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Racionalização e transformação sociocultural em comunidades pesqueiras no Nordeste do Brasil
Rubens Elias da Silva1
Professor Adjunto do Programa de Antropologia e Arqueologia
Instituto de Ciências da Sociedade / UFOPA.
RESUMO
Este artigo discute o processo de transformação sociocultural ocorrido nas comunidades ribeirinhas da Casa
Branca e São Lourenço – localizadas no município de Bayeux, Paraíba, Brasil – a partir da dominação
racional do mundo natural, à luz da discussão clássica desenvolvida por Max Weber. Podemos afirmar que a
relação entre estes agentes sociais e o espaço natural se reconfigurou no modo como “esse espaço” é
interpretado e dominado pelos ribeirinhos engajados na produção pesqueira familiar e grupal. O surgimento
de doutrinas neopentecostais encetaram práticas sociais que enfraqueceram a solidariedade entre os diversos
grupos que compõem essas comunidades e a decadência econômica coincide com a instalação dessas igrejas
no bairro. A pergunta central consiste de que modo essas transformações sociais afetaram a cultura local,
fortemente assentada na mediação de narrativas míticas como construção social de regras e recursos para a
obtenção dos recursos pesqueiros e como os agentes sociais interagem entre si? A pesquisa de campo teve
abordagem centrada na observação participante e uso de questionários abertos. Segundo análise qualitativa,
nas duas comunidades operam formas de relações sociais de intervenção no espaço natural: a ruptura com os
preceitos do Pai do Mangue pode acarretar transformações ecológicas nessas comunidades, pois o espaço
natural passou a ser enxergado como locus de dominação e exploração dos recursos, pois as condutas de vida
racionalizadas possibilitam o agravamento dos danos ambientais e o risco das gerações futuras serem alijadas
do patrimônio cultural que simboliza as relações sociais e culturais que os ribeirinhos estabelecem com o
manguezal.
PALAVRAS-CHAVE: racionalismo; teoria social weberiana; pesca; narrativa mítica; neopentecostalismo.
ABSTRACT
This paper discusses the social and cultural process of change occurred due to the racional domination of the
natural space in riverine communities of Casa Branca and São Lourenço – located in Bayeux town, Paraíba,
Brazil – in the light of the classic discussion developed by Max Weber. We can say “that space” is interpreted
and dominated by riparian engaged in group and family fishing production. The emergence of Neo-
Pentecostal doctrines originated social practices that weakened the solidarity between the different groups
that make up these communities – and the economic decline coincides with the installation of these churches
in the neighborhood. The central question is how these social changes so affected the local culture, strongly
settled in the mediation of mythical narratives as a social construction of rules and resources to obtain the
fishing resources? And how social agents interact with each other? The research was centered in the
participant observation approach and in the use of surveys. According to qualitative analysis, the two
communities operate social relations of intervention in the natural space: the break with the precepts of
Mangrove Father can cause ecological changes in these communities because the natural space came to be
seen as a locus of domination and exploitation of resources considering that rationalized pratices of life allow
the worsening of environmental damage and the risk of future generations be far from their cultural heritage,
what symbolizes the social and cultural relations that they establish with the coastal mangroves.
KEYWORDS: rationalism; Weber’s social theory; fishing; mythic narrative; neopentecostalism
1 Doutor em Sociologia pelo PPGS da Universidade Federal da Paraíba. Professor Adjunto do Programa de Antropolo-
gia e Arqueologia do Instituto de Ciências da Sociedade da Universidade Federal do Oeste do Pará.
Contato: [email protected].
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INTRODUÇÃO: das comunidades e dos mangues
Este artigo busca discutir o processo de transformação sociocultural ocorrido nas
comunidades ribeirinhas da Casa Branca e São Lourenço – localizadas no município de Bayeux, na
Paraíba – a partir da dominação racional do mundo natural pelos pescadores, marisqueiras e
lenhadores destas comunidades em suas atividades cotidianas de trabalho. Podemos afirmar que a
relação entre estes agentes sociais e o espaço natural se reconfigurou no que concerne ao modo
como “esse espaço” é apreendido, dominado e interpretado por uma parcela significativa de
ribeirinhos engajados na produção pesqueira familiar e grupal, amalgamadas como rede de
potencialidades de acesso aos recursos e apoio moral frente às adversidades externas (Kant de Lima
1997; Harris 2006). Esta discussão empírica e teórica é herança de meu projeto de Doutoramento
em Sociologia defendido no PPGS – UFPB e que não foi levado a cabo2. No texto Sob o olhar do
Pai do Mangue: ensaio sociológico sobre a relação homem x sociedade através da mediação de
narrativas míticas (Silva 2011), investigo como o mito do Pai do Mangue articula estruturalmente as
relações simbólicas de trabalho entre os pescadores e marisqueiras do estuário do rio Paroeira,
município de Bayeux. Os ribeirinhos – reporto-me ao campo amostral dos que acreditam no poder
simbólico do Pai do Mangue – acreditam que esta divindade pode, tanto castigar quanto oferecer
benefícios, àqueles que se embrenham no rio e mangue para extrair daí os recursos capazes de
assegurar a reprodução social. Outros autores apontam em etnografias a prevalência de seres
encantados (Vaz e Carvalho 2013) ou na antropomorfização da natureza e seus componentes como
parte dos padrões culturais (Benedict 2013) que organizam e ordenam o espaço da produção
pesqueira, tais como (Robben 1989; Silva 2000; Leite 2000).
As comunidades estão localizadas no perímetro urbano de Bayeux, o que torna o
cotidiano dos comunitários uma dinâmica troca de “bens culturais” (Bourdieu, 1999), permitindo
sua reprodução social e cultural. Estas comunidades, no entanto, têm características semelhantes às
comunidades tradicionais, elencadas por Diegues (2004): organização econômica e social com
reduzida acumulação de capital, não usando a força de trabalho assalariado, conhecimento profundo
acerca dos recursos naturais, seus ciclos biológicos, hábitos alimentares. Conforme a definição
deste autor, outras características presentes em comunidades tradicionais é o fato de terem
dependência econômica dos recursos que a natureza oferece; o conhecimento ser transmitido
oralmente em contextos intergeracionais; produção de mercadoria pouco desenvolvida, implicando
2Em seu lugar, dediquei-me a investigar memória social de sociedades costeiras do sul do Rio Grande do Norte e o
processo de vulnerabilidade social a que estas estão imersas. No entanto, sinto-me no imperativo de discutir o processo
de racionalização na produção da pesca estuarina mediante a relação sociedade e espaço natural.
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numa estreita relação com o mercado e numa consequente tecnologia simples de trabalho. Essa
relação que os comunitários mantêm com a natureza, segundo este autor, resulta na assimilação de
uma forma distinta de sociabilidade, denominada como “modo de vida” (ibidem: 89). Em certa
medida, as comunidades ribeirinhas localizadas em áreas de manguezal possuem padrões culturais
semelhantes às sociedades caboclas na Amazônia: são uma categoria social que explora os recursos
ambientais de modo a atender as necessidades sociais e cuja cultura é articulada na crença em seres
encantados que habitam o espaço natural no entorno dessas comunidades (Harris 2006), e que estes
seres têm uma forte relação com a defesa do espaço natural, pois trata-se de sua casa (Vaz e
Carvalho 2013).
No entanto, ao longo da pesquisa de campo, constatou-se que parte dos ribeirinhos
contatados – doze interlocutores – afirmavam não acreditar na efetividade da narrativa mítica como
processualidade simbólica de intervenção e organização do espaço de trabalho pesqueiro. Nesse
ínterim, iniciei meu trabalho de campo na comunidade São Lourenço, também no município de
Bayeux, na Paraíba, naquele momento como requisito do cumprimento da pesquisa de
Doutoramento em Sociologia, obtendo dados interessantes para serem analisados e que me sinto no
imperativo de estudá-los e divulgá-los à comunidade acadêmica.
Os locii da pesquisa são as comunidades da Casa Branca e São Lourenço, localizadas às
margens do Rio Paroeira, afluente do Rio Paraíba. A Casa Branca tem cerca de 2.500 habitantes e
parte desta população tem sua renda familiar proveniente de atividades vinculadas à pesca, extração
de marisco, ostras, captura de caranguejo-uçá e aratu, conforme observou estudo de Silva (2011). A
comunidade do São Lourenço limita-se ao norte com o manguezal, ao sul com o Jardim São
Severino e, a leste, com o Porto do Moinho. O São Lourenço era conhecido como “Cachimbo
Apagado” porque os moradores não tinham concessão de eletricidade nas suas residências, sendo
obrigados a acenderem fogueiras com derivados do coco para afugentarem mosquitos e outros
insetos, bastante comuns em regiões de manguezal. Tanto a comunidade da Casa Branca e São
Lourenço são percebidas por “agentes externos” como lugares insalubres, feios e extremamente
violentos. Basta frisar que a Casa Branca é denominada pelos forasteiros como “Rua do Cacete3”,
enxergando “a pobreza” como espaço da desordem e da falta de regras instituídas. Entre as décadas
de 70 e 90 do século passado, ambas as comunidades, distantes entre si e separadas por quarteirões
de fábricas de beneficiamento de sisal – importante renda econômica do município naquelas
décadas, hoje em franca decadência – tinham população reduzida, circunscritas num nucleamento
de vizinhança entre familiares, parentes próximos e distantes. As relações sociais dentro dessas
comunidades eram estabelecidas a partir de laços de solidariedade e reconhecimento do outro como
3 Cacete, no português brasileiro local, significa agressão física.
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“alguém próximo e que eu controlo a partir da vigilância ocular”. No fim da década de 90 esse
quadro social transformou-se, uma vez que essas comunidades vivenciaram um “inchaço” na sua
população e que refletiu nas formas de organização social do grupo e de suas estratégias de
reprodução social, fenômeno estudado por Britto (1999) entre sociedades de pesca em Arraial do
Cabo, no Rio de Janeiro, Starr (1977) em comunidades pesqueiras libanesas num contexto de
modernização e obsolescência tecnológica, (Silva 2012; Miller, 2002), entre comunidades costeiras
do sul potiguar brasileiro, apenas para citar alguns.
É oportuna uma descrição dos espaços de sociabilidades dessas duas comunidades numa
análise diacrônica (décadas de 80 à primeira década dos anos 2000), para compreender-se os
condicionantes das transformações sociais ocorridas nas relações entre agentes sociais, espaços de
produção da pesca e sistema cultural, entendidas como o mundo de valores que orientam e dão
sentido às relações de produção pesqueira. Nos anos oitenta, a atividade de captura do caranguejo
assumia relevância de reprodução social e cultural, açambarcando toda uma rede de solidariedade
entre familiares e vizinhos, no São Lourenço. A pesca de peixes, captura de outros tipos de
crustáceos (siri, guaiamum, aratu) e a extração de madeira do manguezal perfaziam importância
econômica secundária. A retirada de madeira era mais pronunciada nos meses de maio e junho em
virtude das Festas Juninas. O rio Paroeira, segundo muitos moradores, dentre eles, Piaba, “era limpo
feito o dia, dava para ver o fundo”. A obtenção dos recursos do manguezal, segundo Josefa, “era
abundante, todo dia a gente pegava caranguejo e quando trovejava vinham para a rua, bastava catar
e cozinhar. Antigamente tinha muito peixe, muito caranguejo, hoje tem gente aí passando
necessidade”. Desta forma, o passado e o presente colidiam por externarem significâncias distintas
para os moradores, numa relação de fartura-famitura e o futuro configurando-se como incerto, “não
sei o que vai ser da gente amanhã”, falou-nos Isabel. O São Lourenço estende-se ao longo da
margem do rio e a população não chegava a seis mil habitantes. Havia uma olaria no início do
bairro. Sua desativação e consequente destruição é uma metáfora para entender-se as radicais
transformações ocorridas numa ordem social calcada no trabalho artesanal e o aparecimento de uma
população que vende sua força de trabalho ao capital, desempregada ou semiempregada – os
homens trabalhando nas fábricas, nas construções de casas, no comércio ambulante; as mulheres,
em sua maioria, trabalhando como domésticas. O momento social mais marcante para os moradores
era o último dia de maio, com a coroação de Nossa Senhora. Crianças vestiam-se de anjos, com
suas roupas de cetim azul celeste, veneravam a imagem de Nossa Senhora. A decadência econômica
coincide, com novas experiências religiosas, a partir da instalação de igrejas neopentecostais no
bairro. Como veremos a seguir, sustentamos que essas novas experiências com relação ao sagrado
vão criar dispositivos culturais outros que passarão a dar sentidos diversos à atividade pesqueira e
que incidem nas relações entre grupos dentro da comunidade.
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As experiências individuais e coletivas da produção da pesca na comunidade da Casa
Branca ao longo dos vinte anos analisados aqui assumiram uma configuração própria; no entanto,
ao serem investigadas em conjunto com as dinâmicas vividas pelos moradores do São Lourenço nos
permitirão compreender o processo social da transformação do modo como os ribeirinhos conferem
sentido às suas ações no espaço socializado, sentido este marcado pela “racionalização” não só do
trabalho, mas da vida como fato social total (Mauss 2001). A comunidade da Casa Branca estende-
se ao longo do rio Paroeira, no sentido leste-oeste. Saindo de canoa a rema do São Lourenço – que
está na montante do Paroeira – descendo o rio, chega-se à Casa Branca em cerca de trinta minutos.
A principal produção econômica na comunidade era a captura, processamento e beneficiamento do
caranguejo para a venda a restaurantes, bares e supermercados. O caranguejo era capturado das
lamas do manguezal ou até mesmo dentro da mata. Homens e mulheres habilidosos embrenhavam-
se nas lamas, enfiando o braço na “toca”4 onde morava o crustáceo. Os caranguejeiros me disseram
que identificavam o buraco que tinha caranguejo por conta da presença de fezes na entrada da toca.
Eles punham o caranguejo num saco plástico emalhado – permitia que o crustáceo respirasse – e
assim levavam a captura para casa. Então, acendiam uma fogueira no fundo do quintal – geralmente
de frente para o rio – e punham os caranguejos numa panela grande para cozinhar. Cozidos, os
caranguejos eram levados para o “aceiro” da rua, para a coletividade extrair a carne do caranguejo –
mais valorizada que o crustáceo em si. Lonas imensas eram jogadas ao longo da rua principal e os
caranguejos ficavam dispostos nessa lona para serem “descatembados”5.
Assim, a produção familiar da captura do caranguejo assumia o caráter coletivo, de
solidariedade social para a coesão grupal. Era bastante comum o sistema de rodízio no
beneficiamento do caranguejo, o que permite dizer que a produção econômica gerada pelos recursos
disponíveis no manguezal encetava formas eficazes de reprodução social atreladas a redes de
cooperação e identificação sociais. Outra atividade econômica interessante na comunidade é a
coleta de mariscos nas ilhotas que surgem no período de maré vazante. É uma atividade feminina,
compartida com jovens e crianças; homens os coletam também, mas em menor incidência. Grupos
de mulheres saem em canoas de proa e popa quadradas – denominadas de “baiteiras”6 – e,
dependendo da maré e da presença de mosquitos, usam o chamado “boi de fogo”7 para afugentar
esses insetos e serve, inclusive, para a comunicação visual entre botes, evitando colisões e outros
riscos. A produção econômica oriunda dos recursos disponíveis no manguezal faz com que os
comunitários estabeleçam relações ótimas com o meio, no sentido de obterem, em determinados
4 Segundo o conceito nativo, “morada de bicho”.
5 Descatembar: tirar a carne da ostra.
6 Canoa com proa e popa no formato quadrado.
7 Vasilhame de latão, com várias perfurações de modo a favorecer a saída da fumaça, utilizado para afugentar mosqui-
tos durante trabalho no mangue.
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períodos do ano, uma margem de capital para a reprodução social do grupo, via de regra através das
capturas do caranguejo, extração de mariscos e coleta de pescado.
Em meados dos anos noventa, os moradores acusam que a poluição do manguezal
através de produtos químicos jogados pelas usinas alcooleiras vinculados a uma pesca
indiscriminada de recursos pesqueiros sem o devido respeito às épocas de reprodução de espécies
culminaram numa drástica queda de estoques daqueles recursos. Mediante esse panorama, no início
dos anos dois mil, não havia mais produção de carne de caranguejo, pois a demanda do crustáceo
desapareceu nos mangues próximos à Casa Branca (Silva 2011), forçando os moradores a comprar
estoques de caranguejo de outra região – Canguaretama, Rio Grande do Norte – para obterem os
meios mínimos para a reprodução social do grupo.
Segundo alguns pescadores, houve radical transformação nas relações sociais e
culturais na comunidade, uma vez que muitos moradores começaram a enxergar o trabalho coletivo
como indesejado e pouco eficaz. Nesse período, começaram a instalar-se na comunidade igrejas de
matriz neopentecostal. Podemos inferir que há uma estreita relação entre perda de solidariedade
social e a emergência de práticas religiosas de cunho individualista. Outros trabalhos apontam essa
singularidade histórica como fator de reconstrução de sociabilidades em contextos grupais de forte
coesão social (Harris 2006; Ieno 1999). Desse modo, como o surgimento dessas novas doutrinas
religiosas encetaram práticas sociais que enfraqueceram a solidariedade entre os diversos grupos
que compõem essas comunidades – resguardadas as peculiaridades econômicas e culturais inerentes
às mesmas? E, de que modo, essas transformações sociais afetaram a cultura local, fortemente
assentada numa mediação a partir de narrativas míticas, a saber, a presença do Pai do Mangue como
construção social de regras e recursos (GIDDENS, 2009) para a obtenção dos recursos pesqueiros e
na forma como os agentes sociais interagem entre si e com o meio? Essas questões nortearão esse
artigo.
Metodologia: as regras do jogo
A pesquisa de campo teve uma abordagem centrada na observação participante, que
consiste no pesquisador assumir o papel reflexivo na sociedade observada, a ponto de viabilizar
uma aceitação ótima pelos membros daquela sociedade, pelo menos afável, de modo a não impedir
a necessária interação (Beaud e Weber 2007). Esta interação foi conduzida de modo dinâmico e
horizontal, onde o pesquisador procurou estabelecer uma margem de empatia e confiabilidade para
que os interlocutores pudessem expressar livremente suas ideias acerca da temática investigada,
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observando a importância de o pesquisador ir à pesquisa de campo munido de um referencial teóri-
co prévio, capaz de sofisticar a capacidade de observação e análise dos dados obtidos.
Para a execução do trabalho de pesquisa de campo foram aplicados dois questionários
semi-estruturados: o primeiro procurou diagnosticar questões relativas ao tempo de trabalho no
manguezal, idade, grau de escolaridade, filiação religiosa, renda mensal. O segundo questionário
procurou estender as perguntas mais relacionadas às questões investigadas nesse artigo, tais como a
compreensão dos interlocutores a respeito da narrativa mítica, o alcance social dessa narrativa e as
razões pelas quais aqueles não orientam suas ações no meio tomando como referência os preceitos
morais preconizados pelo ser encantado – não sentir ambição, não competir, zelar pela preservação
do mangue e pescar apenas o necessário para o consumo e venda. A aplicação dos questionários foi
feita entre pescadores, marisqueiras e lenhadores – no total, 12 indivíduos – com a faixa etária
compreendendo dos 18 aos 60 anos. A ocupação principal dos interlocutores é a faina no
manguezal, embora metade deles necessitem trabalhar de forma autônoma em atividades
complementares – tais como comércio informal, serviço doméstico – para obter renda que
possibilite a reprodução social. A média de trabalho no mangue é de 20 anos. Quase todos os
entrevistados têm o ensino fundamental incompleto e, a pedido deles, os nomes foram
intencionalmente mudados de modo que preservasse a identidade e privacidade dos mesmos. Um
dado relevante: todos os entrevistados são filiados a associações religiosas de matriz neopentecostal.
A coleta de dados foi realizada com o auxílio da etnografia, definida como a
representação do trabalho de campo em textos, uma tradução da experiência para a forma textual
(Clifford 2002). Geertz utiliza o termo “tradução” para desenvolver uma formulação teórica sobre o
método empregado na análise dos dados coletados em campo, sendo esta o processo pelo qual um
significado é transferido de uma linguagem para outra. O método etnográfico consiste na inter-
relação entre o pesquisador e os interlocutores, seguida de uma transcrição textual dos eventos que
o olhar e o ouvir (Espinheira, 2008) puderam fomentar como significativos para serem analisados.
As experiências vivenciadas durante a pesquisa de campo foram anotadas em um diário de campo.
A interpretação dos dados obtidos foi tecida dentro de uma hermenêutica cultural (Gee-
rtz 1997: 227), procurando traduzi-la através de uma descrição do mundo específico onde o pensa-
mento faz algum sentido. Os registros dos dados levantados permitiram ampliar o entendimento
sobre o tema, levantar hipóteses, detectar motivações, compreender os discursos, o significado e o
valor dos argumentos dos agentes acerca do trabalho deles no mangue e no rio. Esse entendimento
por intermédio da observação participante leva à construção de um sistema de valores inerente a
uma forma sui generis de condução de vida.
Enfatizo que o perfil dos interlocutores foi organizado de modo que facilitasse a
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confecção do presente trabalho, já que a faixa etária e o tempo de trabalho no mangue e no rio
permitem e autorizam os discursos dos mesmos. A partir da aplicação do survey foram selecionados
os entrevistados que, levando em consideração a conformidade dos dados obtidos com os objetivos
que este trabalho pretende alcançar. Optou-se pelo método da entrevista porque possibilita um
levantamento qualitativo de dados singulares do meu objeto de estudo. As entrevistas seguiram um
roteiro pré-estabelecido e foram mediadas pelo pesquisador. Todos os dados coletados foram
registrados em um gravador evitando que dados secundários – nem por isso menos importantes –
fossem negligenciados.
O que falar quer dizer: o que os ribeirinhos dizem sobre a existência do Pai do Mangue
As Ciências Sociais foram construídas como campo de saber no intuito de compreender
os fenômenos sociais dentro de um viés racionalista, com propostas teoréticas e analíticas
delimitadas, tais como o positivismo-funcionalismo, materialismo dialético, o método
compreensivo, apenas para citar os principais. Com isso, o funcionalismo propunha-se investigar o
tecido social dentro de uma démarche positivista, cuja análise recaía sobre o fato de que
agrupamentos sociais teriam leis sociais próprias de funcionamento e regulação, tendo como aporte
o estabelecimento de uma ordem social moral, compreendido como organismo com solidariedades
intrínsecas (Durkheim 2010). O materialismo histórico-dialético debruçou-se na problemática da
produção material da existência, cujo objetivo seria a satisfação das necessidades coletivas e com o
desenvolvimento histórico do modo de produção – donos dos meios de produção, meios de
produção e forças produtivas – teria resultado numa sociedade de classes (Marx 2013), desenvolve-
se uma ideologia e alienação próprias tão somente compreendidas fazendo-se uso da dialética para
estabelecer os vínculos necessários entre produção material e alienação social (Kovalhov 1975). A
proposta weberiana partiria do pressuposto atomizado na agência social que, reciprocamente
referida entre uma gama infinita de agentes, resultaria numa sociedade estratificada dentro de várias
ordens de dominação e legitimação, da tradicional para a legal-burocrática ao longo do curso
histórico, tomando como base as sociedades europeias. Uma das preocupações de Weber, presente
na sua Metodologia das Ciências Sociais, seria compreender o significado cultural geral da estrutura
socioeconômica da vida social humana e suas formas históricas de organização (Weber 2001). É
indiscutível, no entanto, que estes autores estavam preocupados – cada um com sua abordagem
analítica - com a faculdade humana de dar sentido à existência – ou à História ou as formas de
associação – e o modo como os homens interagem para sobreviver mediante uma natureza externa
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hostil e ameaçadora.
Convém fazer uma breve relação entre razão e racionalidade, enfatizando diferenças
filosóficas entre elas. A razão seria um atributo humano que constrói as possiblidades humanas de
os agentes criarem relações entre meios e fins, amparados por um esteio formal, as regras instituídas
(Nobre 2000). Adorno e Horkheimer (1970) analisam as bases racionais de entendimento do mundo
e das relações sociais a partir de um processo no Ocidente que denominam de “esclarecimento”, que
veio se sobrepor ao pensamento mítico, engastado de fantasmagorias, o logos, pensamento racional
que mensura os fenômenos naturais dentro de uma ordem de causa e efeito. A racionalidade, por sua
vez, pode ser entendida como um processo histórico-cultural que uma sociedade persegue, através
de determinados meios, o alcance dos fins, articulando-se processos materiais e imateriais para a
satisfação dessas necessidades coletivas. Nas sociedades em contexto de modernidade, a
racionalidade refere-se a técnicas institucionalmente validadas que conformam relações
intersubjetivas dentro das dinâmicas sociais. Giddens (2009) já alertara, no entanto, que a
racionalidade em contextos de modernidade não pode ser interpretada e concebida a partir de um
corpus interpretativo “iluminista”, pois as condutas humanas e suas rotinas não são gestadas apenas
por processos conscientes do self mas, inclusive, por processos inconscientes que norteiam a ação.
Nesse sentido, Giddens aproxima-se do debate de esclarecimento porfiado pela Escola de Frankfurt
ao dimensionar e descrever a impossibilidade de apreender o real no amplo escopo das
intersubjetividades em sociedades complexas, pois a razão pode ser também irracionalismo.
De acordo com o que foi descrito no início do texto, partimos do pressuposto que os
comunitários do São Lourenço e Casa Branca estabelecem diferentes formas de contato e apreensão dos
espaços naturais, como enfatizam as falas de Jacinto, 45 anos, pescador de linha e morador do São Lourenço
e Belo, 38 anos, morador da Casa Branca:
“Quando eu entro no mangue pra pesca eu respeito porque se o Pai do Mangue aparecer nem
adianta eu jogar a tarrafa a linha... mas muita gente hoje não acredito nisso mais não... (sic)” (Jacinto).
“Desde pequeno eu escuto meu pai falar essas histórias de pai do mangue... eu prefiro não
afrontar... sei lá... pesco com cuidado, volto pra casa e estou satisfeito” (Belo).
Nos relatos de Jacinto e Belo percebe-se a ambivalência da conduta de agentes sociais
num contexto social em que duas formas morais e normativas orientam a ação: uma relativa às
disposições afetivo-irracionais, como a crença na autoridade do ser encantado no curso dos
processos e da ordem das coisas; uma outra, emergente e crescente dentro das comunidades, são as
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disposições racionalizadas de conseguir determinados fins através de certos meios, no caso em
questão, de uma ordem de produção que separa o universo social do natural, enxergados como
distintos e o primeiro dominando e sobrepondo-se ao segundo. Os comunitários embrenham-se no
mangue e no rio para obter seus meios de subsistência, cuja intenção é se manter. Os meios que os
comunitários utilizam para consegui-los são os mais variados, cujo sentido, “o sentido
subjetivamente visado” (Weber 2000: 4), que o agente “atribui à sua conduta” (Aron 2000: 449), a
priori seria uma intencionalidade de criar relações entre meios e fins, ou como nos fala: “Eu e
minha família somos evangélicos, acreditamos nisso não. Acredito que Deus ajuda a gente a
trabalhar, a ganhar nosso peixe, nossa vida... Pai do Mangue não existe”, Neide, 42 anos,
marisqueira, Casa Branca. Acrescenta-se, ainda, a fala de Nonato, 34 anos, lenhador, São Lourenço:
“Eu trabalho quando posso e quando tem serviço... vou no mangue, pego madeira, vendo... Tudo é
resultado do meu esforço, tem isso de pai do mangue não”.
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É preciso estabelecer uma conexão entre “sentido” e “racionalidade”. Segundo Max
Weber, a ação racional orientada a um fim tem como objetivo perseguir expectativas quanto ao
comportamento de objetos do mundo exterior, para alcançar determinados fins, ponderados e
exigidos com o uso da razão como meio de obtê-los (Weber 2000: 15). O sentido que confere à sua
conduta é obtido através do uso ponderado da razão, explicando o próprio trabalho no mundo
natural através de causa e consequência verificáveis e submetidos a seu juízo de realidade. Sua
conduta estaria, desta forma, erigida sob os pilares de uma determinada racionalidade. Uma das
temáticas mais importantes do pensamento weberiano é a construção da racionalidade do mundo
moderno e suas implicações em todas as esferas culturais (Sell 2013). Embora tenha estudado a
racionalização em outras sociedades, Max Weber defende que no Ocidente, e somente no Ocidente,
este processo resultou no surgimento de uma ciência empírica, imprensa, Estado e formas
econômicas de capitalismo (Souza 1997). Segundo Max Weber, as religiões ditas universais
contribuíram para o desenvolvimento desse processo. Racionalização ocidental consistiria para ele
num processo histórico e social que se origina no campo religioso (Judaísmo e Cristianismo,
especificamente), modelando o que hoje resulta na sociedade ocidental moderna. Racionalização
esta, cuja expressão máxima está na “cultura ocidental capitalista” (Carreiro 2001: 220).
As relações que os ribeirinhos mantêm e estabelecem com o espaço natural é um
prolongamento das relações sociais estabelecidas dentro da comunidade e dão sentido às formas
locais de reprodução social do grupo. Podemos salientar, inclusive, que as práticas sociais em terra
são uma extensão das relações desenvolvidas, articuladas e conflitadas no espaço de produção da
pesca, contexto sociocultural apontado por outras etnografias sobre faina pesqueira (Kant e Lima
1997; Ramalho 2006; Maldonado 1993; Forman 1970). Convém frisar que transformações no modo
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de produção material reflete na forma como estes grupos “pensam” suas práticas sociais, seus
agenciamentos, numa estrutura que ao mesmo tempo é estruturante e estruturada (Bourdieu 1999),
estabelecendo-se numa complexa rede de interdependência dessas relações. Por questões de método
de análise, nesse artigo deter-nos-emos às falas de pescadores, marisqueiras e coletores de
caranguejos que não acreditam na eficácia da narrativa do Pai do Mangue como discurso que
explica e normatiza as práticas sociais dentro do espaço natural e as interrelações dessas
transformações no mundo comunitário.
É importante delinearmos que a oposição auge-decadência das práticas sociais dos
ribeirinhos das duas comunidades não podem ser enxergadas numa temporalidade linear. Pelo
contrário. Acreditamos que essas duas instâncias são faces de um mesmo processo social, o antigo
recriando o novo, dando novos tons. A despeito disso, encontramos pescadores, marisqueiras e
comunitários que enxergavam o manguezal como espaço social habitado por seres encantados. Essa
crença ou fé se consolida na obediência às normas prescritas pelo Pai do Mangue, o ser encantado
que protege o manguezal da cobiça humana, seja através de ações meticulosamente dispostas no
tempo e espaço, seja através de entrega de pequenas oferendas como flores, aguardente, fumo e
outras iguarias. Os processos de sacralização dos espaços e, também, de desencantamento do
mundo são faces de um mesmo processo histórico e social experimentados pelos ribeirinhos da
Casa Branca e São Lourenço.
As experiências com o sagrado requerem dos agentes fé e eficácia na sua efetividade. E
fé é uma construção social baseada em pressupostos não-tangíveis no sentido material do termo.
Nas duas comunidades são observadas ao longo do processo histórico a prevalência de uma cultura
religiosa católica que articulou-se com outras práticas mágicas, reinventando-se. De certo modo, a
instituição religiosa católica comportou-se com reserva em relação às manifestações coletivas de
um catolicismo popular, tais como as romarias a Padre Cícero, o respeito de devoção a Frei Damião,
à conduta ascética dos Ave de Jesus, no Juazeiro do Norte, Ceará. Esses movimentos populares
cuja démarche era a crença nos santos e em seus misericordiosos poderes reforçavam,
intrinsecamente, o poder e legitimidade da Igreja Católica, com seus paradoxos e singularidades,
contexto histórico cultural analisado por Harris (2006) em sociedades caboclas no oeste paraense
cujas práticas de cura e a busca por ajuda pelas gentes ao xamã não resultam na perda do prestígio
do catolicismo local, mas ocasionaria fusões e concessões de ambas as partes. Essas crenças não
propunham a ruptura com a fé instituída pela Igreja Católica, inclusive a reforçavam num processo
cultural de negociação da fé e das práticas sociais em âmbito religioso, ou não, e isso balizava
forças poderosas de coesão e integração sociais. Sendo assim, podemos afirmar que não havia
separação entre experiência religiosa e mundo social, mas uma intercalava-se na outra, afirmando-
se. De outro lado, práticas de curandeirismo – conheci uma interessante interlocutora na Casa
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Branca, Dona Regina, que era conhecida por benzer a comunidade e que, num certo dia, prestou sua
habilidade de piedade e misericórdia ao etnógrafo deste texto – macumba, mesa branca, entre outros,
confundiam-se às práticas sociais processadas pelos ribeirinhos em contato com o espaço de
produção da pesca. A partir disso, seria empreendimento inócuo investigar essas práticas dentro de
um prisma reducionista como se as mesmas fossem resultantes de um catolicismo formal. O
catolicismo popular parece ter absorvido um amálgama de práticas religiosas de um vasto campo
religioso e o ressignificou. Nas últimas décadas, temos presenciado no Brasil, a saber, a emergência
de igrejas neopentecostais e seu ethos próprio de articular-se com o mundo externo. O campo
religioso da Igreja Católica perde espaço e novas formas de sociabilidades são forjadas, negociadas
e até conflitadas a respeito da aceitação de narrativas de seres encantados que afirmam a
convivência paralela ao “mundo dos vivos” (Vaz e Carvalho 2013), tendo como principal
protagonista as religiões de orientação neopentecostal. É dessa questão que tratamos no texto a
seguir.
Do Neopentecostalismo: uma outra forma de interpretar o mundo social da pesca
O movimento pentecostal é originário nos Estados Unidos e chegou no Brasil há mais
de cem anos e vem crescendo na África, sudeste da Ásia e, em especial, na América Latina, o que
Giumbelli (2000) descreve como o mais importante fenômeno religioso em curso na sociedade
brasileira contemporânea. É uma vertente religiosa complexa, heterogênea (Mariano 1996), que
contém centenas de denominações internas com suas formas de compreensão do sagrado e
estruturas hierárquicas singulares. Como este artigo não tem como foco uma análise profunda sobre
o movimento religioso em si, pretende apenas porfiar algumas considerações acerca de como os
fiéis conduzem sua adesão religiosa no que concerne à vida coletiva e as reverberações na
sociedade enquanto totalidade social em que estes agentes sociais estão imersos.
Segundo Mariano (1996), toda religião procura oferecer explicações ao sofrimento
imerecido, fome e morte, entre outros acontecimentos sociais. Nas doutrinas neopentecostais, a
compensação para o sofrimento humano não está numa outra vida, mas pode ser encontrada e
vivida nessa vida, o que oferece novos instrumentos de análise para estudos sobre religião e conduta
de vida, experiência religiosa e escolhas entre meios e fins. Foi nesse sentido analítico que surge o
esboço profícuo das possibilidades de entendimento de uma teologia da prosperidade (Mariano,
ibidem), calcada numa tácita aceitação – e até estímulo – de condições econômicas, portanto
materiais, para desfrutar neste mundo e como signo de status quo e prestígio social, condutas
notadamente rejeitadas pelas doutrinas protestantes históricas. Na mesma via, essas doutrinas
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neopentecostais estimulam aos mais pobres a redenção via trabalho e prosperidade, que reflete,
como num espelho, prosperidade econômica – confirmação da graça religiosa, jungidos aí todos os
paradoxos e contradições que estas formas de sociabilidades encetam. A respeito disso, Pierucci
(1999) conseguiu captar as complexas tramas das sociabilidades das doutrinas neopentecostais, uma
vez que estimulam a secularização e perseguem, a fortiori, formas peculiares de orientação sacral
da vida, dimensionadas na esfera privada, ou como diria Geertz (2001: 151), uma questão
estritamente ligada aos afetos do coração.
No entanto, não é fácil delinearmos em poucas linhas a complexidade que exige uma
análise dessas doutrinas religiosas. Os neopentecostais externam posturas secularizantes – com
relação ao econômico, por exemplo – e condutas conservadoras – Weber diria, afetivo-irracionais –
com relação ao diálogo com outras doutrinas diferentes das delas. Até aí, não há nenhuma novidade,
pois é facilmente observável essa postura intransigente com outras doutrinas religiosas e, até,
religiões de alcance mundial. No entanto, a modernidade em curso apresenta ambivalências
interessantes, a saber: a religião não estaria destinada a desaparecer sob a égide do Iluminismo, mas
a fortalecer-se. Mariz (2000) alerta para a dimensão psicossocial que a experiência religiosa atende
e conforma: a anomia criada pela modernidade geraria necessidades de imersão de indivíduos em
comunidades de fé, fortemente vinculadas. Somando-se a isso, no nível psicossocial apenas uma
minoria teria condições de conduzir a vida sem nenhuma verdade absoluta ou consolo profético,
abrindo um flanco para a experiência religiosa esparramar-se na modernidade e ser, paradoxalmente,
uma das condições para que esta subsista. Para Burity (2000), uma das singularidades históricas da
modernidade tomando como corpus a experiência paradigmática das religiões seria a oscilação
tensa entre o mundo da técnica e da racionalidade cada vez mais instrumentalizada e que as
doutrinas neopentecostais estimulam essa busca por uma prosperidade alijada do contexto em que
estas riquezas são socialmente construídas, produzidas. Em outras palavras, uma perseguição cega
dos fins, não importando os meios empregados.
Fazendo uma revisão da leitura sociológica da questão, as temáticas mais abordadas
com relação às doutrinas neopentecostais são a teologia da prosperidade e seu lastro ideológico, as
ofertas, os dízimos, relações com o dinheiro. Interessa aqui como filiação religiosa articula-se com
o mundo da intersubjetividade, em outras palavras, as culturas daí resultantes. Para isso,
respaldamo-nos nas poucas etnografias e trabalhos que versam sobre essa dimensão da experiência
da doutrina religiosa neopentecostal em face de grupos externos a ela, a exemplo das comunidades
em que estão inseridos os seus adeptos.
A visão neopentecostal sobre o mundo causa incômodo sob a ótica dos católicos das
duas comunidades estudadas. Segundo percebemos, a conduta neopentecostal em contextos grupais
ameaça toda a existência e o movimento histórico (Harris 2006) de resistência dessas comunidades,
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principalmente por terem um universo cultural próprio, com seus preceitos morais, éticos e de
conduta de vida. Os comunitários convertidos a essas novas doutrinas são solicitados a abandonar
toda uma vida social antecessora, uma ruptura com o presente, através da mudança das vestes,
comportamento corporal, proibição a bebidas, ao cigarro, adultério, a brigas e a festas católicas.
Neste sentido, concordamos com Harris (ibidem) quando afirma que na conversão perde-se todo um
conjunto de crenças associadas ao ambiente encantado, mágico que o Pai do Mangue como
narrativa moral havia construído um ethos, uma conduta para adentrar o espaço natural da
comunidade e explorar de modo racional – sustentável, expressão do momento. Esse conflito é bem
descrito por Harris, nessa passagem de “O presente ambivalente”:
“Os protestantes consideram as histórias sobre o boto e outros seres (a cobra grande, etc), o
poder do pajé, a panema [...] como superstições que devem ser descartadas na busca pelo conhecimento
verdadeiro [...] Além disso, o fato de que essas poucas pessoas estavam preparadas para deixar seus parentes
próximos e suas comunidades em nome de suas novas crenças indica que o protestantismo é altamente
individualista” (Harris 2006: 97).
Abaixo, foram selecionadas algumas falas eloquentes coletadas no trabalho de campo
nas duas comunidades ribeirinhas e que, numa análise antropológica mais atenta, pode-se
compreender as relações entre sagrado-profano, individualismo-coletividade, a razão ocular e o
movimento ambíguo e coexistente de secularização – dessecularização:
“Isso é história de trancoso... o Pai do Mangue não existe não, eu nunca vi, nunca
testemunhei...”, Nonato, São Lourenço (pescador).
“Eu não acredito, sou temente a Deus Todo Poderoso”, José, Casa Branca (pescador).
“Sou evangélica, não acredito nessas coisas não, sabe por quê? Isso é coisa de Satanás!”,
Consuelo, São Lourenço (marisqueira).
“Eu sou acredito no que vejo, essa coisa de Pai do Mangue é invenção do povo daqui”, Nonato,
São Lourenço (pescador).
“Eu e minha família somos evangélicos, acreditamos nisso não. Acredito que Deus ajuda a
gente a trabalhar, a ganhar nosso peixe, nossa vida... Pai do Mangue não existe”, Neide, Casa Branca
(marisqueira).
“Só acredito no que vejo”, Tomás, São Lourenço (pescador).
Este processo de racionalização de todas as esferas sociais resultou num processo
denominado por Max Weber como secularização, que se trata da racionalização dos bens culturais
da Igreja e das formas como o Direito moderno se organizou (Pierucci, 1998). A secularização
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implicou, para Pierucci, o abandono do status religioso, perda para a religião enquanto institutio e
emancipação dos indivíduos a ela enquanto ordenadora do mundo. O processo de racionalização
aliado à secularização levou Max Weber a elaborar o controverso termo “desencantamento do
mundo” (Entzauberung der Welt). Tratar-se-ia, segundo Pierucci (2003), a redução do mundo a um
mero mecanismo causal (Pierucci 1998: 50), ou “como aquele trabalho sistemático a que se lança o
pensamento científico de acossar para sempre a ilusão mítico-arcaica de que existe um sentido
cosmológico inerente ao mundo natural” (Pierucci 2003: 162). Na Ciência e Política: duas vocações,
Max Weber ilustra este desvanecimento do mundo mítico e cosmológico em detrimento do
alvorecer da sociedade racional como “abandono de antigos deuses para o surgimento de uma
religião monoteísta com poderes impessoais e desencantados” (Weber 1993: 42-43). Ser racional
nesta nova forma de sociabilidade que emerge no Ocidente é ter “a capacidade de controlar
friamente a conduta e um redimensionamento dessas pulsões para outros padrões”. Padrões estes
que seriam, sugiro, meios quantificáveis e observáveis numa dada realidade social.
Esta conduta exprime-se no domínio do mundo natural através de uma técnica de vida
(Simmel, 1976) orientada por uma intencionalidade causal. Este mundo natural não é mais o locus
do desconhecido, do incomensurável e do não-perceptível. Pelo contrário, é o mundo onde todos os
fenômenos naturais não só são percebidos, mas interpretados pela cognição dos agentes aí inseridos,
“Acredito que Deus ajuda a gente a trabalhar, a ganhar nosso peixe, nossa vida... Pai do Mangue
não existe”. Seria o que Max Weber denominou como dominação racional-legal (Weber 1999: 143).
Segundo Nobre (2000: 95), a dominação racional-legal trata-se de “uma representação que se
solidificou em consensos racionais em torno de regras que devem ser obedecidas”, para que o
mundo externo seja conhecido e posteriormente explorado, caindo num “racionalismo de domínio
do mundo” (Pierucci 2003: 22), como relata o pescador Josinaldo, da Casa Branca: “Só acredito no
que vejo”. Trazendo à baila de minha compreensão, conjeturo que o tipo específico de dominação
do mundo natural pelos agentes sociais é desenvolvida através de “um envolvimento impessoal,
rigorosamente objetivo e o aparato externo apoia suas decisões” (Weber 1999: 213). As condições
externas – balizas para suas decisões de como agir no mundo natural, retirando dele seus meios de
existência – seriam dominação deste mundo específico através do cálculo laborioso do
conhecimento “puramente” técnico. Para Sztompka (1998) a mudança na estrutura da sociedade
pode ocorrer justo quando estabelece-se relações, quais sejam, de cooperação ou competitividade.
Com isso, a ruptura na forma como os agentes empreendem seu modus operandi no espaço natural
pode ser considerado um fenômeno de competição e dissociativo na sociedade em questão?
A Igreja Católica, mais especificamente as Comunidades Eclesiais de Base – vertente da
esquerda católica, sempre foi conhecida como protagonista no apoio aos camponeses em luta pela
conquista da terra. Houtzager (2004), ao analisar o conflito e a modernização do espaço rural
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brasileiro enfatiza o papel vetorial da Igreja Católica como protagonista na mobilização popular
para a luta pela conquista e permanência na terra, principalmente nas décadas de 60 e 70. Nos anos
80, a igreja como catalizadora dos movimentos rurais retira-se desse protagonismo, o que
Houtzager aponta nesse hiato o favorecimento – inintencional, digamos – do avanço das seitas
evangélicas entre as classes sociais mais pobres, dentre elas, as rurais. Ajuda, nesse sentido, a
compreender o processo de adesão de comunidades marginais economicamente, tal o caso aqui
analisado como exemplos lacunares desse processo social. A monografia de Ieno (1999) traz luz a
essa questão e em certo sentido complementa os dados analíticos levantados por Harris nas
comunidades de várzea de Óbidos, Pará. Segundo a autora, as experiências coletivas de movimentos
sociais de populações assentadas no litoral sul do Estado da Paraíba passaram por duas etapas
distintas: a conquista da terra e a permanência nela. A comunidade investigada por Ieno, após a
conquista da terra, passou a produzir coletivamente. Foi nesse momento que começaram a instalar-
se nos assentamentos as igrejas neopentecostais, o que ocasionou numa ruptura ao processo de
produção coletiva: os agricultores engajados nessas doutrinas passaram a produzir no âmbito
familiar, rompendo com toda uma história de produção coletiva e partilha de anseios comuns, ou
como nos diz Harris (2006, p.98), esse processo poderia ser descrito como “uma refutação de todo
um modo de vida”, anteriormente partilhado cotidianamente, afirmação comungada por Farias
(2012), ao estudar os indígenas tabajaras na Paraíba e o processo histórico de expropriação da
cultura grupal devido a adesão desses indígenas a filiações neopentecostais, o que ressignificou o
modo de perceberem-se como indivíduos etnicamente situados. Farias percebe a adesão dos
indígenas tabajaras – recentemente afirmados enquanto tal, num processo que na Antropologia
denomina-se como etnogênese – a doutrinas neopentecostais como um processo de longa duração
que impôs a eles a religião do dominador e a aceitação tácita dessa situação decorreria de uma
estratégia de minimizar a perseguição da classe dominante culturalmente.
O modo de vida rejeitado e refutado como cosmos é o mundo social da pesca, uma vez
que as sociedades de pesca externalizam uma totalidade social que envolvem não apenas a esfera da
produção, mas inclusive o mundo da cultura em que estão assentadas: parentesco, solidariedades,
relações com o espaço natural, competição e cooperação, o mundo do invisível. Pelo que Harris
(Ibidem) e Ieno (1999) apontaram, estas bases da totalidade social foram dilapidadas com a
emergência destes agrupamentos dissociativos. Entendemos aqui como agrupamentos dissociativos
um grupo inserido num cenário de intensas formas de relações sociais e que, por motivos
intrínsecos e variáveis no espectro cultural, tendem a conflitar com os interesses morais ou
finalísticos da comunidade que os dão suporte e referendam enquanto prática.
Brüseke (2010), repensando a sociologia weberiana, explica que na sociedade moderna
existem três esferas que representam a racionalidade moderna: uma racionalidade cognitiva,
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presente na técnica e na ciência; a racionalidade evaluativa, no direito e na ética e, por fim, a
racionalidade expressiva e estética. Como a racionalização é um processo, essas esferas distanciam-
se, diferenciando-se. A etnografia de Robben (1989), empreendida numa comunidade costeira no
litoral sul da Bahia, discute que os atos, ou condutas, não são frutos apenas da fala e do discurso,
mas de um campo da prática, entendida como decisões, atos que cumprem e rejeitam determinadas
escolhas, orientando-os na vida cotidiana. Os conflitos e os dilemas entre os pescadores de canoa e
os pescadores de barcos e a diminuição de oferta de pescado redimensionaram a técnica da pesca a
patamares críticos para a sobrevivência do grupo. A reverência à deusa do mar, Yemanjá, reitera o
caráter dual das relações de produção material da existência e externa que a esfera do trabalho
pesqueiro engendra-se dentro de lógicas próprias, a técnica como resultado de práticas e crenças
socialmente construídas.
No processo histórico em que a modernidade está assentada predominaria a
racionalidade de fins e a racionalidade de valores, que dão sustento às necessidades dos sistemas
econômicos e administrativos, debate semelhante arguido por Habermas e que Brüseke certamente
se baseia. No nosso caso em questão, a rejeição dos ribeirinhos a uma visão encantada do espaço de
produção da pesca engessa a realidade empírica numa perspectiva linear de causa e efeito.
A teoria da estruturação, proposta por Giddens, oferece-nos elementos analíticos para
compreendermos a racionalização no nível da ação. Para este autor, a racionalização da ação,
entendida grosso modo como intencionalidade visada, está intrinsecamente relacionada à
monitoração reflexiva e a motivação da ação, dispostas numa rotina, condição humana exercida, até
certo ponto, de forma reconhecida. No caso específico aqui analisado, as rotinas de trabalho no
âmbito da pesca foram transformadas pelos agentes – aqui vistos como comunitários que praticam a
ação rechaçando as prescrições morais da narrativa mítica – porque a motivação da ação, mudou.
“Eu só acredito vendo”. Houve uma quebra da rotina da ação, como diria Giddens (2009),
ocasionando resultados previsíveis e impremeditados. A ação, disposta ao longo do tempo social, é
articulada numa estrutura pensada enquanto regras e recursos que se desenvolvem, também, como
meios de reprodução do sistema social e cultural. Podemos afirmar, com isso, que as ações dos
agentes tendem, consciente e inconscientemente, a transformarem a estrutura de acordo com as
motivações desenhadas por uma determinada rotina social. Segundo Giddens (2009), as regras
socialmente institucionalizadas, sedimentadas no tempo-espaço, têm natureza intensa, tácita,
informal, porém fracamente sancionadas pelo grupo social. As regras sociais de ação no espaço
natural e imaginadas pelos ribeirinhos como prescrições do Pai do Mangue revelam caráter tácito –
atender ou ignorar, cabe aos agentes decidir -, são de natureza social e transmitidas oralmente por
gerações e, pelo fato de a decisão incidir na esfera individual da ação a sanção é fraca. Caso o
ribeirinho escolha conscientemente estabelecer uma relação entre meios e fins marcadamente
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“racional”, por mais que “eventos” externos antes delegados “à presença do ser encantado ocorram”,
para aquele ribeirinho será desprovido de sentido e valor. Se a integração social subentende a
vigência de reciprocidade entre atores em contextos de co-presença, esta integração está ameaçada a
transformar-se numa outra forma de sociabilidade. A pergunta a que se propôs responder, se a
ruptura na forma como os agentes empreendem seu modus operandi no espaço natural pode ser
considerado um fenômeno de competição e dissociativo, de acordo com a literatura estudada e os
dados empíricos colhidos em campo, pode-se afirmar que em certa medida apresenta aproximações
etnográficas e ambivalências teóricas e analíticas. Essa questão será abordada a seguir.
Considerações Finais
Os ribeirinhos das duas comunidades estabeleceram ao longo do processo histórico
determinadas escolhas culturais para a condução da vida (Sell, 2013), conforme foi exposto aqui.
Neste artigo buscou-se porfiar uma relação entre formas de organização social e individualismo
religioso, inspiradas nas explanações de Troeltsch acerca do tema. Até aqui, os dados empíricos
colhidos em campo tecem relações interessantes entre condutas de vida orientadas por uma
ideologia individualista neopentecostal e suas interfaces com o modo que seus membros
associaram-se nas comunidades em que vivem e, antes de tudo, como a adesão à nova experiência
religiosa exigiu, ou sugeriu, a ruptura com o passado e às práticas culturais anteriormente
assentadas e referidas, fenômeno também sistematizado por (Harris 2006; Farias 2012).
A modernidade foi um projeto do racionalismo ocidental e um de seus pilares, a razão
formal, nunca chegou a seu termo. Weber alertara, ao longo de vários textos clássicos, para a
impossibilidade de a razão, enquanto meio para compreender os mecanismos de causalidade e efeito
dos processos e imperativos ético-morais encetados durante essa busca, poder conhecer tudo. Nessa
mesma linha de argumentação, Adorno e Horkheimer (1970), denunciam o esclarecimento visto
como processo histórico-filosófico da vitória da ignorância e do preconceito e que, ao largo disso, a
ciência na modernidade – e seus mecanismos de verificabilidade de verdade e construção de uma
ordem racional – estaria intrinsecamente relacionada com a produção do capital e promoveria uma
ignorância esclarecida, arquitetada sob o manto da razão instrumental e indiferente quanto aos
meios para chegar a ela. Como bem foi observado nas comunidades investigadas, um paradoxo fica
evidente: os ribeirinhos abandonaram a narrativa do Pai do Mangue como esfera cultural prático-
moral e, em seu lugar, instalara-se uma outra forma de fé, a religiosa-institucional, fruto do processo
sociocultural de dominação racional legal-burocrática, com forte inspiração secular, como indicam
as falas a seguir:
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“Eu e minha família somos evangélicos, acreditamos nisso não. Acredito que Deus ajuda a
gente a trabalhar, a ganhar nosso peixe, nossa vida... Pai do Mangue não existe”, Neide.
“Eu não acredito, sou temente a Deus Todo Poderoso”, José.
A fenomenologia clássica ergueu seus pilares de conhecimento do mundo tomando
como referência o que se convencionou falar de privilégio das constatações visuais. A tradição
filosófica tem dado preeminência à visão como o sentido co-extensivo ao próprio pensar, a exemplo
dos gregos antigos que já entendiam o ato de pensar como extensão do ato de ver, logo, ocularidade
(Simões 1999). É passível de ser entendido e compreendido os fenômenos que podem ser
mensurados, avaliados e sistematizados sob o jugo do saber calcado na percepção visual,
sobremaneira, conforme aponta Bachelard (1949). Percebe-se nos discursos dos ribeirinhos a
construção de um saber-fazer nas relações sociais estabelecidas com o espaço natural uma visão
objetiva e, em larga medida, desencantada, dos processos simbólicos de organização do espaço da
produção da pesca, como enfatiza “Isso é história de trancoso... o Pai do Mangue não existe não, eu
nunca vi, nunca testemunhei”.
Segundo Simões (ibidem), Bachelard denuncia que o fundamento ocularista conduz a
imaginação para a abstração e o formalismo, fazendo do homem mero espectador e do mundo mero
espetáculo, cujo progresso científico viria a ser uma rotina (Diniz, 2001), fadada a repetir-se,
tornando-se numa razão formal (Bachelard, 1978), instrumental (Adorno e Horkheimer, 1970),
indolente (Santos, 2000), ou seja, alheia ao progresso como meio de emancipação do homem como
ser capaz de fazer escolhas e ter liberdade para escolher, articulando-se ativamente contra o
desperdício da experiência vivida, como reforça Souza:
“Racionalidade significa aqui o imperativo de qualquer existência humana de tornar-se uma
personalidade na medida em que a corrente de decisões últimas que dá, em última instância, o sentido da
individualidade de uma vida, passa a ser conscientemente executada e vivida” (Souza 1997: 69).
Apesar das limitações estruturais do fazer científico e suas externalidades no mundo
social, Boaventura de Sousa Santos propõe uma ruptura nos processos sociais de construção de uma
pós-modernidade autoritária e unidimensional. Conduzidos pelas mãos de Alice, os homens podem
construir coletivamente uma razão criativa e crítica, prenhe de espanto e revolta (Santos 2002).
Habermas (2002) defende que a luta contra a razão instrumental, que governa o mundo da técnica e
da vida, é possível se a sociedade instrumentar-se – no sentido positivo do termo – através de uma
razão comunicativa, construto social erguido através da solidariedade entre os agentes.
Eis um desafio tomando como referência a pesquisa de campo aqui investigada: o
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corpus proposto de análise – os ribeirinhos que não acreditam na narrativa mítica do Pai do Mangue
como construção simbólica de organização, apropriação e extração dos recursos disponíveis no
espaço natural – verificou que parte significativa dos interlocutores contatados vivenciou uma
ruptura com a comunidade, pois aderiu-se a doutrinas neopentecostais. Pode-se refletir que essa
nova conduta de vida reelaborou o modo como estes ribeirinhos interpretam as práticas sociais e
culturais locais. Desse modo, esse acordo tácito – de acreditar num Deus legitimado
institucionalmente – e romper com os quadros culturais locais potencializou um racionalismo
instrumental, pois estes acordos reforçam que esses ribeirinhos buscam uma ligação entre o mundo
e Deus num viés marcadamente individualista e o engajamento a práticas sociais estranhas à
comunidade confirmam que a relação que estabelecem com o espaço natural é objetificada e
dominada por um ethos, embora ainda vinculado ao mundo simbólico, conforme foi discutido aqui,
individualizante. Eis aí um paradoxo: os ribeirinhos que aderiram à doutrina neopentecostal
vivenciam, ainda, uma experiência que carece de comprovação objetiva e ocular: a existência de
Deus. Sua fé reside, a fortiori, numa longa tradição judaico-cristã que se assentou na mentalidade
do mundo ocidental e que, pelo poder institucional da Igreja, as comprovações da existência são
experimentadas a partir da experiência do sagrado, por si só, autoexplicativa. Fazendo uma analogia
com as fichas simbólicas e os sistemas peritos estudados por Giddens (1991), a construção social da
confiança – em algo, em alguma coisa – pressupõe conhecimento indutivo fraco e que em contextos
de modernidade os sistemas periciais especializados em virtude da ciência – cada vez mais distante
da cognição do indivíduo comum – inaugura um novo estágio de fé. Fé num sistema abstrato de
técnicas racionalmente forjadas que desconhecemos as leis que as regem. Assim, a razão é uma
forma de crença, fé. Sem dúvida, como foi dito anteriormente, a modernidade foi um projeto que já
nasceu fadado a não consolidar-se.
Nas duas comunidades operam formas de relações sociais de intervenção no espaço
natural para a obtenção dos meios de existência: uma contrapõe-se à outra. A ruptura com os
preceitos do Pai do Mangue pode, inclusive, acarretar transformações ecológicas nessas
comunidades, pois o espaço natural passou a ser enxergado – por um grupo dentro das comunidades
– como locus de dominação, exploração e usufruto dos recursos. Sem dúvida, coexistem valores,
normas e interdições comunitárias que regulam o acesso aos recursos disponíveis, em tese, a todos
os comunitários. Hardin (1978), ao propor a teoria da Tragédia dos Comuns, informa que os
regimes de propriedade comum teriam como consequência a degradação de recursos, inevitável por
conta da superexploração dos mesmos. Como forma de evitar isso, Hardin defendia a intervenção
do Estado ou implantação de propriedade privada. Hardin equivocou-se, segundo Diegues (2001),
por conta de dois fatores: 1) as populações tradicionais são as responsáveis pela manutenção e
preservação dos recursos; 2) o Estado moderno e seu projeto desenvolvimentista seria o maior
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responsável pela degradação ambiental. Trabalhos acadêmicos sobre essa última questão são
inúmeros (Ferreira 2011; Picoli 2006; Domingues 2007). Contudo, no contexto histórico-cultural
aqui investigado, as condutas de vida racionalizadas intragrupalmente acenam para a possibilidade
de agravamento dos danos ambientais e o risco das gerações futuras serem alijadas de um rico
patrimônio cultural que, em larga medida, simboliza as intensas relações sociais e culturais que os
ribeirinhos estabelecem com o manguezal e o rio.
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