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Pblica 22.01.12

Detroit uma runa. Detroit sexy. Detroit a Amrica

Miguel Sousa Tavares Uma histria roda do prato Perl Doutoramento aos 80 anos Midos Contos para escutar numa livraria lisboeta Beleza Fruta para o rosto

sumrioCapa5 A Pblica recomenda 6 Coordenadas 9 ZoomRon Arad v Le Corbusier Joana Amaral Cardoso

26 entrevista

Crnicas4 muito istoO Tripla Mebocana Jos Diogo Quintela e Mariana Soares

8 A nuvem de calasHipteses de afundamento Rui Cardoso Martins

11 Uma imagemO visitante inesperado Miguel Gaspar

10 Reprter soltaO soldado urina, a modelo tropea Paulo Moura

12 Pergunta-RespostaCsar Bessa Monteiro: Roubar uma carteira grave, roubar uma msica j no Cludia Sobral e Carlos Ramos

47 Ns no mundoBicho e electricidade Ricardo Garcia

48 TarotMaya

49 Porque simA deriva autoritria Daniel Sampaio

50 InquritoJoo Wengorovius Miguel Esteves Cardoso, Pedro Mexia e Jos Diogo Quintela

Viver melhor38 BelezaFruta para o rosto Maria Antnia Ascenso

Capa14 ReportagemQuase perdemos Detroit Kathleen Gomes

40 Cozinha

Tema34 PerlEmancipada sem querer Cludia Carvalho e Rui Gaudncio

Miguel Sousa Tavares A relao que h entre ocupao do territrio, agricultura, caa e culinria fascinante 40Por Isabel Coutinho e Enric Vives-Rubio

Biscoitos para o ch Hugo Campos

44 MidosLivros ao vivo no Chiado Rita Pimenta e Miguel Manso

44CAPA FOTOGRAFIAS DE TIMOTHY FADEK/CORBIS/VMI. CASA ABANDONADA EM DETROIT/ MICHIGAN CENTRAL STATION

Directora Brbara Reis Editora Margarida Santos Lopes [email protected] Subeditora Joana Amaral Cardoso [email protected] Produtora Maria Antnia Ascenso [email protected] Copydesk Rita Pimenta Design Mark Porter Directora de Arte Snia Matos Designers Ana Carvalho, Carla Noronha, Mariana Soares Email [email protected] SUPLEMENTO PARTE INTEGRANTE DO PBLICO DO DIA 22/01/12 E NO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

crnica muito isto

O Tripla Mebocana Jos Diogo Quintela

SNo admira que os chineses tenham cado doidinhos para ter l o Catroga, a ponto de o irem arrancar reforma, coitado. Em Pequim, at j lhe chamam o Tripla Mebocana

por m f que se andam a levantar suspeitas sobre as nomeaes para o conselho geral e de superviso (CGS) da EDP, depois da venda da participao do Estado Three Gorges. Comecemos pela escolha de Eduardo Catroga para presidente. O ex-ministro das Finanas uma opo natural, pela anidade que tem com os novos accionistas. Anal, Catroga um homem que no aprecia pentelhos e os chineses so conhecidos por terem poucos plos. Coincidncia? No creio. Em negcios desta dimenso, o acaso no tem lugar, tudo preparado ao milmetro. Esta apilosidade (chamemos-lhe assim) das bases mais slidas para se edicar uma frutuosa ligao prossional. Tomara a muitos accionistas maioritrios terem tanto em comum com os seus trabalhadores. No admira que os chineses tenham cado doidinhos para ter l o Catroga, a ponto de o irem arrancar reforma, coitado. Em Pequim, at j lhe chamam o Tripla Mebocana: tm-no no bolso caso haja o mnimo desconforto para as trs gargantas. Quanto s outras nomeaes, Eduardo Catroga explicou-as cabalmente, na sua entrevista ao Expresso: Tinham lgica do ponto de vista dos chineses, eram caras que eles j conheciam. Mais nada. Como bvio, Catroga no est a mentir. Os chineses j conheciam aquelas caras. Porque, para os chineses, as nossas caras caucasianas so todas iguais. Como, alis, para ns, as deles. Ser o Braga de Macedo, o Teixeira Pinto, o Ildio Pinho e o Rocha Vieira, ou o Rui, o Arnaldo, o Vtor e o Joo, -lhes indiferente. Para os orientais, so quatro brancos esqulidos, com narizes compridos e olhos bizarros, sem prega epicntica. E com demasiados plos, claro. Se, por acaso, um deles faltar a uma reunio, vaise buscar um arrumador rua, veste-se-lhe um

fato e, pronto, j est. Se h empresa em que isto pode ser feito, a EDP: patres chineses que no do pela diferena e um CEO que conhecido por dar fatos de marca a sem-abrigo. Antnio Mexia que guarde um dos Armanis que d para caridade, s para o caso de ser preciso vestir um substituto. Mesmo a nomeao de Celeste Cardona, ao contrrio do que Catroga disse, no difcil de explicar. Anal, trata-se de uma ex-administradora da CGD. Parece-me currculo suciente para justicar esta entrada no CGS da EDP. Difcil de explicar foi a nomeao para o conselho de administrao da CGD, mas onde que essa j vai... Ao contrrio do que os maldosos jornalistas e comentadores querem fazer crer, qualquer um destes nomeados mais do que competente para desempenhar as funes no conselho de superviso. A pista est no substantivo. O que a superviso? a capacidade que alguns tm (como o Super-Homem) de ver mais do que o homem comum. Estamos a falar de Teixeira Pinto, que teve a viso de sair do BCP antes que o banco desse para o torto. E de Catroga, que teve a viso de no ser ministro de Passos Coelho, para poder aceitar um cargo destes. E que dizer de Ildio Pinho, que teve a viso de dar emprego a um futuro primeiro-ministro de Portugal? O lugar destes supervisionrios s pode ser um conselho de superviso. a

Humorista [email protected]

4 22 Janeiro 2012 Pblica

MARIANA SOARES

a pblica recomendaNuno Pacheco Tiago Bartolomeu Costa Isabel Coutinho Marco Vaza

Tiago com poetas na toca e no palcoPr Projecto singular, est este. Tiago Be Bettencourt fe fechou-se na to toca, perdo, n no seu estdio c caseiro, chamou m msicos e a amigos e cantou, c com eles, vrios p poetas: Ary, P Pessoa, Sophia, O ONeill, Florbela E Espanca, Ramos Rosa ou Lopes Vieira. o As outras vozes so de Fernando Tordo, Carminho, Caman, Ins Castel-Branco, Dalila Carmo e Pedro Puppe. Ele conta como tudo se passou, no bonito e elegante livro que envolve o CD. E vai mostrar como resulta ao vivo, mas a solo, em Fevereiro: dia 1 em Lisboa (em local a designar), 3 em Aveiro (Centro Cultural) e 4 no Porto (Hard Club). Quem espreitar nesta toca no dar o tempo por perdido. Alm do mais, tambm um gesto de lantropia: o lucro integral reverte para a Ajuda-me a Ajudar. Tiago Bettencourt Tiago na Toca & os Poetas EMI Music, 15

Sim, senhora primeira-ministraMargaret Thatcher , ainda hoje, uma gura que desperta as maiores discusses, muitas vezes confundindo-se argumentos com emoes. A estreia do lme (9 Fevereiro em Portugal) onde a Dama de Ferro inglesa interpretada por Meryl Streep, tem dado azo a leituras sobre as polticas da antiga primeira-ministro. O livro de John Campbell, resumo em 550 pginas dos dois volumes de mais de 1200, editado em 2009, um retrato muito lcido de Thatcher. O livro revela as contradies do seu discurso, o modo como foi revelando as contradies da prpria Inglaterra e como vergou um pas a uma poltica. The Iron Lady de John Campbell edio Pinguin (em ingls), 16 (14,25 na Fnac)

Da nova literatura brasileiraOs Malaquias conta a histria da famlia de Andra del Fuego, cujos bisavs morreram ao serem atingidos por um raio na Serra Morena. Esta brasileira, que nasceu em So Paulo em 1975, recebeu o Prmio Literrio Jos Saramago 2011 com este romance que acaba de ser publicado em Portugal. um romance spero, potico, original como disse a acadmica brasileira Nelida Pion, que fez parte do jri. Oferta-nos uma leitura da qual no se sai inclume, cada captulo traado para nos perturbar. Os Malaquias Andra del Fuego Crculo de Leitores Preo para scios: 12,90

Sherlock Holmes nunca passa de modaH histrias e personagens que nunca desaparecem. Pode ser falta de imaginao dos criadores contemporneos, mas tambm pode ser porque so to boas que vale sempre a pena revisitlas. Sherlock Holmes, o detective criado por Arthur Conan Doyle no nal do sculo XIX, j teve centenas de encarnaes no cinema e na televiso, desde Basil Rathbone e Jeremy Brett, talvez as mais famosas, at Robert Downey Jr., que transformou o mestre da deduo num heri de aco. Sherlock el s origens da personagem, tudo deduo, com uma dinmica visual que deve muito co cientca, ou no fossem os seus criadores Mark Gatiss e Steven Moat, os produtores de Dr. Who. Mas o que faz realmente a diferena Benedict Cumberbacht, que criou um Holmes exactamente como deve ser: brilhante, arrogante, anti-social, a quem as mentes normais fazem muita confuso. Sherlock DVD 2. temporada, ed. BBC, disponvel em amazon.co.uk, 16

frasesNingum quer acabar com a justa causa [nos despedimentos], o Governo est aqui para dialogar e quer ouvir os parceiros sociais 23 Setembro de 2011 Chegou-se a um acordo que refora a competitividade da economia nacional, em que se lanam as bases para o crescimento econmico e em que se preservam as bases para a paz social 17 Janeiro de 2012 O acordo garante direitos adquiridos dos trabalhadores, nomeadamente na questo das indemnizaes e aposta nas polticas activas de emprego e na formao dos desempregados () um autntico pacto de conana, um acordo do dilogo 18 Janeiro de 2012ENRIC VIVES-RUBIO

Sobre a reforma das leis laboraisDespedir Despedir em Portu Portugal um verdadeiro pesadelo, um pesa autntico exerccio kafkiano, (em Portugal na Hora da Verdade) Abril de 2011 por demais evidente que o combate precariedade laboral, a luta por uma maior criao de emprego e a ambio de alcanarmos uma maior competitividade para as nossas exportaes exigem que, de uma vez por todas, nos deixemos de ideologias h muito datadas e desacreditadas, e reformemos a lei laboral no que diz respeito aos despedimentos individuais Abril de 2011

lvaro Santos PereiraMinistro da Economia e do EmpregoPblica 22 Janeiro 2012 5

coordenadaso mundoboicote Iro ameaa fechar estreito de OrmuzVinte por cento do petrleo mundial passa pelo estreio de Ormuz, que o Iro ameaa fechar em resposta s sanes internacionais. A Arbia Saudita j veio oferecer um aumento da sua produo para compensar um boicote ao crude de Teero. O chefe da diplomacia iraniana deixou quinta-feira um pedido em jeito de aviso aos pases da regio quanto aos EUA, que ali mantm uma forte presena militar: Por favor, no se deixem arrastar para uma posio perigosa.

cinema O Artista destacou-se nos Globos de OuroO lme mudo O Artista, de Michel Hazanavicius, venceu trs Globos de Ouro, incluindo o de Melhor Filme de Comdia ou Musical e Melhor Actor num Filme de Comdia ou Musical (para o francs Jean Dujardin). O lme arrecadou ainda a melhor banda sonora. Os Descendentes e o seu protagonista, George Clooney, venceram, respectivamente, Melhor Filme Dramtico e Melhor Actor Dramtico. Meryl Streep foi considerada a Melhor Actriz num Filme Dramtico por A Dama de Ferro e Michelle Williams conquistou Melhor Actriz num Filme de Comdia em A Minha Semana com Marilyn. O Globo de Melhor Realizador foi entregue a Martin Scorsese por A Inveno de Hugo.

GPS Pedro CunhaOeiras, Portugal. 38 70 57N / 9 24 85O

por ccapital da cultura Guimares 2012 abriu ontemA 3. Capital Europeia da Cultura portuguesa abriu ontem ocialmente e a festa estava prometida para o centro histrico de Guimares, animada pela companhia catal La Fura dels Baus. Agora, sero onze meses de programao, com mais de 600 eventos, mas com os responsveis a prometerem que o mais importante aproveitar a oportunidade para revitalizar a cidade e a regio tambm na vertente econmica e social. trocar as fotograas no acesso aos balnerios das equipas visitantes de Alvalade. Nas paredes onde antes se viam imagens de adeptos em poses agressivas e smbolos conotados com a extrema ra r direita passou a estar agora es, e um campo de malmequeres, oridas. o girassis e borboletas coloridas.

convite Governo es espanhol quer Vargas Llosa no Cervantes Llos sO Executivo de Mariano Rajoy convidou Mar r o escritor peruano Mario Vargas o Llosa para a presid presidncia do Instituto d Cervantes, organismo central da organism cultura espanhola no exterior. Prmio a Nobel da Literatura e autor de Li L romances como A Tia Jlia romance es e o Escre Escrevedor, Conversa e nA Catedral e O Sonho do Cat te Celta, Vargas Llosa tem , nacionalidade espanhola nacio o desde 1993 e vive grande desd d parte do ano em Nova par rt Iorque. No a primeira Ior r vez que um Governo PP ve e o convida para dirigir o instituto que promove in a lngua e a cultura espanholas no mundo o primeiro foi o de Jos Mara Aznar, em 1996. hora Az z do fecho desta edio, o f escritor ainda no tinha esc c dito sim. o

2011 Mais de seis mil pessoas foram declaradas insolventesAs falncias de particulares j es e representam mais de 56% do total de processos, tendo registado uma subida de 154% face a 2010. De acordo com dados divulgados pela seguradora Crdito y Caucin, com base nas insolvncias publicadas em Dirio da Repblica, mais de seis mil pessoas foram afectadas por estes processos em 2011. No total, houve 6065 casos de falncias judiciais de particulares. No que diz respeito s empresas, registou-se 4731 processos no ano um passado, o que signicou u aumento de 14%.TIRON /AFP

polmica Sporting substitui imagens agressivas por malmequeresA direco leonina decidiu

6 22 Janeiro 2012 Pblica

I ASOC

IADOS

concertaoActo ou efeito de concertar. Embora seja um substantivo feminino, normalmente protagonizado no masculino. Sobretudo quando se trata de concertao social, tema central dos ltimos dias. Mais fcil de encontrar a forma verbal concertar. E o seu signicado to pacco que nem parece deste mundo. No modo transitivo, quer dizer harmonizar vozes ou sons musicais, conciliar. No intransitivo, concordar. No reexo, ajustar-se. H um dicionrio que d um exemplo muito expressivo (se pensarmos ao contrrio da actualidade): Concertaram a maneira de sair daqueles apuros. Ou entraram em combinaes. Mas isso, se mal esclarecido, pode levar a processo no tribunal. Que o digam os dirigentes sindicais desconcertados. Uma concluso se pode tirar desta breve pesquisa, concertar ter sempre que ver com msica. E, se qualquer diapaso emite o som L, certamente que o concerto em Portugal tambm teve uma audincia l. Nos camarotes da Europa. Com aplausos. Rita Pimenta

LUKE MACGREGOR/REUTERS

palavras

nmeros

0,3

O prazer todo deleEle a prova de que um artista pode atingir picos de criatividade aos 74 anos e pensar em grande a partir de um gnero clssico e com a qualidade de sempre. David Hockney, um dos maiores pintores contemporneos, inaugurou ontem na Royal Academy de Londres A Bigger Picture, exposio com 150 obras dos ltimos 50 anos em que explora, quase obsessivamente, a representao da paisagem. Entre elas, esto pinturas gigantescas de Yorkshire, onde o artista nasceu e hoje vive, depois de quatro dcadas na Califrnia. Esta srie comeou a ser feita h sete anos, quando Hockney comprou uma casa em Bridlington, junto ao mar, e decidiu viajar pelo campo com muitos cigarros e uma cadeira de realizador no porta-bagagens, xando a passagem das estaes. Esta uma exposio sobre o prazer visual, disse um dos comissrios, Marco Livingstone. At uma criana de seis anos pode experiment-lo. Fecha a 9 de Abril.

por cento a recesso que o Banco Mundial (BM) prev para a zona euro este ano. A instituio estima ainda que a economia mundial cresa 2,5%, valor que deve passar a 3,1% em 2013. A regio da moeda nica vai contrariar esta tendncia e, em vez de crescer 1,8% em 2012 como o BM previra, vai mesmo entrar em recesso.

17

Eric Cantor cita ReaganEnto, Reagan disse para nunca fazer acordos, nunca aumentar os impostos, cortar sempre os impostos (e no apenas isto), mas Eric Cantor um gnio.

horas foi quanto durou a maratona negocial que sentou mesma mesa Governo, patres e UGT para discutir medidas de reforo da competitividade. No acordo com os parceiros sociais, o executivo deixou cair a proposta da meia hora de trabalho adicional por dia, mas assegurou outras medidas: as frias vo passar para 22 dias e as indemnizaes por despedimento e os limites mximos do subsdio de desemprego sero reduzidos.

Yup! Foi o que eu disse. Acreditem no velho Gipper, etc.

CARTOONARTS INTERNACIONAL. WWW.NYTSYN.COM/CARTOONS

10.152

so as queixas de crimes contra crianas e jovens que a Associao Portuguesa de Apoio Vtima recebeu entre 2000 e 2010. Em causa esto maus tratos fsicos e psquicos a menores entre os zero e os 17 anos. Para os especialistas, os nmeros cam muito aqum da realidade e reectem falhas no sistema de proteco de menores.Pblica 22 Janeiro 2012 7

crnica a nuvem de calas

Hipteses de afundamento Rui Cardoso Martins

OE chegamos s bases sociolgicas do homem mais odiado de Itlia (ri-te de inveja, Berlusconi): Como chegou a capito?

Zeca tem uma leitura clssica, mas tambm inovadora, da tragdia martima no Mediterrneo. H anos eu j lho disse fez uma cambalhota mental e comeou a procurar valores na desgraa, e sorte no azar. No morreram trs ou quatro mil pessoas no Costa Concordia porque o capito aproximou o navio tanto da terra que no se afundou no alto mar. Por outro lado, s encalhou porque a aproximao foi estpida e rasgou o casco nas rochas. Mas temos de chegar ao famoso erro humano do comandante. No venham ao Zeca com falhas de pilotagem, vaidade latina de se mostrar aos passageiros, querer saudar um comandante amigo que mora na ilha de Giglio. O erro muito mais humano. Nenhuma dessas razes serve. Ele tinha era uma namorada, ou amante, a viver na ilha. Era por isso que ali passava, cada vez mais perto, para ela o ver no seu paquete de luxo e ele a ela. Procurem-na! Um romantismo realista, pensei. Talvez partilhado por outro amigo que se especializou em desastres gerais, comeando pelos do amor. Mas o mgico Serip esvaziou a questo: Possvel , mas a hiptese revela uma tendncia muito popular, para no dizer populista, que tem tendncia a no ser verdadeira. Estive algum tempo paralisado entre a proa e a r deste problema. Mas o Serip passou meses em cruzeiros de luxo, sulcou as espumas do Mediterrneo das ilhas de Itlia, mas tambm da Turquia, e da Grcia, contratado para fazer desaparecer a partenaire numa caixinha, adivinhar a carta impossvel do baralho, dar s senhoras bouquets de plstico, alegrar crianas com coelhinhos e caniches de balo soprado. Mais romntica prosso no podia ter: na primeira viagem foi com a mulher, as melhores frias de sempre, lua-de-mel, em 21 dias deram s quatro espectculos e todos os passageiros queriam ser fotografados com as estrelas da casa, perdo, navio. No ltimo contrato, anos depois, conheceu a segunda mulher, e mgico de bordo e

passageira desconhecida de repente... No sei se podia ir com ela para a cama no camarote. De qualquer modo, se no podia... E voltou a terra at hoje, e tambm a perdeu. Mas falamos do homem que recebia os casais que subiam o passadio do paquete de luxo e l estava Serip, levitando no convs, a quase dois metros de altura, no seu tapete mgico de Aladino! Do artista premiado que fez cruzeiros at na Escandinvia, de Estocolmo a Helsnquia, um dia inteiro, e viagens que servem para os passageiros se embebedarem mais barato do que em terra e os bbedos subiam ao palco e tiravam-lhe o material e outros eram enjaulados em celas de ao quando comeavam a destruir a ponte (esta parte da biograa era escusada mas Serip no tem nada na manga!). O ilusionista internacional que cumprimentava, na primeira la, o capito do navio, e se admira com o sr. Francesco Schettino (homicdio negligente, abandono, cobardia, etc.). O comandante , em geral, uma pessoa muito inteligente e com nvel. O Presidente da Repblica de um pequeno reino [Serip diz coisas impossveis que soam bem] com leis e regras prprias. Ele representa, como em geral, nas elites, aqueles valores ticos e morais, salvar primeiro os outros, a responsabilidade... Se falha, a resposta rpida. Serip embarcou num cruzeiro em que o capito, um jovem bemparecido, foi acusado de m conduta por uma tripulante, e no primeiro porto foi substitudo, vai l para a tua terra. Porque nos navios de cruzeiro de luxo a vida uma utopia. Todos do o melhor. Escreve-nos Serip em memorando losco sobre o mistrio: Nos cruzeiros encontrei o melhor exemplo do que eu chamo NAF=Neo-Anarquia-Futura: hierarquia dos melhores quando esto no melhor das suas faculdades, mas com a exibilidade de mudarem quando as suas capacidades no esto ao nvel da sua competncia. E chegamos s bases sociolgicas do homem mais odiado de Itlia (ri-te de inveja, Berlusconi): Como chegou a capito? Por mritos ou cunhas? Se foi por cunhas, quem so os responsveis? Fez outros erros anteriores? Se fez erros anteriores, por que razo um capito incompetente est na melhor nave da melhor companhia italiana? Se calhar tropeou e caiu num bote, por magia, como na noite de escurido. a Escritor [email protected]

8 22 Janeiro 2012 Pblica

zoom

Ron Arad v Le CorbusierSo duas linhas paralelas, que no se interceptam: Corbs e A-Frame. A primeira, aquela em que nos focamos aqui (sem trocadilhos porque isto tudo uma questo de viso, de culos, e com isso no se brinca), a dedicada ao histrico Le Corbusier. Ambas as linhas so desenhadas pelo arquitecto e designer Ron Arad (sim, aquele da estante Bookworm, que serpenteia paredes acima) para a PQEyewear. Que, por sinal, a sua prpria marca de culos escuros e armaes. A Corbs, que por aqui paira, tem a particularidade de, em dois modelos distintos no que toca aos culos escuros (redondos e oblquos), abdicar dos parafusos que unem as astes ao suporte das lentes. Ondulam, uma vez mais na obra de Arad, como articulaes humanas como vrtebras animais, explica ele. O grau de abertura autocontrolado pela espinha que comanda essas articulaes animais oculares, que no os deixa abrir para fora mais do que o confortvel para quem os usa. O efeito nal, em camadas de massa com ligeiras linhas coloridas, foi tal que esto nomeados para os Design Awards 2012 do London Design Museum para saber quem ganha, do vestido de casamento de Kate Middleton pera de Guangzhou, esperar at 24 de Abril. a J.A.C. [email protected] www.pq-eyewear.com

Pblica 22 Janeiro 2012 9

crnica reprter solta

O soldado urina, a modelo tropea Paulo Moura

AAs modelos mais bem pagas tm 15 ou 16 anos e os soldados tm 18 ou 19. Os deuses da Guerra e do Amor so crianas

s imagens de soldados americanos a urinar sobre cadveres de talibs no nos deviam admirar. O ambiente num teatro de combate no Afeganisto, tal como nos bastidores de uma passerelle em Paris, semelhante ao do recreio de uma escola secundria. A natureza do poder pueril, embora no o queiramos ver. Quem tem uma arma na mo sempre mais respeitado. Por alguma razo, as pessoas no tm vontade de insultar um tipo que traz uma metralhadora ao ombro. Tendem a ser simpticas com ele, a mostrar por vezes um afecto despropositado e ridculo. Numa guerra improvisada, como a da Lbia, chegava a ser divertido observar o fenmeno, porque o mesmo homem podia ser taxista num dia, ou engenheiro, e no dia seguinte aparecer de camuado e AK47. A diferena de tratamento era logo evidente, mesmo da parte dos que o conheciam h anos. o respeitinho, originado pelo medo, que os mais duros disfaram de verdadeiro amor. Pattico, embora no to bsico como parece. A lgica esta: acreditamos que quem tem uma arma na mo necessariamente detentor de uma autoridade legtima. E o instinto diz-nos que no devemos questionla. Tem de haver alguma justia no facto de algum ter colocado uma Kalashnikov nas mos daquele homem, que portanto superior a mim. O raciocnio serve bem o nosso propsito de sobrevivncia, e vlido no apenas para as Kalashs, mas para qualquer tipo de arma poltica, religiosa, econmica. Quem as possui, e ao poder que elas conferem, deve saber o que est a fazer. As sociedades modernas desenvolveram dois padres para os comportamentos masculino e feminino: os soldados e as modelos de passerelle, que interpretam os arqutipos do guerreiro e da vestal.

O soldado representa a fora, a modelo a beleza, respectivamente a imagem interior que cada gnero possui do outro, o animus e a anima. E se a beleza se deseja casta, da fora espera-se que seja justa. O soldado e a modelo so o paradigma do ser humano adulto, em cada um dos gneros. So aquilo em que qualquer adolescente pensa que se vai tornar, embora depois, na prtica, nenhum chegue l, e ainda bem. O mundo est feito assim, para que no se atinja a plenitude. Quando se estava quase a conseguir, j se entrou na decadncia. Com que idade percebeu que falhou na vida?, a primeira pergunta do inqurito da Pblica. Simbolicamente, temos o soldado e a modelo, essa espcie de concentrado das qualidades masculinas e femininas. Todos os gestos de uma modelo so perfeitos e desejveis. Por denio, no tem movimentos em falso. Por isso to hilariante e grotesco quando uma tropea na passerelle. como ver o eterno feminino a estatelar-se. Os soldados tambm no falham. Andam pelas guerras, esses stios perigosos, nas fronteiras do mundo civilizado, a lutar para que tenhamos garantidas as nossas segurana e felicidade. Tanto um como outro so mitos de grande categoria acreditamos neles como reais. Ou no fossem as instituies militar e da moda os maiores craques em propaganda. Mas a verdade, a estranha verdade, que estes adultos perfeitos no so sequer adultos, nem podiam ser. As modelos mais bem pagas tm 15 ou 16 anos, a mesma idade dos soldados na maior parte os conitos. Os dos pases democrticos e desenvolvidos, como os EUA, tm 18 ou 19. Os deuses da Guerra e do Amor so crianas. assim normal que os soldados urinem em cima dos inimigos mortos. A guerra aquilo. No sabiam? a

Jornalista [email protected]

10 22 Janeiro 2012 Pblica

uma imagemMAX ROSSI/REUTERS

O visitante inesperadoTexto Miguel Gaspar

S

e h um captulo fascinante na histria da navegao, o dos capites e dos navios loucos. Como o lendrio Holands Voador, o capito que queria dobrar o cabo da Boa Esperana no meio duma tempestade, mesmo que tivesse de navegar para sempre. Na histria, que voou da tradio para a pera com o mesmo nome que Richard Wagner comps em 1843, o Holands Voador volta a terra de sete em sete anos para procurar o amor de uma mulher que o liberte da maldio de errar at ao m dos tempos nos mares. No ter sido a busca do amor eterno que atraiu a terra o errtico capito Francesco Schettino, depois de ver o enorme navio de 114 mil toneladas que comandava deitar-se no fundo do mar como um gigante, que, farto de navegar, decide fazer uma tranquila sesta ao largo de uma bonita ilha como a de Giglio, no arquiplago da Toscnia. O visitante inesperado, o Costa Concordia, como o barco de Gulliver ao largo de Liliput, tal a desproporo entre o navio de cruzeiro de quase 300 metros de comprido e o pequeno porto da ilha, qual o barco parece ter chegado como se tivesse sido empurrado pela mar. Evidentemente, no foi a mar. Intrpido, como o Holands Voador, o capito quis fazer uma tangente ilha para agradar a um membro da tripulao, natural de Giglio. No uma faanha equiparvel de dobrar o Cabo da Boa Esperana no tempo dos veleiros, mas o preo o mesmo: a maldio do comandante. Neste caso, no uma maldio romntica, como a que o amor redime, mas uma maldio moderna. A do capito que, depois de feito o disparate, abandona o navio em vez de car a bordo, cuspindo na tradio, e desaparece de cena num txi, para acabar na priso. Isto depois de mentir ao capito de porto que lhe telefonava a partir da distante Livorno (no continente), que

o mandou regressar a bordo, ao que o capito Schettino respondeu que no podia, por estar demasiado escuro. Uma tragdia moderna, a do Costa Concordia, portanto. Um risco impensado, navio ao fundo. Mas no culpemos apenas o amaldioado capito. Nas conversas dos especialistas, que se vo lendo em jornais por todo o lado, tambm h quem diga que ao decidir dar uma volta a 180 graus e navegar em direco a terra, o capito Schettino ter salvo muitas vidas. O que no justica, evidentemente, a confuso vivida a bordo a seguir ao acidente, tal qual foi descrita pelos passageiros, portugueses e outros. A tripulao no sabia o que fazer para evacuar os mais de trs mil passageiros que estavam a bordo. E, como o capito se ps ao fresco, no se pode dizer que o exemplo que veio de cima tenha sido inspirador. As vidas que se perderam no desastre do Costa Concordia so todas cobrveis incria. H tambm uma indstria orescente que levou um rombo. Navios de cruzeiros cada vez imponentes galgam os oceanos. De entre os seis maiores, o mais antigo foi construdo em 2006, o ano em que o Costa Concordia comeou a navegar. Uma loucura moderna: construir navios cada vez mais gigantescos para alimentar um negcio muitssimo rentvel. A segurana posta em causa por esse excesso? Sero estes navios loucos? Os especialistas dizem que no, que so seguros e sosticados. Alguns dizem que so difceis de manobrar. E chamam a ateno para o facto de o rombo no casco que causou o naufrgio estar superfcie e ser visvel, quando o normal seria que estivesse debaixo de gua. Um mistrio digno da lenda do Holands Voador? Ou s um sinal de que esta no apenas a histria de um capito maldito? a [email protected] 22 Janeiro 2012 11

pergunta resposta

Csar Bessa Monteiro Roubar uma carteira grave,O advogado, especialista em propriedade intelectual, lembra que importante investir muita conscincia da ilicitude. Um contedo, frisa, no pode ser visto como coisa deTexto Cludia Sobral Fotograa Carlos RamosPortugal vai passar a ter um tribunal de propriedade intelectual. S agora houve essa necessidade? A conscincia da necessidade j vem de algum tempo atrs, mas s agora que se reuniram as condies para que este tribunal fosse criado. J tinha sido previsto em 2008, a troika imps que fosse instalado at ao nal do primeiro trimestre. H que ter muito cuidado na instalao e na organizao do tribunal, porque se criado de qualquer maneira pode no ajudar a resolver os problemas que motivaram a sua criao. H quem diga at que no chega um, que seria conveniente haver dois ou trs. A Internet veio lanar novos desaos quanto propriedade intelectual. Ela uma ameaa para os autores? A Internet muito boa, mas tambm representa uma ameaa. As vendas online so imensas, ao ponto de a Unio Europeia j ter publicado uma directiva sobre o comrcio electrnico. De acordo com estudos feitos pela OCDE, a venda de produtos contrafeitos na Internet, que veio contribuir para agudizar esse agelo, e fora dela j representa mais do que o produto interno bruto de 150 pases. So milhes de milhes de euros. E porqu? Porque as penas que se aplicam contrafaco ainda no so graves. As redes do crime organizado esto a passar do trco de droga e de armas para a contrafaco. E a viso que temos daquela contrafaco de, por exemplo, uma marca de calas uma viso do passado. Hoje em dia o que preocupa que j estamos a falar de contrafaco de produtos farmacuticos, alimentares ou at de peas de avio. Os pases j esto a ver que a contrafaco tem de ser severamente punida. Que soluo defende para a difuso os contedos culturais na Internet? Um contedo, seja uma obra musical, literria, no pode ser considerado uma coisa de ningum da qual toda a gente se pode apropriar. O que circula na Internet, em princpio, tem um autor, que tem de ser defendido. Se no tivermos esta concepo, a criao desaparece. Mas como que se poder garantir essa proteco aos autores? Os princpios so os mesmos que para uma obra clssica, depois h o problema da aplicao da lei. A mais complicado, por isso que se est12 22 Janeiro 2012 Pblica

a pensar em adoptar medidas no muito clssicas como, por exemplo, suspender o acesso dos infractores Internet. evidente que tudo isto tem de se passar sob controlo judicial. Tem de se actuar de forma imediata. Se vamos utilizar os meios clssicos do tribunal, nunca mais chegamos a deciso nenhuma. H um certo sentimento de impunidade? H uma certa falta de conscincia da ilicitude destes actos. Se eu for Feira do Relgio comprar umas calas contrafeitas, estou a violar uma marca e no se considera que isto seja um crime muito grave. Concorda com o projecto de lei da cpia privada apresentado pelo PS? Em determinadas circunstncias, justica-se que eu possa fazer cpias para meu uso. Ainda no conhecemos bem a lei, mas h um aspecto que acho importante que a aplicao de taxas sobre os suportes, que so meios para a eventual violao de direitos de autor. uma taxa que reverte a favor dos autores e que, no fundo, vai compens-los. Tm surgido pela Europa os partidos-pirata. Em Portugal j existe um movimento Que defende a liberdade total. H dois valores que temos de ter em considerao: o direito que o pblico tem de aceder aos meios culturais e tambm o de quem cria, que tem de ver protegido o objecto da sua criao. Como que isto se resolve em concreto? Nestas matrias, a realidade est a avanar muito mais rpido do que o Direito e, muitas vezes, somos confrontados com situaes para as quais no h solues jurdicas ainda. Mas estamos s a falar no aspecto repressivo e h tambm um preventivo. Isto passa muito por educar as pessoas. No h muita conscincia da ilicitude do acto. Roubar uma carteira grave, roubar uma msica j no to grave. a [email protected]

, roubar uma msica j nona educao, j que ainda no h ningum s porque circula na Internet.

Pblica 22 Janeiro 2012 13

Em 40 anos, Detroit passou de terra da abundncia a cone da milho de empregos, a cidade no tinha nada para os substituir. reinventar-se. Vai ser a prxima Berlim ou Pompeia? Para uma

SPENCER PLATT/AFP

Quase perdemos Detroit

recesso americana. Quando a indstria automvel extinguiu um Um tero da metrpole est abandonada, mas Detroit procura cidade que foi declarada morta, o pulso de Detroit continua forte.Texto Kathleen Gomes, em Detroit

capa

V

ai-se a Detroit ver uma cidade morrer. Ns ramos mais ricos que Deus nos anos 20, diz Michael Hodges, reprter de cultura do jornal local Detroit News, enquanto vemos a cidade em movimento a bordo do seu carro. Ningum tinha visto tanto dinheiro num s lugar. Michael est a exagerar quem disse que Deus tinha dinheiro? mas quando o mundo era a preto e branco e em Technicolor, Detroit era o bilhete postal do sonho americano. A cidade de Henry Ford, Meca da indstria automvel, continha a mo-de-obra operria mais bem paga dos Estados Unidos. O osis da classe mdia. Algures na dcada de 1910 ns pagvamos cinco dlares por dia nas linhas de montagem. A notcia chegou ao Imen! Foi nessa altura que a nossa populao rabe comeou a vir, nota Michael. Dearborn, um subrbio a oeste de Detroit, contm a maior comunidade rabe nos Estados Unidos. Os arranha-cus em art dco na baixa da cidade, com os seus trios insuperavelmente faustosos, so um testemunho desse perodo em que Detroit rivalizava com o cosmopolitismo de Nova Iorque. Mas no h muito tempo, rvores comearam a brotar do topo desses edifcios. o que acontece quando uma cidade se esvazia: a natureza vem reclamar o seu domnio. Jerry Herron, 62 anos, um homem de uma inteligncia espirituosa, o que pode ser confun-

dido com ironia. Quer dizer, o que pensar de um homem que acabmos de conhecer e que v as horas num relgio de bolso? E o lao. E o fato e colete a condizer, que parecem obra de alfaiate. Tudo isto seria banal em Nova Iorque, mas em Detroit? O Dr. Herron decidiu usar um lao quando concorreu a um lugar na universidade, julgando que isso faria com que fosse mais difcil esquec-lo. E quando conseguiu o emprego, pensou: por qu car s pelo lao? O escritor Tom Wolfe no sabe, mas tem um irmo mais novo em Detroit. Ele vai ali ao barbeiro e j volta. 10 minutos. Em Maro de 2009, uma equipa da televiso chinesa veio a Detroit e convidou Herron, professor de estudos americanos na Wayne State University, a acompanh-los pela cidade. Eles queriam ver duas coisas em particular, a estao de comboios e a fbrica da Packard, lembra. So as runas mais icnicas da cidade, que revistas, jornais, televises e lbuns de fotograa (preo de capa: 50-125 dlares) nunca se cansam de reproduzir. A Packard uma antiga fbrica de automveis de luxo que ocupa cerca de oito quarteires num ermo da zona leste de Detroit. Encerrada em 1956, foi progressivamente pilhada e vandalizada. Grati tomaram conta da fachada como hera. Partes da sua estrutura foram demolidas e os destroos deixados no local. Pilhas de lixo. Como zona de guerra, seria credvel. Por sua vez, a Michigan Central Station um edifcio de 18 andares da autoria dos mesmos arquitectos da Grand Central Station em Nova

Iorque. Construda em 1913, a estao encerrou em 1988. O dilema da cidade que no existe um cemitrio para todas estas carcaas vazadas, ou um parque temtico onde os seus habitantes poderiam contemplar o passado e a seguir deix-lo para trs. difcil escapar ao passado quando ele tem 18 andares de altura. Aquilo nunca mais vai voltar a ser coisa alguma. E, portanto, limitase a estar ali como um Partnon no-ocial, diz Jerry Herron sobre a estao de comboios. O Partnon est no topo de uma colina, como um monumento ao prodgio cultural de uma civilizao. Os gregos tm orgulho nele e apontam para o Partnon quando falam da glria que foi a Grcia. No me parece que se possa apontar para a Michigan Central Station da mesma maneira porque no uma runa produzida por uma venervel cultura antiga; uma runa criada pelas mesmas pessoas que vivem aqui agora. E isso faz dela uma viso assustadora. Muitas vezes, o passado fsico de Detroit um grande fardo. Mas voltando a Maro de 2009, os jornalistas da televiso chinesa pediram a Jerry Heron que se deixasse lmar diante da fbrica da Packard e da Michigan Central Station. E a seguir perguntaram: Professor Herron, no se importa de nos dizer o que que um americano sente perante o colapso de toda esta grandeza e grandiosidade?

Pouco urbanosDetroit perdeu 25 por cento da sua populao na ltima dcada, uma queda brutal s ultra-

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passada pelo caso nico de Nova Orlees. Nenhum furaco atingiu Detroit. Algum escreveu numa runa da cidade: Deus abandonou Detroit. Mas quem disse que Deus alguma vez esteve em Detroit? A tragdia de Detroit uma criao humana. Para onde foi toda a gente? Para o subrbio. Primeiro (dcadas 60-70), porque a populao branca no queria viver junto dos negros vindos do Sul rural e segregacionista. E depois porque o subrbio prometia um estilo de vida mais atraente do que a cidade: casas maiores, com relvado e garagem. O que quer dizer que a cidade apenas uma condio temporria, nota Jerry Hurron. Um meio ganhar a vida para atingir um m casa prpria com vizinhos iguais a mim. Isso o que torna as cidades americanas muito diferentes das europeias. Paris, por exemplo: no me parece que os franceses alguma vez tenham ido para Paris pensando no que tinham de fazer para deixar Paris. Pelo contrrio: quanto mais perto se est do centro da cidade, mais rica, mais cara e mais graticante pode ser a vida. Na Amrica, quanto mais longe se est da cidade. E isto uma das coisas mais absurdas sobre o nosso urbanismo. Ns no fomos urbanos at ao Censos de 1920. Essa a primeira vez que a maioria dos americanos vive em cidades de dez mil ou mais habitantes. Em 1950, a cidade a forma de vida dominante. Em 1970, os americanos tornaram-se a primeira populao suburbana na histria da nossa espcie face deste planeta. E, portanto, uma pessoa pensa: ns, americanos, s estivemos interessados na cidade durante um perodo de 50 anos. Em

1970, as cidades j eram: j tnhamos o que queramos. Esse simples facto denota um imenso desperdcio: construmos estes lugares magncos com arranha-cus e hotis e casas e ruas e lojas e cinemas e museus e depois, em pouco tempo, fomos embora. Enquanto isso, nos anos 70, os fabricantes de automveis comearam a deslocar a sua produo para o Sul dos Estados Unidos (onde os patres no teriam de fazer tantas concesses aos sindicatos porque estes eram praticamente inexistentes), para o Mxico, ou mais recentemente para a China. Ou uma fbrica podia fechar simplesmente por j no precisar de tanta mo-de-obra como antes, cortesia da automatizao do trabalho. Durante muito tempo, as pessoas no quiseram admitir que o modelo econmico que sustentou Detroit terminou por volta de 1970, diz John Gallagher, 62 anos, jornalista de economia do Detroit Free Press e autor de um livro recente sobre o futuro de Detroit (tese: Detroit a nova Berlim). A seguir Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos so o nico pas que se mantm de p, e por isso todas as nossas indstrias tinham monoplio em todo o mundo automvel, ao, borracha, qumicos, tudo. E, naturalmente, a Alemanha acabou por recuperar, o Japo acabou por recuperar e todos estes pases comearam a construir as suas prprias indstrias de automveis e de ao e comearam a reclamar uma parte do mercado s companhias americanas. Para continuar a pagar os benefcios e salrios que, por exemplo, a General Motors pagava em 1960, elas te- c

O dilema da cidade que no existe um cemitrio para todas estas carcaas vazadas, ou um parque temtico onde os seus habitantes poderiam contemplar o passado e a seguir deix-lo para trs

A Packard uma antiga fbrica de automveis de luxo que ocupa cerca de oito quarteires na zona leste de Detroit. Encerrada em 1956, foi progressivamente pilhada e vandalizadaTIMOTHY FADEK/CORBIS/VMI

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O que est a acontecer agora que a escala da recesso que atingiu o pas e Detroit mudou o pensamento das pessoas em relao forma como vamos sair dela, diz o arquitecto Tom Goddeeris

O Russell Industrial Center, instalado numa antiga fbrica, mistura ateliers de artistas e empresas com um perl mais criativo

riam de ter mantido o monoplio 90 por cento ou mais do mercado. Hoje, as companhias americanas tm, no mximo, 50 por cento do mercado. Isso so milhes de veculos por ano que outros esto a vender. Portanto: Detroit no entrou em crise ontem ou h trs anos. Detroit est em declnio h 40 anos. O Michigan [estado de que Detroit a capital] tinha uma histria de ciclos econmicos, portanto quando a economia estava bem, vendamos milhes e milhes de carros; se havia uma recesso, os trabalhadores eram mandados para casa durante dois meses, mas tudo voltava a ser como antes e toda a gente esperava que voltasse a ser como antes. Mas ningum percebeu que no se tratava de uma mudana cclica, mas estrutural. Detroit passou os ltimos 40 anos em estado de negao at ser sacudida por uma srie de choques em cadeia: o colapso do mercado imobilirio (milhes de americanos perderam as suas casas por deixarem de poder pagar a hipoteca), a falncia da indstria automvel e a descoberta de que a populao da cidade tinha cado abaixo do milho de habitantes (714 mil). Finalmente acordmos, resume John Gallagher.

A bolha do Auto ShowClaro que possvel ir a Detroit e no ver Detroit. Milhares de jornalistas fazem isso todos os anos, em Janeiro, durante o Auto Show, a maior feira automvel dos Estados Unidos, onde as marcas americanas, europeias e japonesas vm exibir os seus novos modelos. uma bolha: durante o dia,ERIC THAYER/REUTERS

os jornalistas so transportados em autocarros dos seus hotis para o centro de convenes; noite, so transportados em autocarros para jantares num dos trs casinos da cidade, cortesia das companhias de automvel. O Auto Show a prova de que at a indstria automvel tem o seu star-system mas aqui o modelo de qualquer jovem industrial de gel no cabelo parece ser um herdeiro Agnelli ou, em todo o caso, um playboy com um belo guardaroupa. Os jornalistas inspeccionam os carros at ao ltimo parafuso ou aguardam a sua vez para entrevistar o patro da Ford. Quem aquele senhor? No sabemos, mas sabemos que deve ser Algum Realmente Importante pela forma como todos reagem sua presena. o Allan Mulally, diz-nos o reprter de uma rdio local. Estou espera que ele termine o seu momento paparazzi para o entrevistar. Visto do cima de umas escadas desta espcie de stand automvel desproporcionado, o jornalismo um formigueiro. Mesmo a tempo do Auto Show, os jornais americanos acabam de publicar histrias sobre os sinais de retoma da indstria automvel nos Estados Unidos: os americanos esto a comprar mais carros (2011 foi o melhor ano em termos de vendas desde a recesso de 2008:12,8 milhes de veculos) e esto a comprar mais carros americanos. A General Motors e a Chrysler, que h trs anos entraram em falncia, e a Ford, que hipotecou a empresa, tiveram um ano lucrativo. O estado de esprito em Detroit optimista. O governador do Michigan, o republicano Rick Snyder, ocupou o pdio do Auto Show para declarar: Estamos abertos para fazer negcio aqui no Michigan. Passmos um mau bocado, tal como a indstria automvel, mas estamos a voltar em fora. Bob King, presidente do sindicato dos trabalhadores da indstria automvel, um democrata que se referiu a Obama oito vezes durante os 19 minutos da sua conferncia de imprensa, proclamou: O facto de a indstria automvel ter dado a volta a prova de que podemos fazer manufactura nos Estados Unidos. Durante muitos anos pensou-se que no, que era preciso externalizar a produo. Mas no possvel ter uma forte economia americana sem uma forte base industrial. Pergunta de um jornalista canadiano: Quando olha para a sua cidade-natal, que possivelmente vai entrar em insolvncia em Abril... O mayor fala de 50% de desemprego efectivo, as ruas sem iluminao, os lotes abandonados... Isto suciente para trazer Detroit de volta? Bob King: What brings Detroit back is jobs. A realidade que o Michigan perdeu um milho de empregos na ltima dcada. Portanto, quando vemos histrias sobre a contratao de mil pessoas, claro que isso so boas notcias mas preciso relacionar isso com o facto de termos perdido tantos postos de trabalho, nota Tom Goddeeris, arquitecto e director de uma organizao comunitria com programas de revitalizao urbana no noroeste de Detroit. Detroit e indstria automvel sempre foram sinnimas. A indstria est bem, depois de ter sido salva por um emprstimo de emergncia da Administrao Obama. Mas a cidade? Existe ressentimento em relao indstria automvel por no estar a fazer mais por Detroit?

Oh, no, repetiram todos os Detroiters a quem perguntmos toda a gente deseja o sucesso dos Big Three (os Trs Grandes, como a Ford, GM e Chrysler so conhecidas). Mas Detroit percebeu nalmente que estava do lado errado da histria ao deixar que uma nica indstria dominasse a economia da cidade. O que est a acontecer agora que a escala da recesso que atingiu o pas e Detroit mudou o pensamento das pessoas em relao forma como vamos sair dela, diz Tom Goddeeris. Percebemos que no podemos car sentados e esperar que a indstria automvel recupere e empregue aquele milho de pessoas de volta. J ningum pensa assim. Para mim, essa a maior mudana que ocorreu nos ltimos cinco anos: estamos a livrar-nos de algumas das coisas a que estvamos agarrados. A Padaria Avalon, no centro de Detroit, pode no parecer grande coisa de fora, mas uma vez l dentro h pain aux noix, po de sementes, focaccia, caf expresso, um porttil Mac aberto numa mesa, um iPad noutra a Avalon est em Detroit, mas podia estar em Brooklyn. No um caf a fazer-se passar por uma padaria, uma padaria: os tabuleiros industriais dominam o espao, a massa trabalhada, cortada e pesada mo, vista de toda a gente. H um pequeno balco do lado esquerdo e trs, talvez quatro, mesas. Toda a gente em Detroit conhece a Avalon. Toda a gente sabe que mais do que uma padaria. Duas mulheres, Ann Perrault e Jackie Victor, abriram a Avalon h 16 anos. Ann vem buscar-nos padaria e leva-nos para o escritrio e armazm, num prdio ao lado. A conversa vai incluir Jackie, que no est presente, mas fala atravs do iPhone que Ann colocou sobre a mesa. A cidade tinha um milho de habitantes e nenhuma padaria que pudesse merecer essa designao, diz Jackie. No que ela e Ann tivessem qualquer experincia comercial ou alguma vez na vida tivessem feito po. Nos anos 90, Detroit fez uma tentativa para atrair empresas de larga escala para a cidade. O Renaissance Center, um enorme complexo de torres construdo sobre o rio, no produziu o renascimento que o seu nome prometia. Ann e Jackie faziam parte de um grupo de activistas liderado por duas guras lendrias locais, James e Grace Boggs, que nunca acreditaram que essa era a soluo para a cidade. A Avalon nasce de um impulso poltico servir a comunidade mais do que de um impulso comercial, dizem. J nos anos 80, o James costumava dizer: No esperem pelo homem o que ele chamava o homem para vos dar um emprego. Criem o vosso prprio negcio. Faam o vosso prprio po. Arranjem os vossos prprios sapatos., recorda Jackie, 46. Isso agora parece bvio porque a economia no oferece os postos de trabalho que oferecia ento. Mas naquela altura acho que as pessoas ainda estavam convencidas de que tudo o que precisavam era de arranjar um emprego numa empresa e o resto acabaria por acontecer. Ann, 52, intervm: Noutras cidades, os imigrantes que chegam tipicamente comeam pequenos negcios. Penso que isso particularmente verdade em cidades que no se apoiam ou que no tm uma mentalidade empresarial. Durante anos acreditou-se que bastaria chegar a Detroit e que os empregos iriam apare- cPblica 22 Janeiro 2012 19

ERIC THAYER/REUTERS

capacer do nada porque era o bero da mo-de-obra no-qualicada mais bem paga do pas. O rendimento familiar em Michigan equivalia a 120 por cento da mdia nacional, diz John Gallagher. H tempos entrevistei uma famlia que estava a passar por diculdades econmicas. Mas eles vinham de uma famlia em que, nos anos 60, o pai era canalizador mas toda a gente ganhava bons salrios porque toda a economia irradiava da indstria automvel. A me era uma dona de casa que nunca teve de trabalhar. Os seis lhos do casal frequentaram escolas catlicas, o que custa mais dinheiro do que uma escola pblica, e a famlia vivia numa casa beira do lago. E tudo isto s com o salrio do pai. Agora impossvel. As pessoas no querem admitir que esse tipo de vida no volta mais. Ann e Jackie abriram a Avalon num no centro da cidade, num bairro que era um deserto comercial e um notrio gueto, com sinais visveis de pobreza e abandono, problemas de droga. Tambm era o nico lugar em Detroit com servios de assistncia para sem-abrigo, o que signica que havia muitos sem-abrigo nas ruas. Mas Ann e Jackie tambm sabiam que, demogracamente, era um bom lugar: tinha quatro hospitais, um museu (o Detroit Institute of Arts) e a Wayne State University. No era por isso que estavam nervosas; mas o princpio de que s usariam produtos biolgicos Ok, hoje toda a gente faz isso, mas h 16 anos era uma novidade, especialmente em Detroit, diz Jackie iria obrig-las a vender um po mais caro do que o convencional. O que que as pessoas vo dizer? Bem, o primeiro comentrio que tivemos assim que abrimos as nossas portas foi: Obrigada por abrirem um lugar onde posso gastar o meu dinheiro. As pessoas disseramnos isso vezes sem conta. O bairro estava to mal-servido. Existia uma percepo errada de que Detroit no era um lugar para abrir um negcio. Ns no sentamos isso e acontece que tnhamos razo, resume Jackie. A Avalon j no uma ilha. O bairro volta ainda est em transio terrenos vagos, comrcio intermitente, zonas deprimidas mas mudou muito (a comear pelo nome: o infame Cass Corridor foi rebaptizado de Midtown). Hoje, a zona oferece lojas de crepes, um restaurante vegetariano, um hotel de charme, uma sala de cinema independente, cafs, um bar de vinhos e, num futuro prximo, um supermercado Whole Foods uma presena com profundas ressonncias culturais, j que esta cadeia costuma xar-se em zonas urbanas com uma populao jovem, de bom nvel econmico e altamente qualicada. A presena de um Whole Foods mais importante em termos simblicos do que outra coisa, admite Sue Mosey, a mulher que todos apontam como a grande responsvel pela transformao de um bairro onde toda a gente quer morar. muito difcil para Detroit atrair as cadeias nacionais. Em Midtown temos o nico Starbucks da cidade. Havia outros, mas fecharam. Voltei ontem de Nova Iorque, onde estive cinco dias: uma pessoa tropea em Starbucks, trs em cada quarteiro! Os trs maiores empregadores do bairro dois hospitais e a universidade tm investido na sua revitalizao, atravs da compra e reabilitao de espaos residenciais e comerciais.22 22 Janeiro 2012 Pblica

Na ltima dcada, estas instituies investiram dois mil milhes de dlares nesta rea. E, desde o ano passado, oferecem emprstimos a fundo perdido aos seus empregados que queiram comprar ou arrendar casa em Midtown. A ideia repovoar o centro de Detroit com jovens prossionais qualicados. O programa tem sido um enorme sucesso. Para um prdio com 30 unidades, j temos umas 60 pessoas em lista de espera. Temos uma taxa de ocupao de 95 por cento em toda a nossa rea residencial aqui, diz Sue Mosey, directora do programa. Temos um dce de oferta imobiliria. uma ironia, numa cidade onde o nmero de casas desocupadas mais do que duplicou na ltima dcada: quase 80 mil unidades em 2010. Um tero de Detroit composto por casas e lotes de terreno abandonados, uma rea equivalente cidade de So Francisco.

Em 2012 no h rvores a brotar no topo dos arranha-cus de Detroit. No ltimo ano, Dan Gilbert, milionrio nmero 293 na lista Forbes dos 400 Americanos Mais Ricos, comprou trs deles, bem no centro da cidade

Detroit bomEm 2012 no h rvores a brotar no topo dos arranha-cus de Detroit. No ltimo ano, Dan Gilbert, milionrio nmero 293 na lista Forbes dos 400 Americanos Mais Ricos, comprou trs deles, bem no centro da cidade. Em Agosto de 2010, Gilbert mudou a sede da sua Quicken Loans, a maior empresa online de emprstimos hipotecrios nos Estados Unidos, e 1700 empregados, dos subrbios para a cidade. Este Vero, trouxe mais 2000 empregados para a cidade. Ao faz-lo, Gilbert inverteu a tendncia das ltimas dcadas. O simbolismo do gesto evidente: como o batedor de campo que vai frente para testar a segurana do terreno, o objectivo de Gilbert dizer que Detroit um bom lugar para investir e encorajar outros a segui-lo. Em vez de Dan Gilbert, como estava programado, Jennifer, a sua relaes pblicas, anuncia sem explicaes adicionais que vamos ter um encontro com Bruce Schwartz. Schwartz estende o seu carto, que diz Embaixador de Relocalizao em Detroit. Subimos at ao 10 andar de um edifcio onde Gilbert instalou os escritrios da Quicken Loans. Bruce guia-nos at uma parede de vidro com vista sobre a downtown e anuncia, mirando a cidade aos seus ps: Em tempos, esta j foi a artria mais activa do mundo. E ns temos planos para ela. Planos: reabilitar os edifcios histricos recentemente adquiridos e reconvert-los em espaos residenciais e escritrios para novas empresas focadas em Internet e tecnologia, com espao comercial na base. Ao mesmo tempo, Gilbert e outros empresrios esto a nanciar um programa de incentivos inspirado no modelo de Midtown para repovoar a baixa da cidade. Dan Gilbert um lho de Detroit e quer ver esta cidade renascer, diz Bruce Schwartz. Gilbert, 49 anos, o maior proprietrio de imobilirio em Detroit, a seguir Cmara e General Motors. Mas ele insiste em retratar o seu recente investimento na cidade como uma causa lantrpica e no como uma oportunidade de negcio. Isto mais uma paixo para ele. Hei-de trazer esta cidade de volta. Ele quer que isso seja parte do seu legado, diz o seu porta-voz. Quanto dinheiro que Gilbert investiu na baixa da cidade? Jennifer, a relaes-pblicas-sombra, intervm: c

A Michigan Central Station um edifcio de 18 andares da autoria dos mesmos arquitectos da Grand Central Station em Nova Iorque. Construda em 1913, a estao encerrou em 1988 (foto anterior). O Michigan Theater agora um parque de estacionamento com trs andares

TIMOTHY FADEK/CORBIS/VMI

capaNo revelamos esse tipo de informao. Muito dinheiro!, graceja Bruce. Gilbert no o nico homem de negcios a apostar na revitalizao da downtown de Detroit. Desde o ano passado, existem mais 10 mil pessoas a trabalhar na zona. Nos ltimos 40 anos, a procura imobiliria nunca foi to elevada como agora. A Torre Broderick, at h pouco tempo uma runa, vai reabrir em Setembro, com mais de uma centena de apartamentos e estdios renovados. As trs penthouses, com um valor de aluguer de cinco mil dlares, j esto reservadas. possvel que empresrios como Gilbert tenham percebido que s tm a ganhar em ter uma cidade um centro regional forte. Livonia, Troy, Rochester? Estas localidades no dizem nada a ningum fora do Michigan. Para situar os seus clientes, as empresas tero sempre de dizer Detroit. Para o bem e para o mal. Nos ltimos meses, os casos de Midtown e Downtown tm tido ampla cobertura nos jornais locais e nacionais como exemplos de uma nova vitalidade em Detroit. Aparentemente, depois de anos e anos a documentar uma cidade em coma, a imprensa nacional ansiava por boas notcias (se for possvel em Detroit, possvel em qualquer lado?). S que esta nova Detroit muito localizada, est a beneciar pessoas que no vivem na cidade mas nos subrbios (maioritariamente brancas), e no inclui a maioria da populao de Detroit (82% negra). O meu receio que as pessoas pensem que a vida da maior parte dos Detroiters melhorou porque o centro da cidade parece melhor e um stio que est na moda, diz Jackie Victor. Ela e Ann so um casal e tm dois lhos. Criar o nosso lho de seis anos na cidade completamente diferente do nosso lho de 11. Detroit um lugar muito melhor para as pessoas da classe mdia criarem os seus lhos do que era h dez anos. Mas isso porque ns temos recursos. E vivemos no centro da cidade. Mas para quem vive nos bairros e tem de mandar os lhos para a escola pblica, e depende dos transportes pblicos, um lugar muito pior. Qual a taxa de pobreza de Detroit? Deve ser 60 por cento. A percentagem de iliteracia pelo menos isso. Eu acho que a estraticao s est a piorar. Existem duas Detroits. No mnimo.

Cidade bizarraO taxista deixa-nos em Corktown, o velho bairro irlands, depois de dizer que esta parte da cidade assustadora. verdade que o carro de Michael Hodges foi roubado numa destas esquinas h uns anos. Mas j nem estranhamos a inexistncia de pessoas na rua. uma marca de toda a Detroit. E depois, Michael combinou um pequeno-almoo no Astro, um belo caf com croissants e caf pingado. Acordmos em Nova Iorque? No, a grande runa, a velha Michigan Central Station, domina o outro lado da rua. Detroit sexy de um modo bizarro, diz Michael. H uma data de midos que se esto a mudar para c, vindos de outras partes do pas. Para eles, Detroit romntica, uma paisagem urbana

que no se encontra em mais lado nenhum. Nova Iorque tornou-se desculpe a expresso to fucking burguesa. E to dominada pelos obscenamente ricos. David Lilly, que parece Clark Kent, um desses jovens. Depois de 15 anos a trabalhar em Nova Iorque como relaes pblicas no sector nanceiro, David despediu-se do seu emprego e mudou-se para Detroit em Outubro de 2010. Como que os seus amigos e a sua famlia reagiram notcia? Muitos pensaram que eu tinha enlouquecido. E sugeriram: No queres ponderar outras cidades? Os meus pais apoiaram a deciso e perceberam que eu estava determinado. O comentrio da minha me foi: Bem, no o meu stio favorito, dear. David cansou-se do sector nanceiro e do Upper East Side de Manhattan, onde tudo perfeito e o mundo irrealmente reluzente e bonito, mas no escolheu Detroit ao acaso no mapa. Ele cresceu numa cidade do Ohio, semelhante a Detroit s que mais pequena, no corao da Amrica industrial. Durante grandeERIC THAYER/REUTERS

parte dos ltimos 100 anos, Detroit foi a quarta ou quinta maior cidade do pas e o centro do poderio industrial da Amrica. Ns fomos um pas industrial durante a maior parte do ltimo sculo. O que aconteceu em Detroit em termos do xodo de mo-de-obra industrial, o declnio do emprego, o esvaziamento da cidade e a migrao de pessoas para os subrbios algo que cidades como Cleveland ou Milwaukee e outras tambm esto a confrontar. Talvez Detroit mais do que as outras cidades porque tudo aqui parece ser mais extremo. David achou que estavam a acontecer coisas positivas em Detroit e queria fazer parte disso queria contribuir para o renascimento da cidade. Nada em grande escala: talvez baste s viver aqui. No Vero, comeou a frequentar a escola nutica. Est a aprender fotograa. E tem estudado a arquitectura da cidade. So coisas que sempre me interessaram mas que nunca tinha tido oportunidade de fazer quando trabalhava dez horas por dia segurando um Blackberry o

dia inteiro. Este um perodo de experimentao para mim. No tenho um emprego neste momento, mas no me importo. Estava a precisar de uma pausa. David vive no centro da cidade, mas conhece o East Side. Uma manh, pegou-nos de carro, no seu Chevrolet made in America (David tirou a carta de conduo aos 16 anos porque isso que se faz quando se tem 16 e nunca mais pegara num carro at mudar-se para Detroit), e levou-nos ao East Side. Apesar de s viver aqui h pouco mais de um ano, David parece saber porque que aquela escola fechou ou como identicar uma casa desocupada que no ardeu (uma viso comum) ou no foi entaipada: a caixa de correio est estufada de publicidade. As pessoas aqui trabalham tanto como em qualquer parte do pas. uma pena que esta cidade tenha dependido tanto de uma indstria, lamenta. Mas a cidade ainda tem pulso. a [email protected]

REBECCA COOK/REUTERS

David Lilly despediu-se do seu emprego e mudou-se para Detroit em Outubro de 2010. Como que os seus amigos e a sua famlia reagiram notcia? Muitos pensaram que eu tinha enlouquecido

O anncio de uma igreja: O que devo fazer para ser salvo ( esquerda). A cidade pode entrar em insolvncia em Abril. O mayor fala de 50% de desemprego, ruas sem iluminao, lotes abandonados

entrevista

Miguel Sousa Tavares Descobri que a cozinha podia ser o territrio de libertao dos homensGosta de ir ao mercado (e vai mesmo). Gosta de cozinhar para os amigos com produtos da horta e bichos criados no monte alentejano. Uma vez por ano, Miguel Sousa Tavares convida 23 amigos para um jantar de Ano Novo. Fica trs dias a preparar e a cozinhar para eles. Descobriu, depois do divrcio, que o local de represso das mulheres podia ser a libertao dos homens. No livro Cozinha dAmigos quis fazer uma histria roda do prato. Entrevista Isabel Coutinho Fotograa Enric Vives-Rubio

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entrevista

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o quatro da tarde. De manh, Miguel Sousa Tavares foi ao Mercado de Campo de Ourique, tal como de costume. Vai duas vezes por semana. Desta vez comprou grelos, agries, feijo verde, couves de Bruxelas e alface senhora que aparece no seu livro Cozinha dAmigos, com fotograas de Jos Pedro Monteiro (ed. Ocina do Livro). Foi banca do peixe e comprou lulas e cherne. Trouxe tambm acm, carne de porco e outras carnes. Sou muito el aos stios em que me estabeleci. Enquanto no for maltratado, no saio de l, conta, sentado no sof da sala de sua casa em Lisboa. Gosto de comprar o peixe em Campo de Ourique, na peixeira onde vou, porque o peixe vem de Sesimbra, que um dos melhores portos de pesca que temos. Julgo que parte dele tambm vem de Peniche. Se andarmos por vrios mercados durante uma semana, reparamos que h sempre o mesmo peixe. Quer dizer que o mar est a dar esse peixe, depois muda para outro. Esta semana deve ser a da xaputa!, brinca. no seu monte alentejano que se dedica mais cozinha e onde se tornou produtor. Produz o melhor azeite que j provou. Palavra de honra!, ri-se. So s 42 litros, d para o ano inteiro e acabou. Ofereceram-lhe umas oliveiras que vieram do Alqueva, transplantou-as, as rvores caram em choque durante quatro anos, sem ramagens nem nada. Quando se muda uma oliveira, preciso marcar no stio primitivo, a cal, na rvore, onde est o Norte. No novo terreno, a oliveira tem de car exactamente na mesma posio seno no vai sobreviver. Vieram 40 oliveiras e este foi o primeiro ano em que deram azeitonas. A cooperativa ca com um tero e ns com dois. Toda a gente ca abismada. o melhor azeite que j bebi. Nada se compara quilo, por isso, agora, o meu prato preferido po com azeite.

Como surgiu Cozinha dAmigos? Tinha de entregar um livro, por contrato, ao seu editor? No tenho contratos desses, nem quero ter. Limita qualquer autor, obriga-o a escrever sem querer. Os exemplos que temos no mercado resultaram mal em termos de qualidade. Eu no tinha nenhuma obrigao, foi uma distraco das coisas principais da escrita. De vez em quando, comeamos a marrar muito roda de uma coisa, faz bem escrever coisas laterais. Esta foi uma delas. Qual foi ento o ponto de partida? A ideia bsica foi desmisticar a ideia da cozinha como uma cincia muito complicada em que preciso estagiar trs meses com o Ferran Adri e andar a fazer vapores de no sei o qu e tal. A cozinha tem regras, que so naturais e, se nos guiarmos por elas, qualquer pessoa l chega. O detonador foi ter um dia comprado um carabiero, que foi o meu jantar com uma fatia de po de centeio preto. Depois de muito pensar como o poderia cozinhar porque no encontrei nada nos livros que tinha c em casa , acabei por faz-lo com sal e limo. Soube-me fantasticamente. Realmente, preciso dizer s pessoas que o segredo da grande cozinha ser natural. Quando se tem bons produtos, no vale a pena complicar. tambm o prazer de escrever. No propriamente um livro de culi28 22 Janeiro 2012 Pblica

nria nem um livro de losoa de cozinha. No sei que objecto esse, para dizer a verdade. Todos os anos faz um jantar de Ano Novo para os seus amigos, so 24 mesa a contar consigo. Lembrei-me de um outro escritor, o britnico Julian Barnes, que faz o mesmo: todos os anos organiza um jantar de evocao a Flaubert (a 12 de Dezembro, no aniversrio do nascimento do escritor francs). La Grande Boue... o que eu fao. O jantar deste ano foi quase inspirado em Flaubert! Resumindo a histria: muito contrariado, tive de comprar um smoking para ir a uma festa no estrangeiro. Tinha um smoking que j no me servia, que no visto h dez anos, e fui fazer um smoking novo. Quando cheguei dita festa, tinha-me enganado e levado na mala o antigo. Fiquei to furioso que disse que o jantar de

Ano Novo seria de smoking para eu estrear o que tinha comprado. Todos os homens foram de smoking. No era Flaubert, mas parecia um jantar do Gatsby! Teve muita graa. Como iniciou essa tradio de Ano Novo? Fiz a minha casa no Alentejo h dez anos com uma sala de jantar para 24 pessoas. Tenho de a encher. Ento comecei a fazer o jantar e criei um ncleo duro que todos os anos l vai. H quem venha do estrangeiro passar o Natal e que de propsito para o Ano Novo por causa do jantar. Este ltimo saiu-me do plo porque tambm tinha de dar almoo no dia seguinte, o jantar foi na vspera. Cozinhei nove pratos para 24 pessoas. J estava knockout. No contrata ningum para o ajudar? Tenho l uma senhora que me ajuda, que me

passa os instrumentos a quem eu digo: Agora pique-me cebola, por favor. Mas uma empreitada demencial e 60 por cento do que cozinhei j meu, j produo prpria. Qual foi a ementa? A do jantar foi: sopa de lavagante, bacalhau Brs, uma receita de perdizes com legumes estufados em vcuo, borrego caseiro, um peru criado l tambm e uma canja de pombo no m. Eu e o meu vizinho temos um rebanho comum, completamente biolgico, s comem ervas que sememos para comerem. A preparar e a cozinhar o jantar demorou trs dias. Dito isto parece um bocadinho absurdo e s vezes interrogo-me porque que me empenho tanto nisto. Este m-de-semana estive a cozinhar e tudo comea dois dias antes [a laborar] na minha cabea: o que me vai apetecer fazer. O que lhe apeteceu fazer? Este m-de-semana estreei uma coisa nova: um linguado estalado que vai ao forno com po ralado por cima. Primeiro marina em limo, depois salteado em azeite e alho e vai ao forno com po ralado. Acordo s vezes a meio da noite e comeo a pensar: Vou fazer um prato assim. Depois trato de arranjar os convidados, de ir ao mercado e diverte-me saber se aquilo resulta ou no. Deve ser como pintar um quadro, o pintor tem uma ideia, executa-a e depois v. criativo, gosta de criar as suas receitas e ir experimentando. H quem goste de seguir risca as receitas dos livros de culinria. risca nunca se consegue seguir. Quando leio receitas de pratos que nunca z ou que no me lembro como que se fazem, co com uma ideia do que a receita. A execuo sempre de autor, varia de pessoa para pessoa. H quem goste de refogar at determinada altura, de temperar assim e assado. O bsico vemos num livro, o resto improvisa-se. Qual o livro indispensvel numa bancada de cozinha? Para mim, o Pantagruel. Mais do que os livros e a enciclopdia de Maria de Lourdes Modesto? Cresci com o Pantagruel. Em casa da minha me era uma espcie de Bblia, estava sempre colocado estrategicamente na cozinha. Servia para tudo: doces, massas, folhados. Tambm tive as obras da Maria de Lourdes Modesto cedo, mas habituei-me mais ao Pantagruel. Est l quase tudo. Que livros devem fazer parte de uma biblioteca bsica de cozinha? No fao ideia. Tenho uma biblioteca bsica de cozinha que tem os clssicos, a Maria de Lourdes Modesto, o Pantagruel, o Isalita. Alm disso, livros de cozinha francesa, cozinha mediterrnea, marroquina, brasileira, cozinha de Vero, que um livro que adoro. Cozinha s base de tomate, cozinha de massas italianas. Se queremos fazer diferente, vamos por a. Ter uma enciclopdia s e carmos agarrados quilo tambm no interessa. O Pantagruel muito bom para o bsico. Por exemplo, uma galinhola, que rarssimo de encontrar e de cozinhar, tem de se ir consultar o Pantagruel porque um clssico. No vamos encontrar em mais lado nenhum. Embora hoje tambm ajudem os sites de culinria.

O meu pai no fazia nada, s ia ao Mercado da Ribeira todos os sbados. Eram compras para a semana de uma famlia com cinco lhos. Ele vinha com a sensao do homem primitivo que abastecia a famlia. Eu ainda tenho muito disso. Acho que tarefa de homem chegar com a comida a casa. Uma espcie de caador primitivo

Explica aos leitores regras essenciais para se fazer um bom peixe grelhado, defende que se deve cozinhar um salmonete sem o amanhar e com o fgado. Isso experincia prpria. O que d mais gosto o fgado, mas o intestino do bicho tem um sabor bestial. Eu no o como, mas gosto de o cozinhar com ele l dentro. Uma outra receita de salmonete que fao uso tambm outros peixes encarnados um esparguete. Pode parecer um desperdcio para o salmonete, mas sai muito bem, muito bom. Nesse caso, tiro as tripas mas deixo o fgado. Para grelhar, essencial ter tudo l dentro. D um gosto ptimo e faz com que o salmonete que molhado ao p da cabea. [Risos] Estou envergonhadssimo, estou aqui a falar como se fosse um expert em culinria, eu no sou. Simplesmente escrevi um livro a tentar dizer como isto fcil. Temos uma cozinha recomendvel? No direi que temos uma excelente cozinha tambm acho que temos , mas temos excelentes condies para ter uma ptima cozinha por causa dos produtos e por ser muito variada. Conhece algum stio onde se imagine uma sopa de beldroegas? uma coisa absolutamente extraordinria. Para j, a beldroega incrvel, quase uma urtiga lembre-se que os alentejanos tambm fazem sopa de urtigas. A beldroega cozinhada com batata, com tomate, leva um queijo inteiro de ovelha no centro da panela e duas cabeas de alho. Cozinhar uma sopa volta de um queijo inteiro?! uma coisa extraordinria. Se tirarmos o queijo, a sopa no ca exactamente igual. Se em algum lado do mundo se servisse isto a estrangeiros, eles iam car surpreendidos porque realmente um gosto nico. Temos uma imaginao, uma capacidade de usar produtos, de usar ervas, tal como os franceses. No lhes cmos atrs em matria do uso de ervas. Em matria de peixes e mariscos, ganhmos largamente, eu acho. Tambm nunca vi tomate corao-de-boi noutro lado. Suponho que haver, mas nunca o vi. Nenhum supermercado o vende porque feissimo, no h dois iguais, eles gostam de tudo igualzinho. Hoje em dia, as receitas so quase todas com tomatecereja que no sabe a nada. O tomate corao-deboi incrvel, no h nada que no saia ptimo, nem preciso cort-lo, faz-se assim [mostra com a mo] e ele esborracha-se todo inteiro. A cozinha tradicional portuguesa tem desaparecido de muitas ementas, sendo substituda por hambrgueres e outras coisas que tais. As tradies esto a recuperar-se. H cada vez mais gente com interesse pela cozinha, com vontade de cozinhar, a abrir restaurantes diferentes, em todo o lado, nas grandes cidades, em Lisboa, no Porto, em Braga. O restaurante que mais gosto em Portugal, para quem gosta de comida portuguesa, ca em Braga. Chama-se Arcoense, onde se come um arroz de tordos extraordinrio. o nico stio que conheo onde fazem esse prato, deve haver umas tascas no Alentejo que tambm fazem e h uma tasca aqui em Lisboa para onde levo tordos quando cao. Tm um cozinheiro que tambm os faz muito bem e depois vou l comlos. Pelo menos, as pessoas que so inteligentes e tm restaurantes perceberam que cozinhar, regressar no digo ao antigamente, mas a formas tradicionais de cozinhar em que as coisas valem pelo que so, pelo sabor que tm e pela delidade desse sabor, uma mais-valia. cPblica 22 Janeiro 2012 29

entrevistaRefere que estas receitas so suas, de famlia e outras de domnio pblico. Muitas delas confeccionavam-se em casas das nossas mes. [risos] As casas das nossas mes... a referncia mais infalvel da cozinha. Tenho um amigo que dizia: No h nada que nos saiba to bem como a comida em casa das nossas mes, at o po. [risos] No prefcio, Jos Manuel Barata-Feyo tambm lembra como se cortavam as batatas na cozinha da infncia dele. As suas receitas de Lngua Aambrada, Trutas Disfaradas ou o Peru de Natal com castanhas trazem recordaes. uma variante do peru que se fazia no Natal. As castanhas so o que ca melhor com aves, com todas. Por exemplo, com faiso. Comprase no supermercado, aparentemente no tem grande graa porque uma carne seca, escura. Por exemplo, fraca, carne parecida com galinhada-ndia, aparentemente muito escura, seca, mas se colocar volta fatias de bacon e rechear com castanhas e uvas ca maravilhosa. Depois s assar muito devagarinho, ao ganhar o sabor das castanhas e das uvas, ca excelente. Comeou a cozinhar depois de se divorciar. Tal como para muitos homens da sua gerao, a cozinha era um territrio das mulheres. O meu pai [Francisco Sousa Tavares] no fazia nada, s ia ao Mercado da Ribeira todos os sbados. Era bblico, ele achava que aquilo era uma tarefa de homens e eu era sempre convocado. Era bblico no sentido em que ele chegava a casa com o carro cheio de compras, buzinava para a rua inteira ouvir, tinha de vir toda a gente ajudar. Eram compras para a semana de uma famlia com cinco lhos. Ele vinha com a sensao do homem primitivo que abastecia a famlia. Eu ainda tenho muito disso. Acho que tarefa de homem chegar com a comida a casa. Uma espcie de caador primitivo. Mas, uma vez que entregava as alcofas da praa, o meu pai j no sabia de mais nada. Acho que nunca o vi entrar na cozinha, nunca, nunca. Adorava comer mas no sabia fazer um ovo. Refere no livro uma crnica que Sophia de Melo Breyner Andresen, a sua me, escreveu sobre a ida ao mercado. Chama-se o Caminho da Manh e uma parte dela est no Mercado de Lagos. A Cmara de Lagos quis homenage-la, queria fazer um busto, lembro-me sempre da minha me dizer: Eu odeio bustos, a pessoa ca enforcada, sem corpo, pendurada para sempre vista de toda a gente. Pedi para no fazerem busto nenhum e optarem por fazer duas coisas que ela iria adorar: Peguem nesta crnica que fala de uma ida ao Mercado de Lagos e metam numa parede enorme l no mercado. Ponham uma placa numa das grutas de Lagos a dizer Gruta de Sophia. Eles fazem os passeios Ponta da Piedade, que uma gruta que se dizia que tinha sido descoberta por ela e por um pescador nosso amigo que fazia passeios s grutas. S se podia entrar naquela gruta com o barco a deslizar e, pelo tecto da gruta, com as mos, amos fazendo avanar o barco. Tnhamos um terror enorme de l entrar. Era preciso ir l pr a placa a dizer Gruta de Sophia, s que a nica pessoa que conseguia entrar era o tal pescador, que j tem 70 anos e que l se disps a entrar, mas os servios camarrios no tiveram engenho para ir avante e por isso essa parte ainda no se cumpriu. Mas a outra j est no mercado de Lagos, onde a minha me ia no Vero quando o meu pai no estava. E eu ia sempre, quer com o meu pai, quer com a minha me. No me lembro das minhas irms irem. Tudo o que ela descreve nessa crnica eu sinto. Quando est em Lagos, vai todos os dias ao mercado? mesmo um ritual que tenho. Acho extraordinrio entrar naquele mercado, com o contraste do sol terrvel c fora e, de repente, sombra l dentro. Depois um clamor de vozes que passa por cima daquilo tudo, no meio daquele jogo de sombras e de neblina que h suspenso, o vapor hmido que vem dos peixes fresqussimos. sempre uma sensao de emoo. Parece que sempre a primeira vez que entro l dentro. fascinante porque a natureza em estado vivo, bruto. Parece o primeiro dia da vida, quase. Mas como deu o passo da ida ao mercado para a entrada na cozinha? Venho da gerao que aprendeu vrias coisas: a mudar fraldas e a passear os lhos no Hospital de Santa Maria, noite, quando eles esto doentes naquela terrvel unidade infantil. Aprendemos a cozinhar, aprendemos vrias coisas. Chegou a fazer cursos de culinria? S z um, com o chefe Vtor Sobral. Diz que as estas receitas so pessoais, de famlia e de domnio pblico. Que tradio culinria essa dos Andresen, havia algum livro que passavam de gerao em gerao? No. Tnhamos uma tia-av que cozinhava muito e bem, no sei se alguma vez cheguei a comer alguma coisa feita por ela. Ela deixou uma srie de receitas que uma prima minha juntou e mandou para todos os membros da famlia. Chamava-se Teodora e eu chamo-lhe o Cdigo de Teodora de cozinha. de l essa receita da Lngua Aambrada e outras receitas do Norte. A grande tradio da famlia eram as ores, no era a cozinha. Eles tinham o culto das ores, cultivavam jardins no Porto e faziam um concurso anual entre os membros da famlia para saber quem tinha o jardim mais bonito. Havia sempre um almoo de Primavera, visitavam-se os jardins todos e depois elegiam o jardim mais bonito. Tinham o fascnio das ores. O resto, o peixe e tudo isso, adquirido. Mas como que passou para essa cozinha, agora territrio de homens, diferente do das mulheres. Descobri, digo isso no livro, que a cozinha, que era o territrio da opresso das mulheres, podia ser o da libertao dos homens. Encontrei uma srie de homens e de amigos que adoram estar na cozinha. No sei se eu sou uma excepo ou no, mas no meu crculo de amigos raro haver um homem que no saiba cozinhar qualquer coisa. muito giro se nos juntamos para cozinhar, porque um sabe fazer isto, outro sabe fazer aquilo, um bom em aordas, outro bom em arroz, outro em peixe, etc. Antigamente eu, de facto, nunca entrava numa cozinha, as coisas chegavam feitas mesa e eu comia-as, ponto nal. Tinha uma vaga noo cJOS PEDRO MONTEIRO

Pintada minha maneiraIngredientes2 pintadas Banha de porco q.b. Toucinho entremeado fresco em tiras, q.b. Pimenta preta em gro Foie-gras de canard com pimenta Vinho do Porto Cognac Ameixas secas Uvas pretas Midos de frango ou peru

Como fazerDepene as pintadas, limpe-as e retire os midos, e deixe-as a marinar inteiras em vinho do Porto e com os gros de pimenta, durante umas horas, virando-as de vez em quando. Triture os midos de frango, os midos das prprias fracas e as ameixas. Com as mos, misture isso com o foie-gras e as uvas e ene esse recheio dentro das fracas, desde o papo at aos intestinos. Esfregue as fracas com algum sal grosso e cubra-as com as tiras de toucinho. Coloque-as sobre um tabuleiro de ir ao forno, generosamente untado com a banha. Leve ao lume para assar devagarinho, durante uma hora/hora e meia, regando duas vezes com o Cognac. V vigiando e, se estiverem a car secas, por baixo e por cima, acrescente banha e gua fria. Esto prontas quando comearem a car tostadas por fora e, espetando um garfo, as sentir mais ou menos tenras. Acompanhe com batata palha.

entrevista

do que era a cozinha e do que l se passava. No fazia ideia de como as coisas apareciam feitas. Na Cozinha dAmigos tambm d dicas. Como utilizar uma cebola contra o sal ou o intrigante truque da garrafa nas brasas. A garrafa consiste num mtodo para espalhar o carvo uniformemente pelas brasas. Quando se acende o fogareiro, h uma zona que tem muito mais calor e as outras, volta, esto apagadas. Se pusermos a garrafa no centro, o calor espalha-se uniformemente. No me pergunte como, para mim um mistrio. A garrafa no estoira, o que o mais extraordinrio. Conta tambm como se pode surpreender os convidados ao servir uma aorda ao pequeno-almoo. Isso zeram-me uma vez, servirem uma aorda alentejana, a que chamamos sopa alentejana em Lisboa, ao pequeno-almoo. Um tipo que recebia para a caada recebeu-nos com aorda alentejana. Achei uma ideia extraordinria. ptimo, um pequeno-almoo diferente do resto, quando se vai caa preciso comer um pequeno-almoo substancial porque vamos estar muitas horas sem comer. um pequeno-almoo extraordinrio de caa. Aproveita para falar de caa, de Bruxelas, alertar para a rola-turca versus a rola-brava. J me cansei de tentar explicar que a caa natural. A caa organizada e bem feita ecolgica. O que normal na natureza que existam todas as espcies, em equilbrio, sendo que depois vo-se comendo umas s outras. o ciclo da vida. Infelizmente as pessoas tendem a achar que os caadores matam as espcies bravas32 22 Janeiro 2012 Pblica

todas. o contrrio: eles que as mantm. Em relao s rolas, o que se passa que algum introduziu, aqui e em Espanha, h uns dez anos, rolas-turcas. A rola-turca est a tornar-se igual ao pombo da cidade. Para se comer, no tem grande gosto, um bicho que se alimenta da porcaria toda, ao contrrio da rola-brava. So muito mais do que as rolas-bravas, aves de arribao, que passam e vo-se embora, seguem. Quando se fazem sementeiras para se ter rolasbravas para as poder caar, as rolas-turcas, hoje em dia, comem tudo. Como so maiores do que as outras, afastam-nas e cam l de um ano para o outro. Cada vez h menos rolas-bravas porque h um excesso de rolas-mansas. Qual seria a soluo para isso? Deixar caar a rola-turca, nem sequer para comer, para repor o equilbrio. S que Bruxelas no deixa porque acha que so uns coitadinhos de uns pssaros que esto para ali, no fazem mal a ningum, e os malandros dos caadores querem ca-las. Concluso: qualquer dia, j no temos nenhuma rola-brava. Este ano, matei zero rolas-bravas, na poca passada matei para a 12. As rolas-turcas j chegaram s cidades. No Porto e em Cascais, h imensas. Em Lisboa, ainda no h muitas. Mas vo vir. Neste livro, acaba por abordar uma data de temas para os quais tem chamado a ateno ao longo dos anos. Aproveito para fazer uma histria roda do prato, do bicho que est no prato. A relao que h entre a ocupao do territrio, a agricultura, caa e culinria fascinante. As quatro coisas esto intimamente ligadas. Se voc comear por deserticar o territrio, todo o

resto vai atrs. uma cadeia que se rompe completamente. Onde no h agricultura no h caa. Todos os animais que caamos vm comer, portanto se se acabar com os sobreiros para plantar eucaliptos deixa de haver bolotas. No h nenhum bicho que se alimente do eucalipto. Se se deixar de fazer sementeiras de cevada, trigo, etc., deixmos de ter perdizes. Se deixarmos de tratar as oliveiras ou as substituirmos por estas espanholas, novas, que agora esto na moda, deixamos de ter tordos, que eles gostam de azeitona mas da boa, das rvores antigas. Est tudo intimamente ligado. Se deixarmos de ter caa porque deixamos de fazer sementeiras para isso, deixamos de poder ir ao Fialho comer uma verdadeira perdiz brava. Vai desaparecendo aos poucos. Com isso tambm desaparece o comrcio e desaparecem as pessoas. Est tudo ligado. Dito assim, parece conversa de chacha mas no . Quando se anda no campo, v-se como tudo isto acontece. Um dia estava a fazer um safari em frica e o guia que estava comigo disse-me: Este ano choveu muito, mau para os antlopes. Perguntei-lhe: Porqu? No tm mais erva para comer? Ele respondeu: Tm, s que a erva cresce mais e os lees escondem-se melhor. engraado, na natureza est tudo relacionado. As receitas que escolheu no reectem muito as suas viagens. Nunca utiliza produtos exticos como leite de coco... No gosto. No caril, a nica coisa de que no gosto. Acho muito enjoativo. Tambm no gosto de gengibre, detesto. Pertence categoria de viajantes que compra livros de culinria nos pases para onde

No consigo chegar ao corao da coisa, por enquanto, vou escrevendo para o lado. O meu terror a pgina em branco. Mas como disse h pouco pode ser que tenha um romance pronto no nal do ano, antes disso no vejo jeito

viaja? Servem para alguma coisa ou acabam por car na estante? Quando gosto da culinria desses pases, trago. A verdade que temos tendncia a cozinhar com os produtos que temos mo, locais. Quem sabe se daqui a dois anos no acrescento o livro e o renovo. No um livro de receitas. Tem receitas, mas mais um livro de histrias de cozinha, de pensamentos volta do acto de cozinhar, do acto de estar na cozinha e do que uma cozinha de amigos. Que o que eu gosto: cozinhar para amigos. O que me preocupava no era tanto encher o livro de receitas, era mais contar histrias roda das receitas. No Maranho, em S. Lus, no Brasil, come-se uma pata de caranguejo maravilhosa mas no adianta dar a receita porque no temos c esse caranguejo. No vamos ganhar muito com isso. um caranguejo grande, eles fazem a pata frita com leo e uma srie de coisas. A casquinha de siri que d uma quantidade de pratos em Salvador, ns no temos. No vale a pena estar a dar receitas porque at pareceria um pouco pretensioso. Tem na mesa um livro de Anthony Bourdain. seguidor da obra dele? Estive a ler, ofereceram-me. Depois de ter publicado este livro, ofereceram-me. Se Anthony Bourdain lhe perguntasse onde deveria ir Em Lisboa? Sou um mau conhecedor de restaurantes em Lisboa porque no gosto muito de almoar e de jantar fora. Saio muito pouco. Mas onde que eu o mandaria ir? Tambm depende do que ele quisesse comer. Por princpio, a qualquer estrangeiro, eu digo: Vamos comer peixe. a coisa melhor que temos de mostrar. No livro, diz que temos a pior carne de vaca possvel, com raras excepes. A dos Aores, a barros, a alentejana no contam? Comparada com a grande carne que a argentina, brasileira e irlandesa, no tem nada a ver. Acho que um problema de corte. Tambm no sabemos cortar a carne bem. No percebo porque que uma vaca brasileira tem 40 partes e uma portuguesa s tem uma dzia. Manifestamente, ainda no exploramos bem a anatomia do bicho. E no s aquele lombo que as vacas brasileiras tm na cabea. No resto, igual nossa. Porque que elas tm tantas partes com sabores diferentes e ns no? estranho. Serve-se muito da ajuda de mquinas? Sou um problema com mquinas, a comear pela mquina de caf. Ainda s consigo usar a de enroscar. J me ofereceram trs mquinas de caf diferentes, avariam-se todas nas minhas mos. Bimby no sei o que seja, apesar de j ter visto aquilo a trabalhar. Oferecer eu ofereo, agora usar no. A nica mquina que eu uso uma trituradora, mas mesmo assim tento usar pouco. Gosto muito do barulho da mquina, da 1,2,3, e exagero sempre. Fica sempre demais. Eu gosto do acto de cozinhar. Gosto dos gestos fsicos de estar a cortar cebolas, picar o alho, cortar a carne, preparar o peixe, etc. Se as mquinas zerem tudo isso, o que co eu a fazer? Ficar a ver as panelas ao lume pouco. Gosto mesmo do trabalho fsico. H quem goste de fazer jardinagem ou horticultura, eu gosto de cozinhar. Tambm relaxa.

No livro The Pedant in the Kitchen, Julian Barnes cita a frase Se a comida no boa, no simples. Tem a ver com o que o Miguel defende. Se os produtos no so bons, passando pela complicao da cozinha... Descono sempre de todo o tipo de cozinha em que se disfara o sabor principal. Comeo a desconar que o produto no bom. Se me do um peixe com tantos molhos em que no consigo identicar o sabor do peixe, tanto faz estar a comer besugo como estar a comer pargo ou carapau, descono que no fresco. Porque se fresco, no h sabor melhor do que aquele. No vale a pena cobri-lo com molhos ou com uma quantidade de coisas exticas porque se perdeu o principal. Se voc vai ndia ou ao Brasil, onde o peixe no presta para nada, os molhos fazem toda a diferena. J comi mau peixe de mar no Brasil mas que sabia bem por causa das ervas e temperos que eles misturavam. Sendo que no Brasil o nico peixe bom o do rio Amazonas, no o do mar. A tem o tambaqui, o pirarucu, o tucunar. So os nicos peixes que vale a pena comer no Brasil e no fcil de encontrar. Para alm do Amazonas, encontra-se em So Paulo num restaurante chamado Figueira [Rubaiyat]. Uma vez fui l jantar com o meu editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, e com o escritor Milton Hatoum, que de Manaus. Vi o menu e pedi tucunar. Milton olhou para mim intrigado: Voc conhece tucunar? [risos] e comemos os dois letes de tucunar. Para terminar, como vamos de literatura? Est a escrever um novo romance? Estou a tentar. O que comigo no quer dizer que consiga. Escrevo com muita diculdade. Construir a histria para mim muito complicado. Se chego ao ponto em que j a constru, em que sei exactamente o que , torna-se mais fcil. Infelizmente no perteno ao gnero que se senta em frente da pgina em branco do computador e as coisas saem. No saem. Preciso de uma ordem, preciso de uma histria, preciso de um esqueleto, sem o qual muito difcil para mim arrancar e prosseguir. Dito isto: j estive muito mais longe. Vou escrevendo, vou patinando, vou deitando fora, vou regressando. Pode ser que a inspirao me ajude. Nestes ltimos anos, o Miguel andou... Andei a fazer coisas laterais. Escrevi o livro que o que eu gosto mais de todos os que escrevi, um livro in