preservando a historia dos ld gaúchos

10
1 PRESERVANDO A HISTÓRIA DOS LIVROS DIDÁTICOS PRODUZIDOS NO RIO GRANDE DO SUL (1940-1980): O ACERVO DO GRUPO DE PESQUISA HISALES Antonio Mauricio Medeiros Alves 1 O presente estudo insere-se no campo da história dos livros escolares e está vinculado ao grupo de pesquisa HISALES (História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares), que é ligado ao Programa de Pós-graduação em Educação da FaE/UFPel. Neste grupo, três eixos são privilegiados nas investigações: i) estudos sobre história da alfabetização; ii) pesquisas sobre práticas sociais de leitura e de escrita; iii) análise da produção, circulação e utilização de livros escolares produzidos no Rio Grande do Sul, especialmente entre os anos de 1940 e 1980 (período da influência do CPOE Centro de Pesquisas e Orientações Educacionais - SEC/RS na produção didática gaúcha). O trabalho aqui apresentado está ligado ao eixo três e tem como objetivo central realizar uma reflexão acerca da importância dos livros didáticos em pesquisas no campo da História da Educação e, ainda, apresentar alguns aspectos do processo de constituição de um acervo, no grupo de pesquisa HISALES, voltado à conservação de livros didáticos produzidos no estado do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1940 e 1980. Diferentes trabalhos 2 têm destacado a importância dada aos livros didáticos, nos últimos anos, como fontes de pesquisa para a História da Educação, bem como as múltiplas possibilidades de análise considerando-se esse impresso como objeto de estudo. Por apresentarem características próprias que os diferenciam dos demais livros, os livros didáticos, quando considerados como objeto e fonte em pesquisas históricas, pressupõem a realização de algumas problematizações para sua análise. Pensar o livro didático como um objeto com características próprias implica na necessidade de conceituá-lo, ou seja, procurar responder a questão: o que é o livro didático? Segundo Batista (2009, p.41), à primeira vista, não há muitos problemas na tarefa de conceituar livro didático, sendo esse um: tipo de livro que faz parte de nosso cotidiano: é adquirido, em geral, no início do ano, em livrarias e papelarias quase sempre lotadas; que vai sendo utilizado à medida que avança o ano escolar e que, com alguma sorte, poderá ser reutilizado por outro usuário no ano seguinte. Seria, afinal aquele livro ou impresso empregado pela escola, para o desenvolvimento de um processo de ensino ou formação. 1 Professor do Departamento de Matemática e Estatística do Instituto de Física e Matemática da UFPEL, pesquisador do Grupo de Pesquisa HISALES (História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros Escolares), doutorando do PPGE/FAE/UFPEL. [email protected] 2 Batista (2008); Bittencourt (2008); Chopin (2002, 2004, 2009); Frade & Maciel (2006); Galvão e Batista (2009); Gatti Júnior (2004); Peres (2006, 2008, 2010); Valente (2008), entre outros.

Upload: lema-ufpel

Post on 24-Jul-2015

28 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Preservando a historia dos LD gaúchos

1

PRESERVANDO A HISTÓRIA DOS LIVROS DIDÁTICOS PRODUZIDOS NO RIO

GRANDE DO SUL (1940-1980): O ACERVO DO GRUPO DE PESQUISA HISALES

Antonio Mauricio Medeiros Alves1

O presente estudo insere-se no campo da história dos livros escolares e está

vinculado ao grupo de pesquisa HISALES (História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos

Livros Escolares), que é ligado ao Programa de Pós-graduação em Educação da FaE/UFPel.

Neste grupo, três eixos são privilegiados nas investigações: i) estudos sobre história da

alfabetização; ii) pesquisas sobre práticas sociais de leitura e de escrita; iii) análise da

produção, circulação e utilização de livros escolares produzidos no Rio Grande do Sul,

especialmente entre os anos de 1940 e 1980 (período da influência do CPOE – Centro de

Pesquisas e Orientações Educacionais - SEC/RS na produção didática gaúcha).

O trabalho aqui apresentado está ligado ao eixo três e tem como objetivo central

realizar uma reflexão acerca da importância dos livros didáticos em pesquisas no campo da

História da Educação e, ainda, apresentar alguns aspectos do processo de constituição de um

acervo, no grupo de pesquisa HISALES, voltado à conservação de livros didáticos produzidos

no estado do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1940 e 1980.

Diferentes trabalhos2 têm destacado a importância dada aos livros didáticos, nos

últimos anos, como fontes de pesquisa para a História da Educação, bem como as múltiplas

possibilidades de análise considerando-se esse impresso como objeto de estudo.

Por apresentarem características próprias que os diferenciam dos demais livros, os

livros didáticos, quando considerados como objeto e fonte em pesquisas históricas,

pressupõem a realização de algumas problematizações para sua análise.

Pensar o livro didático como um objeto com características próprias implica na

necessidade de conceituá-lo, ou seja, procurar responder a questão: o que é o livro didático?

Segundo Batista (2009, p.41), à primeira vista, não há muitos problemas na tarefa

de conceituar livro didático, sendo esse um:

tipo de livro que faz parte de nosso cotidiano: é adquirido, em geral, no início do

ano, em livrarias e papelarias quase sempre lotadas; que vai sendo utilizado à

medida que avança o ano escolar e que, com alguma sorte, poderá ser reutilizado por

outro usuário no ano seguinte. Seria, afinal aquele livro ou impresso empregado pela

escola, para o desenvolvimento de um processo de ensino ou formação.

1 Professor do Departamento de Matemática e Estatística do Instituto de Física e Matemática da UFPEL,

pesquisador do Grupo de Pesquisa HISALES (História da Alfabetização, Leitura, Escrita e dos Livros

Escolares), doutorando do PPGE/FAE/UFPEL. [email protected] 2 Batista (2008); Bittencourt (2008); Chopin (2002, 2004, 2009); Frade & Maciel (2006); Galvão e Batista

(2009); Gatti Júnior (2004); Peres (2006, 2008, 2010); Valente (2008), entre outros.

Page 2: Preservando a historia dos LD gaúchos

2

O autor indica, porém, que ao suspendermos a familiaridade com os termos ou

expressões em itálico, essa conceituação passa a apresentar um conjunto de problemas, que

dizem respeito: ao suporte (livro, fichas, folhas soltas); a variação dos meios de produção

(diferentes formas de reprodução: mimeógrafo, Xerox, meio digital); a variação nos processos

de produção (obras que não foram produzidas para a escola, mas que acabam fazendo parte do

universo escolar, como a Bíblia, romances, etc.) e, por fim, a diversidade nos modos de

encenar sua leitura e utilização (que diz respeito a uma espécie de “contrato de leitura”

imposto pelos textos ou impressos didáticos aos seus leitores) (BATISTA, 2009, p.43-49).

Chopin (2004, p.549) indica que a dificuldade na definição dos livros e das

edições didáticas deriva da diversidade de vocabulário e da instabilidade dos usos lexicais.

Essa dificuldade faz, de acordo com o autor, com que muitos pesquisadores dos livros

escolares se omitam em definir seu objeto de estudo:

Na maioria das línguas, o “livro didático” é designado de inúmeras maneiras, e nem

sempre é possível explicitar as características específicas que podem estar

relacionadas a cada uma das denominações, tanto mais que as palavras quase sempre

sobrevivem àquilo que elas designaram por um determinado tempo. Inversamente, a

utilização de uma mesma palavra não se refere sempre a um mesmo objeto, e a

perspectiva diacrônica (que se desenvolve concomitantemente à evolução do léxico)

aumenta ainda mais essas ambigüidades. Alguns pesquisadores se esforçaram em

esclarecer essas questões e estabelecer tipologias, mas constata-se que a maior parte

deles se omite em definir, mesmo que sucintamente, seu objeto de estudo.

Dessa forma o autor encaminha para a existência de diferentes conceitos desse

objeto, com variações, por exemplo, de acordo com o tempo. Em outro texto, Chopin (2009)

afirma que o conceito de livro didático é historicamente recente e comenta sobre as variações

provenientes da língua, o que lhe atribui certa instabilidade:

Hoje, ainda, os termos aos quais recorrem as diversas línguas para designar o

conceito de livro escolar, são múltiplos, e sua acepção não é nem precisa nem

estável. Percorrendo a abundância bibliográfica científica consagrada no mundo do

livro e da edição escolar, constata-se que são utilizadas conjuntamente hoje várias

expressões que, na maioria das vezes, é difícil até impossível de determinar o que as

diferenciam. Tudo parece ser uma questão de contexto, de uso, até de estilo

(CHOPIN, 2009, p.19).

O autor segue discutindo as diferentes formas de nomear o livro didático de

acordo com a língua considerada: em francês, manuels scolaires, livres scolaires ou livres de

classe; em italiano são recorrentes as expressões libri scolastici, libri per la scuola ou libre di

texto; já os espanhóis alternam entre libros escolares, libros de texto ou textos escolares;

finalmente, os lusófonos preferem as expressões livros didáticos, manuais escolares ou textos

Page 3: Preservando a historia dos LD gaúchos

3

didáticos, o que, segundo o autor, reflete “a complexidade do estatuto do livro escolar na

sociedade” (CHOPIN, 2009, p.20).

Chopin ainda apresenta outras questões que interferem na conceituação de livros

didáticos como, por exemplo, sua organização interna, suas funções, características materiais

ou mesmo ao contexto institucional no qual a obra é utilizada ou mesmo destinada.

Finalmente o autor apresenta uma conclusão derivada da “rápida incursão de horizonte

léxico”:

Em última instância, o manual, sob suas diversas denominações, é progressivamente

um objeto planetário: ele se impôs no mundo, pelo viés da evangelização e da

colonização, adotado pela maior parte dos países de sistemas educativos e de

métodos de ensino inspirados no modelo ocidental. O “manual” é, portanto,

frequentemente designado por termos que são a transcrição, a tradução ou a

transposição das designações as mais comumente utilizadas nos países

desenvolvidos (CHOPIN, 2009, p. 25).

Pontuados alguns aspectos da discussão sobre o conceito de livro didático, é

necessário pensar esse objeto dentro do campo da história da educação.

Chopin (2002) indica que nos últimos 20 anos as pesquisas históricas sobre o livro

didático tiveram avanços consideráveis em oposição ao descaso verificado ao longo da

História da Educação. Entre os fatores que levaram a esse descaso, o autor relaciona a

presença do livro didático no universo cotidiano de alunos, pais e professores, o que faz com

que seja visto como algo banal, familiar, que não apresenta nada de raro, exótico ou singular,

não sendo conservado e comumente descartado.

Outro fator importante considerado pelo autor é a característica perecível do livro

escolar, pois cada mudança nos métodos ou nos programas determina sua substituição, bem

como quando fatos da atualidade lhe impõem mudanças - que o autor exemplifica citando a

queda do muro de Berlim.

Nessa mesma perspectiva, Batista (1999, p.529) reafirma esses fatores de descaso

com o livro didático, caracterizando-o como “um livro efêmero, que se desatualiza com muita

velocidade”. Indica também outros elementos que favoreceram o desinteresse da pesquisa

educacional sobre o livro escolar, tais como: o fato de raramente este ser relido e, por esse

motivo, ser pouco conservado em prateleiras de bibliotecas; destinar-se geralmente a um

público infantil; ser produzido em grandes tiragens; apresentar encadernações – na maioria

das vezes – de baixa qualidade, o que favorece sua rápida deterioração e ter, ainda, boa parte

de sua circulação fora dos espaços das grandes livrarias e bibliotecas (BATISTA, 1999).

Segundo Darnton (1990) e Belo (2002), os anos de 1970 apresentam um

crescimento das pesquisas sobre o livro e, conforme Chopin (2002, p.11), é também “no

Page 4: Preservando a historia dos LD gaúchos

4

decorrer dos anos 1970 que os historiadores começam a manifestar um real interesse pelo

livro e pela edição escolares”.

Encontramos também algumas considerações em Corrêa (2000), acerca da

importância da utilização do livro didático como objeto e fonte de pesquisa em História da

Educação. A autora destaca que devemos considerar dois aspectos: primeiro, o fato de ser o

livro escolar um material de grande contribuição tanto para a história do pensamento como

também das práticas educativas e, segundo, que ele traz em si os conteúdos que revelam as

representações e os valores predominantes na sociedade em determinada época.

Entre as diferentes possibilidades de análise histórica dos livros didáticos, Chopin

(2004, p. 554) apresenta duas grandes categorias de pesquisa:

[1] aquelas que, concebendo o livro didático apenas como um documento histórico

igual a qualquer outro, analisam os conteúdos em uma busca de informações

estranhas a ele mesmo (a representação de Frederico II da Prússia, ou a

representação da ideologia colonial, por exemplo), ou as que só se interessam pelo

conteúdo ensinado por meio do livro didático (história das categorias gramaticais,

por exemplo);

[2] aquelas que, negligenciando os conteúdos dos quais o livro didático é portador, o

consideram como um objeto físico, ou seja, como um produto fabricado,

comercializado, distribuído ou, ainda, como um utensílio concebido em função de

certos usos, consumido – e avaliado – em um determinado contexto.

O autor destaca que no primeiro caso, a história escrita pelo pesquisador não é, de

fato, a história do livro didático e sim “de um tema, de uma noção, de um personagem, de

uma disciplina” e, nesse caso, é comum os livros didáticos representarem apenas uma das

fontes às quais o pesquisador recorre. Já na segunda categoria, o pesquisador concentra sua

atenção diretamente nos livros didáticos, praticamente desconsiderando seu conteúdo,

detendo-se à sua concepção, produção, distribuição, utilização e recepção. Porém o autor

destaca a existência de pesquisas que se dedicam, mesmo que em proporção variável, às duas

categorias (Chopin, 2004, p.554).

Essa definição decorre dos interesses do pesquisador e também da natureza das

fontes disponíveis, pois, a ausência ou dificuldade de acesso aos acervos, bem como a falta de

catalogação e cuidado com os livros, terminam por:

gerar várias limitações à pesquisa, sobretudo no que diz respeito ao restabelecimento

do circuito da produção dos livros: mesmo nos exemplares localizados, faltam

referências quanto ao número e à data das edições, às tiragens, além daqueles que

estão parcialmente danificados, sem capa e sem folha de rosto (Galvão e Batista,

2009, p. 24)

Assim, partindo da constatação da ausência de acervos especializados e da

importância e representatividade dos livros didáticos produzidos no Rio Grande do Sul

Page 5: Preservando a historia dos LD gaúchos

5

(PERES, 2006) o grupo de pesquisa HISALES (FaE/UFPel) tem se dedicado à busca, reunião

e conservação dessas fontes.

Esses livros, dirigidos ao ensino primário (ou às séries iniciais do 1º grau), foram

produzidos, em sua maioria, por autoras gaúchas vinculadas ao Centro de Pesquisas e

Orientação Educacionais (CPOE).

Segundo Peres (2004, p.301), o CPOE desempenhou desde a sua criação, em 1942

e até os anos 1970, importante papel no ensino primário gaúcho, tendo como principal função

a “realização de estudos de investigações psicológicas, pedagógicas e sociais, destinados a

manter em bases científicas o trabalho escolar”, além da elaboração de planos e programas

para esse nível de ensino.

A autora ressalta a importância do papel do CPOE para compreender as mudanças

nos livros didáticos do ensino primário:

O CPOE manteve-se até a década de 70, praticamente como um órgão

autônomo de direção, de orientação e de normatização didático-pedagógica.

O discurso das técnicas educacionais do CPOE ganhou legitimidade. Elas

estabeleceram uma forma de comunicação com as professoras primárias [...]

contendo orientações didáticas pedagógicas sobre a organização das classes,

o planejamento das aulas, os conteúdos e os métodos os materiais a serem

utilizados em sala de aula [...] o uso dos livros didáticos (PERES, 2000,

p.143).

Além das orientações sobre o uso dos livros didáticos, o CPOE também exerceu

um papel de “controle” na produção e indicação de livros didáticos. Segundo Peres (2006), o

CPOE tinha presente no cerne de sua política questões como a produção, análise, indicação,

divulgação e controle de materiais de leitura em geral e de livros didáticos em particular.

As obras produzidas pelas autoras gaúchas no período em questão foram

publicadas por editoras locais (Selbach, Globo e Tabajara) e também por editoras nacionais

como a Editora do Brasil e FTD. A circulação dessas obras possivelmente tenha contado com

a chancela do Estado, na figura do CPOE, pois de acordo com Chopin (2008, p.16):

quando a concepção e a elaboração de obras escolares são confiadas à iniciativa de

empresas privadas, o Poder político se reserva à prerrogativa de permitir sua

introdução nas escolas mediante uma autorização da administração escolar.

Porém, a dispersão dessa produção e falta de acervos especializados disponíveis

para pesquisa despertou a necessidade, no grupo de pesquisa HISALES, de constituir um

acervo focado na produção gaúcha de livros didáticos tendo sido, até o momento,

Page 6: Preservando a historia dos LD gaúchos

6

identificadas 23 coleções3 produzidas por autoras gaúchas. Atualmente o acervo já possui ao

menos um exemplar de cada uma dessas coleções.

Cabe registrar a dificuldade encontrada no processo de constituição do acervo,

dada a dispersão e, até mesmo, inexistência dos livros, pelos diferentes motivos já

apresentados (CHOPIN, 2002). Esta é uma dificuldade recorrente em estudos com livros

didáticos, como se pode perceber nas palavras de Bittencourt (2008) ao indicar que “a

organização do acervo de livros didáticos correspondeu a um trabalho semelhante ao do

arqueólogo, buscando os objetos em diferentes ‘sítios’ [...]”, fazendo referência à constituição

do corpus documental de seu projeto de tese (p.18).

De fato, a tarefa de localizar o que “nos restou do passado” conforme expressão

de Galvão e Batista (2009), não é empreitada fácil, o que foi percebido no processo de busca

dos livros didáticos para o acervo. Segundo os autores:

no caso brasileiro, depara-se, de modo geral com a ausência de acervos específicos

de manuais escolares, o que gera, para os pesquisadores, um sobre-esforço na

localização dos livros em acervos não especializados, onde não estão, via de regra,

catalogados [...] (Galvão e Batista, 2009, p.24)

Assim, a partir dessas questões, o grupo de pesquisa HISALES tem trabalhado

incansavelmente para a ampliação do acervo de livros didáticos, realizando buscas dessas

fontes em diferentes espaços, a exemplo das bibliotecas de escolas municipais e estaduais de

Pelotas e região, incluindo também aquelas localizadas na zona rural, que podem ser

caracterizadas como “acervos não especializados”.

Em alguns desses espaços, normalmente separados dos modernos livros

escolares, em arquivos mortos, porões, depósitos, entre outros, foram encontrados exemplares

de livros produzidos no Rio Grande do Sul, na maior parte dos casos destinados ao descarte.

Outros exemplares foram adquiridos em sebos de diferentes cidades, bem como

em sebos virtuais, a exemplo do site Estante Virtual4. Esse site permite a realização de “busca

offline” permanente nos acervos dos vendedores cadastrados no site, incluindo livros que

ainda não tenham sido catalogados no portal. Assim, se porventura o livro for cadastrado

online, é enviado automaticamente ao interessado um alerta por e-mail. Para isso é necessário

preencher um formulário indicando o nome do autor, o título e outras descrições que julgar

necessárias sobre o livro.

Alguns exemplares foram localizados através de contato, via e-mail, com alunos e

3 As coleções e os exemplares disponíveis podem ser consultados no site do grupo de pesquisa em

http://www.ufpel.edu.br/fae/hisales/ 4 http://www.estantevirtual.com.br/

Page 7: Preservando a historia dos LD gaúchos

7

professores de diversos cursos e níveis de ensino, pesquisadores, bibliotecas, entre outros, de

diferentes estados brasileiros que, mobilizados pela proposta, tem se empenhado na busca

desses livros em sebos e acervos particulares em suas cidades. Diferentes exemplares foram

cedidos por diferentes pesquisadores.

A procura também contou com a consulta sobre a disponibilidade dessas obras

junto às famílias das autoras, como no caso das obras das professoras Nelly Cunha e Cecy

Cordeiro Thofehrn, que produziram livros em conjunto e também em co-autoria com outras

professoras. No caso de Nelly Cunha, suas filhas já haviam disponibilizado seu acervo para

Facin (2008), ficando o mesmo sob sua posse e guarda.

Em relação à Cecy Cordeiro Thofehrn não se tinha, ainda, conseguido localizar

nenhum de seus descendentes. Porém através de diferentes buscas foi localizado um neto da

professora, Ricardo Coelho, residente em Porto Alegre, na casa onde Cecy Thofehrn havia

morado. Após realização de contato telefônico, Ricardo Coelho doou mais de 70 livros de

autoria de sua avó, Cecy Cordeiro Thofehrn e de sua mãe, Iara Thofehrn Coelho, que haviam

sido “poupados” de descartes ao longo do tempo, sobre o que ele se manifestou:

A gente estava entrando em obra [na casa], e resolvi guardar alguma coisa, porque

em algum momento isso ia dizer alguma coisa. Também sou pesquisador, então

acabei segurando alguns livros, descartando as réplicas, e possivelmente algum

acabou sendo descartado (Ricardo Coelho, entrevista, 03 de junho de 2010).

Esse descarte dos materiais é compreensível, pois, enquanto não são questionados,

esses livros não assumem o status de fontes para a História da Educação, sendo reconhecidos

apenas como vestígios do passado, passíveis de descarte. Prost (2008) alerta que, na verdade,

são as questões do pesquisador que dão aos impressos o caráter de documentos ou fontes,

passando então a serem valorizados e conservados.

Atualmente o acervo possui por volta de 200 exemplares de livros produzidos no

Rio Grande do Sul, dos quais 126 volumes tem autoria (ou co-autoria) de Nelly Cunha ou

Cecy Cordeiro Thofehrn, professoras primárias responsáveis por um grande volume da

produção didática gaúcha.

Esse volume torna-se bastante representativo se comparado a um importante

acervo como o da Biblioteca Nacional5, do Rio de Janeiro, no qual foram localizados somente

31 livros de autoria dessas professoras. Essa consulta foi realizada em Catálogos/Acervo

Geral/Livros (no Catálogo Corrente e também no Catálogo Antigo), usando como critério de

busca os nomes das autoras.

Com a finalidade de dar visibilidade às informações sobre o acervo, bem como

5 http://www.bn.br/portal/

Page 8: Preservando a historia dos LD gaúchos

8

organizar e catalogar os exemplares disponíveis, foram construídos diferentes instrumentos de

registro:

Quadro 1 - Mapeamento das coleções produzidas por autoras gaúchas (segunda

metade do século xx) – nesse quadro foram listadas todas as coleções localizadas a

partir de outros estudos ou de referências constantes na contra capa dos exemplares

que já faziam parte do acervo.

Quadro 2 - Títulos que compõem as coleções (disponíveis no acervo HISALES) – esse

quadro apresenta a relação de todos os exemplares disponíveis de cada uma das

coleções localizadas, incluindo título por volume, série ou ano escolar a que se

destina, ano de publicação e edição.

Quadro 3 – Coleções (disponíveis no acervo HISALES) – no quadro três foram

listadas todas as coleções que possuem ao menos um volume no acervo. Inclui nome e

série da coleção (algumas editoras usam esse recurso), nome das autoras e editora.

A fim de sistematizar os dados de cada livro do acervo foram construídas fichas

individuais6 com alguns dados descritos como exemplificado a seguir:

AUTOR: THOFEHRN, Cecy Cordeiro; CUNHA, Nelly

TÍTULO: Bichano e Zumbi – Primeiro Ano

COLEÇÃO: “Estrada Iluminada” – Série Nelci

EDITORA: Editora do Brasil S/A

LOCAL: São Paulo

EDIÇÃO: 1ª

ANO PUBLICAÇÃO: 1960

PÁGINAS: 79 p.

EXEMPLARES: 1

A disponibilidade de coleções completas ou praticamente completas dos livros

produzidos por essas autoras no acervo do grupo de pesquisa HISALES tem gerado diferentes

trabalhos, orientados pela líder do grupo, professora Dra. Eliane Peres7. Espera-se que a

divulgação desse acervo possa gerar novas pesquisas que contemplem questões como, por

exemplo, as propostas por Darnton (2008, p.156), quando solicita “aos historiadores dos

livros que confrontem três questões: (1) como é que os livros passam a existir?; (2) como é

que eles chegam aos leitores?; (3) o que os leitores fazem deles?”, que envolvem aspectos

como a produção, circulação e uso desses livros. O presente texto tem ainda o intuito de

alertar para a necessidade de constituição de acervos como esse, que possibilitem a

6 A lista dos exemplares disponíveis no acervo pode ser consultada no site do grupo de pesquisa, em

http://www.ufpel.edu.br/fae/hisales. 7 A exemplo da tese de doutorado de Antonio Mauricio Medeiros Alves (Coleções Estrada Iluminada e Nossa

Terra Nossa Gente) e da dissertação de mestrado de Chris de Azevedo Ramil (Coleção Tapete Verde), em

desenvolvimento junto ao PPGE da FaE/UFPEL.

Page 9: Preservando a historia dos LD gaúchos

9

conservação de fontes para a História da Educação.

O acervo do grupo de pesquisa HISALES configura-se como um acervo

específico, constituído a partir do interesse de dar visibilidade à produção gaúcha de livros

escolares, visto que:

Os manuais representam para os historiadores uma fonte privilegiada, seja qual for o

interesse por questões relativas à educação, à cultura ou às mentalidades, à

linguagem ou às ciências... ou ainda à economia do livro, às técnicas de impressão

ou à semiologia da imagem (CHOPIN, 2002, p.13).

REFERÊNCIAS

BATISTA, Antônio Augusto. Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros

didáticos. In: ABREU, Márcia (org.). Leitura, História e História da Leitura. São Paulo:

Mercado das Letras, 1999.

______. O texto escolar: uma história. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2008.

______. O conceito de “livros didáticos”. In: BATISTA, Antônio Augusto Gomes &

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira (orgs). Livros escolares e de leitura no Brasil: elementos

para uma história. Campinas: Mercado de Letras, 2009, pp. 41-76.

BELO, André. História & livro e leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte:

Autêntica Editora, 2008.

CHOPIN, Alain. O historiador e o livro escolar. História da Educação. (FAE/Ufpel),

Pelotas, Número 11 p. 5 - 24, Abril 2002.

______. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e

Pesquisa. v.30, n.3, p. 549-566, set/dez. São Paulo: 2004.

______. O Manual Escolar: uma falsa evidência histórica. História da Educação (Associação

Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação). FaE/UFPEL. N.27 (jan/abr

2009) p.9-76, Pelotas: ASPHE, 2009.

CORRÊA, Rosa Lydia Teixeira. O livro escolar como fonte de pesquisa em História da

Educação. In: Cadernos Cedes, ano XIX, no 52, p. 11-24, Campinas, 2000.

DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette – mídia, cultura e revolução. São Paulo: Cia das

Letras, 1990.

______. O que é a história do livro? Revisitado. ArtCultura. Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 155-

169, jan.-jun. 2008

FACIN, Helenara Plaszewski. Histórias e memórias da professora e autora de livros

didáticos Nelly Cunha (1920-1999). Dissertação de Mestrado: FAE/UFPEL, 2008.

FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva e MACIEL, Francisca Izabel Pereira (orgs). História

Page 10: Preservando a historia dos LD gaúchos

10

da alfabetização: produção, difusão e circulação de livros (MG/RS/MT - Séc. XIX e XX).

Belo Horizonte: UFMG/FaE, 2006.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira e BATISTA, Antonio Augusto Gomes. O estudo dos

manuais escolares e a pesquisa em história. In: BATISTA, Antonio Augusto Gomes &

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Livros escolares de leitura no Brasil: elementos para

uma história. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2009, pp.11-40.

GATTI JÚNIOR, Décio. A escrita escolar da história: livro didático e ensino no Brasil

(1970-1990). Bauru: EDUSC; Uberlândia: EDUFU, 2004.

PERES, Eliane. Aprendendo formas de pensar, de sentir e de agir a Escola como oficina

da vida: discursos pedagógicos e práticas escolares da escola primária pública gaúcha

(1909-1959). Belo Horizonte: Doutorado em Educação, FAE/UFMG, 2000. (Tese de

doutorado).

______. A institucionalização da modernidade pedagógica no Rio Grande do Sul: a criação do

Centro de Pesquisa e Orientação Educacionais (CPOE) – 1943. In: XAVIER, Maria do Carmo

(org.). Manifesto dos pioneiros da educação: um legado educacional em debate. Rio de

Janeiro: Editora FGV, 2004.

______. Desenvolvimento do projeto de pesquisa Cartilhas Escolares em Pelotas (RS):

organização do trabalho, fontes e questões de investigação. In: FRADE, Isabel Cristina Alves

da Silva e MACIEL, Francisca Izabel Pereira (orgs). História da alfabetização: produção,

difusão e circulação de livros (MG/RS/MT - Séc. XIX e XX). Belo Horizonte:

CNPq/Fapemig/CEALE, 2006, p.117-144.

______. Produção de cartilhas escolares no Rio Grande do Sul entre as décadas de 1950 e

1970: contribuições à história da alfabetização e das práticas escolares. In: XIV ENDIPE-

Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, 2008, Porto Alegre. Anais do XIV

ENDIPE. Porto Alegre : EDIPUCRS, 2008. v. 1. p. 1-12.

______. FACIN, Helenara. A produção didática da professora Nelly Cunha e suas

contribuições para o ensino de leitura no Rio Grande do Sul (décadas de 1960-1980). In:

SCHWARTZ, Cleonara Maria. PERES, Eliane e FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva

(orgs). Estudos de história da alfabetização e da leitura na escola. Vitória, ES: EDUFES,

2010, p. 137-170.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

VALENTE, Wagner Rodrigues. Livro didático e educação matemática: uma história

inseparável. Revista Zetetiké, Cempem, FE/ Unicamp, v. 16, n. 30, jul./dez.; p. 149 – 172,

2008.