, o espelho, o triciclo, os fantoches, as bonecas, a caixa de areia ao ar livre, já são elementos do ambiente

adquiridos pela maior parte das creches, contribuindo a torná-las lugares agradáveis, coloridos, atraentes para os pequenos que ali passam o dia. O

jogo na creche, deste ponto de vista, se enriquece com muitos elementos em

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relação àquilo que uma criança da mesma idade pode realizar em casa, onde o ambiente restrito e monopolizado pelos adultos juntamente com as

proibições dos pais, referentes ao desenvolvimento de atividades desordenadas ou de atividades que sujam, limita muito as possibilidades

motoras e de livre exploração por parte das crianças. Na creche, a criança tem a possibilidade de brincar com materiais e brinquedos de diferentes

dimensões muito maiores do que aqueles que os espaços domésticos

permitem, enriquecendo assim a sua habilidade motora e as suas experiências com materiais e objetos diversos. Além disso, como já foi

muitas vezes observado, a creche oferece a possibilidade de interagir com os coetâneos e isso também pode constituir um enriquecimento em relação às

situações domésticas onde, no melhor dos casos, a criança pode ter a ocasião de brincar com um irmão um pouco maior. Enfim, na creche um set

(uma equipe) de adultos está ao completo dispor das crianças, não somente

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para garantir a sua segurança e os cuidados necessários, mas também para organizar e preparar as ocasiões lúdicas.

Todos esses elementos, que fazem da creche um espaço de jogo potencialmente rico e estimulante, não parecem ser suficientes, por si sós,

para garantir que uma criança de zero a três anos seja capaz de desfrutá-lo

positivamente. Em primeiro lugar, para a inibição ou diminuição das atitudes lúdicas

podem contribuir seja a falta de elaboração da angústia pela separação da figura materna devido à percepção de um clima não suficientemente

tranqüilizador, seja a introdução no grupo de jogo sem mediações, o que pode assumir conotações "traumáticas" e pode favorecer formas demasiado

prolongadas de jogo solitário. Além disto, o interesse pelas atividades pode ser desestimulado por sua monotonia e pelo uso habitual de materiais e

objetos: quando o jogo se torna repetitivo e estereotipado podem surgir momentos até prolongados de tédio com as típicas manifestações de

comportamentos autísticos, freqüentemente observáveis (sugar o polegar, auto manipular-se). Enfim, até mesmo a passagem demasiado brusca de

atividades reguladas e estruturadas para situações lúdicas pode contribuir para transformar estas últimas ocasiões de desabafo incontrolável e, às

vezes, destrutivo.

A direção do jogo infantil é pois urna competência muito complexa e articulada que certamente deveria ser mais estudada. A única pesquisa sobre

o assunto (Callari Galli, 1982, 1983), relativa à situação italiana, denuncia sobretudo a rigidez e a dificuldade das educadoras em interagir de modo

"lúdico" com as crianças e em programar ocasiões de jogo variadas e motivadoras. As observações feitas não são generalizáveis, visto que

consideram somente algumas creches, em uma particular situação territorial.

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Trata-se, porém, de uma interação entre o adulto e a criança e da organização do setting (conjunto) educacional que aparecem de forma

bastante difundida. Nas creches observadas, salienta-se em particular a predominância de

ocasiões lúdicas conduzidas por regras convencionais, ditadas pelo adulto, e pela quase total ausência de jogos de livre movimentação e de fantasia. A

esse desequilíbrio correspondem a utilização quase exclusiva de brinquedos

estruturados, que objetivam a aquisição de habilidades cognitivas específicas, e a escassa presença de materiais para jogos "sensoriais e

afetivos". Essa escolha está enfim relacionada a um típico comportamento do adulto que intervém no jogo exclusivamente para guiar e controlar o uso que

as crianças fazem dos objetos (distribuição das tarefas e explicações do funcionamento correto dos materiais), sem participar nem da criação nem do

desenvolvimento da atividade lúdica. Dessas observações surge a hipótese de que a focalização do material de

jogo, unida à distância emocional assumida pelo adulto, que funciona exclusivamente como garantia da ordem e da correção, seja funcional para

um processo de socialização entendido como interiorização de normas propedêuticas de comportamento para a assunção de papéis pré-constituídos

e, contemporaneamente, incida negativamente sobre o desenvolvimento dos processos da comunicação.

Essas observações são confirmadas, indiretamente, por outros estudos que

objetivam a descrição das representações sociais das educadoras (imagens das finalidades da creche) e a identificação de tipologias de estilos

educacionais (Becchi & Bondioli, 1983; Emiliani & Molinari, 1985). À imagem da creche como "primeira escola" corresponde um comportamento de

aproveitamento sistemático de ocasiões de aprendizagem que se configuram mais corno atividades guiadas e reguladas pelo adulto do que como

verdadeiras situações lúdicas. Por outro lado, a imagem de creche assistencial, voltada a compensar eventuais carências afetivas,

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não desenvolve uma pedagogia do jogo mais coerente, pois o adulto, mesmo

dando mais espaço ao jogo livre, não intervém nele com propostas e estímulos adequados.

As dificuldades encontradas ao produzir uma adequada direção do jogo

infantil na creche parecem, então, fortemente ligadas a "ideologias educacionais" enraizadas e muito pouco submetidas a discussão e

verificação. A primeira dessas "ideologias" considera o jogo como um espaço no qual a criança pode exercitar habilidades cognitivas, sempre mais

complexas, de modo totalmente livre e espontâneo. Isso implica para o adulto assumir a tarefa de organizar o espaço com materiais apropriados,

sendo porém moderado na intervenção da seqüência lúdica, devido ao temor

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de introduzir nela elementos estranhos, de sobrepor de forma demasiado direcionada as próprias idéias às idéias das crianças, de destruir a

criatividade infantil. A adesão a teorias psicanalíticas (em suas versões simplificadas e de divulgação) conduz às mesmas conclusões que vêem no

jogo, sobretudo no jogo de faz-de-conta, uma ocasião catártica de elaboração de angústias, uma forma de autoterapia que a intervenção do

adulto acabaria por inibir ou bloquear. Até mesmo a convicção da

precocidade das trocas sociais entre crianças, levando a superestimar o papel dos colegas, acaba considerando o jogo como um espaço

exclusivamente infantil, do qual o adulto se auto – exclui por focalizar a sua própria intervenção em situações mais regradas, como as conversações, as

atividades guiadas, os momentos de rotina. Junto a essa ideologia do laissez faire (deixar fazer) encontramos

concepções educacionais muito mais direcionadas que vêem no jogo uma ocasião que não deve ser desperdiçada para objetivos de aprendizagem, e

que deve portanto ser regulada e guiada pelo adulto, para não tornar-se ineficiente e dispersiva. O adulto aproveita sistematicamente o terreno de

jogo transformando as atividades em situações didáticas (ensinamento de noções e regras de comportamento). Esta segunda estratégia é sustentada

pela convicção de que a criança da creche seja essencialmente egocêntrica, tanto do ponto de vista cognitivo quanto social, e que o adulto pode ajudar

na superação dessa fase, colocando-se como porta-voz da realidade (em

relação ao animismo da criança) e das convenções sociais (em relação à incapacidade infantil de colocar-se no lugar do outro, do ponto de vista do

outro). Se nos detivemos sobre esses modelos "negativos" de direção do jogo

infantil, propositalmente esquematizados e oferecidos por contraposição, foi para ressaltar outras possíveis formas de intervenção do adulto no jogo que

parecem eficazes para finalidades educativas e mais alinhadas com as qualidades que caracterizam a experiência lúdica. Com base nas pesquisas

disponíveis, que não são muito numerosas, tentaremos mostrar que uma adequada direção do jogo infantil passa pelo conjunto das mediações que o

adulto pode oferecer a cada criança, referentes às suas necessidades e àquilo que ela já sabe fazer, em relação ao mundo dos objetos e às outras

crianças. Ela é, pois, determinada pela qualidade das estratégias e dos dispositivos colocados em prática pelo adulto, a fim de facilitar e enriquecer,

no sentido social e/ou cognitivo, a experiência lúdica de cada criança. São

muitos os "registros" a serem ativados, e a habilidade da educadora consiste justamente em lidar com esses diferentes registros em função da idade, das

competências da criança e das intenções a que se propõe. Apresentaremos portanto algumas dessas modalidades, levando em consideração as

pesquisas disponíveis, conscientes de que se trata de uma hipótese de trabalho que deveria ser aprofundada e verificada.

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7.1. O comportamento não – direcionado com os bebês

Como interagir de forma lúdica com os bebês que parecem sobretudo necessitados de cuidados físicos, incapazes e inconsistentes na atenção,

indecifráveis nas suas manifestações expressivas? A literatura relativa ao

mothering nos oferece uma série de exemplos retirados da observação da díade mãe-criança que evidenciam como o instaurar-se das primeiras formas

de comunicação entre adulto e criança depende de uma série de competências que podem ser adquiridas e melhoradas, as quais podem

resumir-se em:

- capacidade de responder aos primeiros sinais infantis (choro, vocalizações, mímicas faciais) e de atribuir a estes um significado, inserindo-os no diálogo

a dois; - atenção aos retrocessos da criança durante a interação que conduz a

variações do próprio comportamento, de modo a torná-lo contingente e complementar em relação ao comportamento da criança;

- disponibilidade na criação de situações de prazer nas quais as crianças possam exercitar formas de controle e incentivar aquilo que Schaeffer (1977

a) chama de "motivação ao efeito";

- habilidade ao dirigir a atenção da criança sobre elementos do mundo externo, reforçando os primeiros comportamentos de tipo exploratório;

- coerência ao introduzir ritmos e regularidade nas atividades compartilhadas, para torná-las compreensíveis e previsíveis para a criança, e

permitir-lhe a sua participação ativa.

Todas essas habilidades que, como já vimos nos primeiros parágrafos, se manifestam nos primeiros jogos "cara a cara" entre a criança e o adulto

disponível podem ser consideradas aspectos de um comportamento não-direcionado, que não pretende ensinar alguma coisa à criança, mas exprime

atenção por todas as manifestações do comportamento infantil e tende a confirmá-las, recuperando-as, estendendo-as, dando-lhes assim significado e

organização. Esse comportamento parece ser eficaz não somente na condução e na

orientação da comunicação entre o adulto e o bebê, mas também na

facilitação das suas primeiras manipulações e explorações (Mantovani, 1982a). Neste caso, as dificuldades são maiores, visto que, para uma criança

entre os 12 e 14 meses, o adulto é o pólo privilegiado da atenção. Trata-se, então, de mudar o foco de interesse do pequenino em direção à exploração e

à manipulação dos objetos. A pesquisa citada anteriormente salienta a eficácia de um estilo interativo que alterna momentos de confirmação

"passiva" (intervenção do adulto apta a permitir as ações da criança,

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retirando obstáculos ou oferecendo objetos distantes) com momentos de confirmação "ativa", quando a criança mostra claramente que deseja a

atenção e a aprovação do adulto.

7.2. A observação participativa

Depois dos 15 meses, as crianças não só voltam em maior grau a própria

atenção ao mundo dos objetos que os empenham em manipulações cada vez mais refinadas, mas são capazes de interagir positivamente em um pequeno

grupo de coetâneos conhecidos. Algumas pesquisas (Musatti, 1984) relativas às precoces interações sociais mostram como os pequeninos de 12 a 18

meses, em situações de exploração, com pequenos ou

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grandes objetos, sejam capazes de criar-se problemas e de resolvê-los em conjunto, utilizando duas estratégias de interação: a imitação organizadora,

que consiste no aproveitamento de alguma parte da atividade de um outro, enriquecendo assim o seu próprio jogo com novas idéias, e a assunção de

um papel complementar, ou seja, a adaptação intencional das próprias ações ao projeto de jogo do colega.

Nesses casos, o adulto que observa atentamente o andamento da

atividade das crianças sem intervir diretamente, manifestando atenção e interesse pelas realizações das crianças, respondendo aos seus pedidos

através da mímica do rosto e com uma atitude de disponibilidade que não impede a sua aproximação, parece agir como uma presença

tranqüilizadora. Observou-se como essa presença tranqüilizadora da educadora favoreça os comportamentos de autonomia e de exploração no

jogo (Stambak et al., 1983). Além disso, evidenciou-se que as crianças são capazes de regular o envolvimento do adulto de forma diferente

dependendo das situações, formulando pedidos de autorização e de aprovação em situações insólitas ou associadas a precedentes proibições

(jogos com água, pintura), de auxílio e informação, quando não são capazes de resolverem por conta própria uma tarefa, e de atenção quando,

durante a atividade de manipulação e construção, mostram ou oferecem ao adulto as próprias realizações (Bonica, 1983). Essas pesquisas,

realizadas nas creches, confirmam e estendem os resultados de outros

estudos (Ainsworth & Bell 1970) que enfrentaram a relação entre apego e exploração, na díade mãe - criança, e mostram como até mesmo uma

figura de referência diferente da figura materna pode fornecer aquela "base segura" que permite comportamentos de exploração, de descoberta

e de curiosidade em relação aos objetos e às novas situações. Uma variação dessa modalidade não direcionada de relacionamento entre

adulto e grupo de crianças pode ser definida como jogo paralelo. O adulto

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utiliza o mesmo material da criança sem entrar diretamente no jogo. O adulto, neste segundo caso, além de garantir uma presença

tranqüilizadora, necessária para motivar comportamentos lúdicos, pode cumprir uma função desinibidora em relação àquelas crianças que

demonstram dificuldade ou medo ao enfrentar materiais pouco conhecidos e situações inéditas.

7.3. Dentro do jogo: o adulto como co-ator

Um dos pontos mais assimilados pela pedagogia da creche é que a intervenção do adulto deva ser a mais "interna" possível à experiência

infantil, deva evitar fraturas demasiado profundas entre o adulto e criança, sem por isso perder a função de estímulo e de guia. A capacidade do adulto

de entrar no jogo infantil como um companheiro que deixa a criança livre na escolha dos temas, na distribuição dos papéis, no controle do andamento e,

ao mesmo tempo, participa desenvolvendo um papel ativo de co-ator foi pouco estudada.

Ponzo (1983) sugere que essa capacidade depende da possibilidade que o adulto possui muito mais do que a criança - mas que nem sempre desfruta -

de brincar com o seu próprio papel. Para entrar no jogo "na medida da criança, o adulto é obrigado a abandonar o papel de 'adulto que brinca com a

criança' e fazer de conta que é uma criança da mesma idade daquela com

quem está brincando". Para conseguir isso, é preciso produzir aquela "potencial regressão ao serviço do Eu “da qual Kris (1952) fala referindo-se

à criatividade artística e ao humorismo, que consiste em uma parcial e temporária restauração dos processos ideativos de tipo primário (analogia,

simbolismo,

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mudança, condensação). Instaurar-se-ia, então, entre o adulto que brinca "como se fosse criança" e a própria criança, uma dialética mágica e lógica

que enriqueceria a experiência lúdica de ambos. O jogo, que é regido pela ambigüidade (entre realidade e magia, entre símbolo e coisa representada),

resultaria potencializado pois o adulto saberia, de maneira controlada, introduzir no jogo, sem alterar a qualidade, elementos novos e variados.

Para que isso aconteça é necessário que o adulto preste muita atenção na

progressão evolutiva da criança com quem brinca, que saiba reconhecer não somente as atividades lúdicas imediatamente satisfatórias para a criança,

mas que saiba intuir quando a criança está pronta para um salto de qualidade, intervindo com propostas de jogo inéditas ou mais complexas. A

cada vez, o adulto deveria ser um companheiro dócil, capaz de adaptar-se aos papéis e às situações propostas pela criança, e um aliado capaz de

inventar jogos novos. Em todo caso, as retroações que a criança fornece com

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o seu comportamento trazem para o adulto informações sobre a sua capacidade de estar dentro do jogo sem prevaricar.

A cumplicidade que se cria entre adulto e criança que brincam juntos não possui somente o efeito de oferecer à criança uma gama de possibilidades

lúdicas posteriores, em relação àquela que poderia experimentar sozinha ou com os colegas, mas também permite ao adulto a redescoberta de aspectos

de sua infância esquecida. A redescoberta, a compreensão, o reconciliar-se

com a própria infância talvez seja um dos aspectos do profissionalismo dos educadores mais descuidado, menos estudado que, no controle do jogo,

possui um papel central, pois sem a identificação da realidade infantil torna-se difícil, se não impossível, permitir, facilitar, potencializar também nas

crianças aquele relacionamento satisfatório e criativo com o mundo que é ativado pela dimensão lúdica.

Glossário de Notas

Nota 1 – Página 215. Spitz confirma que a constituição da relação com o objeto, evidenciada pelo segundo organizador que leva ao reconhecimento da mãe como objeto não só fisicamente mas também afetivamente diferente de si, produz na criança um rápido desenvolvimento do interesse pelo circustante, tanto físico, quanto social. Cf. Spitz (1958). Também para Klein, a criança que brinca é a criança que elaborou a separação da mãe cuja realidade é guardada no seu mundo interior. A introjeção do bom objeto interior, reduzindo os atos agressivos e libídicos em relação à mãe, permite que a criança se volte aos objetos do mundo exterior e inicie a sua progressiva exploração e conhecimento. Cf. Klein (1950). Nota 2 – Página 218. De acordo com Bruner (1972), o jogo representa a oportunidade para tentar novas combinações comportamentais que não poderiam ser experimentadas sob pressão funcional. Essa experimentação realiza-se através de um modelo muito próximo à estrutura da predicação, uma das mais universais da linguagem, que implica a distinção entre topic (sujeito) ecomment (predicado). No jogo, a qualidade combinatória manifesta-se de acordo com o duplo esquema que diferencia uma função e os seus argumentos. Ou seja, assim como é possível atribuir a um sujeito um certo número de predicados que lhe convêm, do mesmo modo um objeto pode ser adaptado a um certo número possível de ações e uma ação pode ser realizada sobre um certo número de objetos apropriados.

Nota 3 – Página 218. Segundo Piaget, no primeiro e no segundo estágio da

inteligência sensorial, o desaparecimento do objeto não gera, por parte da criança, nenhum comportamento de busca. Durante o terceiro estágio, o

objeto é reconhecido até mesmo quando somente uma parte do mesmo é visível. A seguir, quarto estágio, o objeto é encontrado, afastando o

obstáculo que o esconde e, enfim, no quinto estágio, a criança é capaz de

remover um número maior de obstáculos a fim de alcançar o objeto. Nota 4 – Página 221. A projeção é um dispositivo através do qual se atribui,

de maneira inconsciente, um desejo ou impulso próprio a alguma outra

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pessoa ou a algum objeto do mundo exterior (por exemplo, o brinquedo). A identificação é o processo pelo qual nos tornamos parecidos com alguma

coisa ou com alguém. A identificação com o agressor, de modo particular, permite que a criança, no jogo da fantasia, atribua a si própria as

características das pessoas que ela considera ameaçadoras, transformando-se de agredido em agressor (cf. A. Freud 1936).

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Educar e cuidar: por onde anda aeduca~ão infantil?

Ana Beatriz Cerism*

RESUMO:Este texto foi elaborado com o intuito de apresentar um pano­rama amplo a respeito da Educação Infantil na conjuntura nacional. Estáestruturado em três momentos: inicialmente situo o contexto em que seencontra a educação infantil, a partir das deliberações legais feitas pelaConstituição de 1988 e da LDB de 1996 e das concepções acerca docaráter que creches e pré-escolas devem assumir como instituiçõeseducativas no atual contexto histórico. Em seguida, aponto os desafiosque, do meu ponto de vista, estão colocados para os educadores daárea e, por último, apresento os avanços e retrocessos alcançados emrelação à produção e ao encaminhamento de propostas de políticaspara a educação infantil no Brasil.

Palavra chave: 1. Creches-Brasil 2. Educação de crianças-Brasil

ABSTRACT: This paper was prepared with the goal of presenting a broadperspective about Preschool Education in the national contexto It hasthree parts: the first presents the context in which preschool education isfound, based on the legal environment established by the Constitution of1988 and the LDB of 1996 and of the concepts conceming what day­care and preschools should assume as educational institutions in thecurrent national contexto The second identifies the challenges that, frommy point of view, are facing educators in the field. Finally the paperpresents the advances and setbacks concerning the production andadvancement of policy proposais for preschool education in Brazil.

Key word: 1.Child care centers - Brazil; 2. Educatión of children-Brazil

Este artigo foi escrito com o intuito de fornecer um panorama maisgeral a respeito da Educação fufantil hoje no Brasil. O texto está estruturadoem três momentos: inicialmente situo a conjuntura em que se encontra aeducação infantil, a partir das deliberações legais feitas pela Constituiçãode 1988 e da LDB de 1996 e das concepções acerca do caráter quecreches e pré-escolas devem assumir como instituições educativas no

* Coordenadora do NEEOA6 e professora doutora do CEDI UFSC

PERSPECTNA. RoriInópolis, 'i. 17, n. Especial, p. 11 - 21, jul./dez. 1999

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atual contexto histórico. Em seguida, aponto os desafios que, do meuponto de vista, estão colocados para os educadores da área e, 'por último,apresento os avanços e retrocessos alcançados a partir da produção e doencaminhamento de propostas de políticas públicas para a educação in­fantil no Brasil.

l-Começo de conversa:

Entendo que a especificidade do atual momento histórico está aexigir um esforço coletivo de todos aqueles que estão direta ou indireta­mente envolvidos com a educação infantil em especial e com educaçãopública em geral, no sentido de tentar compreender a atual conjunturapara que possamos nos instrumentalizar para enfrentar os desafios e dile­mas que já estão colocados e os que estão por vir.

Um possível começo de conversa pode ser tentar responder a umapergunta: Afinal, por que os educadores afirmam que as instituições deeducação infantil têm por finalidade educar e cuidar de forma indissociávele complementar as crianças pequenas?

A compreensão de que as instituições de educação infantil têm comofunção educar e cuidar de forma indissociável e complementar as crian­ças de Oa 6 anos é relativamente recente. Para que se possa avançar nacompreensão do uso destes dois termos -educar e cuidar - é preciso lem­brar, mesmo que brevemente, a forma como creches e pré-escolas surgi­ram e se consolidaram no Brasil. Durante as últimas décadas, foi possívelconstatar duas formas de caracterização dos diferentes tipos de trabalhosrealizados em creches e em pré-escolas: por um lado, havia as instituiçõesque realizavam um trabalho denominado "assistencialista" e, por outro,as que realizavam um trabalho denominado "educativo".

Nesta "falsa divisão" ficava implícita a idéia de que haveria umaforma de trabalho mais ligada às atividades de assistência à criança pe­quena, as quais era dado um caráter não- educativo, uma vez que traziampara as creches e pré-escolas as práticas sociais do modelo familiar elouhospitalar e, as outras, que trabalhavam numa suposta perspectivaeducativa, em geral trazendo para as creches e pré-escolas o modelo detrabalho escolar das escolas de ensino fundamental.

Vale ressaltar que estou falando no passado, mas não necessaria­mente do passado, uma vez que sabemos o quanto essas concepções de

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trabalho permanecem presentes ainda hoje não só nas concepções detrabalho de muitos educadores, como em muitas propostas de trabalhonas instituições, muitas vezes superadas no discurso, mas visíveis naspráticas desenvolvidas no cotidiano das instituições.

Após um longo período, foi possível a partir de diversas pesquisas2

e estudos reavaliar este quadro e constatar que esta dicotomia era falsa,porque gostando ou não, aceitando ou não, todas as instituições tinhamum caráter educativo: as primeiras, com uma proposta de educacãoassistencial voltada para a educação das crianças pobres e as outras, comuma proposta de educação escolarizante voltada para as crianças menospobres. Simplificando um pouco, poderíamos dizer que tínhamos, de umlado, uma importação do modelo hospitalar/familiar e, de outro, urnaimportação do modelo da escola de ensino fundamental. Nestadicotomização, as atividades ligadas ao corpo, à higiene, alimentação,sono das crianças eram desvalorizadas e diferenciadas das atividades con­sideradas pedagógicas, estas sim entendidas como sérias e merecedorasde atenção e valor.

Só que as creches e pré-escolas não são as casas das crianças, nãosão hospitais e nem devem ser escolas de ensino fundamental, mesmoque atualmente tenham o dever de partilhar com as famílias a responsa­bilidade pela educação das crianças menores de sete anos.

A análise e debate em tomo desses tipos de instituições tomou possívelconstatar que esta dicotornização entre educar e assistir as crianças devia sersuperada e avançar em direção a uma proposta menos discriminadora, queviesse atender às especificidades que o trabalho com crianças de Oa 6 anosexige na atual conjuntura social, sem que houvesse uma hierarquização dotrabalho a ser realizado, seja pela faixa etária (O a 3 anos ou 3 a 6 anos), ouainda pelo tempo de atendimento na instituição (parcial ou integral), sejapelonome dado à instituição (creches ou pré-escolas).

Vale ressaltar que o avanço acerca da necessidade dessas institui­ções de caráter educativo - distinto do espaço escolar, familiar e hospita­lar- não foi natural, mas historicamente construído uma vez que ocorreua partir de vários movimentos em tomo da criança, do adolescente e damulher por parte de diferentes segmentos da sociedade civil organizada ede representantes de órgãos públicos devido às grandes transformaçõessofridas pela sociedade em geral e pela família em especial nos centrosurbanos, com a entrada das mulheres no mercado de trabalho.

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Para que se possa compreender esta concepção de trabalho para asinstituições de educação infantil é necessário recorrer tanto à ConstituiçãoBrasileira de 1988, como à Lei de Diretrizes e Bases n. 9394/96. Estasduas leis tiveram um importante impacto na Educação Infantil e podemcontribuir na compreensão de onde surgiu esta concepção de que às insti­tuições de educação infantil cabe a tarefa de trabalhar de forma indissociávele complementar a educação e o cuidado das crianças pequenas.

A Constituição de 1988 reconheceu como direito da criança pe­quena o acesso à educação em creches e pré-escolas. Esta lei coloca acriança no lugar de sujeito de direitos em vez de tratá-la, como ocorrianas leis anteriores a esta, como objeto de tutela. Mesmo sabendo queentre a proclamação de direitos na forma da lei e a consolidação da mes­ma em práticas sociais adequadas existe um grande hiato, esta lei consti­tui um marco decisivo para o longo caminho a ser percorrido na busca deuma possível definição do caráter que as instituições de educação infantildevem assumir, sem que reproduzam as práticas desenvolvidas no seiodas famílias, nos hospitais ou nas escolas de ensino fundamental.

Esta definição constitucional, no entanto, constitui apenas o primei­ro passo em direção às demais leis que devem dar suporte a esta leimaior. A partir da segunda metade da década de 80 até a década de 90,houve um intenso trabalho que culminou na definição do Estatuto daCriança e do Adolescente, nas discussões a respeito da Lei de Diretrizes eBases, que apesar de ter sido aprovada apenas no ano de 1996, passoupor longas e amplas discussões e debates pelos diferentes segmentos dasociedade, além de uma longa e tumultuada tramitação no Congresso.

Esta nova LDB, também pela primeira vez, colocou a educaçãoinfantil como primeira etapa da educação bàsica, vindo a mesma a cons­tituir um nível de ensino. A defesa da inclusão das instituições de Educa­ção Infantil no capítulo da educação, por parte de pesquisadores, repre­sentantes dos órgãos públicos e de movimentos sociais preocupados coma educação da criança pequena, baseava-se na idéia de que era funda­mental tirar as creches e pré-escolas de seu vínculo com as Secretariasde Assistência Social ou da Saúde e lutar para que fizessem parte dasSecretarias de Educação. Mesmo considerando que em Florianópolis asinstituições de educação infantil sempre tenham estado ligadas à Secreta­ria de Educação, esta não tem sido a situação da maioria das creches epré-escolas dos demais municípios brasileiros.

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Esta compreensão se devia à constatação de que trazer essas insti­tuições para a área da educação seria uma forma de avançar na busca deum trabalho com um caráter educativo-pedagógic03 adequado àsespecificidades das crianças de Oa 6 anos, além de possibilitar que asprofissionais que com elas trabalham venham a ter garantidas uma for­mação tanto inicial quanto em serviço e uma valorização em termos deseleção, contratação, estatuto, piso salarial, beneficios, entre outros.

No entanto, a inclusão das creches e pré-escolas no ensino básicoimplica riscos, porque mesmo havendo clareza de que as instituições deeducação infantil - tenham elas a denominação que tiverem - não devemser depósitos de crianças, substitutas matemos ou hospitais, também háclareza de que as creches e pré-escolas não devem reproduzir as práticassociais que têm sido desenvolvidas nas escolas de ensino fundamental.Este é o quadro que hoje se coloca para todas as profissionais da área etem como eixo fundamental a busca da definição da especificidade dotrabalho pedagógico a ser realizado nas instituições de educação infantil,ou seja, a construção de uma Pedagogia da Educação Infantil que rompacom a Pedagogia Escolar tal como tem sido desenvolvida nas escolas deensino fundamental.

11- Desafios colocados:

Todas estas decisões legais trouxeram consigo muitas conseqüênciase desafios para a área da educação infantil. Vou levantar dentre os inúmerosdesafios, os três que considero fundamentais a serem enfrentados:

- Primeiro desafio: como transformar as instituições de educaçãoinfantil em um nível de ensino, sem que elas reproduzam ou tragam parasi as práticas desenvolvidas no ensino fundamental?

A preocupação com este aspecto pode ser vislumbrada na própriaredação do texto final da LDB em que está escrito que a educação básicaconsiste em três níveis de ensino: a educação infantil, o ensino funda­mental e o ensino médio. Falar em educação e não em ensino foi a formaencontrada para não reforçar a concepção instrucionall escolarizante pre­sente nos demais níveis de ensino e indicar urna proposta de trabalhocom crianças cuja especificidade requer uma prevalência do educativosobre o instrucional, ou seja, mais do que nível de ensino, estas institui­ções devem realizar um trabalho contemplando e priorizando os proces-

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sos educativos que envolvem as crianças como sujeitos da e na culturacom suas especificidades etárias, de gênero, de raça, de classe social.

Para enfrentar este desafio é preciso ter claro que o trabalho juntoàs crianças em creches e pré-escolas não se reduz ao ensino de conteúdosou disciplinas, ou de conteúdos escolares que reduzem e fragmentam oconhecimento, mas implica trabalhar com as crianças pequenas em dife­rentes contextos educativos, envolvendo todos os processos de constitui­ção da criança em suas dimensões intelectuais, sociais, emocionais, ex­pressivas, culturais, interacionais.

Portanto, as instituições de educação infantil devem buscar delinearas suas especificidades, sem perder de vista que o trabalho a ser realizadocom as crianças deve assumir um caráter de intencionalidade e de siste­matização, sem cair na reprodução das práticas famíliares, hospitalaresou escolares.

- Segundo desafio: educar e cuidar

Se é dever do Estado e opção da família assegurar a educação dacriança a partir do seu nascimento, em complementaridade com o papel eas ações da família nessa função, as instituições de educação infantil têmuma especificidade que as toma diferentes da família e da escola e quedevem, devido à especificidade da faixa etária de suas crianças, desenvol­ver atividades ligadas ao cuidado e à educação dessas crianças.

A insistência em manter os termos educar e cuidar, como já foiindicado anteriormente, relaciona-se ao percurso histórico das creches epré-escolas no Brasil. A análise do histórico dessas instituições e as rela­ções que estas têm estabelecido tanto com as famílias, quanto com asescolas permite perceber que quando se defendeu, e ainda hoje se defen­de, uma função pedagógica para as mesmas foi na direção da valorizaçãodas atividades ligadas ao ensino de alguma coisa, à transmissão deconhecimentos, muitas vezes reproduzindo ou antecipando as práticascondenadas pelas próprias escolas de ensino fundamental em que sãovalorizadas as atividades dirigidas, consideradas como pedagógicas. Essainterpretação reducionista do pedagógico, acabou por trazer para as cre­ches e pré-escolas uma desvalorização das atividades ligadas ao cuidadodas crianças pequenas. Essa dicotomização entre as atividades com umperfil mais escolar e as atividades de cuidado, revelam que ainda não estáclara uma concepção de criança como sujeito de direitos, que necessitaser educada e cuidada, uma vez que ela depende dos adultos para sobre-

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viver e também pelo fato de permanecer muitas vezes de 10 a 12 horasdiárias na instituição de educação infantil.

Esta dicotomização que, como já vimos anteriormente, vem de lon­ga data, está tão arraigada nas práticas desenvolvidas nas instituições quefoi preciso recorrer ao uso de uma terminologia que ajudasse a sinalizarque havia um avanço na compreensão do lugar, do valor e do estatus queestas atividades de cuidado às crianças precisam assumir nas instituiçõesde educação infantil.

Foi nesse sentido que se recorreu4 ao termo utilizado em inglês ­educare - que significa educação e cuidado ao mesmo tempo. Como nãotemos estas duas palavras em uma só em português, foi feita uma opçãopela utilização dos termos educar e cuidar.

Conseguir concretizar esta concepção em práticas educativas aindaconstitui um desafio para os educadores da área. Este desafio está acimade tudo estreitamente ligado às relações creche- famílias, que precisamser enfrentadas urgentemente no sentido de explicitar qual o papel queestas duas instituições devem ter no atual contexto histórico, a fim de queas professoras de educação infantil e as famílias - pais e mães das crian­ças - possam assumir suas responsabilidades com maior clareza dos seuspapéis que, mesmo sendo complementares um em relação ao outro, sãodiferentes e devem continuar sendo.

-Terceiro desafio: profissionais

Os dois primeiros desafios trazem como conseqüência pensarmosnas profissionais de educação infantil. Muitas são as situações em queestas se encontram: dependendo do segmento a que pertencem - munici­pal, estadual, federal, privado, etc. Variam mais ainda de região pararegião em nosso país.

A nova LDB definiu que uma vez fazendo parte do capítulo daeducação todas as profissionais que atuam em creches e pré-escolas dire­tamente com as crianças deverão ser consideradas professoras leigas ounão. Ou seja, há uma compreensão de que devido ao caráter educacionalque estas instituições devem ter, as professoras devem ser formadas pelomenos em curso superior, com uma formação condizente com aespecificidade desta etapa da educação.

Esta deliberação trouxe para os sistemas de ensino a tarefa de provi­denciar uma formação específica emergencial para as profissionais que játrabalham em instituições de Oa 6 anos sem possuir a formação exigida.

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Diante desta situação em que muitas educadoras se encontram, foideliberado um prazo de até 10 anos - a partir da data da promulgação daLDB novembro de 1996 - para que todas as profissionais envolvidas nestenível de ensino atendam a exigência feita, com o auxílio das instituições.

Da mesma forma, esta exigência trouxe para as agências formado­ras, entre elas as universidades e os cursos de magistério a tarefa derepensar sua proposta curricular no sentido de atender às especificidadesque urna professora de educação infantil deve ter em relação às professo­ras de la a 4a ou de sa a ga. Além disso, os sistemas municipais de ensinotêm sido estimulados a criar cursos supletivos a fim de atender à deman­da de cada município, devendo estes ser considerados em caráteremergencial-provisório, com a clareza de que a formação das profissio­nais desta área deve ocorrer de forma regular, sistemática e formal tãologo a situação se estabilize.

111- Dos desafios aos avanços eretrocessos

É preciso salientar que muito do caminho realizado até aqui temsido possível graças à grande contribuição que a Coordenação de Educa­ção Infantil (COEDI), ligada à Secretaria de Educação Fundamental doMEC vem desenvolvendo desde 1993, tendo a professora Angela MariaRabelo Ferreira Barreto na coordenação dos trabalhos.

Grande parte desta contribuição pode ser conhecida a partir dos"cadernos" publicados pela COEDI, quais sejam:

-Educação Infantil no Brasil: situação atual- 1994;-Política nacional de educação infantil- 1994;-Critérios para um atendimento, em creches, que respeite os direi-

tos fundamentais das crianças-1995;-Por uma política de formação do profissional de educação in

fantil - 1994;- Propostas Pedagógicas e Currículo em Educação Infantil - 1996Todos estes materiais foram produzidos a partir do debate com edu­

cadores e pesquisadores da área, no sentido de caminhar na definição deurna Política Nacional de Educação Infantil que atendesse às delibera­ções legais e, ao mesmo tempo, estabelecesse diretrizes pedagógicas parauma política de recursos humanos visando a melhoria da qualidade dotrabalho junto às crianças de Oa 6 anos em instituições educativas.

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Neste sentido, têm sido divulgadas as produções mais atuais e emnível de excelência a fim de subsidiar o trabalho nas instituições em quesão indicados Critérios para um atendimento, em creches, que respeite osDireitos Fundamentais das Crianças, análises de Propostas Pedagógicasexistentes para creches e pré-escolas, política para formação dos profissi­onais de educação infantil, entre outros.

A produção apresentada no período de 1993 a 1997 pela COEDIrevela o quanto esteve, nestes últimos cinco anos, afinada com a buscade uma educação pública infantil de qualidade em parceria com pesquisa­dores e educadores da área.

No entanto, mesmo considerando que os encaminhamentos dados pelaCOEDI signífiquem um avanço importante na definição de uma política naci­onal para educação infantil, é preciso lembrar que em 1997 e 1998 foramdivulgados dois documentos que podem significar uma ameaça ao que vemsendo proposto como política para a educação infantil. O primeiro - Propostapara o Plano Nacional de Educação - do INEP (ainda em tramitação noCongresso e tendojáuma contraproposta da Sociedade Civil, também tramI­tando no Congresso, que busca recuperar os avanços já assegurados em lei)representa um retrocesso em relação às propostas dos anos 70 pelo tratamen­to dado às creches e pré-escolas. Pelas suas proposições, a creche é reduzidaa uma função educacional- assistencialista e o profissional indicado para nelaatuar é a de um agente educativo, sem que seja indicada uma necessidade deformação específica qualquer. Quanto à pré-escola, mesmo considerada ne­cessária, deve ter um profissional fonnado em nivel de 2° grau, podendoexistir o agente educativo para auxiliá-lo.

O segundo documento que pode ameaçar os avanços produzidos na áreadaeducação infantil nestes últimos anos, diz respeito ao Referencial CurricularNacional para Educação Infantil produzido pela SEF/COEDI, sem que sepossa perceber uma articulação afinada com a produção até então coordenadapela COEDI. Este documento pode signíficar um retrocesso para a educaçãoinfantil no Brasil, pois não só apresenta uma proposta escolarizante para ascrianças de 4 a 6 anos, como estende esta proposta para as crianças de Oa 3anos. Apesar dos esforços que muitos pesquisadores e educadores têm feitocontra a concepção que norteou a versão preliminar do Referencial Curricularpara Educação Infuntil, este estarádisponível paraas profissionais de educaçãoinfantil ainda no ano de 1999. Vale ressaltar que, mesmo que pareceristas dasmais diferentes regiões do Brasil que atuam na área da educação infantil em

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Universidades ou em Secretarias de Educação tenham enviado pareceres acer­cadesse documento, oRCNEJ5 apresenta uma proposta de trabalho que rom­pe com o esforço que tem sido realizado no sentido de construir uma Pedago­gia para a Educação Infantil que respeite as especificidades do trabalho comcrianças menores de 7 anos que freqüentam creches e pré-escolas.

Por tudo que foi apontado anteriormente, é possível constatar oquanto o atual momento histórico está a exigir que todos os envolvidoscom a área da educação infantil, independente de suas funções, assumama tarefa de contribuir para a construção de uma educação infantil querespeite os direitos fundamentais das crianças pequenas brasileiras.

Notas

2 Sobre isso ver KUHLMANN IR., Moises. Infância e EducaçãoInfantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Editora Mediação,1998.

3 Termo cunhado por Maria Lúcia Machado In:Educação infantil ecurrículo: a especificidade do projeto educacional-pedagógico paracreches e pré-escolas. São Paulo, 1996. (mimeo)

4 Sobre isso ver ROSEMBERG, F. , Educação Infantil nos EstadosUnidos IN: Creches e Pré-escolas no Hemisfério Norte, p. 62­1994 e CAMPOS, M.M. Educar e Cuidar: questões sobre o perfildo profissional de educação infantil, IN: Por umapolítica de forma­ção do profissional de educação infantil, 1994.

5 Sobre este tema ver CERISARA, Ana Beatriz. A produção acadê­mica na área da educação infantil a partir da análise dos pareceressobre o Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil: pri­meiras aproximações. IN: Educação infantil pós-LDB: rumos e de­safios. Editora Autores Associados, 1999.

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http://www.uem.br/acta ISSN printed: 1806-2636 ISSN on-line: 1807-8672

Acta Scientiarum

Doi: 10.4025/actascieduc.v34i2.17497

Acta Scientiarum. Education Maringá, v. 34, n. 2, p. 157-168, July-Dec., 2012

História da Educação no Brasil: a escola pública no processo de democratização da sociedade

Marisa Bittar1* e Mariluce Bittar2 1Departamento de Educação, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, Via Washington Luis, km 235, 13565-905, São Carlos, São Paulo, Brasil. 2Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. *Autor para correspondência. E-mail: [email protected]

RESUMO. Analisam-se neste artigo aspectos da história da Educação no Brasil relacionados à consolidação da escola pública e às políticas educacionais. O período demarcado inicia-se com a década de 30 do século XX, época em que a organização e implantação de um sistema escolar público no País tornou-se condição sine qua non para o seu desenvolvimento socioeconômico, e se estende aos anos 2000 com a consolidação da democracia e do Estado de Direito no Brasil. Foram utilizadas fontes documentais elaboradas por órgãos governamentais e entidades científicas bem como a bibliografia produzida por pesquisadores da área. Os dados mostram que ao longo do período houve expansão em todos os graus de ensino, contudo, continuam persistindo traços de elitismo e exclusão. Além disso, verifica-se contraste entre a qualidade da Pós-Graduação e a da escola pública, que não tem cumprido a sua função essencial. Tais conclusões evidenciam a necessidade de resolução desses problemas a fim de que se avance na própria democracia no País. Palavras-chave: história da educação brasileira, escola pública, democracia.

History of Education in Brazil: the public school in the process of democratization of society

ABSTRACT. This paper analyzes aspects of the history of education in Brazil related to the consolidation of public schools and educational policies. The period marked begins with the 1930s, a time when the organization and implementation of a public school system in the country has become a condition for the socio-economic development, and extends to the 2000s with the consolidation of democracy and the rule of law in Brazil. It is based on documentary sources developed by governmental and scientific organizations and the literature produced by researchers. The data show that over the period there was an increase in all levels of education, however, continues to persist traces of elitism and exclusion. Moreover, there is contrast between the quality of graduate and public school, which has failed its essential function. These findings highlight the need to solve these problems in order to advance democracy in the country. Keywords: history of brazilian education, public school, democracy.

Introdução

Analisam-se, neste artigo1, aspectos da história da Educação no Brasil e a consolidação da escola pública, bem como os vínculos com a política educacional, no período de 1930, quando a necessidade de organização e de implantação de um sistema público educacional no País tornou-se condição sine qua non para o seu desenvolvimento socioeconômico, até os anos 2000, período em que se consolida a democracia e o Estado de Direito no Brasil. Nesse percurso histórico, discute-se também de que forma a consolidação de um sistema público 1Parte das considerações elaboradas neste artigo resulta da pesquisa internacional desenvolvida por pesquisadores do Brasil, Argentina, Chile, México, Paraguai e Uruguai, denominada Red Academica Conocimiento y Política Educativa en America Latina. O capítulo intitulado ‘Producción de Conocimiento y Política Educativa en América Latina – la experiencia brasilera’, elaborado por Mariluce Bittar, Marisa Bittar e Marília Morosini, integra o livro Investigación educativa y política en América Latina, organizado por Palamidessi, Gorostiaga e Suasnäbar, 2012.

de educação no País exigiu um forte sistema de pesquisa e pós-graduação, construído ao longo das últimas quatro décadas, que o elevou a uma posição de referência na América Latina, projetando-o no cenário mundial.

Com a finalidade de relacionar a construção da escola pública ao processo político do século XX, marcado por ditaduras, e o seu papel na democratização da sociedade brasileira, utilizou-se um amplo leque de fontes documentais, desde as elaboradas por órgãos governamentais às produzidas por entidades científicas da área, como também a bibliografia elaborada pela pesquisa em Educação Brasileira nessas últimas décadas.

O texto está organizado em três partes: na primeira, analisam-se as disputas ideológicas das décadas de 30 a 60 do século XX e as reformas educacionais que marcaram o período; na segunda,

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examina-se a expansão da escola pública no período da Ditadura Militar (1964-1985); na terceira, os anos da redemocratização e as políticas educacionais de caráter neoliberal.

As reformas educacionais brasileiras no contexto das disputas ideológicas durante as décadas de 30 a 60 do século XX

Nas décadas compreendidas entre 1930 e 1960, o Brasil passou por mudanças estruturais que incidiram diretamente sobre a construção de um sistema nacional de educação pública. No plano estrutural, o País passava por uma transição caracterizada pela aceleração do modo capitalista de produção, o que ocasionou transformações superestruturais, notadamente no aparelho escolar. Em termos políticos, o período está compreendido entre dois processos vinculados à transição de um modelo econômico agrário-exportador para industrial-urbano: a Revolução de 1930 e o golpe de Estado de 1964.

No período de 1930 a 1964, rivalizaram-se dois projetos de nação para o Brasil. O nacional-populista, cuja gênese reportava-se a Getúlio Vargas e que agregou setores progressistas da sociedade brasileira, defendia a industrialização do País à base do esforço nacional, sem comprometer a sua soberania. Por ter nascido reconhecendo que a questão social não era caso de polícia, mas de política, o projeto getulista contou com apoio dos trabalhadores. Por sua vez, o projeto das oligarquias tradicionais, ligadas ao setor agrário exportador, previa o desenvolvimento econômico subordinado à liderança dos Estados Unidos da América e representava setores da elite política desalojada do poder em 1930, especialmente os ligados à economia cafeeira paulista. A polarização ganhou fortes cores ideológicas oriundas do ambiente político internacional, dominado pela disputa entre dois blocos, o capitalista e o socialista, de tal forma que a política nacional da época esteve marcada pelos binômios esquerda x direita, conservadores x progressistas.

A educação, por exemplo, foi palco de manifestações ideológicas acirradas, pois, desde 1932, interesses opostos vinham disputando espaço no cenário nacional: de um lado, a Igreja Católica e setores conservadores pretendendo manter a hegemonia que mantinham historicamente na condução da política nacional de educação; de outro, setores liberais, progressistas e até mesmo de esquerda, aderindo ao ideário da Escola Nova, propunham uma escola pública para todas as crianças e adolescentes dos sete aos 15 anos de idade.

Essa disputa ideológica atravessou décadas e reformas educacionais sem que o poder público brasileiro edificasse um sistema nacional de escolas públicas para todos.

De fato, durante o período de 1930 a 1964, ocorreram várias reformas educacionais no Brasil sem que fosse resolvido o secular problema do analfabetismo e da garantia de pelo menos quatro anos de escolaridade para todas as crianças, fato que evidencia a forma como o Estado Nacional conduziu a política educacional da época. Para se compreender esse aspecto das políticas públicas no Brasil, é necessário evocar a Revolução de 19302, que passou a edificar o Estado burguês adotando medidas centralizadoras que garantissem a unidade nacional e a sua presença em setores estratégicos, como na supremacia sobre o próprio território. Foi nesse contexto que logo após a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, criou-se o Ministério da Educação e Saúde Pública, chefiado por Francisco Campos, que implantou a Reforma de 1931, precedida por um pedido de Vargas aos educadores reunidos na IV Conferência da Associação Brasileira de Educação (ABE) para que fornecessem ao governo ‘o sentido pedagógico da revolução’. A Reforma Francisco Campos, como ficou conhecida, teve como diferencial a criação, pelo menos em lei, de um Sistema Nacional de Educação, além de ter criado o Conselho Nacional de Educação, órgão consultivo máximo para assessorar o Ministério da Educação. O texto da Reforma determinou que o ensino secundário ficasse organizado em dois ciclos: o fundamental, de cinco anos, e o complementar, de dois anos. Dessa forma, o ensino secundário compreendia a escolarização imediatamente posterior aos quatro anos do ensino primário e tinha caráter altamente seletivo.

A seletividade do ensino secundário e a dicotomia entre ensino profissional e secundário ficaram mantidas, favorecendo os filhos da elite. O primeiro ciclo, de cinco anos, tornou-se obrigatório para ingresso no ensino superior; o segundo, de dois anos, em determinadas escolas. O ingresso ao superior devia guardar correspondência obrigatória com o ensino médio, o que também dificultava o acesso ao ensino superior. A Reforma deixou 2Em 1930, Getúlio Vargas liderou a revolução que pôs fim ao domínio da oligarquia agrária representada por Minas Gerais e São Paulo e que governou o Brasil na primeira fase republicana (1889-1930). Dissidente da oligarquia tradicional, Vargas partiu do Estado do Rio Grande do Sul e se pôs à frente do movimento tenentista que convulsionou o Brasil na década de 20, tendo desfecho vitorioso em 1930. Iniciou-se desde então a ‘era’ de Getúlio Vargas no Brasil: a) de 1930 a 1934, governo provisório; b) de 1934 a 1937, governo eleito pela Constituinte; c) de 1937 a 1945, “ditadura do Estado Novo”; e) de 1951 a 1954, eleito pelo voto direto. Vargas instituiu o populismo e iniciou a etapa da industrialização no Brasil, a qual, por sua vez, impulsionou a urbanização, e esta, a pressão por educação. Em agosto de 1954, mergulhado em grave crise política que almejava sua deposição, Getúlio Vargas cometeu suicídio.

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marginalizados o ensino primário, o Curso Normal (formação de professores para atuar no primário) e os vários ramos do ensino profissional, salvo o comercial.

Aspecto inovador da Reforma Francisco Campos foi ter empreendido a reforma do ensino superior, prevista no Estatuto das Universidades Brasileiras (BRASIL, 1931), que dispunha sobre a organização do ensino superior e adotava o ‘regime universitário’, o qual previa a criação de universidades, organizadas de forma que pudessem criar ciência e transmiti-la, além de servir:

a) à pesquisa científica e à cultura desinteressada; b) à formação do professorado para as escolas primárias, secundárias, profissionais e superiores; c) à formação de profissionais em todas as profissões de base científica; d) à vulgarização ou popularização científica literária e artística, por todos os meios de extensão universitária (RIBEIRO, 1986, p. 102).

A influência do movimento conhecido como Escola Nova nessa Reforma é perceptível, pois incorporou uma reivindicação exposta no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 19323, sobre a criação de universidades, previstas como etapa da escolaridade que acolhesse ‘os melhores’, isto é, aqueles dentre os que tivessem cursado a escola dos sete aos 15 anos e que demonstrassem talento para o curso universitário. No âmbito da Reforma, mais especificamente no que preconizava o Estatuto das Universidades Brasileiras, foi organizada a Universidade do Rio de Janeiro; em 1934, foi criada a Universidade de São Paulo (USP), com a participação de Fernando de Azevedo.

Antes das mudanças que viriam a ocorrer em 1937 foi promulgada a Constituição Brasileira de 1934. Nela, o direito à educação, com o corolário da gratuidade e da obrigatoriedade tomou forma legal, além de ter declarado gratuito o ensino primário de quatro anos. A Carta de 1934 consagrou o princípio do direito à educação, que deveria ser ministrada ‘pela família’ e ‘pelos poderes públicos’ e o princípio da obrigatoriedade, incluindo entre as normas que deviam ser obedecidas na elaboração do Plano Nacional de Educação, o ensino primário gratuito e de frequência obrigatória, extensiva aos adultos, e a tendência à gratuidade do ensino ulterior ao primário. Além disso, essa Constituição representou

3Trata-se do texto conhecido como Manifesto de 1932, cujo título original é A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo. Redigido por Fernando de Azevedo, constituiu-se em um dos mais importantes documentos da educação brasileira e representou a influência dos ideais da Escola Nova no Brasil, polarizando com os ideais da escola tradicional e os interesses da Igreja Católica. Foi assinado por 26 intelectuais liberais brasileiros, dentre os quais, o mais importante para a área da educação foi Anísio Teixeira, e influenciou largamente as ideias pedagógicas no Brasil. Em 2012, o Manifesto está completando 80 anos de existência e muitas das reivindicações ali contidas permanecem atuais.

uma conciliação de interesses no contexto dos conflitos político-ideológicos da época. No que diz respeito ao debate educacional e à elaboração da Constituição, esses conflitos ficaram explícitos entre os renovadores (liberais partidários dos princípios da Escola Nova) e os defensores da educação privada, no caso, representada pela Igreja Católica.

Com o golpe de Estado que instituiu a ditadura de Vargas (1937-1945), uma nova Constituição, a de 1937, foi adotada no Brasil, a qual, no aspecto da educação, transformou em ação supletiva o que antes era dever do Estado.

Durante a ditadura de oito anos, o governo editou uma das reformas mais duradouras do Sistema Educacional Brasileiro, as chamadas Leis Orgânicas do Ensino, mais conhecidas como Reforma Capanema (1942-1946). Esse conjunto das Leis Orgânicas do Ensino, editadas de 1942 a 1946, estabeleceram o ensino técnico-profissional (industrial, comercial, agrícola); mantiveram o caráter elitista do ensino secundário e incorporaram um sistema paralelo oficial (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac)).

A Reforma Capanema incorporou também algumas reivindicações contidas no Manifesto de 1932, a saber: a) gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário; b) planejamento educacional (Estados, territórios e Distrito Federal deveriam organizar seus sistemas de ensino); c) recursos para o ensino primário (Fundo Nacional do Ensino Primário) estipulando a contribuição dos Estados, Distrito Federal e dos municípios; d) referências à carreira, remuneração, formação e normas para preenchimento de cargos do magistério e na administração.

Durante os oito anos do ‘Estado Novo’, termo com o qual Vargas intitulou a sua ditadura, foram criadas várias entidades e órgãos tanto na esfera da sociedade civil, quanto no âmbito da sociedade política em função de lutas específicas vinculadas às universidades, à área da educação, ou mesmo ao movimento estudantil. Foi o caso da União Nacional de Estudantes (UNE), fundada em 1937, que combateu a ditadura. Ao longo dos seus mais de setenta anos de história, a UNE marcou presença na vida política, social e cultural do Brasil, como: a) contra a Ditadura de Vargas (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985); b) no movimento das ‘Diretas Já’, no início dos anos 1980; c) na campanha do impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Durante a década de 90, “[...] foi um dos principais focos de resistência às privatizações e ao neoliberalismo que marcou a Era FHC” (UNE, 2012), ou seja, o período de 1995-2002.

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Em janeiro de 1937, mesmo ano de criação da UNE, fundou-se o Instituto Nacional de Pedagogia (INEP)4, que, atualmente, figura como um dos mais importantes órgãos de disseminação de informações educacionais e trabalha por meio da constituição de Comissões de Especialistas designados entre os pesquisadores da comunidade acadêmica, para contribuírem com a formulação das políticas educacionais e de implementação dos processos de avaliação em todos os níveis educacionais. Com a criação do INEP, iniciaram-se no País as bases para a o desenvolvimento de atividades de pesquisa e de investigação na área da educação, mais tarde implementadas pelos Centros Regionais de Pesquisa.

Terminada a ditadura Vargas, fato que coincidiu com o final da Segunda Guerra Mundial, o Brasil editou a sua quarta Constituição republicana (1946), que consagrou os direitos e garantias individuais e assegurou a liberdade de pensamento. Demons-trando tendência progressista e aproximando-se da Constituição de 1934 e dos princípios ‘do Manifesto de 1932’, essa Constituição reafirmou o direito de todos à educação, obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário. Esses princípios progressistas, no entanto, não garantiram a universalização sequer da escola primária para todas as crianças brasileiras, ou seja, a sequência de reformas que vimos, especialmente nos seus aspectos mais democráticos, pouco saía do papel. Aliás, um traço recorrente das políticas educacionais brasileiras: incorporação de princípios democráticos que não chegam a ser postos em prática. A Constituição de 1946, por outro lado, previu, pela primeira vez, a elaboração de uma lei específica para a educação brasileira: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que viria a ser aprovada apenas em 1961.

Antes, porém, no ano de 1948, no transcorrer do governo Eurico Gaspar Dutra (1946-1950) e no contexto de manifestações nacionalistas e democráticas, foi criada a Sociedade Brasileira para o

4O INEP passou por várias transformações, desde a sua criação. No início, constituiu-se como o primeiro órgão do governo federal a estabelecer-se como “[...] fonte primária de documentação e investigação, com atividades de intercâmbio e assistência técnica”. Em 1944, criou a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP). Em 1952, sob a presidência de Anísio Teixeira, priorizou o trabalho de pesquisa, “[…] como um meio de fundar em bases científicas a reconstrução educacional do Brasil”. Nessa época, foram criados o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e os Centros Regionais de Pesquisa, que funcionaram como importantes centros de estudos e pesquisas educacionais em algumas regiões brasileiras, adquirindo projeção nacional e internacional. Em 1981, lançou a Revista Em Aberto, para assessorar internamente o MEC, mas posteriormente passou a atender às necessidades de “[...] professores e especialistas fora da estrutura do MEC”. Em 1985, retirou-se da função de fomento para retomar seu papel básico de suporte às decisões do MEC. No governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), o INEP quase foi extinto, mas após essa fase, ainda no início dos anos 1990, “[...] atuou como financiador de trabalhos acadêmicos voltados para a educação”. Após 1995, tornou-se responsável pelos levantamentos estatísticos e pelas informações educacionais que efetivamente orientassem “[…] a formulação de políticas educacionais do Ministério da Educação”. No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, passou a denominar-se Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2012, p. 5).

Progresso da Ciência (SBPC), entidade científica integrada por pesquisadores de todas as áreas de conhecimento, sobretudo físicos e engenheiros. Iniciou-se, desde então, a organização das primeiras reuniões anuais e a publicação da Revista Ciência e Cultura, ‘porta-voz da SBPC’. A Sociedade teve papel importante ao longo desses mais de sessenta anos de existência, especialmente no período de luta contra a ditadura militar, reunindo uma diversidade de pesquisadores e associações científicas, destacando-se nas discussões sobre as políticas científicas do País.

Os anos 1950 marcaram a criação de várias agências de fomento à pesquisa e à ciência brasileiras; iniciava-se, em 1951, um novo governo de Getúlio Vargas, dessa vez eleito pelo povo. De acordo com a sua plataforma nacionalista, a construção de uma nação desenvolvida e independente exigia uma política científica e de pesquisa para o País. Assim, no primeiro ano do novo mandato, criou-se o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia, com a função de fomentar o desenvolvimento científico e tecnológico no País. No mesmo ano, teve origem a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)5, que atualmente desenvolve atividades relacionadas: à

[...] avaliação da pós-graduação stricto sensu; ao acesso e divulgação da produção científica; ao investimento na formação de recursos humanos de alto nível no País e no exterior; à promoção da cooperação internacional (CAPES, 2012).

No governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), o País entrou de forma mais intensa na fase do nacional-desenvolvimentismo. Sob a influência dessa ideologia, foi criado o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), vinculado ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), reunindo “[...] intelectuais de distintas orientações teóricas e ideológicas” (TOLEDO, 2005, p. 11)6, com o

5No início, a Capes tinha como objetivo “[...] atender às necessidades dos empreendimentos públicos e privados que visam ao desenvolvimento do País”. Além disso, a “[...] industrialização pesada e a complexidade da administração pública trouxeram à tona a necessidade urgente de formação de especialistas e pesquisadores nos mais diversos ramos de atividade: de cientistas qualificados em Física, Matemática e Química a técnicos em finanças e pesquisadores sociais”. A Capes passou por diversas mudanças, chegando a ser extinta no governo Fernando Collor de Mello, em 1990. Em 1992, ela se tornou Fundação Pública e, em 1995, primeiro ano do governo de Fernando Henrique Cardoso, fortaleceu-se como “[...] instituição responsável pelo acompanhamento e avaliação dos cursos de pós-graduação stricto sensu brasileiros. Naquele ano, o sistema de pós-graduação ultrapassou a marca dos mil cursos de Mestrado e dos 600 de Doutorado, envolvendo mais de 60 mil alunos” (CAPES, 2012, p. 3). 6Para Caio Navarro de Toledo, o Instituto foi criado para servir de instrumento para uma ação eficaz no processo político do País. Reuniu intelectuais de distintas convicções ideológicas, incluindo o marxismo, que acreditavam ser possível, por meio do debate e do confronto de ideias, formular um projeto ideológico comum para o Brasil. Em um contexto de polarização ideológica, o nacional-desenvolvimentismo foi concebido como uma ideologia-síntese capaz

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objetivo de formular um projeto nacional para o País. O Instituto ficou conhecido por:

[…] oferecer cursos a oficiais das Forças Armadas, empresários, sindicalistas, parlamentares, funcionários públicos, burocratas e técnicos governamentais, docentes universitários e do ensino médio, profissionais liberais, religiosos, estudantes, etc. Distinguindo-se de uma instituição acadêmica foi, precipuamente, um centro de formação política e ideológica, de orientação democrática e reformista (TOLEDO, 2005, p. 11).

Na última fase do ISEB, seus integrantes procederam a uma revisão crítica das teses nacionais-desenvolvimentistas. De acordo com Caio Navarro de Toledo, nessa revisão constatou-se que o,

[...] país cresceu economicamente – com a consolidação do capitalismo industrial – mas não resolveu em profundidade suas graves e históricas desigualdades sociais e regionais (TOLEDO, 2005, p. 11).

No contexto político entre esquerda e direita, nacionalistas versus entreguistas, no início dos anos 1960, após 13 anos de conflitos ideológicos e de lutas pela educação pública brasileira, foi aprovada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 4.024, de 1961)7, que incorporou os princípios do direito à educação, da obrigatoriedade escolar e da extensão da escolaridade obrigatória nos seguintes termos: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola” (Artigo 2º); “O direito à educação é assegurado pela obrigação do poder público e pela liberdade de iniciativa particular de ministrarem o ensino em todos os graus, na forma da lei” (Artigo 3º) (ROMANELLI, 1986, p. 176).

O retrocesso dessa Lei em relação à Constituição de 1946 foi ter estabelecido casos de isenção pelos quais o Estado não era obrigado a garantir matrícula:

a) comprovado estado de pobreza do pai ou responsável; b) insuficiência de escolas; c) matrícula encerrada; d) doença ou anomalia grave da criança (ROMANELLI, 1986, p. 174).

de levar o país – através da ação estatal (planejamento e intervenção econômica) e de uma ampla frente classista – à superação do atraso econômico-social e da alienação cultural (TOLEDO, 2005). 7A primeira LDB do País tramitou no Congresso Nacional de 1948 a 1961. Na primeira fase, de 1948 a 1958, o projeto apresentado pelo Ministro da Educação, Clemente Mariani, foi alvo da polêmica centrada no aspecto da centralização ou da descentralização da Política Nacional de Educação. Nessa época, o deputado federal Gustavo Capanema, do Partido Social Democrático (PSD), ex-Ministro da Educação, acusava o projeto de ser centralizador. Com hegemonia conservadora no Congresso Nacional, em 1958 o deputado Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), apresentou um substitutivo ao anteprojeto, deslocando o foco da discussão para a ‘liberdade de ensino’, rejeitando a centralização e propondo que o Estado outorgasse igualdade de condições às escolas oficiais e particulares (ROMANELLI, 1986). Segundo alegava, o Estado pretendia o monopólio sobre o ensino. Esses debates no Congresso Nacional suscitaram, em 1959, o início da Campanha em Defesa da Escola Pública, liderada por Florestan Fernandes e Fernando de Azevedo, com centro na Universidade de São Paulo (USP). A Campanha insurgiu-se contra o substitutivo de Carlos Lacerda. Ainda em 1959, foi publicado um Manifesto em favor da escola pública, redigido por Fernando de Azevedo, que tratava do aspecto social da educação e dos deveres do Estado democrático.

No que se refere à estrutura do ensino, a Lei manteve a herança da Reforma Capanema: pré-primário; primário; médio, subdividido em dois ciclos (técnico e secundário); superior. Daí afirmar-se que a Reforma Capanema teve caráter duradouro que as outras reformas não tiveram.

Depois de uma profusão de debates e com instituições ativas na área da educação como a UNE, INEP e SBPC, o Brasil chegou à década de 60 do século XX com quase 40% de analfabetismo, o que evidencia a ineficiência das reformas, o seu caráter retórico e a omissão do Estado no cumprimento efetivo das leis que ele próprio editara. Os números expressam que pouco havia mudado: em 1940, a taxa de analfabetismo no Brasil era de 56,0%; em 1950, era de 50,5% e, em 1960, 39,35% (RIBEIRO, 1986).

Em uma sociedade com quase a metade de sua população analfabeta, quem eram os alunos e quem eram os professores? Os primeiros eram os que conseguiam superar todos os obstáculos para chegar até à escola, uma vez que o Brasil era predominantemente rural e escolas nas fazendas eram raras. Esse era o mais forte obstáculo à escolarização8. Urbanização e escolarização, portanto, são dois fenômenos que precisam ser considerados conjuntamente na história do Brasil.

Diante da alta taxa de analfabetismo (39,35%) no Brasil na década de 60, teve início a experiência de educação popular, dentre as quais se destacou o método de alfabetização de adultos de Paulo Freire. Com o apoio da União Nacional dos Estudantes (UNE) e de uma parte da Igreja Católica que aderiu à Teologia da Libertação, o educador pernambucano começou a alfabetizar segundo a sua máxima: “[...] educação como prática da liberdade” (FREIRE, 1978, p. 1). Coerente com essa teoria e com a sua compreensão do Brasil, Paulo Freire preconizava que, ao enorme contingente que nunca pisara o chão de uma escola, não bastaria apenas alfabetizar com métodos convencionais. Ao contrário, no processo da alfabetização, ao mesmo tempo em que se deveria fornecer aos adultos desescolarizados o instrumental da escrita, seria necessário fornecer-lhes também as ferramentas para interpretar o mundo, ou melhor, para ler o mundo. Contudo, a sua inovadora atuação, que no futuro seria reconhecida mundialmente, foi interrompida em abril de 1964.

Essas características da educação brasileira, herdeira de três séculos de escravidão e com as suas escolas de elite, trazem à mente as palavras de 8Foi depois de 1930 que a demanda por escolarização começou a crescer no Brasil, como consequência do projeto econômico implantado pelo governo de Getúlio Vargas, pautado na industrialização. Antes disso, vivendo a maioria da população na área rural, em um país recém-liberto da escravidão sem qualquer política indenizatória ou compensatória, além de manter a estrutura agrária de produção, a necessidade de escolas era pouco percebida.

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Manacorda (1989, p. 41), para quem, desde que a sociedade se dividiu em dominantes e dominados, “[...] para as classes excluídas e oprimidas [...], nenhuma escola”.

A expansão da escola pública brasileira durante o regime militar (1964-1985)

A política educacional da ditadura militar, instituída em 1964, por meio de um golpe de Estado9, provocou mudanças estruturais na história da escola pública brasileira. Para alguns, um fato paradoxal, pois, como se explica que exatamente durante um regime autoritário que prendeu, torturou e matou seus opositores, a escola pública tenha se expandido? A resposta deve ser buscada na própria base produtiva do modelo econômico instaurado pelos governos militares. A consolidação da sociedade urbano-industrial durante o regime militar transformou a escola pública brasileira porque na lógica que presidia o regime era necessário um mínimo de escolaridade para que o País ingressasse na fase do “Brasil potência”, conforme veiculavam slogans da ditadura. Sem escolas isto não seria possível. Entretanto, a expansão quantitativa não veio aliada a uma escola cujo padrão intelectual fosse aceitável. Pelo contrário: a expansão se fez acompanhada pelo rebaixamento da qualidade de ensino, segundo a maioria dos estudiosos. É imperioso constatar, porém, que a expansão, em si mesma, foi um dado de qualidade, pois se qualidade e quantidade são duas categorias filosóficas que não se separam, o fato de as camadas populares adentrarem pela primeira vez em grande quantidade na escola pública brasileira constituiu-se em um dos elementos qualitativos dessa escola. Em outras palavras: se no passado a escola pública brasileira era tida como de excelente qualidade, não se pode esquecer que essa qualidade implicava na exclusão da maioria.

A ditadura militar, ancorada no pensamento tecnocrático e autoritário que acentuou o papel da escola como aparelho ideológico de Estado, editou um rol de medidas consubstanciadas, basicamente, em duas reformas educacionais que mudaram a face da educação brasileira. A primeira delas foi a Reforma Universitária10, de 1968, que adequou a 9Esse golpe destituiu, em 31 de março de 1964, o governo do presidente eleito João Goulart, filiado politicamente ao nacional-populismo. Durante o período decorrido após 1930, as forças políticas predominantes no Brasil se dividiram entre os que apoiavam o projeto político-econômico nacional-populista, como trabalhadores e setores da classe média, e os conservadores, como latifundiários e oligarquias tradicionais. Quando a conjuntura internacional se polarizou em consequência da Guerra Fria, no período após 1945, essas forças à direita, alegando que o Brasil caminhava para o comunismo, tramaram o golpe de Estado que acabou sendo desfechado pelo Exército, colocando fim ao nacional-populismo e subordinando o País à política norte-americana. 10A Reforma Universitária (Lei n. 5.540/1968) foi consequência do trabalho de um grupo de especialistas, atendendo a uma determinação do general Arthur da Costa e Silva, então presidente do Brasil, e foi realizada em curto prazo. Isso

universidade ao modelo econômico preconizado pelo regime, instituindo os departamentos, a matrícula por crédito e não mais em disciplinas, a extinção da cátedra, etc. Inspirada no princípio de organização da universidade norte-americana, essa Reforma, realizada em contexto de repressão política, de um lado, instituiu o modelo da eficiência e produtividade e, de outro, o controle sobre as atividades acadêmicas. A repressão se abateu principalmente sobre o movimento estudantil organizado pela UNE, proibido de qualquer manifestação de caráter político. Foram atingidos também os professores universitários e intelectuais que atuavam por uma reforma democrática da universidade, que na época era acessível apenas a uma pequena parcela da sociedade brasileira.

A relação da Reforma Universitária com a escola pública encontra-se na conexão estabelecida entre os cursos para formar professores e a facilitação da expansão do ensino superior privado. Nesses cursos, muitos dos quais noturnos, começaram a ser titulados os novos professores para a escola pública brasileira. Outra consequência da política educacional da ditadura militar consistiu na formação de uma nova categoria docente que veio a substituir aquela que até então era formada nas poucas instituições universitárias ou nos Cursos Normais. Desse novo contexto, nasceu uma categoria massiva que, pela condição de vida e de trabalho a que seria submetida, logo iria se organizar em sindicatos, um fenômeno típico do novo professorado e inteiramente distinto do perfil dos professores brasileiros até a década de 60.

Tendo feito a Reforma ‘antes que outros a fizessem’, expressão que indicava o temor dos militares quanto à força do movimento estudantil da época, a ditadura militar editou também a reforma do ensino fundamental conhecida como Lei n. 5.692, de 1971, transformando o antigo curso primário, de quatro anos, e o ginásio, também de quatro anos, em oito anos de escolaridade obrigatória mantida pelo Estado, isto é, o ensino de primeiro grau que duplicou os anos de escolaridade obrigatória.

Com essa reforma, o regime militar pretendeu conferir um novo caráter ao segundo grau de ensino. Com o propósito de lhe conferir caráter terminal e de diminuir a demanda sobre o ensino superior, a reforma imprimiu-lhe o carimbo de ‘profissionalizante’, ou seja, acabava-se com o ensino médio de caráter formativo,

porque o movimento estudantil estava mobilizado exigindo a democratização da universidade brasileira desde o pré-64 e o governo militar pretendia calar a sua voz. No entanto, embora realizada pelo Estado autoritário, acabou incorporando algumas reivindicações do período anterior à ditadura. Essa Reforma mudou a face do ensino superior no Brasil, instituindo a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e a pós-graduação no âmbito universitário, além de ter aberto caminho para a expansão do ensino privado.

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com base humanística, para fornecer ‘uma profissão’ aos jovens que não pudessem ingressar na universidade.

Quanto ao ensino de primeiro grau de oito anos, a expansão física das escolas foi uma característica dos 21 anos de ditadura. Mas que escola era essa? Sem dúvida, a das crianças das camadas populares; a escola em que funcionava o turno intermediário, com pouco mais de três horas de permanência na sala de aula, mal aparelhada, mal mobiliada, sem biblioteca, precariamente construída, aquela em que os professores recebiam salários cada vez mais incompatíveis com a sua jornada de trabalho e com a sua titulação. A escola na qual era obrigatória a Educação Moral e Cívica, disciplina de caráter doutrinário, que além de justificar a existência dos governos militares, veiculava ideias preconceituosas sobre a formação histórica brasileira, e na qual o ensino da Língua Portuguesa, da História, da Geografia e das Artes ficou desvalorizado.

Quanto à expansão quantitativa de matrículas nas escolas públicas, alguns dados mostram o que ocorreu após a Reforma de 1971. Em 1950, apenas 36,2% das crianças de 7 a 14 anos de idade tinham acesso à escola. Em 1989, os dados indicavam 27.557.492 matrículas no ensino de primeiro grau público ante 3.442.934 no privado. Em 1990, eram 88% (GOLDEMBERG, 1993). O Censo Escolar de 1991-2002 registrou 35.150.362 de matrículas no ensino de primeiro grau, e desse montante apenas 3.234.777 estavam na rede privada (CENSO ESCOLAR, 2003). O ensino de segundo grau, por sua vez, em 1960, registrava 1.177.427 alunos matriculados (ROMANELLI, 1986). Em 2002, o Censo Escolar (2003) indicava 8.710.584 de alunos matriculados nesse nível de ensino, dos quais 1.122. 970 na rede privada. Apesar desses avanços quantitativos, a disparidade de matrículas entre um grau e outro persistia e um grave problema não foi equacionado: o analfabetismo. Dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD), de 2003, evidenciaram que,

[...] 10,6% dos brasileiros com dez anos ou mais de idade declararam-se incapazes de ler e escrever. Esse número vem caindo ano a ano, independentemente de qualquer campanha, pelo simples fato de que a maioria dos analfabetos no Brasil são idosos. Aos 14 anos, o analfabetismo no Brasil se limita a 2% da faixa etária, e o total cai naturalmente à medida que vão minguando as gerações mais antigas (SCHWARTZMAN, 2005, p. 41).

Os dados indicam que o método de alfabetização de adultos criado por Paulo Freire foi interrompido pela ditadura, que instituiu caríssimas campanhas de

alfabetização, dentre as quais a do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), um verdadeiro fracasso. O pior, porém, foi o fato de que os governos que sucederam a ditadura também não resolveram esse problema. Além disso, por não ter cumprido a universalização da escola básica, tarefa realizada pela maioria dos países ocidentais na passagem do século XIX para o XX, o Brasil ingressou no século XXI com essa vergonhosa herança11.

Em termos de políticas de desenvolvimento científico e tecnológico, é importante registrar a criação, no início da década de 60, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)12, a primeira de uma série de fundações estaduais de apoio à pesquisa que foram sendo criadas nos Estados brasileiros, com o objetivo de fomentar a pesquisa científica e tecnológica no País, bem como a criação dos programas de pós-graduação stricto sensu. No final dos anos 1960, observa-se também o crescimento das Reuniões Anuais da SBPC e os embates de cientistas e intelectuais contrários à ditadura. Nos anos 1970, a SBPC incorporou cientistas das áreas das Ciências Humanas e Sociais e na segunda metade da década de 1980, participou ativamente da transição democrática, transformando-se em um “[...] fórum de discussão de políticas públicas para o país” (SBPC, 2012, p. 2).

No campo da pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, foram criadas, em 1976 e 1977, respectivamente, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped)13 e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), que desempenharam papel importante no enfrentamento à ditadura militar, bem como na organização dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais, reunindo pesquisadores de todo o Brasil e sendo fundamentais no processo de redemocratização da sociedade brasileira e da consolidação da pesquisa no País.

No final da década de 80, no contexto da Assembleia Nacional Constituinte, após intenso

11A situação do professorado brasileiro se deteriorou fortemente desde o arrocho salarial imposto pelo regime e depois foi seguido de empobrecimento crescente após o fim da ditadura. Na década de 90, a crise se aprofundou, pois “[...] uma parte dos professores públicos aderiu a planos neoliberais de demissão voluntária, além de levas que abandonaram em massa a profissão pela impossibilidade de subsistirem do seu próprio trabalho” (FERREIRA JÚNIOR.; BITTAR, 2006, p. 80). 12Outras Fundações de Pesquisa de maior expressão nacional são a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), de 1964; a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), criada em 1980, e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), criada em 1985. 13A Anped (2012) organiza-se por meio de 24 Grupos de Trabalho (GTs) fixos e comporta em sua estrutura o Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Educação. Além disso, mantém um periódico internacional, a Revista Brasileira de Educação (RBE).

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processo de discussão e organização dos mais variados segmentos da sociedade política e da sociedade civil, o Brasil promulgou a sua nova Constituição (1988). Denominada de ‘Constituição Cidadã’, a nova Carta Magna brasileira define em seu artigo 208 que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de ‘ensino fundamental obrigatório e gratuito’, considerado ‘direito público subjetivo’. A efetivação desse direito, um avanço em termos de políticas públicas educacionais, proporcionou mudanças importantes na educação pública brasileira, a seguir analisadas.

A redemocratização e as políticas educacionais de caráter neoliberal

Conforme análises anteriores, o período dos governos militares empreendeu a expansão quantitativa da escola que, por sua vez, não veio acompanhada das condições indispensáveis para propiciar a aprendizagem aos alunos e para cumprir, portanto, a sua função essencial. Terminada a ditadura militar, os governos que se seguiram não cumpriram essa tarefa de interesse nacional. Uma ideia da situação pode ser obtida observando-se trechos do Relatório intitulado Um ensino que tem muito a aprender, elaborado por Jane Wreford, da Comissão de Auditoria da Inglaterra, que, a pedido do Instituto Fernand Braudel, passou um mês visitando escolas públicas paulistas na Grande São Paulo, em 2002.

Além de registrar problemas sobre a didática dos professores, a falta de foco individual no aluno devido à alta carga horária de trabalho, bem como o grande número de faltas, a rotatividade e os baixos salários, Jane Wreford acrescentou que nas duas aulas de Geografia a que assistiu, não havia sequer mapas à disposição. As bibliotecas, com uma única exceção, estavam trancadas. Embora Física, Química e Biologia fossem disciplinas do currículo, os laboratórios eram raros. Nas salas de aula do ensino fundamental, exceto uma, não havia livros de leituras para diferentes graus de habilidade, nem mesmo simples livros de histórias.

Quanto aos pontos positivos, ela realçou: a) a merenda, “[...] um grande sucesso, gratuita e apetitosa, preparada na hora, com ingredientes frescos e de alta qualidade” (WREFORD, 2003, p. 5), tornando as refeições “[...] melhores do que na maioria das escolas britânicas”( WREFORD, 2003, p. 5); b) o apoio financeiro, que aumentou “[...] nos últimos 15 anos” (WREFORD, 2003, p. 4), embora registrando o pouco que se gasta por aluno:

O Brasil gasta apenas 14% do PIB per capita para cada aluno da escola fundamental e 16% por aluno do

ensino médio, investimento muito abaixo do valor investido por muitos países desenvolvidos e em desenvolvimento (WREFORD, 2003, p. 17)14.

c) a dedicação, o “[...] talento dos indivíduos que conheci nas redes municipal e estadual, em todos os níveis, e nos sindicatos. “Conheci pessoas que enfrentam grandes desafios no compromisso de melhorar o sistema”( WREFORD, 2003, p. 6). Ela concluiu o seu relatório anotando:

As crianças e jovens que conheci nesta vasta, violenta e caótica periferia são acolhedores, inteligentes e generosos. São um recurso de que o Brasil precisa cuidar. Eles merecem melhores oportunidades (WREFORD, 2003, p. 17).

Muito do que está registrado nesse Relatório é herança da política educacional da ditadura militar. Mas não só, pois na década de 90, especialmente desde os dois governos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-1998 e 1999-2002), com a adoção de medidas neoliberais no âmbito do capitalismo globalizado, a escola pública brasileira continuou se expandindo quantitativamente, mas a ineficiência do ensino tem sido constatada pelas avaliações de desempenho adotadas pelo Estado desde então.

Quanto à transição política que marcou o fim da ditadura militar no Brasil, ela manteve traços mais conservadores do que de mudança. A eleição de um presidente de direita, Fernando Collor de Mello (PRN, 1990-1992), depois de vinte e um anos de ditadura e de lutas democráticas que forjaram lideranças progressistas e de esquerda no cenário nacional brasileiro, evidencia que a transição para a democracia transcorreu de forma conservadora, mantendo traços estruturais da formação histórica brasileira. O fato é mais significativo ainda porque o derrotado nessas primeiras eleições diretas para presidente (1989) foi Luiz Inácio Lula da Silva, cujo partido (PT) estava em franca ascensão junto aos movimentos populares. Por seu lado, envolvido em escândalo de corrupção, Fernando Collor de Mello não terminou o mandato.

Os dois governos de Fernando Henrique Cardoso adotaram medidas que expandiram as matrículas na escola pública15, mas diminuíram o 14Em abril de 2002, segundo dados da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, citados no Relatório de Jane Wreford, as despesas anuais por aluno, em todo o sistema, eram de 500 dólares. Os Estados do Nordeste gastavam menos que 150 dólares por aluno. 15A universalização da escola pública brasileira recebeu impulso no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), especialmente no ensino fundamental que, em 2004, apresentava 94,4% de Taxa de Escolarização Líquida. Esse porcentual se deve em grande parte à Constituição Brasileira de 1988 e à atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), n. 9.394/1996, que instituiu dois níveis de ensino: a) Educação Básica, formada pela Educação Infantil (zero a seis anos), Ensino Fundamental (7 a 14 anos) e Ensino Médio (15 a 17 anos); b) Educação Superior. Para Oliveira (2007, p. 674), a LDB contribuiu para essa universalização, “[...] ao explicitar a possibilidade de adoção de

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papel do Estado na educação superior ocasionando estagnação das universidades públicas além de aposentadorias precoces de professores que as deixaram para atuar nas universidades privadas, fato que prejudicou, principalmente, as universidades públicas federais. Uma das principais medidas educacionais de seu governo foi desencadear o processo de elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), prevista na Constituição Brasileira de 1988. Para Bittar, Oliveira e Morosini (2008), a aprovação dessa Lei, após oito anos de intensos debates no Congresso Nacional:

[...] constituiu-se em um marco histórico importante na educação brasileira, uma vez que esta lei reestruturou a educação escolar, reformulando os diferentes níveis e modalidades da educação. [...] desencadeou um processo de implementação de reformas, políticas e ações educacionais [...] em vez de frear o processo expansionista privado e redefinir os rumos da educação superior, contribuiu para que acontecesse exatamente o contrário: ampliou e instituiu um sistema diversificado e diferenciado, por meio, sobretudo, dos mecanismos de acesso, da organização acadêmica e dos cursos ofertados. Nesse contexto, criou os chamados cursos seqüenciais e os centros universitários; instituiu a figura das universidades especializadas por campo do saber; implantou Centros de Educação Tecnológica; substituiu o vestibular por processos seletivos; acabou com os currículos mínimos e flexibilizou os currículos; criou os cursos de tecnologia e os institutos superiores de educação, entre outras alterações (BITTAR; OLIVEIRA; MOROSINI, 2008, p. 10-11).

Um dos efeitos das reformas educacionais instituídas no governo de Fernando Henrique Cardoso foi a intensificação do processo de privatização da educação superior brasileira. Iniciada nos anos da ditadura militar, especialmente após a Reforma Universitária de 1968, a expansão desse nível de ensino colocou o Brasil como um dos países com maior índice de privatização na educação superior, na América Latina e no mundo. O Censo da Educação Superior relativo ao ano de 2008 registra que do total de 2.252 Instituições de Educação Superior (IES), somente 236 estão vinculadas ao setor público, enquanto 2.016 ao setor privado, ou seja, 90% do total. Com relação às matrículas, do total de 5.080.056 alunos, 1.273.965 estão frequentando as IES públicas, o que representa 25%; enquanto 75%, ou 3.806.091, estão matriculados em IES privadas16. É nesse nível de mecanismos como os ciclos, a aceleração de estudos, a recuperação paralela e a reclassificação, entre outras medidas [...]”. 16Para se ter uma ideia da privatização da educação superior no Brasil, deve-se verificar os dados divulgados pelo Censo da Educação Superior, relativo ao ano de 2008, os quais mostram que das dez maiores universidades brasileiras, em relação ao número de matrículas, oito eram privadas e apenas duas públicas.

ensino que o País ostenta a menor taxa de Escolarização Líquida, isto é, apenas 13% dos jovens de 18 a 24 anos frequentavam um curso superior em 2007 (IPEA, 2008). Esse sistema revela também que, apesar de a Constituição Brasileira de 1988 exigir que as universidades sejam pautadas na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, apenas 8% das IES que compõem o sistema são caracterizadas como tal, ou seja, 92% do Sistema de Educação Superior no Brasil é constituída por Faculdades, Centros Universitários, Escolas Isoladas, entre outros tipos de instituições, que não são obrigadas a desenvolver políticas de pesquisa e de pós-graduação stricto sensu. Resta, portanto, aos 8% caracterizados como ‘universidades’, o oferecimento da pesquisa e da pós-graduação; isto significa que a possibilidade do desenvolvimento da ciência, da tecnologia e do avanço do conhecimento não se estende a todo o sistema.

No que diz respeito ao período conhecido como ‘era FHC’, a SBPC (2012, p. 3) entendeu que houve “[...] uma tentativa de desmonte do sistema de ciência e tecnologia e da pós-graduação”, mediante as políticas de privatização, flexibilização e desresponsabilização implementadas pelo Estado, em consonância com as orientações emanadas dos organismos multilaterais.

Esse processo de expansão e privatização orientado pela lógica de que ao Estado caberia regular o sistema, instituiu-se um sistema complexo de avaliação de todos os níveis de ensino aumentando o seu controle com a intenção de melhorar a qualidade da educação oferecida, o que, entretanto, não aconteceu. A política de avaliação sistemática que passou a ser praticada pelo Ministério da Educação, por meio do INEP, possibilitou o conhecimento de dados dos Censos da Educação Básica e da Educação Superior e a constatação de que os níveis de aprendizagem no País, na Educação Básica, eram muito baixos, necessitando de políticas públicas mais eficazes para enfrentá-los. Quanto à Educação Superior, a constatação centrava-se na extrema desigualdade de acesso e permanência, na exclusão de milhões de jovens desse nível de ensino, em especial negros e indígenas, na privatização, e no ensino de baixa qualidade, entre outros.

Depois da instituição das reformas neoliberais na década de 90, o ex-ministro da Administração Federal e Reforma do Estado do primeiro governo de Fernando

Em termos de números significa que essas dez universidades detinham, em 2008, 686.638 matrículas de graduação. As duas públicas (Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho (Unesp) registravam apenas 82.482 matrículas, inferior à primeira (Universidade Paulista (UNIP) que, isoladamente, mantinha 166.601 matrículas de graduação. Das oito universidades privadas, apenas uma caracteriza-se como ‘comunitária/confessional/filantrópica’, a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com 34.017 alunos. As outras são universidades de caráter empresarial, com finalidade lucrativa (BRASIL, 2009).

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Henrique Cardoso surpreendentemente constatou que,

[...] a estratégia que foi imposta ao Brasil no final dos anos 1980, começo dos 1990, não funcionou. Falo da estratégia de aceitação de uma ortodoxia convencional, com o rótulo de modernidade neoliberal, e a ideia de que se fizéssemos as reformas haveria a felicidade geral da Nação (BRESSER-PEREIRA, 2006, p. 3).

Sobre a ‘ortodoxia convencional’, afirmou que é,

[...] o conjunto de diagnósticos, propostas e pressões que os países mais ricos fazem sobre os países em desenvolvimento não para nos ajudar, mas para neutralizar nossa capacidade competitiva (BRESSER-PEREIRA, 2006, p. 3).

Indagado sobre a razão de o Brasil estar estagnado desde 1980, ele respondeu indicando duas razões, uma de ordem política, outra econômica:

A resposta política: porque o Brasil perdeu a idéia de nação. E perdeu como? Perdeu ao longo da crise dos anos 80, no acordo feito nas Diretas-Já, no fracasso do Plano Cruzado, na quase hiperinflação e, claro, no fortalecimento da hegemonia americana ao longo desse período. E a outra resposta: erramos ao fazer rigorosamente o que nos disseram que era para ser feito (BRESSER-PEREIRA, 2006, p. 3).

A análise do ex-Ministro surpreende porque durante o seu governo os que formulavam a mesma crítica eram rotulados de retrógrados. Quanto ao resultado dessas políticas na área educacional, pode ser medido por meio de alguns dados oficias: a) a média brasileira no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB)17 está abaixo de quatro numa escala de um a dez; b) 55% das crianças da 4ª série não possuem o domínio da leitura; c) em 2004, a taxa de reprovação no ensino fundamental era de 13%; d) hoje, um estudante que termine o ensino médio sabe quase o mesmo que um aluno da 8ª série sabia em 1995; e) a média de gasto por aluno brasileiro no ensino fundamental é de US$ 500 (quinhentos dólares) por ano; entre os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a média é de US$ 4.800 (DOSSIÊ ESTADO, 2007). Diante desses números, é de se indagar: que qualidade tem a democracia brasileira?

Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência da República, após disputar e ser derrotado em três campanhas eleitorais, uma para Fernando Collor de Mello e duas para Fernando Henrique Cardoso. Uma de suas medidas de maior 17O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) foi criado pelo INEP, em 2007, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele reúne, “[...] num só indicador, dois conceitos igualmente importantes para a qualidade da educação: fluxo escolar e médias de desempenho nas avaliações” (IDEB, 2012, p.2).

impacto socioeducacional foi ampliar o Fundo de Desenvolvimento e Manutenção do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), criado no governo de Fernando Henrique Cardoso e que destinava recursos aos oito anos do ensino fundamental, para Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e de Valorização do Magistério (Fundeb), que abrange a Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Ao comparar as diferenças entre o Fundef e o Fundeb, José Marcelino Pinto (2007, p. 888) afirma que a “[...] principal conclusão a que se chega [...] é que o Fundeb resgatou o conceito de educação básica como um direito”. Além de o Estado investir mais em educação básica com o objetivo de melhorar a sua qualidade, o governo Lula também investiu mais na educação superior pública, especialmente no que diz respeito ao acesso, entendido como estratégia de inclusão de camadas com menor poder aquisitivo, a esse nível de ensino.

Nesse sentido, foram criadas 14 universidades públicas federais, em diversas regiões brasileiras, e foi implantado, em 2007, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni)18. Para possibilitar e ampliar o acesso e a permanência de jovens com menor poder aquisitivo à educação superior nas IES privadas, implantou-se, em 2004, o Programa Universidade Para Todos (ProUni) (PROUNI, 2012), com bolsas integrais ou parciais oferecidas pelas IES privadas, além de prever cotas a jovens negros ou indígenas. Esse conjunto de medidas mudou o perfil da educação superior no País.

Conclusão

Do panorama histórico aqui traçado, a conclusão a que se pode chegar é a de que foi mais fácil expandir o sistema do que fazê-lo cumprir sua função de promover aprendizagem às crianças e aos jovens brasileiros. Nesse início do século XXI, é possível afirmar que o Brasil tem escolas, mas o problema é que elas são precárias. Outra conclusão deste estudo é quanto ao contraste entre a pesquisa em Educação que o País conseguiu desenvolver e a qualidade da escola pública. A discrepância também é visível no fato de que, a despeito do crescimento econômico verificado desde os governos de Luiz

18De acordo com o site do MEC, o Reuni tem como “[...] principal objetivo ampliar o acesso e a permanência na educação superior”. O Programa foi instituído pelo Decreto n. 6.096, de 24 de abril de 2007, no âmbito das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), constituindo-se numa “[...] série de medidas para retomar o crescimento do ensino superior público, criando condições para que as universidades públicas federais promovam a expansão física, acadêmica e pedagógica da rede federal de educação superior” (REUNI, 2012, p. 7).

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Inácio Lula da Silva, o Brasil inicia o século XXI com 9,6% de analfabetismo adulto, o que abrange 14,533 milhões de brasileiros que não sabem ler nem escrever (ANALFABETISMO, 2010). Assim, apesar de reformas e lutas em prol da educação, ainda temos tarefas que deveriam ter sido cumpridas no século XIX e, por isso, não haveria maior homenagem que o País pudesse prestar a Paulo Freire do que ter construído um sistema escolar público, de qualidade e que proporcionasse as mesmas oportunidades a todas as crianças e jovens brasileiros. A democracia brasileira continuará carente de conteúdo social enquanto esse desafio não for cumprido. Uma população letrada e uma escola básica que cumpra a sua função de proporcionar aprendizagem e formação crítica são requisitos indispensáveis para a participação na vida nacional, estabelecendo a relação entre educação e política na sua forma mais plena, tal como preconizado historicamente pela filosofia grega: a educação para atuação na polis, que deveria romper o sentido meramente individual, visando o bem comum, isto é, da cidade, o que hoje pode ser entendido como um projeto democrático de Nação.

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Received on June 6, 2012. Accepted on June 22, 2012.

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SOBRE A NATUREZA E ESPECIFICIDADE DA EDUCAÇÃO *

Dermeval Saviani **

Sabe-se que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos. Assim sendo, a compreensão da natureza da educação passa pela com­preensão da natureza humana. Ora, o que diferencia os homens dos de­mais fenômenos, o que o diferencia dos demais seres vivos, o que o di­ferencia dos outros animais? A resposta a essas questões também já é conhecida. Com efeito, sabe-se que, diferentemente dos outros animais, que se adaptam à realidade natural tendo a sua existência garantida na turalmente, o homem necessita produzir continuamente sua própria existência. Para tanto, em lugar de se adaptar à natureza, ele tem que adaptar a natureza a si, isto é, transformá-la. E isto é feito pelo traba­lho. Portanto, o que diferencia o homem dos outros animais é o traba­lho. E o trabalho se instaura a partir do momento em que seu agente an­tecipa mentalmente a finalidade da ação. Conseqüentemente, o trabalho não é qualquer tipo da atividade, mas uma ação adequada a finalidades. É, pois, uma ação intencional.

Para sobreviver o homem necessita extrair da natureza ativa e intencional­mente os meios de sua subsistência. Ao fazer isso ele inicia o processo de transformação da natureza, criando um mundo humano (o mundo da cultura).

Dizer, pois, que a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo, urna exigência de e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho.

Assim, o processo de produção da existência humana implica, primei­ramente, a garantia da sua subsistência material com a conseqüente pro­dução, em escalas cada vez mais amplas e complexas, de bens materiais; tal processo nós podemos traduzir na rubrica “trabalho material”. En­tretanto, para traduzir materialmente, o homem necessita antecipar em idéias os objetivos da ação, o que significa que ele representa mental­mente os objetivos reais. Essa representação inclui o aspecto de conhe­cimento das propriedades do mundo real (ciência), de valorização (éti­ca) e de simbolização (arte). Tais aspectos, na medida em que são obje­tos de preocupação explicita e direta, abrem a perspectiva de uma outra categoria de produção que pode ser traduzida pela rubrica “trabalho não-material". Trata-se aqui da produção de conhecimentos, idéias, con­ceitos, valores, símbolos, atitudes, habilidades. Obviamente, a educação se situa nessa categoria do trabalho não-material, importa, porém, dis­tinguir, na produção não-material, duas modalidades. A primeira refere- se àquelas atividades em que o produto se separa do produtor como no caso dos livros e objetos artísticos. Há, pois, nesse caso, um intervalo entre a produção e o consumo, possibilitado pela autonomia entre o produto e o ato de produção, A segunda diz respeito às atividades em que o produto não se separa do ato de produção. Nesse caso, não ocorre o intervalo antes observado; o ato de produção e o ato de consumo se imbricam. É nessa segunda modalidade do trabalho não-material que se situa a educação. Podemos, pois, afirmar que a natureza da educação se esclarece a partir daí. Exemplificando: se a educação não se reduz ao ensino, é certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, participa da natureza própria do fenômeno educativo. Assim, a atividade de ensi­no, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo tempo, a presença do professor e a presença do aluno. Ou seja, o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, pro­

* Comunicação apresentada na Mesa-Redonda sobre a "Natureza e Especificida­de da Educação", realizada pelo INEP, em Brasília, no dia 5 de julho de 1984.

** Coordenador do Curso de Pós-graduação em Educação da Pontifícia Univer­sidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor da Universidade Estadual

de Campinas (UNICAMP) e consultor do Comite de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Em aberto, Brasília, ano 3, n. 22, jul./ago. 1984. 1

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duzida e consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professor e con­sumida pelos alunos).

Compreendida a natureza da educação nós podemos avançar em direção à compreensão de sua especificidade Com efeito, se a educação, perten­cendo ao âmbito do trabalho não-material, tem a ver com conhecimen­tos, idéias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades, tais elementos, entretanto, não lhe interessam em si mesmos, como algo exterior ao homem.

Nessa forma, isto é, considerados em si mesmos, como algo exterior ao homem, esses elementos constituem o objeto de preocupação das cha­madas ciências humanas, ou seja, daquilo que Dilthey denomina de "ciências do espírito" por oposição às "ciências da natureza". Diferen­temente, do ponto de vista da educação, ou seja, da perspectiva da pe­dagogia entendida como ciência da educação, esses elementos interes­sam enquanto é necessário que os homens os assimilem, tendo em vista a constituição de algo como uma segunda natureza. Portanto, o que não é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens; e aí se incluem os próprios homens. Podemos, pois, dizer que a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica. Conseqüentemente, o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singu­lar, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo con­junto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um la­do, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se formem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.

Quanto ao primeiro aspecto (a identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados), trata-se de distinguir entre o essencial e o acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório. Aqui me parece de grande importância, em pedagogia, a noção de "clássico". O "clássico" não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é aqui­lo que se firmou como fundamental, como essencial. Pode, pois, se

constituir num critério útil para a seleção dos conteúdos do trabalho pe­dagógico.

Quanto ao segundo aspecto (a descoberta das formas adequadas de de­senvolvimento do trabalho pedagógico), trata-se da organização dos meios (conteúdos, espaço, tempo e procedimentos) através dos quais, progressivamente, cada indivíduo singular realize, na forma da segunda natureza, a humanidade produzida historicamente.

Considerando, como já foi dito, que se a educação não se reduz ao ensi­no e este, sendo um aspecto da educação, participa da natureza própria do fenômeno educativo, creio ser possível ilustrar as considerações ge­rais acima apresentadas com o caso da educação escolar. Este exemplo me parece legítimo porque a própria institucionalização do pedagógico através da escola é um indício da especificidade da educação, uma vez que, se a educação não fosse dotada de identidade própria seria impos­sível a sua institucionalização. Nesse sentido, a escola configura-se numa situação privilegiada, a partir da qual podemos detectar a dimensão pe­dagógica que subsiste imbricada no interior da prática social global.

Peço, pois, licença para reapresentar aqui as considerações que fiz no ano passado, em Olinda, por ocasião do III Encontro Nacional do Pro­grama Alfa (ENPA). Ali, ao tratar do papel da escola básica, parti do seguinte: a escola é uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado.

Vejam bem: eu disse saber sistematizado; não se trata, pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento elabora­do e não ao conhecimento espontâneo; ao saber sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular.

Em suma, a escola tem a ver com o problema da ciência. Com efeito, ciência é exatamente o saber metódico, sistematizado. A esse respeito é ilustrativo o modo como os gregos consideravam essa questão. Em gre­go, temos três palavras referidas ao fenômeno do conhecimento: doxa (δόξα), sofia (σοφία) e episteme (ἐπιστήμη). Doxa significa opinião,

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isto é, o saber próprio do senso comum, o conhecimento espontâneo li­gado diretamente à experiência cotidiana, um claro-escuro, misto de verdade e de erro. Sofia é a sabedoria fundada numa longa experiência de vida. É nesse sentido que se diz que os velhos são sábios e que os jo­vens devem ouvir seus conselhos. Finalmente, episteme significa ciência, isto é, o conhecimento metódico e sistematizado. Conseqüentemente, se do ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sábio do que um jo­vem, do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sábio do que um velho.

Ora, a opinião, o conhecimento que produz palpites, não justifica a existência da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada na experiên­cia de vida dispensa e até mesmo desdenha a experiência escolar, o que, inclusive, chegou a se cristalizar em ditos populares como: "mais vale a prática do que a gramática" e "as crianças aprendem apesar da escola". É a exigência de apropriação do conhecimento sistematizado por parte das novas gerações que torna necessária a existência da escola.

A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber. As atividades da escola básica devem se organizar a partir dessa questão. Se chamarmos isso de currículo, po­deremos então afirmar que é a partir do saber sistematizado que se es­trutura o currículo da escola elementar. Ora, o saber sistematizado, a cultura erudita, é uma cultura letrada. Daí que a primeira exigência para o acesso a esse tipo de saber é aprender a ler e escrever. Além disso, é preciso também aprender a linguagem dos números, a linguagem da na­tureza e a linguagem da sociedade. Está aí o conteúdo fundamental da escola elementar: ler, escrever, contar, os rudimentos das ciências natu­rais e das ciências sociais (história e geografia humanas).

A essa altura vocês podem estar afirmando: mais isso é o óbvio. Exata­mente, é o óbvio. E como é freqüente acontecer com tudo o que é óbvio, ele acaba sendo esquecido ou ocultando, na sua aparente simpli­cidade, problemas que escapam à nossa atenção. E esse esquecimento, essa ocultação, acabam por neutralizar os efeitos da escola no processo de democratização.

Em aberto, Brasília, ano 3, n. 22, jul./ago. 1984.

Vejamos o problema já a partir da própria noção de currículo. De uns tempos para cá se disseminou a idéia de que currículo é o conjunto das atividades desenvolvidas pela escola. Portanto, currículo se diferencia de programa ou de elenco de disciplinas; segundo essa acepção, currículo é tudo o que a escola faz; assim, não faria sentido falar em atividades ex­tracurriculares. Recentemente, fui levado a corrigir essa definição acres­centando-lhe o adjetivo "nucleares". Com essa retificação a definição, provisoriamente, passaria a ser a seguinte: currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola. E por que isto? Porque, se tudo o que acontece na escola é currículo, se se apaga a diferença en­tre curricular e extracurricular, então tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre-se o caminho para toda sorte de tergiversações, inversões e confusões que terminam por descaracterizar o trabalho escolar. Com isso, facilmente, o secundário pode tomar o lugar daquilo que é princi­pal, deslocando-se, em conseqüência, para o âmbito do acessório aque­las atividades que constituem a razão de ser da escola. Não é demais lembrar que esse fenômeno pode ser facilmente observado no dia-a-dia das escolas. Dou apenas um exemplo: o ano letivo começa na segunda quinzena de fevereiro e já em março temos a semana da revolução; em seguida, a semana santa, depois, a semana das mães, as festas juninas, a semana do soldado, semana do folclore, semana da pátria, jogos da pri­mavera, semana da criança, semana do índio, etc., semana da asa... e nesse momento já estamos em novembro. O ano letivo se encerra e esta­mos diante da seguinte constatação: fez-se de tudo na escola; encon­trou-se tempo para toda espécie de comemoração, mas muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmissão-assimilação de conheci­mentos sistematizados. Isto quer dizer que se perdeu de vista a atividade nuclear da escola, isto é, a transmissão dos instrumentos de acesso ao saber elaborado.

É preciso, pois, ficar claro que as atividades distintivas das semanas, aci­ma enumeradas, são secundárias e não essenciais à escola. Enquanto tais, são extracurriculares e só têm sentido na medida em que possam enriquecer as atividades curriculares, isto é, aquelas próprias da escola, não devendo em hipótese alguma prejudicá-las ou substituí-las. Das con­siderações feitas, resulta importante manter a diferenciação entre ativi­

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dades curriculares e extracurriculares, já que esta é uma maneira de não perdermos de vista a distinção entre o que é principal e o que é secundá­rio.

Essa questão tem desdobramentos ainda de outras ordens. Assim, por exemplo, em nome desse conceito ampliado de currículo a escola se tor­nou um mercado de trabalho disputadíssimo pelos mais diferentes tipos de profissionais (nutricionistas, dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, artistas, assistentes sociais, etc.) e uma nova inversão se opera. De agên­cia destinada a atender o interesse da população em ter acesso ao saber sistematizado, a escola se torna uma agência a serviço de interesses cor­porativistas ou clientelistas. E se neutraliza, mais uma vez, agora por um outro caminho, o seu papel no processo de democratização.

A esta altura é necessário comentar ainda uma possível objeção: até que ponto essa concepção que estou expondo não configura uma proposta pedagógica tradicional? Quer-se com isso voltar à velha escola já tão exaustivamente criticada? E onde fica a criatividade, a iniciativa dos alu­nos, o ensino ativo? Tal objeção é inevitável àqueles educadores que fo­ram de algum modo influenciados pelo movimento da Escola Nova. E nós sabemos que tal movimento, a nível de ideário, teve grande penetra­ção em nosso país.

Para encaminhar a resposta á objeção acima formulada, parece-me útil recordar aqui uma passagem de Gramsci, escrita na mesma época em que no Brasil se lançava o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932). Escreveu ele: "Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma dada pelo método Dalton. Toda escola unitária é escola ativa, se bem que seja necessário limitar as ideologias libertárias neste campo (...). Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na qual os elementos de luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilata­ram morbidamente por causa do contraste e da polêmica; é necessário entrar na fase 'clássica', racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural pare elaborar os métodos e as formas" (Gramsci, A. Os intelec­tuais e a organização da cultura, p. 124).

Às vezes me dá a impressão de que, passados mais de cinqüenta anos, continuamos ainda na fase romântica. Não entramos na fase clássica, E o que é fase clássica? É a fase em que ocorreu uma depuração, superan do-se os elementos próprios da conjuntura polêmica a recuperando-se aquilo que tem caráter permanente, isto é, que resistiu aos embates do tempo. Clássico, em verdade, é o que resistiu ao tempo. É nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como sendo clássica, que Descartes é um clássico da filosofia, Dostoievski é um clássico da literatura univer­sal, Machado de Assis um clássico da literatura brasileira, etc.

Ora, clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematiza­do. Este é o fim a atingir. É aí que cabe encontrar a fonte natural para elaborar os métodos e as formas de organização do conjunto das ativi­dades da escola, isto é, do currículo. E aqui nós podemos recuperar o conceito abrangente de currículo (organização do conjunto das ativida­des nucleares distribuídas no espaço e tempo escolares). Um currículo é, pois, uma escola funcionando, quer dizer, uma escola desempenhan­do a função que lhe é própria.

Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do saber sistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão e assimilação, isso implica dosá-lo e seqüenciá-lo de modo que a criança passe gradativamente do seu não-domínio ao seu domínio. Ora, o saber dosado e sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no es­paço escolar, ao longo de um tempo determinado, é o que nós conven­cionamos chamar de "saber escolar".

Tendo claro que é o fim a atingir que determina os métodos e processos de ensino-aprendizagem, compreende-se o equívoco da Escola Nova em relação ao problema da atividade e da criatividade. Com efeito, a crítica ao ensino tradicional era justa, na medida em que esse ensino perdeu de vista os fins, tornando mecânicos e vazios de sentido os conteúdos que transmitia. A partir dai, a Escola Nova tendeu a considerar toda trans­missão de conteúdo como mecânica e todo mecanismo como anticria­tivo, assim como todo automatismo como negação da liberdade.

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Entretanto, é preciso entender que o automatismo é condição da liber­dade e que não é possível ser criativo sem dominar determinados meca­nismos. Isto ocorre com o aprendizado nos mais diferentes níveis e com o exercício de atividades também as mais diferentes. Assim, por exem­plo, para se aprender a dirigir automóvel é preciso repetir constante­mente os mesmos atos até se familiarizar com eles. Depois já não será necessária a repetição constante. De quando em quando, praticam-se esses atos com desenvoltura, com facilidade. Entretanto, no processo de aprendizagem, tais atos, aparentemente simples, exigiram razoável con­centração e esforço até que fossem fixados e passassem a ser exercidos, por assim dizer, automaticamente. Por exemplo, para se mudar a mar­cha com o carro em movimento é necessário acionar a alavanca com a mão direita sem se descuidar do volante, que será controlado com a mão esquerda, ao mesmo tempo que se pressiona a embreagem com o pé esquerdo e, concomitantemente, se retira o pé direito do acelerador. A concentração da atenção exigida para realizar a sincronia desses movi­mentos absorve todas as energias. Por isso o aprendiz não é livre ao diri­gir. No limite, eu diria mesmo que ele é escravo dos atos que tem que praticar. Ele não os domina, mas, ao contrário, é dominado por eles, A liberdade só será atingida quando os atos forem dominados. E isto ocor­re no momento em que os mecanismos forem fixados. Portanto, por pa­radoxal que pareça, é exatamente quando se atinge o nível em que os atos são praticados automaticamente que se ganha condições de se exer­cer, com liberdade, a atividade que compreende os referidos atos, En- tão, a atenção se liberta, não sendo mais necessário tematizar cada ato. Nesse momento é possível não apenas dirigir livremente, mas também ser criativo no exercício dessa atividade. E só se chega a esse ponto quando o processo de aprendizagem, enquanto tal, se completou. Por isso, é possível afirmar que o aprendiz, no exercício daquela atividade que é o objeto de aprendizagem, nunca é livre. Quando ele for capaz de exercê-la livremente, nesse exato momento ele deixou de ser aprendiz. As considerações supra podem ser aplicadas em outros domínios, como por exemplo, aprender a tocar um instrumento musicai, etc.

Ora, esse fenômeno está presente também no processo de aprendizagem através do qual se dá a assimilação do saber sistematizado, como o ilus­tra, de modo eloqüente, o exemplo da alfabetização. Também aqui é

Em aberto, Brasília, ano 3. n. 22. jul./ago. 1984.

necessário dominar os mecanismos próprios da linguagem escrita. Tam­bém aqui é preciso fixar certos automatismos, incorporá-los, isto é, torná-los parte de nosso próprio corpo, de nosso organismo, integrá-los em nosso próprio ser. Dominadas as formas básicas, a leitura e a escrita podem fluir com segurança e desenvoltura. Na medida em que vai se libertando dos aspectos mecânicos, o alfabetizando pode, progressiva­mente, ir concentrando cada vez mais sua atenção no conteúdo, isto é, no significado daquilo que é lido ou escrito. Note-se que libertar-se, aqui, não tem o sentido de livrar-se, quer dizer, abandonar, deixar de lado os ditos aspectos mecânicos. A libertação só se dá porque tais as­pectos foram apropriados, dominados e internalizados, passando, em conseqüência, a operar no interior de nossa própria estrutura orgânica, Poder-se-ia dizer que o que ocorre, nesse caso, é uma superação no sen­tido dialético da palavra. Os aspectos mecânicos foram negados por in­corporação e não por exclusão. Foram superados porque negados en­quanto elementos externos e afirmados como elementos internos.

O processo acima descrito indica que só se aprende, de fato, quando se adquire um habitus, isto é, uma disposição permanente, ou, dito de ou­tra forma, quando o objeto de aprendizagem se converte numa espécie de segunda natureza. E isso exige tempo e esforços por vezes ingentes. A expressão "segunda natureza" me parece sugestiva justamente porque nós, que sabemos ler e escrever, tendemos a considerar esses atos como naturais. Nós os praticamos com tamanha naturalidade que sequer con­seguimos nos imaginar desprovidos dessas características. Temos mesmo dificuldade em nos recordar do período em que éramos analfabetos. As coisas se passam como se se tratasse de uma habilidade natural e espon­tânea. E no entanto trata-se de uma habilidade adquirida e, frise-se, não de modo espontâneo. A essa habilidade só se pode chegar por um pro­cesso deliberado e sistemático. Por aí se pode perceber porque o melhor escritor não será, apenas por este fato, o melhor alfabetizador. Um gran­de escritor atingiu tal domínio da língua que terá dificuldade em com­preender os percalços de um alfabetizando diante de obstáculos que, para ele, inexistem ou, quando muito, não passam de brincadeira de criança. Para que ele se converta num bom alfabetizador será necessá­rio aliar, ao domínio da língua, o domínio do processo pedagógico in­dispensável para se passar da condição de analfabeto à condição de alfa­

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betizado. Com efeito, sendo um processo deliberado e sistemático, ele deverá ser organizado. O currículo deverá traduzir essa organização dis­pondo o tempo, os agentes e os instrumentos necessários para que os esforços do alfabetizando sejam coroados de êxito.

Adquirir um habitus significa criar uma situação irreversível. Para isso, porém, é preciso insistência e persistência; faz-se mister repetir muitas vezes determinados atos até que eles se fixem. Não é, pois, por acaso que a duração da escola primária é fixada em todos os países em pelo menos quatro anos. Isso indica que esse tempo é o mínimo indispensá­vel. Pode-se chegar a conseguir decifrar a escrita, a reconhecer os códi­gos em um ano, assim como com algumas lições práticas será possível dirigir um automóvel. Mas do mesmo modo que a interrupção, o aban­dono do volante antes que se complete a aprendizagem determinará uma reversão, também isso ocorre com o aprendizado da leitura. Inver­samente, completado o processo, adquirido o habitus, atingida a segun­da natureza, a interrupção da atividade, ainda que por longo tempo, não acarreta a reversão. Conseqüentemente, se é possível supor, na escola básica, que a identificação e reconhecimento dos mecanismos elemen­tares possa se dar no primeiro ano, a fixação desses mecanismos supõe uma continuidade que se estende por pelo menos mais três anos. É im­portante assinalar que essa continuidade se dará através do conjunto do currículo da escola elementar. A criança passará a estudar Ciências Natu­rais, História, Geografia, Aritmética através da linguagem escrita, isto é, lendo e escrevendo de modo sistemático. Dá-se, assim, o seu ingresso no universo letrado. Em suma, pela mediação da escola, dá-se a passa­gem do saber espontâneo ao saber sistematizado, da cultura popular à cultura erudita. Cumpre assinalar, também aqui, que se trata de um mo­vimento dialético, isto é, a ação escolar permite que se acrescentem no­vas determinações que enriquecem as anteriores e estas, portanto, de forma alguma são excluídas. Assim, o acesso à cultura erudita possibi­

lita a apropriação de novas formas através das quais se pode expressar os próprios conteúdos do saber popular. Cabe, pois, não perder de vista o caráter derivado da cultura erudita por referência à cultura popular, cuja primazia não é destronada. Sendo uma determinação que se acres­centa, a restrição do acesso à cultura erudita conferirá, àqueles que dela se apropriam, uma situação de privilégio, uma vez que o aspecto popu­lar não lhes é estranho. A recíproca, porém, não é verdadeira: os mem­bros da população marginalizados da cultura letrada tenderão a encará-la como uma potência estranha que os desarma e domina.

O que foi dito acima a respeito da escola, em que sobressai o aspecto re­lativo ao conhecimento elaborado (ciência), parece-me ser válido tam­bém para outras modalidades de prática pedagógica, voltadas precípua- mente para outros aspectos, tais como o desenvolvimento da valoriza­ção e simbolização.

Em conclusão: a compreensão da natureza da educação enquanto um trabalho não-material cujo produto não se separa do ato de produção nos permite situar a especificidade da educação como referida aos co­nhecimentos, idéias, conceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos sob o aspecto de elementos necessários á formação da humanidade em cada indivíduo singular, na forma de uma segunda natureza, que se produz, deliberada e intencionalmente, através de relações pedagógicas histori­camente determinadas que se travam entre os homens.

A partir daí se abre também a perspectiva da especificidade dos estudos pedagógicos (ciência da educação) que, diferentemente das ciências da natureza (preocupadas com a identificação dos fenômenos naturais) e das ciências humanas (preocupadas com a identificação dos fenômenos culturais), preocupa-se com a identificação dos elementos naturais e culturais necessários à constituição da humanidade em cada ser humano e à descoberta das formas adequadas ao atingimento desse objetivo.

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