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[Digite texto] Racionalização e transformação sociocultural em comunidades pesqueiras no Nordeste do Brasil Rubens Elias da Silva 1 Professor Adjunto do Programa de Antropologia e Arqueologia Instituto de Ciências da Sociedade / UFOPA. RESUMO Este artigo discute o processo de transformação sociocultural ocorrido nas comunidades ribeirinhas da Casa Branca e São Lourenço localizadas no município de Bayeux, Paraíba, Brasil a partir da dominação racional do mundo natural, à luz da discussão clássica desenvolvida por Max Weber. Podemos afirmar que a relação entre estes agentes sociais e o espaço natural se reconfigurou no modo como “esse espaço” é interpretado e dominado pelos ribeirinhos engajados na produção pesqueira familiar e grupal. O surgimento de doutrinas neopentecostais encetaram práticas sociais que enfraqueceram a solidariedade entre os diversos grupos que compõem essas comunidades e a decadência econômica coincide com a instalação dessas igrejas no bairro. A pergunta central consiste de que modo essas transformações sociais afetaram a cultura local, fortemente assentada na mediação de narrativas míticas como construção social de regras e recursos para a obtenção dos recursos pesqueiros e como os agentes sociais interagem entre si? A pesquisa de campo teve abordagem centrada na observação participante e uso de questionários abertos. Segundo análise qualitativa, nas duas comunidades operam formas de relações sociais de intervenção no espaço natural: a ruptura com os preceitos do Pai do Mangue pode acarretar transformações ecológicas nessas comunidades, pois o espaço natural passou a ser enxergado como locus de dominação e exploração dos recursos, pois as condutas de vida racionalizadas possibilitam o agravamento dos danos ambientais e o risco das gerações futuras serem alijadas do patrimônio cultural que simboliza as relações sociais e culturais que os ribeirinhos estabelecem com o manguezal. PALAVRAS-CHAVE: racionalismo; teoria social weberiana; pesca; narrativa mítica; neopentecostalismo. ABSTRACT This paper discusses the social and cultural process of change occurred due to the racional domination of the natural space in riverine communities of Casa Branca and São Lourenço located in Bayeux town, Paraíba, Brazil in the light of the classic discussion developed by Max Weber. We can say “that space” is interpreted and dominated by riparian engaged in group and family fishing production. The emergence of Neo- Pentecostal doctrines originated social practices that weakened the solidarity between the different groups that make up these communities and the economic decline coincides with the installation of these churches in the neighborhood. The central question is how these social changes so affected the local culture, strongly settled in the mediation of mythical narratives as a social construction of rules and resources to obtain the fishing resources? And how social agents interact with each other? The research was centered in the participant observation approach and in the use of surveys. According to qualitative analysis, the two communities operate social relations of intervention in the natural space: the break with the precepts of Mangrove Father can cause ecological changes in these communities because the natural space came to be seen as a locus of domination and exploitation of resources considering that rationalized pratices of life allow the worsening of environmental damage and the risk of future generations be far from their cultural heritage, what symbolizes the social and cultural relations that they establish with the coastal mangroves. KEYWORDS: rationalism; Weber’s social theory; fishing; mythic narrative; neopentecostalism 1 Doutor em Sociologia pelo PPGS da Universidade Federal da Paraíba. Professor Adjunto do Programa de Antropolo- gia e Arqueologia do Instituto de Ciências da Sociedade da Universidade Federal do Oeste do Pará. Contato: [email protected].

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Racionalização e transformação sociocultural em comunidades pesqueiras no Nordeste do Brasil

Rubens Elias da Silva1

Professor Adjunto do Programa de Antropologia e Arqueologia

Instituto de Ciências da Sociedade / UFOPA.

RESUMO

Este artigo discute o processo de transformação sociocultural ocorrido nas comunidades ribeirinhas da Casa

Branca e São Lourenço – localizadas no município de Bayeux, Paraíba, Brasil – a partir da dominação

racional do mundo natural, à luz da discussão clássica desenvolvida por Max Weber. Podemos afirmar que a

relação entre estes agentes sociais e o espaço natural se reconfigurou no modo como “esse espaço” é

interpretado e dominado pelos ribeirinhos engajados na produção pesqueira familiar e grupal. O surgimento

de doutrinas neopentecostais encetaram práticas sociais que enfraqueceram a solidariedade entre os diversos

grupos que compõem essas comunidades e a decadência econômica coincide com a instalação dessas igrejas

no bairro. A pergunta central consiste de que modo essas transformações sociais afetaram a cultura local,

fortemente assentada na mediação de narrativas míticas como construção social de regras e recursos para a

obtenção dos recursos pesqueiros e como os agentes sociais interagem entre si? A pesquisa de campo teve

abordagem centrada na observação participante e uso de questionários abertos. Segundo análise qualitativa,

nas duas comunidades operam formas de relações sociais de intervenção no espaço natural: a ruptura com os

preceitos do Pai do Mangue pode acarretar transformações ecológicas nessas comunidades, pois o espaço

natural passou a ser enxergado como locus de dominação e exploração dos recursos, pois as condutas de vida

racionalizadas possibilitam o agravamento dos danos ambientais e o risco das gerações futuras serem alijadas

do patrimônio cultural que simboliza as relações sociais e culturais que os ribeirinhos estabelecem com o

manguezal.

PALAVRAS-CHAVE: racionalismo; teoria social weberiana; pesca; narrativa mítica; neopentecostalismo.

ABSTRACT

This paper discusses the social and cultural process of change occurred due to the racional domination of the

natural space in riverine communities of Casa Branca and São Lourenço – located in Bayeux town, Paraíba,

Brazil – in the light of the classic discussion developed by Max Weber. We can say “that space” is interpreted

and dominated by riparian engaged in group and family fishing production. The emergence of Neo-

Pentecostal doctrines originated social practices that weakened the solidarity between the different groups

that make up these communities – and the economic decline coincides with the installation of these churches

in the neighborhood. The central question is how these social changes so affected the local culture, strongly

settled in the mediation of mythical narratives as a social construction of rules and resources to obtain the

fishing resources? And how social agents interact with each other? The research was centered in the

participant observation approach and in the use of surveys. According to qualitative analysis, the two

communities operate social relations of intervention in the natural space: the break with the precepts of

Mangrove Father can cause ecological changes in these communities because the natural space came to be

seen as a locus of domination and exploitation of resources considering that rationalized pratices of life allow

the worsening of environmental damage and the risk of future generations be far from their cultural heritage,

what symbolizes the social and cultural relations that they establish with the coastal mangroves.

KEYWORDS: rationalism; Weber’s social theory; fishing; mythic narrative; neopentecostalism

1 Doutor em Sociologia pelo PPGS da Universidade Federal da Paraíba. Professor Adjunto do Programa de Antropolo-

gia e Arqueologia do Instituto de Ciências da Sociedade da Universidade Federal do Oeste do Pará.

Contato: [email protected].

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INTRODUÇÃO: das comunidades e dos mangues

Este artigo busca discutir o processo de transformação sociocultural ocorrido nas

comunidades ribeirinhas da Casa Branca e São Lourenço – localizadas no município de Bayeux, na

Paraíba – a partir da dominação racional do mundo natural pelos pescadores, marisqueiras e

lenhadores destas comunidades em suas atividades cotidianas de trabalho. Podemos afirmar que a

relação entre estes agentes sociais e o espaço natural se reconfigurou no que concerne ao modo

como “esse espaço” é apreendido, dominado e interpretado por uma parcela significativa de

ribeirinhos engajados na produção pesqueira familiar e grupal, amalgamadas como rede de

potencialidades de acesso aos recursos e apoio moral frente às adversidades externas (Kant de Lima

1997; Harris 2006). Esta discussão empírica e teórica é herança de meu projeto de Doutoramento

em Sociologia defendido no PPGS – UFPB e que não foi levado a cabo2. No texto Sob o olhar do

Pai do Mangue: ensaio sociológico sobre a relação homem x sociedade através da mediação de

narrativas míticas (Silva 2011), investigo como o mito do Pai do Mangue articula estruturalmente as

relações simbólicas de trabalho entre os pescadores e marisqueiras do estuário do rio Paroeira,

município de Bayeux. Os ribeirinhos – reporto-me ao campo amostral dos que acreditam no poder

simbólico do Pai do Mangue – acreditam que esta divindade pode, tanto castigar quanto oferecer

benefícios, àqueles que se embrenham no rio e mangue para extrair daí os recursos capazes de

assegurar a reprodução social. Outros autores apontam em etnografias a prevalência de seres

encantados (Vaz e Carvalho 2013) ou na antropomorfização da natureza e seus componentes como

parte dos padrões culturais (Benedict 2013) que organizam e ordenam o espaço da produção

pesqueira, tais como (Robben 1989; Silva 2000; Leite 2000).

As comunidades estão localizadas no perímetro urbano de Bayeux, o que torna o

cotidiano dos comunitários uma dinâmica troca de “bens culturais” (Bourdieu, 1999), permitindo

sua reprodução social e cultural. Estas comunidades, no entanto, têm características semelhantes às

comunidades tradicionais, elencadas por Diegues (2004): organização econômica e social com

reduzida acumulação de capital, não usando a força de trabalho assalariado, conhecimento profundo

acerca dos recursos naturais, seus ciclos biológicos, hábitos alimentares. Conforme a definição

deste autor, outras características presentes em comunidades tradicionais é o fato de terem

dependência econômica dos recursos que a natureza oferece; o conhecimento ser transmitido

oralmente em contextos intergeracionais; produção de mercadoria pouco desenvolvida, implicando

2Em seu lugar, dediquei-me a investigar memória social de sociedades costeiras do sul do Rio Grande do Norte e o

processo de vulnerabilidade social a que estas estão imersas. No entanto, sinto-me no imperativo de discutir o processo

de racionalização na produção da pesca estuarina mediante a relação sociedade e espaço natural.

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numa estreita relação com o mercado e numa consequente tecnologia simples de trabalho. Essa

relação que os comunitários mantêm com a natureza, segundo este autor, resulta na assimilação de

uma forma distinta de sociabilidade, denominada como “modo de vida” (ibidem: 89). Em certa

medida, as comunidades ribeirinhas localizadas em áreas de manguezal possuem padrões culturais

semelhantes às sociedades caboclas na Amazônia: são uma categoria social que explora os recursos

ambientais de modo a atender as necessidades sociais e cuja cultura é articulada na crença em seres

encantados que habitam o espaço natural no entorno dessas comunidades (Harris 2006), e que estes

seres têm uma forte relação com a defesa do espaço natural, pois trata-se de sua casa (Vaz e

Carvalho 2013).

No entanto, ao longo da pesquisa de campo, constatou-se que parte dos ribeirinhos

contatados – doze interlocutores – afirmavam não acreditar na efetividade da narrativa mítica como

processualidade simbólica de intervenção e organização do espaço de trabalho pesqueiro. Nesse

ínterim, iniciei meu trabalho de campo na comunidade São Lourenço, também no município de

Bayeux, na Paraíba, naquele momento como requisito do cumprimento da pesquisa de

Doutoramento em Sociologia, obtendo dados interessantes para serem analisados e que me sinto no

imperativo de estudá-los e divulgá-los à comunidade acadêmica.

Os locii da pesquisa são as comunidades da Casa Branca e São Lourenço, localizadas às

margens do Rio Paroeira, afluente do Rio Paraíba. A Casa Branca tem cerca de 2.500 habitantes e

parte desta população tem sua renda familiar proveniente de atividades vinculadas à pesca, extração

de marisco, ostras, captura de caranguejo-uçá e aratu, conforme observou estudo de Silva (2011). A

comunidade do São Lourenço limita-se ao norte com o manguezal, ao sul com o Jardim São

Severino e, a leste, com o Porto do Moinho. O São Lourenço era conhecido como “Cachimbo

Apagado” porque os moradores não tinham concessão de eletricidade nas suas residências, sendo

obrigados a acenderem fogueiras com derivados do coco para afugentarem mosquitos e outros

insetos, bastante comuns em regiões de manguezal. Tanto a comunidade da Casa Branca e São

Lourenço são percebidas por “agentes externos” como lugares insalubres, feios e extremamente

violentos. Basta frisar que a Casa Branca é denominada pelos forasteiros como “Rua do Cacete3”,

enxergando “a pobreza” como espaço da desordem e da falta de regras instituídas. Entre as décadas

de 70 e 90 do século passado, ambas as comunidades, distantes entre si e separadas por quarteirões

de fábricas de beneficiamento de sisal – importante renda econômica do município naquelas

décadas, hoje em franca decadência – tinham população reduzida, circunscritas num nucleamento

de vizinhança entre familiares, parentes próximos e distantes. As relações sociais dentro dessas

comunidades eram estabelecidas a partir de laços de solidariedade e reconhecimento do outro como

3 Cacete, no português brasileiro local, significa agressão física.

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“alguém próximo e que eu controlo a partir da vigilância ocular”. No fim da década de 90 esse

quadro social transformou-se, uma vez que essas comunidades vivenciaram um “inchaço” na sua

população e que refletiu nas formas de organização social do grupo e de suas estratégias de

reprodução social, fenômeno estudado por Britto (1999) entre sociedades de pesca em Arraial do

Cabo, no Rio de Janeiro, Starr (1977) em comunidades pesqueiras libanesas num contexto de

modernização e obsolescência tecnológica, (Silva 2012; Miller, 2002), entre comunidades costeiras

do sul potiguar brasileiro, apenas para citar alguns.

É oportuna uma descrição dos espaços de sociabilidades dessas duas comunidades numa

análise diacrônica (décadas de 80 à primeira década dos anos 2000), para compreender-se os

condicionantes das transformações sociais ocorridas nas relações entre agentes sociais, espaços de

produção da pesca e sistema cultural, entendidas como o mundo de valores que orientam e dão

sentido às relações de produção pesqueira. Nos anos oitenta, a atividade de captura do caranguejo

assumia relevância de reprodução social e cultural, açambarcando toda uma rede de solidariedade

entre familiares e vizinhos, no São Lourenço. A pesca de peixes, captura de outros tipos de

crustáceos (siri, guaiamum, aratu) e a extração de madeira do manguezal perfaziam importância

econômica secundária. A retirada de madeira era mais pronunciada nos meses de maio e junho em

virtude das Festas Juninas. O rio Paroeira, segundo muitos moradores, dentre eles, Piaba, “era limpo

feito o dia, dava para ver o fundo”. A obtenção dos recursos do manguezal, segundo Josefa, “era

abundante, todo dia a gente pegava caranguejo e quando trovejava vinham para a rua, bastava catar

e cozinhar. Antigamente tinha muito peixe, muito caranguejo, hoje tem gente aí passando

necessidade”. Desta forma, o passado e o presente colidiam por externarem significâncias distintas

para os moradores, numa relação de fartura-famitura e o futuro configurando-se como incerto, “não

sei o que vai ser da gente amanhã”, falou-nos Isabel. O São Lourenço estende-se ao longo da

margem do rio e a população não chegava a seis mil habitantes. Havia uma olaria no início do

bairro. Sua desativação e consequente destruição é uma metáfora para entender-se as radicais

transformações ocorridas numa ordem social calcada no trabalho artesanal e o aparecimento de uma

população que vende sua força de trabalho ao capital, desempregada ou semiempregada – os

homens trabalhando nas fábricas, nas construções de casas, no comércio ambulante; as mulheres,

em sua maioria, trabalhando como domésticas. O momento social mais marcante para os moradores

era o último dia de maio, com a coroação de Nossa Senhora. Crianças vestiam-se de anjos, com

suas roupas de cetim azul celeste, veneravam a imagem de Nossa Senhora. A decadência econômica

coincide, com novas experiências religiosas, a partir da instalação de igrejas neopentecostais no

bairro. Como veremos a seguir, sustentamos que essas novas experiências com relação ao sagrado

vão criar dispositivos culturais outros que passarão a dar sentidos diversos à atividade pesqueira e

que incidem nas relações entre grupos dentro da comunidade.

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As experiências individuais e coletivas da produção da pesca na comunidade da Casa

Branca ao longo dos vinte anos analisados aqui assumiram uma configuração própria; no entanto,

ao serem investigadas em conjunto com as dinâmicas vividas pelos moradores do São Lourenço nos

permitirão compreender o processo social da transformação do modo como os ribeirinhos conferem

sentido às suas ações no espaço socializado, sentido este marcado pela “racionalização” não só do

trabalho, mas da vida como fato social total (Mauss 2001). A comunidade da Casa Branca estende-

se ao longo do rio Paroeira, no sentido leste-oeste. Saindo de canoa a rema do São Lourenço – que

está na montante do Paroeira – descendo o rio, chega-se à Casa Branca em cerca de trinta minutos.

A principal produção econômica na comunidade era a captura, processamento e beneficiamento do

caranguejo para a venda a restaurantes, bares e supermercados. O caranguejo era capturado das

lamas do manguezal ou até mesmo dentro da mata. Homens e mulheres habilidosos embrenhavam-

se nas lamas, enfiando o braço na “toca”4 onde morava o crustáceo. Os caranguejeiros me disseram

que identificavam o buraco que tinha caranguejo por conta da presença de fezes na entrada da toca.

Eles punham o caranguejo num saco plástico emalhado – permitia que o crustáceo respirasse – e

assim levavam a captura para casa. Então, acendiam uma fogueira no fundo do quintal – geralmente

de frente para o rio – e punham os caranguejos numa panela grande para cozinhar. Cozidos, os

caranguejos eram levados para o “aceiro” da rua, para a coletividade extrair a carne do caranguejo –

mais valorizada que o crustáceo em si. Lonas imensas eram jogadas ao longo da rua principal e os

caranguejos ficavam dispostos nessa lona para serem “descatembados”5.

Assim, a produção familiar da captura do caranguejo assumia o caráter coletivo, de

solidariedade social para a coesão grupal. Era bastante comum o sistema de rodízio no

beneficiamento do caranguejo, o que permite dizer que a produção econômica gerada pelos recursos

disponíveis no manguezal encetava formas eficazes de reprodução social atreladas a redes de

cooperação e identificação sociais. Outra atividade econômica interessante na comunidade é a

coleta de mariscos nas ilhotas que surgem no período de maré vazante. É uma atividade feminina,

compartida com jovens e crianças; homens os coletam também, mas em menor incidência. Grupos

de mulheres saem em canoas de proa e popa quadradas – denominadas de “baiteiras”6 – e,

dependendo da maré e da presença de mosquitos, usam o chamado “boi de fogo”7 para afugentar

esses insetos e serve, inclusive, para a comunicação visual entre botes, evitando colisões e outros

riscos. A produção econômica oriunda dos recursos disponíveis no manguezal faz com que os

comunitários estabeleçam relações ótimas com o meio, no sentido de obterem, em determinados

4 Segundo o conceito nativo, “morada de bicho”.

5 Descatembar: tirar a carne da ostra.

6 Canoa com proa e popa no formato quadrado.

7 Vasilhame de latão, com várias perfurações de modo a favorecer a saída da fumaça, utilizado para afugentar mosqui-

tos durante trabalho no mangue.

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períodos do ano, uma margem de capital para a reprodução social do grupo, via de regra através das

capturas do caranguejo, extração de mariscos e coleta de pescado.

Em meados dos anos noventa, os moradores acusam que a poluição do manguezal

através de produtos químicos jogados pelas usinas alcooleiras vinculados a uma pesca

indiscriminada de recursos pesqueiros sem o devido respeito às épocas de reprodução de espécies

culminaram numa drástica queda de estoques daqueles recursos. Mediante esse panorama, no início

dos anos dois mil, não havia mais produção de carne de caranguejo, pois a demanda do crustáceo

desapareceu nos mangues próximos à Casa Branca (Silva 2011), forçando os moradores a comprar

estoques de caranguejo de outra região – Canguaretama, Rio Grande do Norte – para obterem os

meios mínimos para a reprodução social do grupo.

Segundo alguns pescadores, houve radical transformação nas relações sociais e

culturais na comunidade, uma vez que muitos moradores começaram a enxergar o trabalho coletivo

como indesejado e pouco eficaz. Nesse período, começaram a instalar-se na comunidade igrejas de

matriz neopentecostal. Podemos inferir que há uma estreita relação entre perda de solidariedade

social e a emergência de práticas religiosas de cunho individualista. Outros trabalhos apontam essa

singularidade histórica como fator de reconstrução de sociabilidades em contextos grupais de forte

coesão social (Harris 2006; Ieno 1999). Desse modo, como o surgimento dessas novas doutrinas

religiosas encetaram práticas sociais que enfraqueceram a solidariedade entre os diversos grupos

que compõem essas comunidades – resguardadas as peculiaridades econômicas e culturais inerentes

às mesmas? E, de que modo, essas transformações sociais afetaram a cultura local, fortemente

assentada numa mediação a partir de narrativas míticas, a saber, a presença do Pai do Mangue como

construção social de regras e recursos (GIDDENS, 2009) para a obtenção dos recursos pesqueiros e

na forma como os agentes sociais interagem entre si e com o meio? Essas questões nortearão esse

artigo.

Metodologia: as regras do jogo

A pesquisa de campo teve uma abordagem centrada na observação participante, que

consiste no pesquisador assumir o papel reflexivo na sociedade observada, a ponto de viabilizar

uma aceitação ótima pelos membros daquela sociedade, pelo menos afável, de modo a não impedir

a necessária interação (Beaud e Weber 2007). Esta interação foi conduzida de modo dinâmico e

horizontal, onde o pesquisador procurou estabelecer uma margem de empatia e confiabilidade para

que os interlocutores pudessem expressar livremente suas ideias acerca da temática investigada,

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observando a importância de o pesquisador ir à pesquisa de campo munido de um referencial teóri-

co prévio, capaz de sofisticar a capacidade de observação e análise dos dados obtidos.

Para a execução do trabalho de pesquisa de campo foram aplicados dois questionários

semi-estruturados: o primeiro procurou diagnosticar questões relativas ao tempo de trabalho no

manguezal, idade, grau de escolaridade, filiação religiosa, renda mensal. O segundo questionário

procurou estender as perguntas mais relacionadas às questões investigadas nesse artigo, tais como a

compreensão dos interlocutores a respeito da narrativa mítica, o alcance social dessa narrativa e as

razões pelas quais aqueles não orientam suas ações no meio tomando como referência os preceitos

morais preconizados pelo ser encantado – não sentir ambição, não competir, zelar pela preservação

do mangue e pescar apenas o necessário para o consumo e venda. A aplicação dos questionários foi

feita entre pescadores, marisqueiras e lenhadores – no total, 12 indivíduos – com a faixa etária

compreendendo dos 18 aos 60 anos. A ocupação principal dos interlocutores é a faina no

manguezal, embora metade deles necessitem trabalhar de forma autônoma em atividades

complementares – tais como comércio informal, serviço doméstico – para obter renda que

possibilite a reprodução social. A média de trabalho no mangue é de 20 anos. Quase todos os

entrevistados têm o ensino fundamental incompleto e, a pedido deles, os nomes foram

intencionalmente mudados de modo que preservasse a identidade e privacidade dos mesmos. Um

dado relevante: todos os entrevistados são filiados a associações religiosas de matriz neopentecostal.

A coleta de dados foi realizada com o auxílio da etnografia, definida como a

representação do trabalho de campo em textos, uma tradução da experiência para a forma textual

(Clifford 2002). Geertz utiliza o termo “tradução” para desenvolver uma formulação teórica sobre o

método empregado na análise dos dados coletados em campo, sendo esta o processo pelo qual um

significado é transferido de uma linguagem para outra. O método etnográfico consiste na inter-

relação entre o pesquisador e os interlocutores, seguida de uma transcrição textual dos eventos que

o olhar e o ouvir (Espinheira, 2008) puderam fomentar como significativos para serem analisados.

As experiências vivenciadas durante a pesquisa de campo foram anotadas em um diário de campo.

A interpretação dos dados obtidos foi tecida dentro de uma hermenêutica cultural (Gee-

rtz 1997: 227), procurando traduzi-la através de uma descrição do mundo específico onde o pensa-

mento faz algum sentido. Os registros dos dados levantados permitiram ampliar o entendimento

sobre o tema, levantar hipóteses, detectar motivações, compreender os discursos, o significado e o

valor dos argumentos dos agentes acerca do trabalho deles no mangue e no rio. Esse entendimento

por intermédio da observação participante leva à construção de um sistema de valores inerente a

uma forma sui generis de condução de vida.

Enfatizo que o perfil dos interlocutores foi organizado de modo que facilitasse a

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confecção do presente trabalho, já que a faixa etária e o tempo de trabalho no mangue e no rio

permitem e autorizam os discursos dos mesmos. A partir da aplicação do survey foram selecionados

os entrevistados que, levando em consideração a conformidade dos dados obtidos com os objetivos

que este trabalho pretende alcançar. Optou-se pelo método da entrevista porque possibilita um

levantamento qualitativo de dados singulares do meu objeto de estudo. As entrevistas seguiram um

roteiro pré-estabelecido e foram mediadas pelo pesquisador. Todos os dados coletados foram

registrados em um gravador evitando que dados secundários – nem por isso menos importantes –

fossem negligenciados.

O que falar quer dizer: o que os ribeirinhos dizem sobre a existência do Pai do Mangue

As Ciências Sociais foram construídas como campo de saber no intuito de compreender

os fenômenos sociais dentro de um viés racionalista, com propostas teoréticas e analíticas

delimitadas, tais como o positivismo-funcionalismo, materialismo dialético, o método

compreensivo, apenas para citar os principais. Com isso, o funcionalismo propunha-se investigar o

tecido social dentro de uma démarche positivista, cuja análise recaía sobre o fato de que

agrupamentos sociais teriam leis sociais próprias de funcionamento e regulação, tendo como aporte

o estabelecimento de uma ordem social moral, compreendido como organismo com solidariedades

intrínsecas (Durkheim 2010). O materialismo histórico-dialético debruçou-se na problemática da

produção material da existência, cujo objetivo seria a satisfação das necessidades coletivas e com o

desenvolvimento histórico do modo de produção – donos dos meios de produção, meios de

produção e forças produtivas – teria resultado numa sociedade de classes (Marx 2013), desenvolve-

se uma ideologia e alienação próprias tão somente compreendidas fazendo-se uso da dialética para

estabelecer os vínculos necessários entre produção material e alienação social (Kovalhov 1975). A

proposta weberiana partiria do pressuposto atomizado na agência social que, reciprocamente

referida entre uma gama infinita de agentes, resultaria numa sociedade estratificada dentro de várias

ordens de dominação e legitimação, da tradicional para a legal-burocrática ao longo do curso

histórico, tomando como base as sociedades europeias. Uma das preocupações de Weber, presente

na sua Metodologia das Ciências Sociais, seria compreender o significado cultural geral da estrutura

socioeconômica da vida social humana e suas formas históricas de organização (Weber 2001). É

indiscutível, no entanto, que estes autores estavam preocupados – cada um com sua abordagem

analítica - com a faculdade humana de dar sentido à existência – ou à História ou as formas de

associação – e o modo como os homens interagem para sobreviver mediante uma natureza externa

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hostil e ameaçadora.

Convém fazer uma breve relação entre razão e racionalidade, enfatizando diferenças

filosóficas entre elas. A razão seria um atributo humano que constrói as possiblidades humanas de

os agentes criarem relações entre meios e fins, amparados por um esteio formal, as regras instituídas

(Nobre 2000). Adorno e Horkheimer (1970) analisam as bases racionais de entendimento do mundo

e das relações sociais a partir de um processo no Ocidente que denominam de “esclarecimento”, que

veio se sobrepor ao pensamento mítico, engastado de fantasmagorias, o logos, pensamento racional

que mensura os fenômenos naturais dentro de uma ordem de causa e efeito. A racionalidade, por sua

vez, pode ser entendida como um processo histórico-cultural que uma sociedade persegue, através

de determinados meios, o alcance dos fins, articulando-se processos materiais e imateriais para a

satisfação dessas necessidades coletivas. Nas sociedades em contexto de modernidade, a

racionalidade refere-se a técnicas institucionalmente validadas que conformam relações

intersubjetivas dentro das dinâmicas sociais. Giddens (2009) já alertara, no entanto, que a

racionalidade em contextos de modernidade não pode ser interpretada e concebida a partir de um

corpus interpretativo “iluminista”, pois as condutas humanas e suas rotinas não são gestadas apenas

por processos conscientes do self mas, inclusive, por processos inconscientes que norteiam a ação.

Nesse sentido, Giddens aproxima-se do debate de esclarecimento porfiado pela Escola de Frankfurt

ao dimensionar e descrever a impossibilidade de apreender o real no amplo escopo das

intersubjetividades em sociedades complexas, pois a razão pode ser também irracionalismo.

De acordo com o que foi descrito no início do texto, partimos do pressuposto que os

comunitários do São Lourenço e Casa Branca estabelecem diferentes formas de contato e apreensão dos

espaços naturais, como enfatizam as falas de Jacinto, 45 anos, pescador de linha e morador do São Lourenço

e Belo, 38 anos, morador da Casa Branca:

“Quando eu entro no mangue pra pesca eu respeito porque se o Pai do Mangue aparecer nem

adianta eu jogar a tarrafa a linha... mas muita gente hoje não acredito nisso mais não... (sic)” (Jacinto).

“Desde pequeno eu escuto meu pai falar essas histórias de pai do mangue... eu prefiro não

afrontar... sei lá... pesco com cuidado, volto pra casa e estou satisfeito” (Belo).

Nos relatos de Jacinto e Belo percebe-se a ambivalência da conduta de agentes sociais

num contexto social em que duas formas morais e normativas orientam a ação: uma relativa às

disposições afetivo-irracionais, como a crença na autoridade do ser encantado no curso dos

processos e da ordem das coisas; uma outra, emergente e crescente dentro das comunidades, são as

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disposições racionalizadas de conseguir determinados fins através de certos meios, no caso em

questão, de uma ordem de produção que separa o universo social do natural, enxergados como

distintos e o primeiro dominando e sobrepondo-se ao segundo. Os comunitários embrenham-se no

mangue e no rio para obter seus meios de subsistência, cuja intenção é se manter. Os meios que os

comunitários utilizam para consegui-los são os mais variados, cujo sentido, “o sentido

subjetivamente visado” (Weber 2000: 4), que o agente “atribui à sua conduta” (Aron 2000: 449), a

priori seria uma intencionalidade de criar relações entre meios e fins, ou como nos fala: “Eu e

minha família somos evangélicos, acreditamos nisso não. Acredito que Deus ajuda a gente a

trabalhar, a ganhar nosso peixe, nossa vida... Pai do Mangue não existe”, Neide, 42 anos,

marisqueira, Casa Branca. Acrescenta-se, ainda, a fala de Nonato, 34 anos, lenhador, São Lourenço:

“Eu trabalho quando posso e quando tem serviço... vou no mangue, pego madeira, vendo... Tudo é

resultado do meu esforço, tem isso de pai do mangue não”.

.

É preciso estabelecer uma conexão entre “sentido” e “racionalidade”. Segundo Max

Weber, a ação racional orientada a um fim tem como objetivo perseguir expectativas quanto ao

comportamento de objetos do mundo exterior, para alcançar determinados fins, ponderados e

exigidos com o uso da razão como meio de obtê-los (Weber 2000: 15). O sentido que confere à sua

conduta é obtido através do uso ponderado da razão, explicando o próprio trabalho no mundo

natural através de causa e consequência verificáveis e submetidos a seu juízo de realidade. Sua

conduta estaria, desta forma, erigida sob os pilares de uma determinada racionalidade. Uma das

temáticas mais importantes do pensamento weberiano é a construção da racionalidade do mundo

moderno e suas implicações em todas as esferas culturais (Sell 2013). Embora tenha estudado a

racionalização em outras sociedades, Max Weber defende que no Ocidente, e somente no Ocidente,

este processo resultou no surgimento de uma ciência empírica, imprensa, Estado e formas

econômicas de capitalismo (Souza 1997). Segundo Max Weber, as religiões ditas universais

contribuíram para o desenvolvimento desse processo. Racionalização ocidental consistiria para ele

num processo histórico e social que se origina no campo religioso (Judaísmo e Cristianismo,

especificamente), modelando o que hoje resulta na sociedade ocidental moderna. Racionalização

esta, cuja expressão máxima está na “cultura ocidental capitalista” (Carreiro 2001: 220).

As relações que os ribeirinhos mantêm e estabelecem com o espaço natural é um

prolongamento das relações sociais estabelecidas dentro da comunidade e dão sentido às formas

locais de reprodução social do grupo. Podemos salientar, inclusive, que as práticas sociais em terra

são uma extensão das relações desenvolvidas, articuladas e conflitadas no espaço de produção da

pesca, contexto sociocultural apontado por outras etnografias sobre faina pesqueira (Kant e Lima

1997; Ramalho 2006; Maldonado 1993; Forman 1970). Convém frisar que transformações no modo

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de produção material reflete na forma como estes grupos “pensam” suas práticas sociais, seus

agenciamentos, numa estrutura que ao mesmo tempo é estruturante e estruturada (Bourdieu 1999),

estabelecendo-se numa complexa rede de interdependência dessas relações. Por questões de método

de análise, nesse artigo deter-nos-emos às falas de pescadores, marisqueiras e coletores de

caranguejos que não acreditam na eficácia da narrativa do Pai do Mangue como discurso que

explica e normatiza as práticas sociais dentro do espaço natural e as interrelações dessas

transformações no mundo comunitário.

É importante delinearmos que a oposição auge-decadência das práticas sociais dos

ribeirinhos das duas comunidades não podem ser enxergadas numa temporalidade linear. Pelo

contrário. Acreditamos que essas duas instâncias são faces de um mesmo processo social, o antigo

recriando o novo, dando novos tons. A despeito disso, encontramos pescadores, marisqueiras e

comunitários que enxergavam o manguezal como espaço social habitado por seres encantados. Essa

crença ou fé se consolida na obediência às normas prescritas pelo Pai do Mangue, o ser encantado

que protege o manguezal da cobiça humana, seja através de ações meticulosamente dispostas no

tempo e espaço, seja através de entrega de pequenas oferendas como flores, aguardente, fumo e

outras iguarias. Os processos de sacralização dos espaços e, também, de desencantamento do

mundo são faces de um mesmo processo histórico e social experimentados pelos ribeirinhos da

Casa Branca e São Lourenço.

As experiências com o sagrado requerem dos agentes fé e eficácia na sua efetividade. E

fé é uma construção social baseada em pressupostos não-tangíveis no sentido material do termo.

Nas duas comunidades são observadas ao longo do processo histórico a prevalência de uma cultura

religiosa católica que articulou-se com outras práticas mágicas, reinventando-se. De certo modo, a

instituição religiosa católica comportou-se com reserva em relação às manifestações coletivas de

um catolicismo popular, tais como as romarias a Padre Cícero, o respeito de devoção a Frei Damião,

à conduta ascética dos Ave de Jesus, no Juazeiro do Norte, Ceará. Esses movimentos populares

cuja démarche era a crença nos santos e em seus misericordiosos poderes reforçavam,

intrinsecamente, o poder e legitimidade da Igreja Católica, com seus paradoxos e singularidades,

contexto histórico cultural analisado por Harris (2006) em sociedades caboclas no oeste paraense

cujas práticas de cura e a busca por ajuda pelas gentes ao xamã não resultam na perda do prestígio

do catolicismo local, mas ocasionaria fusões e concessões de ambas as partes. Essas crenças não

propunham a ruptura com a fé instituída pela Igreja Católica, inclusive a reforçavam num processo

cultural de negociação da fé e das práticas sociais em âmbito religioso, ou não, e isso balizava

forças poderosas de coesão e integração sociais. Sendo assim, podemos afirmar que não havia

separação entre experiência religiosa e mundo social, mas uma intercalava-se na outra, afirmando-

se. De outro lado, práticas de curandeirismo – conheci uma interessante interlocutora na Casa

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Branca, Dona Regina, que era conhecida por benzer a comunidade e que, num certo dia, prestou sua

habilidade de piedade e misericórdia ao etnógrafo deste texto – macumba, mesa branca, entre outros,

confundiam-se às práticas sociais processadas pelos ribeirinhos em contato com o espaço de

produção da pesca. A partir disso, seria empreendimento inócuo investigar essas práticas dentro de

um prisma reducionista como se as mesmas fossem resultantes de um catolicismo formal. O

catolicismo popular parece ter absorvido um amálgama de práticas religiosas de um vasto campo

religioso e o ressignificou. Nas últimas décadas, temos presenciado no Brasil, a saber, a emergência

de igrejas neopentecostais e seu ethos próprio de articular-se com o mundo externo. O campo

religioso da Igreja Católica perde espaço e novas formas de sociabilidades são forjadas, negociadas

e até conflitadas a respeito da aceitação de narrativas de seres encantados que afirmam a

convivência paralela ao “mundo dos vivos” (Vaz e Carvalho 2013), tendo como principal

protagonista as religiões de orientação neopentecostal. É dessa questão que tratamos no texto a

seguir.

Do Neopentecostalismo: uma outra forma de interpretar o mundo social da pesca

O movimento pentecostal é originário nos Estados Unidos e chegou no Brasil há mais

de cem anos e vem crescendo na África, sudeste da Ásia e, em especial, na América Latina, o que

Giumbelli (2000) descreve como o mais importante fenômeno religioso em curso na sociedade

brasileira contemporânea. É uma vertente religiosa complexa, heterogênea (Mariano 1996), que

contém centenas de denominações internas com suas formas de compreensão do sagrado e

estruturas hierárquicas singulares. Como este artigo não tem como foco uma análise profunda sobre

o movimento religioso em si, pretende apenas porfiar algumas considerações acerca de como os

fiéis conduzem sua adesão religiosa no que concerne à vida coletiva e as reverberações na

sociedade enquanto totalidade social em que estes agentes sociais estão imersos.

Segundo Mariano (1996), toda religião procura oferecer explicações ao sofrimento

imerecido, fome e morte, entre outros acontecimentos sociais. Nas doutrinas neopentecostais, a

compensação para o sofrimento humano não está numa outra vida, mas pode ser encontrada e

vivida nessa vida, o que oferece novos instrumentos de análise para estudos sobre religião e conduta

de vida, experiência religiosa e escolhas entre meios e fins. Foi nesse sentido analítico que surge o

esboço profícuo das possibilidades de entendimento de uma teologia da prosperidade (Mariano,

ibidem), calcada numa tácita aceitação – e até estímulo – de condições econômicas, portanto

materiais, para desfrutar neste mundo e como signo de status quo e prestígio social, condutas

notadamente rejeitadas pelas doutrinas protestantes históricas. Na mesma via, essas doutrinas

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neopentecostais estimulam aos mais pobres a redenção via trabalho e prosperidade, que reflete,

como num espelho, prosperidade econômica – confirmação da graça religiosa, jungidos aí todos os

paradoxos e contradições que estas formas de sociabilidades encetam. A respeito disso, Pierucci

(1999) conseguiu captar as complexas tramas das sociabilidades das doutrinas neopentecostais, uma

vez que estimulam a secularização e perseguem, a fortiori, formas peculiares de orientação sacral

da vida, dimensionadas na esfera privada, ou como diria Geertz (2001: 151), uma questão

estritamente ligada aos afetos do coração.

No entanto, não é fácil delinearmos em poucas linhas a complexidade que exige uma

análise dessas doutrinas religiosas. Os neopentecostais externam posturas secularizantes – com

relação ao econômico, por exemplo – e condutas conservadoras – Weber diria, afetivo-irracionais –

com relação ao diálogo com outras doutrinas diferentes das delas. Até aí, não há nenhuma novidade,

pois é facilmente observável essa postura intransigente com outras doutrinas religiosas e, até,

religiões de alcance mundial. No entanto, a modernidade em curso apresenta ambivalências

interessantes, a saber: a religião não estaria destinada a desaparecer sob a égide do Iluminismo, mas

a fortalecer-se. Mariz (2000) alerta para a dimensão psicossocial que a experiência religiosa atende

e conforma: a anomia criada pela modernidade geraria necessidades de imersão de indivíduos em

comunidades de fé, fortemente vinculadas. Somando-se a isso, no nível psicossocial apenas uma

minoria teria condições de conduzir a vida sem nenhuma verdade absoluta ou consolo profético,

abrindo um flanco para a experiência religiosa esparramar-se na modernidade e ser, paradoxalmente,

uma das condições para que esta subsista. Para Burity (2000), uma das singularidades históricas da

modernidade tomando como corpus a experiência paradigmática das religiões seria a oscilação

tensa entre o mundo da técnica e da racionalidade cada vez mais instrumentalizada e que as

doutrinas neopentecostais estimulam essa busca por uma prosperidade alijada do contexto em que

estas riquezas são socialmente construídas, produzidas. Em outras palavras, uma perseguição cega

dos fins, não importando os meios empregados.

Fazendo uma revisão da leitura sociológica da questão, as temáticas mais abordadas

com relação às doutrinas neopentecostais são a teologia da prosperidade e seu lastro ideológico, as

ofertas, os dízimos, relações com o dinheiro. Interessa aqui como filiação religiosa articula-se com

o mundo da intersubjetividade, em outras palavras, as culturas daí resultantes. Para isso,

respaldamo-nos nas poucas etnografias e trabalhos que versam sobre essa dimensão da experiência

da doutrina religiosa neopentecostal em face de grupos externos a ela, a exemplo das comunidades

em que estão inseridos os seus adeptos.

A visão neopentecostal sobre o mundo causa incômodo sob a ótica dos católicos das

duas comunidades estudadas. Segundo percebemos, a conduta neopentecostal em contextos grupais

ameaça toda a existência e o movimento histórico (Harris 2006) de resistência dessas comunidades,

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principalmente por terem um universo cultural próprio, com seus preceitos morais, éticos e de

conduta de vida. Os comunitários convertidos a essas novas doutrinas são solicitados a abandonar

toda uma vida social antecessora, uma ruptura com o presente, através da mudança das vestes,

comportamento corporal, proibição a bebidas, ao cigarro, adultério, a brigas e a festas católicas.

Neste sentido, concordamos com Harris (ibidem) quando afirma que na conversão perde-se todo um

conjunto de crenças associadas ao ambiente encantado, mágico que o Pai do Mangue como

narrativa moral havia construído um ethos, uma conduta para adentrar o espaço natural da

comunidade e explorar de modo racional – sustentável, expressão do momento. Esse conflito é bem

descrito por Harris, nessa passagem de “O presente ambivalente”:

“Os protestantes consideram as histórias sobre o boto e outros seres (a cobra grande, etc), o

poder do pajé, a panema [...] como superstições que devem ser descartadas na busca pelo conhecimento

verdadeiro [...] Além disso, o fato de que essas poucas pessoas estavam preparadas para deixar seus parentes

próximos e suas comunidades em nome de suas novas crenças indica que o protestantismo é altamente

individualista” (Harris 2006: 97).

Abaixo, foram selecionadas algumas falas eloquentes coletadas no trabalho de campo

nas duas comunidades ribeirinhas e que, numa análise antropológica mais atenta, pode-se

compreender as relações entre sagrado-profano, individualismo-coletividade, a razão ocular e o

movimento ambíguo e coexistente de secularização – dessecularização:

“Isso é história de trancoso... o Pai do Mangue não existe não, eu nunca vi, nunca

testemunhei...”, Nonato, São Lourenço (pescador).

“Eu não acredito, sou temente a Deus Todo Poderoso”, José, Casa Branca (pescador).

“Sou evangélica, não acredito nessas coisas não, sabe por quê? Isso é coisa de Satanás!”,

Consuelo, São Lourenço (marisqueira).

“Eu sou acredito no que vejo, essa coisa de Pai do Mangue é invenção do povo daqui”, Nonato,

São Lourenço (pescador).

“Eu e minha família somos evangélicos, acreditamos nisso não. Acredito que Deus ajuda a

gente a trabalhar, a ganhar nosso peixe, nossa vida... Pai do Mangue não existe”, Neide, Casa Branca

(marisqueira).

“Só acredito no que vejo”, Tomás, São Lourenço (pescador).

Este processo de racionalização de todas as esferas sociais resultou num processo

denominado por Max Weber como secularização, que se trata da racionalização dos bens culturais

da Igreja e das formas como o Direito moderno se organizou (Pierucci, 1998). A secularização

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implicou, para Pierucci, o abandono do status religioso, perda para a religião enquanto institutio e

emancipação dos indivíduos a ela enquanto ordenadora do mundo. O processo de racionalização

aliado à secularização levou Max Weber a elaborar o controverso termo “desencantamento do

mundo” (Entzauberung der Welt). Tratar-se-ia, segundo Pierucci (2003), a redução do mundo a um

mero mecanismo causal (Pierucci 1998: 50), ou “como aquele trabalho sistemático a que se lança o

pensamento científico de acossar para sempre a ilusão mítico-arcaica de que existe um sentido

cosmológico inerente ao mundo natural” (Pierucci 2003: 162). Na Ciência e Política: duas vocações,

Max Weber ilustra este desvanecimento do mundo mítico e cosmológico em detrimento do

alvorecer da sociedade racional como “abandono de antigos deuses para o surgimento de uma

religião monoteísta com poderes impessoais e desencantados” (Weber 1993: 42-43). Ser racional

nesta nova forma de sociabilidade que emerge no Ocidente é ter “a capacidade de controlar

friamente a conduta e um redimensionamento dessas pulsões para outros padrões”. Padrões estes

que seriam, sugiro, meios quantificáveis e observáveis numa dada realidade social.

Esta conduta exprime-se no domínio do mundo natural através de uma técnica de vida

(Simmel, 1976) orientada por uma intencionalidade causal. Este mundo natural não é mais o locus

do desconhecido, do incomensurável e do não-perceptível. Pelo contrário, é o mundo onde todos os

fenômenos naturais não só são percebidos, mas interpretados pela cognição dos agentes aí inseridos,

“Acredito que Deus ajuda a gente a trabalhar, a ganhar nosso peixe, nossa vida... Pai do Mangue

não existe”. Seria o que Max Weber denominou como dominação racional-legal (Weber 1999: 143).

Segundo Nobre (2000: 95), a dominação racional-legal trata-se de “uma representação que se

solidificou em consensos racionais em torno de regras que devem ser obedecidas”, para que o

mundo externo seja conhecido e posteriormente explorado, caindo num “racionalismo de domínio

do mundo” (Pierucci 2003: 22), como relata o pescador Josinaldo, da Casa Branca: “Só acredito no

que vejo”. Trazendo à baila de minha compreensão, conjeturo que o tipo específico de dominação

do mundo natural pelos agentes sociais é desenvolvida através de “um envolvimento impessoal,

rigorosamente objetivo e o aparato externo apoia suas decisões” (Weber 1999: 213). As condições

externas – balizas para suas decisões de como agir no mundo natural, retirando dele seus meios de

existência – seriam dominação deste mundo específico através do cálculo laborioso do

conhecimento “puramente” técnico. Para Sztompka (1998) a mudança na estrutura da sociedade

pode ocorrer justo quando estabelece-se relações, quais sejam, de cooperação ou competitividade.

Com isso, a ruptura na forma como os agentes empreendem seu modus operandi no espaço natural

pode ser considerado um fenômeno de competição e dissociativo na sociedade em questão?

A Igreja Católica, mais especificamente as Comunidades Eclesiais de Base – vertente da

esquerda católica, sempre foi conhecida como protagonista no apoio aos camponeses em luta pela

conquista da terra. Houtzager (2004), ao analisar o conflito e a modernização do espaço rural

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brasileiro enfatiza o papel vetorial da Igreja Católica como protagonista na mobilização popular

para a luta pela conquista e permanência na terra, principalmente nas décadas de 60 e 70. Nos anos

80, a igreja como catalizadora dos movimentos rurais retira-se desse protagonismo, o que

Houtzager aponta nesse hiato o favorecimento – inintencional, digamos – do avanço das seitas

evangélicas entre as classes sociais mais pobres, dentre elas, as rurais. Ajuda, nesse sentido, a

compreender o processo de adesão de comunidades marginais economicamente, tal o caso aqui

analisado como exemplos lacunares desse processo social. A monografia de Ieno (1999) traz luz a

essa questão e em certo sentido complementa os dados analíticos levantados por Harris nas

comunidades de várzea de Óbidos, Pará. Segundo a autora, as experiências coletivas de movimentos

sociais de populações assentadas no litoral sul do Estado da Paraíba passaram por duas etapas

distintas: a conquista da terra e a permanência nela. A comunidade investigada por Ieno, após a

conquista da terra, passou a produzir coletivamente. Foi nesse momento que começaram a instalar-

se nos assentamentos as igrejas neopentecostais, o que ocasionou numa ruptura ao processo de

produção coletiva: os agricultores engajados nessas doutrinas passaram a produzir no âmbito

familiar, rompendo com toda uma história de produção coletiva e partilha de anseios comuns, ou

como nos diz Harris (2006, p.98), esse processo poderia ser descrito como “uma refutação de todo

um modo de vida”, anteriormente partilhado cotidianamente, afirmação comungada por Farias

(2012), ao estudar os indígenas tabajaras na Paraíba e o processo histórico de expropriação da

cultura grupal devido a adesão desses indígenas a filiações neopentecostais, o que ressignificou o

modo de perceberem-se como indivíduos etnicamente situados. Farias percebe a adesão dos

indígenas tabajaras – recentemente afirmados enquanto tal, num processo que na Antropologia

denomina-se como etnogênese – a doutrinas neopentecostais como um processo de longa duração

que impôs a eles a religião do dominador e a aceitação tácita dessa situação decorreria de uma

estratégia de minimizar a perseguição da classe dominante culturalmente.

O modo de vida rejeitado e refutado como cosmos é o mundo social da pesca, uma vez

que as sociedades de pesca externalizam uma totalidade social que envolvem não apenas a esfera da

produção, mas inclusive o mundo da cultura em que estão assentadas: parentesco, solidariedades,

relações com o espaço natural, competição e cooperação, o mundo do invisível. Pelo que Harris

(Ibidem) e Ieno (1999) apontaram, estas bases da totalidade social foram dilapidadas com a

emergência destes agrupamentos dissociativos. Entendemos aqui como agrupamentos dissociativos

um grupo inserido num cenário de intensas formas de relações sociais e que, por motivos

intrínsecos e variáveis no espectro cultural, tendem a conflitar com os interesses morais ou

finalísticos da comunidade que os dão suporte e referendam enquanto prática.

Brüseke (2010), repensando a sociologia weberiana, explica que na sociedade moderna

existem três esferas que representam a racionalidade moderna: uma racionalidade cognitiva,

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presente na técnica e na ciência; a racionalidade evaluativa, no direito e na ética e, por fim, a

racionalidade expressiva e estética. Como a racionalização é um processo, essas esferas distanciam-

se, diferenciando-se. A etnografia de Robben (1989), empreendida numa comunidade costeira no

litoral sul da Bahia, discute que os atos, ou condutas, não são frutos apenas da fala e do discurso,

mas de um campo da prática, entendida como decisões, atos que cumprem e rejeitam determinadas

escolhas, orientando-os na vida cotidiana. Os conflitos e os dilemas entre os pescadores de canoa e

os pescadores de barcos e a diminuição de oferta de pescado redimensionaram a técnica da pesca a

patamares críticos para a sobrevivência do grupo. A reverência à deusa do mar, Yemanjá, reitera o

caráter dual das relações de produção material da existência e externa que a esfera do trabalho

pesqueiro engendra-se dentro de lógicas próprias, a técnica como resultado de práticas e crenças

socialmente construídas.

No processo histórico em que a modernidade está assentada predominaria a

racionalidade de fins e a racionalidade de valores, que dão sustento às necessidades dos sistemas

econômicos e administrativos, debate semelhante arguido por Habermas e que Brüseke certamente

se baseia. No nosso caso em questão, a rejeição dos ribeirinhos a uma visão encantada do espaço de

produção da pesca engessa a realidade empírica numa perspectiva linear de causa e efeito.

A teoria da estruturação, proposta por Giddens, oferece-nos elementos analíticos para

compreendermos a racionalização no nível da ação. Para este autor, a racionalização da ação,

entendida grosso modo como intencionalidade visada, está intrinsecamente relacionada à

monitoração reflexiva e a motivação da ação, dispostas numa rotina, condição humana exercida, até

certo ponto, de forma reconhecida. No caso específico aqui analisado, as rotinas de trabalho no

âmbito da pesca foram transformadas pelos agentes – aqui vistos como comunitários que praticam a

ação rechaçando as prescrições morais da narrativa mítica – porque a motivação da ação, mudou.

“Eu só acredito vendo”. Houve uma quebra da rotina da ação, como diria Giddens (2009),

ocasionando resultados previsíveis e impremeditados. A ação, disposta ao longo do tempo social, é

articulada numa estrutura pensada enquanto regras e recursos que se desenvolvem, também, como

meios de reprodução do sistema social e cultural. Podemos afirmar, com isso, que as ações dos

agentes tendem, consciente e inconscientemente, a transformarem a estrutura de acordo com as

motivações desenhadas por uma determinada rotina social. Segundo Giddens (2009), as regras

socialmente institucionalizadas, sedimentadas no tempo-espaço, têm natureza intensa, tácita,

informal, porém fracamente sancionadas pelo grupo social. As regras sociais de ação no espaço

natural e imaginadas pelos ribeirinhos como prescrições do Pai do Mangue revelam caráter tácito –

atender ou ignorar, cabe aos agentes decidir -, são de natureza social e transmitidas oralmente por

gerações e, pelo fato de a decisão incidir na esfera individual da ação a sanção é fraca. Caso o

ribeirinho escolha conscientemente estabelecer uma relação entre meios e fins marcadamente

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“racional”, por mais que “eventos” externos antes delegados “à presença do ser encantado ocorram”,

para aquele ribeirinho será desprovido de sentido e valor. Se a integração social subentende a

vigência de reciprocidade entre atores em contextos de co-presença, esta integração está ameaçada a

transformar-se numa outra forma de sociabilidade. A pergunta a que se propôs responder, se a

ruptura na forma como os agentes empreendem seu modus operandi no espaço natural pode ser

considerado um fenômeno de competição e dissociativo, de acordo com a literatura estudada e os

dados empíricos colhidos em campo, pode-se afirmar que em certa medida apresenta aproximações

etnográficas e ambivalências teóricas e analíticas. Essa questão será abordada a seguir.

Considerações Finais

Os ribeirinhos das duas comunidades estabeleceram ao longo do processo histórico

determinadas escolhas culturais para a condução da vida (Sell, 2013), conforme foi exposto aqui.

Neste artigo buscou-se porfiar uma relação entre formas de organização social e individualismo

religioso, inspiradas nas explanações de Troeltsch acerca do tema. Até aqui, os dados empíricos

colhidos em campo tecem relações interessantes entre condutas de vida orientadas por uma

ideologia individualista neopentecostal e suas interfaces com o modo que seus membros

associaram-se nas comunidades em que vivem e, antes de tudo, como a adesão à nova experiência

religiosa exigiu, ou sugeriu, a ruptura com o passado e às práticas culturais anteriormente

assentadas e referidas, fenômeno também sistematizado por (Harris 2006; Farias 2012).

A modernidade foi um projeto do racionalismo ocidental e um de seus pilares, a razão

formal, nunca chegou a seu termo. Weber alertara, ao longo de vários textos clássicos, para a

impossibilidade de a razão, enquanto meio para compreender os mecanismos de causalidade e efeito

dos processos e imperativos ético-morais encetados durante essa busca, poder conhecer tudo. Nessa

mesma linha de argumentação, Adorno e Horkheimer (1970), denunciam o esclarecimento visto

como processo histórico-filosófico da vitória da ignorância e do preconceito e que, ao largo disso, a

ciência na modernidade – e seus mecanismos de verificabilidade de verdade e construção de uma

ordem racional – estaria intrinsecamente relacionada com a produção do capital e promoveria uma

ignorância esclarecida, arquitetada sob o manto da razão instrumental e indiferente quanto aos

meios para chegar a ela. Como bem foi observado nas comunidades investigadas, um paradoxo fica

evidente: os ribeirinhos abandonaram a narrativa do Pai do Mangue como esfera cultural prático-

moral e, em seu lugar, instalara-se uma outra forma de fé, a religiosa-institucional, fruto do processo

sociocultural de dominação racional legal-burocrática, com forte inspiração secular, como indicam

as falas a seguir:

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“Eu e minha família somos evangélicos, acreditamos nisso não. Acredito que Deus ajuda a

gente a trabalhar, a ganhar nosso peixe, nossa vida... Pai do Mangue não existe”, Neide.

“Eu não acredito, sou temente a Deus Todo Poderoso”, José.

A fenomenologia clássica ergueu seus pilares de conhecimento do mundo tomando

como referência o que se convencionou falar de privilégio das constatações visuais. A tradição

filosófica tem dado preeminência à visão como o sentido co-extensivo ao próprio pensar, a exemplo

dos gregos antigos que já entendiam o ato de pensar como extensão do ato de ver, logo, ocularidade

(Simões 1999). É passível de ser entendido e compreendido os fenômenos que podem ser

mensurados, avaliados e sistematizados sob o jugo do saber calcado na percepção visual,

sobremaneira, conforme aponta Bachelard (1949). Percebe-se nos discursos dos ribeirinhos a

construção de um saber-fazer nas relações sociais estabelecidas com o espaço natural uma visão

objetiva e, em larga medida, desencantada, dos processos simbólicos de organização do espaço da

produção da pesca, como enfatiza “Isso é história de trancoso... o Pai do Mangue não existe não, eu

nunca vi, nunca testemunhei”.

Segundo Simões (ibidem), Bachelard denuncia que o fundamento ocularista conduz a

imaginação para a abstração e o formalismo, fazendo do homem mero espectador e do mundo mero

espetáculo, cujo progresso científico viria a ser uma rotina (Diniz, 2001), fadada a repetir-se,

tornando-se numa razão formal (Bachelard, 1978), instrumental (Adorno e Horkheimer, 1970),

indolente (Santos, 2000), ou seja, alheia ao progresso como meio de emancipação do homem como

ser capaz de fazer escolhas e ter liberdade para escolher, articulando-se ativamente contra o

desperdício da experiência vivida, como reforça Souza:

“Racionalidade significa aqui o imperativo de qualquer existência humana de tornar-se uma

personalidade na medida em que a corrente de decisões últimas que dá, em última instância, o sentido da

individualidade de uma vida, passa a ser conscientemente executada e vivida” (Souza 1997: 69).

Apesar das limitações estruturais do fazer científico e suas externalidades no mundo

social, Boaventura de Sousa Santos propõe uma ruptura nos processos sociais de construção de uma

pós-modernidade autoritária e unidimensional. Conduzidos pelas mãos de Alice, os homens podem

construir coletivamente uma razão criativa e crítica, prenhe de espanto e revolta (Santos 2002).

Habermas (2002) defende que a luta contra a razão instrumental, que governa o mundo da técnica e

da vida, é possível se a sociedade instrumentar-se – no sentido positivo do termo – através de uma

razão comunicativa, construto social erguido através da solidariedade entre os agentes.

Eis um desafio tomando como referência a pesquisa de campo aqui investigada: o

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corpus proposto de análise – os ribeirinhos que não acreditam na narrativa mítica do Pai do Mangue

como construção simbólica de organização, apropriação e extração dos recursos disponíveis no

espaço natural – verificou que parte significativa dos interlocutores contatados vivenciou uma

ruptura com a comunidade, pois aderiu-se a doutrinas neopentecostais. Pode-se refletir que essa

nova conduta de vida reelaborou o modo como estes ribeirinhos interpretam as práticas sociais e

culturais locais. Desse modo, esse acordo tácito – de acreditar num Deus legitimado

institucionalmente – e romper com os quadros culturais locais potencializou um racionalismo

instrumental, pois estes acordos reforçam que esses ribeirinhos buscam uma ligação entre o mundo

e Deus num viés marcadamente individualista e o engajamento a práticas sociais estranhas à

comunidade confirmam que a relação que estabelecem com o espaço natural é objetificada e

dominada por um ethos, embora ainda vinculado ao mundo simbólico, conforme foi discutido aqui,

individualizante. Eis aí um paradoxo: os ribeirinhos que aderiram à doutrina neopentecostal

vivenciam, ainda, uma experiência que carece de comprovação objetiva e ocular: a existência de

Deus. Sua fé reside, a fortiori, numa longa tradição judaico-cristã que se assentou na mentalidade

do mundo ocidental e que, pelo poder institucional da Igreja, as comprovações da existência são

experimentadas a partir da experiência do sagrado, por si só, autoexplicativa. Fazendo uma analogia

com as fichas simbólicas e os sistemas peritos estudados por Giddens (1991), a construção social da

confiança – em algo, em alguma coisa – pressupõe conhecimento indutivo fraco e que em contextos

de modernidade os sistemas periciais especializados em virtude da ciência – cada vez mais distante

da cognição do indivíduo comum – inaugura um novo estágio de fé. Fé num sistema abstrato de

técnicas racionalmente forjadas que desconhecemos as leis que as regem. Assim, a razão é uma

forma de crença, fé. Sem dúvida, como foi dito anteriormente, a modernidade foi um projeto que já

nasceu fadado a não consolidar-se.

Nas duas comunidades operam formas de relações sociais de intervenção no espaço

natural para a obtenção dos meios de existência: uma contrapõe-se à outra. A ruptura com os

preceitos do Pai do Mangue pode, inclusive, acarretar transformações ecológicas nessas

comunidades, pois o espaço natural passou a ser enxergado – por um grupo dentro das comunidades

– como locus de dominação, exploração e usufruto dos recursos. Sem dúvida, coexistem valores,

normas e interdições comunitárias que regulam o acesso aos recursos disponíveis, em tese, a todos

os comunitários. Hardin (1978), ao propor a teoria da Tragédia dos Comuns, informa que os

regimes de propriedade comum teriam como consequência a degradação de recursos, inevitável por

conta da superexploração dos mesmos. Como forma de evitar isso, Hardin defendia a intervenção

do Estado ou implantação de propriedade privada. Hardin equivocou-se, segundo Diegues (2001),

por conta de dois fatores: 1) as populações tradicionais são as responsáveis pela manutenção e

preservação dos recursos; 2) o Estado moderno e seu projeto desenvolvimentista seria o maior

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responsável pela degradação ambiental. Trabalhos acadêmicos sobre essa última questão são

inúmeros (Ferreira 2011; Picoli 2006; Domingues 2007). Contudo, no contexto histórico-cultural

aqui investigado, as condutas de vida racionalizadas intragrupalmente acenam para a possibilidade

de agravamento dos danos ambientais e o risco das gerações futuras serem alijadas de um rico

patrimônio cultural que, em larga medida, simboliza as intensas relações sociais e culturais que os

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