princípios epistemológicos da geografia

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APONTAMENTOS SOBRE OS PRINCPIOS EPISTEMOLGICOS DA GEOGRAFIAVitor Vieira Vasconcelos Doutorando em Geologia Universidade Federal de Ouro Preto Consultor Legislativo de Meio Ambiente e Recursos Naturais Assembleia Legislativa de Minas Gerais Setembro de 2009

Introduo

Os princpios, na Epistemologia, possuem carter abstrato e muito mais duradouro que os nveis de abstrao anteriores (sensaes empricas, identificaes e conceitos). Podemos dizer que sempre h princpios guiando a atividade cientfica. Um exemplo geral de princpio o da Conexo, pressupondo que as coisas neste mundo esto interligadas; princpio esse que tornou possvel erigir a Teoria de Sistemas. Existem princpios que foram desenvolvidos dentro da Geografia; tambm h princpios que vieram de outras disciplinas, mas que foram incorporados prtica geogrfica; bem como se podem supor princpios gerais da prtica cientfica e extra-cientfica. Os princpios so orientaes bsicas e duradouras, e dificilmente so desmentidos. Ao contrrio das teorias e modelos, que so volta e meia contestados e reformados ao longo da histria. Os princpios advm em grande parte do senso comum, enquanto as teorias so bem mais artificializadas. Por isso mesmo, difcil saber desde quando as pessoas utilizam certo princpio, ao menos at que um estudioso o formalize explicitamente. Poderamos dizer que o princpio pertence, qui, mais categoria da sabedoria que do conhecimento. Enfim, talvez seja por essas caractersticas que eles durem mais e sejam to difceis de serem contraditos. Ademais, existem princpios sem os quais no possvel trabalhar na Geografia. Por exemplo, o princpio da diferenciao de reas, formulado pela escola alem de Geografia, entendendo que as regies seriam reas em que as diferenas internas so menores que as diferenas internas. Hartshorne afirmava que esse seria o maior princpio da Geografia 1. Outro princpio geogrfico relacionado o das regies polarizadas, segundo o qual certas reas possuem uma maior fora de relacionamento com outras reas, o que

acaba, em mbito geral, por criar sistemas de polarizao. Os modelos matemticos dedicados a esse tipo de estudo mostram regies em que a polarizao bem explcita, enquanto em outras h interferncias complexas entres diferentes reas de polarizao. Contudo, nesses modelos, e em especial nas reas onde a resposta de polarizao no se mostra to evidente, preciso considerar que o produto de anlise nunca exatamente conforme a realidade, visto que existem fatores culturais, sociais e individuais difceis de mensurar. Um outro princpio, o qual tambm utilizado para outras cincias, o da observao morfolgica: tanto o gegrafo precisa reconhecer a morfologia da paisagem, quanto um mdico necessita analisar a morfologia de uma radiografia ou exame por imagem. Uma anlise morfolgica pode detectar padres como o de centralidade, embora essa deteco incorpore tambm a necessidade de se entender padres de movimento como no caso das ruas de uma cidade, que tendem para o seu centro. J o princpio da extenso patente: os elementos necessitam possuir uma extenso mensurvel para serem tratados pela Geografia. Outro princpio basilar da Geografia seria o da Unidade Terrestre.

Tradies da Geografia

William Pattison defende que a Geografia desenvolveu-se por meio de quatro tradies cientficas (PATTISON, 1964), relacionada ao seu objeto de estudo: (a) espacial, (b) estudos de rea, (c) relao homem-terra e (d) cincia da terra. A tradio espacialista, tema central deste portflio, tem como base os trabalhos de Kant. Kant props o espao como uma categoria abstrata, que poderia ser trabalhada por raciocnios a priori, estabelecendo leis e relaes. Tal compreenso trouxe margem ao desenvolvimento de uma escola bastante afeita a analise de geometria e movimento dos fenmenos sobre uma estrutura de anlise espacial. Pattison liga o reconhecimento desta tradio elaborao de mapas e anlises espaciais teis sociedade. A tradio de estudos de rea, por sua vez, est mais ligada descrio e estudo aprofundado de regies especficas. Esse modo de fazer geografia vem desde Estrabon, passando pela escola regionalista francesa e chegando aos EUA por meio de Hartshorne.

1

[GOMES, 1996]

A tradio de estudo das relaes Homem-Terra parte de Hipcrates, na Grcia antiga, sobre a influncia do ambiente sobre o ser humano. Posteriormente, aps a revoluo industrial, a interao entre o ser humano e o ambiente passa a ser considerada como uma via de mo-dupla, um afetando o outro. Este tema de estudo encontra-se muito em voga, sobretudo com o crescimento em importncia da temtica dos problemas ambientais e do uso sustentvel dos recursos naturais. Por fim, a quarta tradio mostrada por Pattison diz respeito das Cincias da Terra, que tambm tem sido chamada de Geografia Fsica. Nesse aspecto a Geografia estuda os fenmenos naturais, como clima, relevo, geologia, hidrologia, entre outros. nessa tradio que a Geografia costuma ser chamada de Me das Cincias Naturais. Pattison expe o ponto de vista de que todas essa quatro tradies so importantes para a sociedade, e valorizam a Geografia como um todo. Tambm ressalta que muitas correntes acadmicas de Geografia (ex: geografia urbana, industrial, cultural, sistemtica, etc.) incorporam maneiras de abordagem conjunta de mais de uma das quatro tradies apresentadas.

Geografia Tradicional e Vertentes Posteriores

No contexto da Geografia Tradicional, o Homem seria o elemento mais dinmico, enquanto a Terra seria o objeto mais fixo, com suas rugosidades. Na vertente regionalista, interessa destacar a Geografia como uma cincia de sntese, que se utiliza de diversos conhecimentos vindouros de cincias auxiliares, como a Geologia, Ecologia, Economia, entre outras. Uma maneira de visualizar o somatrio dessas informaes seria atravs da Matriz de Bryan Berry (Tabela 3): Tabela 3 Matriz de Bryan Berry

Regies Temas Vegetao Densidade da populao Clima 1 2 3 4 5

...

Apesar de haver sido esquematizada em um contexto j diferenciado da geografia tradicional, a matriz de Bryan Berry nos apresenta uma boa viso sobre como podem ser organizadas as informaes de um estudo regional. Analisando a matriz acima, pode-se observar que se forma um inventrio locacional de informaes para cada uma das colunas correspondentes ao nmero da regio. Outra forma de anlise possvel para a matriz a da diferenciao de reas. Para tanto, basta analisar a linha correspondente para um tema isolado de informao. As regies que tiverem a mesma informao para esse tema podem ser agrupadas como uma rea homognea. A Matriz de Bryan Berry tambm pode ser modificada para a forma de uma matriz temporal (Tabela 4). Tabela 4 Matriz Temporal de Bryan Berry

pocas de uma mesma regio Temas Vegetao Densidade da populao Clima ... T1 T2 T3 T4 ...

As duas matrizes juntas podem formar uma matriz tridimensional, como na figura 2.

Figura 2 Matriz tridimensional geogrfica. Fonte: Thrall (1995). A escola francesa foi o expoente mais destacado da Geografia Tradicional. Sua base epistemolgica foi bastante consistente, o que foi um dos motivos para que os professores de Geografia continuassem atrelados a ela. Afinal, sua composio j estava to bem estruturada que muitos gegrafos tinham medo de ir alm dela. Com efeito, a diviso das reas de formao de um gegrafo, realizada pela escola francesa, continua bastante presente nas grades curriculares das faculdades de Geografia, e tambm esto presentes na estrutura dos materiais didticos escolares. A tabela 5 apresenta um modelo dessa diviso clssica. Tabela 5 Sub-reas da Geografia Tradicional Divises da Geografia Geografia Fsica Clima Vegetao Hidrografia / Hidrologia Relevo Geografia Humana Populao Economia Transporte Poltica Agrria

O

gegrafo

brasileiro

Francisco

Floriano

de

Paula

apresenta

uma

esquematizao da epistemologia da Geografia Tradicional (Figura 3).

Figura 3 Esquema epistemolgico da Geografia Tradicional, por Francisco Floriano de Paula.

Contudo, o sculo XX observou a emergncia de novas correntes do pensamento geogrfico. Estas propuseram, por sua vez, novas metodologias de estudo para a Geografia. Conjugando toda esse processo histrico de abordagens geogrficas, a atividade dos gegrafos pode ser dividida em diferentes planos de ao, a depender da forma de tratar as informaes espaciais (ABREU, 1992/1998). So: 1 Nvel Descritivo: concentra-se no levantamento, organizao e mapeamento de dados geogrficos. Exemplos so os inventrios locacionais e a cartografia de base. 2 Nvel Analtico Funcional: estuda as relaes entre os fenmenos espaciais. Exemplos so os estudos de fluxos, reas de influncia, hierarquias urbanas e regionalizaes. 3 Nvel Analtico Dinmico: Acrescenta, ao nvel anterior, as relaes entre tempo e espao. Exemplos so estudos de tendncias, simulaes e previses de fenmenos espacializados. 4 Nvel Dinmico Crtico: procura estudar como os processos histricos se desenvolvem no espao. Essa abordagem atenta-se para fatores econmicos, sociais e polticos na estruturao geogrfica.

5 Nvel Ecltico: nesse ltimo nvel, o gegrafo busca conciliar as potencialidades e instrumentos dos quatro nveis anteriores. Com isso, pretende melhor atender s demandas da sociedade contempornea. Quanto a essa tendncia ecltica, cabe uma maior pormenorizao de sua evoluo ao longo da histria da Geografia. No incio do sculo passado, havia uma preocupao se a generalidade dos estudos dos gegrafos no seria um obstculo para a sua valorizao profissional. Sempre foi marca dos gegrafos clssicos procurar ligar reas de conhecimento muito diferentes, como cincias humanas e cincias fsicas. Essa preocupao quanto aos limites da especializao foi um dos fatores que levou crescente especializao em correntes da Geografia. Por exemplo, h correntes de Geografia Urbana, Rural, Mdica, Industrial, Econmica, Espacialista, Marxista, Cultural, entre vrias outras.

Figura 2 Princpios orientadores da Geografia Clssica ou Tradicional Fonte: Prof. Oswaldo Bueno Amorim Filho PUC-Minas, 2008.

Exemplificando, na Geografia, o trabalho de campo normalmente considerado como uma tcnica, porm, caso o tipo de trabalho de campo seja suficientemente sofisticado e elaborado, pode chegar ao status de mtodo. Em verdade, a prtica de campo se torna quase uma sabedoria do gegrafo, incorporada sua percepo contnua do mundo. Onde quer que v, o Gegrafo observa e pensa sobre o meio de maneira peculiar, que podemos denominar como uma expresso do esprito geogrfico. H vrias outras tcnicas de observao na Geografia, como as tcnicas de anlise de fotografias, aerofotos e de imagens de satlite, variando em seus graus de sofisticao e tambm no tipo de informao que apreendida. Disso pode-se depreender sobre a importncia da observao para a Geografia; logo, o Gegrafo deve procurar sempre aprimorar e aperfeioar sua capacidade de observao. Um exemplo clssico de cdigo til para o Gegrafo o relacionado s tcnicas de localizao, onde, atravs do Sol, estrelas, coordenadas, clculos e instrumentos, o profissional consegue interpretar informaes externas e inferir sua posio no espao. Pode-se at dizer que quanto maior o nmero de meios pelo qual o gegrafo consegue localizar-se, melhor gegrafo ele . Isso especialmente verdadeiro nas atividades de trabalho de campo, onde crucial o senso de orientao e localizao do pesquisador. Na Geografia, outro exemplo de importncia do cdigo no sensoriamento remoto, pois neste necessrio interpretar as cores falsas dispostas a partir das informaes de satlite. O domnio desse cdigo essencial boa interpretao das informaes associadas imagem. Escalas: Novas escalas de anlise para Geografia O termo escala pode ser entendido como graduao ou categoria de anlise 2. J em termos de reproduo cartogrfica e arquitetnica, tambm pode se referir correlao entre a representao de um objeto e seu tamanho real. O mundo pode ser examinado em diferentes escalas de observao, desde a escala de observao da Fsica Quntica e da nanotecnologia, atinentes a elementos atmicos e sua interao, at a escala de observao das pesquisas astronmicas, que podem alar s galxias e a todo o universo conhecido.

2

CASTRO, 1995

Em cada escala, podemos observar elementos e estruturas diferentes, a partir de nosso aparato perceptivo e de instrumentos de anlise 3. como se cada escala fosse uma maneira de enxergar o mundo, dando ensejo criao de diferentes teorias, conforme o enfoque da escala de abordagem 4. Essas abordagens e teorias fornecem-nos vises de mundo, paralelas e concomitantes, como tais como, por exemplo, o mundo visto pela Fsica Atmica, pela Biologia Celular, pela Geografia, pela Astronomia, e vrias outras cincias, cada qual com sua escala de abordagem apropriada. A escala de anlise da Geografia inicia-se com o habitat, espao de vivncia cotidiano, e vai at a representao do Planeta Terra como um todo. Esse limite mximo de seu objeto de anlise pode ser inferido etimologicamente do prprio nome da disciplina, visto que Geo refere-se deusa Gaia, a qual representa simbolicamente o nosso planeta, enquanto Graphia pode ser interpretado como a representao grfica desta deusa. Ao contrrio do que ocorre na Astronomia, para a qual o homem seria apenas um ponto nfimo no meio do Universo, a ocupao e aes humanas tem papel significativo na escala e objeto de anlise geogrficos. A variao de escalas de anlise um tema precioso para o gegrafo. preciso cuidado ao comparar objetos de tamanhos muito diferentes, em escalas diferentes. Os estudos geogrficos debruam-se em vrias escalas, da qual podemos traar uma lista exemplificativa, em conformidade com a aproximao: Terra, Continente, Pas, Estado, Cidade, Bairro, Quarteiro. No limite de proximidade, a Geografia j perpassa o campo da Arquitetura, nos espaos pessoais cotidianos, casas e prdios, chamados de escala do habitat. Em cada escala de anlise, o Gegrafo deve escolher um nvel de detalhamento adequado (tambm chamado de escala de detalhe") 5. Por exemplo, uma escala de 1:25.000 seria adequada para estudos em um Municpio, enquanto uma escala de 1:250.000 j seria melhor para trabalhar com as meso-regies de um Estado como Minas Gerais. Por exemplo, ao comparar pases de tamanhos, riqueza e populao muito diferentes, preciso manter sempre em conta essas diferenas de proporo.

3

DOLLFUS, 1970 Sabe-se tambm que, quando se muda de escala, os fenmenos mudam no somente de grandeza, mas, de natureza. 4 CASTRO, 1995 5 CASTRO, 1995

Figura 3 Municpio de Cornlio Procpio e sua regio de entorno, visualizados em diversas escalas.

Isso no significa que o Gegrafo no utilize o conhecimento vindouro de outras escalas de anlise, para em seguida distribuir espacialmente informaes resultantes desses conhecimentos 6. Na Geografia Fsica pode-se utilizar conhecimentos de Fsica Quntica, como, por exemplo, para rastrear o fluxo hidrolgico subterrneo em reas de carste por meio de istopos radioativos. O estudo do calibre de gros de areia, silte e argila, para estudos de eroso da Geografia Fsica, um outro caso de como a Geografia pode utilizar-se de anlises laboratoriais de outras escalas. Passando para as escalas do infinitamente grande, desde a antiguidade houve uma vinculao entre a Geografia e a Astronomia, que auxiliava na localizao, orientao e medies. Contudo, com o passar dos sculos, o desenvolvimento da

6

DOLLFUS, 1970.

Astronomia e da Geografia seguiu caminhos cada vez mais afastados, aqueles se voltando mais e mais para as estrelas e estes para o Planeta Terra. Inobstante, bastante evidente que o Gegrafo apenas utiliza de informaes vindas de outras cincias, tomando-as de emprstimo, em vez de se dedicar produo acadmica desses conhecimentos 7. A Fsica Atmica no Geografia, embora possa ser til a esta ltima, eventualmente. Assim tambm ocorre com a Psicologia, Astronomia, Ciberntica, dentre outras disciplinas. Contudo, uma oportunidade de desenvolvimento que desponte para a Geografia, nas prximas dcadas, o avano sobre novas escalas de observao, desde o infinitamente grande (como a astronomia) at o infinitamente pequeno (como os tomos, genes e toda a nanotecnologia), passando, sem dvida, pelo espao pessoal dos indivduos em suas rotinas dirias. Essa possibilidade se d pelos desenvolvimentos exclusivos da cincia geogrfica no campo da anlise espacial. As novas abordagens e tcnicas de anlise espacial podem trazer contribuies para diversas cincias que se deparam com o estudo de fenmenos distribudos espacialmente, independentemente da escala de anlise. Dessa maneira, criam novas geografias, de fenmenos nunca antes analisados dessa maneira.

Referncias: ABREU, J. A. Nveis de Ao do Gegrafo. Nota Tcnica. UFMG, 1992. PUC-Minas, 1998. CASTRO, I. E. O problema da escala. In: Castro, I. E. et al. (Orgs.) Geografia. conceitos e temas . Rio de Janeiro, Bertrand, 1995. DOLFFUS, Olivier. LEspace Gographique. Paris, P.U.F. 1970, 126 p. Condensado, adaptado e traduzido por Oswaldo Bueno Amorim Filho. GOMES, Paulo Cesar da Costa - Geografia e modernidade. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 1996. PATTISON, William. As Quatro Tradies da Geografia. Bol. Geog. Teortica, Rio Claro, 7 (13): 101 110, 1977. Original: The Four Traditions of Geography. The Journal of Geography, vol .63, n 5 (1964), 211-216.

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DOLLFUS, 1970. (...) o conhecimento mais profundo de certos nveis te que fazer apelo a outras disciplinas que no so diretamente geogrficas em sentido estrito.

THRALL, Grant Ian . The Stages Of GIS Reasoning. GeoSpatial Solutions (formerly GeoInfo Systems) volume 5, Number 2, February 1995; pages 46-51.