por uma meta-história do filme: notas e hipóteses de um lugar

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POR UMA META-HISTÓRIA DO FILME:

notas e hipóteses de um lugar-comum1

Hollis Frampton

Por uma meta-história do filme não é apenas a construção de uma ficção poética como

quadro para uma articulação teórica; é também a elaboração das possibilidades do que

Hollis Frampton chamou de cinema infinito. Ao meta-historiador do filme caberia a ta-

refa radical e utópica de estabelecer a conjugação sinóptica de toda uma tradição a ser

inventada. O projeto desemboca em Magellan. Fernão de Magalhães, o primeiro ho-

mem a fazer a circunavegação da Terra é a referência metafórica que inspira a realização

de um ciclo-calendário, filmes específicos com dura-

ções variáveis entre um minuto e mais de uma hora

para serem mostrados a cada dia do ano. A prova de

que a Terra é redonda não erradica as bifurcações que

habitam o maior loop de filme já proposto. Assim

como Magalhães completa a volta morto, Magellan

permanece necessariamente inacabado.

Antigamente, segundo fontes seguras, a história tinha sua própriamusa, cujo nome era Clio. Ela presidia à fatura de uma categoriade artefatos verbais que se estendia desde a penumbra das lendasescritas até, talvez, Gibbon.

Esses artefatos compartilhavam entre si o pressuposto de que oseventos são numerosos e de uma plenitude que ultrapassa aapreensão da inteligência singular. Eles propunham não um subs-tituto sistemático compacto para um mundo em que tudo se

FOR A METAHISTORY OF FILM: NOTESAND HYPOTHESES OF COMMON-PLACE | For a Metahistory of Film is notonly the construction of poetic fictionbut also a frame for theoretical articula-tion; it also elaborates on the possibilitiesthat Hollis Frampton called infinite cine-ma. The metahistorian of film would havethe radical and utopian task of establish-ing the synoptic conjugation of a wholetradition to be invented. The projectleads to Magellan. Ferdinand Magellan,the first man to circumnavigate theworld, is the metaphoric benchmark thatinspired the making of a calendrical cycle,specific films lasting for one minute ormore than an hour to be shown every dayof the year. Evidence that the Earth isround does not eradicate the bifurca-tions inhabiting the largest loop of filmever proposed. Just as Magellan wasdead before the end of his voyage, Magel-lan continues necessarily incomplete. |History, film, infinite cinema.

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história

cinema

filme infinito

O cinematógrafo é uma

invenção sem futuro.

Louis Lumière

Hollis FramptonNostalgia, 1971 (stills)

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concatenava; constituíam, antes, um conjuntoaberto de ficções racionais no seio desse mundo.

Fortes em sua imanência, essas ficções nutriamtanto nossa energia contemplativa quanto qual-quer outro tipo de fabricação humana. Afinal, elasversam sobre algo que se parece com uma refle-xão consciente sobre as qualidades da experiênciada época que interpretam.

Para dar uma ideia da significação formal de seupretexto (isto é, “história real”), essas ficções utili-zam duas táticas. Primeiro, aniquilam as intuiçõesingênuas de causalidade, ignorando deliberada-mente a mera temporalidade de uma cronologia.Em seguida, para espanto de nossa cultura, elasdispensam em larga medida essas invenções bas-tante recentes que chamamos de fatos.

Essas ficções são o que se poderia chamar demeta-histórias do acontecimento. Elas consti-tuem eventos em si mesmas.

* * *

É razoável afirmar que foi o decano Swift, em seufurioso desejo de confundir o Ocidente, quem in-ventou o fato.

Um fato é o módulo indivisível a partir do qual seconstroem substitutos sistemáticos da experiên-cia. Em The Counterfeiters (Os falsificadores),Hugh Kenner cita uma anedota lapidar que re-monta à época germinal do fato. Sábios contem-porâneos de Swift fizeram um cachorro engolirdados. Os dados saíram do cachorro aparente-mente intactos; seu peso, no entanto, se tinha re-duzido à metade. Um cachorro, portanto, deveriaser definido a partir de então como mecanismoque serve, entre outras coisas, para fazer o pesodos dados diminuir pela metade.

O mundo apenas continha uma lista de coisasenumeráveis. Cada coisa podia ser consideradasimplesmente como a interseção de um número

finito de fatos. O conhecimento era então a soma

de todos os fatos passíveis de serem descobertos.

Evidentemente, era necessário um bocado de bor-

rões factuais para se conseguir pintar uma imagem

verdadeira do mundo; mas a invenção do fato re-

presentou, do nascente ponto de vista mecanicista,

gratificante diminuição da potência requerida a

uma época em que o saber era o produto fatorial de

todos os contextos concebíveis. É essa mudança de

definição do saber que Swift satiriza em As viagensde Gulliver e que Pope lamenta em Dunciad.

Ao longo de gerações, essa nova visão nunca foi

posta em questão. E ainda persiste na maior parte

dos casos: daí ficar claro que não vivemos todos

no mesmo tempo.

* * *

Quem primeiro avançou sobre a traqueia de Clio,

cada um pode fazer sua aposta, mas, de minha par-

te, sou tentado a acusar Gotthold Lessing. Sua

descendência belicosa, os estranhamente desin-

teressados historiadores de arte do século 19, de-

ram-lhe uma mãozinha para acabar de vez com

Clio. Eles tinham a Ciência a seu lado. A Ciência fa-

vorecia o fato porque o fato parecia favorecer a

previsibilidade. Contando incorporar o comércio

da profecia a seu império, os historiadores do sé-

culo 19 arriscaram tudo pelo fato, mergulhando

de ponta-cabeça naquilo que James Joyce mais

tarde chamaria de o “pesadelo” da história.

Havia, simplesmente, fatos em demasia.

Eles adotaram o estratagema, em si contraditório,

de “selecionar” amostras quintessenciais e fabri-

car, a partir daí, teorias tentaculares sobre quase

tudo. Eles próprios caíram na armadilha da discri-

minação, e não seria Werner Heisenberg quem os

tiraria dali: a época era de extrema certeza.

* * *

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Isaac Newton passou a última parte de sua vida es-

crevendo uma vintena de volumes em latim sobre

religião: ele se punha ao abrigo da nascente atomi-

zação do conhecimento, o vento violento que so-

prava naquela época. Jovens físicos, Leibniz e ele

próprio tinham herdado a geometria analítica de

Descartes e de sua utilização triunfal por Kepler

para predizer o movimento dos planetas. As equa-

ções algébricas davam conta, bastante bem, das

seções cônicas, mas Newton se apaixonara pelo

movimento dos corpos, que toma caminhos mais

complicados.

A complexidade do movimento no espaço e no

tempo era difícil de transpor em números. O nú-

mero ‘um’ era grande demais; o fato matemático

deveria ser bem menor. Mesmo a unidade aritmé-

tica era uma imensa estrutura constituída por mi-

núsculas pedras; cálculos infinitesimais, diferen-

ciais indivisíveis.

Dali em diante, faltava apenas um pequeno passo

para afirmar que o movimento consiste em uma

sucessão infinita de instantes breves durante os

quais só há imobilidade. O movimento podia as-

sim ser definido de forma prática como um con-

junto de variações no interior de uma série de po-

sições estáticas.

Eis que Zenão, com seus paradoxos, voltara para

vingar-se por intermédio do impassível Cavaleiro

da Física.

* * *

Na década de 1830, Georg Büchner escreveu

Woyzeck. Vítima de um assassinato político, Éva-

riste Galois morreu deixando a um amigo uma últi-

ma carta, que contém as fundações da teoria dos

conjuntos, ou a meta-história das matemáticas.

Talbot e Niepce inventaram a fotografia. O físico

belga Plateau inventou o fenakistiscópio, o primei-

ro cinema verdadeiro.

Para a história do cinema, esses quatro fatos pro-vavelmente não têm qualquer relação; no interiorda meta-história do cinema, entretanto, eles têmuma relação fundamental.

Talbot e Niepce inventaram a fotografia porquenem um nem outro sabia desenhar, realização so-fisticada, comparável ao domínio do tango, em al-gum outro tempo e lugar.

Plateau se alimentara de cálculo já no leite mater-no, de modo que os postulados matemáticoseram para ele mero ato reflexo. Interessando-sepela percepção sensorial, ele descobriu, fixando osol durante 20 minutos, uma de nossas deficiên-cias mais estranhas que, por eufemismo, chama-mos de “persistência da visão”.

Pela hibridação que ele fez desse defeito sensorialcom o cálculo infinitesimal de Newton começavaa fechar-se vigorosamente uma curvatura cujasbordas se vinham alargando desde a invenção doalfabeto.

O pequeno aparelho de Plateau começou a juntaros pedaços de corpo de Humpty Dumpty. Comodezenas de outras maravilhas sem futuro, tornou-se um brinquedo comercializável, sucedido poroutras novidades do gênero: zootropo, praxinos-cópio, zoopraxiscópio.

Imitando inconscientemente o processo intelec-tual que implementavam, todos esses mecanis-mos tomavam a forma de loops sem emenda: umaeternidade de cavalos saltando obstáculos e debolas quicando.

Tudo era desenhado à mão. Sobre o terreno rare-feito do paleocinema, não há traço da fotografiaaté a aparição do primeiro fenakistiscópio foto-gráfico, três décadas depois.

* * *

A união do cinema com o efeito fotográfico deu-se após uma fase de mútua e desajeitada sedução

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que durou uns 60 anos. Faltava muito pouco parao encontro galante na vasta obra de EadweardMuybridge; diante de sua bateria de câmeras fabri-cantes de fatos, milhares de pessoas desfilavamseus corpos curiosamente obsoletos.

Numa sequência que insinua de forma penetranteas complexidades vindouras, o mágico em pessoa,um velho corpulento e nu, introduzia uma cadeirano enquadramento, sentava-se e encarava suascâmeras com um olhar feroz.

As séries, contudo, só sugeriram a Muybridge ana-logias óbvias com o espaço do livro: contínuo, deacesso aleatório, anisotrópico em sua relaçãocom o tempo. Consequentemente, ele as publi-cou na forma de edição de chapas fotográficas.

O rendez-vous crucial foi adiado para aguardar aproteção de dois irmãos com o nome singular-mente apropriado de Lumière.

* * *

A relação entre o cinema e a fotografia fixa é, su-postamente, uma questão controversa. Tudo oque já ouvimos dizer sobre esse tema é do gêneroo ovo ou a galinha: por alguma razão o cinema “ace-lera” as fotografias fixas e as coloca em movimento.

Postula-se implicitamente que o cinema é umcaso particular dentro do universo da fotografiafixa. Dado que na lógica visual das fotografias fixasnão se consegue descobrir nenhuma necessidadepara uma tal “aceleração”, é difícil entender comoisso se daria.

É lugar-comum histórico dizer que a descobertade casos particulares precede no tempo a extra-polação de leis gerais. Por exemplo, o triânguloreto e seus lados racionais medindo três, quatro ecinco unidades existia antes de Pitágoras. A foto-grafia pré-data o cinema fotográfico.

Eu proponho então fazer o cinema sair desse cír-culo vicioso superpondo-lhe um segundo labirin-to (com saída) – postulando algo cuja atualidadecomeça nesse meio tempo a se concretizar: pode-ríamos decidir dar-lhe o nome de cinema infinito.

Uma câmera polimorfa roda e rodará sempre, aobjetiva fixada sobre todas as aparências do mun-do. Antes da invenção da fotografia fixa, os foto-gramas do cinema infinito eram guias vazias, ne-gras; em seguida começaram a aparecer imagenssobre a fita infinita do filme. Desde o nascimentodo cinema fotográfico, todos os fotogramas seencheram de imagens.

Hollis Frampton Special effects, 1972, still

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Não há nada, na lógica estrutural do filme cinemato-gráfico, que impeça a seleção de uma única ima-gem. Uma fotografia fixa é simplesmente um foto-grama isolado que fizemos “sair” do cinema infinito.

* * *

A história considera ‘de conveniência’ o casamen-to do cinema com a fotografia; a meta-história seobriga a considerá-lo uma necessidade.

A câmera lida, de uma forma ou de outra, comtoda partícula de informação presente no campoda visão; ela não faz nenhuma distinção. As foto-grafias, para júbilo ou infelicidade dos que as fa-zem, invariavelmente nos dizem mais do que que-remos saber.

A estrutura definitiva de uma imagem fotográficaparece nos escapar tanto quanto a estrutura dequalquer outro objeto natural. Ao contrário dasimagens gráficas que, se examinadas de perto, sedissolvem em padrões objetivos de pontos e li-nhas, a fotografia parece ser um continuum vir-tualmente perfeito. Daí o aspecto pungente da ilu-são que provoca: imediatamente sua plenitude fezda fotografia – no próprio âmago do mecanismo –o instrumento de restauração subversiva do sabercontextual, aparentemente coextensivo à totali-dade do mundo sensível.

O cinema já podia reivindicar – a partir dessa lógi-ca – uma proeza complementar: a ressurreiçãodos corpos no espaço retornando de suas traje-tórias desmembradas.

A consumação esperada finalmente aconteceunuma usina francesa, numa tarde ensolarada de fi-nal do século, em meio a sorrisos e alegres acenosdas moças. O resultado imediato foi o nascimentode uma máquina excepcional.

* * *

Em geral, a única coisa que sobrevive intacta a umaera é a forma de arte que ela inventa para si. Dos

tempos neolíticos restam fragmentos de cerâmi-ca e montes de entulho, mas a prática da pinturacontinua ininterrupta desde Lascaux até nossosdias. Podemos supor que a música nos vem deuma idade ainda mais remota, em que as primeirascordas eram extraídas do sistema nervoso dosvertebrados.

Originalmente essas invenções tinham por objeti-vo a pura sobrevivência. O rouxinol canta para se-duzir as damas. As pinturas rupestres presumivel-mente ajudavam na caça; poemas, diz Confúcio emAnalectos, ensinam o nome dos animais e das plan-tas. Para a nossa espécie a sobrevivência dependedisto: ter a informação precisa na hora certa.

Quando uma era se dissolve lentamente na se-guinte, alguns indivíduos metabolizam os antigosmeios de sobrevivência física transformando-osem novos meios para sobrevivência psíquica. Es-tes últimos são o que nós chamamos de arte. Elespromovem a vida da consciência humana alimen-tando nossas afeições, reencarnando nossa es-sência perceptiva, afirmando, imitando, reificandoo próprio processo da consciência.

O que estou sugerindo, em termos muito simples,é que nenhuma atividade se transforma em arteantes que sua época tenha terminado e que, en-quanto forma de auxílio à simples sobrevivência,tenha caído em total obsolescência.

* * *

Nasci durante a Idade das Máquinas.

Máquina era uma coisa feita de “partes” distintas,organizadas de forma a imitar algumas funções docorpo humano. Dizia-se que as máquinas “traba-lhavam”. Para um perito, a forma como uma má-quina “trabalhava” tornava-se imediatamente evi-dente pela inspeção da configuração de suas“partes”. Os princípios físicos por meio dos quaisas máquinas “trabalhavam” podiam ser verifica-dos intuitivamente.

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O cinema foi a forma de sobrevivência caracterís-tica da Idade das Máquinas. Junto com o subcon-junto das fotografias fixas, ele preenchia funçõespreciosas; ele nos ensinava e nos lembrava (apósdemora que parecia então tolerável) a aparênciadas coisas, seu funcionamento, como fazê-las... e, éclaro, por exemplo, como sentir e pensar.

Acreditávamos que isso continuaria eternamen-te, mas quando eu ainda era um garotinho a Idadedas Máquinas acabou. Não nos deveríamos deixarenganar pelo abridor de latas elétrico; pequenasmáquinas proliferam agora como se fossem pas-sar de moda porque é exatamente isso o que estáacontecendo.

O cinema é a Última Máquina. É provavelmente aúltima arte que vai atingir o intelecto através dossentidos.

Costuma-se assinalar o fim da Idade das Máquinascom o advento do vídeo. É uma referência tempo-ral imprecisa: eu prefiro o radar, que substituiu oreconhecimento aéreo mecânico por uma caixanegra estática e anônima. Sua introdução coinci-de quase completamente com a realização deMeshes of the Afternoon, de Maya Deren, e deGeography of the Body, de Willard Maas.

A ideia de que teria havido um exato momento emque a mesa virou e o cinema se tornou obsoleto,transformando-se então em arte, é ficção tocanteque impõe uma tarefa especial para o meta-histo-riador do cinema.

* * *

O historiador do cinema se depara com um pro-blema terrível. Em busca de algum princípio de in-teligibilidade para seu objeto, ele é obrigado a setornar responsável por todos os fotogramas defilme existentes, pois a história do cinema consisteprecisamente de cada filme já feito, não importacom que objetivo.Hollis Frampton. Zorns Lemma, 1970, fotogramas

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Em relação ao conjunto do corpus, aqueles que separecem com Encouraçado Potemkin são uma ín-fima minoria. O balanço inclui filmes pedagógicos,filmes de amadores, cinematografia endoscópicae mais, muito mais. O historiador não ousa sele-cionar nem ignorar, pois, se assim o fizer, o tesouroperiga escapar-lhe.

O meta-historiador do cinema, por outro lado,está ocupado em inventar uma tradição, isto é, umconjunto manejável e coerente de monumentosdistintos, destinados a implantar uma consistên-cia vibrante no corpo em expansão de sua arte.

Tais obras podem não existir, então é seu deverfazê-las. Ou elas podem já existir em algum lugarfora dos domínios da arte, por exemplo, na pré-história da arte cinematográfica, antes de 1943. Eleprecisa então refazê-las.

* * *

Na lógica estrutural da fita de cinema, não há ne-nhuma evidência que permita distinguir o “mate-rial rodado”(footage) da obra “acabada”.

Assim, qualquer parte do filme pode ser conside-rada “material rodado” e ser utilizada de todas asmaneiras imagináveis para construir ou recons-truir outra obra.

Por conseguinte, o meta-historiador deve podertratar obras antigas como “material rodado” paraconstruir, a partir daí, obra idêntica, necessária àtradição.

Quando isso é impossível, por perda ou dano, épreciso constituir um novo material. O resultadocorresponderá perfeitamente à obra precedente,mas de forma “quase infinitamente mais rica”.

* * *

Cinema é palavra grega que significa “movimento”(movie). A ilusão de movimento é certamente umcomplemento habitual da imagem fílmica, mas

essa ilusão repousa sobre a hipótese de que a taxade variação entre fotogramas sucessivos só podese situar em limites bastante estreitos. Na lógicaestrutural da fita de filme, não há nada que justifi-que tal hipótese. Por consequência, nós a rejeita-mos. A partir de agora, vamos chamar nossa artesimplesmente de filme.

O filme infinito contém uma infinidade de passa-gens infindáveis nas quais um fotograma não separece minimamente com nenhum outro, e outrainfinidade de passagens em que os fotogramas su-cessivos são quase tão idênticos quanto o intelec-to permite concebê-los.

* * *

Eu chamei o filme de Última Máquina.

Como ainda podemos lembrar, grosso modo, asmáquinas correspondiam em tamanho aos mamí-feros. A máquina chamada filme é uma exceção.

Temos o hábito de tratar a câmera e os projetorescomo máquinas, mas elas não são. São “partes”. Afita flexível de filme faz “parte” da máquina filme,tanto quanto o projétil faz parte da arma de fogo.As bobinas de filme que restam ultrapassam emmuitos graus de magnitude as outras partes damáquina.

Já que todas as “partes” se ajustam, a soma de to-dos os filmes, de todos os projetores e de todas ascâmeras do mundo constitui uma máquina, delonge o maior e mais ambicioso artefato jamaisconcebido e fabricado pelo homem – à exceçãoda própria espécie humana. A máquina se acrescede milhões de pés de película por dia.

Não surpreende que uma coisa assim tão grandetenha terminado por engolir e digerir toda a subs-tância da Idade das Máquinas (as máquinas e tudomais) para finalmente suplantar o todo com suacarne ilusória. Tendo devorado todo o resto, a má-quina-filme é a única sobrevivente.

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Se efetivamente estamos condenados à tarefacomicamente convergente de desmantelar ouniverso para fabricar, a partir de sua matéria,um objeto chamado o universo, é razoável su-por que um tal objeto se parecerá com as abó-badas dos arquivos sem fim do filme, construí-das para abrigar, no frio de um eternoentreposto, o filme infinito.

* * *

Se a fita de filme e o projetor fazem parte da mes-ma máquina, então um “filme” pode ser opera-cionalmente definido como “tudo o que podepassar por um projetor”. A mais ínfima coisa quefizer isso não é nada. Um tal filme existe. É o únicofilme absolutamente singular no mundo.

* * *

Há uns 20 anos, tomado pela necessidade ado-lescente de me “modernizar”, fiquei extasiadocom a observação de Walter Pater segundo aqual “todas as artes aspiram à condição da músi-ca”, o que então entendi como aprovação da li-berdade da música com relação a acontecimen-tos a ela externos.

Agora, analiso e procuro praticar uma arte que senutre de ilusões e de referências que as outras ar-tes desdenham e rejeitam. Ocorre-me, porém,que o filme preenche o que talvez seja, afinal decontas, a condição primordial da música: ele nãoproduz objeto.

O músico ocidental geralmente não faz música;sua notação codifica um conjunto de instruçõesdestinadas àqueles que a fazem. Uma partitura pa-rece tanto com uma música quanto a hélice gené-tica se parece com um organismo vivo. Para existir,a música deve ser tocada, dificuldade que JohnCage renega no prefácio de A Year from Monday,no qual observa que fazer música consistiu, atéeste momento, principalmente em dizer aos ou-tros o que eles deveriam fazer.

O ato de fazer um filme, a montagem física da fitade filme dá um pouco a impressão de que se fabri-ca um objeto: o fato de que os artistas do filme te-nham compreendido a materialidade do filme éde inestimável importância – e o filme certamenteconvida a um exame nesse nível. Mas, assim que ofilme está terminado, o “objeto” desaparece. A fitade filme é um sistema elegante que permite mo-

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Hollis Frampton Poetic Justice, 1972 (still)

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dular feixes de energia estandartizados. E esse tra-balho fantasma aparece na tela à medida que a no-tação vai sendo executada por um virtuoso per-former mecânico, o projetor.

* * *

O meta-historiador do filme cria para si o proble-ma de extrair toda uma tradição de nada maisnada menos do que os mais óbvios limites mate-riais da máquina filme total. Devemos poder pas-sar, especula ele, de The Flicker a Unsere Afrikarei-se a Tom, Tom, the Piper´s Son ou RégionCentrale e assim por diante, fechando etapas(cada filme, uma etapa), escolhendo a cada movi-mento apenas uma única opção – perfeitamenteracional. O problema é análogo ao do Percurso doCavalo no jogo de xadrez.

Compreendido literalmente, é um problema inso-lúvel e, como tal, sem esperança. As vias abertaspelo Cavalo bifurcam frequentemente (para re-convergir ninguém sabe onde). O tabuleiro é ma-triz de linhas e colunas que excede qualquer possi-bilidade de cálculo, em que nenhum ponto departida escolhido pode ser, de antemão, defendi-do com convicção.

Entrevejo, entretanto, a possibilidade de cons-truir um filme que seria como a conjugação si-nóptica de tal percurso – um Percurso dos Per-cursos, por assim dizer, do filme infinito ou doconjunto do saber, o que dá no mesmo. Ou, me-lhor, tal possibilidade se apresenta com insistên-cia em minha imaginação como o germe de umplano de execução.

* * *

O filme finalmente atraiu sua própria musa. Seunome é Insônia.

Eaton, New York, junho 1971.

Tradução Livia FloresRevisão técnica Elisa Magalhães

NOTA

1 For a metahistory of film: commonplace notes and hy-potheses foi publicado originalmente em Artforum v.10,n.1 (setembro de 1971) e republicado em Circles of Con-fusion: Film, Photography, Video: Texts 1968-1980, Ro-chester: Visual Studies Workshop Press, 1983.

Hollis Frampton (1936-1984), fotógrafo e cineasta ex-perimental, trabalhou para suspender a disjunção entreteoria e prática, assim como Morris, Smithson, Judd eAndre também o fizeram. Considerado o cineasta maisteórico de uma geração da qual fazem parte Snow,Brackage, Kubelka e Mekas, descobre-se não poeta ape-sar de sua participação no círculo próximo a Ezra Pound,mas mantém em sua obra ressonância polifônica e multi-facetada também alimentada por seu interesse pelamatemática, entre outros campos do conhecimento.Nostalgia, Zorns Lemma, Ordinary Matter, Poetic Justice,Sollarium Magellani, entre outros, são filmes que inte-gram ciclos maiores como Hapax Legomena e Magellan.

Hollis Frampton Autorretrato, 1975